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S ETEMBRO 2012
JOSÉ DUAYER
ÓRGÃO OFICIAL DA A SSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA
CASA DA MORTE Repórteres do Jornal da ABI devassam o sinistro casarão onde agentes da ditadura mataram e esquartejaram dezenas de presos. PÁGINA 3
BOMBA NA ABI Atentado terrorista tem de ser investigado.
PÁGINA 11
O militante comunista que promoveu uma revolução na criação e montagem das novelas da televisão. PÁGINA 20
Theodomiro, o condenado à morte na República
GLAUCO RODRIGUES
DEPOIMENTO
PÁGINA 16
ARTE SEQÜENCIAL
A trajetória de Senhor, a revista sem igual PÁGINA 34
VIDAS EDSON JANSEN • LOU PACHECO • NAUMIM AIZEN • SERGIO TOPPI • SEVERINO ARAÚJO
EDITORIAL
DESTAQUES ACERVO PAULO MENDES CAMPOS/ INSTITUTO MOREIRA SALLES
SESSÃO SECRETA PARA QUÊ? MAURÍCIO AZÊDO MAIS DE TRÊS MESES APÓS a sua instalação, em junho passado, a Comissão Nacional da Verdade está ensejando questionamentos sobre o roteiro que se traçou para investigar, apurar e revelar as violências da ditadura militar, em que circunstâncias ocorreram, quem as praticou, quem as ordenou e quais as vítimas de tantos atos de desrespeito à dignidade da pessoa humana.
fossem abertas, ponderou Kucinski: “Hoje, acrescento, que haja sessões televisadas, como são as da Câmara, do Senado e do Supremo. Se a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça, se não tem objetivo punitivo, que outro sentido teria senão o pedagógico, o de revelar a nossos filhos e netos as atrocidades cometidas no passado recente para que não se repitam?”.
ENTRE AS RESTRIÇÕES ESTABELECIDAS pela Comissão, em desacordo frontal com o propósito da lei que a criou e com o reclamo das instituições da sociedade civil que lutaram por sua formação, está a contida na decisão de realizar suas sessões com caráter secreto, vedando-se o acesso dos cidadãos interessados em acompanhar os seus trabalhos e, extremamente grave, também o acesso dos órgãos de comunicação. A Comissão impôs a si mesma uma espécie de censura prévia, o que já em si é condenável, e a estendeu à cidadania e à imprensa, o que é inadmissível.
KUCINSKI CONTESTOU A ALEGAÇÃO de um dos membros da Comissão, o advogado José Carlos Dias, de que o sigilo é necessário para que os depoentes se sintam à vontade para falar, para que se possa chegar à verdade última dos fatos. A esse respeito sustentou Kucinski: “Mas que verdades a Comissão da Verdade procura? O que é a verdade numa comissão que não tem funções processuais? Que não precisa provar a um júri que o agente do Estado assassinou aquele estudante já rendido com três tiros e não com quatro ou dois, ou a pauladas?”.
PRESENTE À PRIMEIRA REUNIÃO que a Comissão realizou em junho passado, em São Paulo, com parentes de desaparecidos, o jornalista Bernardo Kucinski, cuja irmã, Ana Rosa Kucinski, e seu cunhado, Tito Silva, marido dela, figuram há décadas entre os cidadãos a que a ditadura militar deu sumiço, questionou essa decisão, fundado em argumentos irrefutáveis que ele expôs no artigo sob o título A verdade, alto e bom som publicado em O Estado de S. Paulo (caderno Aliás, página J6, edição de 8 de setembro de 2012), no qual começava por indagar: “Por que a Comissão da Verdade trabalha em sigilo, como se ainda estivéssemos na ditadura?”.
OUTRA CONTRADIÇÃO DA COMISSÃO, aliás a principal, disse Kucinski, é a de “adotar procedimentos de inquérito policial, que tem por objetivo fundamentar indiciamentos em tribunal, embora seu objetivo seja o julgamento histórico, não o criminal”.
13 R EFLEXÕES - Idéias, paixões e ressentimentos por Rodolfo Konder
UM DOS MEMBROS DA COMISSÃO, o ex-Procurador da República Cláudio Fonteles, disse num debate em Brasília, em agosto, lembrou Kucinski, que “a Comissão da Verdade não levará a nada sem a pressão da sociedade civil”. Para essa pressão a ABI convoca as instituições que querem conhecer todo esse passado tenebroso, sem esperar os dois longos anos fixados na lei para que ela apresente seu relatório final.
20 LEMBRANÇA - Dias Gomes, Um comunista revoluciona a tv
PAULO MENDES CAMPOS, PÁGINA 28
03 E SPECIAL - Casa da morte, o mais brutal centro de terror da ditadura ○
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12 N OMEAÇÃO - Modesto da Silveira na Comissão de Ética da Presidência da República ○
APÓS LEMBRAR QUE NA CITADA reunião, em curta intervenção, sugeriu que as sessões da Comissão
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11 A CERTO DE CONTAS - A ABI quer saber quem a atacou a bomba em 1976
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14 DOCUMENTOS - Um original de Pederneiras ○
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16 D EPOIMENTO - Fala Theodomiro, o único condenado à morte na República ○
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28 A MIZADE - Quatro cavaleiros para sempre ○
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30 A RTE - As duas mortes de Morat, o revolucionário L’Ami du Peuple ○
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31 C ENTENÁRIO - Jorge Amado, O Visionário por Lygia Fagundes Telles ○
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32 LITERATURA - O repórter Jorge Amado ○
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38 LIVROS - Floresta de palavras ○
O OLHAR DE C LAYTON
Publicado no jornal O Povo, de Fortaleza, em 4 de setembro.
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39 L IVROS - Auto-retratos para leitores e não-leitores ○
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40 L IVROS - Mocassins pretos e luzes em tempos de escuridão ○
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40 L IVROS - Pedroza, o repórter que valia por uma equipe ○
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41 A CONTECIMENTO - ...E o homem conquistou a Lua ○
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SEÇÕES 150 A CONTECEU NA ABI Em arquitetura, o Brasil influenciou os europeus ○
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26 L IBERDADE DE I MPRENSA Começa a temporada de erros da Justiça Eleitoral ○
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27 D IREITOS H UMANOS O Major Curió vai responder pelos seqüestros que cometeu ○
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V IDAS 44 Severino Araújo, O maestro do baile Parece Que Foi Hontem ○
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46 Naumim Aizen, Sergio Toppi ○
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47 Edson Jansen, Maria de Lourdes Freitas Pacheco ○
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JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
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JAGUAR, NO PASQUIM
34 V EÍCULO - Uma revista bossa nova
MUNIR AHMED
ESPECIAL
CASA DA MORTE O MAIS BRUTAL CENTRO DE TERROR DA DITADURA
Repórteres do Jornal da ABI devassam a história do antro de torturadores da ditadura militar que assassinavam presos políticos, esquartejavam seus corpos e os penduravam em ganchos, como os açougueiros fazem com carnes. POR ARCÍRIO B. GOUVÊA NETO F OTOS A LCYR CAVALCANTI
O
táxi pára em frente a uma bela casa, em um local de difícil acesso de uma rua silenciosa e sem saída, mas que, no entanto, permite uma visão encantadora da cidade lá embaixo e das serras ao redor. Descemos eu e o repórter-fotográfico Alcyr Cavalcanti, enquanto o motorista do carro manobra e nos espera um pouco mais à frente. Ele prefere permanecer dentro do carro, talvez sentindo que ali não é um bom lugar para ficar, traz maus fluidos. Mas a vegetação luxuriante de Petrópo-
lis, região serrana do Rio, abundante ali, nos convida à reflexão e a procurar os sabiás que nos cantam alegres cantos de boas-vindas. Observamos a casa da calçada em frente, tentando reviver os momentos de pavor de presos políticos que chegavam ali mais ou menos como nós chegamos, para depois serem torturados e mortos, em macabros rituais de terror, em um passado distante no tempo, mas latejante ainda na memória. Seu aspecto até lembra aquelas casas dos filmes de suspense de Hollywood, a la Alfred Hitchcock.
JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
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ESPECIAL CASA DA MORTE, O MAIS BRUTAL CENTRO DE TERROR DA DITADURA
De repente, nossa divagação é interrompida por uma janela que se abre na parte superior da casa e o rosto de um homem nos olha de longe. Pergunto se poderia falar com ele, que a princípio reluta e nos pede para ir embora. Diz que não irá descer, pergunta quem somos, respondemos que somos jornalistas. Irritado, fala que a imprensa já desgraçou demais a sua vida. No entanto, ao falarmos que somos da ABI, do Jornal da ABI, ele resolve descer. Atravesso a rua e fico do lado de fora de um portão, que me pareceu ser da garagem, enquanto espero. Lá dentro, um velho Uno cinza (dos muitos carros que o proprietário coleciona e reforma). Olho atentamente o interior pelas grades do portão e percebo uma casa bem cuidada, organizada e limpa. Logo depois ele aparece, atravessa um jardim e vem falar comigo pelo lado de dentro, sem abrir o portão. Seu nome é Renato Firmento de Noronha, carioca, tem 63 anos, é engenheiro aposentado da Petrobrás e filho de um ex-oficial da Marinha. Conta que adquiriu a casa em fins de 1979. Seus olhos vermelhos, um aspecto de abatimento e certo tique nervoso ao falar evidenciam uma pessoa que atravessa um momento pessoal difícil: "O que o senhor quer saber, por favor?" "Gostaria de conversar um pouco sobre a casa e o decreto municipal tornando sua residência de utilidade pública para efeito de desapropriação." "É um absurdo! Já disse isso a uma comissão da Prefeitura de Petrópolis que esteve aqui. Eu tenho o direito de me negar a aceitar essa decisão. Eu vou lutar na Justiça até as últimas conseqüências para impedir isso." "Mas o senhor não acha que essa casa é um centro de referência histórica que precisa ser preservado? Ou seja, antes de ser sua casa ela deve pertencer à memória do povo brasileiro, para que seja referência de um tempo de arbítrio que não deve voltar mais. As novas gerações, principalmente os jovens e estudantes, precisam saber disso e terem acesso a ela." "Olha, por favor, eu não me oponho a isso. Eu concordo com isso. Realmente, acho que todos esses centros devem virar museus, centros culturais, bibliotecas, sei lá, mas isso pode ser feito em outros lugares, não precisa ser necessariamente nos locais onde eles existiram. Esta casa está situada longe do centro, em um lugar de difícil acesso, que impossibilitaria visitas mais freqüentes. Então por que não compram uma casa no centro de Petrópolis e fazem dela um centro de memória contra a tortura no Município? Ou então, inauguram uma placa, uma praça, uma rua, para lembrar esse lugar?" "Sim, mas aí não seria a mesma coisa, o senhor não acha? De que adiantaria construir uma casa, ou comprar uma outra, ou inaugurar uma placa, uma praça se nada tem a ver com essa residência? Só tem sentido se for aqui." "Olha, todo esse assunto já desgraçou a minha vida. Hoje eu sou um homem doente, vivo à base de remédios para controlar a pressão, as batidas do coração 4
JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
Renato Firmento de Noronha, dono da casa desde 1979, esconde-se para preservar sua imagem. Esta foto foi feita à distância com poderosa tele por Alcyr Cavalcanti.
e quase tive um avc há pouco tempo. Eu pediria ao senhor e a todos que me deixassem em paz e não viessem mais aqui me importunar. Eu não sou obrigado a aceitar o que me é imposto. Não sou obrigado a vender uma casa se não quero vendê-la. Isso é coação, é me colocar contra a parede e ficar parecendo para a sociedade que sou um crápula, um maucaráter. Eu nem posso mais sair à rua, ir ao supermercado, à padaria, entrar num shopping, que fica todo mundo me olhando, me julgando, como se eu fora um bandido. Eu tenho direito a uma reparação pública por isso, a danos morais. E penso em mover contra o Estado uma ação de constrangimento público." "Não seria então mais fácil para o senhor sair? Veja bem, estou me colocando no seu lugar. É tão importante assim ficar aqui e sofrer toda essa pressão quando o senhor poderia vender essa casa e ir pra outro local?” "Mas por quê? Senhor, eu criei meus filhos aqui e hoje estão na faixa dos 30 anos, vivi feliz e contente nesta casa, até descobrir pela imprensa que ela foi local de torturas e receber aqui uma comissão de entidades ligadas aos direitos humanos anos atrás. Dali pra frente não tive mais paz. Eu nem sei se essa senhora Inês Etienne Romeu falou a verdade, quando disse que a Casa da Morte em Petrópolis era esta, ela podia estar enganada, a casa pode ser outra, até porque ela não está bem mentalmente." "Não, mas aí o senhor não está falando a verdade. Esse problema com ela aconteceu recentemente e quando a Inês esteve aqui, junto com a comissão que era representada por integrantes da ABI, OAB, do Grupo Tortura Nunca Mais, da Assembléia Legislativa, ela estava em perfeita sanidade mental. Ela tinha certeza do que estava fazendo. O senhor não sabia até eles chegarem aqui que a casa havia servido à tortura de pre-
sos políticos? Naquela época a coisa estava recente." "Eu não sabia que essa casa era cedida pelo antigo proprietário para os fins que o senhor está dizendo (ele se refere ao alemão Mário Lodders, primeiro dono da casa). Não existem provas conclusivas desses fatos. Não existe nenhuma sentença a esse respeito, nenhum julgamento, nenhuma condenação. Eu até admiro a senhora Inês Etienne, pela sua luta e bravura em prol de um ideal em que ela acreditava.” "Então o senhor acha que todo mundo está mentindo?” "Que todo mundo? Só existe o depoimento da senhora Inês Etienne e nada mais." "Não, senhor. O Delegado Cláudio Guerra confirmou em recente livro a existência dessa casa. Assim como o médico Amílcar Lobo, o Tenente-Coronel Paulo Malhães, o agente do Doi-Codi Marival Chaves. Dessa maneira, o senhor está tentando minimizar e tornar sem significância os fatos, tentando tirar proveito a seu favor." "Olha, eu vou entrar, não quero falar mais nisso. Eu só desci pra conversar com o senhor porque o senhor representa uma entidade que eu respeito muito, que é a Associação Brasileira de Imprensa, mas vejo que também o senhor quer me impor as coisas." "Bem, esse é seu único motivo para permanecer aqui? Não existe mais nenhum? O senhor nunca ouviu ou viu nenhum fenômeno paranormal nesta casa? Por que o senhor modificou os cômodos?" "Ora, senhor, que absurda essa pergunta, vinda de um jornalista? O que tem a ver uma coisa com a outra? Esta casa já está toda modificada, não existe mais nada que lembre a casa do passado, modifiquei tudo. Então por que fazer daqui um museu? O que vão botar aqui,
um pau-de-arara? Uma cadeira do dragão? E me recuso a comentar esta sua pergunta e termino dizendo que não conheci o antigo proprietário. Onde o senhor está querendo chegar?" "Na verdade, companheiro. E com relação aos fenômenos paranormais, Shakespeare dizia que existem mais mistérios entre o céu e a Terra do que nossa vã filosofia possa imaginar. Por que o senhor modificou os cômodos?" "Volto a insistir: por que essa pergunta?” Nesse momento, já escondido atrás de uma coluna e depois agachado atrás de um muro, parecendo um tanto fora de si, aborrecido com a possibilidade de o repórter-fotográfico Alcyr Cavalcanti fotografá-lo, ele entrou e trancou a porta. Ficou a nos olhar, depois, escondido detrás de uma cortina na mesma janela superior, enquanto entrávamos no táxi para ir embora. Descemos por ladeiras íngremes com casas tomadas por heras, ostentando altos muros e sem vermos ninguém nas ruas, pensando em como deveria ser esse local há 40 anos. Antes de chegarmos lá embaixo, ainda passamos por um mirante e pela Estação de Tratamento de Águas do Imperador, que abastece a cidade. Renato Firmento comprou a casa localizada na Rua Arthur Barbosa, 668, bairro Caxambu, em fins de 1979, para criar a família que acabara de constituir, como a filha Clarisse, de um ano, e ainda para ficar ao lado da mulher, a arquiteta Lílian Pitta, contratada pela Prefeitura de Petrópolis. Um amigo da Petrobrás lhe deu o telefone do antigo dono e comprar o imóvel não foi fácil. Ele teve que vender um apartamento de dois quartos em Ipanema, Zona Sul do Rio, usar a poupança que tinha em um banco e ainda fazer um empréstimo. Reformas foram muitas em todos estes anos. A casa, que originalmente tinha 180 metros quadrados, foi ampliada para 372 metros quadrados, com a construção da parte superior e a escavação de um barranco no fundo do quintal, de quase 1.800 metros quadrados, para dar lugar a uma piscina, sauna e churrasqueira. Nesta casa também nasceu seu filho, o economista Luiz Eduardo, em 1981. Com a separação de Lílian Pitta, Renato ficou sozinho na casa. Mas é difícil imaginar a vida ali, diante das lembranças que como hóspedes invisíveis insistem em compartilhar os aposentos. Por exemplo: a cozinha onde Inês era obrigada nua a preparar a comida é a mesma onde Renato preparava a lasanha para os filhos e sobrinhos nos domingos. O quarto onde Luiz Eduardo brincava é o mesmo onde Inês convalesceu por 40 dias, depois do atropelamento sofrido durante sua captura. O quarto onde hoje dorme tranqüila a empregada da família é o mesmo onde militares aplicavam o soro da verdade (pentatol sódico), choques elétricos e abusos sexuais, nos interrogatórios da guerrilheira. O futuro decidirá, como um juiz inexorável, quais desses exemplos ficarão marcados para servirem como reflexo de um tempo recente da História do Brasil.
Mariana Ramos e a casa que abrigou o pior porão da ditadura militar e que agora pode se tornar o Centro de Memória, Verdade e Justiça de Petrópolis: Muita coisa ainda precisa ser feita.
Em lugar da tortura, um centro de Memória, Verdade e Justiça Militantes dos direitos humanos festejam a vitória de uma luta antiga. No dia 23 de agosto, o Prefeito de Petrópolis, Paulo Mustrangi (PT), assinou o decreto que torna o imóvel "Casa da Morte" de utilidade pública para fins de desapropriação. A proposta é que o imóvel, de tão trágica memória, seja desapropriado pelo Poder Público e dê lugar ao Centro de Memória, Verdade e Justiça de Petrópolis. A medida atende a uma luta antiga do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis-CDDH, da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e do Grupo Tortura Nunca Mais e outras entidades. "Esse anúncio foi uma grande vitória para nós que tanto lutamos para que aquela casa se transforme em um símbolo contra a ditadura. É um ato democrático que deixou clara a importância da mobilização e da força da sociedade. Nossa intenção é que naquele espaço seja implantado um memorial onde se possa contar a história de um dos períodos mais sombrios de nossa história, que foi o da ditadura civil-militar", afirma Eliana Rocha, Coordenadora do CDDH. O Prefeito Paulo Mustrangi destacou que, diante da importância histórica do imóvel, o trâmite de desapropriação tem um caráter especial e servirá de exemplo para que nunca mais atos de violações dos direitos humanos sejam postos em prática no Brasil: "O Governo municipal tem absoluto interesse em constituir um espaço onde a população possa ter conhecimento de um período obscuro de nossa História. Precisamos resgatar e deixar essa memória avivada para que as futuras gerações possam refletir todo o con-
texto dessa passagem da vida brasileira e o País nunca mais vivencie tais atos. Essa será a vitória da democracia, a chance de passar a limpo uma página fúnebre e honrar todos aqueles que sempre defenderam os direitos humanos". A advogada do CDDH, Mariana Ramos, vibrou com a decisão. Ela é uma das batalhadoras incansáveis pela transformação da casa em centro de memória: "Acho que não podíamos esperar mais. A medida do Prefeito Paulo Mustrangi foi fundamental e preciosa, mas muita coisa ainda precisa ser feita. Para dar maior importância a essa questão, o CDDH criou uma petição pública na internet (peticaopublica.com.br) para a coleta de assinaturas em apoio à campanha em favor da desapropriação da casa, que muitos historiadores consideram o pior porão da ditadura militar. O Comitê Petrópolis em Luta também participante do movimento pela implantação do memorial recolheu cerca de 2.000 assinaturas em apoio ao projeto. Isso é importante, principalmente para que as novas gerações conheçam essa História. A casa fica em Petrópolis, mas por ela passaram presos políticos de todo o Brasil. Pessoas inocentes que foram torturadas e que fazem parte de um tempo que jamais pode ser esquecido e do qual aquela casa é o mais significativo exemplo quando se fala de tortura, arbítrio e abuso de toda sorte. É um absurdo, mas a população petropolitana não sabe da existência dessa casa, por isso, temos o projeto de exibição de filmes em parceria com o Palácio Rio Negro e outras atividades para
chamar a atenção para um assunto tão importante", afirma. O vereador Cláudio Vinícius (PDT) exaltou a medida: "Fico muito satisfeito, até porque no dia 14 de agosto a Câmara Municipal havia aprovado indicação de minha autoria pedindo a desapropriação da casa. Este é o primeiro passo, precisamos continuar caminhando na direção da desapropriação e da implantação do Centro de Memória. Mas já é fundamental porque
agora o proprietário não poderá mais usála para nada, a não ser, por enquanto, pra morar. Ele não poderá mais vendê-la, só para o Estado, e nem alugá-la ou transferila para terceiros", disse Vinícius. A historiadora Bárbara Primo, do Palácio Rio Negro, em Petrópolis, outra das entidades envolvidas com a transformação da Casa da Morte em um Centro de Memória e Vida, afirma que o País não pode esperar mais: "Já esperou até demais. Nada vai mudar o rumo da História. Reconheço a luta do proprietário para ficar lá, mas ele pode ir para milhares de outros lugares no Brasil e aquela casa não. Já esteve mais longe, mais difícil, agora está mais perto e mais fácil. Até é bom esse inesperado comportamento do atual proprietário, porque tornará nossa vitória mais bonita e prazerosa", concluiu Bárbara.
O ato do Prefeito DECRETO Nº 966, DE 23 DE AGOSTO DE 2012 (...) Considerando a necessidade de desagravar a memória de nossa cidade, que no período dos anos cinzentos da História deste País conviveu veladamente com a triste e brutal violação dos direitos de cidadania. Considerando a possibilidade democrática de demonstrar cabalmente que a população da cidade de Petrópolis jamais coadunou com as práticas ocorridas e se nega veementemente a cultivar o esquecimento. Considerando a manifestação e o apoio de diversos setores da sociedade que, em sintonia com a posição da atual gestão pública do Município, defendem, incondicionalmente, a memória como instrumento de reflexão e meio impeditivo da restauração de regimes que violem os direitos humanos e contrariem a democracia em sua plenitude. Considerando que o avanço obtido nas tratativas com o Governo Federal, através da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, possibilita o apoio necessário para a efetiva instalação do futuro memorial à vida e à liberdade. Decreto (...) que fica considerado de utilidade pública, para fins de desapropriação, o imóvel (...) situado no 1º Distrito de Petrópolis, à Rua Arthur Barbosa, 50, antigo 668-A, Quarteirão Suíço (Bairro Caxambu) (...)."
JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
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ESPECIAL CASA DA MORTE, O MAIS BRUTAL CENTRO DE TERROR DA DITADURA
Documentos sobre mortes desapareceram A Procuradora da República em Petrópolis, Vanessa Seguezzi, vem encontrando dificuldades para unir as peças de um quebra-cabeça que há dois anos tem desafiado sua imaginação e todas as possibilidade de esclarecimento a curto prazo dos crimes na Casa da Morte. Isto porque, possíveis execuções de presos políticos nesse local estão sendo difíceis de serem investigadas em virtude dos livros que tratam dessas ocorrências terem sumido da 67ª DP, do Instituto Médico Legal-ML e ainda dos livros do cemitério municipal. Ela explica esse estranho acontecimento: "Na verdade, é uma confusão geral, os livros não foram encontrados na Delegacia, mas ao mesmo tempo não constam suas saídas da Delegacia, assim como os livros do IML. Eu expedi ofício para todos os lugares para onde podem ter ido, como a Secretaria de Segurança Pública, Arquivo Nacional e Estadual, além do Arquivo Municipal de Petrópolis. Com relação aos desaparecidos, já busquei informações em hospitais, funerárias, cartórios e outros órgãos, já que dos livros oficiais seus nomes praticamente sumiram." Muito consciente de seu trabalho e sabendo ser ele crucial para a elucidação de crimes que continuam impunes e envolvidos numa aura de mistério, Vanes-
sa Seguezzi conta quais são suas linhas de investigação. "São três: a primeira começamos em meados de 2010 sobre os supostos sepultamentos clandestinos nos cemitérios de Petrópolis. E mais outras duas linhas sobre um cemitério clandestino na serra, tendo como base as revelações do Delegado Cláudio Guerra e mais uma que é ligada ao direito à memória e à verdade com relação ao que ocorreu na Casa. Por esse motivo, a lista inclui mortos e desaparecidos. Essas duas últimas frentes de ação foram abertas recentemente. Um dado que também dificulta nosso trabalho é que os corpos das vítimas de tortura eram enterrados em valas comuns, em locais ermos e de difícil acesso, ou então como indigentes, uma estratégia armada justamente para impossibilitar ou desorientar a investigação", informou a Procuradora. Boletins de ocorrência envolvendo mortes violentas entre 1973 e 1980 estão sendo pesquisados por uma equipe da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Mas uma coisa é certa: o grupo já constatou escassez de documentos referentes a esse período, principalmente os que se referem a mortes violentas. O pouco que sobrou do acervo da delegacia policial foi entregue ao
Museu Imperial e está reunido em 80 caixas de documentos, parte proveniente do Serviço Nacional de Informação-SNI e contendo dados sobre militantes políticos e ainda boletins de fichamentos de suspeitos de crimes contra a segurança nacional, além de um livro com relação de nomes de comunistas. E um dado grave: os pesquisadores desta comissão já observaram vestígios de queima de documentos. Segundo denúncias do Grupo Tortura Nunca Mais, feitas ao Ministério Público Federal, pelo menos 22 mortes em situação de violência ocorrida em Petrópolis, estariam ligadas à Casa da Morte. Entre esses casos divulgados pelo Grupo estão mortes por hemorragia interna, omissão de socorro e traumatismos, exemplos claros, característicos, do modo de atuação dos torturadores desses locais em todo o País. A maioria das vítimas da Casa da Morte provavelmente foi enterrada como indigente ou identificada com nomes falsos nos cemitérios do Centro de Petrópolis e de Itaipava. Além desses, pode ter havido sepultamentos na zona rural de Petrópolis, nos bairros de Rio Bonito, Brejal e Vale das Videiras. Dentre os sepultamentos considerados suspeitos, dois despertaram mais a atenção do MPF: o enterro de um homem identificado como Manoel da
Rocha Benevides, de 27 anos, que morreu por hemorragia interna e que pode ser, na verdade, o desaparecido político Celso Gilberto de Oliveira, preso aos 25 anos, em dezembro de 1970. O segundo caso suspeito foi identificado em registros de 1971 e se trata do sepultamento de um rapaz identificado como Antônio Santana, de 25 anos. Os documentos mostram que ele morreu por falta de assistência médica e foi sepultado em 16 de junho de 1971, em um antigo cemitério na região de Rio Bonito. A suspeita é de que o corpo possa ser do desaparecido político Ivan Mota Dias, de 29 anos, preso no dia 15 do mesmo ano, pois sua morte tem as mesmas características das ocorridas em locais de tortura. A Casa da Morte funcionava em colaboração e sob orientação de vários órgãos do regime militar, inclusive de fora do Estado do Rio de Janeiro. São eles: o 1º Batalhão de Caçadores (Batalhão Dom Pedro II, depois transformado no 32º Batalhão de Infantaria Motorizada), Polícia do Exército (sob o comando do Coronel Francisco Homem de Carvalho), I Exército (sob o comando do General Silvio Frota), Doi-Codi do II Exército-SP (sob o comando do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra), Doi-Codi-RJ (sob o comando do General Adyr Fiúza de Castro). Segundo revelou o Coronel reformado Paulo Malhães (Dr. Pablo), ao jornal O Globo, o centro de tortura da Casa da Morte foi organizado por ele quando trabalhava no Centro de Informações do Exército. Ele confirmou ainda que trabalhou na casa com o Tenente-Coronel reformado, Rubens Paim Sampaio.
“EU ORGANIZEI AQUELE LUGAR”, CONFESSA CORONEL REFORMADO Nesta entrevista concedida aos repórteres Chico Otávio, Juliana Dal Piva e Marcelo Remígio, do jornal O Globo, o TenenteCoronel reformado Paulo Malhães (o Dr. Pablo), de 74 anos, que também atuou na Guerrilha do Araguaia, é enfático e categórico: "Eu organizei aquele lugar". Considerado pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ "um dos elementos ligados diretamente à tortura" e apontado pelo ex-preso político e diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política Ivan Seixas como fundamental para esclarecer o destino dos 22 desaparecidos: "Ele foi um dos três coordenadores operacionais da repressão naquela Casa, ao lado do Freddie Perdigão Pereira e do Ênio Pimentel Silveira, que já estão mortos". Malhães chamava a casa de Centro de Conveniência e ela servia, segundo ele, para pressionar os presos a mudar de lado e passar a colaborar com a repressão e os militares como infiltrados, deixando transparecer que entre os métodos usados 6
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para conseguir esse objetivo poderiam estar os da tortura. Revelou que a libertação de Inês Etienne só ocorreu porque ela os enganou dizendo que já estava "virada" e iria colaborar com eles como infiltrada e depois fugiu. Ele manteve silêncio com respeito aos presos que não quisessem colaborar com eles e não se deixavam convencer a mudar de preferência ideológica. E confirmou que seus superiores sabiam exatamente de tudo o que ocorria ali. Mas fez questão de assumir a responsabilidade pela criação da Casa da Morte. "Eu organizei aquele lugar. Quem eram as sentinelas, a rotina e quando se dava festa para disfarçar os barulhos provocados por algum interrogatório. Tinha que dar vida àquela casa. Eu era um fazendeiro que ia a Petrópolis de vez em quando. Eu trabalhava com minha própria equipe, que podia incluir cabos, sargentos, policiais federais, delegados ou médicos. As equipes trabalhavam com um preso de cada vez na casa, por essa
razão o destino de muitos presos políticos eu não sei." Malhães admitiu que filmava e acompanhava o comportamento de muitos possíveis infiltrados e estudava detalhadamente sua ideologia como a da família, antes da abordagem. Além da oferta de dinheiro, embora nem todos aceitassem. Conta que muitos presos políticos não passaram por lá como dizem, citando como exemplo o ex-Deputado Federal Rubens Paiva. Mas admitiu ter visto Carlos Alberto Soares de Freitas (o Beto), comandante da VAR-Palmares, desaparecido em fevereiro de 1971. O professor, historiador e ex-preso político, Rubim Aquino, afirma: "O Paulo Malhães sempre atuou em pontos chaves da repressão, sempre à base da carnificina. Ele não fica nada a dever ao Brilhante Ustra. Era um violento anticomunista, que aparece relacionado à repressão no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná". Pelo menos três ex-presos políticos, Sérgio Ubiratan Manes, Paulo Roberto
Manes e Paulo Roberto Telles Franck, disseram ter sofrido espancamentos, sessões de choques elétricos e outras violências praticadas pelo militar. Os dois primeiros no Doi-Codi do Rio e o terceiro no Rio Grande do Sul. Para a ex-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, certamente Carlos Alberto Soares de Freitas (o Beto), capturado no dia 15 de fevereiro de 1971, ao descer de um ônibus em Copacabana, amigo da atual Presidente Dilma Rousseff, nos tempos em que ela militava na organização VAR-Palmares, foi assassinado na Casa da Morte, em 1971. No início da década de 1980, um dos torturadores, identificado como Ubirajara Ribeiro de Souza, ex-sargento do Exército, hoje advogado, teria sido reconhecido. A identificação se tornou pública por conta do depoimento de Inês Etienne, prestado em 1980 à OAB, no qual ela conta que o ex-sargento usava os mesmos codinomes do cárcere do CIE.
ALCYR CAVALCANTI
O Carneiro era o Doutor Lobo O diálogo entre Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte, e o médico que a assistia durante sua reclusão e torturas. O diálogo transcrito a seguir ocorreu em 1981, em Copacabana, Zona Sul do Rio, durante um encontro entre Inês Etienne e o médico Amílcar Lobo, que cuidava dos presos na Casa da Morte. Estavam presentes à conversa o então Deputado Federal Modesto da Silveira (PMDB-RJ) e a jornalista Lúcia Romeu, repórter da revista IstoÉ. INÊS - Dr. Lobo, eu acho que conheço o senhor. Meu nome é Inês Etienne Romeu e eu estive com um médico chamado Dr. Lobo na casa de Petrópolis. Outros presos políticos também o conheceram na PE da Barão de Mesquita. MODESTO - O senhor esteve naquela casa em Petrópolis, não é verdade? L OBO - Eu fui convocado. Eu não fiz o serviço militar e, após terminar o curso de Medicina, fui convocado pelo Exército. O que se está levantando é um assunto muito sério: que eu teria participado da tortura. Minha função lá foi exclusivamente de atendimento médico. INÊS - O senhor tratou da minha perna, olha a marca, que estava com uma parte da carne apodrecida. O senhor conseguiu cortar a carne. LOBO - Não tenho lembrança, não. Eu me recordo de ter tratado de uma pessoa nestas condições. INÊS - De uma moça machucada. Eu tive um desastre, um atropelamento, estava fisicamente arrasada. Eu tive uma tentativa de suicídio, então o Dr. Bruno, o Dr. Teixeira... L OBO - Lembro-me de uma tela para uma plástica que arranjei para recuperação do tecido de sua perna. INÊS - O senhor disse que eu deveria ser transportada para um hospital. Esse é o meu depoimento real, eu sou uma pessoa com muita responsabilidade e não vou inventar nada sobre ninguém. Eu tive vários atendimentos pelo senhor. LOBO - É muito importante dizer que eu nunca fui torturador. INÊS - Eu não disse isso, em nenhum momento. LOBO - Ajudei muita gente. MODESTO - Naquela casa? LOBO - Naquela casa, não. Lá só estive com ela. Ajudei muita gente, posso chamar várias pessoas. Eu nem sei onde fica essa casa. Eu era levado pra lá encapuzado. A confiança que tinham em mim era muito pouca. Lembro-me de que a gente subia uma ladeira e era uma casa no final de uma rua. Se eu tiver que ir lá, não sei. INÊS - Além do atendimento da perna, do ventre, da bacia, desses pontos aqui na minha mão e também um exame de pulmão, houve um dia em que o Dr. Pep... LOBO - Lá, a única coisa que me disseram foi que esses ferimentos foram porque você foi atropelada por um ônibus. Disseram-me que a senhora foi presa e se jogou debaixo de um ônibus.
Sob as vistas de sua irmã, jornalista Lúcia Romeu, Inês Etienne (de frente) abraça um companheiro após recuperar-se das terríveis lesões que sofreu na Casa da Morte.
INÊS- Um dia o Dr. Pepe e o Dr. Teixeira – eu os conheci com esses codinomes – o levaram lá e o senhor me aplicou algumas injeções, que eles me disseram ser pentotal. Eles iam fazer um interrogatório. LOBO - Não é verdade. INÊS - É verdade. O senhor pode não se lembrar, mas é verdade. O Dr. Lobo nunca conversou comigo. Ele só se dirigia ao Dr. Pepe, ao Dr. Teixeira, ou ao Dr. Bruno. LOBO - Eu não sei quem eram. MODESTO - O senhor poderia descrever o tipo físico de cada um deles, por exemplo? LOBO - Um deles era magro, alto, branco, cerca de quarenta anos. INÊS - Tinha um gordo, que no dia em que o Dr. Lobo me fez uma transfusão de sangue... LOBO - Eu não fiz essa transfusão, apenas cuidei de seu ferimento. INÊS - Foi aplicada no dia em que cortei os pulsos, eu perdi muito sangue. Então, de madrugada...Eu fui tratada pelo mesmo médico. O senhor era chamado de Dr. Carneiro. O seu nome de guerra lá era Dr. Carneiro. LOBO - Eu não sei disso. INÊS - Chamavam o senhor de Dr. Carneiro na minha frente. Se o senhor não se lembra, eu me lembro. LÚCIA - O senhor sabia que lá era uma casa onde se torturavam pessoas, onde sumiam presos? LOBO - Sim! Com relação à senhora, posso ter lhe aplicado uma injeção de glicose, algo assim. LÚCIA - Dr. Lobo, o senhor se recusou alguma vez a fazer esse tipo de atendimento? LOB O - Você está louca? OBO LÚCIA - O senhor tinha medo, então? LOB O - Tentei por três vezes me desligar do ExérOBO cito, numa das vezes me responderam que o requerimento tinha ido para a 6ª seção, porém o Exército só tem cinco seções.
MODESTO - O senhor não se lembra do nome das pessoas da casa, nem mesmo do tipo; foi muito vaga a descrição que o senhor fez. Aqueles que levaram você de carro até Petrópolis quem eram? LOBO - Um era baixo, forte, tinha uma fala nordestina, era um tipo meio estranho, acho que por causa da coloração da pele, avermelhada. Tinha cerca de 30 anos e ia dirigindo o carro. LÚCIA - E as conversas deles durante a viagem? LOBO - Eram pessoas rudimentares, de nível primário; no máximo, ginasial. MODESTO - E o outro? LOBO - Era amulatado e mais forte que o do banco da frente. Tinha também perto dos trinta anos. MODESTO - Como é que os senhores se tratavam na viagem? LOBO - Diziam apenas que estavam cumprindo ordens. Quando chegavam em Petrópolis me encapuzavam. Em frente da casa eles tiravam o capuz. MODESTO - Então, o senhor viu a casa pelo lado de fora também? LOBO - Sim. Lembro de uma varanda na frente, a sala tinha uma lareira. MODESTO - Por uma foto o senhor reconheceria? LOBO - Sim. Lembro que entrei no quarto menor do que aquele em que a senhora estava. Ficava à direita. Da outra vez que estive com a senhora eu entrei pelo corredor à esquerda, no quarto à esquerda. INÊS - Exato. À direita tinha uma copa pequena, um banheiro e logo a seguir uma despensa, onde havia uma cama de campanha. MODESTO - O senhor recebia ordens de quem? LOBO - Eu recebia ordens do Comando do I Exército. MODESTO - O senhor nos esclareceu que recebia ordens do Comandante do I Exército, do Comandante Nei Antunes ou do Comandante Homem de Carvalho? LOBO - Creio que do Homem de Carvalho.
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ui conduzida a uma casa (...) em Petrópolis (Casa da Morte). (...) O doutor Roberto, um dos brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. (...) Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o doutor Roberto me disse que eles não queriam informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, doutor Roberto, decidira que ela seria mais lenta e cruel possível, tal ódio que sentia pelos 'terroristas'. (...) Alguns dias depois, (...) apareceu o doutor Teixeira, oferecendome uma saída 'humana': o suicídio. (...) Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais viver". "Entretanto, o doutor Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôsme, então, que eu me atirasse embaixo de um ônibus. (...) No momento em que deveria atirar-me sob as rodas de um ônibus, agachei-me e segurei as pernas de um deles, chorando e gritando. (...) Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, 'telefones', palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada (...) O 'Márcio' invadia minha cela para 'examinar' meu ânus e verificar se o 'Camarão' havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo 'Márcio' obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo 'Camarão' e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, as mais grosseiras (...)."
OS MORTOS E DESAPARECIDOS Teriam morrido ou desaparecido, depois de passar pela Casa da Morte, estes presos políticos: 1. David Capistrano 2. Walter Ribeiro de Souza 3. José Roman 4. Celso Gilberto de Oliveira 5. Maurício Guilherme da Silveira 6. Gerson Theodoro de Oliveira 7. Ivan Motta Dias 8. Aluísio Palhano Pedreira Ferreira 9. Heleni Telles Ferreira 10. Walter Ribeiro Novais 11. José Raimundo da Costa 12. Mariano Joaquim da Silva 13. Carlos Alberto Soares 14. Antônio Joaquim Machado 15. Paulo de Tarso Celestino Silva 16. Ana Rosa Kucinski 17. Wilson Silva (marido de Ana Rosa) 18. Marilene Vilas-Boas 19. Victor Luiz Papandreu 20. Rubens Paiva 21. Tomás Antonio da Silva Meireles 22. Issami Niura Okani
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Apesar do sofrimento, Inês Etienne memorizou detalhes da Casa da Morte e um dos parceiros dos torturadores, Mário Lodders, então dono do imóvel.
