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EMOÇÃO E LÁGRIMAS NA 62ª CARAVANA DA ANISTIA

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FOTO JOSÉ DUAYER

ÓRGÃO OFICIAL DA A SSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

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VIDAS ERIC HOBSBAWM • CARLOS NELSON COUTINHO • LEONOR GUEDES • AUTRAN DOURADO • ARTHUR SULZBERGER • ORIOVALDO RANGEL • HEBE CAMARGO


DESTAQUES

TEMPOS DE BARBÁRIE

ALCYR CAVALCANTI

EDITORIAL

MARGARIDA PRESSBURGER PARTICIPOU DO SEMINÁRIO VOTAR LEGAL, NA ABI. PÁGINA 16

MAURÍCIO AZÊDO A VIDA DEMOCRÁTICA NO PAÍS não será estabelecida plenamente enquanto os crimes cometidos pelos sicários da ditadura militar, na tortura e liquidação dos contestadores do regime, não forem submetidos a julgamento, a despeito da infeliz decisão do Supremo Tribunal Federal que, com o voto equivocado do então Ministro Eros Grau, declarou esses criminosos como beneficiários da Lei da Anistia de 1979. Esta é uma nódoa imperdoável, cuja superação só será efetivada quando esses delitos e seus autores forem nominados e expiarem os nefandos crimes que cometeram sob a proteção do Estado terrorista implantado no Brasil após o golpe militar de 1º de abril de 1964. AO LONGO DOS ÚLTIMOS ANOS, em seu Site, neste Jornal e em numerosos atos públicos de que participa, a ABI tem exposto com riqueza de minúcias as violências praticadas nesses tempos de barbárie, a exemplo do que fazem outras instituições da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil, especialmente através de sua Seção do Estado do Rio de Janeiro, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, os Grupos Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e de São Paulo e o Instituto Vladimir Herzog, que honra com sua atuação o nome desse mártir das lutas pelas liberdades no Brasil. A IMPIEDADE DESSES TEMPOS de crimes sem contenção foi retratada neste mês de outubro de 2012 na 62ª Caravana da Anistia realizada no Rio de Janeiro, durante a qual centenas de pes-

soas comuns ouviram estarrecidas e emocionadas os relatos de duas vítimas de sevícias da ditadura, Maria Célia de Melo Lundgren e Maria Cristina da Costa Lyra, que, mesmo passados 40 anos de seu calvário, não conseguiram dominar a comoção das terríveis lembranças de suas passagens pelos cárceres do regime militar. Tanto Maria Célia como Maria Cristina sofrem ainda hoje a angústia de um passado tornado tenebroso pelos esbirros da ditadura. Assim como ambas durante seus depoimentos, os participantes da sessão choraram ao terem notícias da tanta violência e de tanta dor.

03 DEPOIMENTO - “O velho está agarrado no presente!” ○

15 MEMÓRIA - Um diálogo Konder-Hebe ○

20 V EÍCULOS - Correio Popular de Campinas faz 85 anos ○

21 H ISTÓRIA - Um texto inédito de Edmar Morel sobre os mortos da imprensa ○

32 DEPOIMENTO - As revoluções de Sylvio Back ○

36 H OMENAGEM - O grande Lua do Sertão ○

38 M EMÓRIA - A ascensão e queda da Manchete nas lembranças de Arnaldo Niskier ○

IGUAL EMOÇÃO CAUSOU o depoimento de Daniel Carvalho de Souza, filho do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e sobrinho do cartunista Henfil. Por força das perseguições promovidas contra seu pai, um dos líderes da nascente resistência à ditadura, Daniel foi exilado com a mãe quando tinha três anos, viveu ainda menino em vários países e só retornou à sua terra em 1979, com l4 anos de idade, com a instituição da Lei da Anistia. Como ele, muitas outras crianças, como os filhos do jornalista mineiro José Maria Rabelo, enfrentaram essa dolorosa provação.

40 L IVROS - Deus é investigado em livro-reportagem de José Carlos de Assis

POR MAIS QUE OS SOBREVIVENTES da ditadura deblaterem, esgrimindo a Lei da Anistia como um estatuto de perdão, não há como poupar os autores desses crimes inomináveis de que tantos patrícios foram vítimas do destino que uma sociedade realmente democrática reserva a quantos delinqüiram de forma tão abjeta: o banco dos réus.

D IREITOS H UMANOS 28 Emoção e muitas lágrimas na 62ª Caravana da Anistia

SEÇÕES 0 A CONTECEU NA ABI 16 A ficha limpa barrou 2.200 candidatos no RJ ○

19 Chineses propõem intercâmbio ○

L IBERDADE DE I MPRENSA 26 Dono de jornal é morto em Mato Grosso do Sul ○

27 Tentativa de censura em Mariana, MG ○

Publicado em O Cruzeiro de 31 de maio de 1958.

41 L IVROS - Retratos de Lima Barreto por ele próprio

30 Executado em 1973 no Araguaia, Maurício Grabois ganha cidadania do RJ ○

31 Mais que um prêmio, um símbolo ○

V IDAS 42 A unanimidade de Eric Hobsbawm ○

O OLHAR DE Z IRALDO

12 DOCUMENTO - O relatório da bomba

43 Carlos Nelson Coutinho: perdemos um grande pensador ○

44 Sulzberger, parte da história da imprensa norte-americana ○

44 Oriovaldo Rangel, jornalista-escritor ○

45 A solidão, segundo Autran Dourado ○

46 Leonor Guedes, criadora da Orbe Press ○

46 Hebe: A rainha da televisão brasileira ○

DIVULGAÇÃO

EM SEU PROGRAMA, HEBE CAMARGO RECEBIA CONVIDADOS COMO RONNIE VON E CAÇULINHA.

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DEPOIMENTO

“O velho está agarrado no presente!” Ele garantiu os 80 e está feliz da vida. Inteiro, trabalhando muito, especialista em velhice. Ziraldo não pára.

POR FRANCISCO U CHA COM VERÔNICA COUTO E S ANDRO FORTUNATO FOTOS J OSÉ DUAYER

iraldo! Esta assinatura é uma instituição nacional. Ele não é mais aquele menino inteligente e agitado que saiu de Caratinga pensando em desenhar histórias em quadrinhos. Seu nome já se tornou lendário, tamanho é o seu talento e o seu sucesso nas mais diversas áreas que abraçou. Quadrinista, chargista, humorista, escritor, pintor, designer, cartazista, publicitário, relações-públicas, editor, jornalista, produtor, apresentador de programas de tv. Ufa! Ziraldo é tudo isso e muito mais. “Eu sou especialista em assuntos gerais, sou especialista em tudo”, disse sem falsa modéstia e com um leve tom brincalhão nesta entrevista. Foi assim desde criança: “Quando chegava visita, os meninos podiam brincar; eu tinha que tomar banho, me arrumar e ir para a sala conversar”. Todos tinham orgulho do “menino inteligente da Zizinha”. O avô se vangloriava: “Meu neto é um Rui Barbosa!” Mas Ziraldo confessa: “Eu era chato mesmo”. De bem com a vida, alegre, inteiro (como costuma falar), Ziraldo acabou de descobrir que tem mais uma especialidade: velhice. “O velho que disser que tem saudades da infância é um mentiroso filho da puta. O ancião é um cara do presente.” Pois é. Ele agora sabe qual é a verdadeira idade da velhice: “Um homem de 70 anos não é um ancião! Um homem de 80, sim.” E isso não diminui em nada o seu entusiasmo: “Companheiro!... Eu garanti oitenta anos. Eu saí da válvula para o chip. Estou feliz de ter vivido 80 anos nestes dois séculos.” Nesta primeira parte da entrevista que Ziraldo concedeu ao Jornal da ABI, ele relembra sua infância; sua paixão pelos quadrinhos; o início de carreira; seu trabalho como relações-públicas em O Cruzeiro; o encontro com Millôr, Jaguar, Reynaldo Jardim, Lan, Zuenir Ventura, e muitos outros grandes amigos; o convite para trabalhar nos Estados Unidos no final dos anos 1960; o projeto da revista masculina Fairplay, e a festa de arromba de seus 80 anos em Caratinga. Com vocês, o ancião maluquinho.