As terríveis provações de Inês Etienne Este é o relato emocionante e dramático de Inês Etienne Romeu, ex-militante da Vanguarda Armada Revolucionária-VAR-Palmares (a mesma na qual militava a Presidente Dilma Rousseff), acerca das humilhações e covardias de toda espécie que passou na Casa da Morte, em Petrópolis. Atualmente ela vive em Belo Horizonte, MG, e recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2009, na categoria Direito à Memória e à Verdade. Inês Etienne, surpreendentemente, foi a única pessoa a sair viva da Casa da Morte, porque tinha tudo para não sair. Ela foi presa no dia 5 de maio de 1971, em São Paulo, pelo Delegado Sérgio Fleury e depois de passar pelo Hospital Central do Exército foi levada para Petrópolis. Inês permaneceu nessa casa até 11 de agosto. Nesse período tentou o suicídio duas vezes e acabou sendo solta depois de enganar seus algozes se fazendo passar por "infiltrada", ou seja, alegando ter "mudado de lado". Fugiu e terminou sendo levada para o Instituto Penal Talavera Bruce, em Bangu, no Rio. Cumpriu pena até 29 de agosto de 1979 e somente saiu por força da Lei de Anistia. Ajudada por sua irmã, Lúcia Romeu, jornalista da revista IstoÉ, denunciou a Casa da Morte, atraindo a atenção de várias entidades de defesa dos direitos humanos, que se interessaram pelo seu caso. Ainda no Governo Figueiredo, alguns jornais do Rio publicaram depoimentos de ex-presos políticos afirmando terem sido "atendidos" pelo médico Amílcar Lobo, quando detidos no DoiCodi-RJ, mas ficou nisso. Somente em 1986, já no período da "Nova República", o Caso Lobo voltou às páginas dos jornais. Psicanalistas e médicos de várias áreas levaram à Assembléia Legislativa presos torturados e "examinados" por Lobo, na década de 1970. A psicanalista Helena Besserman Vianna arriscou a vida ao denunciar o médico. Em 1986, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de JaneiroCremerj – não mais sob intervenção federal – abriu processo ético contra Lobo.
Em 1988 e 1989, respectivamente, este conselho profissional e o federal cassaram seu registro. Fato inédito e pioneiro em países que passaram por recentes ditaduras e que tiveram médicos assessorando torturas a opositores políticos. Em seu depoimento à OAB, Inês Etienne revelou: "Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato". Inês fez também um relatório de tudo o que viu e ouviu na Casa da Morte e que foi fundamental como banco de dados para se encontrar o local.
A DESCOBERTA DE HENRIQUE LAGO Nesse momento entra em cena o jornalista da TV Globo Antônio Henrique Lago, que pesquisou em catálogos antigos de Petrópolis e da Biblioteca Nacional o número do telefone que Inês escu-
MARCOS TRISTÃO/AGÊNCIA O GLOBO
ESPECIAL CASA DA MORTE, O MAIS BRUTAL CENTRO DE TERROR DA DITADURA
tava falarem na Casa e encontrou o número associado a Mário Lodders. Henrique Lago então resolveu ir lá e fingir que estava fazendo uma matéria sobre turismo para fotografar a casa e seu dono. Logo depois, uma caravana da ABI, OAB, Alerj e outras entidades, além da imprensa, foi até à Rua Arthur Barbosa, 668 e lá chegando encontrou o caseiro Gervásio Araújo, que não teve dúvidas em confirmar que dois homens conhecidos como "Pardal", identificado como Jais Fontes, soldado do 9º BPM, em Rocha Miranda, no Rio, e "Camarão", dois dos torturadores de Inês Etienne, freqüentavam a Casa. O encontro foi descrito por Lúcia Romeu na revista IstoÉ: "A cena foi dramática, em pé, no meio da rua, estavam Etienne Romeu e seus acompanhantes, dentro do Chevette cor de mel, placa BW-1566 com um adesivo da Polícia Federal preso no pára-brisa, trêmulo, visivelmente nervoso – ele chegou a bater o carro na garagem da própria residência –, Mário Lodders foi logo interpelado por Inês, que nem o deixou estacionar o carro direito: 'O senhor está me reconhecendo? Estive em sua casa durante três meses em 1971, fiquei mantida em cárcere privado, fui submetida a torturas'. Um homem de prestígio, Lodders, surpreso com o inusitado encontro, ainda tentou negar, mas desistiu quando Inês lhe disse: 'O senhor me viu machucada, chegou a me dar uma barra de chocolate'. Lodders explicou então que emprestou a casa, entre 1971 e 1978, ao ex-comandante da Panair e ex-interventor na Prefeitura de Petrópolis, Fernando Aires da Mota, ligado, segundo Lodders, a um grupo paramilitar: 'Ele era um prócer da ditadura, um homem de muito prestígio, não tinha como eu negarlhe um pedido', defendeu-se".
Aquino: “Eram especialistas em retalhar suas vítimas” Ex-preso político, historiador e escritor, o Professor Rubim Aquino, assim se refere à Casa da Morte: "O nome já fala por si. Era um braço secreto do Doi-Codi/RJ e do CIE, para funcionar como local de tortura e morte de presos políticos, também chamado de Codão. Os militares lá serviam sob o comando do Coronel de infantaria Francisco Homem de Carvalho. Sabe-se que dois membros da equipe que ali 'trabalhavam' eram especialistas em retalhar o corpo de presos assassinados: o soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Jarbas Fontes, o Pardal; e o Cabo Félix Freire Dias, o Dr. Magno ou Dr. Magro. Para se ter uma idéia daquele circo de horrores vou citar um trecho do livro da Taís Morais Sem Vestígio: Revelações de um
Agente Secreto da Ditadura Militar Brasileira: '(...). O que o sargento Joaquim Arthur Lopes de Souza viu, ao entrar, tirou seu fôlego. Não, não podia ser verdade (...). Era sangue por todo o lado, impregnando o ambiente com aquela textura pegajosa do processo de coagulação (...). Chocado, sem articular uma só palavra, o estômago engulhado, percebeu que as partes amontoadas num canto estavam a ponto de serem colocadas em sacos plásticos (...). Levantou a cabeça em direção a algo pendurado em ganchos. A princípio não distinguiu bem o que era. Um tronco, dividido ao meio. As costelas de Capistrano pendiam do teto e ele, reduzido a pedaços, como se fosse uma carcaça de animal abatido, pronta para o açougue'".
AGÊNCIA O GLOBO
“NEM A ALEMANHA DE HITLER TEVE UMA CASA DA MORTE” O advogado Modesto da Silveira, Conselheiro da ABI, suspeita que no terreno da rua da Casa da Morte pode haver um cemitério clandestino. O jornalista, ex-Deputado federal, expreso político e advogado Modesto da Silveira, um dos primeiros a apoiar Inês Etienne em sua luta para divulgar e punir os torturadores da Casa da Morte, esteve lá por duas vezes. A primeira, integrando uma caravana da OAB, ABI, Alerj, imprensa e outras entidades, em 1981, quando da descoberta da Casa, e no ano passado, acompanhando o fotógrafo André Louzeiro, filho do cineasta José Louzeiro, para fazerem um registro fotográfico. Ele não abre mão de que a Casa seja um local de referência contra os crimes de tortura durante a ditadura militar, a exemplo do que ocorreu com o prédio do Doi-Codi de São Paulo, transformado no Museu da Resistência. "Não tem contestação, é inegável, insofismável, que a Casa é aquela mesma. E não aceito nenhuma hipótese em contrário. Saibam que a Inês guardou de memória, além do número do telefone e outros detalhes, até o nome do cachorro que havia lá. E quando estivemos na Casa da primeira vez o cão apareceu no quintal, ela então o chamou pelo nome e ele veio logo, atendeu de pronto. Eu também o chamei e ele obedeceu, caminhando em minha direção abanando o rabo. Ou seja, é a comprovação de que aquela era e é mesmo a Casa da Morte. Infelizmente não lembro mais o nome do cachorro, que também já morreu. Esse encontro, que está documentado na reportagem da jornalista Lúcia Romeu publicada na revista IstoÉ, serviu para elucidar pontos cruciais de tudo o que ali aconteceu e que Modesto da Silveira apela agora para que todas as entidades e órgãos públicos tenham interesse e não esmoreçam na elucidação e divulgação dos crimes hediondos ali ocorridos. "É lógico que tudo tem que ser tirado a limpo. É uma nódoa, uma mancha na História brasileira que não pode continuar a nos sujar, a nos humilhar de vergonha. Qualquer pessoa razoavelmente lúcida e inteligente percebe que ainda existe algo muito estanho ocorrendo. Aquilo é o quê, uma casa secreta? Por que lá não se pode entrar? Fala-se com os proprietários por trás de grades. Quando estivemos lá, com toda a pressão exercida pela imprensa e pelas entidades que compunham a caravana, também não entramos. Não passamos de alguns metros do portão, porque não nos deixaram
passar? Volto a perguntar, por quê? O que se esconde? Quem não deve não teme, não é a máxima popular com sua sabedoria? Por que os cômodos foram modificados? É a pergunta. Com que intenção, apagar o passado? Apagar as marcas das atrocidades?
Modesto da Silveira quer que o Ministério Público peça uma investigação: “Aquele terreno é todo suspeito.”
UM CEMITÉRIO CLANDESTINO? Modesto da Silveira diz que na verdade, a família de Mário Lodders é dona praticamente da rua, que é sem saída, como se fora uma propriedade privada, e onde possui quatro casas, e não uma ou duas, como se pensa. E faz uma revelação estarrecedora. "Para quem não conhece o local, eu vou descrevê-lo: a primeira casa, a da esquina, do lado direito de quem entra na Rua Arthur Barbosa é a Casa da Morte; depois existe uma outra casa, lá em cima, no alto, que é a casa onde o Mário Lodders morava; aí vem uma outra casa, tipo uma casa de caseiro, mas muito grande para ser, com garagem e outras coisas e uma quarta casa, numa colinazinha e todo aquele imenso terreno por trás, ou abarcando tudo, coberto de florestas, que vai até o divisor de águas lá embaixo, como se fora uma fazendinha, um sítio. Tudo ali era dele e agora pertence à família. Pois bem, esse terreno, em toda a sua extensão, pode ser um cemitério clandestino. Corpos podem estar enterrados ali... Nesse momento, Modesto da Silveira recebe um telefonema de uma repórter do jornal O Globo pedindo uma entrevista sobre a Casa da Morte e seguem-se dezenas de telefonemas de veículos do Brasil inteiro. Ele havia acabado de ser nomeado pela Presidenta Dilma Rousseff para integrar a Comissão de Ética da Presidência da República, que não vinha se reunindo por falta de quórum, em virtude da saída de vários membros. Voltamos logo à entrevista. "Quando estive lá o ano passado, até mesmo na casa deles, a outra casa da rua, eu não entrei, a dona Helena, irmã do Mário Lodders, barrou a minha entrada. Você tem que admitir, então, que alguma coisa está errada. Nessa área todas as possibilidades estão abertas e você tem que investigar cada uma. Existem muitos caminhos para se chegar a verdade? Muito bem, então vamos procurar todos. Aquilo lá é um labirinto, para nos confundir.
Meu temor é que naquele terreno haja muitas sepulturas. Quem duvida de que na escuridão da noite, num local ermo como era aquele e num terreno onde eles eram os únicos donos, não se possa ter, na calada e no anonimato, enterrado corpos? Se os bandidos de hoje fazem, por que os bandidos torturadores daquele tempo não podiam fazer? Existem detectores que podem denunciar isso, sem se precisar cavar buracos. O Ministério Público pode pedir uma investigação ali, pois aquele terreno é todo suspeito." Diz Modesto que não se passou tanto tempo assim e ainda existem muitas pessoas vivas com informações preciosas sobre o funcionamento da Casa. "Não se pode é perder muito tempo, porque, aí sim, elas vão morrer. Estamos tratando de uma barbaridade escabrosa, de
crimes que nem o exército nazista de Hitler praticou. Naquele antro do terror pessoas eram picotadas, esquartejadas e penduradas em ganchos de açougue para depois irem não se sabe para onde, segundo descreve Taís Morais no seu livro Sem Vestígio: Revelações de um Agente Secreto da Ditadura Militar. Nem Pinochet imaginou essa atrocidade. Isso só reflete o tempo em que vivíamos, de total impunidade, ousadia e organização criminosa. Precisamos conclamar entidades de prestígio nacional como a ABI, a OAB, a CNBB, o Grupo Tortura Nunca Mais, os vários centros de defesa dos direitos humanos espalhados pelo Brasil, usar as redes sociais, e fazer uma imensa mobilização popular. Tentar todas as formas possíveis de envolver a sociedade nisso, para se chegar à verdade e nos curar dessa ferida."
OAB abrirá procedimento contra advogado que foi torturador O Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção do Estado do Rio de Janeiro-OAB/RJ, Wadih Damous, diz que as notícias envolvendo o advogado Ubirajara Ribeiro de Souza, de 74 anos, ex-sargento do Exército e que, entre outros crimes, matou Carlos Alberto Soares de Freitas, do Grupo VAR-Palmares, são de extrema gravidade: "O fato de, à época, ele não pertencer aos quadros da OAB não nos impede de investigar a denúncia de que ele foi um dos torturadores da Casa da Morte. Já que se trata, se verdade for, de conduta incompatível com a advocacia. Tenho certeza de que, quando esse advogado pediu a inscrição, se a OAB soubesse desses fatos inconcebíveis que lhe são atribuídos, o pedido teria sido negado". Wadih Damous vai levar o caso ao conhecimento do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ para que o advogado apresente sua defesa: "Lhe será assegurado amplo direito, direito esse negado àqueles que combateram à ditadura militar em nosso País".
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ESPECIAL CASA DA MORTE, O MAIS BRUTAL CENTRO DE TERROR DA DITADURA
Margarida Pressburger: “Vamos dar à Casa da Morte o nome de Inês Etienne” podemos descansar enquanto não descobri-los, a exemplo do que ocorreu na Casa da Morte, em Petrópolis. E peço a participação de todos nessa luta.” “Aqui na OAB nós temos o projeto Marcos da Memória, que seria renomear logradouros públicos com nomes de heróis mortos nas garras da ditadura militar, como praças, ruas, parques, pontes. Acho mesmo que não tem sentido dar o nome de Costa e Silva à Ponte Rio-Niterói. E daqui desse maravilhoso Jornal da ABI eu lanço agora a campanha, vamos dar o nome de Casa Inês Etienne à Casa da Morte de Petrópolis, por que não? A Inês não praticou crime nenhum. Seu único crime foi discordar do regime, foi pensar. E por causa disso foi torturada ali, barbaramente. No entanto, por manobras do destino, acabou sendo a única sobrevivente, então, nada mais justo que o futuro centro de memória tenha o seu nome.” “Já estou falando na futura Casa Inês Etienne porque tenho certeza de que o atual morador irá sair, é uma questão de
interesse nacional, da nossa História. Eu já soube que ele ficou uma fera porque eu disse em uma entrevista que pra mim aquela casa não vale R$ 1,99 e não vale mesmo. Não consigo imaginar o que se esconde por trás do desejo de alguém em residir numa casa que foi o mais bárbaro local de tortura do regime militar. É incompreensível. Eu não conseguiria morar ali um dia. Sinceramente, pra mim é uma questão patológica, de saúde mental.” “Outro dia o advogado dele me ligou e disse que seu cliente está doente, que vive sobressaltado com a possibilidade de perder a casa, que não deseja vendê-la e tudo o mais. Eu sei também que todo mundo que vai lá não passa do portão, inclusive as equipes de reportagens, como vocês também não passaram. Sabe o que eu acho de tudo isso? Ele está fazendo é charminho, está supervalorizando o local, o imóvel, para que ele tenha um valor histórico muito acima do valor venal, não tenho dúvida disso. Ele está fazendo um jogo ardiloso pra se dar bem.”
ALCYR CAVALCANTI
A presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e integrante do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da Onu, Margarida Pressburger, tem sido uma das baluartes para que a Casa da Morte seja transformada por fim em um Centro de Memória. E para isso conclama a participação de todas as entidades representativas da vida nacional. “Nós temos lutado bastante na OAB para transformar aquela Casa da Morte em um Centro de Memória e Vida, que mostre em toda a sua profundidade e crueldade o que foi a tortura na ditadura. Especialmente naquela casa, que não tem similar no Brasil e em todo o regime militar da América do Sul. Nossa luta é para que esse tempo não caia no esquecimento e se transforme em tema somente de livro de escola. Sabemos agora que notícias de outros centros de tortura no Rio de Janeiro estão surgindo, como um aqui no Jardim Botânico, outro em São João de Meriti e mais um em Belford Roxo. Não
Margarida Pressburger: “Ele está fazendo charminho para valorizar o imóvel”
A OAB-RJ propõe o tombamento de locais de tortura
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JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
MÁRCIA FOLETTO/AGÊNCIA O GLOBO
Com o apoio de dezenas de entidades, entre as quais a ABI, o Grupo Tortura Nunca Mais, o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura-Crea, o Clube de Engenharia e o Sindicato dos Economistas, a Ordem dos Advogados do Brasil-RJ-Seção do Estado do Rio de Janeiro lançou campanha pelo tombamento dos centros de tortura e apresentou o projeto Marcas da Memória. A iniciativa, proposta inicialmente pela OAB-RJ, defende a transformação em centros culturais e de preservação da memória dos principais locais usados no território fluminense para a tortura de presos políticos na ditadura militar: o Doi-Codi, no quartel da Polícia do Exército, na Tijuca, o Dops, na Rua da Relação, e a Casa da Morte, em Petrópolis. A justificativa do projeto assinala que “nesses lugares milhares de opositores do regime militar foram torturados e, muitos deles, assassinados”. Foi ressaltado que “não deixar que as barbaridades lá cometidas caíssem no esquecimento é um imperativo para que elas jamais se repitam”. Estão abertas sugestões para os projetos. Quem as tiver deve encaminhá-las para o endereço eletrônico gt.comissaoda verdade@oabrj.org.br. Nesses projetos, a OAB lembrou que na Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile foram tomadas iniciativas semelhantes e os antigos locais de torturas hoje abrigam museus e centros de memória
Uma das quatro celas onde funcionou o Doi-Codi no 1º Batalhão da Polícia do Exército, localizado na Tijuca. O local pode se transformar num centro cultural e de preservação da memória.
sobre os anos de supressão das liberdades nesses países. Em relação ao projeto Marcas da Memória, as instituições que apóiam a proposta conclamam os candidatos a Prefeito do Rio a que se comprometam com a iniciativa, como sucedeu em Porto Alegre, fruto de um convênio entre a Prefeitura local e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos. O projeto Marcas da Memória consiste na instalação de placas e monumentos,
com um símbolo padronizado identificador da iniciativa, em ruas, calçadas ou prédios que tenham sido prisões ou centros de detenção de tortura e desaparecimentos ilegais, tornando público que ali ocorreram graves violações aos direitos humanos ou que esses locais foram palco de relevantes acontecimentos na luta pela democracia e pelos direitos humanos. O representante da ABI na solenidade, Conselheiro Mário Augusto Jakobskind, depois de louvar a iniciativa e ex-
pressar o apoio da Casa, observou que a mesma já poderia estar vigente. Salientando que muitos outros países adotaram medidas como as que estavam sendo propostas, lembrou que em Varsóvia, capital da Polônia, em quase todas as principais esquinas do Centro encontram-se placas de bronze mencionando pessoas que tombaram vítimas dos ocupantes nazistas na Segunda Guerra Mundial. Jakobskind informou ainda que a Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, que ele preside, acompanha com atenção questões relacionadas a fatos da época dos anos de chumbo que estão sendo revelados. A Diretoria da ABI, disse, defende com veemência a abertura dos arquivos da ditadura. Em uma das intervenções na solenidade, o estudante Rafael de Almeida, do Centro Federal de Escolas Técnicas do Rio de Janeiro-Cefet-RJ, lembrou que no ano passado os estudantes ocuparam a sala da direção do Centro exigindo que fosse retirado o nome de uma das salas em homenagem ao Almirante Augusto Radmacker, apoiador do golpe de 1964. O pleito foi atendido prontamente. Os estudantes do Cefet organizaram a Copa de Esportes Osvaldão, em homenagem a Osvaldo Orlando da Silva, morto pelos militares na guerrilha do Araguaia nos anos 1970. Almeida disse que “há mobilização em apoio à Verdade, Memória e Justiça, fundamental para que os jovens brasileiros conheçam a História do País”.
ACERTO DE CONTAS
A ABI quer saber quem a atacou a bomba em 1976 Em petição encaminhada à Comissão Nacional da Verdade, a Casa reclama a apuração do atentado terrorista que destruiu parte de um andar de sua sede, em 19 de agosto de 1979. ARQUIVO ABI
Por proposta aprovada na sessão de julho de seu Conselho Deliberativo, a ABI encaminhou à Comissão Nacional da Verdade requerimento em que reclama a apuração do atentado terrorista cometido em 19 de agosto de 1976 contra a sua sede, que sofreu pesados danos no sétimo andar do Edifício Herbert Moses, no qual funcionam os órgãos de direção da Casa. A postulação está apoiada em extensa e minuciosa pesquisa feita pelos Conselheiros Mário Augusto Jakobskind e Arcírio Gouvêa Neto, Presidente e Secretário da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, que descrevem os danos sofridos e mostram que o atentado foi tramado nos escalões da ditadura militar, como ficou claro na pregação feita dias antes no Congresso pelo Deputado José Bonifácio de Andrade (Arena-MG), Líder do Governo na Câmara dos Deputados. Durante audiência realizada na Ordem dos Advogados do Brasil-RJ pelos membros da Comissão Nacional da Verdade, Mário Augusto e Arcírio relataram ao Professor Paulo Sérgio Pinheiro, membro da comissão, parte dos levantamentos que fizeram. No ofício de encaminhamento do Relatório, a ABI pede não apenas a apuração do atentado e identificação dos seus autores, mas também que o Estado nacional lhe apresente uma declaração formal de desculpas pela violência com que foi agredida por esse atentado e por outras manifestações totalitárias da ditadura militar (1964-1985). O ofício encaminhado à Comissão tem o seguinte teor:
“Ilustres Membros da Comissão Nacional da Verdade, A Associação Brasileira de Imprensa vem requerer a essa douta Comissão a realização de investigações e de levantamentos de documentação nos órgãos civis e militares de segurança atuantes durante o período da ditadura militar para esclarecimento da autoria do atentado terrorista praticado contra a sua sede em 19 de agosto de 1976, o qual jamais foi objeto de informações devidas tanto à ABI como ao conjunto de instituições representativas da sociedade civil. A postulação de tal investigação foi aprovada pelo Conselho Deliberativo da ABI em sua reunião mensal de julho passado, a qual designou os Conselheiros Mário Augusto Jakobskind e Arcírio Gouvêa Neto, Presidente e Secretário de sua Comissão de Defesa de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos, para a realização de pesquisas e elaboração de Relatório que contribua para a eficaz apuração desse sinistro episódio por essa Comissão Nacional da Verdade. É este documento que estamos enviando agora a Vossas Senhorias. Além de apuração do atentado e identificação dos seus autores, a Associação Brasileira de Imprensa pleiteia que o Estado nacional, através dessa Comissão Nacional da Verdade, lhe apresente uma declaração formal de desculpas pela violência com que foi agredida por esse atentado e por outras manifestações totalitárias da ditadura militar 1964-1985. Pede deferimento, Rio de Janeiro, 22 de agosto de 2012 Maurício Azêdo, Presidente.”
Comissão da Verdade manda fazer novo atestado de óbito para Herzog Atestado forjado em 1978 declara que ele se suicidou, mas a verdade é que ele morreu sob torturas no Doi-Codi de São Paulo. A Comissão Nacional da VerdadeCNV encaminhou no dia 30 de agosto ao Juízo de Registros Públicos de São Paulo uma recomendação para que seja retificado o atestado de óbito do jornalista Vladimir Herzog, morto em 25 de outubro de 1975 nos porões da ditadura militar. Atendendo a um pedido de Clarice Herzog, viúva do jornalista, a comissão solicitou à Justiça que no atestado de óbito conste que a morte de Vladimir Herzog decorreu de “lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório em dependência do 2º Destacamento de Operações de Informações do Centro de
Operações de Defesa Interna-Doi-Codi”, e não por asfixia mecânica, como está no laudo necroscópico e no atual documento de óbito. A versão dos militares era de que Herzog teria cometido suicídio na prisão. “A retificação do atestado de óbito é muito importante porque ele foi um instrumento de sustentação dessa farsa de suicídio. É preciso derrubar essa sustentação”, afirmou Ivo Herzog, filho de Vlado. Além da recomendação, a Comissão também enviou à Justiça de São Paulo cópia da sentença da ação declaratória, movida pela família Herzog e de acórdãos
que mantiveram a sentença de outubro de 1978 do Juiz Márcio José de Souza, atualmente desembargador do Tribunal da Justiça do Estado. O veredito afirma que não houve prova de que Herzog se matou na sede do Doi-Codi de São Paulo, órgão subordinado ao Exército, que funcionou durante o regime militar. “Quando a sentença rejeita a tese do suicídio exclui logicamente a tese do enforcamento. Dessa maneira, a afirmação de enforcamento – que se transportou para o atestado e para a certidão de óbito – encobre a real causa da morte, a qual, segundo os depoimentos colhidos em juízo, indicam que foi decorrente de
maus tratos durante o interrogatório no Doi-Codi”, diz o parecer da Comissão. A alteração do atestado de óbito de Herzog foi reclamada também pelo Jornal da ABI no editorial A surpresa do capitulacionismo, publicado na página 2 de sua Edição 380, com data de capa de julho de 2012. Dizia o editorial: “O atestado de óbito de Herzog é um documento fraudulento, forjado pelas autoridades militares com a cumplicidade de um de seus capachos, o médico legista Harry Shibata, que descreveu a causa mortis, como confessou recentemente, sem examinar o corpo que lhe foi apresentado.” (Cláudia Souza)
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NOMEAÇÃO
CARTAS DOS LEITORES SAGRADA FAMÍLIA
da Editora Objetiva
NATALIA VIANA • Prezado Francisco Ucha, Primeiro, quero enviar meus parabéns mais calorosos a você a toda a equipe do Jornal da ABI pelo bom trabalho que fazem. Sou sócio há mais de 50 anos e não me lembro de jamais ter visto o jornal da casa tão bem feito: tão vibrante, atual, com tão alta qualidade de informação. Segundo, cumprimento pela excelente entrevista publicada com Natalia Viana, que me faz lembrar o melhor jornalismo dos melhores tempos da profissão. Tenho um blog – revistamirante.wordpress.com – e gostaria de reproduzir a entrevista nele. Abraço, Renato Guimarães
CAROS AMIGOS • Francisco Vi a edição online. Ficou bem legal. Cumprimento você pela edição. E agradeço o tratamento dado para mim e Caros Amigos. Hamilton de Souza E SCREVA PARA O JORNAL DA ABI E-mail: abi.presidencia@gmail.com CURTA A PÁGINA DO JORNAL DA ABI NO FACEBOOK: facebook.com/jornaldaabi
Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com
Modesto da Silveira na Comissão de Ética da Presidência da República O órgão acompanha a conduta dos servidores do alto escalão do Governo. A Presidente Dilma Rousseff nomeou no dia 3 de setembro três novos integrantes da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, que analisa a conduta de servidores do alto escalão do Governo. São eles o advogado e jornalista Antônio Modesto da Silveira, membro do Conselho Deliberativo da ABI e ex-deputado federal, o Procurador do Ministério Público do Distrito Federal Marcello Alencar Araújo e o advogado trabalhista Mauro de Azevedo Menezes. Os novos indicados têm mandato de três anos e podem ser reconduzidos uma vez por igual período. A Comissão de Ética Pública da Presidência da República analisa mensalmente a conduta de funcionários públicos do alto escalão. Ela pode abrir investigações se provocada por alguma instituição, como partidos políticos, e também pela imprensa. Aos funcionários públicos na ativa ela pode aplicar advertências e sugerir à Presidente da República a demissão do investigado. Se o processo for concluído após o afastamento do investigado, a única sanção possível é a censura ética. A Comissão é formada por sete membros, porém quatro deles estavam com mandato encerrado e um faleceu. Atualmente cumprem efetivamente o mandato apenas Sepúlveda Pertence, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, que preside a Comissão, e Américo Lacombe. Os mandatos de Fábio Coutinho e Marília Muricy encerraram-se, respectivamente, em julho e agosto e não foram renovados. Roberto Caldas e José Emanne Pinheiro já foram reconduzidos uma vez e por isso não puderam permanecer após o mês de julho, quando terminaram
ALCYR CAVALCANTI
• Felipe* querido: Como não tenho o endereço do Gonçalo Júnior, queria te pedir o favor de fazer chegar a ele minha admiração (e até inveja) pelos dois textos que ele escreveu sobre o Sagrada Família. Não só pela generosidade, mas sobretudo pela competência e pela sensibilidade da leitura. Que análise bem feita! Que escrita agradável! Que olhar agudo! Trata-se de um craque da entrevista e da crítica literária. A ele, os parabéns e o meu abraço agradecido, Zuenir *Felipe Maciel é assessor de imprensa
Modesto da Silveira estava na ABI sendo entrevistado por Arcírio Gouvêa Neto quando recebeu um telefonema dando-lhe a notícia de sua nomeação.
seus mandatos. Outro integrante, Humberto Gomes de Barros, morreu em junho. Com as novas nomeações, duas vagas estão em aberto. Ao longo dos últimos dois meses, o funcionamento da Comissão foi afetado pela falta do quórum mínimo de quatro membros para deliberar, o que resultou no cancelamento de várias reuniões, incluída a que estava prevista para o dia 3. A nova sessão foi programada para o dia 24 de setembro. “Fui sondado para o cargo com muita habilidade e diplomacia por uma pessoa das minhas relações, a quem considero
DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn
Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo
CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.
Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.
CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.
Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.
MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)
Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.
REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.
REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira
Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.
Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP
Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro
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muito confiável, durante uma conversa sobre ética e outras questões importantes. O convite para ocupar função desta relevância tem um significado legal e ético altamente honroso. Tenho pensado, lido, observado e debatido o tema ética nas palestras que ministro em universidades, na ABI, na OAB e em outras entidades, nas quais sempre ressalto os direitos e deveres humanos de cada cidadão. Não apenas o Brasil, mas o mundo inteiro precisa definir a ética como prioridade nas ações coletivas, familiares e, sobretudo, governamentais”, disse Modesto da Silveira ao Jornal da ABI. (Cláudia Souza)
Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.
Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.
JORNAL DA ABI • SETEMBRO DENÃO 2012ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008. O 382 JORNAL DA ABI
REFLEXÕES
ELIANE SOARES
Idéias, paixões e ressentimentos A velha ordem morreu, mas a paz não chegou. POR RODOLFO KONDER
Q
uando os homens ensarilharam as armas, em 1945, para contar os seus 50 milhões de mortos, pareciam estarrecidos – mas esperançosos. Diante dos cogumelos atômicos e de 160 mil japoneses instantaneamente calcinados em Hiroshima e Nagasaki, assombram-se com o poder de sua própria magia. Ao se olharem nos estilhaçados espelhos da História, não viam apenas os heróis, os bravos e os fortes – viam também os lagartos, os vermes e os covardes. Na esfumaçada Europa, teatro de operações de uma enorme tragédia que durou seis anos, erguiam-se as soturnas chaminés de Auschwitz e Birkenau, Treblinka e Maidanek. Nas praias dos cinco continentes, na verdade, as marés ainda levavam e traziam os inúmeros e sempre misteriosos vestígios da morte. Mas a comunidade internacional, eufórica e segura como um Teseu de pé sobre o Minotauro vencido, acreditava que a partir daquele momento mágico, o lagarto acorrentado pelo próprio lagarto, seria possível banir para sempre da topografia humana os implacáveis deuses da guerra. De fato, o fim da Segunda Guerra significou o início de um novo capítulo. A nova ordem, porém, logo estaria definitivamente marcada pelo maniqueísmo e pela desconfiança. E a partir dos anos 1950 dois blocos antagônicos, liderados por Estados Unidos e União Soviética, dominados ambos pela mesma lógica cega, substituíram as antigas potências colôniais e empurraram o mundo para o pântano dos conflitos ideológicos, com
todos os seus abomináveis subprodutos, a espionagem inclusive. Desde “a guerra para acabar com as guerras”, Marte não sossegou em sua fúria desmedida. Os sérvios ocuparam a Bósnia e revelaram a camuflada selvageria dos lagartos, cortando as orelhas dos vencidos e bombardeando velhos e crianças. Russos e ucranianos atacaram os romenos, na Moldávia. Georgianos combateram os separatistas mulçumanos, que controlavam a Abkházia e a Ossétia do Sul. Azerbaijanos e armênios se enfrentaram no enclave de Nagorno-Karabakh. Os curdos trocaram tiros com os turcos. Prosseguiram os conflitos entre facções rivais na Somália. Nepaleses se revoltaram contra as forças governamentais de Butão. Tibetanos se rebelaram contra o domínio chinês. O Paquistão combateu a Índia. Houve guerra na Coréia, no Vietnã, nas Malvinas. O Sendero Luminoso infernizou a vida dos peruanos. O ETA, dos espanhóis. O IRA, dos ingleses. Os conflitos armados dominaram a segunda metade do século e se estenderam até Papua e Nova Guiné. Com o fim da Guerra Fria, morreu a velha ordem e o século 20 acabou antes da hora prevista no calendário dos homens. Nada disso, no entanto, significou a chegada paz. Muitos conflitos localizados que se alimentavam da antiga lógica realmente esmoreceram. Alguns acordos se tornaram possíveis. Mas outras guerras persistem, numa esteira onde já podemos contar milhões de cadáveres. Talvez sejam as convulsões que antecedem o parto de uma nova ordem. Ou as seqüelas de um tempo que se esgotou. De qualquer maneira, a velha ordem
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Na esfumaçada Europa, teatro de operações de uma enorme tragédia que durou seis anos, erguiam-se as soturnas chaminés de Auschwitz e Birkenau, Treblinka e Maidanek.
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só estará plenamente superada quando tivermos algo sólido e definido em seu lugar. Como disse Baudelaire, “só se destrói realmente aquilo que se substitui”. O surgimento desta nova ordem – sempre cabe lembrar – não se dará além da terra ou além do infinito, onde procuramos em vão o céu e o inferno. Também não deveremos buscar a resposta nos livros sagrados ou profanos. A nova ordem terá que surgir da coragem, da disposição das pessoas para rever idéias, conceitos, paixões e ressentimentos. Ela vai resultar de novas posturas, de atitudes renovadas. A nova ordem mundial terá que nascer dentro de cada um de nós, de um silencioso embate entre o lagarto e o homem, o passado e o futuro. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
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DOCUMENTOS
Um original de Pederneiras A ABI adquire numa feira de antiguidades do Rio dois documentos com mais de 90 anos: uma carta escrita do próprio punho por Raul Pederneiras, Presidente da Casa em 1916, ao associado General Taumaturgo de Azevedo, Governador do Amazonas, que, também em carta manuscrita, se queixava de que a ABI não o defendia de críticas dos adversários. Por iniciativa do associado e Conselheiro Fichel Davit Chargel, a ABI adquiriu numa feira de antiguidades do Centro do Rio dois documentos preciosos datados de 1916: uma carta manuscrita do associado Taumaturgo de Azevedo, então Governador do Amazonas, que se queixava da suposta omissão da Casa diante das críticas que lhe faziam adversários políticos, e da resposta que lhe enviou Raul Pederneiras, Presidente da ABI, que lhe remeteu longa carta também manuscrita, contestando as afirmações de Taumaturgo. Além de sustentar que a ABI não poderia imiscuir-se na “política de campanário que prolifera pelos Estados do Brasil” e não o fez nem mesmo em defesa de Rui Barbosa, fundador da Casa, “tantas vezes alvo da oposição jornalística”, Pederneiras, elegante e altivo, lançou um repto a Taumaturgo: renunciaria ao cargo se este encontrasse nos Estatutos da ABI algo que autorizasse e justificasse as expressões da carta recebida. Neste ponto, por sinal, Pederneiras cometeu pequeno erro de concordância, causado por certo pela pressa na elaboração da resposta: Pederneiras era festejado como jornalista e admirado como professor de Direito – um dos maiores intelectuais da época. Os dois documentos são reproduzidos pelo Jornal da ABI com a atualização da ortografia, a começar pelo nome de Taumaturgo, que então se escrevia com th.
A mensagem de Taumaturgo “Exmo. Sr. Raul Pederneiras Sem haver solicitado minha entrada como sócio para a Associação de Imprensa, de que é hoje Sua Excelência o Presidente, agradeci a honra e sempre cumpri o dever de pagar as minhas mensalidades. Pensava que essa instituição, que em outros países é de caráter relevante, prestando apoio moral e auxílio efetivo aos seus membros, defendendo-os de ataques injustos da imprensa, tivesse por norma defender seus sócios das agressões intempestivas e insolentes de jornais pasquineiros como ainda os temos, infelizmente. Vejo, porém, que a Associação só faz arrecadar mensalidades e nenhuma importância liga a seus sócios, deixando que esses pasquins, com linguagem atrevida, se atirem à pobre vítima que lhes cabe no desagrado, por qualquer circunstância, ou quando se vendem para dizer mal dela. O meu passado e presente são limpos. Sou um cidadão e militar que venho prestando desde muitos anos reais serviços ao nosso País, à sociedade e à própria imprensa, evitando como governador dos Estados do Piauí e Amazonas que jornais oposicionistas intransigentes, e também insolentes, fossem empastelados, e nesta capital, em 1910, como comandante da Brigada Policial, salvando, do que hoje me ferem, a dois da ira partidária. É sabido que não sou um ambicioso, nem jamais furtei; menti, detratei alguém, faltei com a lealdade aos meus 14
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amigos, persegui adversários e deixei de satisfazer aos meus compromissos. Porque, pois, agora, uns jornais alugados aos piratas do Amazonas, sem conhecimento da causa, em debate vêm me insultando diariamente, só porque um partido organizador e forte deu-me a honra de ser candidato seu ao governo do Amazonas, e de ter sido eleito e reconhecido por um congresso já declarado pelo S. Tribunal único legal no Estado, visto ter sua origem em uma Constituição que o mesmo S. Tribunal também declarou única subsistente, dando ao Senado e Câmara desse Congresso e ao Vice-Governador reconhecimento por essa Constituição três habeas-corpus para exercerem suas funções, como de fato as vêm exercendo, não pelo acatamento do governador do Estado, às ordens do Supremo, mas pela firmeza com que se têm mantido estes defensores da Constituição? Daí o meu direito postergado e o pedido de habeas-corpus para tomar posse do cargo que me foi conferido pelo voto livre do eleitorado, visto a coação eminente premeditada pelo Governador contra a minha posse, em favor de um desconhecido, da sua parcialidade, que se diz eleito e reconhecido pela fraude e por uma Assembléia radicalmente nula. Se o meu direito não fosse líquido e irrecusável, certamente o Conselheiro Rui Barbosa e Clóvis Beviláqua, não o patrocinariam.
Poder-se-á dizer que o primeiro por ser chefe de partido e político se lhe impunha a obrigação da minha defesa. Mas de Clóvis Beviláqua, que nunca foi nem é político, que nenhum interesse tinha nem teve de intervir no pleito senão como constitucionalista, consciente do meu direito, por considerar o assunto jurídico, embora a sabedoria do Tribunal entendesse o contrário, por que magoá-lo também? Isso é motivo para jornais assalariados insultarem os que defendem esse direito e o que dele é portador? E que providências tomou a Associação para impedir esses ataques cruéis ao seu associado e a concidadãos eminentes? Calou-se? Consentiu. Neste caso de que serve a Associação? Para receber as mensalidades dos seus sócios e com elas comprar a lenha para a fogueira que os tem de queimar ou pagar incenso aos que muitas vezes não o merecem? Nestas condições não contando eu sequer com o auxílio moral da Associação, me considero desde 1º do corrente desligado dela, esperando que Vossa Excelência dê a necessária publicidade a esta minha resolução para que a mesma Associação conheça o motivo por que assim procedo. Queira Vossa Excelência aceitar as minhas saudações. (a) Taumaturgo de Azevedo”
A carta de Pederneiras “Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1916 Ilmo. Sr General Taumaturgo de Azevedo, Surpreendeu-me sentidamente a carta em que V. Excelência se declara desligado da Associação Brasileira de Imprensa. Conhecedores do seu conteúdo, os meus companheiros de Diretoria, representantes dos jornais de todos os matizes políticos, revelaram surpresa muito forte. A instituição a que pertenço, moldada pelas normas gerais que regem as associações congêneres, é, como sempre foi e sempre será, alheia às discussões pessoais e às questões políticas de seus membros. Por seus fins, claramente conhecidos, não pode, não deve, não consente que se intervenha na opinião dos jornais ou de seus redatores que, justa ou injustamente, têm o livre direito de pensar e a responsabilidade daí resultante. O motivo por V. Excelência ex-
ACONTECEU NA ABI
Em arquitetura, o Brasil influenciou os europeus Casal de arquitetos e urbanistas, ela espanhola, ele holandês, visita a sede da ABI e outras edificações do Rio e descobre que nesses campos o Brasil influenciou a Europa, e não o contrário, como eles pensavam. P OR C LÁUDIA S OUZA
tista Vilanova Artigas, um dos principais nomes da arquitetura de São Paulo, ícone da Escola paulista; e Gregori I. Warchavchik, nascido em Odessa, na Ucrânia, em 1896. Warchavchik chegou em 1923 ao Brasil, país ao qual ele se referia como “terreno preparado para minhas idéias e meus sonhos”. Naturalizado brasileiro em 1928, Warchavchik projetou e construiu a primeira residência em estilo modernista no Brasil. “Em todo o mundo quando se fala em arquitetura brasileira o nome mais co-
contraste das favelas. Em Roterdam, por exemplo, só há um rio e em Genebra, um único lago. Aqui a natureza é muito mais exuberante. É algo incrível, nunca visto”, observa Bernd.
O casal de arquitetos e urbanistas Bernd Upmeyer e Beatriz Ramo visitou em 29 de agosto o Edifício Herbert Moses, sede da ABI, com o objetivo de conhecer a obra dos irmãos Mílton e Um projeto contemporâneo No passeio ao Centro da cidade, os Marcelo Roberto, dois dos maiores criaspectos de funcionalidade e preservaadores da arquitetura brasileira moderção do prédio da ABI foram aplaudidos: na. Beatriz Ramo, 33 anos, nasceu na “O Edifício Hebert Moses foi construEspanha e trabalha na empresa Star Straído nos anos 1930, mas poderia ser um tegier + Architeture, com sede em Roterdam, na Holanda, onde mora há nove prédio absolutamente contemporâneo. anos com o alemão Bernd UpNa Espanha, por exemplo, ele seria um prédio de traços conmeyer, 36 anos, do escritório temporâneos, com sua sobriede design Board e editor da redade e elegância. Impressiona vista Monu, especializada em vê-lo funcionando em plena arquitetura. atividade e de forma íntegra 80 “Nós nos conhecemos na caanos após a fundação. Isto é um pital, Amsterdam, mas estamos morando na cidade de Roterfato heróico. O prédio é rico em dam. Sempre desejamos conheelementos práticos e na função cer o Brasil, sua cultura e arquide meio ambiente, com luz e tetura. Chegamos no dia 10 de sombra determinados na faagosto e já visitamos Brasília e chada. O ambiente é claro dena cidade de São Paulo, o arquipétro e fora do prédio. É intereslago de Ilha Bela, no litoral pausante notar na fachada onde lista, e a cidade histórica de estão localizados os andares de Parati, no litoral do Rio de Jasalas e escritórios e o espaço do neiro”, contou Beatriz. auditório”, afirma Bernd. O casal planejou a visita ao Ainda sobre a arquitetura do Centro da cidade, Beatriz Rio de Janeiro a partir da localização dos principais marcos e Bernd chamaram a atenção para o edifício-sede da Petroda arquitetura, além dos pontos turísticos. bras e o Edifício Seguradoras Building, na rua Senador Dan“A arquitetura brasileira tas, 74. “O prédio da Petrotem grande importância no contexto mundial. Observabras, da década de 1960, com seus espaços e linhas, seria mos no Rio de Janeiro a absoOs arquitetos e urbanistas Beatriz Ramo e Bernd Upmeyer ficaram considerado contemporâneo luta integração e o diálogo impressionados na ABI: O prédio é rico em elementos práticos. na Holanda. Projetado pelos entre a arquitetura e a natureirmãos Roberto, o Edifício za, apesar das formas concretas e retas. Destacamos também a arquinhecido é o de Oscar Niemeyer, mas Seguradoras Building, de 1949, se destaca pela bela curva sinuosa.” tetura moderna. Tivemos a grata surprequem se dedica ao estudo da arquitetusa de descobrir, ao analisar os edifícios, ra do País se vislumbra com dezenas de Bernd e Beatriz assinalaram ainda os que a arquitetura brasileira influenciou artistas de altíssimo nível e trabalhos projetos paisagísticos e o aproveitamento dos espaços externos no Rio de Janeia Europa, e não o contrário, como penricos em forma e luz. O prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo-Fauro: “Saudamos Burle Marx e o paisagissávamos antes de chegar aqui. A arquimo da cidade, que promove a intensa tetura holandesa, por exemplo, tem a inUsp e o Museu de Arte de São Paulo são circulação nos espaços de lazer. O amfluência do Brasil”, avaliou Bernd. impressionantes. Em Brasília destacabiente interno e externo tem uma linha Na lista de seus arquitetos favoritos, mos o conjunto formado pela Univertênue que integra o carioca à sua cidade. o casal citou diversos profissionais brasidade de Brasília, em especial os prédisileiros aplaudidos pelo talento e vanos da Faculdade de Ciências e da ReitoEm São Paulo as áreas externas são raras guardismo, entre os quais Achillina Bo, ria e o restaurante. São edifícios muito e pouco utilizadas. O Rio de Janeiro é também uma cidade mais fácil para o mais conhecida como Lina Bo Bardi, interessantes. Uma surpresa para nós”, turista se localizar do que São Paulo. arquiteta modernista ítalo-brasileira, disse Beatriz. Sem falar na hospitalidade do povo. Nas Em relação ao Rio de Janeiro, o casal autora do projeto da sede do Museu de visitas aos prédios fizemos vários amiressaltou a beleza natural e a disposição Arte de São Paulo-Masp; Paulo Archias gos, pois fomos recebidos por pessoas geográfica da cidade: “Como arquitetos Mendes da Rocha, arquiteto e urbanisamáveis e prestativas. Nas ruas, sempre e urbanistas podemos afirmar que a pota, um dos nomes de destaque na arquique abrimos o mapa da cidade, aparece sição geográfica do Rio de Janeiro é única tetura brasileira contemporânea, agraalguém oferecendo ajuda. Na Holanda no mundo. A vista do Pão de Açúcar é a ciado em 2006 com o Prêmio Pritzker, as pessoas são frias e individualistas. mais bela jamais vista, com a presença o mais importante da arquitetura munNinguém nos receberia com esta simpado mar, das praias, montanhas, lagoas e dial, autor do projeto do Museu Brasileitia e gentileza”, disse Beatriz. da arquitetura em harmonia, além do ro da Escultura, em São Paulo; João BaCLÁUDIA SOUZA
planado para justificar a renúncia de sócio é filho da paixão e da parcialidade. Temos a honra de possuir em nosso grêmio, como fundador, Rui Barbosa, tantas vezes alvo da oposição jornalística, mormente num dos últimos períodos agitados de candidaturas; a Diretoria de então possuía elementos de ambos os campos partidários e, com toda a hombridade, não se inibiu na questão, por ser completamente outro o seu campo de ação. Não me compete a análise do pacto por V. Excelência apontado, porque não conheço política em muitas averiguações e muito menos a política de campanário que prolifera pelos Estados do Brasil. A análise, o julgado, a interpretação de tais casos cabem aos jornais; os que acharem injustiça ou ofensa têm o remédio da Lei. Cidadão e militar, como V. Excelência se declara, há de convir que será despropositada e iníqua a exorbitância de minhas funções, com a ingerência no foro íntimo nas questões políticas e opiniões da imprensa, seja esta da mais cristalina pureza ou seja “pirata ou assalariada”, como V. Excelência qualifica aquela que, com ou sem razão, se opõe às pretensões de V. Excelência na querela que não me é dado comentar. Pergunta V. Excelência: “Que fez a Associação para impedir esses cruéis ataques aos seus associados? Calou-se. Consentiu” É manifesto equívoco de V. Excelência: “Quem cala não consente, não confessa, nem nega”. A Associação calou-se e em silêncio permanecerá em todas as contendas desse gênero. Um simples exemplo tornará impróprios os argumentos de V. Excelência e desenhará a justa atitude que deve sempre manter a Associação de Imprensa: – figure V. Excelência a hipótese de ser o antagonista político igualmente sócio deste Instituto e igualmente alvo da oposição de alguns jornais; como conciliar as pretensões de um candidato a sócio grego e um candidato a sócio troiano, nesse terreno estranho dos debates políticos que só interessam aos partidos? Aos últimos tópicos da carta, inverídicos e injustos, damos todos os devidos descontos por sentirmos a paixão do momento que as ditou. Mantendo a consideração em que, pessoalmente, tenho V. Excelência, caso se julgue melindrado pela nossa atitude e quiçá arrependido de ter pertencido ao nosso grêmio, esta Diretoria está pronta a restituir, de seu bolso, todas as mensalidades que V. Excelência lastima com insistência ter pago sem proveito pessoal. Lamento sinceramente o mal-entendido que conduziu V. Excelência a esse incidente e declaro, categórico, que se algo encontrar V. Excelência em nossos Estatutos que autorizem e justifiquem as expressões da carta recebida, imediatamente renunciarei o cargo que, nessa hipótese infelicito, por não cumprir o meu dever. Respeitosas saudações. De V. Excelência atento e obrigado (a) Raul Pederneiras.”
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DEPOIMENTO
Fala Theodomiro, o único condenado à morte na República Ele foi o único preso político condenado à morte por fuzilamento pela ditadura militar. Passou quase dez anos preso na Bahia e seis anos exilado na França. Hoje é juiz titular da 9ª Vara da Justiça do Trabalho do Recife. P OR G ERALDO P EREIRA DOS S ANTOS
Aterrissamos debaixo de muita chuva, no Aeroporto Gilberto Freyre, na capital pernambucana. Quando decolamos do Aeroporto André Franco Montoro, na cidade de Guarulhos, Estado de São Paulo, um dia frio, chovia bastante, o céu estava cinzento, de um cinza escuro e ameaçador. Durante o vôo, e depois já no hotel em Recife, lembrei-me, um tanto nostálgico, desses dois brasileiros ilustres que nominaram esses aeroportos. Gilberto Freyre, consagrado sociólogo, autor da obra que o imortalizou, Casa Grande e Senzala. Em 1945, era a grande referência da esquerda brasileira. O País retornava à vida democrática após oito anos de ditadura. Luís Carlos Prestes é libertado depois de cumprir nove anos de prisão. Libertados são também todos os presos políticos, graças ao fim da Segunda Guerra Mundial, com a derrota dos exércitos nazistas de Hitler e fascistas de Mussolini, obrigando que Getúlio Vargas, em 19 de abril de 1945, concedesse anistia a todos os presos e exilados políticos. Deste modo retornam à Pátria o líder comunista Octávio Brandão, o jornalista Júlio Mesquita Filho e os liberais Armando de Sales Oliveira, Otávio Mangabeira, Odilon Braga, dentre outros. 16
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O Brasil vivia a plenitude do entusiasmo político. Os cárceres são abertos, o povo exulta, os comícios voltam às praças públicas. Luís Carlos Prestes convida Gilberto Freyre para compor a chapa de candidatos comunistas à Câmara Federal. Ele não aceita. Sobral Pinto e Alceu Amoroso Lima eram as duas mais importantes lideranças do catolicismo brasileiro e da democracia cristã em nosso País, já naquela época. Como estava sendo realizado um encontro dos democratas cristãos no Uruguai, o Brasil se faria representar por ambos. Sobral Pinto telefona para Alceu e dizlhe: “Tem em São Paulo um garoto muito bom, de muito futuro, ele vai no meu lugar ”. Esse garoto era André Franco Montoro, com quem estivemos algumas vezes, relembrando para ele tal episódio, o que o deixava orgulhoso e satisfeito. Numa oportunidade dessas Montoro me presenteou com as fotos da homenagem que prestara ao respeitável Sobral Pinto, quando Governador de São Paulo. Fui ao Recife com o objetivo de entrevistar um brasileiro idealista, o único condenado à morte, no período republicano. Há anos eu tentava entrevistar o personagem que agora tinha diante dos meus olhos. Por isso quero agradecer ao poeta, historiador e colega jornalista
Marcelo Mário de Melo, que fez a ponte necessária. Valeu Marcelo! Abrindo um parênteses, esclareço aos leitores que há três anos colho material para o livro que estou escrevendo, Vítimas do Arbítrio, Torturas e Torturados - Depoimentos para a História. Não tenho pressa. Uma boa dezena de depoimentos já foram por mim colhidos. De quando em quando dou uma parada para recuperar as forças necessárias, a fim de prosseguir com o trabalho. No mundo capitalista não se faz nada sem o dinheiro. Theodomiro Romeiro dos Santos tem hoje 61 anos de idade. É juiz titular da 9ª Vara da Justiça do Trabalho, no Recife, exPresidente da Amatra – Associação dos Magistrados Trabalhistas, por dois mandatos. Simpático, simples, atencioso, sofrido, naturalmente, o sofrimento próprio de quem, adolescente, conscientizado, colocou sobre os seus ombros a responsabilidade de lutar em defesa daquilo que achava justo para sua Pátria e o seu povo. Para isso muito contribuiu o seu amor ao próximo. O início dessa conscientização humana e política ocorreu quando estudava no Colégio Marista, em Natal. O trabalho beneficente, feito com os padres, de socorro às camadas mais pobres e mais necessitadas da cidade, vendo os seus dramas e a fome tão presentes nas
casas pobres, a falta do mínimo indispensável para sobreviver, foram pouco a pouco dando ao jovem estudante Theodomiro a convicção de que era preciso lutar e seguir na caminhada, caminhada que consolidou também a sua disposição para acabar com o quadro vergonhoso que tanto o angustiava e que permanece até hoje, infelizmente... Homem típico do Nordeste, sua voz está firme, a calvície um tanto acentuada, os cabelos brancos, que bem lembram do “Caboclinho Querido”, Sílvio Caldas. Sua audição é muito boa. Com relação à saúde está sempre vigilante com os problemas que vão surgindo. Para quem sofreu tantas provações, seu estado geral, graças a Deus, é bom. Theodomiro regulariza sua vida pessoal quando conhece Virgínia Lúcia de Sá Bahia, ambos foram colegas na Universidade Federal de Pernambuco e se formaram em Direito. Ambos prestaram concurso para juiz do Trabalho e passaram. Ambos são hoje titulares, ele da 9ª e ela da 11ª Vara do Trabalho do Recife. De armas na mão, ele travou uma luta desigual, na verdadeira acepção da palavra, para, junto com os seus companheiros do PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, reescrever a História do Brasil, que, a passos largos, caminhava para o arbítrio, arbítrio que prendia, espancava, torturava e assassinava sem ter que prestar contas a ninguém. Theodomiro foi às últimas conseqüências nessa luta, na qual, para não morrer, matou! Em 18 de março de 1971, Theodomiro foi condenado à morte por fuzilamento, pelo Conselho de Justiça da Aeronáutica sediado em Salvador. Acusação: ter matado o sargento da Aeronáutica Walder Xavier de Lima, na noite de 27 de outubro de 1970, na capital baiana. Ele estava com 18 anos de idade. É bom que os leitores saibam que a lei permitia a pena de morte nos casos de guerra externa, psicológica adversa, ou revolucionária, ou subversiva, nos termos impostos pela Emenda Constitucional de 1969, Decreto-Lei nº 898 de 1969, antiga Lei de Segurança Nacional. Seu companheiro Getúlio de Oliveira Cabral conseguiu fugir, e foi condenado à prisão perpétua. Em 29 de dezembro de 1972 ele foi assassinado pelos órgãos de segurança, no bairro do Grajaú, no Rio de Janeiro. Theodomiro Romeiro dos Santos, reitere-se, foi o único brasileiro condenado à pena de morte no período republicano – o que gerou imediatamente um grande movimento de solidariedade em todo o País e também em diversas nações, com passeatas diante das embaixadas brasileiras. Entre nós a ABI, a OAB e principalmente a Igreja Católica, alçaram suas vozes poderosas na solene repulsa ao arbítrio dominante. Diante disso, a ditadura sentiu a repercussão e agiu. A pena de morte foi comutada em prisão perpétua e posteriormente a 46 anos e 6 meses de prisão. Com a readequação das penas, no Governo Figueiredo, ela foi fixada em 16 anos. Para o meu entrevistado não há pergunta capciosa. Constato ser ele um profundo estudioso dos problemas sociais do País, com os quais está comprometido. Sinto nas suas respostas, fixando meus olhos nos seus, que
ele vive os momentos dramáticos do passado em cada resposta, emocionado e, também, convicto de que era necessário lutar naquele passado agora distante. Vamos à entrevista daquele que viveu esse tormentoso momento da nossa História. Geraldo – Theodomiro, você é baiano, de que cidade?
Theodomiro – Essa é a impressão que uma grande quantidade de pessoas tem, porque a minha militância, principalmente política, foi toda desenvolvida na Bahia. Ali fui preso e condenado à morte. Isso teve uma repercussão muito grande na mídia, então as pessoas normalmente pensam que eu sou baiano. Eu quero dizer que boa parte do meu coração é baiano, eu gosto demais da Bahia, do povo baiano, onde tenho amigos fantásticos, feitos em situação muito difícil. Amigo que você faz em situação muito dura é amigo que você não perde nunca mais na vida. São amizades preciosas. Mas, em verdade, eu sou de Natal. A família do meu pai, Geraldo, é da sua terra, Vitória de Santo Antão, interior de Pernambuco, aqui pertinho, 50 km da capital. Geraldo – Falemos um pouco sobre os seus pais.
Theodomiro – Meu pai era capitão do Exército. Quando eu nasci, ele ainda estava na ativa, logo depois foi para a reserva. Minha mãe era funcionária civil da Aeronáutica, professora, trabalhava dando aulas na Base Aérea de Natal. A família da minha mãe era do interior do Rio Grande do Norte, Ceará Mirim, terra da cana-de-açúcar. Geraldo – Quando converso com um potiguar, duas pessoas logo me vêm à mente: Luís da Câmara Cascudo e Djalma Maranhão. Você os conheceu?
Theodomiro – Conheci. Fui muitas vezes à casa de Cascudo, que ficava na Avenida Rio Branco, de quem ia à Ribeira, à direita de quem desce, uma casa que tinha uns batentes, que você subia e dava no escritório dele, com esculturas de deuses africanos. Eu fui muitas vezes lá, nas reuniões do Grêmio Estudantil do Colégio Marista, que era do Governo do Estado, o Colégio Santo Antônio de Natal. Eu devia ter 12 ou 13 anos na época, ou menos do que isso. A eleição de Djalma Maranhão foi uma eleição muito politizada, muito polarizada, o que atraiu muito a atenção da população da cidade, inclusive das crianças. Isso foi em 1961 ou 1962. O jingle da campanha tomou conta de Natal: “Quem não sabe nesse mundo é como quem não vê, agora chegou a vez para quem quiser aprender, guarde bem aquela frase do Prefeito Maranhão: de pé no chão também se aprende a ler ”. Isso era muito bonito, muito cantado, o povo da rua cantava muito. Ele teve uma votação muito expressiva. Foi a época da queda das oligarquias tradicionais do Rio Grande do Norte, de Dinarte Mariz, dos Maias, dos Rosados. Foi eleito governador do Estado Aluízio Alves e Prefeito de Natal, Djalma Maranhão. Depois entrou o Monsenhor Walfrido Gurgel. Geraldo – Conheci pessoalmente o gover-
nador Monsenhor Walfrido Gurgel, quando ele era deputado, filho de Caicó.
Theodomiro – Exatamente. Como eu disse, foi uma época marcante do ponto de vista político. Eu era uma criança, no entanto, trago essas memórias, a campanha do Lott e Jânio. Meu pai, apesar de ser extremamente conservador, de direita, por afinidade de farda apoiava Lott. Geraldo – Onde você estudou?
Theodomiro – Primeiro no Instituto Brasil, onde fiz o curso primário. A professora Carmem Pedrosa era uma educadora renomadíssima, tinha uma influência muito grande na educação, em Natal. Depois fui aluno do Colégio Santo Antônio Marista, que cursei em Natal até o segundo ano. O terceiro eu fiz no colégio marista em Salvador, o Colégio Nossa Senhora da Vitória, onde passei interno um ano inteiro. Eu já estava começando a ter ligação com o PCBR, que tinha se afastado do PCB, na época da Corrente revolucionária que deu origem ao MR8, ao PCBR e à ALN. Geraldo – Por que você deixou Natal? Quantos anos você tinha?
Theodomiro – Com a agitação estudantil, provocada também pelo assassinato no Rio de Janeiro de Edson Luis de Lima Souto, os protestos se fizeram presentes em praticamente todo o Brasil. Participei ativamente desses protestos; em 1969, quando a perseguição aos estudantes se intensificou, fugi para Salvador. Como eu era ligado ao pessoal, não somente do curso secundário, mas também ao pessoal que fazia política na Universidade, saí de Natal porque achava que podia ser preso. Vou para Salvador, passo um ano interno no Colégio Nossa Senhora da Vitória, o colégio marista de Salvador, que fica na Rua Araújo Pin, no bairro do Canela, juntinho à Escola do Teatro. Aí eu me vinculo ao PCBR nesse período que passei lá, através do Bruno Maranhão e do Renato Ribeiro da Costa, que foi, por mais de uma vez, Prefeito de Itambé. Ele era engenheiro da Petrobras. Salvador, naquela época, era, do ponto de vista da repressão política, uma cidade muito tranqüila, não tinha organizações armadcas militando dessa forma. Enfim, era mais um movimento estudantil, um movimento operário, um movimento camponês. Tinha uma área de influência do Partido Comunista, outra também muito grande do PCdoB. Pouco tempo depois, da Ação Popular. Eram esses três e havia, também, um grupo menor de trotisquistas da Polop que atuavam em Salvador, mas todos voltados para o trabalho de massas. Então, aquele conflito armado do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná, do Recife, em Salvador não havia. Eu tinha 16 para 17 anos. Terminei o curso científico com 17 anos, completei os 18 emblemáticos, nasci em 29 de dezembro. A partir de então, passei um ano na clandestinidade. Geraldo – O que o levou à clandestinidade?
Theodomiro – Eu fui para a clandestinidade porque a casa onde nós morávamos, em Salvador, foi utilizada por um militante da ALN que vinha de São Paulo para o Rio Grande do Norte. Ele esteve hospe-
dado lá em casa dois dias. Quando o Bruno – esse era o nome dele, vem de vez para Salvador, eu já havia saído do Internato e estava morando num apartamento. Isso na época da grande queda do Comitê no Rio de Janeiro, quando prenderam Mário Alves, Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender, aquele pessoal todo. Bruno saiu fugido do Rio de Janeiro, onde participara de reuniões no Comitê Central; acho que ele estava passando um tempo por lá. Foi justamente a época da arrumação do PCBR, eleição do Comitê Central, definição de programa, da linha política. Exigiam que as pessoas passassem mais tempo lá. Bruno veio para Salvador, com Suzana, sua mulher, hospedando-se em nossa casa, um lugar mais seguro para uma pessoa ficar escondida. Foi assim que eu fui recrutado para o PCBR, na convivência com o pessoal, nesse apartamento. Geraldo – É aí que você conhece o José Adeildo Ramos?
Theodomiro – Conheci Adeildo em Salvador. Ele tinha fugido da Penitenciária Lemos de Brito, junto com Antônio Prestes de Paula. O sargento Prestes de Paula foi grande amigo meu. Ele foi o comandante da rebelião do Aeroporto de Brasília, que permitiu a descida do avião que vinha com João Goulart, da China, para tomar posse na Presidência depois da renúncia de Jânio. Então, Prestes de Paula, Adeildo, Avelino Capitani e diversos outros militares da Marinha e da Aeronáutica, acabaram presos na Penitenciária Lemos de Brito, de onde conseguiram fugir, todos juntos, 11 ou 13, não sei quantos exatamente. Dos que fugiram da penitenciária, eu convivi muito com Adeildo, do qual me tornei bom amigo, e de Prestes de Paula, com quem convivi em Salvador e depois em Paris quando do México fui para lá. Ele ainda estava exilado quando voltei para o Brasil. Estive com ele de forma menos freqüente, menos próxima, porque ele ficou em São Paulo e Salvador e eu no Recife.
Geraldo – Estive em João Pessoa tomando o depoimento do José Adeildo Ramos, ex-marinheiro, hoje professor universitário, aposentado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ele tem grande admiração por você. Falou-me que esteve com você, antes de sua prisão. Faloume também da morte do Sargento Walder Xavier de Lima e da fuga de Getúlio Cabral. É possível relembrar um pouco esses episódios?
Theodomiro – Olha, Geraldo, foi o seguinte: tão logo começamos a militar em Salvador, houve algumas ações armadas, inclusive assalto ao Banco da Bahia, do qual eu participei. Então houve, paralelamente a isso, uma maior interferência da repressão política lá, com a criação do Doi-Codi, que ainda não havia na Bahia. Esse órgão repressor foi criado sob a responsabilidade de Luís Afonso Carvalho, que era coronel do Exército e Superintendente da Polícia Federal na Bahia e Sergipe. Era uma época de grande terror e de colaboração de um determinado tipo de pessoa mais conservadora da sociedade com a ditadura militar. Nós tínhamos uns amigos que moravam num bairro do su-
búrbio de Salvador e essas pessoas botavam balas de revólver para secar; as balas estavam umedecidas, eles botavam em um determinado lugar para secar, e isso foi visto por algum vizinho e levado ao conhecimento da Polícia Federal. A PF, junto com o Doi-Codi, começou a seguir as pessoas que estavam dentro desses apartamentos, entre elas o Prestes de Paula. E aí, seguindo essas pessoas, localizaram outros apartamentos. Do nosso lado, havia um militante do MR8, cujo pai era motorista da Polícia Federal e passava informações para o pessoal de esquerda. Esse rapaz da Polícia Federal avisou que o DoiCodi tinha localizado algumas casas, onde moravam pessoas suspeitas, clandestinas, de esquerda. Tudo identificado “uma casa em tal lugar, outra casa em tal lugar...”. Nós, então, reconhecemos as casas como os nossos ‘aparelhos’. Desmobilizamos tudo e foi aí que encontrei com Adeildo, pouco antes de ele sair, se não me engano para Alagoas ou Sergipe, junto com o restante do pessoal do Partido. Ficamos lá três: eu, Paulo Pontes e Getúlio Cabral. Getúlio Cabral tinha sido um líder metalúrgico muito importante na Fábrica Nacional de Motores, no Rio de Janeiro. Nós tínhamos marcado uma última reunião a fim de fechar os ‘pontos’ para, daí a seis meses, voltar a retomar os contatos. E o que aconteceu? Eles (a repressão) perceberam que o restante do pessoal tinha desaparecido. Iam às casas e não achavam mais ninguém; as casas estavam abandonadas. Deram então a ordem para que fosse preso qualquer um que fosse encontrado. E para o nosso azar nos encontraram: eu, o Paulo Pontes e o Getúlio Cabral. Getúlio Cabral conseguiu fugir. Nós fomos presos no Dique do Tororó, em Salvador. O local, hoje muito bonito, muito aprazível, na época era um lugar meio sombrio, descuidado, sem grandes atrativos. Geraldo – Houve resistência, vocês reagiram?
Theodomiro – Sim. Getúlio conseguiu sair em direção a uma pinguela que existia e que atravessava o dique de um lado para ao outro. Hoje em dia não há mais. Então nos pegaram e nos colocaram no banco de trás de um jipe e os militares na frente. E a minha pasta, com uma arma dentro, que eles tinham tomado, me devolveram por descuido.
Geraldo – Os militares sabiam que havia uma arma dentro da pasta?
Theodomiro – Não! Eu acho que eles estavam agitados e nervosos. Coloquei a pasta de lado, a minha mão direita estava algemada na mão esquerda do Paulo. Eles começaram a atirar no Getúlio e este a atirar neles. Quando o Getúlio entrou na ponte, eles pararam e saíram do jipe para atravessá-la a pé e pegar o Getúlio. Nesse instante, com a mão esquerda, eu abri a pasta, puxei a arma e descarreguei. O primeiro tiro que eu dei matou o sargento. O segundo eu perdi, o terceiro pegou no omoplata do outro militar e não provocou dano maior.
Geraldo – Nesse matar ou morrer, você atira e mata o Sargento Walder Xavier de Lima.
JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
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DEPOIMENTO FALA THEODOMIRO, O ÚNICO CONDENADO À MORTE NA REPÚBLICA
Chamei o pessoal do Partido, que ainda estava organizado Theodomiro – O grupo do PCBR, com naquela época, e disse: “Eu Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender, vou embora, preciso da ajuda logo após a morte de outro dirigente (Máde vocês”, e assim organizario Alves), resolveu reagir contra a tortuGeraldo – Penitenciária Lemos mos as coisas, o Partido orgade Brito, no Rio? Você já hara, depois de muitas execuções de quem nizou uma parte e a Igreja via sido julgado? não reagiu. Era preferível reagir e correr Católica, outra. Fiquei abrigaTheodomiro – Na Bahia a peo risco de morrer com um tiro, do que ser do em diversos locais da Igrenitenciária também chama-se morto dolorosamente sendo torturado. A ja, escondido, até chegar à Lemos de Brito. O meu julgapartir daí fomos presos. Houve um períNunciatura Apostólica em mento foi logo depois que odo de tortura muito violento, porque na Brasília. Estive em Vitória da cheguei à Penitenciária. No época se torturava qualquer pessoa, tanConquista, nos mosteiros de to fazia ser um militante de um partido primeiro julgamento eu fui monjas beneditinas, passei que tivesse escolhido a luta armada, como condenado à morte; no seum tempo escondido lá, de gundo a 17 anos; no terceiro um militante de um partido que simplesonde saí porque estava chacondenado a cinco. A minha mente escolhera a luta pacífica. Então, mando muito a atenção. Num condenação à pena de morte nós fomos torturados na Polícia Federal, convento de freiras, não é desencadeou uma grande modepois fomos levados para o Quartel de coisa normal. Fui para uma fabilização política no País, o Barbalho, que é onde funcionava a Polízenda dos padres poloneses, que não tinha havido desde o cia do Exército como centro oficial da no Santuário de Bom Jesus da tortura. Foram quase três meses de muiAI-5. Foi uma grande besteira Lapa, às margens do Rio São to sofrimento: pau-de-arara, choques eléque eles fizeram. Sabe, GeralFrancisco, até sair no carro do tricos, afogamento, coronhadas na cabedo, refletindo bem, nós nunPartido para Arraial do Cabo. ça, cassetetes por todo o corpo, por aí... ca acreditamos que eu realEstava na época das eleições, mente seria executado, nin- Nesta carta aberta, Theodomiro denuncia as “grandes pressões” para mantê- aquela agitação toda, o Genelo no cárcere, mesmo tendo direito ao benefício da liberdade condicional. ral Euler Bentes Monteiro era guém levou a sério essa conGeraldo – Nesses três meses, você se lembra do nome de alguns dos seus torturadenação. Acho que só a minha o candidato da oposição à Predores? mãe foi a única pessoa que levou a sério sidência da República. Fui depois para mente como forma de permitir a ressociesse negócio. Fora ela, mais ninguém. Ao Theodomiro – Fomos torturados na PoBrasília, onde recebi abrigo na Nunciatualização de delinqüentes tão perigosos, mesmo tempo, foi um desgaste político lícia Federal e no Forte do Barbalho, sob o ra Apostólica, que logo negociou com o mas também como um instrumento de muito grande para a ditadura; eu tinha comando do Coronel Luís Arthur de CarGoverno brasileiro a minha saída para o disseminação, na consciência da populaacabado de completar 19 anos, com todos valho. Participaram dessas sessões o Capiexterior. A Nunciatura foi escolhida proção, do repúdio às formas ditatoriais de goos atenuantes que você pode ter do pontão Hemetério Chaves Filho, Comandante positalmente, estava no fim de outubro, verno e da prática da tortura como um to de vista do Código Penal Militar, e aí da PE; os agentes Hamilton Nonato e José tinha sido votada a anistia e, além disso, meio de exercício de poder político. Recoros caras vão e me condenam à pena máFelipe Filho, da Polícia Federal; os Teneno Papa João Paulo II iria visitar o Brasil, no do perfeitamente que, na nossa conversa, xima. tes Trindade e Botelho da PE; o Cabo início de 1980. Uma grande visita e nina ênfase maior foi dada a esse assunto: a Dalmar Caribé, da 4ª Cia. de Guardas do guém queria, naturalmente, que o Papa importância política, didática e pedagógica Exército; o Sargento Mário da PE; e ouGeraldo – Em algum momento, você cheficasse hóspede da Nunciatura com um reda operação e penalização dos crimes cogou a ter medo de ser fuzilado? tros de que não recordo os nomes. Os méfugiado político. metidos durante a ditadura militar. todos utilizados: espancamentos, pau-deTheodomiro – Quando me condenaarara, choque elétrico, afogamento, ameram, tive a segurança de que não seria Geraldo – Quando você sentiu que a anisGeraldo – O Governador da Bahia era Antia estava prestes a chegar? aça permanente de morte e mutilação. executado. Quando queriam matar altônio Carlos Magalhães? Quando nos recuperamos guém matavam, não julTheodomiro – Dois fatos estão gravados Theodomiro – Era. Eu tinha um amigo das lesões (eu levei muitos gavam antes. na minha memória, de forma mais vívique era jornalista em Salvador, Fernando RA PREFERÍVEL cortes na cabeça), coroda, pois foram eles que me deram a certeza autor do livro Por que Theodomiro REAGIR E CORRER O Geraldo – Os protestos Escaris, nhadas de fuzil, levei muida proximidade da Anistia: o primeiro foi fugiu?. O Fernando Escaris, sabendo que RISCO DE MORRER foram muitos, como sabeta pancada também aqui a reforma da auto-intitulada Lei de Segueu havia requerido liberdade condicional, mos. (aponta-me o joelho), que rança; o segundo, a visita realizada pelo com parecer favorável de todo mundo, COM UM TIRO DO ficou muito, muito inchaTheodomiro – Sim. CoSenador Teotônio Vilela, das Alagoas e do bom comportamento, oferta de emprego QUE SER MORTO do. Também fiquei muito meçaram os protestos da partido do Governo, a todos os presídios e até parecer favorável do diretor da Seno pau-de-arara. Fiquei Igreja, ABI, OAB, todo do País. A reforma da Lei de Segurança gurança, do psiquiatra do presídio, do DOLOROSAMENTE uns três meses no Forte Nacional tinha um objetivo evidente: mundo se manifestando Conselho Penitenciário – onde eu tinha SENDO TORTURADO Barbalho a fim de melhocontra. No exterior ocoresvaziar as prisões sem criar resistências ganho por sete a zero –, em uma entrevisrar um pouquinho a aparência e ser transriam manifestações freqüentes, diante maiores com setores da extrema direita, ta com o Governador, perguntou-lhe: ferido para a Penitenciária Lemos de Briainda bem organizados e ocupando posdas embaixadas brasileiras, quase que di“Governador, o Theodomiro sai quanto, onde passei nove anos e alguns meses. ariamente. Então, o julgamento no STM tos de comando nas Forças Armadas. É do?” e ouviu como resposta: “Como é que que aqueles setores exigiam que a Anistia (Superior Tribunal Militar), que normalvocê sabe que ele vai sair? Pode sair e pode Geraldo – Como era o tratamento carcemente levava muito tempo, foi rapidíssinão contemplasse os que haviam praticanão sair” Interessante notar, Geraldo, que rário na Penitenciária Lemos de Brito? do “crimes de sangue”. A solução enconmo, dois ou três meses após a minha cono juiz auditor do STM, muito pressionaTheodomiro – Durante aqueles anos o denação ela já estava comutada para pritrada pelo Governo foi a reforma da citado pelo Sistema, negara o meu pedido de nosso tratamento carcerário habitual era são perpétua. Politicamente tinha sido um da lei, reduzindo drasticamente as penas, liberdade condicional, alegando que não de forma a permitir a libertação dos preaquele destinado aos presos pela prática desastre para a ditadura aquela condenapodia arcar sozinho com a responsabilide delitos comuns, quando estavam de ção. Eu fiquei preso até perto da anistia. sos não contemplados pela Anistia, seja dade de me devolver ao convívio social. castigo. Anos terríveis, a luta que se trapelo cumprimento integral da pena, seja Foi essa a justificativa que ele deu. Logo pela liberdade condicional. No meu caso vava era pela integridade física e mental. Geraldo – Como foi a entrevista com o depois dessa decisão iriam ser anistiados saudoso Senador Teotônio Vilela, na PeImpunha-se sobreviver. específico, estando condenado a 48 anos os dois presos que restavam na penitennitência Lemos de Brito? de prisão. Após a readequação, minhas ciária. O Haroldo Lima, meu irmão quepenas foram unificadas em 16 anos, dos Geraldo – Você se casou nessa penitenciTheodomiro – Manifestamos nossa irrerido, que é o ex-Presidente ANP (Agência ária? Como se chamava sua esposa? quais eu já havia cumprido nove anos. signação contra a reciprocidade da AnisNacional de Petróleo) e o outro, Paulinho Theodomiro – Minha primeira esposa tia. Antecipando a legislação hoje vigenVieira, antigo partidário do PCB, com Geraldo – Passou muito tempo refugiado chamava-se Maria da Conceição Gontite, explicamos ao Senador que não seria militância no Paraná. Tinha vindo para na Nunciatura? jo de Lacerda, nosso casamento foi nesética, jurídica e politicamente admissível a Bahia, perseguido pela repressão daquele Theodomiro – Foi rápido, eu entrei em sa Penitenciária e o ato foi celebrado pelo anistiar-se crimes contra a humanidade, Estado. Eles dois iam ser soltos e eu ia ficar outubro e saí no dia 15 ou 16 de dezemArcebispo Primaz do Brasil, Dom Avelar como a prática da tortura. Alertamos o sozinho na penitenciária. Escaris deixou bro. Tive que sair para o México, ao conBrandão Vilela, que depois é coroado Senador para a importância de os torturaa entrevista e foi ao meu encontro no trário da minha vontade, que era de ir para cardeal. Desse casamento nasceram três dores e, principalmente, seus mandantes presídio e disse-me: “Theo eu estive lá, a França, porque lá estavam os meus comfilhos: o primeiro em 1973; eu ainda escivis e militares serem julgados, não socom o Governador ”. Contou-me tudo. Reagir dessa maneira era, também, uma diretriz do Partido?
tava preso. O segundo nasceu dez dias antes, da minha fuga em 1979; e o terceiro na França, o Mário Alves.
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ROGERIO CARNEIRO/FOLHAPRESS
panheiros, Apolônio, estavam o Prestes de Paula, a Renée, mulher de Apolônio, seus dois filhos René e Raul, Bruno e Daustas Magalhães, e quase todo o pessoal do PCBR também. Do México vou para Paris, cheguei no dia 24 de dezembro, quando tinha saído a Anistia e todo mundo já tinha voltado para o Brasil. Encontrei o Prestes de Paula, que não tinha sido anistiado, por conta da morte de um sentinela, na fuga da penitenciária Lemos de Brito, e René de Carvalho, que, tendo nascido na França, ainda não tinha servido o Exército francês, e essa regularização no país levou mais de ano.
Geraldo – Para mim, que acompanho a vida política e sindical no Brasil, há mais de seis décadas, o salário-mínimo é uma coisa vergonhosa. Para ter o mesmo poder de compra, de quando foi lançado por Getúlio Vargas, em 1943, ele deveria ser, hoje, R$2.800,00. O que se pode fazer, no sentido de melhorá-lo consideravelmente e quando isso vai acontecer?
Theodomiro – Respondendo a sua pergunta: “Quando isso vai acontecer?” Quando tivermos um Governo que ao invés de privilegiar o capital, privilegie o trabalho e o trabalhador.
Geraldo – Quais foram os aliados mais constantes nesses terríveis anos de provação?
Theodomiro – Os presos políticos tinham três tipos de aliados: as famílias; setores da Igreja e os advogados. Em relação aos primeiros, partícipes do nosso calvário e dotados de uma imensa solidariedade, cujo alcance nunca foi possível vislumbrar, dispensa maiores comentários; aos segundos, representados pelos Padres Renzo Rossi e Cláudio Perani, santos na acepção católica do termo, o que para um materialista como eu é difícil de admitir, seremos eternamente devedores; aos terceiros, que na esmagadora maioria das vezes nos defenderam gratuitamente, enfrentando a hostilidade de um sistema esmagador, que não admitia contestação, por menor que fosse, uma homenagem especial!
Geraldo – Quanto tempo você passou no exílio?
Theodomiro – Seis anos. Cheguei ao Brasil em 1985. Eu não fui anistiado, Geraldo, eu só fui anistiado em um processo, nos outros dois, não. Então, eu tive que esperar o prazo de preclusão das outras penas para poder voltar. Isso aconteceu numa semana e na semana seguinte eu estava retornando. Depois foi aprovado o projeto que ampliou os efeitos da anistia ampla, geral e irrestrita para todo mundo. Aí me beneficiou, tanto é que recentemente eu recebi da Comissão da Anistia o reconhecimento do tempo de prisão e exílio. Passei seis anos na França. Lá nasceu Mário, meu terceiro filho, cujo nome é uma homenagem ao grande comunista Mário Alves. Geraldo – Como foi ganhar o pão de cada dia na França?