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DEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOS

Jornal da ABI – Você veio para o Rio de Janeiro para se tornar desenhista. Conte esse início em Minas. Desde quando começou a paixão pela história em quadrinhos? Quais foram seus inspiradores? Ziraldo – Toda a minha geração, de qualquer área de formação; todos os que tomaram conhecimento de livro, de literatura, todo mundo conhece e tem uma certa influência do Monteiro Lobato. Na verdade, não acredito nem em uma influência, mas em uma certa nostalgia. O Lobato povoou intensamente a infância da minha geração. Toda a entrevista que eu dou, preciso falar sobre a presença do Lobato na minha vida, com Pedrinho, Emília, aquela coisa toda. E principalmente porque na minha geração, especificamente no grupo escolar, o Lobato era controverso. A Igreja Católica tinha problema com ele; o pessoal anticomunista tinha problema com ele.... mas as professoras se encantavam com Reinações de Narizinho, As Caçadas de Pedrinho, o Sítio do Pica Pau Amarelo, o Jeca Tatu. O Jeca Tatu foi a primeira história em quadrinhos humorística que eu li. Vendendo ankilostomina, que era remédio contra as doenças da época, o bicho-do-pé. Ele calçou botinha nas galinhas. Aquilo foi emocionante – ver as galinhazinhas de botinha para não pegar bicho-do-pé. Mas Lobato não era meu amigo de infância. Meus amigos de infância eram o Batman, Super-Homem, Tarzan. Os livros da minha primeira infância eram de uma editora católica de Juiz de Fora que fazia muito livrinho para criança. Lembro de um chamado O Que Eu Li e Ouvi. Meu pai era muito pobre, mas foi estudar em Juiz de Fora para trabalhar na Academia de Comércio. Trabalhava varrendo o internato e o salário dele era estudar de graça, com comida, roupa lavada. E se formou guarda-livros. O quadro de formatura dele está na família até hoje. O retratinho na parede. Se formou com o Magalhães Pinto... Daí ele veio para Caratinga e trouxe muito livro da Academia. Ou ele afanou ou ele comprou ou ele ganhou. Mas tinha muito livro em casa. Muito. Eu passei a vida inteira brincando com livro, desenhando nos livros, destruindo os livros. Sempre que meu pai voltava de viagem, o presente era livro. Sempre. E minha mãe gostava muito de ler romance. Tem um que marcou, Um Clarão Riscou o Céu. Lembrei dele agora... Meu pai era um morador importante da cidade e sempre era escolhido para fazer discurso. E nunca fez um discurso que não fosse original. Tinha mania de escrever, de inventar parábola. Às vezes era muito engraçado. Ele também tinha uma letra admiravelmente bonita. Caderno de caligrafia. Tanto a minha mãe quanto o meu pai e meus avôs maternos, eram pessoas notáveis. Eles eram completamente fora dos padrões da minha

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No Pasquim, Ziraldo homenageou os personagens de sua infância criando desenhos memoráveis no Poster dos Pobres.

infância. Veja só: o sonho da minha mãe era juntar dinheiro para me dar o Tesouro da Juventude. Era o sonho da vida dela. E todo Natal não tinha dinheiro para comprar. Um dia, fui na casa de uma professora minha que tinha o Tesouro da Juventude na estante. Dona Didi do Ramos – o Ramos era um advogado. Minha mãe falou pra ela: “O sonho da minha vida era dar o Tesouro da Juventude para o meu filho”. Aí, a professora começou a me emprestar. Acabava de ler um volume e levava para a Dona Didi. Então, pegava outro volume. Eu li o Tesouro da Juventude todo emprestado. Eu nunca tive. Depois de velho comprei, lógico. Acho que ainda tenho aqui. O Tesouro da Juventude era um computador. Tinha resposta para tudo. E tinha todos os autores infantis: Collodi, Andersen, Grimm... todas as histórias infantis estavam ali, reduzidas. Era uma coisa emocionante. Aquela coisa do livro,

da mão... Mas a minha vida começa quando eu descubro o gibi. Aí é que é forte! Tinha um padre chamado Oto, que era muito rigoroso, um sujeito inteligente, convicto, fundamentalista mesmo, católico. Fundou a Cruzada Eucarística, da qual fiz parte. E ele proibiu a gente de ler gibi. Jornal da ABI – Na época, havia uma campanha forte contra os gibis. Você lia escondido? Como fazia? Ziraldo – Eu lia história em quadrinhos quando sobrava alguma edição, porque o jornaleiro era da minha rua, mais pobre. Minha rua não tinha calçamento. Botei isso num livro, chamado O Menino Quadradinho. Um dia eu estava voltando da missa das 10 horas, passou o jornaleiro – chamava Zé Biscoito – com o Gibi que trazia a estréia de um herói chamado Titã. Logo no mês seguin-

“Porra! Meu pai é um transgressor! Está me ajudando a desobedecer o padre!”

te, apareceu O Globo Juvenil com o Super-Homem. Então o jornaleiro passou gritando, pegou um e falou: “Toma o Gibi!” E eu falei: “O que é isso, ô, Zé? Eu não tenho dinheiro, como eu vou pagar? O Padre Oto falou que eu não posso ler isso!” E ele: “Deixa de ser besta, menino. Seu pai tá jogando sinuca ali, depois eu cobro dele”. Aí pensei: “Tô perdido. Meu pai era muito católico, como é que vai pagar gibi para mim?” Quando eu cheguei em casa, papai perguntou: “Que revista o Zé Biscoito te deu?” Eu mostrei e disse: “O senhor pagou?”. E ele: “Claro que eu paguei”. Papai era guarda-livros, tinha renda muito pequena. E ele perguntou: “É mensal?” Respondi que era e meu pai falou: “Vou falar para ele te dar todo mês”. Aí eu vibrei! “Porra! Meu pai é um transgressor! Está me ajudando a desobedecer o padre!” Também tinha o barbeiro da rua que se chamava Yuiu e comprava todos os gibis. Aí, meu pai combinou com ele para me passar pela metade do preço esses gibis que ele lia. Então eu tinha todos: Gibi Mensal, O Globo Juvenil Mensal, o Mirim, o Gibi Semanal, o Globo Juvenil Semanal, o Lobinho. Assim, eu virei desenhista de história em quadrinhos. Jornal da ABI – Como era o nome do barbeiro? Ziraldo – Ele se chamava Yuiu. Quer dizer, era conhecido por esse apelido. Como todo barbeiro, era bom de papo e, com isto, sabia conquistar a amizade dos fregueses. Ele era um jovem. Meu pai, bem mais velho do que ele, achava que o Yuiu era um belo sujeito! Fantástico desencavar essas lembranças. Deve ser a primeira vez, em quase sessenta anos, que repito o nome do Yuiu. Jornal da ABI – Nessa época você já desenhava? Ziraldo – Eu já desenhava quando nasci. Jornal da ABI – E como era sua infância? Ziraldo – Minha mãe me exibia muito. Quando chegava visita, os meninos podiam brincar; eu tinha que tomar banho, me arrumar e ir para a sala conversar. Lembro um dia que eu fui buscar no armazém um pacote de macarrão, um quilo de arroz e um quilo de qualquer outra coisa. Sei que eu vim com um saco, um cereal qualquer aqui, outro ali, e não tinha onde colocar o macarrão, que era um pacote comprido, azul. Eu usava aquela calça de suspensório fixo; então enfiei o pacote de macarrão entre os suspensórios e vim carregando tudo. Vinham duas senhoras e, ao verem minha sacada, uma comentou: “Que menino danado! Olha a solução que ele deu para carregar o macarrão!” E a outra: “Ah, é o menino inteligente da Zizinha”. Eu tinha fama de ser inteligente na cidade. E desenhava todos os cartões de festa, os convites, fazia jornalzinho na rua com os meninos.

Minha lembrança mais antiga é de três anos. Quem fala que lembra bem dos três anos está mentindo, porque o cérebro não registra. São vagas lembranças. Morreu meu avô. Eu lembro do tumulto no quarto e tal, mas a gente só organiza os fatos a partir dos seis, sete anos. Aí você se localiza no tempo, no espaço. Por exemplo, eu uso as músicas de Carnaval a partir dos seis anos, para identificar um período. Quando eu fiz seis anos, sei que eram seis anos porque lembro da música “...Será você a tal Suzana/, a casta Suzana do Posto Seis?...”, que é do Carnaval de 1938. E quando eu quero situar um fato qualquer, vejo a música a partir de um livro que guardo a sete chaves: O Carnaval Carioca Através da Música, de Edigar de Alencar, editado pela Livraria Freitas Bastos em 1965. Sua história vai de 1840 a 1965. É uma referência para mim. A música de sucesso do Carnaval marcava o ano. Pois eu tinha três anos, estava desenhando... lembro dos pés das pessoas em volta de mim, e eu deitado no chão. E uma voz dizia: “Ele está dizendo que isso é um tatu.” E eu lembro de ter pensado: “Estou dizendo é o cacete! Isso é um tatu, minha senhora!” Lembro direitinho – que antipatia dela. Eu caprichei. E esse tatu, três anos depois, quando eu já desenhava tatu para burro, meu pai mandou para Folha de Minas. Em 1938, a Folha de Minas publicou meu primeiro desenho. Eu tinha cinco anos. Fiquei na dúvida em que ano foi publicado. Mas pela música Jardineira, eu sei, foi em 1938. “Ó jardineira, por que estás tão triste...” Jornal da ABI – Você era uma criança calma? Ziraldo – Calminho nada. Era hiperativo, mas entendia tudo. Até hoje sou. Mas não tomei trequetol nem fiz eletroencefalograma, nem tinha psicólogo. Tinha era liberdade completa. “Menino, não enche o saco, vai brincar na rua”. Voltava para casa para lavar os pés e dormir. Tomava banho quarta e sábado. Era uma coisa muito libertária. Jornal da ABI – Tomava banho duas vezes por semana? Não fazia calor?