Theodomiro – Na França trabalhei como metalúrgico. Eu só tinha o nível médio, ficava muito difícil conseguir um emprego melhor. Quando voltei fiz dois concursos de nível médio, um para a Celpa e outro para a Justiça Federal, passei em ambos. Trabalhei uns quatro meses na Celpa, depois fui chamado para a Justiça Federal, onde trabalhei cinco anos. No ano de 1986 fiz vestibular, entrei na faculdade em 1987 e me formei quatro anos e meio depois. Transcorridos dez meses da minha formatura, foi aberto concurso para juiz do Trabalho e eu fiz o concurso, junto com Virgínia, minha mulher, que também fez as provas, fomos aprovados e em março de 1993, tomamos posse. Geraldo – Me fale um pouco sobre o projeto Trabalho e Cidadania.
mesma forma que eu, como você, a lei é para todo mundo, não é para um, o outro, não.
Geraldo – Falemos um pouco a respeito do trabalhador rural. Ele está recebendo o salário-mínimo?
Mesmo depois da anistia, Theodomiro não pôde retornar logo ao Brasil, porque só foi anistiado em um processo. No exílio nasceu seu filho Mário, assim chamado em homenagem a Mário Alves.
Theodomiro – A situação é boa, tanto que os usineiros estão com dificuldades de contratar cortador de cana, o pessoal vem todo para a Suape e para empresas que estão se instalando, ou prestes a ser instaladas aqui em Goiânia. Você tem uma criação de empregos muito grande. Assim, para o cara ficar no campo o usineiro tem que pagar um salário melhor e melhorar as condições de trabalho. Você, por exemplo, passa agora nas plantações de cana e vê banheiro químico, coisa que o usineiro dizia que não havia possibilidade, porque um dia o cara cortava aqui, outro dia lá. Hoje em dia você vê o banheiro químico nos engenhos, assim como vê o pessoal negociando salários. Com relação ao salário-mínimo, com certeza eles estão pagando, pois do contrário eles não trabalham.
Geraldo – Andando pelas ruas do Recife observo praticamente a ausência de pedintes.
“FORAM QUASE TRÊS MESES DE MUITOS SOFRIMENTOS, PAU-DE-ARARA, CHOQUES ELÉTRICOS, AFOGAMENTO, CORONHADAS NA CABEÇA, CASSETETES POR TODO O CORPO, AMEAÇA PERMANENTE DE MORTE E MUTILAÇÃO.” Theodomiro – É um trabalho voluntário de juízes que vão para as escolas públicas, conversar com os alunos, para que eles se aproximem do juiz. O juiz é uma figura pública, que normalmente está muito distante do cidadão. A percepção que o cidadão tem do juiz é de uma pessoa que está muito longe dele. Então nós vamos para conversar, para mostrar que nós somos uma pessoa como outra qualquer, como um trabalhador. Aí nós damos noções do Direito do Trabalho e de cidadania. Geraldo – Dada a sua formação ideológica e jurídica, destaco a luta que o movimento sindical está travando em vários Estados contra o McDonald’s, que, mesmo advertido pelo Parlamento de nosso País, continua explorando seus funcionários através de uma pouca vergonha que atende pelo nome de ‘jornada móvel de trabalho’. O pedido de uma CPI contra o
McDonald’s já está em andamento na Câmara Federal. Deixo-lhe uma entrevista que fiz com o Ministro Arnaldo Lopes Sussekind, o sábio do Direito do Trabalho, onde ele condena esta jornada criminosa. Me fale um pouco sobre isso.
Theodomiro – Eu estou absolutamente de acordo com a sua avaliação, Geraldo. Eu já tive a oportunidade de julgar dois processos sobre a questão. Em ambos os processos eu condenei o McDonald’s a pagar o salário-mínimo, apesar de eu achar que o salário mínimo é muito pouco e que eles têm de cumprir a lei. É minha obrigação fazê-los cumprir a lei. Se você institui a jornada móvel variável, um dia você trabalha uma hora, no outro dia você trabalha três, no outro oito, num dia você trabalha pela manhã, no outro à tarde e assim você impede que essa pessoa tenha outra ocupação produtiva. Ele fica à disposição do McDonald’s o tempo todo e no fim do mês esse trabalhador, que está a serviço dessa multinacional o tempo todo, recebe a metade de um salário-mínimo. Isso é uma violação que nenhum cidadão pode admitir, porque a Constituição garante a todo trabalhador pelo menos um salário-mínimo. É lamentável sob todos os pontos de vista, que essa prática seja tolerada. Está fora das minhas cogitações! Tem que acabar com a jornada variável e é para isso que servem as condenações. O McDonald’s está no País e tem que se submeter à legislação, da
Theodomiro – Diminuiu muito a quantidade, não chega a ser uma Natal, que quase não tem. Só aqueles tradicionais, eles não ficam nas ruas, mas vão de casa em casa. E também houve uma certa mudança em quem antigamente esmolava pela cidade, pois hoje nas cooperativas de reciclagem a pessoa se sente digna porque está trabalhando, não está mendigando. Ao mesmo tempo ela tem uma renda maior do que se estivesse mendigando. Hoje em dia você vê muito isso. Lá no meu prédio todo dia eu falo com o pessoal que está reciclando, alguns separam latinhas, outros, não. Eles abrem saco por saco, tiram o que querem, fecham os sacos de novo, para o carro do lixo levar. Todo dia eu vejo isso no meu prédio.
Geraldo – E você se aposenta quando?
Theodomiro – Depende da burocracia da Comissão de Anistia. Houve uma sessão aqui no Recife dessa Comissão. Eu já requeri a contagem do meu tempo de prisão e exílio para efeito de tempo de serviço para aposentadoria. A Comissão deferiu.
Geraldo – Você recebeu alguma indenização do Governo?
Theodomiro – Não peço dinheiro, primeiro, porque considero uma vitória pessoal contra a ditadura. Não tenho nenhuma seqüela, nenhuma marca, não tenho pesadelos, durmo bem à noite. Segundo, não preciso desse dinheiro. Tenho um bom salário.
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LEMBRANÇA
Dias Gomes Nascido em Salvador em 19 de outubro de 1922, Alfredo de Freitas Dias Gomes completaria 90 anos no próximo mês e, caso não tivesse sido vítima fatal de um acidente de trânsito em São Paulo, em 18 de maio de 1999, certamente estaria inventando novos bordões para seus personagens, gravados no imaginário dos brasileiros. Tô certo ou tô errado? – pergunto, tal como questionaria Sinhozinho Malta, interpretado por Lima Duarte em Roque Santeiro, na segunda versão da trama, exibida em 1985. Romancista, dramaturgo e membro da Academia Brasileira de Letras, foi no mais popular veículo de massa que Dias Gomes teve seus dias de maior reconhecimento. Na verdade, ele foi o principal artífice na construção de um novo status para a função de autor de telenovelas. Hoje figurando entre os profissionais mais bem pagos nas emissoras, esses escritores tiveram seu trabalho alçado ao posto de arte. Seus textos ganharam contornos sociológicos. Tornaram-se quase uma ciência humana. E isso se deve, em grande parte, aos ousados experimentos do escritor baiano, iniciados ainda nos anos 1970. Caro jornalista, “vamos botar de lado os entretantos e partir para os finalmentes!”, bradaria, a esta altura, Odorico Paraguaçu, prefeito da fictícia Sucupira de O Bem Amado (1973), eternizado na tv pelo talento de Paulo Gracindo. Ok, que assim seja. “A geração de dramaturgos que trabalhou com teledramaturgia nos anos 1970, da qual Dias Gomes fez parte, foi fundamental na consolidação de um padrão moderno. Ele se concentrava na vinculação da ficção televisiva à História nacional recente, na exploração de diferentes matrizes estético-culturais, na discussão de temáticas diversas da atualidade, no compromisso com questões sociais, con-
figurando até hoje o formato que diferencia a nossa telenovela da latino-americana, muito mais calcada no melodrama romântico do que no realismo social. A experiência dessa turma, da qual Dias Gomes e Lauro César Muniz são os que mais se destacaram, foi fundamental na consolidação da profissão”, afirma Igor Sacramento, professor universitário, doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ e autor de diversos livros sobre televisão. Sacramento prepara o lançamento do livro Nos Tempos de Dias Gomes: Uma Biografia Comunicacional, cuja base é sua tese Dias Gomes, do PCB à TV. “Agora, estou na fase de revisão, fazendo alguns ajustes no texto para ele ficar interessante tanto para os estudiosos de Dias Gomes, do teatro, da televisão ou do comunismo, como para o público mais amplo que se interessa por esses assuntos. Também estou começando a realizar uma pesquisa iconográfica, que não tive tempo para fazer na época de produção da tese. Estou recolhendo fotografias e cartazes de peças, trechos de cenas de filmes e telenovelas. Por isso, acho que o livro deverá sair no segundo semestre de 2013.” Parceiro de Dias Gomes na autoria da peça Dr. Getúlio, sua Vida, sua Glória (1968), o poeta Ferreira Gullar destaca o perfil contestador do dramaturgo. “No meu modo de ver, a questão social foi o fator preponderante na produção desse escritor baiano, abordada em seus diversos aspectos, como em O Pagador de Promessas, quando trata da intolerância religiosa, ou em O Berço do Herói, em que discute os falsos valores sociais. Dias nunca desistiu de criticar a ditadura militar e fez isso como pôde, nas peças e na televisão. O Berço do Herói – que na tv foi veiculada como Roque Santeiro – foi proibido pela Censura, tanto no teatro como na televisão. Mas ele sempre buscou
Um comunista revoluciona a tv As lembranças inesquecíveis de muitos personagens mantêm viva a obra do dramaturgo que completaria 90 anos em outubro. Suas inovações definiram o perfil de excelência das telenovelas brasileiras. P OR P AULO C HICO
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REPRODUÇÃO
MÁRCIA FOLETTO/AGÊNCIA O GLOBO
gerações, religiosidade, corrosão do ser humano pelo dinheiro. Ele introduziu o humor nas tramas, formou núcleos de personagens de várias faixas etárias para que todos se sentissem representados. A teledramaturgia brasileira, hoje exportada para várias partes do mundo, de alguma forma segue as pegadas de Dias Gomes, que, mesmo oriundo do teatro, criou uma linguagem própria para a tv. Vários recursos usados por ele continuam em cena: a elaboração de finais alternativos, abertos, a crítica social com humor, e a prioridade por personagens e regiões representativas da cultura brasileira”, pontua. Consagrado autor de telenovelas – tendo assinado obras como Direito de Amar (1987), Fera Radical (1988), Top Model (1989) e Araguaia (2010) – Walther Negrão concorda com o papel de protagonista desempenhado por Dias Gomes. “O seu mérito maior como autor de televisão foi fazer a TV Globo embarcar na revolução que começara pela TV Tupi: arrancar a telenovela do desgastado modelo hispano-americano para passar a falar da realidade brasileira. Com eficiência, ele inovou sem negar o gênero: manteve a estrutura do folhetim clássico, que aprendeu no rádio e também na tv, quando ainda assinava com o pseudônimo de Stela Calderón.”
Em plena ditadura, um autor subversivo Houve por parte de alguns intelectuais de esquerda, como Gláuber Rocha, afrontas pessoais a Dias Gomes, com acusações de que ele estaria se ‘vendendo’ a Roberto Marinho. No entanto, entre os comunistas, sobretudo com aqueles de quem era mais próximo, como Oduvaldo Viana Fi-
Juca de Oliveira, que atuou na telenovela Saramandaia (esquerda), disse que Dias Gomes era um expoente da resistência democrática. Gullar concorda: “Dias nunca desistiu de criticar a ditadura militar e fez isso como pôde, nas peças e na televisão.” Acima, Dionísio Azevedo e Leonardo Villar em O Pagador de Promessas, único filme brasilero ganhador da Palma de Ouro em Cannes. FRANCISCO UCHA
Um novo padrão para a telenovela brasileira Igor Sacramento não é o primeiro a dedicar-se a estudar a produção do autor pelo viés acadêmico. Maria Célia Barbosa Reis da Silva, pós-doutoranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, é outra apaixonada pela obra do dramaturgo. “Em 1994, no doutorado na Puc-Rio, matriculei-me na disciplina Teatro, ministrada pelo próprio Dias e realizei dois trabalhos sobre Santo Inquérito e Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória como encerramento do período. Foi uma época que li romances e peças. Adoro teatro e, por oito anos, tive o privilégio de lecionar gênero dramático, na cadeira de Literatura Brasileira, no curso de Letras da Universidade Veiga de Almeida. Passei em sala de aula o filme, premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, O Pagador de Promessas, e outros vídeos cedidos pelo próprio autor, de peças e trechos de novelas”, conta ela, também professora da Universidade da Força Aérea e da Escola Superior de Guerra, consultora e orienta-
dora pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio-Faperj e autora de diversos livros (como Antônio Fraga: Personagem de Si Mesmo). Maria Célia destaca o pioneirismo da obra televisiva de Dias Gomes. “Ele transporta os problemas da vida para tela. O público assiste à trama e nela se vê refletido. Os personagens não são seres especiais: têm virtudes e defeitos; erram e acertam; amam e odeiam. Ele também faz com que o outro, o que acompanha as telenovelas, reconheça ou conheça a realidade brasileira: preconceito, conflito de TV GLOBO/CEDOC
outras formas e meios de manifestar sua visão crítica”, disse Gullar ao Jornal da ABI. “Antes da televisão, Dias escreveu novelas para o rádio e, apesar das diferenças existentes entre os veículos, aquela já foi uma primeira experiência fora dos palcos. Na verdade, a diferença existe – entre o teatro e a teledramaturgia – mas é sempre dramaturgia. Dias, desde jovem, aderiu ao socialismo e se manteve fiel a ele durante toda a vida. Quanto teve a idéia de escrever a peça sobre Getúlio – depois intitulada Vargas – como um enredo de escola de samba, procurou-me porque entendia pouco desse assunto, e sabia que eu estava envolvido com ele. Por isso me chamou. Então, passamos a discutir certos aspectos do desenvolvimento da peça. Trata-se de uma dramaturgia muito original, concebida por ele e que realizamos a quatro mãos. Hoje, vejo a coisa criticamente, uma vez que o Presidente não era propriamente um santo. Mas é que, naquele momento, o que interessava era usar o seu drama para criticar o regime militar”, contextualiza o poeta. Foi exatamente no rádio, veículo citado por Gullar, que Dias conheceu Lima Duarte. Anos mais tarde, ele daria alma a alguns de seus tipos mais marcantes. “Eu o conheci quando fazíamos radioteatro, nem existia a televisão ainda. Falo dos idos de 1946, na Rádio Tupi de São Paulo. Ele escrevia programas e ficamos muito amigos. Zeca Diabo e muitos outros personagens dele vivem ainda hoje na memória emotiva do brasileiro. Fiz Sinhozinho Malta e não gosto de pensar no Dias com tristeza – ele nunca pensou em nada com tristeza. Ele sempre foi um autor profundo, engraçado. Viverá para sempre. É eterno”, emocionou-se o ator num depoimento apresentado pelo programa Vídeo Show em 2009, exatamente em razão da passagem de 10 anos da morte do escritor.
lho (o Vianinha), Ferreira Gullar, Mário Lago e Gianfrancesco Guarnieri, havia o entendimento de que era necessário ocupar a televisão, isto é, usá-la como forma de instrumento político de comunicação popular. A televisão já era àquela época um meio muito mais popular do que o teatro ou as outras artes. Nela eles tentaram desfazer o paradoxo de produzir uma arte engajada que tinha, de fato, como público a classe média escolarizada. A televisão foi vista como novo meio para expandir os parâmetros estéticos e políticos da dramaturgia nacional. Então, para esses militantes, Dias Gomes estava prestando um serviço à causa comunista. Essa, contudo, não era uma visão unânime. Mas, em que ambiente Dias Gomes teria sido mais destacadamente subversivo: na televisão ou no teatro, onde estreou em 1938, com a Comédia dos Moralistas? “Nos dois. A arte é uma subversão. Ela é uma imitação da vida, mas quantas vezes ela supera a própria matriz e cria outra realidade paralela à própria vida! A paixão de Dias era o teatro. Ele carregou para a tv sua bagagem de teatro. Textos e personagens do teatro migraram para diversas telenovelas suas. Era o momento de apresentar seu ideário para uma grande platéia. Ele levou o inusitado para a televisão e o povo gostou e aplaudiu com a audiência. Quem não se lembra do professor Astromar Junqueira, o lobisomem de Roque Santeiro, novela escrita em parceria com Aguinaldo Silva e baseada na peça O Berço do Herói? Posso citar ainda o coronel Zico Rosado, que colocava formigas pelo nariz, e a Dona Redonda, que
explodiu de tanto comer, entre tantos outros personagens”, diz Maria Célia, que segue em sua análise. “Nada é em vão na obra desse dramaturgo engajado. Toda fala, toda cena está contextualizada, merece uma análise. Cada leitor, cada espectador faz a sua leitura. E todas estão corretas. O prefeito corrupto Odorico Paraguaçu, com seu palavrório superlativo, caminha ainda hoje sob outros disfarces entre nós. O vôo de Gibão em Saramandaia (1976) simboliza o desejo de liberdade em época cerceada pelo regime militar. A ocupação de um prédio em construção pelos desalojados, refugiados da chuva, verificada em A Invasão (1962), é uma versão do descaso de políticos e do desvio de verba pública, como na tragédia do Morro do Bumba, em Niterói, em abril de 2010”. (Em tempo: Saramandaia teve seu remake recentemente confirmado pela TV Globo, sob a adaptação de Ricardo Linhares, para exibição na faixa das 23 horas.) Gibão foi interpretado por um dos mais respeitados atores do País, Juca de Oliveira, que falou com o Jornal da ABI. “Dias, já um mito como autor teatral, foi ferido de morte pela ditadura militar e proibido pela censura. Vai pra televisão e transfere integralmente o seu talento e brilho para os especiais e telenovelas. Para desespero do Governo militar, escondia, sob personagens bem humorados e densamente humanos, a fúria de sua crítica social, que tanto torturou os ditadores de plantão, até a anistia geral e irrestrita. A ele o Brasil deve uma considerável fatia do restabelecimento da democracia.”
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TV GLOBO/CEDOC
LEMBRANÇA DIAS GOMES, UM COMUNISTA REVOLUCIONA A TV TV GLOBO/CEDOC
O ator fala ainda sobre como o elenco de Saramandaia se lançava no mergulho no universo de realismo fantástico, em pleno regime de exceção. “Estávamos constantemente na expectativa de uma tragédia. As peças eram proibidas, os censores nos humilhavam, as novelas eram ameaçadas de saírem do ar de uma hora pra outra. Dias, como um expoente da resistência democrática, sob sábia recomendação de Mário Lago, andava sempre com um sabonete, fio dental e escova de dentes para uma prisão menos desconfortável... De verdade, todos os autores brasileiros descendem de uma forma ou de outra de Dias Gomes. Ele introduziu novas estéticas – o realismo fantástico é apenas um exemplo – e nos balizou o futuro. Desgraçadamente, nos deixou de forma prematura, no auge da criatividade e talento”, lamentou Juca.
Do começo tímido à liberdade criativa A primeira telenovela assinada por Dias Gomes com o seu próprio nome para a TV Globo foi Verão Vermelho, em 1970. Um ano antes, porém, ele estreava na emissora em A Ponte dos Suspiros, assinando como Stela Calderón – como bem lembrou Walther Negrão em seu depoimento ao Jornal da ABI. A história, ambientada em Veneza de 1500, girava em torno das intrigas que impediam a concretização do amor entre os personagens de Carlos Alberto e Yoná Magalhães. Inicialmente, seria escrita por Glória Magadan, cubana responsável pela consolidação do núcleo de teledramaturgia da TV Globo entre 1965 e 1969. Sob a sua supervisão, as produções da emissora eram marcadas pelo sentimentalismo e por forte referência a valores morais – o bem contra o mal, o rico contra o pobre, o certo contra o errado. Passavam-se em lugares exóticos e em tempos imemoráveis, com personagens batizados com nomes estrangeiros. Tudo muito estranho à realidade brasileira. “Dias Gomes foi então convidado pelo Boni para assumir a trama, que estava em regime de produção. Glória Magadan acabou sendo dispensada. Já naquele momento a emissora queria investir em telenovelas modernas, mais realistas e baseadas nos códigos da própria realidade brasileira contemporânea. Ela passaria a ser, então, um espaço de comentário e discussão sobre a nação. Dias tinha relatos diferentes sobre o uso do pseudônimo feminino na assinatura desta que seria sua primeira autoria na 22
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Autor de teatro consagrado, censurado pela ditadura militar, Dias Gomes transferiu seu talento para a tv, popularizando como nunca seus carismáticos personagens: Paulo Gracindo eternizou o bicheiro Tucão, de Bandeira 2 (direita) e Odorico, de O Bem Amado (esquerda), onde contracenou com Lima Duarte, como o impagável Zeca Diabo. Anos mais tarde, Lima também viveria outra criação de Dias, Sinhozinho Malta, amante da Viúva Porcina (Regina Duarte) em Roque Santeiro.
emissora carioca. Na sua autobiografia, conta que o Boni sugeriu o nome, porque sabia que o conteúdo dramático da novela não tinha a ver com a sua obra. Depois, em uma entrevista, disse que foi o primeiro a sugerir o uso do pseudônimo a Boni, que adorou a idéia. Fato é que a imprensa da época se referia à autora da novela como Stela. Isso, certamente, era uma tentativa de não vincular ao seu currículo uma trama de caráter tão melodramático. E era também uma forma de impedir que fosse reconhecido por seus companheiros de militância comunista por aquele tipo de novela, entendido na época como alienante”, avalia Igor Sacramento. O professor é taxativo ao afirmar que Dias gozou de boa dose de liberdade criativa na emissora. “Ele não sofreu muita pressão. Durante a ditadura militar, a modernização da televisão era pauta do Governo. Este, apoiado por outros setores da sociedade, pressionou por uma programação de qualidade. Nesta época, até Danton Jobim, então Presidente da ABI, através do jornal Última Hora, iniciou um campanha contra o ‘grotesco na televisão’. Naquele contexto, o paradigma de arte era voltado para o engajamento de esquerda. É neste período que o canal contrata dramaturgos como Dias Gomes, Lauro César Muniz, Jorge Andrade, Bráulio Pedroso, Vianinha, Paulo Pontes e Armando Costa, todos envolvidos com a cultura comunista. A partir do status autoral e do prestígio que Dias tinha conseguido desde 1960 com a encenação de O Pagador de Promessas, ele negociou maior liberdade. É claro que a crítica social esteve presente em O BemAmado, Saramandaia, Bandeira 2, Sinal de Alerta. Mas era algo feito metaforicamente, pelas brechas, e não diretamente.” Havia ainda outra habilidade na escrita de Dias. Uma característica rica e, ao mesmo tempo, perturbadora, que mexia com os telespectadores. Boa parte de seus personagens principais nascia de uma construção extremamente ambígua – ao mesmo tempo repugnante e fascinante, sem a antiga dicotomia entre o bem e o mal. Um exemplo claro é o já citado Odorico Paraguaçu. É claro que havia uma crítica ao tradicional poder que instituiu o coronelismo. Além disso, há a consideração de que o poder não é apenas opressor, mas também sedutor. A figura do prefeito, mesmo com seus valores e condutas abjetas e deploráveis, era simpática, até querida do grande público.
Mesmo corrupto, machista e autoritário, Odorico era engraçado. Por vezes, pateticamente ridículo. As maiores dificuldades no relacionamento do autor com a TV Globo eram de ordem técnica. Diziam respeito ao próprio formato da telenovela. Desde o início de sua experiência, já nos anos 1970, Dias reclamava da produção industrial imposta ao escritor, que tinha de preparar mais de 30 laudas por dia e por capítulo. Achava que deveria haver o investimento em formatos mais curtos, o que garantiria maior qualidade. Não é à toa que, depois de escrever de modo praticamente ininterrupto oito telenovelas inteiras entre 1969 e 1979, a partir dos anos 1980 ele consegue negociar o seu envolvimento em formatos menores, seriados ou minisséries. A partir daí, quando escreveu alguma novela, como foram os casos de Mandala, só fez a menor parte dos capítulos. Ficava responsável pela arquitetura da trama e deixava a conclusão do trabalho a cargo de colaboradores.
Problemas com a Censura e o Estado autoritário No teatro, as investidas da Censura contra Dias Gomes lhe rendiam aborrecimentos e, mais do que isso, prejuízos. Escrita em 1963, O Berço do Herói apenas foi encenada dois anos depois. No dia de sua estréia, em 22 de julho de 1965, a peça foi censurada. Sua montagem estava programada para o Teatro Princesa Isabel, propriedade do então Governo do Estado da Guanabara. Segundo Dias, Carlos Lacerda teria assumido pessoalmente a iniciativa da proibição. Em 1975, Dias Gomes, mais uma vez, tentaria realizar a peça, na adaptação televisiva – que levou o nome de Roque Santeiro. Novamente, foi proibida. Gomes contou em sua autobiografia que a censura à novela se deu, sobretudo, por conta da interceptação de um telefonema ao amigo e companheiro de militância comunista Nelson Werneck Sodré. Na conversa, o autor teria se vangloriado do fato de os censores serem incapazes de perceber que a trama gravada para a tv era basicamente a mesma história vetada dez anos antes, no teatro. “Com o Estado autoritário e com a censura federal, Dias Gomes enfrentou problemas em várias produções, que tiveram que sofrer alguns cortes. Mas nenhum deles se compara ao que aconteceu com a primeira versão de Roque Santeiro. A par-
tir da análise da sinopse, Rogério Nunes, então Diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas-DCDP, alertou a TV Globo sobre a possibilidade de censura. Nesse mesmo comunicado, Rogério requereu da emissora o envio de 20 a 30 capítulos para análise e redação de um parecer mais conclusivo. Feito isso, dois técnicos da Censura identificaram abordagens problemáticas. Estavam lá os amores clandestinos, as visitas de rapazes às moças após às 23 horas, a tendência ao amor livre, os distúrbios civis (beatas contra a boate), a sabotagem (o corte de energia pelo professor), a agitação conclamando o povo a participar, a depreciação da autoridade do delegado, a justiça pelas próprias mãos e as referências ao ‘terrorismo’. Todos estes temas pulsantes”, recorda Igor Sacramento. A estréia da primeira versão de Roque Santeiro estava marcada para o dia 27 de agosto de 1975. Na TV Globo, esperavase que a telenovela fosse liberada para o horário das 20 horas, depois dos cortes realizados. A emissora contratou novos profissionais para a produção, que já contava com mais de 20 capítulos prontos, o que, certamente, provocou prejuízos. No mesmo dia, depois das muitas negativas, no Jornal Nacional, foi lido um editorial que questionava a Censura Federal, publicado no dia seguinte pelo O Globo, destacando o empenho do canal em ‘vencer todas as dificuldades’ para exibir a novela. No entanto, a empresa fora forçada a cancelá-la. Para o horário, foi ao ar uma reprise compacta de Selva de Pedra, de Janete Clair, outra mestre no gênero, dona de uma verve menos política e mais romântica. Curiosamente esposa de Dias Gomes, coube à telenovelista correr com os preparativos dos capítulos de Pecado Capital, que entrou no ar logo na sequência. “Dias sofreu perseguição escancarada pelas idéias igualitárias, tachadas de comunistas, e patrulha disfarçada por parte da Igreja Católica. O rótulo de comunista foi-lhe colado antes mesmo de ele o ser. Com mais ou menos 20 anos, escreveu a comédia Pé-de-Cabra (1942), encenada por Procópio Ferreira. A peça foi considerada marxista, e isso ensejou o autor a ler Marx, um escritor cujo pensamento parecia com o dele, segundo os censores. Tempos depois, ele filia-se ao PCB. A crítica à intransigência da Igreja Católica aparece em muitas obras do autor, por exemplo: na condenação de Branca Dias, entre outros motivos, pela
TV GLOBO/CEDOC
pureza, boa fé, sinceridade, pelo vínculo ao judaísmo e pela atração que ela despertava no padre (em O Santo Inquérito). E, sobretudo, no autoritarismo da Igreja, personificado por Padre Olavo, que proíbe o cumprimento, no ambiente católico, da promessa feita por Zé do Burro em um terreiro de candomblé (em O Pagador de Promessas)”, exemplifica Maria Célia. “Além do vôo de Gibão, já citado aqui pela professora Maria Célia, tivemos a cena final de O Bem Amado, em que Zelão das Asas (Milton Gonçalves) voa com as asas que ele mesmo criou para cumprir uma promessa. São evidentes alegorias do anseio pela liberdade de expressão, impedida pela ditadura militar. Já no contexto democrático, não se pode deixar de mencionar Roque Santeiro e Decadência. A primeira se baseia na desconstrução de um mito. Faz-se uma alusão à morte de Tancredo Neves, que, de certa forma, com a posse de seu vice, José Sarney, ligado à antiga Arena, repercute a desilusão com o futuro, quando a figura do ‘salvador’ passa a não existir mais. Já Decadência demonstra que, com a aceleração do ceticismo político no Brasil, depois dos precários Governos democráticos de Sarney e, principalmente, de Fernando Collor, a nova esperança de salvação passa a ser a religião.” Decadência gerou conflitos entre seu autor e a Igreja Universal do Reino de Deus. Diante da ascensão do neopentecostalismo, as críticas de Dias se dirigem à exploração da crença de fiéis pobres por líderes evangélicos corruptos. Nesse momento, houve uma confusão com a Universal, que já administrava a TV Record e se expandia no mercado televisivo. Edir Macedo chegou a acusar Dias de ‘fazer o trabalho sujo’ pela TV Globo. Ele se defendia dizendo que estava apenas fazendo um trabalho ficcional, em que comentava novas formas de exploração da fé.
Novela, televisão e preconceito acadêmico Desde muito jovem, Igor é um telespectador. E, mais do que isso, um entusiasta do veículo. “Estudo esta mídia há pouco mais de uma década e pude acompanhar o crescimento do interesse entre os pesquisadores do campo da comunicação – não só no significativo aumento de estudioaos sobre o tema, mas também com uma maior quantidade de grupos de pesquisa em importantes congressos da área. Cabe destacar, no campo da teleno-
vela, o pioneirismo do Centro de Estudos da Telenovela da Usp, conduzido pela professora Maria Immacolata. Mesmo com esses avanços, ainda continuo notando que a televisão sofre com um desdém acadêmico. Apesar de contarmos com uma das mais intensas – e interessantes – atividades de produção televisiva do mundo, há poucos pesquisadores que se dedicam ao estudo do veículo. Isso está claramente associado a um preconceito de classe. A televisão no Brasil, sobretudo na modalidade aberta, é bastante vinculada às classes populares. Assim, parece que a produção televisiva não conta com a distinção necessária para ser estudada”, lamenta. Pois não há como negar que foi por seu talento autoral, iniciado no teatro e alargado na televisão, que o escritor chegou à Academia Brasileira de Letras. Seu ingresso na ABL ocorre na sucessão de Adonias Filho, na cadeira 21, cujo patrono é o maranhense Joaquim Serra e o atual ocupante é Paulo Coelho. O autor de telenovelas foi recebido em 16 de julho de 1991 pelo colega Jorge Amado. O discurso de posse foi bastante curioso. O novo imortal fez apenas uma única referência à sua produção televisiva. Ele contou o momento em que foi interrogado na Polícia Federal. Como piada, disse que foi questionado sobre quem havia matado Nívea (Renata Sorrah), na novela Assim na Terra Como Céu, que ele escrevia em 1971. Ali, ao discursar para os acadêmicos, Dias Gomes fez questão de ressaltar exclusivamente a sua produção para teatro, definindo-se como ‘um homem de teatro’. Isso não apenas quer dizer que o preconceito com a televisão é hábito de até quem faz televisão, mas que Dias Gomes se entendia como um ‘homem de teatro que fazia televisão’. Além de não querer se identificar como um profissional de tv, ao menos entre os colegas da ABL, ele parecia querer se afirmar por uma arte bem mais qualificada e consagrada do que a indústria televisiva. O acadêmico Sábato Magaldi falou ao Jornal da ABI sobre Dias Gomes. “O Pagador de Promessas teve a qualidade de trazer um acréscimo expressivo às diversas contribuições à nossa moderna dramaturgia. Dramatizou-se o sincretismo religioso e, de outro lado, criticou-se a intolerância, de qualquer inspiração. Dias se afirmava com linguagem pessoal e universo próprio. Em Campeões do Mundo – do ano de 1979 – efetivou-se o primeiro balanço no palco da política nacional de 1964 a 1979, sem o recurso à metáfora e a alusões utilizadas nos anos da ditadura militar. A peça debatia o terrorismo e o apoio financeiro de poderosos aos aparelhos de tortura, as várias facções de esquerda, o exílio e a continuação da luta dentro do País. A última incursão cênica de Dias Gomes foi Meu Reino por um Cavalo (1988), em que problematizou a crise do homem maduro. Temos aí um belo mural dramático de um escritor que, ao morrer, interrompeu uma obra de plena maturidade.” Outro acadêmico também falou sobre o autor baiano. “Dias Gomes se estabeleceu como um dos maiores nomes da teledramaturgia e como tal deverá permanecer, graças à qualidade e imensa popularidade de seu trabalho. Acho que seu in-
gresso na Academia foi uma conseqüência natural da repercussão e do valor de sua obra”, diz João Ubaldo Ribeiro. “Ele foi um grande e consagrado dramaturgo. Aplicou o seu talento na televisão, com trabalhos de primeira ordem, como O Bem Amado. Pode também ser citado O Pagador de Promessas. É autor de três romances e exerceu igualmente atividades jornalísticas. Seu ingresso na ABL foi uma homenagem ao teatro brasileiro. A Casa já havia pensado em atrair para os seus quadros a figura notável de Nelson Rodrigues, mas ele faleceu antes da concretização de sua candidatura”, disse Arnaldo Niskier, ex-Presidente da ABL. E, por falar, em Nelson Rodrigues, falta destacar uma curiosidade sobre a relação do polêmico jornalista com o popular escritor de novelas. “Nelson era conhecido pelas suas declarações conservadoras. Ele não se relacionava muito bem com os artistas de esquerda. Acreditava que eles não estavam fazendo arte, mas política panfletária. Certa vez, em 1980, alguns meses antes do falecimento de Nelson, Dias Gomes deu uma entrevista à revista Manchete, onde se autodeclarou o maior dramaturgo do Brasil. Afirmou assim: ‘O teatro brasileiro sou eu, o Nelson Rodrigues que não nos ouça’. Revoltado, numa entrevista ao Jornal do Brasil Nelson disse que Dias Gomes era um ‘sub-Joracy Camargo’. Nelson fazia referência ao fato de Dias, em sua peça Pé-deCabra, ter realizado algo muito semelhante ao maior sucesso de Joracy, Deus lhe Pague, de 1933. Como tréplica, também no Jornal do Brasil, Dias provocou: ‘Nelson Rodrigues não passa de um Tennesse Williams de Madureira’, devolveu”, relata Igor Sacramento. Aguinaldo Silva, jornalista e autor de novelas de sucesso como Tieta (1989), Senhora do Destino (2004) e Fina Estampa (2011), também citou o episódio acima, em entrevista publicada na Edição 361 do Jornal da ABI, em dezembro de 2010. “Quando a TV Globo resolveu embarcar nessa onda de teledramaturgia, contratou alguns dos melhores escritores do Brasil, como Dias Gomes, Mário Prata, Lauro César Muniz, Cassiano Gabus Mendes, e a própria Janete Clair. Aliás, tem uma frase famosa do Nelson Rodrigues. Diante de uma declaração do Dias, em que o próprio se apresentava como maior dramaturgo do Brasil, logo foram provocar e ouvir o Nelson. E ele disse: ‘O Dias não é o melhor dramaturgo nem na casa dele. Boa mesmo é a Janete...’, entendeu?”, contou Aguinaldo, aos risos.
No maior sucesso na tv, mais uma polêmica A relação entre Aguinaldo e Dias também não foi das mais fáceis. “O baiano escreveu Roque Santeiro até o capítulo 41, a partir do que já havia escrito para a versão censurada de 1975. Com a sua saída do cargo de autor principal, previamente combinada por achar o formato longo e cansativo demais, o posto foi assumido por Aguinaldo Silva, que já colaborava com o autor desde o começo, juntamente com Marcílio Moraes e Joaquim Assis e com a pesquisadora Lilian Garcia. Quase no final da trama, a partir
do capítulo 162, Dias resolveu retomar a novela. Isso gerou muitas controvérsias. Ambos fizeram acusações mútuas de apropriações indevidas de Roque Santeiro. Inicialmente, quando do lançamento da atração, Aguinaldo comentou que a sua função seria ser o ‘cavalo’ de Dias. Quem conduziria a história, então, seria o autor original. Mas, numa entrevista à Playboy, em 1985, Dias desiste da explicação fictícia de que Boni havia pedido para ele assumir o final da novela e, enfim, reconhece que estava com ciúmes do sucesso que a sua história estava tendo nas mãos de outro autor ”, assinala o pesquisador. A polêmica gerou muitos problemas. Aguinaldo Silva reclamou em diversas entrevistas das mudanças que Dias, após a retomada da autoria principal, havia feito na trama e nos personagens. Até mesmo os atores eram convidados pelos jornais para explicar as diferenças de texto dos dois autores. Apesar de reconhecerem a qualidade de Aguinaldo Silva, ainda em início de carreira na televisão, não podiam julgá-lo melhor do que Dias Gomes – este já consagrado. A verdade é que, por graça e talento de ambos, Roque Santeiro figura ainda hoje, quase como senso comum, como a melhor telenovela já feita no Brasil, com recordes absolutos de audiência na época de sua exibição e até mesmo em recentes reprises em canais a cabo. “A obra posterior de Aguinaldo Silva inovou na linguagem, ampliando o realismo fantástico experimentado por Dias Gomes. Isso foi visto em telenovelas como Pedra sobre Pedra (1992), Fera Ferida (1993) e A Indomada (1997). O próprio padrão moderno de telenovelas, como já disse, deve muito ao trabalho de Dias Gomes. No teatro, essa herança é menos visível, porque o cenário brasileiro está cada vez menos politizado. Aliás, a política mudou. Agora, as questões nos palcos são mais micropolíticas, sobre os gêneros, as etnias, as minorias, o corpo e a sexualidade. Dias fez um teatro que se pontuava por questões mais gerais”, avalia Igor. Para Aguinaldo Silva, a antiga polêmica sobre a autoria de Roque Santeiro está há tempos superada. “Nunca houve briga. Escrevi 180 capítulos e o Dias Gomes fez cerca de 80. A questão está bem resolvida e tenho bom relacionamento com a família dele”, declarou, em agosto do ano passado, à revista IstoÉ. Ao Jornal da ABI Aguinaldo fez uma análise que corrobora a opinião dos demais entrevistados nesta reportagem. “No início dos anos 1970, a TV Globo pegou os grandes caras da época, que tinham uma visão política da realidade brasileira – muitos deles eram politicamente engajados – e deu total liberdade para que escrevessem as novelas. Isso numa fase de censura e ditadura. Aí, a novela brasileira ganhou algum prestígio, que não perdeu nunca mais. Esses autores, grupo no qual se destaca a figura do Dias Gomes, são os grandes responsáveis pela consolidação do gênero”, concluiu. Dias não está mais aí, mas continua vivo, atual. Seu estilo redefiniu as raízes da teledramaturgia nacional. Seus personagens eternizaram-se na memória popular. Em qualquer tempo, em dia nenhum, houve autor igual.
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LIBERDADE DE IMPRENSA
Começa a temporada de erros da Justiça Eleitoral Sua inauguração coube a uma juíza de Mato Grosso do Sul, que mandou a Polícia Federal invadir a Redação e a gráfica do jornal Correio do Estado e ameaçar de prisão quem não se submetesse às suas decisões arbitrárias. Tal como tem ocorrido em outros anos em que há eleições, a Justiça Eleitoral começou a dar sinais de sua incapacidade de conviver com as instituições democráticas estabelecidas pela Constituição de 5 de outubro de 1988. A inauguração da temporada de erros da Justiça Eleitoral neste começo da disputa para as Prefeituras e Câmaras Municipais coube a uma juíza de Mato Grosso do Sul, Elisabeth Rosa Baisch, titular da 36ª Zona Eleitoral, a qual mandou agentes da Polícia Federal invadirem o jornal Correio do Estado, editado na capital e o único com circulação em todo o território do Estado. A invasão ocorreu na noite de 29 de agosto e tinha por objetivo impedir a distribuição da edição do dia seguinte, caso estivesse programada a publicação de pesquisa de intenções de voto. O Editor-Chefe do Correio, Ico Victório, contou que três oficiais de Justiça chegaram à sede do jornal, na Avenida Calógeras, nº 356, por volta das 19h40min. Ele foi chamado à portaria, onde um dos oficiais lhe pediu que assinasse as notificações expedidas pela magistrada. Um deles bateu pé: caso não o fizesse, corria o risco de receber voz de prisão de policiais federais. Como o expediente do jornal estava encerrado, Victório era o único jornalista presente na Redação para acompanhar a liberação da primeira página da edição do dia seguinte. Ele informou aos oficiais de Justiça que os diretores responsáveis pela empresa, Antônio João Hugo Rodrigues, Ester Gameiro e Marcos Rodrigues, permanecem na sede da empresa até às 18h30min, horário de expediente, e por isso solicitaria orientações. Victório ligou para um deles, que o instruiu a não assinar as notificações e que ele dissesse aos oficiais que não tinha poderes nem procuração para responder oficialmente pela empresa: “Reforcei a necessidade de voltar ao posto de trabalho imediatamente, pois a primeira página estava em fase de liberação e temos horários pré-estabelecidos”, contou Victório. Um dos oficiais, então, ameaçou-o, afirmando que a sua “teimosia” dificultava o trabalho da equipe do Poder Judiciário; se ele continuasse resistindo, os agentes telefonariam para a chefia do Cartório e a Juíza Elisabeth Baisch, solicitando forças policiais. “Você vai ter que assinar. Se você continuar dificultando o nosso trabalho, vou ligar para a Juíza e você vai ter prejuízos. Nós temos certeza de que vai sair 26
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a pesquisa”, teria dito um dos oficiais. Como Victório continuou negando a existência da pesquisa, eles ligaram de volta para a Juíza Elisabeth, que ameaçou mandar uma equipe da PF até à sede do jornal. Um dos oficiais bateu pé: caso Victório mantivesse a recusa de assinar as notificações, corria o risco de receber voz de prisão de policiais federais. Exibindo duas medidas liminares concedidas pela Juíza, os oficiais de Justiça insistiram em obrigar o Editor-Executivo a assiná-las, sob coação. As medidas proíbiam a divulgação de pesquisa do Ipems de intenções de voto para prefeito de Campo Grande. A Juíza Elisabeth acolheu pedido neste sentido assinado pelos candidatos Reinaldo Azambuja (Coligação Novo Tempo) e Alcides Bernal (Coligação Força da Gente). O pedido de suspensão de divulgação assinado pelos candidatos considera que tal pesquisa seria “tendenciosa”, “com danos de difícil reparação” e supostamente beneficiaria o candidato Edson Giroto (Coligação Mais Trabalho por Campo Grande). Sustentavam Bernal e Azambuja que o candidato Giroto “aparece em todas as situações de segundo turno”. Isso, diziam, deixaria uma mensagem subliminar
à população: “a liderança de Giroto nas pesquisas, o que certamente garante sua participação no turno final, caso ocorra”. Ameaça de prisão Os argumentos do Editor foram insuficientes para demover os oficiais de obrigá-lo a assinar as notificações. Novo telefonema da Juíza aos oficiais determinou que o jornalista mostrasse as “matrizes” (?) das páginas que seriam publicadas: “Só tínhamos situação semelhante no período ditatorial. Empenhamos a nossa palavra e numa situação dessas seria conveniente a doutora observar o direito do cidadão”, ponderou Victório, que continuava alegando não ter procuração legal para assinar documentos em nome da empresa: “Diante da minha negativa, os oficiais ameaçaram me prender em minutos, dizendo que seria melhor para mim e para a empresa assinar tais documentos, para tudo acabar bem”, contou Victório, que novamente confirmou a inexistência da publicação da pesquisa e voltou a falar com os diretores da empresa, dos quais recebeu a recomendação para não assinar. Um dos oficiais telefonou para a Juíza, informando-a da situação, ao que
ela insistiu: “Se ele não assinar, infelizmente está sujeito à detenção”. Irredutível, a Juíza Elisabeth Baisch teria decretado: “Se ele (Victório) não quer mesmo assinar, vou pedir à Polícia Federal para ir ao jornal certificar-se da verdade”. Entre idas e vindas, os oficiais finalmente foram atendidos: constrangido, Victório quis escrever um termo no qual denunciava a assinatura sob coação, mas foi impedido. Ele assinou as notificações por volta das 20h. Retornando à Redação, concluiu o acompanhamento da liberação da primeira página de quinta-feira. “Pensei que tudo estivesse resolvido, mas não foi isso o que aconteceu”, lamentou. Depois, já em casa, recebeu ligação do funcionário Valdenor Vieira Magalhães, informando ter sido surpreendido com agentes federais obrigando-o a mostrar todas as páginas do jornal nos computadores e deles ouvido que iriam também à gráfica “para constatar de fato o publicado”. Os policiais queriam saber, também, do conteúdo do portal de notícias do jornal na internet. Quarenta minutos depois de os oficiais devassarem originais das páginas nos computadores do terceiro andar da sede do jornal, a Juíza Elisabeth determinou ainda à Polícia Federal
A ABI protesta contra a invasão A ABI enviou telegrama ao Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pedindo a apuração da invasão da sede do jornal Correio do Estado, de Mato Grosso do Sul, na noite de 29 de agosto, por agentes da Polícia Federal. Para a ABI o caso se constitui como “violação grave de disposições constitucionais, que não admitem procedimentos dessa natureza contra a imprensa”. Na mensagem, a ABI apela ao Ministro da Justiça para que “intervenha para cessação de violências com precedentes apenas na ditadura militar”. A ABI encaminhou, também, ofício ao Presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul, Desembargador Josué de Oliveira, reiterando que a Juíza Elisabeth cometeu grave violação constitucional ao mandar invadir o jornal Correio do Estado, censurar sua edição e obrigar o jornalista presente a assinar notificações por ela emitidas, sob pena de prisão por agentes da Polícia Federal. A íntegra do telegrama da ABI enviado ao Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo: “É estranho que a despeito da greve na corporação agentes da Polícia Federal tenham invadido a Redação e a gráfica do jornal Correio do Estado e ameaçado de prisão o jor-
nalista presente na empresa para obrigá-lo a assinar notificações expedidas pela Juíza Eleitoral Elisabeth Rosa Baisch, com violação grave de disposições constitucionais, que não admitem procedimentos dessa natureza contra a imprensa. A Associação Brasileira de Imprensa espera que Vossa Excelência intervenha para cessação de violências com precedentes apenas na ditadura militar. Atenciosamente, Maurício Azêdo, Presidente” A íntegra do ofício encaminhado ao Presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul, Desembargador Josué de Oliveira: “Prezado Desembargador Josué de Oliveira, A Juíza Elisabeth Rosa Baisch, da 36ª Zona Eleitoral desse Estado, cometeu grave violação constitucional ao mandar invadir o jornal Correio do Estado, censurar sua edição e obrigar o jornalista presente a assinar notificações por ela emitidas, sob pena de prisão por agentes da Polícia Federal. A Associação Brasileira de Imprensa espera que Vossa Excelência e os dignos membros dessa corte eleitoral restabeleçam a legalidade constitucional que essa magistrada ofendeu de forma com precedente apenas durante a ditadura militar. Atenciosamente, Maurício Azêdo, Presidente.”
DIREITOS HUMANOS que fosse à gráfica para verificar a impressão. Cumprindo ordens, os agentes invadiram o prédio, na Rua João Pedro de Souza, e dali não saíram até à impressão dos primeiros exemplares da edição, às 22h25min. Completando o cumprimento da missão de que foram incumbidos, levaram alguns para a Juíza. “Estamos com um mandado da juíza eleitoral e temos ordens para ver as matrizes”, disse um dos agentes da PF, que desembarcou de uma Mitsubishi preta, juntamente com outro agente e um oficial da Justiça Eleitoral. Ele não apresentou qualquer documento para invadir o jornal. “Ao todo eles viram 18 páginas do jornal de hoje”, disse Valdenor. Para o Editor-Chefe do Correio, esse episódio apresenta duas situações graves, que relembram os dias sombrios vividos no País durante a ditadura militar (19641985): “Além da invasão, houve abuso de autoridade da Juíza e dos agentes da Polícia Federal. Isso tem que ser esclarecido. Não podemos deixar que coisas desse tipo voltem a acontecer. Não podemos aceitar que o obscurantismo de um passado recente volte a obstruir o trabalho da imprensa e a liberdade de expressão” , disse Ico Victório. Representação ao CNJ O Diretor do Correio do Estado, ex-Senador Antônio João Hugo Rodrigues, informou que o jornal ingressará com representação na Corregedoria do Tribunal Regional Eleitoral (TRE/MS) e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra a Juíza Elisabeth Rosa Baisch. Antônio João ainda espera que a Polícia Federal promova sindicância para apurar essa operação. “Precisamos da confirmação com detalhes, porque, se os policiais estão em greve, quem veio ao jornal? São agentes de fato, ou agem disfarçadamente, apresentando-se como tal? E quando a Polícia ocupa um prédio, um domicílio e, no caso, o jornal, deve trazer mandado judicial”, afirmou. O pedido da suspensão da divulgação da pesquisa teve por objetivo a retificação do item 12, para que constem 49 opções de escolha, incluindo todos os candidatos – o item coloca o Deputado Federal Edson Giroto (PMDB), candidato a Prefeito de Campo Grande, enfrentando cada um dos sete candidatos, simulando o segundo turno. O advogado do jornal, Laércio Arruda Guilhem, ingressou no TRE/MS com agravo de instrumento para obter o juízo de retratação e a revogação da liminar concedida, permitindo dessa maneira a divulgação da pesquisa. No recurso, ele diz que a Juíza se equivocou. “Em vez de determinar a suspensão apenas da parte impugnada, ou seja, do item que trata da questão acerca do confronto entre os sete candidatos ao pleito eleitoral, o que é objeto dos itens 13 a 18, errôneamente indicado como item 12 pela Coligação Novo Tempo, equivocadamente determinou a suspensão do resultado da pesquisa.”
O Major Curió vai responder pelos seqüestros que cometeu P OR C LÁUDIA S OUZA
A Juíza Federal Nair Cristina Corado Pimenta de Castro, do Tribunal Regional da 1ª Região, Subseção de Marabá, Pará, aceitou no dia 30 de agosto as denúncias formuladas pelo Ministério Público Federal contra o Major reformado Lício Augusto Maciel e o Coronel reformado Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido como Major Curió. Ambos são acusados em diferentes processos pelo crime de seqüestro e tiveram prazo de 10 dias para responder por escrito às acusações do MPF. “Como ato de perdão, é ato que se volta ao passado; é tomada de posição de quem olha para trás e se determina a esquecer, a desconsiderar o que passou. Na hipótese dos autos, entretanto, está-se diante de algo que não passou, de evento que, em tese, não ficou no passado, antes perdura até que os indícios de sua permanência sejam suplantados por elementos evidenciadores de sua cessação”, escreveu a magistrada. Curió é acusado de seqüestro qualificado de cinco pessoas durante a Guerrilha do Araguaia. Ele comandou as tropas que atuaram na região em 1974, época do desaparecimento de
Maria Célia Corrêa (Rosinha), Hélio Luiz Navarro Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antônio de Pádua Costa (Piauí) e Telma Regina Corrêa (Lia). O Major Maciel é acusado do seqüestro de Divino Ferreira de Souza (Nunes). Responsável pela denúncia, o procurador da República Ivan Marx, coordenador do grupo de trabalho Justiça de Transição, comemorou a decisão judicial: “É a primeira vez que o Judiciário se engaja e assume o seu papel dentro das obrigações do Estado na Justiça Transicional. O que aconteceu é uma questão de amadurecimento institucional democrático. Demorou muito tempo para esse tipo de assunto ser tratado no Brasil. As investigações vêm desde de 2008, mas por que demorou tanto? E por que só agora temos uma Comissão da Verdade? São reflexões que temos que fazer.” Invocando a anistia Em março deste ano, o Juiz João César Otoni de Matos, da Vara Federal de Marabá, negara o pedido do Ministério Público Federal para processar o Major Curió pelo desaparecimento de pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia na década de 1970, durante a
ditadura militar. Segundo a sua decisão, a Lei de Anistia deve ser aplicada; mesmo que não prevalecesse esse entendimento, o crime estaria prescrito. Os procuradores entraram com a ação na Justiça Federal no Pará alegando que o caso não se enquadra na Lei de Anistia, que foi validada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010. Segundo a denúncia, Curió deveria ser responsabilizado pelo seqüestro de cinco militantes políticos. Como estão desaparecidos até hoje, os procuradores consideram esse um crime permanente. Ao rejeitar a denúncia, o Juiz João César Otoni de Matos considerou que o MPF cometeu um equívoco ao entrar com a ação. “Depois de mais de três décadas, esquivar-se da Lei da Anistia para reabrir a discussão sobre crimes praticados no período da ditadura militar é equívoco que, além de desprovido de suporte legal, desconsidera as circunstâncias históricas que, num grande esforço de reconciliação nacional, levaram à sua edição”, afirma o juiz na decisão. Sobre a possibilidade de prescrição do crime, afirmou o Juiz que a morte dos cinco opositores do regime militar deve ser presumida nesses casos, “diante do contexto em que se deram os fatos”.
A ABI defende Julian Assange A ameaça da Inglaterra de invadir a Embaixada do Equador, na qual ele se asilou, constitui grave violação do Direito Internacional, diz a Casa em declaração de solidariedade ao criador do Wikileaks. A Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI aprovou moção de solidariedade com o criador do Wikileaks, Julian Assange, na qual declara que a tentativa de impedir sua viagem para o Equador, que lhe concedeu asilo político, é “uma violação à consolidação internacional do direito de asilo”. É o seguinte o texto da moção: “A Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI saúda o Governo do Equador pela concessão de asilo político a Julian Assange, editor responsável pelo site Wikileaks. A Comissão manifesta também repúdio às ameaças feitas pelo Governo britânico de não respeitar o direito de asilo político e até mesmo de utilizar o uso de violência para prender Assange no interior da representação diplomática do Equador em Londres. Esse procedimento representaria uma total subversão do Direito Internacional e com isso se estaria abrindo um precedente perigoso à legislação internacional. E seria uma violação à consolidação institucional do direito
NICK.HIDER/WIKIPEDIA
A Embaixada do Equador em Londres, cercada por policiais que tentam prender Julian Assange.
de asilo, que sempre foi uma prerrogativa respeitada através da História pelas nações. Prestar solidariedade a Assange, que se for deportado para a Suécia o será posteriormente para os Estados Unidos, cujo Governo não se conforma com as informações veiculadas no WikiLeaks sobre ações ilegais da diplomacia norte-americana em várias partes do mun-
do, é uma questão de coerência com a defesa dos valores democráticos que não devem e não podem ser desrespeitados pelas nações. A Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI entende que ao se posicionar em favor de Julian Assange está seguindo o importante preceito de defesa das liberdades de expressão e de imprensa.” JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
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AMIZADE
ACERVO PAULO MENDES CAMPOS/ INSTITUTO MOREIRA SALLES
Quatro cavaleiros para sempre A abertura do arquivo de Paulo Mendes Campos dá mais um passo para que se conheça o mosaico completo da correspondência trocada entre ele, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino, amigos de toda a vida, apaixonados pela literatura. P OR V ERÔNICA C OUTO
M
inas, o Modernismo, a literatura uniram em um laço fraterno indissolúvel os quatro escritores Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino (que deixaria as letras pela psicanálise). Foram os “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, como os chamou o próprio Otto. Aos poucos, vão chegando aos leitores mais e mais cartas da imensa correspondência trocada entre eles ao longo de cerca de 50 anos, e que, uma vez reunida, tem tudo para se tornar um monumento à amizade, às letras e à história brasileira. Em junho, o Instituto Moreira Salles lançou Carta a Otto ou Um Coração em Agosto, escrita aos 23 anos por Paulo Mendes Campos e que inclui ainda um poema inédito dedicado ao amigo. Data de agosto de 1945 e faz parte do arquivo do poeta e cronista, que começa agora a ser analisado pelo Instituto. Segundo a Coordenadora de Literatura do IMS, Elvia Bezerra, a edição do livreto é apenas a “cereja do bolo”, porque a intenção é publicar toda a correspondência de Paulo Mendes Campos, assim que obtida a autorização da família. Da mesma forma, deve chegar ao público o conjunto das cartas de Otto Lara Re28
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sende, também sob a guarda do Instituto e cuja obra vem sendo relançada pela Companhia das Letras. Já saíram O Rio é Tão Longe – Cartas a Fernando Sabino, organizado por Humberto Werneck, além de outros títulos de crônicas e novelas, entre eles – com reedição prevista para este semestre – O Boca do Inferno, coletânea de contos que, em 1957, provocou escândalo entre os intelectuais católicos. De acordo com o seu autor, “o livro mais espinafrado do Brasil”. Pela Record, já foi publicado o Cartas na Mesa (2002), correspondência de Fernando Sabino com Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Assim, em capítulos, vai-se montando o mosaico epistolar dos cavaleiros, chamados por Mário de Andrade de “os vintanistas” – por terem nascido todos na década de 20: 1922, Paulo e Otto; 1923, Fernando; 1924, Hélio. O autor de Macunaíma lhes franqueava a entrada em casa, mesmo na sua ausência, e começou a se corresponder com Fernando Sabino a partir de 1942. Além dele, Carlos Drummond de Andrade foi referência importante para os mineiros. A Paulo Mendes Campos, o mais lírico e o mais poeta dos quatro, emprestou sua máquina de escrever e arranjou dois empregos, quando o jovem ainda se ajeitava no Rio. Na crônica CDA: Velhas
Novidades, Paulo elogia Drummond e sua influência sobre o grupo: “Minha geração – Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, J. Etienne Filho, Wilson Figueiredo, Carlos Castelo Branco, Murilo Rubião – falava fluentemente um idioma arístico, colhido nos versos de Drummond. Era a maneira mais econômica, secreta e eloqüente de nos entendermos.” O arístico quer dizer conversa íntima entre esposos, carinhosa e familiar. “Ou seja, a poesia de Drummond entrava no papo entre os quatro não como referência literária, mas como referência de vida”, explica o cronista e escritor Humberto Werneck, autor de O Desatino da Rapaziada, reeditado após 20 anos pela Companhia das Letras, com extenso registro biográfico dos quatro mineiros. Werneck também assina o posfácio e a seleção das novas crônicas (mais de 70) incluídas em Bom Dia Para Nascer (Companhia das Letras), antologia dos textos de Otto Lara Resende publicados na Folha de S. Paulo, entre 1991 e 1992, organizada por Matinas Suzuki. Além de ser um dos autores do Arquivinho Otto Lara Resende, para o qual produziu o folheto Loja de Frases. Para ele, um especialista na vida e obra desses cavaleiros, o que aproximava os quatro amigos era sobretudo a paixão pela literatura. “Drummond era sem dúvida a maior admiração literária dos quatro, e não apenas na juventude deles. Como se sabe, os ‘Cavaleiros’, nos seus anos de formação, buscaram imitá-lo até mesmo naquela temerária caminhada pelos arcos
do Viaduto de Santa Teresa”. A aventura no viaduto, a cerca de 20 metros acima de uma linha de trem, em Belo Horizonte, era uma brincadeira de Drummond, que chegou a receber por isso voz de prisão — relaxada pelo guarda, que teria preferido deixá-lo passar a subir para buscá-lo. Destino capital
O primeiro registro da expressão “quatro cavaleiros”, conta Werneck, ocorreu em 1980, durante a gravação de um texto autobiográfico para o lp duplo Os 4 Mineiros (Som Livre). “Nós somos quatro cavaleiros desse íntimo apocalipse que há tantos anos temos vivido”, declarou Otto, após mencionar os três amigos. Fernando Sabino e Hélio Pellegrino se conheceram ainda no jardim da infância. Otto e Paulo, por volta dos 14 anos, estudantes em São João del Rei, a terra de Otto. “O grupo se formou e se consolidou nos últimos anos da década de 1930, quando os quatro, morando em Belo Horizonte, se encontraram à sombra de um jornalista e escritor um pouco mais velho do que eles, João Etienne Filho”, relata Werneck. Etienne trabalhava no jornal católico O Diário e, além de emprestar livros, passou a publicar colaborações dos jovens. Estiveram juntos até abril de 1944, quando Fernando Sabino se casa e se muda para o Rio, seguido por Paulo em agosto de 1945, Otto em janeiro de 1946 e Hélio em 1952, lembra Werneck. “O quarteto se recompõe na então capital brasileira, para um convívio que se estenderá até
Carta inaugura o acervo do poeta “De onde venho, meu velho, para onde vou?”, pergunta o escritor mineiro Paulo Mendes Campos, cronista e poeta, em carta ao amigo Otto Lara Resende em agosto de 1945. Tinha então 23 anos, poucos dias no Rio de Janeiro, e sofria de azul. “O azul implacável, desoladoramente azul de que fala o nosso Mallarmé”, escreve. Carta a Otto ou Um Coração em Agosto, como o autor a intitulou, foi publicada pelo Instituto Moreira Salles, em uma edição delicada, com fac-símile do texto manuscrito e fotos de época do Rio, feitas por José Medeiros, fotógrafo da extinta revista O Cruzeiro, além de outras, do arquivo do autor. A tiragem, contudo, é modesta, de apenas 1.500 exemplares. O documento faz parte do acervo de Paulo Mendes Campos, desde o ano passado sob a guarda do IMS, responsável também pela documentação de Otto Lara Resende. Segundo Elvia Bezerra, Coordenadora de Literatura do Instituto, o escritor se sentia sozinho, sem as referências de Belo Horizonte e longe dos amigos, principalmente Otto, o escritor Fernando Sabino e o psicanalista Hélio Pellegrino. O que o maltrata são os “sentimentos intransitivos”, diz na carta Paulo Mendes Campos, que a encerra com um poema até então inédito. “Otto mermãozinho, às 6 horas parnasianas de uma tarde carioca me canso de ‘literatura’ e resolvo fazer literatura. Mas não sei. Então escreverei um poema.” Por que literatura entre aspas? “A carta estava rebuscada, o que explica a referência às
a morte de Hélio, em 1988, a de Paulo, em 1991, e a de Otto, em 1992. Fernando Sabino foi o último a ir-se, em 2004”. Na época, o Rio era o destino natural de muitos jornalistas e escritores mineiros, terra prometida para trabalho, liberdade, experiência e carreira. “O poeta Emílio Moura, companheiro de geração de Drummond, me disse mais de uma vez, no final dos anos 1960, e registrei n’O Desatino da Rapaziada: em Minas, você publica o primeiro livro e não acontece nada; publica o segundo e também não acontece nada; o terceiro você já não escreve”, explica Werneck. “Não há dúvida de que no Rio os ‘cavaleiros’ puderam deslanchar e ter o reconhecimento a que seus talentos tinham direito.” Apesar do amor à literatura (ou por isso mesmo), não fizeram da amizade nem escola nem bandeira. Na apresentação do livro Cartas na Mesa, Fernando Sabino descreve a natureza fundamental dessa união: “O que predominava mesmo vinha a ser a irreverência... Éramos intransigentemente contra as convenções e conveniências, a começar pela institucionalização de nossa amizade. Tanto assim que nunca conseguimos como amigos fazer juntos nada de útil, com a graça de Deus. Nunca fomos sócios em coisa alguma. Sempre fizemos questão de não tirar proveito de nossa tão espontânea amizade.” No mesmo texto, Sabino desenha os amigos em poucos traços, comparando-os a si mesmo: “Hélio, o apaixonado, o pos-
horas parnasianas”, avalia Elvia. “Queria dizer que agora vamos fazer literatura sem goma, sem aspas.” Mas também, em outro momento, Paulo Mendes Campos reconhece uma “incerta fronteira em que o pudor desmente a intimidade das coisas, obrigando as palavras a se dirigirem para os domínios da poesia”. O limite talvez que separava o cronista do poeta, embora tenha transitado com brilho e poeticamente nos dois gêneros. Elvia, que conhece o conjunto da correspondência do autor, observa que essa é uma carta diferente das habituais, nas quais ele era sempre muito informal e descontraído. “Essa é um depoimento de saudade e de amizade, de clara intenção literária.” No posfácio, ela destaca a referência ao poema “L’Azur, de Mallarmé, e a impressão aguda da cor sobre o escritor mineiro, descrita por ele na crônica Azul de Montanha: “Assinalai do mestre francês todas as passagens referentes ao azul, e chegareis a um estranho conhecimento da aridez, do fracasso, do terror da experiência absoluta”. Mendes Campos estava talvez sob o efeito desse azul ao produzir o texto enviado a Belo Horizonte, num momento em que, ressalta Elvia, “ainda não vislumbrava a publicação de seu primeiro livro de poemas, A Palavra Escrita, de 1951, a que se seguiram outros, de poesia e prosa”. Num tom de desabafo íntimo e comovido, conta ao amigo da solidão e da “voluptuosidade” com que lhe apaixonam as coisas. “Olhe, irmão, o que me interessa nas
coisas é o que elas poderiam ser. O que me atrai nas criaturas é a disponibilidade, essa linda e trágica espera incessante, esse constante vigiar das tentações, como se torcêssemos pela circunstância, pela pessoa, pelo demônio que viesse (que sempre parece vir) nos arrancar dos trilhos para as cambalhotas da vida.” (...) “Vinte séculos de cristianismo não extinguiram em nós o gosto ácido do desprendimento, o amor impensado pelas coisas do mundo: sol, frutos, fêmea subjugada sobre a relva. Bem, irmão, esses momentos são tudo pra mim.” O objetivo, de acordo com a Coordenadora de Literatura do IMS, é publicar as outras cartas do arquivo de Paulo Mendes Campos, mas ainda não se sabe quando. “Não é simples,
ARQUIVO / AGÊNCIA O GLOBO
MANOEL SOARES/AGÊNCIA O GLOBO
Fernando Sabino (esquerda) e Hélio Pellegrino: amigos desde o Jardim de Infância.
suído, o destemperado – eu, mais contido e organizado, mas ao mesmo tempo desastrado e obsessivo (ou obsedeque, na linguagem pellegrinesca). Paulo, arisco, enigmático, reflexivo – eu, mais solto aberto, desabusado. Otto, indeciso, pessimista, deprimido – eu, extrovertido, otimista, intempestivo. Tínhamos pouca coisa em comum, além da paixão literária. E do senso de humor.” Política e jornalismo
Entre eles não faltaram discordâncias, birras, divergências. “Certamente se de-
sentenderam, e muitíssimas vezes”, diz Werneck. “Aliás, costumavam dizer que o quarteto raramente funcionava como tal: eram sempre três a amorosamente falar mal do ausente... Nenhum desentendimento, porém, abalou a amizade vitalícia dos quatro.” Do ponto de vista político, atuavam principalmente como católicos e progressistas. Se bem que, na opinião Werneck, Paulo lhe pareça, pelo menos na maturidade, ter sido mais progressista do que católico. O mais militante dos quatro foi Hélio Pellegrino, que chegou a ser preso por
porque depende da autorização da família. Penso que é muito importante, porque são testemunhos de um período, de uma amizade muito bonita entre esses quatro amigos.” Ao todo são cerca de 200 cartas trocadas com Otto Lara Resende, além de outras, em maior volume, com outro dos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, Hélio Pellegrino, o último a se mudar para o Rio. A correspondência completa do arquivo somou 400 páginas de editor de texto Word, calcula Elvia. O material de Otto Lara Resende está com o IMS desde a década de 1990, o primeiro do acervo do Instituto, e já foi todo analisado e classificado. O arquivo do autor de Um Coração em Agosto, contudo, ainda está em fase de descobertas. “Tudo já foi aberto, higienizado e passou por uma organização preliminar”, diz a Coordenadora. “Mas ainda será analisado e podem surgir outros documentos inéditos.” Ela garante que consultas ao material podem ser feitas mediante análise dos pedidos encaminhados pelos pesquisadores. O arquivo de Otto Lara Resende, sozinho, soma no IMS 8.547 cartas, 6 mil livros, 2 mil documentos datilografados e manuscritos, 12 mil fotografias, desenhos, recortes de jornais. O escritor e jornalista celebrizou-se principalmente como grande frasista, de quem teria dito o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues: “A grande obra de Otto Lara Resende é a conversa. Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender suas anotações em uma loja de frases”.
dois meses, em 1969. Discursou na Passeata dos 100 mil, no Rio, em 1968, e escreveu vários artigos contra a ditadura no jornal Correio da Manhã. Em 1980, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores, do qual se aproximou por meio do crítico Mário Pedrosa. Durante o Governo de Getúlio Vargas, ao lado de Otto e outros intelectuais, editou o clandestino Liberdade. Também ajudou a criar a UDN, legenda pela qual se candidatou a deputado federal, mas da qual se desligaria para fundar a Esquerda Democrática, que deu origem ao Partido Socialista Brasileiro. O arquivo de Pellegrino foi doado pela família à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. E no começo dos anos 1990, por sugestão de Otto ao editor Paulo Rocco, Werneck organizou pela primeira vez os poemas do psicanalista, num volume intitulado Minérios Domados, publicado em 1993. Fernando Sabino teria sido o menos atuante na política, até por razões familiares, diz Werneck. “Com certeza viveu, durante alguns anos, a saia justa de quem por uns dez anos foi casado com uma filha de um político getulista, o governador mineiro Benedicto Valladares.” Os quatro amigos teriam inspirado diretamente os personagens de O Encontro Marcado, sua principal obra. “Fernando Sabino, dos quatro, foi o mais determinado na perseguição do sonho literário. Publicou seu primeiro conto aos 12 anos de idade e o último livro, o romance Os movimentos simulados, pouquíssimo tempo antes de
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AMIZADE QUATRO CAVALEIROS PARA SEMPRE
morrer.” Mas Paulo Mendes Campos parece ter sido o mais bem preparado, na opinião do pesquisador, para a literatura. Otto, homem de muitos talentos, afirma, dispersou-se em mais de uma atividade, o jornalismo sobretudo. “Foi amigo pessoal de todos os grandes capitães da nossa imprensa: Paulo Bittencourt, no Correio da Manhã; Nascimento Brito, no Jornal do Brasil; Orlando Dantas, no Diário de Notícias; Horácio de Carvalho, no Diário Carioca; Roberto Marinho, em O Globo; Samuel Wainer, na Última Hora; Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa, e, por último, na Manchete, de Adolpho Bloch, que certo dia lhe sugeriu construir, no Cemitério Israelita da Vila Rosaly, uma sepultura conjunta, para os dois, argumentando: “Preciso ter, na eternidade, um bom vizinho para conversar.” Quem conta é Murilo Melo Filho, em depoimento à Academia Brasileira de Letras, em novembro de 2002, para edição comemorativa dos 80º aniversário de Otto Lara Resende. Na mesma coletânea de artigos dedicados ao Imortal mineiro, o jornalista Benício Medeiros, autor de A Poeira da Glória, sobre Otto, destaca o livro O Príncipe e o Sabiá, coletânea de perfis escritos pelo cavaleiro frasista: Françoise Sagan, Jânio Quadros, Guimarães Rosa, Getúlio Vargas, entre outros. Para ele, o jornalismo representou o “lado solar” da personalidade de Otto – “tem a ver com sua persona pública, à qual se relacionam também as tiradas espirituosas do causeur – do mestre da conversação que ele foi – e a grande coleção de histórias, ficção ou não, nas quais ele aparece como agente ou protagonista”. Como jornalista, avalia Medeiros, Otto teria optado pela moderação, sem acentuar demais os defeitos dos entrevistados. Ao contrário do que faria nos contos. “Foi um escritor radical”, escreve no depoimento à ABL. Radical e contraditório, com textos que tensionavam a formação modernista e um temperamento barroco. “Poderíamos colocar Otto ao lado de Lúcio Cardoso e Cornélio Pena, escritores de ruínas e de meninas mortas”, diz. Não há final feliz nos contos. Apesar do envolvimento mais intenso de Otto com a imprensa, Werneck acredita que, dos quatro, o que mais marcas deixou para o jornalismo teria sido Fernando Sabino, justamente o menos jornalista deles. “Seu modo despojado, rápido, elétrico de narrar – seja nas crônicas, seja no romance O Encontro Marcado – influenciou e segue influenciando a formação de jovens jornalistas”, afirma o cronista, que escreve aos domingos em O Estado de S. Paulo e tem ele mesmo dois livros de crônicas (Esse Inferno Vai Acabar, de 2011, e O Espalhador de Passarinhos & Outras Crônicas, de 2010). Um mais jornalista, outro mais político, aquele amplamente poeta, este romancista. Tanto faz. Sobre esta parceria incomum escreveu Sabino, na abertura do Cartas na Mesa: “Posso mesmo afirmar que, se eu não tivesse conseguido fazer mais nada na vida, esta amizade tão intensa, duradoura e valiosa, já teria sido o melhor que eu poderia desejar ”. 30
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ARTE
As duas mortes de Morat, o revolucionário L’Ami du Peuple O francês David e o norueguês Munch colocaram em celebradas telas os momentos finais do Amigo do Povo P OR P AULO R AMOS D ERENGOSKI
A expressão da tragédia em Munch Edward Munch (1863-1944) foi um dos poucos pintores escandinavos a ter sucesso mundial. Influenciado por Bosch, Bruegel, El Greco, Van Gogh e Goya, tornou-se o gigante do expressionismo, estilo que representa as sensações subjetivas d’alma, as expressões (e não impressões) transmitidas à realidade objetiva. Munch foi além do expressionismo. Topógrafo do esgoto humano, aprofundou-se na sordidez, no mundo dos degenerados, dos loucos, das hetairas, da miséria, chegando até a negar a preocupação social para mergulhar nos abismos interiores, muito mais escuros que os abismos exteriores. E de lá não saiu. Viveu uma época trágica. Leu Freud. Assistiu à ascensão e às primeiras vitórias do nazismo. Foi perseguido pelos Quislings da Noruega, preso, espancado e humilhado pela Gestapo. Mas não aderiu aos algozes de seu país. Ao contrário, denunciou em seus quadros o totalitarismo e a guerra como vampiros que sugam a energia positiva das pessoas. Suas exposições sempre foram tumultuadas. Assim como influenciou toda
uma época, inclusive o brasileiro Oswaldo Goeldi e o grande Lasar Segall. Suas telas, além de trágicas e depressivas são misteriosas, como a Puberdade, que transmite a dúvida de uma adolescente nua diante do futuro. Ou O Dia Seguinte, onde mostra uma prostituta esmagada pela sociedade à qual vende seu único bem: o corpo desengonçado. Mas é na Morte de Marat, o grande tema de Da-
vid, que ele revela todo o gênio revolucionário. Ouso afirmar que sua visão do infeliz “Amigo do Povo” é mais dramática do que o clássico de David. O corpo do grande orador se desmancha, ensangüentado, aos pés da espiã Charlotte Corday... Depois desse quadro ele nada mais quis produzir. Morreu solitário, no interior de sua verde e branca Noruega.
A arte complexa de David não é fácil de ser sintetizada. Seu classicismo nada tem de acadêmico. É espiritual! Ouso dizer que é precursor do Iluminismo na pintura. Com a restauração da oligarquia na França ele começou a se apagar.
A nova burguesia não mais o admirava. Foi para o campo, onde faz alguns trabalhos sensuais, como se ainda sonhasse com o vento revigorante das Revoluções. Ou os palácios atapetados de seu grande Imperador...
A grandeza da França em David Louis David (1748-1823) foi o pintor preferido da aristocracia francesa até 1789. Com a vitória da Revolução, tornou-se amigo de Robespierre e produziu o quadro clássico da morte de Marat na banheira, aos pés de Charlotte Corday. Com a ascensão do Pequeno Grande Corso, eternizou-o no painel Consagração de Napoleão. Na política foi um veleiro, tendo sido deputado à Convenção. Na arte foi uma rocha. Recriou, no mais alto grau, a arte neoclássica das telas imensas, severas, claras, que até hoje são o orgulho do Museu do Louvre. Influenciado por Caravaggio, dominou o claro-escuro dos grandes espaços, pintando o mais próximo possível da realidade. Adorava temas mitológicos, com personagens grandiosos como estátuas. Sua linguagem adquiriu extraordinária lucidez e um vigor visual impressionante. Em uma de suas maiores obras, O Rapto das Sabinas, consegue disciplinar com harmonia clássica o tumulto teatral da cena histórica. E A Consagração de Napoleão tem tal majestade e força interior que jamais seriam alcançadas em outra pintura. Por sua vez, A Morte de Marat é de frieza e tragédia espantosas.
CENTENÁRIO
Jorge Amado, O Visionário Por Lygia Fagundes Telles E SPECIAL PARA O J ORNAL DA ABI
ACERVO FUNDAÇÃO CASA DE JORGE AMADO
Começo por dizer que há escritores que eu admiro e há escritores que eu amo. Jorge Amado eu admirava e amava. Creio que desde a juventude ele guardava a clássica carteirinha do Partido Comunista, sempre fiel aos seus ideais e princípios, era um revolucionário corajoso e ativo. Mas tinha um coração conservador, isso é possível? Sim, é possível porque lá nas profundezas estava o ser humano apaixonado pela família e pelo Brasil. Jorge Amado era um excelente chefe de família que gostava de ver em redor a mulher, os filhos. Os irmãos. Um patriota fervoroso e tão lúcido, ah! Ele sabia do desamparo do nosso povo sem creches e sem escolas. E devia sofrer no seu amor pela nossa natureza, a bela natureza bruta tão ameaçada nesse antigo processo de extinção. Nenhuma contradição no ardente coração rebelde e no coração disciplinado, conservador. Na singela definição dos dicionários, conservador é aquele que guarda e preserva o que considera ameaçado de extermínio. Eis aí, o brasileiro e o seu sonho maior: defender o Brasil. Eu me lembro daquela tarde na Academia Brasileira de Letras quando Jorge Amado, com a voz da paixão, falou na Amazônia tão ameaçada... A bela Amazônia com seus rios e árvores e bichos... O ardente Jorge Amado e o seu amor pelos nossos usos e costumes, a nossa dança, a nossa música... Jorge Amado e a respeitosa devoção pelas tradições de origem afro-indígenas, sim, as raízes celebradas com o saudável amor pelo ofício, a vocação. A paixão por Karl Marx e que teve conseqüências tão duras nos nossos anos de chumbo, quando então ele foi perseguido pela ditadura e teve que sair do Brasil. As longas andanças no exílio. E sempre escrevendo seus belos livros e o reconhecimento nas traduções que se multiplicaram, inglês, francês, alemão, espanhol... Jorge Amado e a sua obra. Acesa lá nas profundezas a chama da esperança apesar da desesperança em face dos nossos políticos mascarados, ai! A ambição, essa inesgotável vontade de dinheiro e de poder. A melhor solução? Fazer as denúncias na linguagem do povo com os personagens desse povo: as beatas histéricas e os vadios beberrões, os poderosos com sua sede e também os românticos, os enamorados e os pescadores, ah! Tanta gente palpitando nos contos e romances. Sem esquecer o humor, a massa dos simples tocando a vida sem as tais indagações filosofantes. E o imprevisto com a força
do destino impelindo este e aquele personagem para as armadilhas criadas no casario de janelas abertas para o céu. Em meio dos personagens sem mistura, assim expostos, os personagens mais complicados, cavernosos. Ainda um elogio para o tato e sutileza do escritor em lidar com a variada condição humana e os sete pecados capitais: a Luxúria em primeiro lugar acompanhada pela espumejante Cólera meio enleada na verdolenga Inveja... A Avareza de unhas roídas e a gelada solidão da Soberba. A servidão da Gula e no princípio (ou no começo?) a mornidão da Preguiça. Jorge Amado gostava de conviver com os amigos nos intervalos desse trabalho que exige solidão. E a família liderada pela companheira e camarada de letras Zélia Gattai. Encontrei-o tantas vezes em reuniões literárias aqui e no exterior, ele ia, dava a mão para a Zélia e abria o sorriso cordial. Cordial era também a casa da Rua Alagoinhas, tantas plantas. Tantos quadros e objetos, vigorando a ingênua arte primitiva em meio do esplendor barroco. E os bichos, ele gostava de cachorros e de gatos. Aceitava os laços humanos e por isso concor-
dou em concorrer à vaga na Academia Brasileira de Letras. Eleito por unanimidade, vestiu o fardão verde-folha com debruns dourados, no feitio da Academia Francesa de Letras, que foi o nosso modelo. Há mais de cem anos Machado de Assis fundou a nossa Academia. Finalidade principal? Preservar (olha aí, preservar) e defender a língua e a literatura. Tão livre o escritor Jorge Amado. Ao mesmo tempo, tão vinculado a essa Bahia de Todos-os-Santos. Fugia, às vezes, para escrever em Paris, onde tinha um pequeno apartamento: a glória consola, sim, mas se é excessiva pode também abafar. Quando se sentia fragilizado (o frio) ou quando simplesmente estava com saudade, calçava os sapatos de andarilho, dava o braço para Zélia e vinha para a casa perto do mar. Amava as cores vivas com motivos na natureza, as camisas eram alegres. As gravatas coloridas, combinando com a bela cabeleira branca assim ao vento. Amava também a fogosa poesia social de Castro Alves, A Praça! A praça é do povo como o céu é do condor. “Jorge Amado, o Visionário” devia ser o título deste depoimento.