“Aí o Millôr virou o homem mais importante da minha vida. A partir daí, nunca mais o larguei.” Ziraldo – Conselheiro Pena: 45 graus à sombra. Vale do Rio Doce, um calor desgraçado. A gente não tomava banho. Menino não tem “cecê”, precisa tomar banho nada. Quando era pré-adolescente, minha família tinha mudado para o Rio, e eu vim visitá-la. A minha tia morava na Tijuca, num apartamento térreo, recém-casada. Estava arrumando a água para dar banho na filha na banheira. A água na banheira era azul clara, transparente, clarinha. Olhei aquela água assim, perguntei “Tia, o que a senhora botou na água?” “Botei nada”. Mas a água tão limpinha fica azulada. Para quem nunca tinha visto aquilo, a água era superazul. E é possível que tivesse algum cloro. Já a banheira da minha casa, quando a gente enchia, não via o fundo. Não sei como a gente sobreviveu. Metade dos amigos da minha infância morreu de esquistossomose. Quero fazer um filme como Amacord... O Fellini é mais velho do que eu dez anos e ele pegou a ditadura italiana, do Mussolini. Há muitos pontos de referência com a infância brasileira daquela época. Só que você não tinha mar, não tinha neve, não tinha aquele vento do Saara. Mas tinha, por exemplo, em agosto, o mês da queimada. Vinham aquelas folhinhas de samambaia no ar. Tudo ficava esfumaçado, você ficava com o ombro cheio de cinza. Aí vinha aquela folhinha de samambaia bonitinha, batia em você e se desfazia toda em cinza. Todas essas coisas eu poria em um Amacord. E o enterro! Havia um enterro, dois, por semana! Minha rua era a rua dos pobres, então enterrar anjinho era o pau que rolava. E os amigos de infância também. Todos os meus amigos de infância, cujos pais não tinham emprego, todos morreram na infância. Chapelão, João Permanente... a lista é enorme. Jornal da ABI – Então o contato com a morte foi muito cedo! Ziraldo – Rapaz, a gente fez um censo esquistossomático na região do Vale do Rio Doce. Foi muito engraçado, porque eu já era humorista. Eu tinha dez anos, no máximo. Recebemos uma latinha para colocar o cocô dentro. Você imagina levar um trem de ferro de cocô das crianças para Belo Horizonte, para examinar e poder ver o índice de esquistossomose. Em Itabacuri, deu 100%. Todas as crianças tinham esquistossomose. Caratinga deu 85%. Eu me lembro de que meu avô estava falando com meu pai no almoço sobre esse negócio, aí eu mandei: “Ah, então foi a primeira vez que a gente pôde mandar o Governo à merda.” Fez o maior sucesso essa piada. Eu conversava muito com meu avô e meu pai. Meus pais foram especiais e meu avô também: primeiro, eu era o neto mais velho. Agora é que eu descobri o que é ser avô do neto mais velho. Eu não percebia por que meu avô tinha aquele encantamento comigo. Porque eu era o neto

Nova York, conversou longamente. Levei-o a Belo Horizonte, fiz uma festa para ele no Costa Brava. Foi muito gratificante, porque ele foi o cara que me despertou para a qualidade do desenho. Um dia, cheguei na livraria Strand, em Nova York, o maior sebo do mundo, virei para o cara e perguntei: “saiu alguma coisa nova do Will Eisner?” Porque eu queria pegar o livro e pedir para ele autografar. Aí o cara: “Saiu sim, está aqui. Tem mais coisa dele, o senhor quer? Pois é, estamos vendendo muitos livros dele, porque ele morreu hoje”. E eu ia me encontrar com ele! Eisner morreu em Miami, onde montou uma escola de desenho, mas tinha um endereço em Nova York, na River Side.

mais velho, pô! Ele também me exibia, igual minha mãe. Ele era ferreiro e falava alto. Porque o ferreiro fica o dia inteiro batendo ferro, e conversa alto com o auxiliar dele. Quando chega em casa, fica falando na mesma altura. Uma vez, meu avô estava na praça contando causo, sentado no banco do jardim, porque nem todo mundo tinha emprego e ficava muito cara no bar, muita rodinha de conversa. Principalmente porque quem sustentava metade dos caras que não tinham emprego eram as professoras. A professora era a única mulher que tinha salário; então ficavam aqueles caras, tudo coçando o saco no jardim. Eu venho andando e meu avô me chama com um grito. Ele era severo para caralho, era um patriarca, mandava em todos nós. Figuraça. Perguntei: “O que é, vô?” E ele: “Stalingrado caiu ou não caiu?” Respondi: “Não caiu.” “Como está a frente do Norte da África?” “E o Dia D, invasão da Normandia?” E eu respondia a essas perguntas, e ele: “Pode ir embora.” Aí, dizia para os amigos: “Meu neto! É um Rui Barbosa!” Eu sabia tudo da guerra, com dez anos. Eu era chato mesmo. Era insuportável. Então eu podia ser hiperativo, mas dava notícia do mundo. Lembro uma vez, papai conversando com um tio chamado Luis Carvalho e meu avô, no almoço. E eu ouvindo o Carlos Frias dar notícias da guerra.Meutioeracatastrofista.Tinhaexercício de apagar a luz de noite, para não ser atacado pelos nazistas. Agora você imagina, lá em Caratinga, você apagar a luz!... Também sabia tudo dos navios afundados: Araraquara, Aníbal Benévolo, Meireles... Era uma infância engraçada lá em Caratinga. E a minha janela para o mundo era o quadrinho. Jornal da ABI – Você lia tudo, mas quais eram os seus preferidos? Ziraldo – O que mais me empolgou – eu já era adolescente – foi quando descobri o Spirit. Eu já tinha 12, 13 anos, já sacava o Will Eisner, aquela coisa do claro-escuro, da história dramatúrgica, que não era maniqueís-

ta, o herói tinha problemas. Uma das maiores gratificações da minha vida foi ter conhecido, convivido e ter recebido o carinho do Eisner. O Will Eisner veio ao Brasil e se encantou, porque ele não tinha idéia de como era admirado aqui. Ele me disse que nunca foi tão amado quanto no Brasil. Afastado dos centros de cultura, a gente se esforçava muito para acompanhar o que estava acontecendo no mundo. Então, a gente sabia de mais coisas que o americano médio. Um menino do interior dos Estados Unidos não sabe nada de nada. Não sabe nem onde fica o Brasil. Um menino do interior do Ceará ou de Minas sabe onde é que está. Em Vermelho Novo, distrito de Caratinga, onde meu pai nasceu, havia um grupo de “proustólogos”, uns caras que discutiam Marcel Proust, havia grupo de teatro. Então quando o Eisner chegou aqui, ficou encantado. Tornou-se muito amigo da Marisa Furtado, que fez a série Profissão Cartunista – com ele, comigo. E aí há uma história linda. Toda vez que eu ia aos Estados Unidos, ia falar com o Eisner. Uma vez entrevistei-o para o Pasquim. Ele veio se encontrar comigo num bar em

Spirit, de Will Eisner, empolgou Ziraldo.

Jornal da ABI – A primeira vez que você veio ao Rio já colaborava com O Cruzeiro antes de servir o Exército. É isso? Ziraldo – Ah, sim. Meu avô veio com a família toda para o Rio. Ele era um grande aventureiro, maluco, pegou as oito filhas solteiras e veio. Foi morar na Tijuca, no Morro do São Carlos, na Rua Maia Lacerda. E a família se criou aqui. Quando vim da primeira vez, me encantei com o Rio, mas não conhecia ninguém. Vim fazer o científico. Aí conheci Millôr, Accioly Netto, a Redação de O Cruzeiro, e publiquei uns desenhos n’A Cigarra... Lembro que, quando eu entrei na Redação de A Cigarra, era um sábado e lá estava o Millôr sentado, o José Medeiros e o Accioly Netto. Eu disse bom dia e o Millôr respondeu [alto]: “Ziraldo Pinto, de Caratinga!” Putz. Pirei. Como você sabe que eu sou o Ziraldo? Eu já mandava umas colaborações. Aí o Millôr virou o homem mais importante da minha vida. A partir daí, nunca mais o larguei. Quer dizer, depois a gente ficou mais velho e todo casamento acaba, passamos um tempo estremecidos. Mas nessa época, onde o Millôr ia, eu ia atrás. Ele gostava, e eu o achava o sujeito mais inteligente do mundo. E era mesmo. Uma inteligência absurda. Eu vivi vários anos em função do Millôr. Mais tarde, depois dessa influência muito grande do Millôr na minha vida – toda a informação que eu queria tinha que ser filtrada pelo julgamento do Millôr –, venho para O Cruzeiro, que estava sendo reformulado. Um dos responsáveis pela reforma era o Enrico Bianco, que foi assistente do Portinari, grande pintor brasileiro. E virou meu segundo guru. Essas duas influências foram muito poderosas na minha vida no Rio. Depois, Reynaldo Jardim. Esse virou meu irmão. Os três são meus irmãos mais velhos. Jornal da ABI – Aí você voltou para Minas para servir o Exército. Ziraldo – Tiro de Guerra, caçador de rolinha... Jornal da ABI – Nesse período, conseguiu desenhar?