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LITERATURA ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
O repórter Jorge Amado O escritor baiano teve uma breve experiência como jornalista no começo da década de 1940 ao escrever sobre países que visitou para a revista Vamos Ler! P OR G ONÇALO J ÚNIOR
Antes de completar 30 anos de idade, em 10 de agosto de 1942, o escritor baiano Jorge Amado (1912-2001) acumulava uma história de vida no mínimo intensa. Esse filho de Ferradas, distrito de Itabuna, que estudou em Salvador, já era um escritor consagrado e militava de modo devotado no Partido Comunista Brasileiro havia um bom tempo – por isso, fora preso pela primeira vez, aos 24 anos, em 1936, um ano depois de se formar bacharel em Direito. Fora tão precoce como escritor que seu primeiro romance, O País do Carnaval, chegou às livrarias enquanto ele completava 18 anos. Aos 25 anos, veio o livro que o consagra, o ainda hoje vigoroso Capitães da Areia. Com a ditadura do Estado Novo, imposta em novembro de 1937, seus livros foram qualificados de subversivos e queimados pelas ruas da capital baiana. A pressão não cessou e Amado se viu obrigado a deixar o Brasil em 1941, quando se exilou na Argentina. Antes, porém, correu a América Latina; para sobreviver, o escritor, que quando adolescente foi repórter do Diário da Bahia, reencontrou no jornalismo uma faceta sua quase desconhecida, até mesmo por parte de seus estudiosos. O correspondente
Em 1941 e 1942, Amado trabalhou como uma espécie de correspondente internacional pelo Continente da revista literária Vamos Ler!, que circulava semanalmente com sede no Rio de Janeiro desde fevereiro de 1936. Em novembro de 1938, ele começou a colaborar na publicação com um curioso roteiro turístico de cidades americanas, de Nova York a Montevidéu, locais que havia conhecido nos últimos anos. Itinerário de dez cidades começava na capital uruguaia, com descrição em tom poético. “Na noite de estrelas e lâmpadas elétricas, Montevidéu me recebe depois de quatro dias de pampa. Antes fora o campo sem fim, a planura sem limites, retas que não acabavam”. Depois, ainda na mesma cidade, num dia de muito sol, viveu a louca correria pelas praias rivais de Copacabana – sim, lá também há a praia com esse nome. “Pocitos e Carrasco se abrem ao sol, brilham suas águas, brilha a branca areia onde os pés se afundam”, prossegue. “E folhas de palmeiras balançando ao vento trazem a música de um tango que no perdido de um bar can32
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ta um marinheiro nostálgico. Na gloriosa manhã de Montevidéu o sol domina a cidade, envolve numa carícia longa as mulheres lânguidas da praia.” Mutações de Buenos Aires
Na tarde de intensa vida de Buenos Aires, descreve Amado, “ex-cidade maior de Sul-América”, muda a roupa. “Ruas que desaparecem debaixo de picaretas, ruas que surgem de repente, avenidas novas que cortam a cidade. Procuro a minha Buenos Aires de há dois anos nesta tarde de prédios que operários derrubam, de prédios que operários constróem.” Com estilo, ele prosseguia: “Procuro inutilmente minha Buenos Aires de há dois anos nestas ruas que já não são as mesmas, que agora são as avenidas mais largas de SulAmérica; Buenos Aires muda a roupa. Está vestindo um vestido do mais alto luxo, inutilmente procuro Buenos Aires que deixei há dois anos. Mas na madrugada fria de Esmeralda, Corrientes, Maipu e Flórida, na madrugada que vem dos cassinos e dos cafés, eu acho de novo minha cidade de Buenos Aires. Era a mesma cidade de tangos tristes, de gente que só vive na noite, de gente para quem a luz do sol é demasiadamente forte.” Amado descrevia mulheres que passavam com sua elegância, envolvidas em casacos de peles, homens que fumavam mansamente nas esquinas e que tinham uma atitude de eterna espera. “Buenos Aires que vive mais de noite que de dia”, jornaleiros que em meio ao silencio gritavam as últimas notícias. “Ruas cheias na madrugada”.
Num desses momentos, o escritor baiano viu um homem passar com um violino, uma mulher que saía de um café e ria em gargalhadas. “Agora o tango não vem de um barco ao sol. Vem de um café de Maipu, do escondido de um café, de entre a fumaça de cigarros e é um tango infinitamente mais triste.” De Lima, no Peru, Jorge Amado observou que gostaria de falar com palavras cheias de amor e de agradecimento. E escreveu quase uma carta: “Minha cidade de Lima. Queria falar de ti longamente, em surdina, num tom romântico. Nosso amor foi um amor à primeira vista. Ameite, minha cidade de Lima, desde o primeiro momento. Quando o automóvel que me trazia de Callau atravessou as tuas primeiras ruas e vi teu primeiro sorriso acolhedor através do balcão daquele palácio colonial, meu coração ficou sendo teu e desde então meus olhos vivem voltados para o teu espetáculo magnífico”. Ele observou que bem sabia que não sorriam moças dos balcões que estavam em todas as “coisas” de tantos anos e de tanta beleza. Mas, como uma sombra, uma delas fugia de véu negro, de um balcão colonial. E outra que viu meditando em “El passeo de los recueros”. Encontrou ainda quem lhe contasse histórias da sua vida, histórias de seus palácios, dos amores dos vice-reis pelas mestiças peruanas. E se deparou também com quem lhe contasse da civilização dos incas, quem explicasse o significado das ruínas de Casco. “E cada vez te amava mais, cada vez sonhava mais em viver debruçado nos teus
balcões de calarido, ouvindo de uns lábios morenosos histórias de amor que se passaram aqui”. Na capital do mundo
Na capital do mundo, como poderia ser chamada Nova York, Jorge Amado viveu dias dos mais intensos, como se observava em suas descrições entusiasmadas de suas ruas e de sua gente. Eram aqueles os tempos áureos da cidade, com a febre do cinema e do rádio e uma franca recuperação da recessão econômica que parara os Estados Unidos em 1929. “O ônibus arranca pelas ruas de Nova York. Por baixo passa um trem, por cima, passam automóveis. Ruas sobre ruas. Rua debaixo das ruas. O perfil dos arranha-céus se debruça sobre a cidade de Nova York”. Sua gente passava apressada. E a descrevia com olhos de poeta. Ao invés do olhar do comunista, a leitura do impacto de um lugar fascinante, cheio de luzes e vida. “O tempo é pequeno para a grandeza da cidade. As ruas se fecham sobre o viajante, humilhado na cultura dos prédios. Autos que buzinam, bondes e caminhões que correm”. Para ele, todas as línguas se encontravam ali, ditas por homens de todas as cores. “Capital do mundo, povoada por todas as raças.” As cores do México
Três anos depois, do México, ele mandou suas impressões sobre a cidade cultural daquele país, a própria capital, e um extenso perfil de Diego Rivera (18861957), um dos maiores pintores mexicanos de todos os tempos. Em México, mú-
sica e colorido, publicada na edição de 17 de julho de 1941 de Vamos Ler!, ele fez uma espécie de relato e impressões de viagem sobre o país que pretendia visitar por um bom tempo. “Logo que desembarcamos, seja no porto cinematográfico de Manzanilo, na costa do Pacífico, seja no porto heróico de Vera Cruz, na costa atlântica, a sedução do México nos vem através da música e do colorido”, começava ele. Manzanilo, disse em seguida, dava-lhe a impressão de ter sido um lugar “arrancado de um filme e plantado à beira do mar”, de tão belo que era. “Todas as cores debruçadas alegremente sobre as palmeiras, e sobre as casas, todos os ritmos musicais partindo da cidade para o mar-oceano”. O brasileiro pareceu se deparar com um daqueles dias de festa – que no México, aliás, costuma durar muitos dias. Dos grupos de “mariaches” (violeiros) que atravessavam as ruas tocando e cantando, apenas pelo prazer de tocar e cantar, dos “sarapis” pintados de vermelho, preto e azul, das roupas decorativas dos homens, dos trajes belíssimos das índias, chegava uma visão que parecia ao viajante, de acordo com sua descrição, irreal, de tão maravilhosa. Do mesmo modo, a arquitetura de Guadalajara o impressionou bastante. Desde as igrejas, “tão sedutoras”, aos palácios encantados, tudo o impressionava. Guadalajara era, para ele, o lugar onde moravam os índios que sabiam os segredos dos belos jarros, da pintura em barro “e os guardam nos subúrbios longínquos”. Cada prato, cada xícara era uma obra de arte, da grande arte popular do México. Aqui era o Jorge Amado comunista que escrevia, tão sensível a todo tipo de expressão popular. Mais que uma reportagem, ele traçou daquele país um guia turístico entusiasmado para quem pensava em conhecer suas principais atrações turísticas. Ficou impressionado, entre as belezas naturais, do Patzcuaro, o lago calmo e de beleza única, apesar dos vulcões avistados ao seu redor, tanto que o estimulou a dar um tom poético à sua descrição. “Canoas deslizam mansamente, os índios fitam o céu numa indiferença nostálgica. É uma viagem de sonho esse contornar do Iago Patzcuaro de crepúsculos sem rivais e de manhãs alucinantes”. Seu olhar atento permitiu ver Morelia como uma cidade “cor de rosa”, com jardins internos em cada casa, “tranqüila como um domingo de bairro
pobre, envolvente como certas mulheres modestas, mas donas de uma beleza que repousa os olhos da gente”. E se Morelia era cor de rosa, Puebla era branca. “Branca de mármore, branca como carne de mulher nórdica. Orgulhosa dos seus tesouros arquitetônicos, cheia de uma multidão de pequenas coisas em mármore e em madeira, deliciosos trabalhos dos índios”. O maestro Rivera
Duas semanas depois, a revista trouxe extenso perfil que Jorge Amado escreveu de Diego Rivera. No título, destacava que o pintor modernista havia lutado durante a revolução mexicana ao lado de Pancho Villa (1878-1923). O escritor foi encontrálo no número 2 da Rua Palma, em San Angelin, Colônia de Obregón. Ele explicou que por diversas vezes voltou ao endereço em que uma cerca de cactos guardava duas casas e, entre elas, um automóvel e uma camionete, porque a entrevista com o “maestro” Diego Rivera fora realizada em várias etapas. “Da primeira vez, o pintor trabalhava no retrato de uma senhora que pousava sentada numa destas Iindas e típicas cadeiras mexicanas. Comigo vai um jornalista chileno que já se encontra no México há bastante tempo e é quem me apresenta a Diego Rivera. Enquanto atravessamos o espaço que separa a casa de moradia do pintor ‘para aquela que é, toda ela, o seu estúdio, fico me recordando da obra realizada por Diego Rivera. Antes de o mundo saber notícias do México pelas suas iniciativas agrárias, pela feição democrática da sua política, soube notícias da sua nova pintura que assombrava a Europa e a Norte América”. Não podia ser diferente o perfil que Amado fez do artista, ao destacar seu envolvimento em questões políticas e sociais, algo que muito o interessava. “Um punhado de pintores, com Diego Rivera à frente, executava notáveis afrescos nos palácios públicos e escolas mexicanas, dando à sua pintura um sentido social não só no conteúdo como na forma: voltando ao afresco, a forma de pintura que está mais próxima do povo”. Para Amado, enquanto a Europa se perdia no cubismo e nas demais formas de uma pintura de fim de época, o México se firmava com uma pintura diferente e nova, pintura de uma classe que ascendia. “Do México, dos seus pintores, partiu realmente a primei-
ra voz por uma arte mais humana, liberta da torre de marfim que colocava o artista longe do mundo e dos seus semelhantes”, observou Amado. Ele lembrou em seguida nomes que atravessaram as fronteiras do país na pintura, além de Rivera, como Orozco, Siqueiros e “quantos mais!” Lembrou ainda que a Europa e os Estados Unidos, passada “a alta e rápida febre dos ‘ismos’”, começaram a ver que a razão estava com os mexicanos. Não por acaso, ressaltou, os “afrescos” de Rivera e de Orozco foram então admirados unanimemente no mundo inteiro, através de incontáveis reproduções. Ele lembrou também da “rumorosa questão” de embate público – pela imprensa – com o magnata Nelson Rockefeller (1908-1979), que o pintor teria vencido. Explica-se. No RockefelIer Center, disse Amado, Rivera
O pintor mexicano Diego Rivera concedeu uma grande entrevista a Jorge Amado, cuja matéria foi ilustrada com este desenho.
havia executado, sob contrato com o milionário americano, os afrescos das paredes do hall de entrada. “Mas as figuras rudes pintadas pelo mexicano que lutara ao lado de Pancho Villa não agradaram ao milionário, que mandou borrar as paredes sem nenhum respeito pela beleza que elas continham.” E acrescentou: “Naquele momento, o mundo inteiro, todos os jornais e revistas, se preocuparam com a questão entre o pintor social do México e o milionário americano.” Amado descreveu em seguida o encontro dele e do colega com o pintor: “Subimos dois lances de escada, Diego Rivera nos abre a porta do seu estúdio, nos apresenta a senhora que pousa. O pintor é um gigante sorridente, gordo e alto, vestido com uma calça de mescla azul e uma blusa operária, calçado com uns sapatões imensos, um papagaio no ombro, gritando enquanto Rivera pinta”. A experiência jornalística de Jorge Amado no México e em muitas outras cidades do continente americano mostrou seu completo domínio narrativo quanto a falar com o público desse tipo de veículo, ao mesmo tempo em que foi enriquecido por elementos literários que somente sua sensibilidade de escritor poderia captar. Nesse aspecto, sobressaiu como passagem exemplar o modo como descreveu o pintor mexicano. “Seu jeito de ser e sua voz me recordam o meu amigo Oswald de Andrade e é falando do grande escritor brasileiro que iniciamos a nossa primeira ‘charla’. O pintor continua trabalhando, ao mesmo tempo em que nos explica o significado religioso ou guerreiro das esculturas maias astecas que enchem as prateleiras do estúdio. Do outro lado, umas cabeças de crianças recémdesenhadas mostram toda a pujança da arte de Diego Rivera.” A conversa se generalizou em seguida. Conversou-se sobre tudo. “Rivera fala principalmente do seu desejo de visitar o Brasil e o Peru. Pergunta sobre o Brasil, suas coisas, seus costumes, coisas das religiões dos negros, sua música, sua dança. Depois se fala em pintura – dessa coisa dos mexicanos estarem fazendo pintura mural num momento em que os europeus se encontravam ainda em pleno cubismo.” A excelência de descrições assim confirmava o talento nato do jovem escritor baiano. E um presente para os afortunados leitores daquela inesquecível revista do Rio de Janeiro.
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VEÍCULO
UMA REVISTA BOSSA NOVA Livros de Ruy Castro e Maria Amélia Mello recuperam a importância revolucionária da revista Senhor para a modernização da imprensa brasileira a partir da década de 1960.
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décadas e cuja obra edita na José Olympio. Ele havia trabalhado na revista e, quem sabe, talvez tivesse guardado alguns números. Sim, Gullar disse que havia pouquíssimos na estante. E o que faltava à amiga estava no meio. Propôs comprar e levou o exemplar de presente. Ela foi imediatamente buscá-lo. Mas a inquietação não acabou. Era preciso fazer algo para que as novas gerações conhecessem aquela maravilha de revista. “Quando vi o conjunto, a coleção completa na minha frente, comecei a pensar em fazer algo.” Como sabia que seu amigo Ruy Castro tinha também o mesmo tesouro, propôs a ele uma parceria: um livro com o melhor de Senhor. Empreitada aceita, ela passou cinco anos em busca de recursos para viabilizar um
livro de luxo com textos de memórias e sobre sua importância histórica, além de uma seleção do que a revista publicou. Até que a Imprensa Oficial de São Paulo comprou a idéia. Não só comprou, como o projeto cresceu e, em vez de apenas um livro, foram lançados dois volumes: O Melhor da Senhor e Uma Senhora Revista. Maria Amélia ficou responsável pela concepção e coordenação do projeto, enquanto Ruy cuidou de escolher os textos, fotos, ilustrações e cartuns. “Optamos por seguir a diagramação original, com o mesmo formato físico, inclusive usamos anúncios da época”, observa a editora. Um dos cuidados foi não repetir temas. “Muitas coisas, sem dúvida, envelheceram, principalmente ligadas à política e à economia daquele período”, expli-
ca. O resto, porém, continua atual, contemporâneo. Ícone de uma época
Para ela, embora fosse ícone de uma época de ouro para o Rio de Janeiro – a publicação nasceu e existiu ao mesmo tempo que a Bossa Nova –, Senhor era uma revista nacional, brasileira em sua essência e seu conceito. “A elegância está muito presente ainda hoje em suas páginas e nós respeitamos isso nos dois volumes que resultaram da idéia”. Ela espera que O Melhor da Senhor tenha um efeito multiplicador, que surjam dissertações, teses e livros diversos sobre sua importância para a História do jornalismo brasileiro. “É algo possível que aconteça a partir de agora porque não se tem acesso fácil à coleção e esses dois volumes vão permitir isso”. Não foi fácil concluir os volumes. Maria Amélia simplesmente foi atrás de autorização de todos os editores e colaboradores da revista; no caso de quem havia falecido, dos seus herdeiros. Todos os localizados, sem exceção, gentilmente, cederam os direitos para textos, fotos, desenhos, cartuns. “Eles se aliaram em volta deste sonho contagiante. Algumas pessoas, apesar de nosso empenho digno de detetive, não foram localizadas”, lamenta. Toda essa dificuldade, claro, pode ser explicada pelo tempo. “Não podemos esquecer que mais de cinco décadas já se foram desde o número um, que chegou às bancas em março de 1959. É natural não achar muiJAGUAR
aria Amélia Mello era uma garotinha de seis anos de idade quando viu pela primeira vez um exemplar da revista Senhor, que seu pai acabara de comprar. Foi uma revelação para a família quando ela, com algum esforço, conseguiu juntar as letras e soletrar o nome S-e-n-h-o-r! Até então, parece, ninguém em casa tinha se dado conta de que a menina estava alfabetizada. “Senhor era uma revista tão bonita que até uma criança parava para ver”, recorda Maria Amélia, mais de meio século depois, em entrevista ao Jornal da ABI. A proximidade com a publicação ia além do exemplar novo que “aparecia” a cada mês em sua casa. Só muito tempo depois, Maria Amélia descobriria que morava na mesma rua do QG da Senhor, a Santa Clara, em Copacabana, numa via que era muito importante para o Rio de Janeiro da época. A menina fez-se moça, tornou-se uma das mais importantes editoras de livros do País – há 22 anos comanda o catálogo da José Olympio Editora – e nunca deixou de usar o nome de Senhor em vão, como brinca ao recordar sua via-crucis para conseguir completar sua coleção de 59 números. Um dia, enfim, descobriu numa arrumação de sua biblioteca que o desafio estava mais próximo de acabar do que pensara. Faltava uma edição apenas, de maio de 1962. Não sabia ela que num momento desses – dizem os colecionadores – o tormento e a angústia podem ser ainda maiores e a pessoa até comete alguma loucura para completar sua coleção. Maria Amélia, então, lembrou-se do poeta e escritor Ferreira Gullar, amigo de
SALOMÃO SCLIAR
tas pessoas, o tempo vai dispersando os amigos, modificando a arquitetura das cidades, espalhando outros sons, enferrujando as expectativas, imprimindo diferentes ritmos ao dia- a-dia, encurtando distâncias, tirando personalidades de cartaz, embranquecendo os acontecimentos, chegando mesmo a trocar de lugar a capital de um país”, observa Maria Amélia na introdução do livro. “O tempo é poderoso, também senhor. Mas, o fio da memória, no entanto, costurou, palavra por palavra, um livro de verdade, contando as muitas histórias da Senhor. Era o mínimo que se podia construir para materializar uma catedral de talentos.” Quatro dos textos do volume Uma Senhora Revista são inéditos: os de Maria Amélia, Ruy Castro, Nahum Sirotsky e Luiz Lobo. Tanto trabalho deu à editora um conhecimento amplo do valor de Senhor, que ela não tinha antes de começar as duas edições. A partir dessa experiência, a coordenadora do projeto destaca a revista pelo seu perfil editorial arrojado, inovador, que antecipa, em muito, tudo o que se viria fazer depois no jornalismo brasileiro na década de 1960 – marcada por lançamentos históricos, desde o tablóide Pif-Paf à revista masculina Fairplay e à informativa Realidade. “Talento do mais puro malte”, observa. Com seu formato 23,5 X 31,5 cm, impresso em papel fosco, ilustrações belíssimas e muito rigor na seleção dos temas, artigos e reportagens, Senhor tinha, segundo Maria Amélia, “harmonia afinadíssima entre o texto e a arte gráfica, produzindo um resultado de excepcional qualidade. E novidade!” Ruy, um entusiasta da revista, a descreve como uma espécie de realeza da imprensa brasileira, “com toda a nobiliarquia, as sucessões dinásticas e o cartório de mordomias, rapapés e fidalguias que fazem o cardápio da realeza. E, como esta, depois de um período de opulência e fartura, viu-se também em chinelos, com mais contas a pagar do que as armas e os brasões em seu escudo”. Em entrevista, o escritor diz que, em sua opinião, a relevância de Senhor só aumentou com o passar das décadas. “Pela primeira vez, li a coleção inteira – 59 números, publicados de março de 1959 a janeiro de 1964 – e lamentei não ser uns cinco ou dez anos mais velho para ter feito parte daquela turma. Quem você imaginar de jornalista ou escritor importante naquele período passou pela Senhor”. Para se ter uma idéia, acrescenta, Clarice Lispector colaborava quase todo mês e boa parte de seu grande livro de
contos Laços de Família foi escrito para a revista. “Guimarães Rosa telefonava todo mês para Nahum Sirotsky e Paulo Francis, oferecendo colaboração. Aliás, Francis era o principal editor da revista, que era dirigida por Nahum. Depois, Senhor teve outros diretores, como Odylo Costa, filho, Reynaldo Jardim e Edeson Coelho, que nunca deixaram a peteca cair.”
Anúncios criativos, muitas vezes produzidos especialmente para a revista, capas antológicas e ensaios fotográficos com belas mulheres: a revista Senhor marcou época com um time de colaboradores de alto nível e um projeto inovador e único.
No mundo da palavra
E o que envelheceu? Ruy destaca que, apesar das “incríveis bolações gráficas”, a cargo de gênios como Carlos Scliar, Glauco Rodrigues, Bea Feitler e Jaguar – “olha que timaço!” –, a revista tinha muito texto, composto em corpo oito e com entrelinhamento mínimo. “Para a época, isso era perfeitamente aceitável, porque vivíamos no mundo da palavra. Hoje daria dificuldade de leitura. Por isso, o diretor de arte de O melhor da Senhor, nosso grande Hélio de Almeida, adaptou a parte do texto ao olhar contemporâneo, sem prejuízo da cara gráfica da revista.” Em sua opinião, continua insuperável, vanguardista o visual, que ainda “é de fazer cair o queixo, graças àqueles artistas gráficos que a produziam”. Ruy chama atenção para as facilidades dadas pela Imprensa Oficial para reproduzir “tal e qual” as ousadias de paginação, papel, cores etc., que o projeto exigiu. “Até os anúncios de Senhor eram criativos – e temos vários deles também, de produtos que não existem mais. Ou seja, como se não bastasse, o livro é uma verdadeira viagem no tempo, tanto para quem viveu como para quem não viveu aquela época”. Para Ruy, não seria por falta de material que se faria um grande livro. “Imagine um único volume contendo Paulo Francis, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Armando Nogueira, Carlos Drummond, Tom Jobim, Antônio Maria, Vinicius de Moraes, Cony, Marques Rebelo, Campos de Carvalho, Antônio Callado, Sartre, Dorothy Parker, Jorge Amado, Tinhorão, Carpeaux, Clarice, Rubem Braga, Scott Fitzgerald, Ferreira Gullar, Gláuber Rocha e muitos outros. Até Ibrahim Sued (risos) está lá.” Do que foi pouco repercutido depois, ele selecionou “uma sensacional pequena História do Brasil”, escrita por Graciliano Ramos, em dois artigos. O detalhe é que Graciliano morreu seis anos antes de a revista ser fundada. O escritor conta que começou a ler Senhor aos 12 ou 13 anos, em 1960 ou 1961. “Ficava maravilhado com aquela, digamos, informalidade formal – os textos se dirigindo ao leitor como ‘o senhor’, como se
fosse um papo entre duas pessoas que se respeitavam. Hoje sei que aquilo era coisa do Luiz Lobo, que também sempre admirei”. Quando Ruy começou a trabalhar profissionalmente, em 1967, Senhor acabara havia três anos. Mas se orgulha de pelo menos ter colaborado ou feito parte de alguns veículos que foram legítimos sucessores da revista: os vários “Livros de Cabeceira”, tanto o do homem quanto o da mulher, publicados pela Civilização Brasileira, de 1967 a 1969, e a fabulosa revista Diners, em 1968-1969, todos editados pelo Paulo Francis; e foi o último editor da Fairplay, revista masculina assassinada pela censura na ditadura militar. Em seu histórico, no volume Uma Senhora Revista, Ruy ressalta que Senhor foi a última de uma grande tradição de revistas românticas brasileiras. Anos depois, prossegue ele, as revistas mensais que a sucederam “trocaram sua superioridade majestática e seu olímpico desprezo pelos fatos por uma espécie de urgência republicana e um excessivo apego à atualidade”. O curioso é que, ao surgir, diz ele, nada podia parecer tão moderno e “de vanguarda” quanto Senhor. “Em pouco tempo, ela faria parte de uma nova estética que incluía Brasília, o concretismo, a Bossa Nova, a revolução gráfica do Jornal do Brasil, os anúncios da Volkswagen e do Banco Nacional, as capas dos discos da gravadora Elenco, os móveis de linhas retas – uma estética de formas claras, enxutas, essenciais.”
Curiosa é a descrição que ele faz do leitor imaginado ou idealizado para a revista e que dava um norte para o produto editorial criado por aquela geração brilhante de jornalistas e artistas gráficos: “O homem (e a mulher) a quem essa estética se dirigia era o adulto consciente, responsável e lúcido; em política, liberal e progressista; de preferência, solteiro (e, se casado, com uma mulher parecida com ele); próspero o suficiente para ter um carro novo e certas modernidades domésticas, como uma tv ou um estéreo, mas sem deslumbramentos; gourmet, viajado, à vontade em aviões; atento a novidades, mas sem muita pressa para adotá-las; bem-humorado, bem vestido, bebedor equilibrado; e, finalmente, leitor de livros, fã de João Gilberto e Tom Jobim e dos filmes italianos e franceses”. Era, acima de tudo, adulto – “eis a palavra (por isso, ele era um ‘senhor ’, não um imaturo espremedor de espinhas). Ou tudo isso seria pedir muito de um brasileiro? Mas, se Senhor e aquela estética existiam, por que não esse leitor?” Se o tempo costuma ser implacável em muitos casos, no de Senhor foi mais que justo. Continua a ressaltar sua importância revolucionária na História da imprensa brasileira, fruto de uma época em que a ferramenta digital do computador não existia e se montava revista a cola, tesoura e unha. A imaginação e a criatividade, portanto, reinavam soberanas, contra o tempo de hoje, em que designers e artistas gráficos são escravos dos programas de paginação. Basta folhear O Melhor de Senhor para verificar se é verdade ou não.
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DEPOIMENTO
SENHOR DE UMA ÉPOCA Em entrevista ao Jornal da ABI, Nahum Sirotsky conta como nasceu a revista que modernizou o segmento de magazines no Brasil e aponta as influências e os desafios de sua produção. P OR G ONÇALO J ÚNIOR
A história das revistas no Brasil pode e deve ser dividida entre antes e depois de março de 1959. Precisamente, no momento em que o primeiro número de Senhor chegou às bancas de todo o País. Afirmação exagerada? Então folheie os dois luxuosos volumes de O Melhor da Senhor, que a Imprensa Oficial de São Paulo acaba de lançar, com organização da editora Maria Amélia Mello e do escritor e jornalista Ruy Castro. Antes de essa publicação surgir, o Brasil vivia na préhistória da ousadia gráfica e editorial, sem ter uma única revista totalmente nos moldes dos grandes magazines americanos – Esquire, por exemplo – ou franceses – Paris Match. Às exceções da luxuosa Rio, editada por Roberto Marinho na década de 1940 e até meados dos anos de 1950, voltada principalmente para as artes plásticas e a alta sociedade carioca; e Gentleman, uma experiência breve de onze números publicados entre 1957 e 1959. Era uma espécie de Playboy tupiniquim, voltada para a elegância do homem e que trazia uma garota sensual na capa e, sempre na última página, uma história de amor dramática de Nelson Rodrigues. Depois de Senhor, o Brasil se civilizou com experiências editoriais de vanguarda, com Realidade, Fairplay e Diners, criada e editada por Paulo Francis. Senhor nasceu do sonho do jornalista paulistano Nahum Benhamin Sirotsky, que, no final de 1958, quando tinha apenas 33 anos e uma longa carreira no jornalismo, havia deixado o posto de editor da conceituada revista semanal Manchete, da Bloch Editores, e pensava em criar uma publicação sua. Talento precoce, aos 18 anos, Sirotsky se tornou repórter da editoria de Cidade do jornal carioca O Globo, em 1943. Aos 20 anos de idade, ainda pelo diário de Roberto Marinho, transformou-se no primeiro correspondente brasileiro nas Organizações das Nações Unidas-Onu, logo após a criação da entidade. Mas ele faria carreira mesmo na Manchete, de Adolfo Bloch, criada em 1952. De repórter, tornou-se editor, de onde saiu para fundar, em seguida, a Senhor. 36
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Desde o começo da década de 1990 Sirotsky vive em Tel Aviv, Israel, de onde escreve, aos 87 anos, para o jornal gaúcho Zero Hora, transmite semanalmente um programa na Rádio Gaúcha (ambos do Grupo RBS, de Porto Alegre) e ainda escreve para o site de notícias Último Segundo, do portal iG. Em 1999, quando Senhor completou 40 anos, ele deu uma entrevista exclusiva para o caderno Leitura de Fim de Semana, do jornal Gazeta Mercantil. A conversa foi realizada a partir da troca de uma série de mensagens por e-mail e traz uma quantidade de informações importantes sobre a gênese dessa revista que se tornou marco de uma época para a vida cultural brasileira. Alguns fragmentos foram usados na longa reportagem sobre a sua importância. Mas a conversa jamais foi publicada na íntegra. Até agora, o que acontece especialmente para os leitores do Jornal da ABI. Jornal da ABI – Toda revista geralmente tem uma história curiosa em sua origem. Aconteceu assim com Senhor?
Nahum Sirotsky – Acredito que sim. Na verdade, a revista Senhor nasceu do acaso.
JAGUAR
No final de 1958, fui a uma festa com minha mulher, a atriz Beyla Genauer, onde também estava Abrahão Koogan, dono da Editora Delta-Larousse – que publicava a famosa enciclopédia vendida no sistema porta a porta. Eu acabara de deixar a direção de Manchete e imaginava criar um semanário de notícias e análises políticas e econômicas. Éramos ambos muito jovens. Beyla fazia muito sucesso no palco. Profissionalmente, como jornalista, eu também ia bem, fora diretor de uma importante revista. Com Visão, que também era semanal de notícias, tive a primeira experiência nesse formato. Era uma publicação pioneira de notícias para homens de negócio no País. Manchete, para aonde fui em seguida, era um pouco diferente, imitava Paris Match sem cerimônia, como também fazia O Cruzeiro, no sentido de supervalorizar as fotos. E foi Beyla quem me apresentou a Koogan e perguntou, meio na brincadeira, naquele típico ambiente de festa, por que ele não fazia uma revista comigo. Isso foi dito assim, descompromissadamente. Ele nos contou – e foi uma coincidência – que Simão Waissman, sobrinho e sócio dele, também estava pensando na hipótese de criar uma publicação para bancas. Marcamos um encontro para o dia seguinte, na Travessa do Ouvidor, Centro do Rio, onde Simão me falou que estava querendo uma revista que fosse um cartão de visitas da Delta-Larousse.
Jornal da ABI – Que era uma editora de grande reputação por fazer uma das mais conceituadas enciclopédias de consulta do mundo, correto?
“Senhor foi original logo no primeiro número. E a partir dele passamos a corrigir os exageros e a afinar o formato. O fato de que continue lembrada até hoje parece provar que acertamos.”
Nahum Sirotsky – Sim, sim. E ali, na hora, descrevi para ele uma revista que vinha imaginando fazer. Ele me ouviu, gostou da idéia e me pediu que preparasse uma “boneca”, um esboço de como seria a publicação. Ali mesmo tomei umas notas para não esquecer o que inventara naquela conversa, fui para casa e procurei uma das pessoas de quem mais gostava, e com quem tinha uma amizade desde os tempos de criança: Carlos Scliar, que, além do grande pintor que era, também se mostrava um fabuloso artista gráfico. Ele veio à minha casa com Glauco Rodrigues, outro pintor fabuloso e amigo. Contei-lhes o que tinha havido naquela manhã na sede da Delta-Larousse. Saímos à rua, compramos revistas francesas e americanas para poder recortar ilustrações e bolamos a boneca. Eu havia descrito para Simão uma revista mensal tipo Esquire americana. E por ela nos guiamos. Mas não só por ela. Jornal da ABI – Vocês fizeram algumas adaptações importantes? De que forma?
Nahum Sirotsky – No nosso caso, seria uma revista para o homem, mas sempre com iniciativas que interessassem à mulher, que era quem mais comprava revista em banca e tinha mais tempo para ler, pois a maioria não trabalhava. Concluímos que
conteria serviços que seriam moda masculina, seleção de bebidas e preparação de bebidas, pratos especiais, hobbies masculinos, um ensaio em cada edição sobre uma garota bonita, uma novela completa, um conto, diversos ensaios sobre literatura, artes, política, economia, nacional e internacional, humor como desenho e humor com texto. Cada capa seria especialmente pintada e teria de ser um comentário humorístico sobre a vida brasileira. A “boneca”, onde usamos recortes também da Life, da Variety etc. ficou uma beleza. Scliar e Glauco criaram, com cola e tesoura, uma pequena obra de arte. Simão comprou a idéia na hora. E partimos para a aventura. Convidamos de imediato para serem editores Newton Rodrigues (política-economia), Paulo Francis (literatura, ensaios) e Luiz Lobo (serviços). Jornal da ABI – E como o projeto andou? Demorou muito tempo para a revista sair?
Nahum Sirotsky – O primeiro drama foi a escolha do nome. Deu briga de dias. Concordamos com SR., com senhor abreviado e em letras maiúsculas. Partimos para produzir o primeiro número. Ivo Barroso veio como principal tradutor. Decidimos que a primeira novela seria As Neves de Kilimanjaro, de Ernest Hemingway. Não me recordo do que mais tivemos para usar nesse começo. Não guardo nada do que faço. Prometi-me nunca viver em função do passado. Estou sempre pensando no que vou fazer hoje e amanhã. Só lembro que foi um primeiro número muito pesado, pois tinha tudo demais. Eu quis botar tudo logo no primeiro tiro. Não gostei do resultado. Mas foi um sucesso e causou aquele impacto que a editora queria. Com Scliar na direção de arte e Glauco como seu segundo homem, estávamos bem na parte de arte. E no resto também. A qualidade dos textos, o nível dos colaboradores, as ilustrações, os cartuns, o humor, tudo tinha qualidade. Jornal da ABI – Mesmo com tantas influências externas, a revista conseguiu um formato que diluiu as referências contemporâneas do que se fazia na Europa e nos Estados Unidos, não?
Nahum Sirotsky – Sem dúvida. Senhor foi original logo no primeiro número. E a partir dele passamos a corrigir os exageros e a afinar o formato. O fato de que continue lembrada até hoje parece provar que acertamos. E ao falar na primeira pessoa do plural é que ela foi, desde o seu primeiro instante, uma criação da equipe, cada página, ilustração, texto, tudo resultava de rigorosa e debatida seleção. Desde o primeiro exemplar que Senhor foi o que chegou a ser porque todos nos apaixonamos pela obra e a fizemos com o melhor da nossa imaginação e competência. Havia um prazer enorme naquilo. Tivemos como influências diversas revistas estrangeiras, embora continue a acreditar que nenhuma publicação jamais chegou a uma beleza gráfica próxima de Senhor. Acredito que foi Flair, dirigida por Flëur Cowles, então casada com o dono da revista Look, uma grande influência para nós na edição que se seguiu ao projeto que apresentamos a Simão. Jornal da ABI – Fale um pouco das principais fontes da revista...
Nahum Sirotsky – Em Flair nos inspiramos para a idéia da publicação da novela como parte central da revista, metade de página, tendo ao centro como uma grande ilustração que servia para cada uma das páginas da história. Eram ilustrações de Glauco Rodrigues, provavelmente, o maior desenhista brasileiro dos nossos dias, daqueles tempos. O Partisan Review e a Commentary, títulos de origem americana, inspiraram o estilo dos nossos ensaios. E, acreditem ou não, a idéia de uma revista com grande variedade de temas e uma novela completa veio de Seleções do Reader’s Digest (revista americana fundada em 1922 e que depois se tornou uma importante ferramenta de combate ao comunismo no mundo, com apoio financeiro da Fundação Rockfeller). Mas, Senhor, como disse, sofreu influências; porém, nada copiou. Não conheço revista alguma que a ela se assemelhasse. E deu certo também a idéia de revista de homem para a mulher ler. Como disse, as mulheres eram grandes consumidoras da revista que – e isto fizemos conscientemente – pelo seu alto custo de capa e beleza gráfica virou status, um símbolo de excelência. Era encontrada nas casas dos mais prósperos, digamos assim.
Nova York e, com Senhor nas mãos, conseguiu a direção de arte de revistas americanas importantes. Ou Clarice Lispector, que escrevia boa parte das pequenas notas das primeiras páginas onde publicou alguns contos curtos que se tornaram depois obrasprimas da literatura brasileira. E havia os nomes consagrados, como Jorge Amado escrevendo para nós A Morte de Quincas Berro d’Água, ou Guimarães Rosa de quem publicamos alguns contos inesquecíveis. E Carlos Lacerda, Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro e o embaixador Sette Câmara, que deixou em Senhor sua proposta de um plano de governo para o Rio; e Jânio Quadros, além de tantos e tantos. Jornal da ABI – Foi um problema tornar graficamente viável uma revista como Senhor?
Jornal da ABI – Pela localização da cidade onde era produzida e dos colaboradores, inseridos numa Copacabana glamurosa dos tempos da Bossa Nova, não era Senhor uma revista carioca em sua essência?
Nahum Sirotsky – Talvez pela malícia de seu humor, sim. Porém não a chamaria de uma revista carioca. Acontece que naqueles anos o Rio de Janeiro era o grande centro cultural e editorial do País. A nossa idéia era de uma revista brasileira para o Brasil destinada às chamadas classes A e B, as de mais alta renda, as que fazem opinião. Na nossa ingenuidade e falta de modéstia, imaginamos usá-la para educar essas classes, aprimorar seu gosto na seleção de artes, na leitura, pois queríamos que conhecessem Kafka, Tolstói, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado. Que essas pessoas soubessem do que acontecia no mundo. Imagine, velho, que Martin Luther King Jr, uma das maiores figuras do movimento dos direitos civis do negro
americano, esteve no Brasil e apenas Senhor o procurou e o entrevistou, um trabalho de Paulo Francis. A gente era mesmo muito provinciano. Mas se você considerar os desenhos de Jaguar, e de outros, e os textos de humor de Luiz Lobo, você poderia dizer sim que era uma publicação carioca, pois era humor carioquíssimo. Jornal da ABI – Além dos nomes hoje muito conhecidos, havia talentos promissores na Redação que vocês revelaram, não?
Nahum Sirotsky – Sem dúvida. Não quero avançar sem lembrar Bia Feitler, uma garota excepcionalmente talentosa, que Scliar descobriu e trouxe para trabalhar no setor de arte da revista. Um dia, ela foi para
Nahum Sirotsky – Era pobre o parque gráfico brasileiro na época. A revista foi impressa na gráfica das Listas Telefônicas. Scliar e Glauco se deslocavam para a gráfica para trabalhar com o pessoal no aprimoramento da qualidade. Eles ensinavam os funcionários a melhorar o retoque, a impressão, os filmes usados para gravar as chapas de impressão e coisa assim. E os operários correspondiam com entusiasmo àquela parceria com a gente. Faltavam meios sem dúvidas para fazer o melhor. Então, quando queríamos uma família de letras inexistente no Brasil, recortávamos um alfabeto inteiro de revista estrangeira fotografávamos e conseguíamos a família desejada. Scliar e Glauco improvisavam soluções originais que davam certo. Tenho de dizer que a minha admiração e respeito pelo talento da equipe, de cada um dos companheiros que contratamos, só faz crescer quando me recordo daqueles tempos. O que se conseguiu de melhor foi com eles, por causa deles. A equipe era uma espécie de orquestra de câmara, com todos os instrumentos tocados por solistas.
Jornal da ABI – O que você incorporou de sua experiência pessoal à revista?
Nahum Sirotsky – Do meu aprendizado nos Estados Unidos, onde, garoto, fui enviado de O Globo, do Rio, para cobrir as Nações Unidas, trabalhei em publicações americanas, trouxera entendimento de que a gerência criativa é fundamental e que o diretor de publicidade tem de ser um indivíduo de convivência de agência. Ivan Meira, falecido num desastre de avião, ex-Standard Publicidade, veio para nós. E as contribuições dele também são inesquecíveis. A primeira foi a de decidir que a revista aceitaria peças publicitárias que tivessem qualidade artística. Isso foi uma revolução, pois os setores de artes das agências não tinham tal oportunidade em outras publicações. E começaram a criar peças exclusivas para Senhor. Ivan, grande homem de publicidade, criou ele mesmo algumas peças memoráveis. Um anúncio de
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DEPOIMENTO SENHOR DE UMA ÉPOCA
Floresta de palavras No inédito Peregrinações Amazônicas, o crítico literário Fábio Lucas analisa a história, a mitologia e a literatura de uma região pulsante. P OR M ARCOS S TEFANO
24 páginas como história em quadrinhos com fotografias nas quais Jardel Filho, ator já falecido, e Odete Lara estrelavam uma peça da fábrica Sta. Branca de tecidos impressa no próprio tecido que encartamos em cada exemplar e outras mais. Diretor de revista ou jornal não pode deixar de considerar parte de um negócio, um setor de um negócio. E que ele tem de produzir consumidor em potencial para que o diretor de publicidade possa vendê-los às agências, pois é da receita que se faz a mídia.
Nahum Sirotsky – A idéia dos anúncios no índice foi minha. Sempre entendi anúncio como uma informação ao leitor, um serviço. Além do mais, os nossos anunciantes, devido à qualidade de suas peças e produtos, mereciam tal destaque. E a repercussão foi mais do que positiva.
que me ensinou, pela sua teimosa defesa de interesses brasileiros, o que testemunhei tanto em Washington como no Brasil. Nunca mais vi um exemplar de Senhor, como deixei de ver Manchete e Visão. Não gosto de sofrer e me frustrar pelo que fazem ou desfazendo com o que crio. Nada mais posso lhe dizer a não ser que seria muito pouco provável, e muita sorte, conseguir reunir novamente uma equipe como a da revista que fizemos. Mas seria injusto desconhecer que o Brasil tem, hoje, publicações de qualidade internacional como Veja, Istoé, Vip e outras. “No Brasil, em se plantando, tudo dá”, disse Pero Vaz Caminha, o escrivão de Pedro Álvares Cabral. Há talentos excepcionais em todos os campos. Muitos, demais, no exterior, em hospitais, centros de pesquisa científica, universidades, cinema. Aqui, onde estou, se tem a convicção de que a crise será superada e o País terá um novo impulso de crescimento e será das maiores economias do próximo século. Também não duvido disto.
Jornal da ABI – Você ficou quanto tempo na revista?
Jornal da ABI – Os colaboradores eram bem remunerados?
Jornal da ABI – Como surgiam detalhes gráficos que definiam a cara da revista, como o zelo até mesmo na confecção do expediente e do índice?
Nahum Sirotsky – Creio que fui o diretor de uns 29 números. Não tenho certeza e nem posso confirmar, pois não tenho um só exemplar em minha biblioteca. Entendo direção como equivalente a maestro de orquestra sinfônica. Ele tem de fazer todos tocarem o melhor que sabem. Além do mais, também acho que diretor deve evitar escrever, pois quando escreve está competindo, sem querer, com os outros redatores, o que é ruim. Por outro lado, ele também se esquece de dirigir. Jornal da ABI – Como foi a sua saída?
Nahum Sirotsky – Fui substituído pelo falecido Odylo Costa, filho. Senhor me deu tais prazeres que prefiro não explicar a minha saída. Aceitei convite do Roberto Campos, um dos brasileiros que mais admirei em minha vida pela coragem de ser uma voz solitária na defesa de suas convicções, pela cultura, pelo 38
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Nahum Sirotsky – Pagávamos muito acima da média. O que pagávamos por uma noveleta, por exemplo, bastava para o autor viver bem um mês. Fazia questão de que fossem mínimas as diferenças entre o meu salário e os dos demais editores. E tudo foi possível porque Simão e Sérgio Waizman, os principais acionistas, aceitaram os custos do desafio. Nada se faz sem dinheiro, como você sabe. Não seria possível repetir Senhor, antes de qualquer coisa, porque não seria economicamente viável. E, provavelmente pela própria evolução do parque gráfico e da indústria editorial do País, da qualidade da publicidade, o improviso criador usado em Senhor não seria necessário. Mas quanto à qualidade de texto, ilustrações, impressão, não faltam exemplos de que é mais alta hoje do que jamais seria alto demais o custo de uma orquestra constituída de solistas, como foi o caso de Senhor no nosso tempo.
Desde os tempos da chegada dos portugueses ao Brasil a Amazônia desperta fascinação. Seja por seus mitos e lendas ou por questões mais modernas, como a biodiversidade e o drama humano que se desenrola em seu território. Porém, existe um universo amazônico também fantástico e apreciado, mas ainda tão desconhecido quanto a vastidão verde da região: o da literatura que traz como assunto principal ou mesmo pano de fundo a floresta. É sobre esses dois vastos e riquíssimos mundos que o escritor e professor Fábio Lucas se debruça em Peregrinações Amazônicas (Letra Selvagem). Como um autêntico desbravador, ele analisa de modo bastante original sobre a “floresta pensante”, aquilo que já se pensou e se escreveu “na” e “sobre a” Amazônia. O resultado é um livro desafiador e inédito bem ao estilo de Lucas, um dos mais argutos e sensíveis críticos literários do Brasil. E também um mapa da Amazônia elaborado a partir dos traços de figuras como Euclides da Cunha, Age de Carvalho, João de Jesus Paes Loureiro, Thiago de Mello, Ferreira Gullar e tantos outros. Para falar sobre esse panorama, o Jornal da ABI conversou com Fábio Lucas em São Paulo. Jornal da ABI – O Senhor usa no título de sua obra o termo “Peregrinações”. Por quê?
Fábio Lucas – Essa palavra me veio à mente pela influência da leitura de um dos primeiros livros de viagem escritos em português. Em Peregrinação, Fernão Mendes Pinto narra sua empreitada rumo ao Oriente, mais especificamente China, Japão e Índia. Suas aventuras e histórias prodigiosas despertam uma atenção enorme, mesmo que, junto com a verdade, mesclem elaborados frutos da imaginação humana. Quem não gostaria de desbravar mares misteriosos e regiões lendárias e desconhecidas? Quando me embrenho na literatura amazônica faço um pouco disso. Analiso aspectos concretos da região na História do Brasil, mas também sua enorme mitologia e literatura construída sobre tudo isso. Esse universo tão vasto e riquíssimo que é o Amazonas continua a inspirar todos aqueles que procuram explorá-lo. Jornal da ABI – O Senhor é conhecido por sua obra de crítica literária. Por que agora analisar o que já se produziu, tanto na prosa quanto na poesia, sobre a Amazônia? O que o levou a isso?
Fábio Lucas – A Amazônia é um dos lugares mais determinantes da produção literária brasileira. Com influência até mesmo sobre escritores portugueses, holandeses, norte-americanos e alemães.
Tudo que ela já inspirou por aqui é fantástico e pouco conhecido. Não se trata apenas de descobrir a Amazônia de Euclides da Cunha, enviado em expedição oficial pelo Barão do Rio Branco para estudar os recursos da floresta ou mapear os limites do território nacional. Mas de captar o drama humano, que o próprio Euclides observou ao encontrar tantas famílias cearenses fugidas da seca e em estado de penúria no Acre. Argumento usado depois para pleitear a região junto à Bolívia, mas com o único interesse de captar o ouro ocasional da época, a borracha. Fora Euclides, muita coisa boa já se produziu sobre essa região e precisava ser estudada. Meu interesse vem de criança, quando lia fantasias sobre o lugar. Quando cresci e tomei maior consciência política da ideologia estrangeira de ocupar e transformar a região, o senso de urgência só aumentou. E agora foi traduzido nessa obra. Jornal da ABI – Trata-se também de valorizar as obras de cunho regionalista, normalmente desconhecidas enquanto literatura?
Fábio Lucas – Essa valorização é essencial. Até porque essas barreiras já foram derrubadas na prática. Já não existem dois países chamados Brasil, um no Norte e outro no Sul. Também sabemos que a região amazônica é importante para todos. Tanto que diversos escritores da região fazem sucesso nacional. Gente como o marajoense Dalcídio Jurandir, o ensaísta paraense Joaquim Francisco Coelho e o romancista paraense Inglês de Sousa. Jornal da ABI – A Amazônia é um mundo à parte, famosa por sua biodiversidade. Ao estudar o universo literário amazônico, que realidade o senhor descobriu?
Fábio Lucas – Por um lado, a grandiosidade da natureza. Mesmo quem escreveu sobre o lugar sem conhecê-lo, depois que foi para lá tratou de escrever novamente, pois é deslumbrante. Por outro, a constante tensão. Há um drama social e contínuo entre quem explora e quem vive da terra. Essas temáticas podem ser encontradas em quase todas as obras narrativas. Mas também são base para profecia, que mergulha fundo na alma humana, sob o pano de fundo amazônico. Nesse caso, a riqueza da qual se faz prospecção é a do ser. Só que também há riquezas em ensaios, estudos e na literatura mais recente, da qual trato na terceira parte do livro, e que versa sobre questões ambientais, a cobiça internacional, a exploração predatória dos recursos e a biodiversidade. Mesmo milenar, o paraíso amazônico dos descobridores e dos conquistadores continua mais vivo que nunca. Agora, porém, o Eldorado é outro.
LIVROS
Auto-retratos para leitores e não-leitores Pesquisa mostra que metade da população brasileira não lê e apenas 2% dos professores dedicam seu tempo livre à leitura. Mesmo assim, há esperanças. RITA BRAGA, ILUSTRAÇÃO SOBRE FOTO DE CARLOS SCLIAR
P OR R ITA B RAGA
De acordo com os dados mais recentes da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cujo terceiro volume foi lançado em agosto, apenas 7% dos leitores levam em conta críticas e resenhas como fatores que mais influenciam na leitura de um livro. Eu poderia desistir de escrever este texto diante desse dado. Mas como as estatísticas têm suas sutilezas, prefiro me apegar aos 29% que levam em conta “dicas de outras pessoas”. Mesmo diante de números preocupantes e dignos de manchetes na imprensa, como a constatação de que apenas metade da população se declara leitora, como se sabe, quem lê as letras miúdas acaba enxergando outros aspectos que não costumam estar tão explícitos nas bancas de jornal. Por analogia, quem ler Retratos da Leitura no Brasil 3 verá que os números são apenas a ponta do iceberg. Desta vez, o período de aplicação foi entre os meses de junho e julho de 2011 com o total de 5.012 entrevistados. Segundo a organizadora deste volume, Zoara Failla – socióloga da Unesp, gerente de projetos do Instituto Pró-livro e coordenadora técnica da pesquisa de 2008 –, houve algumas inovações nos procedimentos com a intenção de obter respostas mais fidedignas. Por exemplo, desta vez optou-se por perguntar primeiro “quantos livros a pessoa leu nos últimos três meses” e somente depois “qual a importância da leitura” (questão que de alguma forma já induzia, ou pelo menos, “pressionava” o entrevistado na edição passada). Na edição atual, buscou-se também uma validação por meio de perguntas sobre o último livro lido, como: título, autor e se estaria no domicílio. A diagramação e estrutura geral da pesquisa publicada permitem a comparação com os números internacionais e com os dados de 2008. Se há espaço para sugerir um acréscimo ou outra pesquisa, creio que talvez fosse interessante saber quantas pessoas “lêem” esse documento no Brasil. Mais interessante ainda seria identificar o perfil do leitor da pesquisa, e, na medida do possível, como essa leitura se desdobra em suas ações na sociedade. A sugestão não é um capricho pessoal, mas conseqüência de algumas reflexões despertadas tanto nesta leitura quanto na do volume anterior. Que o quadro da educação é preocupante, que o letramento tem sido um desafio em todas as etapas da vida escolar, que grande parte da população entende a biblioteca como um espaço diretamente ligado à escola, são dados cujos números já podiam ser “intuídos” em
qualquer conversa cotidiana. Afinal, quem não percebe que a imagem dos pais como motivadores perdeu espaço para o professor? Isso reflete, entre outras coisas, uma família mais dividida, com pouco tempo para o convívio afetivo (o que também tem conseqüências na construção dos laços sociais). Já o grande número de professores que não são leitores – ou, quando são, denotam um repertório bastante limitado – também aterroriza, mas não necessariamente surpreende. Entre 145 professores entrevistados, apesar de 94 dizerem que “gostam muito de ler” e 38 dizerem que gostam “um pouco”, 73 não conseguiram citar nenhum autor. Entre os que citaram, ficou evidente a preferência por livros de “autoajuda”. Outro número impressionante é que, dentro desse universo de 145
professores, apenas três declararam preferir dedicar seu tempo livre à leitura. Antes que vozes se elevem maldizendo os “professores inaptos” como mediadores, cabe lembrar que muitos deles são aqueles mesmos alunos do passado, a quem foi atribuída a responsabilidade sobre o “futuro da nação”. Muitas vozes ainda hoje persistem nesse péssimo costume de atribuir a responsabilidade sempre ao outro e no futuro – sem qualquer compromisso de garantir que as necessidades básicas para a formação intelectual e o desenvolvimento humano se consolidem no presente. É importante destacar essa dívida histórica, e certamente a proposta de recolocá-la no centro do debate é uma das melhores inovações da edição. Marcos Antonio Monteiro, DiretorPresidente da Imprensa Oficial do Esta-
do de São Paulo, introduz os comentários usando as palavras de Antonio Candido como epígrafe. O texto citado é O Direito à Literatura, palestra do curso organizado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, publicado pela primeira vez em 1989. Mais de 20 anos depois, o trecho continua a sintetizar com força e clareza a emaranhada raiz do problema: “Em princípio, só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura [...] Pelo que sabemos, quando há um esforço real de igualitarização há aumento sensível do hábito de leitura, e portanto difusão crescente das obras.” Claro que é importante saber quem são esses leitores e não-leitores. Identificar quais são os fatores sociais, econômicos e culturais que levam 75% dos entrevistados a não freqüentar bibliotecas (e 33% alegarem que “nada os faria freqüentar uma biblioteca”). Porém, as inquietações despertadas pelos dados e pelos comentários de especialistas, como Ana Maria Machado, Ezequiel Theodoro da Silva, Regina Zilberman, Marisa Lajolo, José Castilho Marques Neto e tantos outros, ultrapassam limites que muitas vezes vinham erroneamente restringindo a discussão. Nas escolas, nas ruas, nos corredores, é muito comum ouvir dizer que a responsabilidade sobre a formação de leitores cabe à escola e, especialmente, ao professor de língua portuguesa. Ao trazer a pauta da leitura como “prática social” inerente ao exercício da cidadania, a publicação convoca “todos” a sair dos estereótipos e encarar os números da leitura de maneira menos idealizada. Há avanços e retrocessos. Paradigmas em transição que exigem novas estratégias. Tendências e transformações tecnológicas irreversíveis que exigem o empenho de toda a sociedade. Isso vai desde os gestos mais afetivos, como ler para os filhos, aos mais complexos do ponto de vista da implementação de políticas públicas que enfrentem o abismo da desigualdade social. Como educadora, faço questão de recomendar o livro para pessoas de todas as áreas. Não se trata de concordar ou discordar dos dados, mas de reconhecer os embates e até as contradições. Se queremos de fato resolver o que alguns chamam de “crise da leitura”, o desafio é grande e urgente. Não pode ser adiado. Há que se convergir o envolvimento real de gregos e troianos, sem resmungos conformistas ou devaneios nostálgicos. Nesse sentido, como citação complementar à altura das palavras de Candido, recordo as de Maria Victória de Mesquita Benevides, em outro texto da Comissão de Justiça e Paz: ela diz que aprendeu com um amigo, ex-preso político e hoje um batalhador da cidadania ativa no Brasil e no mundo, que “se sopra um ventinho, temos que sair com a nossa pipa”. Então, se os dados dizem que temos 50% de não-leitores, é preciso despertar a ação efetiva entre os 50% leitores para reverter o quadro.
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LIVROS
P OR M ARCOS S TEFANO
Um dos momentos decisivos na derrocada do regime militar no Brasil foi o da prisão, tortura e assassinato de Vladimir Herzog. Todo o drama se desenrolou nas mesmas dependências do Doi-Codi de São Paulo em que também estava preso o jornalista e escritor Rodolfo Konder. Mesmo encapuzado e obrigado apenas a olhar para seus “mocassins pretos”, os gritos e a angústia de seu amigo eram inconfundíveis. E fizeram com que Konder se tornasse uma poderosa testemunha contra os desmandos e a violência da ditadura. Essa é uma das muitas histórias que ele agora conta em Luz e Sombra, seu mais novo livro, publicado pela RG Editores. É bem verdade que, por conta do clamor levantado por entidades da sociedade civil organizada e dos avanços no campo político, como a constituição da Comissão da Verdade, vêm surgindo várias e boas obras sobre o passado recente do País, especialmente os anos do regime militar. Mas o livro de Konder mostra como ainda há muito o que dis-
cutir e refletir sobre esse fatídico período. A obra é composta por mais de 40 crônicas, algumas inéditas, outras já publicadas em diversos veículos da imprensa brasileira, entre eles, o próprio Jornal da ABI. Na primeira parte, estão os textos em que Konder procura jogar um pouco de luz sobre o passado recente. E escolhe uma faceta brilhante para isso: ele fala sobre importantes nomes das artes, da mídia, da política e da literatura. A maioria, brasileiros. Mas também alguns de fora, como o líder sul-africano Nelson Mandela e o escritor argentino Julio Cortázar. Sempre como elemento comum, alguma relação com o autor: amizade, um evento em que estiveram juntos, uma entrevista ou mesmo uma viagem. É dessa maneira que o também jornalista Marcos Faerman, “o amigo Marcão”, torna-se um “escultor de textos”. E Vlado, com quem Konder trabalhou na revista Visão, não é lembrado apenas pela morte como um “exorcista dos demônios do autoritarismo”, mas como um homem movido pela “utopia dos direitos humanos e da garantia de espaços generosos para a controvérsia”.
Pedroza, o repórter que valia por uma equipe A imagem é de um dos seus chefes, o jornalista Teixeira Heizer, e retrata bem a trajetória desse “repórter inigualável”. Em quase 300 páginas este livro do jornalista Wilson de Carvalho está cheio de histórias incríveis, algumas de extremo perigo, por força da profissão, além de lições de vida, especialmente para idosos ou futuros idosos que buscam a feliz idade. Há também verdadeiras aulas para estudantes e jovens jornalistas. Uma trajetória de vida verdadeiramente diferenciada, a exemplo do livro, com bastidores inéditos do futebol, da profissão e do bairro de Copacabana, onde Pedroza vive há 70 anos. Fundamental para este pernambucano de 84 anos de idade, 65 de profissão, dez Copas do Mundo, passagem por quase todos os principais órgãos de imprensa do País, entre emissoras de rádio e televisão, rádios e jornais, era ser repórter. Por várias vezes, recusou chefias e editorias. E tinha razão: reportagem é a alma do jornalismo. 40
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“Principalmente se você for investigativo”, diz ele. Pedroza fala muito mais sobre esse tema polêmico e conta por que antecipou o final da carreira na grande imprensa, onde chegou a trabalhar em quatro empresas ao mesmo tempo, numa época de grande número de jornais e acumulando funções, como as de correspondente internacional, de Presidente da Acerj (Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro), por duas vezes, e do Comitê de Imprensa da CBF, extinto pelo Presidente renunciante da entidade, Ricardo Teixeira. No samba, Geraldo Vidal Pedroza também fez história como Assessor de Imprensa da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e diretor da Escola de Samba Vila Rica, da Ladeira dos Tabajaras, no Morro dos Cabritos, onde não há quem não goste dele e o respeite. E até o
ARQUIVO ABI
Mocassins pretos e luzes em tempos de escuridão
Rodolfo Konder: lições preciosas em novo livro.
Ao falar do humano, Rodolfo Konder também traz depoimentos pessoais e relevantes sobre a grande imprensa, os bastidores das Redações e os movimentos sociais e políticos. Com uma naturalidade e uma tranqüilidade tão grandes que trazem ao leitor a sensação de estar travando uma conversa íntima com o autor no sofá da sala de estar de sua casa. O que não falta em cada texto é a esperança. Como já dizia o pensador norte-americano Ralph Valdo Emerson, Konder é o tipo de cara que “atrela seu arado a uma estrela”. Quer dizer, em cada esforço persegue um sonho, ou melhor, uma utopia como projeto de nação.
Até por isso, Luz e Sombra, apesar de motes tão grandiosos, é também a obra que melhor revela a alma do autor, que em sua carreira trabalhou nas revistas Realidade e Nova, foi editor-chefe e apresentador do Jornal da Cultura, na TV Cultura, colaborou com alternativos como Movimento e Versus, dirigiu a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo e hoje é um dos Conselheiros da ABI. Mesmo tratando de momentos bem menos memoráveis na segunda parte do livro, Konder não perde a pegada. O que ele chama de “tempos de sombras” é um conjunto de textos em que revela encontros com João Goulart e Leonel Brizola na tentativa de organizar uma resistência ao golpe militar, experiências dos tempos de exílio, as difíceis circunstâncias que viveu e as muitas conversas que mantinha com outros brasileiros exilados. O tom saudosista não falta em momento algum, mas a obra está longe de ser um memorial do passado que nunca veio a ser. É, sim, um conjunto de preciosas lições, muito bem escritas e sinceras, que mantêm acesos os sonhos de um país melhor. Se ainda continua difícil separar o joio do trigo no temerário passado recente do Brasil, as palavras de Rodolfo Konder servem de alento e lembrança de que a verdade existe, ainda que, como disse Fernando Pessoa, “seja apenas o processo de procura da própria verdade”. Melhor que conhecer a verdade de Konder, só mesmo tirar um tempo para “ouvi-lo” falar de Samuel Wainer, Lygia Fagundes Telles e dos mocassins pretos que marcaram os duros momentos que passou nos porões da ditadura.
Mendes: É um orgulho tê-lo como colega Opiniões consagradoras sobre Pedroza dentre as muitas contidas no livro:
Redação. Pedroza era uma equipe. Um repórter inigualável.” Teixeira Heizer
“Pedroza era sempre e acima de tudo um repórter. Empenhava-se com extremada preocupação em obter a notícia em primeira mão. E fazia questão de sempre registrar a importância do esporte na vida nacional.” Maurício Azêdo
“Um dos mais importantes cronistas esportivos do País. Sinto orgulho de têlo como colega e amigo.” Luís Mendes
“Tinha paciência de chinês na busca da notícia, que sempre vinha. E de primeira, na maioria das vezes. Ficava de tocaia como uma cobra preparada para dar o bote. Um repórter extraordinário.” Washington Rodrigues “Descrevê-lo, impossível. Era diferente de todos os que se moviam por minha
considere patrimônio, principalmente pelo incentivo às crianças com sorteio de bicicletas para as que tirassem as melhores notas na escola. Com certeza, Pedroza salvou muitas delas do próprio crime numa das regiões antes dominadas por traficantes, que o respeitavam e de quem também conta histórias. Pedroza surpreende como poeta das mulheres e um “paizão” de dezenas de co-
“A homenagem que a Acerj prestou a Pedroza, dando o seu nome ao nosso Centro de Imprensa, inaugurado recentemente, resume tudo o que se poderia dizer deste profissional que honrou a classe por mais de 60 anos.” Eraldo Leite, Presidente da Acerj “Ele foi o Manto Sagrado da reportagem esportiva brasileira durante todo o seu tempo de trabalho, seja no rádio, em jornal ou televisão.” Raul Quadros
legas que o consagram como um grande mestre, amigo de todas as horas e de grande coração. Coração que o fez chorar aos 83 anos de idade ao dar o nome ao Centro de Imprensa da Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro. Pedroza, O Repórter, em última análise, se propõe a entrar na difícil lista dos best-sellers e da consagração internacional. Até porque é leitura para quem ama a vida e gosta de esporte.
REPRODUÇÃO
ACONTECIMENTO
...E o homem conquistou a Lua Jornalistas contam suas lembranças sobre o episódio da chegada do homem à Lua e destacam o papel pioneiro de Neil Armstrong na História. P OR P AULO C HICO
A mais célebre frase dos programas espaciais certamente foi proferida por Yuri Gagarin, astronauta russo e primeiro homem a viajar pelo espaço, em 12 de abril de 1961. “A Terra é azul”, informou ele aos terráqueos. Contudo, a imagem mais representativa da corrida especial, travada entre os Estados Unidos e a então União Soviética naquela década, documenta o feito de outro astronauta. Coube a Neil Armstrong ser o personagem principal. O norte-americano foi o primeiro homem a pisar na Lua, como comandante da missão Apolo 11, em 20 de julho de 1969. Sua frase “este é um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade” é uma das mais conhecidas da História, assim como os registros de seu desembarque, seguido por uma flutuante caminhada pela esburacada superfície lunar. Um acontecimento de grande repercussão, também pelo fato de ter sido transmitido em larga escala pela caixa mágica que já ocupava posição de destaque na maioria das residências: a televisão. O Jornal da ABI foi atrás de alguns jornalistas para ouvir suas lembranças a respeito da chegada do homem à Lua. “Tinha 12 anos de idade quando Neil Armstrong pisou na Lua. Eu me lembro perfeitamente de ter ouvido um vozerio de comemoração na casa de uma família americana que, por um breve tempo, morou na vizinhança, na Rua Dom Manoel da Costa, no bairro da Torre, no Recife. Pouco tempo depois, quando estava de férias na casa de um tio, em João Pessoa, testemunhei uma cena aparentemente prosaica mas inesquecível: meu velho tio comentava que a tv iria transmitir, em instantes, imagens de astronautas andando na Lua. A cozinheira – uma figura adorável – foi até a janela para observar, atenta, a Lua branca, lá no alto. Ou seja: dispensou os préstimos da tv, mera intermediária. Preferiu tentar checar diretamente no céu as imagens dos remotos caminhantes. A tentativa era inútil, mas bela”, recorda Geneton Moraes Neto, repórter da GloboNews. Medo bobo
Anos depois, já jornalista, Geneton teve a chance de entrevistar astronautas que, ao pisar na superfície da Lua se tornaram a encarnação moderna dos antigos navegadores. Uma espécie de desbravadores de fronteiras, desta vez interplanetárias. “Um deles, Alan Bean, fez uma confissão interessante: quando estava na Lua, foi assaltado por um medo bobo. Disse que, quando qualquer um de nós viaja numa estrada, aqui na terra, o motor do
carro pode, perfeitamente, falhar. Pensou: e se os motores da nave espacial não funcionarem para a viagem de volta? Imaginou a possibilidade de ficar aprisionado na Lua, sem chance de voltar à Terra. Vi, ali, que até os ‘super-homens’, treinados durante anos e anos para as expedições espaciais, podem sentir medos banais. Ainda bem. O medo desse astronauta me fez lembrar a sentença de outro viajante do espaço que, ao contemplar a Terra girando sozinha, constatou, com uma ponta de desolação: ‘A Terra é a colônia penal do Universo’. Ao contrário de Alan Bean, que apenas teve medo de ficar preso na Lua, nós, terráqueos, vivemos presos ao solo do nosso planeta. Os astronautas, por um momento, tiveram a chance de sair da ‘penitenciária’, de navegar no azul, flutuar na imensidão, atrair o olhar espantado da cozinheira . Só por esta razão já mereceriam nossa admiração”, diz Geneton. O Jornal da ABI também quis saber qual pergunta os jornalistas gostariam de ter feito a Neil Armstrong – falecido em 25 de agosto aos 82 anos – caso tivessem cruzado com ele por aí, numa esquina qualquer. Ou, quem sabe, no próprio satélite natural do planeta Terra... “Eu perguntaria a Neil Armstrong se ele, verdadeiramente, sentiu algum medo naquela fantástica aventura pelo espaço. Em julho de 1969 eu estava passando as férias escolares na casa da vovó Catarina, em Oliveira, Minas Gerais. Lembro das tias sentadas na sala todas atentas ao maior espetáculo do século 20. A cidade parou, como se fosse uma final da Copa do Mundo. Todos na sala estavam acreditando quando Neil Armstrong comandante da Apolo 11 aterrissou a nave na Lua. Quando o astronauta começou a andar foi uma grande emoção de todos diante da tv. As notícias foram amplamente divulgadas antes, durante e depois em todos os jornais, rádios e televisões. Lembro-me de que os jornais esgotaram nas bancas, pois as pessoas queriam guardar de recordação as fotos estampadas nas capas de revistas da época. Para mim, foi emocionante assistir à chegada do homem na Lua, juntamente com 600 milhões de pessoas no mundo todo, que foi considerada a maior audiência televisiva da História”, aponta Sergio Caldieri, jornalista e escritor, que está lançando o livro Eternas Lutas de Edmundo Moniz, um relato das andanças do escritor e internacionalista baiano.
Os heróis da década de 1960: Yuri Gagarin, o primeiro homem no espaço num postal comemorativo do feito, e Neil Armstrong, o primeiro a pisar no solo lunar.
“Acho que este evento foi a coisa mais impressionante que já vi na vida. Estava numa casa simples de uma pequena cidade do interior paulista – Santa Rosa de Viterbo – junto com uma moça maravilhosa, que não era minha namorada. A bem da verdade, nem era pro meu bico... Lembro que nós dois saímos gritando e cantando pela rua. Ela nem entendeu aquilo direito... Bom, eu explico! Anos antes, no final da década de 1950, na noite do lançamento do Sputnik, eu estava em Moscou, quando vi aquele carnaval na rua, e entrei nele também. O povo estava comemorando: o russo é meio como o brasileiro. Sob qualquer pretexto, dá uma ‘calibrada’ e sai dançando e cantando pelas ruas. Festejei, assim, o Sputnik em Moscou, numa vitória da União Soviética. Depois, repeti a dose com a chegada na Lua, festejando a vitória dos Estados Unidos, aqui mesmo, no interior de São Paulo. Na época do Sputnik, torcia pela URSS. Quando do feito de Neil Armstrong, já tinha criado juízo”, conta Zé Hamilton Ribeiro, premiado repórter do Globo Rural, da TV Globo. Ícones não morrem
No mesmo dia da morte de Neil, Sidney Rezende postou um emocionado texto em seu site SRZD que, com a devida autorização do autor, é reproduzido a seguir. “A gente sempre pensa que os ícones da nossa geração não morrem nunca. Não é bem assim. A morte de Neil Armstrong mostra que todos temos, inexoravelmente, o mesmo destino. E isso é triste. A minha infância foi marcada pela saga dos astronautas da Nasa. Eu até nomeei ‘Apolo 11’ à chapa do grêmio escolar do primário que me elegeu como candidato à presidência. Eu até mereci uma reportagem no extinto O Jornal, do grupo Associados, de Assis Chateaubriand. Essa eleição foi curiosa. A chapa concorrente se chamava ‘Vermelha’. Um companheiro sugeriu que a nossa se chamasse ‘Azul’. Um outro disse no meu ouvido: ‘Vamos botar o nome da nossa chapa de ‘Carequinha’’. Convicto, ao
alto dos meus oito anos, eu disse ‘não’. ‘Ela se chamará Apolo 11’. Fomos para a casa da menina mais bonita da sala, Regina, e bolamos pequenos buttons de cartolina que reproduziam, bem mambembe, o foguete. Foi um sucesso. Todos os coleguinhas queriam. Ganhamos a eleição. Só rindo... Eu colecionava os fascículos de A Conquista do Espaço que vinham dentro da revista Veja. Tenho até hoje. Meu filho não acredita que o homem tenha ido até à Lua. E me prova por A mais B que tudo aquilo não passou de ‘armação’ americana. Sei não. Pode ser. Mas a verdade hoje é que Neil Armstrong morreu. E com ele um pouquinho da minha fantasia infantil”, escreveu Rezende. Editora de Cultura da Carta Capital, Rosane Pavam contou ao Jornal da ABI que pergunta gostaria de ter feito ao astronauta que, diante da fama mundial, adotou durante muitas décadas uma postura pessoal reservada. Por vezes, até mesmo arredia em relação à imprensa. “Nunca duvidei da chegada do homem à Lua. E talvez perguntasse a Armstrong o usual: de que cores seriam de fato o céu e a Terra? E também se a lembrança da Lua algum dia já o havia feito chorar...”. O humor é o traço marcante das lembranças do jornalista Sérgio Cabral sobre o episódio. “Acompanhei a chegada do homem à Lua da Redação do Pasquim, ao lado de outros companheiros. Lembro-me bem de Tarso de Castro e Jaguar. Não houve, entre nós, qualquer emoção, pois, na verdade, a gente estava preparando a cobertura da cobertura, ou seja, prontos para fazer uma matéria de gozação em cima da transmissão brasileira pela tv. A grande vítima seria um locutor, se não me engano, chamado Rubens Amaral, que falava das imagens de um jeito que a gente desconfiou que ele próprio se sentia um astronauta chegando à Lua”, recordou. Talvez fosse isso mesmo. Ao pisar na Lua, Neil Armstrong, com seus passos leves, mas definitivos, representava um pouco de cada um de nós...
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ACONTECIMENTO ...E O HOMEM CONQUISTOU A LUA
A proeza do milênio Como a nossa imprensa cobriu a chegada do homem à Lua. P OR F RANCISCO U CHA
Naquela noite, quase madrugada de segunda-feira no Brasil, todos estavam ligados na tela da televisão, que mostrava o ápice de uma incrível aventura no espaço sideral. Foi exatamente às 23h56min no horário de Brasília, em 20 de julho de 1969, que o astronauta americano Neil Armstrong tornava-se o primeiro homem a pisar em solo lunar. Segundo a Nasa, a façanha fora vista por mais de 1,2 bilhão de pessoas em todo mundo. E a imprensa mostrou a odisséia épica dos três astronautas em detalhes, tão rápido quanto a tecnologia da época permitia. A revista Veja, que ainda caminhava no vermelho e buscava formas de atrair mais leitores, passou a encartar a partir do início de junho de 1969 a série em fascículos A Conquista da Lua, que ao cabo de oito semanas poderia ser encadernada com a capa dura que acompanhou a coleção. Na introdução do primeiro fascículo o texto informava que os homens iriam pisar no “corpo desolado” do satélite pela primeira vez, classificando o fato como “o acontecimento científico e jornalístico do milênio”. Mas a corrida espacial já fora manchete da revista outras vezes. A primeira, ainda em 1968, noticiava os preparativos de lançamento da Apollo 8, que iria circundar a Lua na noite de Natal. Era o último número de Veja naquele ano, e ela saiu logo após a traumática semana em que a revista foi apreendida das bancas por causa da cobertura sobre o AI5. Na capa da edição recolhida, a famosa foto do General Costa e Silva sentado num Congresso totalmente vazio. A partir dessa semana a publicação passou a ser censurada. Até a semana de lançamento da Apollo 11 ao espaço, em julho de 1969, mais quatro capas foram reservadas para a grande aventura: a edição de 1° de janeiro trazia o relato da histórica circunavegação da Lua realizada pela Apolo 8. Ainda em janeiro, na semana do dia 22 uma pergunta dava o tom do duelo travado entre americanos e soviéticos: “Quem chega antes?”. As edições de 12 de março e 21 de maio também destacariam o tema em suas capas. Finalmente na semana de 16 de julho – o dia de lançamento do Saturno 5, gigantesco foguete que levaria a Apollo 11 ao espaço, a Veja chega às bancas contando os preparativos que antecederam essa epopéia com a manchete “Ele se veste para ir à Lua”. Na semana seguinte a capa estampava uma foto dos astronautas Neil Armstrong e Edwin Aldrin feita a partir das imagens da televisão, e apenas uma palavra exultava o feito: “Chegaram”. Essa era a edição de número 46 e ela foi 42
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totalmente dedicada à conquista da Lua pelos americanos. No editorial, Mino Carta lembrou de dois livros que ganhara de seu avô; um de Andersen, outro de Verne, “ambos escritores para crianças e incorrigíveis sonhadores”. Não esqueceu do Sputnik, o primeiro satélite artificial, lançado há exatos 55 anos, em 4 de outubro de 1957. Recordou esse dia em tom poético: “Os meninos gritavam a aventura de uma minúscula esfera metálica que os russos, esses incríveis, misteriosíssimos russos, haviam posto a girar no céu de todos nós, naquele céu de outono onde, visíveis, esvoaçavam apenas as folhas mortas.” Na reportagem que abre a edição, a página dupla era ocupada com uma foto de Armstrong – outra tirada a partir da tv – e uma imagem da Lua encoberta com a bandeira dos Estados Unidos. A manchete em letras garrafais avisava “Hoje, a Lua do homem”. O texto começava descrevendo a pisada histórica: “Oito vezes Armstrong repetiu a lenta e dramática dança. De costas para a paisagem da noite lunar, com as mãos seguras na escada de sua águia metálica, procurava com os pés cada degrau da histórica descida. Então veio o último lance: às 23h56 de 20 de julho de 1969, Armstrong estendeu seu pé esquerdo, apalpou cuidadosamente o chão fino e poroso, pressionou-o depois com mais força e só então deixou-se ficar de pé na Lua. O grande e grotesco vulto branco (...) emocionou-se: o astronauta Armstrong era, a partir daquele instante, Neil Armstrong, primeiro homem a pisar na Lua.” A revista ocupou as primeiras 36 páginas com a saga da conquista da Lua, sendo que em nove delas contou a história da humanidade desde o homem das cavernas passando pelos grandes navegadores, a
conquista do ar, até chegar ao projeto Apollo. Além disso, a página central trouxe um mapa da Lua com as indicações de todas as naves que desceram (ou se chocaram) no satélite. Mas todas as retrancas deste número também traziam matérias que tinham ligação direta com o evento. Em “Internacional”, por exemplo, a notícia era a sonda automática Luna 15, que a União Soviética lançara em 13 de julho. “Negócios” noticiava que “A Lua não dá mais lucros”, sobre as indústrias americanas ligadas ao projeto Apollo, e falava também dos novos brinquedos baseados na exploração espacial. “Nas pedras da Lua o passado da Terra” foi o tema escolhido para a retranca “Ciência”, “Automóveis na Lua” foi publicado em “Vida Moderna” e “Os Meninos na era espacial”, em “Educação”. “Medicina” trouxe a reportagem sobre a quarentena a que os astronautas foram submetidos depois da chegada à Terra. Além disso, publicou outra matéria sobre “Os benefícios da aventura” e informava que “as viagens espaciais permitiram o estabelecimento de muitas novas técnicas com ampla aplicação em medicina geral, pesquisa médica e saúde pública.” Na coluna “Gente”, todas as notas giravam em torno da Lua e até a retranca “Religião” estava presente na edição. Claro que as matérias de cultura e entretenimento também não fugiram à regra. “Cinema” contou a história dos filmes que colocaram o homem (ou a mulher) na Lua, desde Georges Méliès e Fritz Lang, até 2001, Uma Odisséia no Espaço, lançado em 1968. As colunas de “Discos” e “Livros” e a retranca “Literatura” também não se afastaram do tema. “Arte” trouxe uma matéria sobre “O lunático Dali”, o pintor surrealista que afirmara não haver novidade alguma na Lua. Outro ponto alto da edição foi a seção de humor, a cargo de Millôr Fernandes. Em quatro páginas especiais, Millôr celebrou a chegada do homem na Lua com uma “Balada para o primeiro pedestre lunar vivo ou morto”, além de duas ilustrações e quatro charges antológicas. Finalizando a edição, as últimas páginas da revista trouxeram a seção “A semana na Terra”, única a (quase) não falar sobre a viagem espacial. Com uma foto da Terra vista do espaço marcando todas as páginas como uma vinheta, o leitor não esquecia que aquele era um número muito especial. Mas, já na semana seguinte, a ressaca da grande aventura espacial seria manchete do número 47 da Veja: “Armstrong: Que ganhamos com a Lua?” Internamente, uma reportagem de quinze páginas traria muitos questionamentos: “Os cientistas falam em uma nova era. Os astronautas voltam e encontram a mesma Terra com suas contradições.” Os próximos passos continuariam em direção ao futuro. Afinal, essa história mal tinha começado.