Ziraldo – Continuei mandando minhas colaborações lá de Caratinga. E fui estudar Direito em Belo Horizonte. Nessa época, trabalhava na Standard Propaganda e continuava mandando meus desenhos para A Cigarra, onde fazia uma página. Já tinha trabalhado com publicidade no Rio, quando vim da primeira vez: na Poiares e, quando fazia científico, na McCan. Uns três anos antes de me formar, consegui um emprego em O Cruzeiro. Mas não tinha lugar para ilustrador pago lá dentro. Em O Cruzeiro, todos os ilustradores eram freelancers. Nem Appe, nem Carlos Estevão, nem Millôr. Então larguei a Standard e fui contratado para ser relações-públicas na editora. Antes, na época da McCan, era muito confortável, porque a agência ficava na Rua México, 3. Eu era auxiliar de desenhista e depois fui ser aquilo que se chamou de “pastupista”, ou seja, montador. Em vez de computador, a arte-final era com pinça e cola de sapateiro. Ia na gráfica pegar as provas em papel Couché, cortar, colar. Eu montei um calendário inteiro com pinça. Tinha que quadricular, colar, botar no esquadro. Número por número. Até os 21, 22... colocava um 2 e outro 2. O sujeito me deu uma folha com um monte de 1, de 2, de 3... e eu fui montando. Isso foi para a Grant. O diretor de arte era o marido da Tônia Carrero, Carlos Arthur Thiré. Ele era muito sofisticado, fazia uma página sofisticadíssima na Manchete. E era um diretor de arte ótimo. Um dia, a Mariinha foi visitá-lo na Redação. A “Mariinha” era a Tônia Carrero. Aí eu saí distraído e entrei na sala onde ela estava. Ela estava em pé! Estava esperando ansiosa... Eu fiquei estático! Foi a visão mais linda que tive em toda a minha vida. Só perdeu para Catedral de São Marcos, em Veneza. Em segundo lugar, a Tônia Carrero! Nem sei se em segundo lugar... Assim, de ficar estático mesmo! Aaah! Não tive a oportunidade de contar isso para ela, porque eu fiquei paralisado. Acho engraçado que outro dia fizeram um concurso da mulher mais bonita do Brasil e ganhou a Maria Fernanda Cândido, alta, bonita. Você não pode fazer essa eleição. A mulher mais bonita do século é a Tônia Carrero, que ficou 50 anos linda! E nesse dia, ela estava no auge da beleza. E com a consciência de sua beleza! Ela viveu em função da beleza dela. Era um fenômeno essa mulher. Além de ter aquela alma, aquela força de ser humano. Boa atriz e uma mulher atrevida, despachada, dona do seu nariz. Uma coisa espantosa! Jornal da ABI – E a experiência na Catedral de São Marcos? Ziraldo – O negócio da Catedral de São Marcos foi o seguinte. Eu fiz a Faculdade de Direito porque era uma chance de ir para a Europa. Naquela época, no quinto ano, a turma fazia uma excursão à Europa, era

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DEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOS

Três charges de Ziraldo publicadas em O Cruzeiro, em 1958, e a capa da revista Pererê n°1, de 1960.

uma tradição da Faculdade de Direito. Mas tinha que passar os cinco anos participando de quermesses, fazendo rifas e pagando uma prestação por mês. A escola era de graça, mas eu pagava. Atrasava o pagamento, eles me expulsavam. Ia lá pedir para não me expulsarem. Estava no Rio, precisava ir a Belo Horizonte pagar a prestação. Tinha assembléia para ver se me deixavam ficar; me expulsaram umas três vezes, os canalhas! (risos) Aí fiquei na turma. Éramos trinta e dois só. Pegamos um navio aqui, o Júlio César; e voltamos no Augustus. Quando chegamos em Veneza, era final da tarde. Pegamos a lancha e desembarcamos num hotel, onde hoje eu não teria dinheiro para pagar uma diária! Eram hotéis de primeira que a Polvani [agência de turismo] garantia pra gente. Lindo. O quarto cheio de quadros, jarros. Chegamos às cinco e pouco, subimos ao quarto para deixar as coisas. Eu desci sozinho, pois estava louco para ver Veneza. Cheguei na porta, d”ov’è la Piazza San Marco?” O sujeito respondeu: “a sinistra e à destra”. Dobrei à esquerda e dei três passos e virei à direita. Achei que ia caminhar muito, igual em Minas. Quando eu virei... os pombos voaram, subiram todos! Um espetáculo! Havia o crepúsculo atrás da Catedral de São Marcos! Aquela coisa emocionante. Eu sentei e chorei, porra! O que você queria que eu fizesse? Eu achava que a única chance de ir à Europa era aquela. Então aquela viagem foi uma grande conquista. A gente não ia assim à Europa. Jornal da ABI – Que tipo de impressão lhe causou a Redação da revista O Cruzeiro quando você foi contratado? O que era O Cruzeiro? Ziraldo – Ah, O Cruzeiro era a TV Globo! Era o Panteão! Flávio Damm, José Medeiros, Luciano Carneiro, Jorge Ferreira, Jean Manzon, David Nasser. Depois que você lê a verdadeira história de O Cruzeiro, do Maklouf [Cobras Criadas – David Nasser e O Cruzeiro, de. Luiz Maklouf Carvalho], vê que os deuses têm pés de barro. Mas para mim era uma coisa glori-

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osa. E a sala da Redação! Eu entrei na sala de espera de O Cruzeiro e eram móveis do Joaquim Tenreiro – hoje uma cadeira do Tenreiro custa R$ 100 mil – e doze quadros do Portinari. O Cruzeiro não sabia o patrimônio que tinha. E era um prédio do Niemeyer, lá na Saúde, onde está hoje o Jornal do Commercio. Mas não era aquele pardieiro de hoje, não. Eu peguei o auge. Eu fiz a revista que mais vendeu no Brasil até hoje. Vendeu 1,4 milhão de exemplares! Foi a revista que comemorava a vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1958. Não sei se a Veja vende isso. E não era assinatura, não. Era venda em banca. Bellini na capa, com Adalgisa Colombo beijando ele. Eu acompanhei a produção dessa foto. Falei para ela, vem beijar o Bellini. E ela, que não o conhecia, falou: “Vou beijar não; o que é o Bellini?” Eu respondi: “Ô! É o beque do Brasil, campeão do mundo!” Quando ela entrou no estúdio, perguntou: “É aquele?! Dou trezentos beijos nele!” Foi lá e deu. Na Fiorentina, estão todas as fotos feitas pelo Indalécio Wanderley. Comandei a chegada dos jogadores brasileiros porque era relaçõespúblicas de O Cruzeiro. Ia ser muita confusão no aeroporto, aquela coisa... então pegamos todas as famílias dos jogadores e levamos para a Redação. Quando eles chegaram no aeroporto, não tinha ninguém. Só a Guio-

mar – que era a Guiomar [mulher do meio-campista Didi]: “Comigo não, violão. Eu vou buscar meu marido no aeroporto. Vocês estão malucos. Nem pensar”. E foi para o aeroporto. A gente tinha uma recepção com o Jango na Redação, distribuindo relógios para os jogadores. E eu comandava isso tudo. Os jogadores foram colocados num carro do Corpo de Bombeiros, que tinha um interfone. Eles precisavam chegar na Praça Mauá e descer a Avenida Rio Branco. Aí dissemos: “Não! Na Rua do Livramento, vocês param, deixam os jogadores, a gente fotografa, o Jango distribui os relógios. Aí, os jogadores voltam para o carro de bombeiros e vão para a Rio Branco. E o Juscelino esperando os jogadores no Palácio do Catete. O Aciolly desesperado, naquela aflição. Quem é que instruiu o Corpo de Bombeiros a fazer esse trajeto? O Rodolfo Brant, que era um alemão que trabalhava n’O Cruzeiro. Não sei se vocês conheceram a fama dele. Era o cara que protegia os fotógrafos, quando a gente fazia o Carnaval. Na Quarta-Feira de Cinzas o Brasil inteiro já estava com O Cruzeiro com todas as fotos do Carnaval. Para cobrir o concurso de Miss Universo, havia um avião com laboratório! Acabava a eleição da miss, o Indalécio corria para o aeroporto, entrava no avião, revelava as fotos com o Ed Keffel; o avião chegava