Das misses ao humor escancarado P OR S ANDRO F ORTUNATO
Fatos & Fotos Para Fatos & Fotos, julho de 1969 deveria ser um mês dedicado às misses. A edição de número 439, de 3 de julho, trazia duas moças na capa: Maria Helena Lopes, Miss Telefônica, e Sônia Maria, Miss Clube da Aeronáutica. Eram duas das 35 candidatas daquele ano ao Miss Guanabara. Nada de silicone, costelas extraídas, lipoaspirações ou operações plásticas. Eram belas como só as mulheres naturais sabem e conseguem ser. Na mesma edição, trazia uma matéria sobre o “homem de maior sucesso pessoal em São Paulo” e o apresentava como “um rapaz de pouco mais de 30 anos, que se veste como qualquer outro e que, ao pisar num auditório de tevê, se transforma em um verdadeiro fenômeno”. Na TV Globo de São Paulo, Silvio Santos, carioca, ex-camelô, já fazia sucesso com seu circo de horrores, “onde tudo que parece absurdo se torna normal e ganha prêmio”. Silvio continua firme e (mais ou menos) forte até os dias de hoje, mas as misses da capa não passaram daquela edição. Quem ganhou o Miss Guanabara foi Mara de Carvalho Ferro, uma linda loirinha que representava o São Cristóvão Imperial. Ela dividiria a capa da edição seguinte com outras duas candidatas ao Miss Brasil, as do Espírito Santo e do Amazonas. A turma dirigida por Arnaldo Niskier estava mal de apostas. O Miss Brasil 1969 seria de outra loira, que estaria na capa da edição 441 de Fatos & Fotos e de centenas de outras revistas nas décadas seguintes: Vera Fischer, um monumento de 18 anos que “veio de Blumenau e coleciona selos”. Na semana em que o homem pisou na Lua pela primeira vez, Fatos & Fotos deixava de lado a luminosa estrela de Vera e mergulhava no buraco-negro da ditadura, dando uma capa com Costa e Silva. A edição parecia tão fora de compasso quan-
A conquista da Lua na visão das revistas O Cruzeiro e Manchete. E no humor de Millôr, numa das charges publicadas na revista Veja número 46. Abaixo, Os Fradinhos, de Henfil, no Pasquim.
O Cruzeiro to a política brasileira. Era datada de 24 de julho, mas na página 3 dava o horóscopo para a semana de 11 a 17; no sumário, informava que os astronautas norte-americanos “estarão desembarcando na Lua” no dia 20; e, logo após a matéria, anunciava a edição especial Fatos & Fotos – Documento Histórico – O homem na Lua, dizendo que o álbum “estará nas bancas no mesmo instante em que a cápsula da Apolo tocar o oceano, de volta da grande viagem”. Isso aconteceu no dia 24 de julho e somente na edição seguinte (número 443, de 31 de julho) Fatos & Fotos também voltava à Terra e noticiava devidamente a história. Além da especial, três edições regulares deram capa ao assunto. A primeira, com 82 páginas, foi totalmente dedicada àquele momento histórico e dizia trazer “todas as fotos da viagem do século”. A segunda (444, de 7 de agosto) estampava os três risonhos astronautas por trás da janela do trailer protetor, a bordo do USS Hornet. A foto inteira, publicada no interior, mostrava ainda o Presidente Nixon com um sorriso que desapareceria por completo cinco anos depois. Na capa, a revista anunciava “a derrota russa” e perguntava se a Lua podia ameaçar a Terra. A edição 445, de 14 de agosto, trouxe a terceira e última capa sobre a viagem: “Exclusivo/A cores – As primeiras fotos tiradas na Lua – A nova terra dos homens”. E lá estavam mais 13 páginas de muitas fotos e poucos fatos novos. A edição de 21 de agosto, mais de um mês depois do pouso na Lua, trazia o apresentador J. Silvestre e começava a se preocupar com o campeonato mundial de futebol do ano seguinte. Se em 1969 a Lua foi dos americanos, em 1970 a Copa do Mundo seria nossa. Definitivamente.
Enquanto a Apolo11 subia vertiginosamente em direção à Lua, a revista O Cruzeiro estava em franca decadência, quase em agonia, restando em suas páginas poucos dos grandes nomes de seus tempos de glória. No jornalismo, ainda estavam por lá Ed Keffel, Ubiratan de Lemos, Jorge Audi e Elias Nasser. E, no dia do lançamento da Apollo 11 estavam em Cabo Kennedy os repórteres Indalécio Wanderley e Geraldo Viola. “Enfim, a Lua”, dizia a edição datada de 25 de julho, uma quinta-feira, que havia sido fechada antes da alunissagem no dia 20, domingo. Repleta de imagens de treinos, ilustrações e fotos de arquivo, tinha-se a impressão de que ali estava a história da viagem à Lua, mas, na verdade, era o roteiro, a pré-história. Somente na edição seguinte, de 31 de julho, a revista começava a mostrar a viagem. Se não tinha agilidade para concorrer com a televisão, os jornais diários e com Veja (que em sua edição de 23 de julho estampavam uma imagem de Armstrong e Aldrin reproduzida da tevê com a chamada “Chegaram”), O Cruzeiro pretendia compensar mostrando tudo nos mínimos detalhes. Assim, a primeira matéria ocupou seis páginas com vinte e uma fotos, em seqüência, do lançamento do Saturno5 e a separação dos estágios que libertou a Apollo 11. O texto caprichou nos números: “As 3.100 toneladas do Saturno-5 se elevam lentamente, seus motores desenvolvendo um empuxo de 3.375 mil quilos, força equivalente a de 500 mil automóveis ou 92 mil locomotivas, e consumindo, na partida, 15 toneladas de combustível por segundo, em média. Mesmo assim, os infalíveis computadores de Cabo Kennedy registraram: o foguete decolou com um atraso de 724 milésimos de segundo. Depois, tudo se passou muito rápido: em dois minutos e meio (...). Onze minutos após, já separada dos 3 estágios, a Apollo-11 entrava numa órbita terrestre, a 190 km de altitude. Cerca de 2 milhões de pessoas presenciaram a partida.”
Manchete O “jornalismo moderno” de Manchete foi parcialmente esquecido durante a cobertura da chegada do homem à Lua. A primeira edição da revista a dar capa ao assunto (a de número 900, de 19 de julho de 1969), começava a matéria com um belo nariz de cera: “Há três bilhões de anos, a Lua retirou a vida de seu primeiro lar, o oceano, e a dei-
tou na Terra vazia. Porque, ao conduzir as vagas através dos continentes áridos da Terra primitiva, ela expôs, num ritmo constante, ao sol e ao ar, as criaturas das sombras. A maioria pereceu – mas algumas adaptaram-se ao meio novo e hostil. Começara a conquista da terra firme. Provavelmente jamais saberemos quando isto aconteceu, às margens de que mar hoje desfeito. Nem olhos nem câmaras registraram acontecimento tão obscuro, insignificante. Agora, a Lua chama novamente...” E por aí seguia, já dando idéia da novela que seria aquela cobertura. Na “Conversa com o leitor ” daquele número, Justino Martins, diretor de Manchete, anunciava edições especiais sobre o assunto. Já na edição seguinte, a de número 901, a revista mantinha em parte o novelão, mas
também voltava a ser a Manchete dinâmica, trazendo artigos do psiquiatra austríaco Viktor Frankl, do físico, matemático e escritor Arthur C. Clarke, do cientista Buckminster Fuller e de Igor Sikorsky, um russo naturalizado americano, pioneiro da aviação. A aventura da Apollo 11 foi mostrada em “50 páginas sensacionais” e o leitor ainda ganhava “um mapa da Lua”.
O Pasquim Enquanto Michael Collins, Edwin Aldrin, Neil Armstrong e a turma do Cabo Kennedy, nos Estados Unidos, se preparavam para conquistar a Lua, Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Sérgio Cabral, Tarso de Castro e a turma d’O Pasquim já haviam pousado nas bancas do Brasil e estavam conquistando o País. Em seu terceiro número, o segundo em julho de 1969, O Pasquim já contava que “esta é a realidade: Veja e leia os fatos & fotos e as manchetes por 500 cruzeiros”. Na última página, Jaguar apelava aos dois assuntos da moda: sexo e viagens à Lua. Sobre este, mostrava como seria o primeiro passo do homem no satélite da Terra. Na edição de número 4, Claudius explicava que o segredo do know-how americano era simples: “ele é alemão”, e os fradinhos de Henfil divagavam sobre a ida do homem à Lua. O tema ainda renderia piadas por vários números. No quinto, Fortuna explicava que, “tudo programado, as palavras foram de improviso”, e pedia seu certificado por ter visto os primeiros homens na Lua. Na sexta edição, a esculhambação foi geral: Surtan ilustrou as frases ditas pelos astronautas; Tarso de Castro perguntou se o ser humano já havia chegado à Lua; Fortuna furou o isolamento e entrevistou Armstrong, que não estava entendendo essa onda toda sobre tocar o solo (uma piada com Louis Armstrong e seus solos); e Millôr mostrou que há cornos até na Lua. Quando tudo parecia voltar ao normal, na edição número 7, Paulo Francis ainda teve fôlego para desancar Nixon, os astronautas, suas famílias (“saídas de algum anúncio de cereal ou de pasta de dentes”) e os “quadrados”: “A Lua, como a Terra, é redonda. Os ‘quadrados’ podem, quando muito, visitá-la na qualidade de turistas, que é a sua única condição de vida.” JORNAL DA ABI 382 • SETEMBRO DE 2012
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FOTOS ACERVO FICHEL DAVIT CHARGEL
VIDAS
Severino Araújo
UMA OBRA FECUNDA Além de festejado regente, Severino Araújo foi também um compositor fecundo, que se notabilizou pela produção de uma infinidade de choros, considerado um gênero fundamental da música popular brasileira. Eis os títulos de suas criações: 400 ANOS DE G LÓRIA A T ABAJARA EM RECIFE A T ABAJARA NO FREVO Á GUA C OM A ÇÚCAR B AIÃO P RA MALUCO BEIJOS DE MEL B RINCANDO C OM O T ROMBONE C HORO , ETC... C LARINETE ... C OM PASSIVO C OMPRANDO B ARULHO E SPINHA DE BACALHAU M IRANDO -TE M OLENGO N A P ENUMBRA N EGO V ÉIO ( COM A RNALDO T AVARES ) N O T EMPO DA P OLCA N ONINHO O F REVO NO R IO O H! CLARINETE G OSTOSO PENSANDO EM V OCÊ P REFIXO P ULADINHO S AUDADES DO N ORTE S AXOMANÍACO U M C HORINHO D ELICIOSO U M C HORINHO E T ANTO U M C HORINHO EM C ABO F RIO U M C HORINHO EM M ONTEVIDÉU U M C HORINHO EM P INHAL U M C HORINHO NA A LDEIA U M C HORINHO PARA C LARINETE U M C HORINHO P RA V OCÊ U M P ASSEIO C ONTIGO
O maestro do baile Parece Que Foi Hontem Com profissionais que tocavam com amor aliado a extrema competência, esse pernambucano de Limoeiro foi uma das principais referências musicais do Rio e do País.
O Rio de Janeiro e o Brasil perderam no dia 3 de agosto uma de suas principais referências musicais: o maestro Severino Araújo, regente da Orquestra Tabajara e compositor fecundo, que faleceu aos 95 anos, no hospital Ipanema Inn, onde estava internado desde o dia 20 de julho, com quadro de infecção urinária. O boletim médico descreveu a falência múltipla dos órgãos como a causa da morte. Seu corpo foi sepultado no dia 4, no Cemitério São João Batista, em Botafogo, Zona Sul do Rio. O músico era casado com Neuza Monteiro, 85 anos, sua segunda esposa, e deixa quatro filhos: Tânia, Ronaldo, Francisco e Ieda, os dois últimos do primeiro casamento. Severino Araújo manteve estreita colaboração com a ABI a partir da década de 1970, quando foi o maestro da Orquestra Tabajara numa das mais importantes realizações da Casa, o baile Parece Que Foi Hontem, que reunia os boêmios do Rio de Janeiro num encontro anual. Ao ser convidado para reger a orquestra que tocaria no baile, Severino revelou que estava afastado da música e já nem tinha as partituras das peças que ele e seus músicos executavam. A ABI ajudou-o a resolver o problema e ele assumiu com grande encantamento a direção musical do evento, que, como lembra o Conselheiro Fichel Davit Chargel, idealizador do baile, se tornou uma das melhores festas da Cidade. Talento precoce Severino Araújo nasceu em Limoeiro, Pernambuco, em 23 de abril de 1917. Começou a aprender música aos seis anos com o pai, José Severino de Araújo, o Mestre Cazuzinha, autodidata, compositor e regente da orquestra local. Aos oito anos se tornou assistente do pai e aos 12 anos já tocava clarinete.
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Em 1933, a família se mudou para a cidade de Ingá, na Paraíba, onde sua fama como clarinetista cresceu. Três anos depois, Severino Araújo foi convidado a ser o primeiro clarinetista da Banda da Polícia de João Pessoa e foi morar na capital. Em 1937, o Governo da Paraíba contratou uma orquestra inteira, a Tabajara, para tocar na emissora de rádio oficial, a PRI-4. A Tabajara já existia e animava os bailes da região. O maestro e pianista Luna Freire convidou Severino Araújo para ser o primeiro clarinetista da orquestra. Em 1938, com a morte de Luna Freire, a direção da rádio convidou Severino Araújo para assumir o posto de regente e contratar mais músicos. Posteriormente, os quatro irmãos de Severino Araújo, que também eram instrumentistas, passaram a integrar a Tabajara. O primeiro chorinho Em 1943, Severino serviu o Exército durante um ano no 15º Regimento de Infantaria, em Aldeia, interior de Pernambuco. Na ocasião escreveu Chorinho da Aldeia, seu primeiro grande sucesso como compositor. Um ano depois, aceitou o convite da Rádio Tupi para trabalhar no Rio de Janeiro, onde foi contratado pela gravadora Continental, lá gravou seus primeiros discos. Em 1945, o choro Espinha de Bacalhau, de sua autoria, gravado com a Tabajara, alcançou enorme sucesso. A orquestra foi contratada pela Rádio Tupi no mesmo ano. Em 1952, Severino Araújo viajou com a Tabajara para Paris, acompanhando o cantor Jamelão. Em razão do grande sucesso, o show ficou em cartaz na França durante um ano. Em 1954, o contrato com a Tupi se encerrou e a orquestra seguiu em turnê por várias capitais brasileiras e ao Uruguai. Um ano depois, foi contratada pela Rádio Mayrink Veiga, onde permaneceu durante quatro anos.
REPRODUÇÃO
P OR C LÁUDIA S OUZA
Elizeth Cardoso foi uma das artistas que deram canja no Parece Que Foi Hontem.
Severino Araújo e a Tabajara se apresentaram em diversos países e gravaram dezenas de lp’s aplaudidos pelo público e crítica, como 12 Ritmos Brasileiros, cujo repertório incluía samba, baião, marchinha, toada, maxixe, marcha de rancho, capoeira, samba-canção, choro, maracatu, cateretê e frevo. A partir de 1962, a Orquestra Tabajara foi contratada pela Rádio Nacional e permaneceu dois anos na emissora. Pouco tempo depois, assinou contrato com a TV Rio, apresentando uma nova formatação. Ao fim do contrato, a Orquestra decidiu encerrar a trajetória de 35 anos no rádio e na televisão, mas prosseguiu fazendo bailes e shows. Ao longo de sua história, a Tabajara vivenciou o surgimento de diversos movimentos musicais e novas fases da música popular brasileira, como a Bossa Nova, a Era dos Festivais,
o Tropicalismo, além da influência estrangeira, como o rock. Contudo, buscou a convivência com os novos ritmos sem abandonar a tradição. Quando reduziu suas atividades, nos anos 1970, a Orquestra cedeu músicos para gravações de várias estrelas da mpb, como Chico Buarque, Roberto Carlos e Tim Maia. Em 1975, a gravadora Continental lançou o lp Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara, em homenagem à carreira do maestro e de sua orquestra. No mesmo ano, a gravadora Odeon lançou o lp Severino Araújo e Orquestra Tabajara dentro da série Depoimento em seu volume 1, com antigos sucessos e novas gravações da Orquestra. Em 1976, a Tabajara recebeu convite para apresentações regulares no espetáculo Seis e Meia, no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, Rio de Janeiro. Foi esse um momento de revitalização. Na Domingueira Voadora Nos anos 1980, nova oportunidade de recuperação surgiu com a Domingueira Voadora, no Circo Voador, que atraiu um novo público para a música de Severino Araújo. Na década de 1990, o maestro realizou uma série de shows em comemoração à Tabajara, que se tornara a mais antiga orquestra em atividade no Brasil, e aos mais de 100 discos gravados nos formatos lp e 78 rpm. Em 2003, no aniversário de 70 anos da Tabajara, o maestro regeu o baile de número 13.644 da orquestra. Em 2004, com a reabertura do Circo Voador, a Orquestra Tabajara voltou a realizar a tradicional Domingueira Voadora. Em 2005, Severino Araújo regeu a Tabajara no show de encerramento da série Orquestras Populares Brasileiras, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. Severino manteve-se à frente da Orquestra ao longo de mais de seis décadas e se afastou por problemas de saúde em 2005, quando a função de regente foi assumido por seu irmão, Jaime Araújo.
Dois flagrantes do Parece Que Foi Hontem: à esquerda, numa roda, Fichel Davit, de chapéu de palhinha. Ao lado, o advogado Nilo Batista (à esquerda) e Paulinho da Viola, de pé.
ALCYR CAVALCANTI
Uma festa que mexia com o Rio boêmio Como surgiu o baile que constituiu uma sensação no Rio durante 22 anos. O maestro Severino Araújo manteve boa colaboração com a ABI com a apresentação da Tabajara no baile Parece Que Foi Hontem, promovido pela Casa durante mais de duas décadas. Essa promoção cultural, que integrou o calendário oficial da Cidade do Rio de Janeiro, contribuiu para o resgate dos bailes antigos e revitalizou a música de orquestra, impulsionando outros projetos, como o lendário Seis e Meia, criado no Teatro João Caetano por Albino Pinheiro. Na entrevista a seguir, o jornalista Fichel Davit Chargel, Conselheiro da ABI e idealizador do Parece Que Foi Hontem, fala sobre a relevância do projeto, que imprimiu alegria à cidade Rio de Janeiro. Jornal da ABI – Como surgiu a idéia de promover o baile? Fichel Davit – Em 1975 estávamos vivendo momentos difíceis de ditadura, de censura e perseguições. Na época em que trabalhei na Redação do jornal O Globo, promovíamos encontros semanais de colegas e pensamos em fazer outras atividades de lazer. Eu era Diretor de Sede da ABI. Foi então que surgiu a idéia do baile para reunir o pessoal. Paulo Pena, nosso colega do Globo e também gerente do Banerj, nos incentivou muito a fazer o baile. Jornal da ABI – Como foi escolhido o nome Parece Que Foi Hontem? Fichel Davit – O nosso objetivo era resgatar o clima dos bailes antigos, como nas festas de formatura, e manter a tradição das grandes orquestras, como a de Severino Araújo, a primeira que nos veio à cabeça quando pensamos o projeto. Vale lembrar que no período da ditadura as orquestras perderam espaço. Muitas não sobreviveram também em virtude do advento dos conjuntos de rock e iê-iê-iê. Jornal da ABI – De que maneira vocês organizaram o primeiro baile? Fichel Davit – Primeiramente conversamos com o maestro Severino Araújo, mas percebemos que seria impossível contar com este apoio, porque a orquestra dele, assim como as outras, estava parada e ele não tinha as partituras. O maestro explicou que precisaria levantar tudo novamente e que isso ficaria muito caro. Acho tam-
bém que ele não estava acreditando muito no projeto. Procuramos, então, outras pessoas como o Valdemar Szpilman, que também deixou claro que não teria condições de fazer o baile. Até que nos indicaram o Epaminondas, spalla do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que adorou a idéia e se dedicou ao projeto montando partituras. Jornal da ABI – Que outras pessoas ajudaram a estruturar o baile? Fichel Davit – Contamos com o apoio de muita gente, como a jornalista Dulce Alves, que trabalhava na Rádio Tupi e era funcionária da ABI. Muito incentivadora e dinâmica, Dulce conversou com a cantora Eliana Pittman, que era amiga dela e se comprometeu a emprestar as partituras do pai, Booker Pitman, para que o Epaminondas fizesse o arranjo para a orquestra. Jornal da ABI – Onde foi realizado o primeiro baile? Fichel Davit – Na Associação dos Empregados do Comércio, que tinha tradição e um espaço razoável, não muito grande, até porque estávamos iniciando um projeto que poderia dar certo ou não. O evento foi um sucesso absoluto e ganhou uma boa matéria nas páginas do Jornal do Brasil. As pessoas entenderam a proposta, foram vestidas com roupas antigas e ajudaram a repercutir a atividade. As 120 mesas ficaram lotadas e muita gente ficou do lado de fora. A grande maioria dos freqüentadores era jornalista, mas também havia muitos profissionais liberais. Jornal da ABI – Que critérios foram usados para definir a periodicidade do baile? Fichel Davit – Todos queriam que o baile fosse semanal, mas decidimos pelo evento anual para manter o clima de expectativa e não tornar a coisa repetitiva. Epaminondas realizou apenas um ou dois bailes. Em seguida, conseguimos contratar uma orquestra que tocava na TV Globo, que também fez poucos bailes. Até que o maestro Severino Araújo foi convidado para fazer o Projeto Seis e Meia, no Teatro João Caetano, com a Orquestra Tabajara. Acredito que o convite foi feito em razão da grande repercussão do nosso baile, que acabou revitalizando o gênero das orquestras. Adquiriu uma proporção enorme.
Jornal da ABI – Em que locais o baile foi realizado? Fichel Davit – Fizemos uma edição no Automóvel Clube, com um salão belíssimo, mas que não tinha cozinha. Foi preciso contratar um bufê, o que acarretou um sério problema com a fumaça no ambiente. Não deu certo. Fizemos uma edição fantástica no Copacabana Palace, com os convidados enfrentando uma fila de mais de uma hora para entrar. Contudo, apesar da exuberância do Copa, o local não foi aprovado pelo nosso público. A orquestra ficava tocando em um salão e as pessoas foram acomodadas em dois espaços separados. As mulheres, especialmente, não gostaram de ter de circular entre dois salões para ver e serem vistas. O melhor espaço para nós foi o Clube Monte Líbano, com mais de 300 mesas, mezanino, camarotes. Jornal da ABI – Quanto tempo durou o projeto? Fichel Davit – Os bailes foram realizados durante 22 anos, sempre no mês de agosto, e integraram o calendário oficial da cidade, com projeto de autoria de Maurício Azêdo, durante um de seus mandatos de vereador. O então Prefeito Saturnino Braga apoiou a idéia. O apoio do Município do Rio de Janeiro foi interrompido na gestão de César Maia. Além da Prefeitura, recebíamos apoio de várias entidades. Muitos companheiros jornalistas trabalhavam em empresas e conseguiam apoio. A imprensa também colaborou com a publicação de notas e matérias que ajudavam a repercutir o baile. Com a verba de apoio tínhamos condições de pagar desenhistas para confeccionar cartazes e folhetos de divulgação de excelente qualidade. No final, tivemos que nos adaptar à falta de dinheiro.
Jornal da ABI – Que outras ações culturais surgiram a partir do baile? Fichel Davit – Entre 1986 e 1995, circulou a revista Parece Que Foi Hontem, totalizando sete edições. A revista era editada por mim e por Anderson Campos. Durante oito anos editamos também pequenos livros com letras de 200 músicas. No primeiro ano apresentamos músicas brasileiras, francesas, norte-americanas, tangos e boleros. Mas depois decidimos editar apenas músicas brasileiras. Muita gente guarda a coleção até hoje, que reúne cerca de 1.500 letras. Algumas edições traziam letras de um único compositor, como Chico Buarque de Hollanda, entre outros. Imprimimos algumas edições na própria gráfica da Prefeitura do Rio. Jornal da ABI – Além de resgatar as orquestras, o baile promoveu a integração entre seus freqüentadores, músicos, artistas... Fichel Davit – Sim. Como não havia um crooner fixo, muitos artistas davam canjas, como Elizeth Cardoso, Cauby Peixoto, Elza Soares. Tivemos notícias de vários namoros e casamentos que começaram no baile. Tínhamos uma lista dos participantes assíduos e vendíamos os convites por telefone, muitas vezes já para o ano seguinte! Nós inventamos o telemarketing (risos). Muitos freqüentadores tinham mesa cativa. É uma tristeza ver acabar uma atividade cultural deste nível. Infelizmente, o baile não se paga sozinho. Seria preciso cobrar caro pelo convite. Jornal da ABI – Você acredita no projeto de retomada do baile Parece Que Foi Hontem? Fichel Davit – Acredito que ainda exista espaço para a retomada do baile, até mesmo com o apoio da Prefeitura. A falta de financiamento foi crucial para o fim. O custo não é tão alto assim. Atualmente as orquestras estão desprestigiadas, assim como naqueles tempos da ditadura. Seria interessante retomar o gênero. Ainda ontem encontrei um dos amigos que acreditam no retorno do baile.
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VIDAS
Os diretores da Ebal desenhados por Eugênio Colonnese para o álbum Chamada Geral.
Naumim Aizen, o editor P OR O TACILO D ’A SSUNÇÃO
Naumim Aizen nasceu em 16 de outubro de 1939, no Rio de Janeiro. Era filho de Adolfo Aizen, o lendário fundador do Suplemento Juvenil e mais tarde da Editora Brasil-América-Ebal, que dos anos 1950 a 1970 foi a mais importante editora de quadrinhos do País. No início dos anos 1960 começou a trabalhar na Ebal, onde ficou até o encerramento das atividades nos anos 1990. Com um amplo leque de publicações para todos os públicos, desde livros e revistas infantis com os personagens dos Looney Tunes, a famosos cowboys do cinema e do rádio, como Zorro/Lone Ranger, Roy Rogers, Gene Autry, e super-heróis das editoras americanas Marvel e DC, a Ebal também publicava quadrinizações de clássicos nacionais e estrangeiros da literatura na Edição Maravilhosa e até personagens brasileiros como O Judoka, além de manter em suas dependências o primeiro museu especializado em quadrinhos do Brasil. Numa época em que os gibis não eram vistos com bons olhos por educadores e religiosos, os Aizen contornaram a situação lançando edições educativas com biografias de personagens da História do Brasil na revista Grandes Figuras e santos da Igreja Católica na Série Sagrada. Em 1970 a editora comemorou seu jubileu de prata com grande pompa e diversos eventos ao longo do ano, incluindo o lançamento de Chamada Geral, um publicação especial que apresentava um crossover entre todos os personagens publicados pela editora. Pela primeira vez, heróis da DC e da Marvel apareceram juntos numa mesma história, ao lado de personagens históricos como Pedro Álvares Cabral e Dom Pedro II e clássicos da literatura infantil como Branca de Neve. O próprio Naumim e os demais diretores também apareceram como personagens, no traço do consagrado Eugenio Colonnese. Entretanto, a editora não conseguiu comemorar seu jubileu de ouro. Foi progressivamente perdendo seus principais personagens para a concorrência e nos anos 1990 encerrou suas atividades, funcionando algum tempo como gráfica, até 46
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que as máquinas foram sucateadas ou vendidas para pagar as dívidas da empresa. O prédio principal na Rua General Almério de Moura, 320 foi alugado para uma escola em 1996, ficando o outro, no número 302, funcionando precariamente por mais um tempo. O acervo do famoso Museu das Histórias em quadrinhos, criado por seu pai, acabou sendo doado à Biblioteca Nacional, pois a família Aizen não tinha mais condições de conservá-lo. Nos bons tempos, enquanto o irmão mais velho Paulo Adolfo cuidava da parte comercial, Naumim, que era o intelectual da família, assumiu a diretoria editorial. Todos os amigos têm boas recordações dele. Naumim era um gentleman e representava a editora em congressos internacionais de quadrinhos e era amigo pessoal de todos os autores importantes. Era a ponte entre a editora e os criadores. Na verdade, ele próprio era um autor também: nos anos 1950 roteirizou alguns romances publicados na Edição Maravilhosa. A partir de 1980 escreveu vários livros infantis, sendo o mais conhecido o seu livro de estréia, Era Uma Vez Duas Avós (1980), agraciado com o Prêmio Jabuti de autor revelação (Prêmio Jannart Moutinho Ribeiro). Naumim também participou de livros teóricos sobre quadrinhos, como Shazam! (Editora Perspectiva, 1970), coordenado por Álvaro de Moya, no qual escreveu um capítulo sobre onomatopéias nas histórias em quadrinhos, e Literatura em Quadrinhos no Brasil (Editora Nova Fronteira/Biblioteca Nacional) em coautoria com Moacy Cirne, Álvaro de Moya e Otacilo d’Assunção. Nos últimos anos vivia praticamente recluso no Lar da Velhice Israelita Religiosa, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, onde foi morar voluntariamente depois que se divorciou de Sônia Aizen. Evitava visitas, mas costumava se comunicar com os amigos pela internet até 2009. Depois disso ficou com a saúde bem debilitada por uma doença rara e ainda incurável, PSP (Paralisia Supranuclear Progressiva), que o levou no dia 20 de julho. Não teve filhos. Deixa os irmãos Paulo Adolfo e Mário Aizen. Este último nunca chegou a trabalhar na editora.
Sergio Toppi: No Brasil, um mestre quase inédito P OR C ESAR S ILVA
Intensa. Esta é a melhor definição para a arte de Sergio Toppi, ilustrador milanês falecido no dia 21 de agosto, pouco antes de completar 80 anos. Toppi foi um ilustrador de traço impactante, considerado em todo o mundo como um dos maiores mestres dos quadrinhos. Senhor de um estilo moderno e arrojado, que valorizava os espaços brancos, influenciou muitos artistas importantes em todo o mundo, como Bill Sienkiewicz, Walt Simonson e Frank Miller, por exemplo. Nascido em 11 de outubro 1932, Toppi apaixonou-se pelos quadrinhos em algum momento dos anos 1940, ao ver os desenhos de Dino Battaglia e Hugo Pratt em um exemplar da revista Asso de Picche. Ele estudou na Escola de Arte do Castelo, mas não terminou o curso. Antes de se envolver com a arte que lhe daria prestígio, começou fazendo ilustrações publicitárias para a Enciclopedia dei Ragazzi, para a Unione Tipografico-Editrice Torinese, para a editora Mondadori e para a revista Topolino. Também trabalhou produzindo desenhos animados publicitários para a Caroselli Televisivi. Estreou nos quadrinhos infantis no início dos anos 1960, com a hq Il mago Zurli, publicada no Corriere dei Piccoli. Trabalhou várias vezes com o roteirista Mino Milani, para quem ilustrou a série La Vera Storia di Pietro Micca, também publicada no Corriere dei Piccoli. Sua grande chance surgiria em 1974, quando foi contratado por Sergio Bonelli para ilustrar Herman Lehmann: L’indiano bianco. Especializou-se então no quadrinho juvenil, publicando histórias avulsas nas revistas Sgt. Kirk e Il Giornalino, entre outras, numa qualidade que lhe valeu um Prêmio Yellow Kid em 1975, recebido no 11º Festival Internacional de Quadrinhos de Lucca.
No ano seguinte, também a convite de Bonelli, começou a ilustrar uma série de três álbuns para prestigiosa coleção Un Uomo, Un’avventura, com aventuras históricas que passariam a caracterizar sua obra. Entre 1978 e 1980, ilustrou História da França em Quadrinhos e A Descoberta do Mundo para a editora francesa Larousse. Sérgio Toppi colaborou com algumas das mais importantes revistas européias de quadrinhos, com trabalhos publicados na Linus, Alter Alter, Corto Maltese, L’Eternauta, Comic Art e Ken Parker Magazine. Também são títulos importantes de sua obra os álbuns Sharaz-De (imagem acima) e Il Colezzionista, o único personagem criado por ele. Mais recentemente, Toppi colaboraria novamente com os estúdios Bonelli, ilustrando histórias para as séries Nick Rider e Julia Kendall, e passaria a ser publicado regularmente na revista francesa Mosquito. No Brasil, a obra de Toppi foi pouco publicada e pôde ser apreciada no álbum O Homem do Nilo, da coleção Um Homem/Uma Aventura, lançado pela Ebal em 1978 e em algumas revistas esporádicas, como Eureka Aventura, de 1977, Eureka nº 11, de 1978, ambas da Editora Vecchi; Júlia Kendall, As Aventuras de uma Criminóloga, n° 11 (Mythos, 2005) entre outras. Em 2005, ilustrou as capas das edições americanas da minissérie 1602: New World, da Marvel Comics, publicada no Brasil no ano seguinte em um único volume. Em 2003, o mestre esteve em Belo Horizonte, participando do FIQ - Festival Internacional de Quadrinhos, que abrigou uma bela exposição de seus trabalhos. Toppi faleceu em Milão, depois de uma longa luta contra o câncer que, apesar de dura, nunca o afastou da prancheta, numa carreira de quase 60 anos. Entre suas últimas obras estão, pela Edizioni Papel, os portfólios Lo Sono l’Erba (2008) e Divertissement (2009), ambos com ilustrações inspiradas na Irlanda, e Luce dell’Est (2012), sobre o Japão medieval. Intensos, como sempre.
FOTOS ACERVO PESSOAL
Um homem de muitas imagens Edson Jansen morre aos 69 anos. Amigos lembram da trajetória brilhante do repórter-fotográfico, vencedor de um Prêmio Esso, na imprensa paranaense. Edson Jansen e a foto que ganhou o Prêmio Esso, um flagrante durante a invasão à UFPR: “Ele costumava correr na frente de todo mundo para ser o primeiro a tirar as fotos.”
P OR P AULO C HICO
“Ele foi um exímio professor. Repórter fotográfico com uma sensibilidade do tamanho da sua simplicidade. E, mesmo sendo o mais experiente, foi o primeiro que vi nesta Redação empunhando uma máquina digital, quando a tecnologia apareceu. Era um daqueles profissionais que dão orgulho de ter conhecido e ter trabalhado junto”. A declaração que abre esta matéria, dada ao Jornal da ABI por Rafael Tavares de Mello, Diretor de Redação da Tribuna do Paraná, faz referência a Edson Jansen. E traduz com exatidão o sentimento dos colegas pelo fotógrafo, falecido em 26 de agosto. Ele estava internado na UTI do Hospital Evangélico desde 2 de agosto, devido a complicações de saúde em decorrência de um acidente doméstico. Faleceu aos 69 anos e deixou a mãe Araci Jansen, a esposa Josefa Lucas Jansen e a enteada Elisangela, além de duas irmãs e um irmão. E uma rica trajetória no fotojornalismo nacional, e paranaense, em especial. Em quatro décadas, Edson teve passagens pelos jornais Gazeta do Povo e O Estado do Paraná, além do já citado Tribuna do Paraná. “Este é um momento de tristeza para a imprensa do Estado, que perde um profissional de reconhecida competência e uma pessoa honrada”, afirmou o Governador Beto Richa em nota oficial, ao lamentar o falecimento do fotógrafo.
Jansen ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em plena ditadura, em 1968, com uma fotografia que entrou para a História da imprensa brasileira. Ele registrou o momento em que o estudante José Ferreira Lopes, de estilingue na mão, enfrentava solitariamente a cavalaria do Exército durante a invasão do Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. “Além do tino jornalístico, o que o fazia perceber qual situação merecia ser registrada, Jansen tinha sensibilidade para não ‘agredir’ o leitor diário do jornal com imagens desnecessariamente fortes, como em acidentes automobilísticos e crimes – duas pautas comuns para quem cobre a cidade. Nestes casos buscava detalhes que contassem o ocorrido de forma sutil. Não
gostava de fotografar a pobreza, fugindo do recurso fácil, procurando levar ao leitor imagens belas. Acho que todos os que trabalharam com ele aprenderam algo. Principalmente o Jonathan Campos (hoje na Gazeta do Povo) e o Valterci dos Santos receberam influência direta de seu estilo”, contou o cartunista Marco Jacobsen, amigo de Edson, em entrevista ao Jornal da ABI. A curiosidade era a marca registrada do fotógrafo, que herdou a paixão do pai. Edson começou na fotografia quando ainda era adolescente. “Quando tinha uns 14 ou 15 anos começou a ajudar nosso pai com a revelação das fotos e, como uma
brincadeira, aprendeu a utilizar as câmeras e acabou se apaixonando pela fotografia. Ele costumava correr na frente de todo mundo para ser o primeiro a tirar as fotos. Foi isso o que aconteceu no dia do flagrante da invasão à UFPR, imagem que ganhou o Esso. Na hora que estava trabalhando, não pensava em nada, não tinha medo de nada”, lembra a irmã Iara Regina Jansen. Além de trabalhar em diversos veículos da imprensa do Paraná, pai e filho também atuaram na comunicação do Governo do Estado. O corpo de Jansen foi enterrado no dia 27 de agosto, no Cemitério Parque Iguaçu, em Curitiba.
Pioneira da crônica social em Niterói, Lou “apenas partiu” P OR P INHEIRO J UNIOR
Maria de Lourdes Freitas Pacheco foi a boa e solícita companheira de todos no dia-a-dia das Redações do antigo O Estado, da velha Última Hora (décadas de 1950/ 1960) e do infante Lig, jovem e vitorioso hebdomadário. Noticiar que Lou Pacheco morreu aos 90 anos, a 22 de agosto último e foi sepultada no dia seguinte no Parque da Colina, é no mínimo uma informação mal apurada. Ao produzir a pioneira coluna sobre a sociedade especificamente niteroiense para a edição fluminense de UH, ela na verdade acabou por conquistar o imaginário jornalístico social, segundo o qual “tudo passa, mas tudo volta a ser como sempre foi”. O axioma é por demais óbvio para ser atribuído a um único estudioso do jornalismo especializado em frivolidades aldeãs. Mesmo assim é bom lembrar que Lou estava mais para uma versão feminina do intelectualizado Jacintho de Thormes do que para uma apresentação coqueteleira de Ibrahim Sued.
Versão feminina, aliás, muito à vontade ao acompanhar a louca corrida das damas e senhores niteroienses em busca da fácil notoriedade proporcionada pela cronista incendiária, no bom sentido, pois Lou era sim uma promotora de fogueiras de vaidades – aquela Fogueira de Vaidades que o cinema haveria de celebrizar 30 anos depois com o filme de Brian DePalma. Muito embora ou principalmente porque Lou fazia por onde queimar nesta pira de colunáveis os menos vulgares, abrindo espaço para artistas, escritores, poetas – não fosse ela irmã do celebrado Jacy Pacheco – e intelectuais multimídias como os Francisco e Luiz Antônio Pimentel, as Maria Jacintha, os Carlos Couto, os Sávio Soares de Souza, os Geir Campos, os Nélson Pereira dos Santos... Estes dois últimos sem nenhuma vantagem local, aliás, pois tão nacionalmente famosos se fizeram como se fez Antônio Maria, que, quando sentia fome de carne assada, vinha freqüentar um terreiro gastronômico no Morro do Estado e não escapava de ser desnudado na coluna de Lou em UH.
Filha da doce terra campista, de família operária e numerosa, foi casada com o psiquiatra Hélio Rosa, irmão do maior dos nossos compositores populares, Noel Rosa. Quando Lou surgia nos salões era inevitável o zum-zum-zum das mariposas e dos zangões de plantão nos clubes à beira da praia de Icaraí e da Major Fróes. Lou era, porém, muito mais que uma mera resenhista de festas e modas, de fofocas críveis e incríveis. Porque tinha o que o então editor de UH-Flu, Theodoro de Barros, chamava de “consciência socialideológica”. E sabia, como Gonçalves Dias, que “a vida é um combate e viver é lutar!”. Viveu assim até se aproximar dos 100 anos que todos apostavam que ela romperia para não deixar solo o jovem centenário Luiz Antônio Pimentel. Mas lutar, quando a ditadura chegou, era crime punido com campo de concentração no Estádio Caio Martins ou com quartéis, como as casernas da PM General Castrioto e General Fonseca Ramos, onde recolheram Lou e tantos outros até que a ca-
nalhada golpista se mancou e a soltou, não sem antes submetê-la a humilhações. A própria Lou nunca se supôs uma subversiva. Mas humilhar jornalistas era praxe político-militar pelo simples fato profissional de que os suspeitos eram jornalistas. E se trabalhassem em UH, mais suspeitos, mais perseguidos seriam. Lou fez escola e continua viva, bem no coração da matéria dos velhos e jovens companheiros de todos os jornais. Inclusive – e principalmente – do hebdomadário Lig, uma invenção editorial de Fernando Ferraz para se contrapor ao sucesso jornalístico das modas do também semanário Gil. Lig era, na verdade, Gil de trás para frente. Mas que deu certo navegando nos fins de semana de Icaraí e adjacências, recebendo carinhosa acolhida de leitores da cidade que Lou “colunava”, amou e soube retratar. Como no poema Apelo de Vinicius de Moraes, os velhos companheiros agora cantam em surdina a melodia que é de Baden Powel: “Se tu soubesses como é triste eu saber que tu partiste...”
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