meio-dia no Rio de Janeiro, já com tudo paginado na revista. De tarde, no dia seguinte, já estava a edição com a miss nas bancas. Bom, aí veio a informação de que o carro dos Bombeiros ia direto para a Praça Mauá. Chamamos o Brant: “Brant, o bombeiro está dizendo que vai para a Praça Mauá”. “Deixe comigo.” Ele foi, parou o carro, tirou o bombeiro da direção, jogou lá fora, assumiu a direção e entrou na Rua do Livramento. Nós lá em cima, quando vimos que o carro vinha... o Accioly teve uma crise de choro incontida. Passamos a manhã toda, o dia inteiro, tomando conta do Dondinho [pai do Pelé], do pai do Garrincha, dando comida para a filhinha do Oreco... passei o dia todo tomando conta das famílias dos jogadores. Quando o elevador abriu, com as famílias esperando os jogadores, o Leonam [Carlos Leonam] subiu no elevador para fotografar a cara das mulheres. Antes de abraçar os jogadores, a gente fotografou a cara delas. Pusemos as caras das mulheres dos jogadores todos. Tudo produzido. Essa edição tirou 1,4 milhão de exemplares e não chegou a Porto Alegre. Vendeu tudo antes. Porque na segunda-feira ficava uma fila de caminhões para levar a revista para o Brasil inteiro. Era uma distribuição extraordinária. Esse caminhão de Porto Alegre o pessoal de Curitiba não deixou passar – pegou as revistas todas lá. Os revendedores, no caminho, não deixaram. Jornal da ABI – Quando você chegou em O Cruzeiro, além do Millôr, que sempre foi uma referência, que outros nomes você destacaria? Qual a sua opinião sobre aqueles desenhistas? O Péricles Maranhão, por exemplo... Ziraldo – Um dia talvez escreva toda a minha aventura com o Péricles. Para o pessoal de jornal é interessante contar essa história. O Péricles

era suicida. Permanente. Tentou se matar várias vezes. E aconteceu com ele uma coisa fantástica, muito interessante. O modelo de O Cruzeiro eram as revistas argentinas. Todas as seções de O Cruzeiro eram copiadas – a Sete Dias, Fototeste, Fatos e Fotos, as Garotas do Alceu eram as garotas do Divito [Guillermo Divito]. A seção El inimigo del Hombre, também do Divito, virou O Amigo da Onça, encomendado pelo Leão [Gondim de Oliveira], que era muito criativo. Ele ficou procurando um desenhista para fazer o Amigo da Onça. O Augusto Rodrigues não se interessou muito. Tinha um menino de Pernambuco, o Péricles, que já fazia um personagem chamado Oliveira, O Trapalhão, e tinha um desenho muito ágil. O Leão mandou ele fazer o Amigo da Onça e adorou o desenho. Nunca houve um personagem fora da televisão que tivesse o sucesso de O Amigo da Onça. Muita gente viveu de vender bonequinho com o Amigo da Onça, e o Péricles ficava feliz porque achava que era uma homenagem. Eu cheguei a comprar. Está lá em casa. E dei um de presente de aniversário. O Amigo da Onça era esperado ansiosamente. Não havia barbearia do Brasil que não tivesse um Amigo da Onça pregado. Era uma coisa espantosa. O Millôr sabia reivindicar. Ele fazia 13 seções. Um dia, disse: “Eu quero 13 salários, porque eu faço 13 seções. Ou então não faço nenhuma”. Só sei que o Millôr ganhava espantosamente bem. Ganhava mais do que qualquer jornalista do mundo. Tinha vinte e poucos anos. Chegou na loja de automóveis na Rua Senador Dantas: “Quanto custa este carro aqui?” perguntou para o vendedor. “Pra que você quer saber?” “Eu quero saber.” “Ai, que saco. Custa 30 contos”. “Eu quero um.” E comprou o primeiro carro dele assim. Já o Péricles não ligava para dinheiro; bebia, vivia fazendo samba, tinha os amigos mais estranhos do mundo. E não trabalhava. Só bebia e vivia da boemia. Essa boemia que não existe mais. Aí o Péricles começou a beber muito, e um dos suicídios dele colou. Ele morreu. Como eu era relaçõespúblicas d’O Cruzeiro fui desfazer o apartamento dele. A Polícia já tinha estado lá. Mas eu fui a primeira pessoa da revista a entrar. Lembro daquele cheiro de gás. O forno estava aberto. Ele colocou a cabeça dentro do forno. E pôs uma coisa antiamigo da onça pregada na porta: “Não acendam fósforos. É gás”. Coisa que o Amigo da Onça não teria feito. E há um lance interessante: descobrimos a mãe do Péricles em Pernambuco. E ela queria vir para a missa de sétimo dia do filho. Mas a Igreja não celebra missa para suicida. Procurei o Dom Hélder [Câmara], de quem eu era muito amigo. Aquelas festas que ele fazia no Maracanã – Grande Noite da Paixão –, com 200 mil pessoas, eu que ilustrava os libretos; depois ele me


“Quando eu alego que o Pererê foi fechado pelo golpe militar de 1964 é porque foi fechado.” levou para o Banco da Providência. Fui visitá-lo em Pernambuco, ele dormia debaixo do altar. Então Dom Hélder disse: “Traz a mãe que eu vou celebrar a missa. Vou celebrar para ela, coitadinha. Não convida ninguém, senão vira uma missa de suicida e aí não posso”. Fui no aeroporto, peguei a mãe do Péricles. Acordei de manhã, ele celebrou a missa ali no Morro da Viúva, numa capela. Chego na capela – eu e minha mulher, Vilma, que morreu, e mais uma companhia com a gente –, não tinha ninguém na missa. Só D. Hélder celebrando e o Armando Falcão. Era integralista, amicíssimo dele, cearense. E a mãe do Péricles ficou feliz com a missa. Dom Hélder sabia fazer as coisas. Ele me contou um dia o sucesso que fez no Palais de la Mutualité, em Paris, com um discurso. Ele era o Père Helder, tão famoso na França como o Abbé Pierre, ou como o Mandela. Há um diplomata brasileiro que se orgulha de ter retirado o Prêmio Nobel dele. Eu vi esse cara contar essa história na casa do José Aparecido em

Lisboa, dizendo como ele impediu que o D. Helder ganhasse o Nobel. E ninguém sabe que ele ganhou o Nobel do povo sueco. Eles dão um prêmio não oficial, e ele ganhou. Mas ele ia ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Foi um trabalho do Itamaraty, e esse diplomata se orgulhava disso. Mas Dom Helder me contou ali no refeitório do convento onde ele morava que lá na Mutualité, em Paris, ele subiu no palco e fez um stand up show. Em francês. Aí ele começa a dançar e a me

havia gente reclamando que era uma revistinha comunista, que o coelhinho era vermelho, que eu estava prestigiando os generais de esquerda. Aí mandaram parar com a revista. Por isso essa famosa indenização, que eu ainda não recebi – agora é bom, porque o Governo está me devendo uma baba.

contar o discurso em Paris. E sobe na cadeira, e sobe na mesa, e ããããããããã..., e o repórter que estava comigo pegou ele no ar! Ele ia se arrebentar no chão! Ele subiu na mesa, naquela empolgação dele, e falando aquele francês de cearense. (risos) Nossa! Eu gostava muito dele. Tivemos uma convivência muito boa, na fundação do Banco da Providência. Faço os cartazes da Feira da Providência há 52 anos. Jornal da ABI – Alguns desses cartazes são premiados, expostos no mundo. Há também o belíssimo cartaz do Festival da Canção... Ziraldo – A história do galo do Festival Internacional da Canção [que premiava os vencedores com o Galo de Ouro] também é fantástica. Eu era jurado de tudo que era festival. É melhor do que pagar ingresso; fica lá na frente, sabe o resultado primeiro do que os outros. Nesse caso, o Augusto Marzagão, outro grande amigo que eu tive na vida, era muito amigo do Carlos Leonam também. Então o Leonam convenceu o Marzagão que eu precisava fazer o cartaz do primeiro Festival da Canção. Fui encontrar com o Marzagão – “Escuta aqui”, ele perguntou, “Qual vai ser o símbolo do festival?” Eu falei: “Ué! Qual é o único canto que é universal? Qual é o canto que não há ninguém no mundo que não conheça?” Ele respondeu: “Ah, não tem.” Eu falei: “Ô, Marzagão! Até na Sibéria tem galo que canta de manhã. A canção universal é o canto do galo. Cócócóricó!... “Rapaz! Mas é isso mesmo. Faz um galo para mim.” Jornal da ABI – Como um relações-públicas de O Cruzeiro conseguia tempo para desenhar a revista Pererê todo mês? Ziraldo – Quando não tinha nada o que fazer lá n’O Cruzeiro, eu desenhava o Pererê. Era relações-públicas e eles aumentaram o meu salário para desenhar o Pererê. Quando acabaram com o Pererê, eu perdi esse salário. “Ah, não podemos pagar esse

salário para você desenhar o Pererê”. E parou. Mas aí eles iam parar mesmo, porque já estavam conspirando, já sabiam que não ia ter república sindicalista. Quando eu alego que o Pererê foi fechado pelo golpe militar de 1964 é porque foi fechado. Jornal da ABI – Esta é a segunda página da última edição da revista Pererê, que foi lançada em 1º de abril de 1964 (imagem abaixo). Nessa história, chamada de “O traidor”, parece que você anteviu o que iria acontecer... Ziraldo – A direção de O Cruzeiro mandou parar Pererê em janeiro. É que eu fazia com três meses de antecedência. Porque já estavam conspirando, já

Jornal da ABI – O Governo ainda não pagou? Ziraldo – Claro que não. Eu fui agraciado com a anistia 19 anos depois. Eu nem sabia. Nem eu, nem o Jaguar sabíamos. Quem entrou com a ação não foi nem eu, nem Jaguar, nem Millôr, nem Zuenir, nem ninguém. Foi o Sindicato dos Jornalistas. O Zuenir caiu fora, o Millôr foi lá. Ah, já está, bota a gente aí mesmo. Até porque foi tudo comandado pelo Barbosa Lima Sobrinho; ele fazia questão. “Os meus meninos.” Ele se reuniu com a gente, o Sindicato fez a lista, a ABI aprovou. Nem eu, nem o Jaguar constituímos advogado. Aí, um dia, 19 anos depois, alguém me liga e diz que o processo iria ser julgado. Eu estou sabendo que tem gente ganhando R$ 24 mil por mês, R$ 18 mil, que alguém está querendo não sei quantos milhões. Eu falei: “Jaguar, morreu um tio, deixou uma herança pra gente” (risos). O Jaguar não foi, eu fui lá. Quando leram na ABI a justificativa da ação, eu fiquei até encabulado. Porque o relator escreveu um texto sobre um cara que eu não era. Um herói nacional. Esse cara tá maluco, mas não vou desmentir o bicho, né? Quando eu vou saindo, ele diz assim: “E aí? Já tinha uns caras

gozando a gente, dizendo que era bolsa-ditadura...” Aí eu falei: “Porra, esses caras não tiraram o dedo da seringa na hora da luta e não quiseram correr o risco, agora ficam enchendo o saco? Por que não vieram conosco?” Aí, manchete de O Globo: eu gozando os caras que estavam gozando a gente. Eles tinham espaço, eu não tinha. O Globo passou uma semana publicando carta sobre esse negócio. Até hoje na internet me esculhambam. Agora estou doido para receber. Está em R$ 2 milhões e tanto. Eu não posso nem devolver. Não tem juridicamente a possibilidade de dizer “não quero isso”. No dia que sair no Diário Oficial que o dinheiro está depositado, que eu vou receber o precatório, já morri. Demorou 20 anos para sair, mais 20... Eu tenho R$ 1,3 mil de aposentadoria. E há um ano e pouco, eu e Jaguar passamos a receber R$ 4 mil e pouco por mês. Os atrasados, é esperar morrer... Mas acho que fica para a família. Jornal da ABI – Existia mesmo uma ideologia por trás da história do Pererê? Ziraldo – É só ler. Eu fazia parte da turma que achava que ia mudar a História do Brasil, das reformas de base, da reforma urbana, das mudanças na educação. Um grupo ligado ao Jango, que prometia um outro País. E a direita tinha medo da república sindicalista. O Jango nunca foi comunista. O Jango foi industriado pelo Betinho, por um pensamento da esquerda. O mundo estava mudando completamente. Eu lembro que o Manuel Lopes da Cruz, que era diretor em O Cruzeiro, dizia: “O mundo vai acabar socialista; eu já estou aprendendo chinês”. Ele era muito falante: “Vai estudar russo, minha gente. O século acaba socialista, minha gente, só não vê quem não quer”. Então ele mandou eu fazer uma revista, o Péricles fazer outra , porque ele achava que assim que o regime se instalasse ia proibir importação de história estrangeira. Eu fiz uma revista; o Péricles só fez uma e não entregou; o Carlos Estevão fez seis números. Eu faria o Pererê a vida inteira. Iria ser um Maurício de Sousa. O Cruzeiro se adiantou ao futuro. Queria fazer outras. O Maurício chegou a levar lá uma revista também. Porque o Manuel Lopes da Cruz estava convencido de que o século ia acabar comunista. Quando a gente voltava de carro, com o Manuel e o Bianco, que também achava isso, a conversa era essa: “Vamos nos preparar para a socialização do mundo. Estudar chinês”. Então, quando chegou em 1963, no final do ano, e em 1964, eles perceberam: já estava rolando a conspiração. Aí resolveram parar com o Pererê. Tinha Luluzinha, Bolinha, Peanuts, Pimentinha, cinco ou seis revistas. Cheguei a vender 135 mil exemplares, a mesma coisa que Bolinha. Ia no caminhão de O Cruzeiro. Talvez nem fosse tanto mérito da revista. Fazia

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FRANCISCO UCHA

DEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOS Ziraldo fez questão de mostrar a sua coleção do Cartum JS durante a entrevista.

muito sucesso, tinha muita repercussão, e não tinha encalhe. Você não consegue números antigos do Pererê com facilidade. Jornal da ABI – Você fazia tudo sozinho? Ziraldo – Eu fazia tudo a lápis. O Paulo Abreu fazia a arte-final, o João Barbosa, as letras, e quem coloria era o Heucy Miranda, que ainda trabalha comigo, fazendo coisas juntos, montou depois uma produtora de desenho animado, desenhamos muita coisa juntos, até hoje fazemos muitas coisas juntos. E quem escolhia a cor, realmente, era o cara do fotolito. Porque a gente não marcava percentagem. Em O Cruzeiro, naquela história da inglesa do Caso Profumo [a modelo Christine Keeler, que teve um caso com Harold Macmillan, membro do Governo do Reino Unido, em 1963] –, uma mulher lindíssima, a gente recebia as fotos em preto e branco, mandava pros caras do fotolito e dizia: “Faz essa mulher ficar colorida aí”. O cara ia lá e colocava as cores. Lembro uma vez que saiu uma foto linda, em página dupla, de varais no Nordeste. Aí o Accioly: “Ô, colore esses lençóis, que tem muito branco nessa porra aí. Bota uns lençóis vermelhos, amarelos...” Ficou linda a paisagem na foto. O pessoal do fotolito era muito, muito bom. Jornal da ABI – E O Centavo? Como você traz essa turma nova para O Cruzeiro? Ziraldo – Um parente dos Rodrigues assumiu o Jornal dos Sports. A turma da ABI conhece bem essa história. Principalmente o Fichel Davit e o Marcelo Monteiro. Então ele resolveu fazer uma revolução no jornal. Bancou O Sol, do Reynaldo Jardim, e aceitou uma proposta minha de fazer o Cartum JS, oito ou dez páginas, um jornal de humor. Veio o Henfil, com os fradinhos, eu fazia um editorial. A gente estava fazendo uma célula comunista no Cartum JS. Um dia, o Nelson Rodrigues chegou falando “Eles querem botar fogo no País!”. Aí, tiraram o sobrinho dele de lá e fecharam o Cartum JS. Eles fecharam porque a gente não podia ter aquela linguagem. Eu fazia o editorial esculhambando. E o Henfil mandava o saco também: numa revolta de negros dos Estados Unidos, Henfil desenhou uma mulher falando “Graças a Deus a gente não tem esse problema no Brasil. No Brasil, os negros reconhecem o seu lugar”. Uma provocação tremenda. O Henfil fazia um sucesso danado no Cartum JS. Havia muita gente boa lá, uns monstros. Uns morreram, outros sumiram. Então eu propus ao Mário de Moraes, que dirigia O Cruzeiro, fazer O Centavo. E levei todos os cartunistas do Cartum JS para lá. Fizemos várias sessões. A TV Tupi era do mesmo grupo de O Cruzeiro [Diários Associados]. E o Alcino Diniz [um dos diretores da TV] resolve fazer uma

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ação promocional e pendurar um terço no Corcovado e faz uma maquete com aquelas bolas luminosas. Um terço no Corcovado, no País mais católico do mundo. Só o Alcindo Diniz mesmo! Eu peguei e fiz uma página brincando com o assunto: “Então vamos botar a Santa Ceia no Pão de Açúcar, vamos montar um crucifixo na zona”... e publiquei esse negócio n’O Cruzeiro. Aí que o pessoal descobriu que O Centavo também era comunista! Pá, fecharam! Teve uma discussão lá: “Pô, a idéia do terço é uma promoção dos Diários Associados e vocês criticam isso na revista mais importante? Que esculhambação é essa?! Pára com essa porra”. Não sei quem foi. Aí morreu O Centavo. Essa é a história da minha vida. Agora vou fazer 80 anos. Jornal da ABI – E agora? Ziraldo – Eu sou especialista em assuntos gerais, sou especialista em tudo. Agora, tenho uma nova especialidade, uma grande descoberta que acabo de fazer: Sou um especialista em velhice! Qualquer pessoa que queira tecer considerações sobre a velhice, que queira escrever sobre a velhice, só pode escrever tendo a experiência. Todo mundo que não chegou lá e dá palpite sobre a velhice erra tudo! A Simone de Beauvoir escreveu um livro sobre a velhice sórdido. Ela tinha 62 anos. Com 62 anos, não se alcançou a velhice ainda! Quero dar essa notícia para vocês: o cara fica velho aos 80 anos! Velho, ancião! Um homem de 70 anos não é um ancião! Um homem de 80, sim. Posso mostrar uma lista de anciãos fantásticos: Roberto Farias, Zuenir Ventura, Sérgio Ricardo, Paulo Casé, Alberto Dines, Jaguar, Jacques Lerner, Antônio Abujamra. Nós podemos falar sobre a velhice! Jornal da ABI – O que é o ancião, além do fato de ter 80 anos? Ziraldo – A pessoa com ego muito gigantesco envelhece muito mal. Porque, quando a energia começa a fraquejar, começa a se sentir liquidada. Quem é assim não aceita que “aquele gênio” seja liquidado. Em geral, todo sujeito que não tem seus desejos mais profundos atendidos envelhece mal. Sartre envelheceu mal, se mijando todo, além de tudo mal humorado. Simone de Beauvoir ficou uma chata, insuportável. Porque o negócio é o seguinte: o que o Carlinhos de Oliveira queria? O que o Sartre queria? Queriam que as mulheres gostassem deles, queriam ser desejados. Já imaginou você ser o Sartre, aquela inteligência brilhante, e nunca uma mulher bonita desejar o corpo dele? Ele parecia um sapo, caolho. Quer dizer, ele só tinha a inteligência para comer gente! (risos) Ainda arrumou aquela gigoleia para levar menina para ele. Porque ela também seduzia as meninas, para os dois comerem. Os dois eram ligados nessa coisa que se chamava “existencialismo”. (risos) Igual ao Carli-

nhos de Oliveira. O Carlinhos ainda conseguiu comer umas mulheres bonitas. Teve uma, que ele precisou se amarrar na cama do quarto para não telefonar para ela. Uma das mais lindas. Tem mulher que se fascina pela inteligência, não deseja o corpo. Mas o cara quer ser gostoso. Não quer ser inteligente. Então envelhece mal. Não existe o solitário. Todo sujeito depende do outro. Você nasce para se doar. Não existe sem o outro. Sexualmente não existe mesmo. Todo homem inteiro deseja mesmo é uma mulher bonita. Uma mulher para ele. Nãotemessenegócio.ComodisseoNiemeyer ao José Aparecido... O Zé com o câncer na próstata, triste, arrasado. O Niemeyer com a cabeça assim, meio caída na cadeira: “Ô Zé Aparecido, pára de reclamar, rapaz! Bota uma mulher do lado e sai por aí, rapaz!” Um com cem anos, o outro com setenta. O velhinho: “Bota uma mulher do lado e saí por aí, essa é a vida!” Falando no José Aparecido de Oliveira, deixa eu dar um depoimento importante aqui. Eu queria que ele fosse Presidente da ABI, mas o pessoal não aceitou minha sugestão. Essa história é interessante: Eu fui chamado para participar de um movimento para renovar a ABI. Até o Danton Jobim, a ABI tinha uma importância. Eu disse: “Tem um amigo meu que vai transformar este prédio num luxo; vai fazer o clube que nós quisermos, vai deixar a gente governar do nosso jeito e vai trazer o Presidente da República aqui. É o José Aparecido de Oliveira. É alguém que vai dizer: “Presidente, vou assumir a ABI e preciso que o senhor venha aqui esta semana!” Ele faria isso! O Zé ganhou um palácio em Lisboa para fazer o Instituto Lusofônico Interna-

cional. O Mário Soares deu um palácio para ele; eu fui lá com ele receber o palácio. Mas o Fernando Henrique Cardoso fez a gracinha de tomar o palácio do José Aparecido. Ele teve dois desgostos que o levaram à morte: o câncer e a desilusão. Quando ele foi receber a sede do Instituto Lusofônico, numa reunião em Lisboa com muitos países, o Lampreia [Luiz Felipe Lampreia, embaixador] tira do José Aparecido e dá para Angola. Inventou uma eleição por ordem alfabética. O FHC fez essa gracinha. Eu acompanhei o câncer do Zé, dia a dia, e essas duas coisas o magoaram profundamente! Mas eu resolvi propor o nome dele como Presidente da ABI. Ele me disse “Isso é uma boa idéia. Vai me dar uma razão de viver.” E o pessoal da ABI argumentava: “Ah, mas o Zé é de direita, conservador.” Gente! Eu quero salvar a ABI! Isso aqui vai virar um sonho! Eu queria ter um clube inglês para os jornalistas aqui do Rio de Janeiro. Mas não comovi a rapaziada da ABI. Isso, eu faço questão que saia na entrevista. A gente perdeu uma grande oportunidade de salvar a ABI, materialmente falando. E prestígio também. Porque quem ia inaugurar a nova ABI seria o Presidente da República. No dia que o Zé Aparecido determinasse. Ele mexia na agenda do Presidente! Jornal da ABI – Numa entrevista, a Cora Coralina disse que depois dos 50 anos e até os 75 as pessoas devem dizer que têm 50 anos. Ela considerava que entre 50 e 75 era a melhor fase da vida. Ziraldo – É verdade... Bom, 75 anos é exagero. A melhor fase para o homem é dos 40 aos 60 anos. O cara que não for glorioso dos 40 aos 60 tá vi-

vendo errado. Está ferrado! Se você não se sentir glorioso em algum momento nessa faixa, de dizer “Eu sou um deus!”, olha, meu filho, você está bebendo nos bares errados. Numa entrevista, o Roberto da Matta descreveu uma conversa entre dois velhinhos. Eles lembravam coisas da juventude, e num dado momento, uma lágrima rola de um deles. Roberto da Matta, você não entende porra nenhuma de velho! Não se meta! Não há hipótese de um velho inteiro chorar de nostalgia. A não ser que esteja doente e para morrer. Mas se tem saúde – eu tenho saúde, tenho disposição para viver! –, velho não conversa sobre nostalgia. “Ó que saudades eu tenho/Da aurora da minha vida...” o Casimiro de Abreu tinha 20 anos [e morreu aos 21, com tuberculose], quando escreveu isso. “Depois de um longo e tenebroso inverno/ Eu quis também rever o lar paterno/O meu primeiro e virginal abrigo” – é outro poema, do Luís Guimarães, em livro de quando tinha 35 anos. O velho que disser que tem saudades da infância é um mentiroso filho da puta. O ancião é um cara do presente. O que é que eu tenho a ver com aquele menino de oito anos chamado Ziraldo? É um menino. Eu não tenho saudade dele. Que idiotice eu ter saudade de um menino de oito anos! Eu soltava papagaio... vou ter saudade? Claro que eu teria vontade de rever o lar paterno, “meu primeiro e virginal abrigo”. Mas a gente não padece de nostalgia. Velho não trabalha com saudade. Pode botar aí. O velho está agarrado no presente. Agarrado! Conversa sobre futebol, sobre sacanagem... Vai conversar com o Oscar Niemeyer! Eu o entrevistei quatro vezes. Em nenhum momento ele ficou naquela de “Ah, bons tempos aqueles...” Isso o velho não fala. Porque o velho inteiro tem consciência de que é inexorável a condição de você atravessar a vida! Tem outra coisa: companheiro!... Eu garanti oitenta anos, tudo bem? Vocês vão fazer oitenta anos? Eu desejo que façam, mas vocês podem garantir? Eu garanti! E garanti os anos mais fantásticos da história do mundo. Eu saí da válvula, para o chip. “Me dê uma alavanca e eu moverei o mundo” é uma frase ridícula hoje em dia. (risos) Desculpe, Arquimedes. Precisa de alavanca para nada. Eu saí da alavanca para a idade virtual. Então, Da Matta, não se meta a escrever sobre velho. Como a Simone de Beauvoir não devia ter se metido. Eu ia dizer uma coisa mais importante do que isso, mas esqueci. Velho tem esse defeito – esquece tudo! (risos) Jornal da ABI – Não é um defeito necessariamente. Ziraldo – A única mágoa de o tempo ter passado para o velho cafajeste é que se passar uma mulher bonita perto dele ele não pode dizer a frase maravilhosa: “Deus e Maria Santíssima vão me ajudar, ainda vou co-


mer essa mulher!” (risos) Então, eu não perdi tempo na vida. O sujeito tem que viver intensamente. Aquele texto do Borges que divulgam nos e-mails, aquilo é mentira. Ele jamais escreveria aquela babaquice: “Eu deveria ter andado mais na poça d’água, ter pegado mais chuva”. Jornal da ABI – Ah, aquela pulha que circula na internet... Ziraldo – Ah... pára com isso! É um apócrifo! O cara que viveu com a intensidade que ele viveu, ia ter nostalgia de andar na chuva? E o velho que tiver essa conversa eu nem quero conhecer. É um velho chato. Velho não verte lágrima, deixa de ser besta! Agora, tem essa coisa. Para o jovem, os dias passam rápido e os anos demoram. O velho, os dias demoram a passar, e os anos passam muito rápido. Essa é uma frase que eu cito, mas eu não sinto isso não. Eu não caibo no meu dia. Eu preciso acordar seis horas antes para ter 30 horas. (risos) Jornal da ABI – Como é a sua relação com seus filhos? Ziraldo – Se há alguém que criou bem os filhos fui eu. Sou pai da Daniela, da Fabrízia e do Antônio. O Antônio é o maior músico da História do cinema brasileiro. Ninguém mais fez 12 filmes nos Estados Unidos. O Antônio fez música para O Amor nos Tempos do Cólera, Colateral, A Estranha Perfeita, O Senhor das Armas... agora está fazendo um filme do mesmo diretor de O Senhor das Armas, fez cinema no mundo inteiro, foi eleito músico revelação do ano, foi para a Bélgica reger a Orquestra Sinfônica da Cidade de Deus. A Daniela é a Daniela, e a Fabrízia é diretora de cinema, dirigiu alguns capítulos daquela série Antônia.

volta para o Brasil, chego no hotel, e tem um recado “Você está aqui, que prazer, venha me ver”. E eu não consegui falar com ele, perdi essa chance. Mas eu arranjei um agente em Nova York nessa viagem, e acertei com ele que eu iria para os Estados Unidos. Aí eu fui preso aqui.

Jornal da ABI – Você vai? Ziraldo – Eu não. Não sei nem ligar o computador. O Vitor é o meu mouse humano. (risos) Eu pago insalubridade para ele por causa do bafo no cangote. Às vezes eu preciso de uma textura que não dá para fazer com o computador, aí eu venho com o guache. Às vezes eu faço tudo com ecoline. Antigamente eu não deixava manchar nada, fazia máscaras com durex, usava um papel que não existe mais chamado Schoeller. Hoje é impossível, não uso esse recurso. Se eu quiser pintar um céu azul, faço separado. Estou pintando mulher pelada em quadros com dois metros e meio de altura. Porque eu sou um grande desenhista de mulher, eu e o Lan. O Lan é melhor do que eu para desenhar mulatas.

Jornal da ABI – Você ainda desenha tudo? Ziraldo – Tudo!

Jornal da ABI – Qual foi a influência do Lan na sua vida? Ziraldo – O Lan é um dos melhores seres humanos que conheci na minha vida. O Lan não existe, é um marciano. O Lan não é desta terra. Eu o amo de paixão. E o Lan faz essas mulatas extraordinárias, e eu gosto muito de desenhar mulher. Então, quando eu faço mulatas, eu tenho que fugir das do Lan. Eu não vou naquele exagero. As minhas mulatas não têm a identidade das mulatas do Lan. A mulata dele é um ser. Então eu nem me engraço. Agora, como a vida inteira no Pasquim eu sempre desenhei o Mineirinho Comequieto, as mulheres do Pasquim, aquela história famosa do “assumi minha porção mulher, mas ela é lésbica”. Ou aquela outra: “Quando era jovem perguntava quem é que come essas mulheres lindas que estão por aí, para descobrir aos trinta que somos nós”. Era o maior sucesso as mulheres do Pasquim. Então, eu estou fazendo um livro só com mulheres. E outro só com Os Zeróis, que vai sair pela Editora Globo, não só os pintados, que eu pintei para aquela exposição no Banco do Brasil, como os que eu sempre fiz desde que o mundo é mundo...

Jornal da ABI – Não tem equipe? Ziraldo – Tenho. Os quadrinhos eu faço com equipe. Antigamente eu fazia um original, agora não tem mais, faço tudo separado, depois vou para o computador com meu mouse...

Jornal da ABI – Numa Veja de abril de 1969 foi publicada a seguinte nota na página 7: “O desenhista Ziraldo, mineiro de Caratinga, 34 anos, depende apenas do seu pedido de permanência nos Estados

Jornal da ABI – Série maravilhosa. Ziraldo – Lembra aquele capítulo do dia dos ataques dos criminosos em São Paulo, que uma delas se perde? Tem direção da Fabrízia, minha filha. Então, é aquele negócio do Pablo Neruda: “Confesso que vivi”. Se você viveu, vai chorar? Eu não! É claro que eu não trabalho mais com o futuro, mas o presente é do caralho! E a quantidade de livros que ainda falta eu ler?... Outro dia saiu uma lista com os 100 livros para ler antes de morrer, e eu fiquei arrasado! Tem um monte que tenho que ler ainda. Já comprei tudo! Jornal da ABI – Como é o seu dia? Ziraldo – Eu tinha que estar trabalhando agora! Estou atrasado com 10 encomendas...

Unidos para mudar-se de vez para Nova York. Ziraldo, que espera embarcar em agosto, colaborava desde 1967 para as revistas americanas Fortune, Mad e Penthouse, recebendo 250 dólares por página e 100 dólares por desenho”. Queria que você falasse um pouco dessa experiência. Você ia morar nos Estados Unidos? Ziraldo – Ilustrei dois ou três artigos no The New York Times. Essa revista Penthouse foi uma grande revolução nas revistas de nus, que começou a botar nu frontal sem tirar os pentelhos com aerógrafo, como a Playboy fazia. A Playboy retocava e as mulheres ficavam assexuadas. Bob Guccione lançou a Penthouse na Inglaterra e foi um estouro. Aí, eu chego em Londres e vou à Redação da Penthouse. Era uma sala desse tamanho aqui, com uma cadeira, o Bob Guccione aqui e uma secretária deslumbrante. Mostrei meus desenhos, e ele fez uma apresentação apoteótica do meu trabalho e começou a publicar meus desenhos na Penthouse. Deve ter sido em 1968. Estes desenhos eu fiz assim com minha peninha, meu lápis, sozinho, sem ninguém. Mas para chegar no resultado eu fazia 300 desenhos, até montar esse esquema. Eu vou para Paris e, quando voltei para Londres e fui visitar o Bob, ele disse: “Você não quer ficar aqui na Inglaterra, não? Vou botar mais uma sala e você fica trabalhando aqui comigo, vamos juntos nessa aventura da Penthouse”. Eu olhei para ele, olhei as mulheres que ele fotografava, pensei na Daniela, Fabrizia, Antônio, Vilma, e pensei assim: “Eu não posso fazer isso, cair neste paraíso aqui. Isso vai dar uma guinada na minha vida enlouquecedora”. Ele virou um cara milhardário, tinha um avião negro voando para Nova York. Um dia cheguei em Nova York e fui visitá-lo. Estava com a Penthouse em Nova York já, rico, parei na recepção e falei: “Eu queria falar com o Bob”. “Você está brincando? Você teria de marcar uma audiência, dizer qual é a sua intenção. O que você quer com ele?”, disse a atendente. “Eu quero revê-lo, eu sou amigo dele. Diga que o Ziraldo quer falar com ele. Você pode fazer esse favor e deixar um recado na mesa dele? Estou no Hotel Sheraton”. Aí, no dia de embarcar de

JornaldaABI–Preso? Ziraldo – Fui preso quatro vezes durante a ditadura. Passei dois Natais preso, um Carnaval preso. Prisão domiciliar, essas coisas todas. Aquela prisão fantástica do Sérgio Cabral, Paulo Francis, Jaguar. Aí, o Steven Monblat, que era da Embaixada Americana e era muito meu amigo –, casou-se com uma brasileira chamada Mariah – conseguiu um Greencard para mim. Quando eu saí da prisão ele estava lá em casa com o meu Greencard. Jornal da ABI – E por que você não foi para os Estados Unidos? Ziraldo – Porque meus amigos estavam todos aqui. Eu não ia fugir do Brasil. O pau estava comendo aqui e eu ia ser desenhista em Nova York? Jornal da ABI – Mas mesmo sendo preso? Ziraldo – Eu fui preso, mas não fui torturado, não fui condenado. O Pasquim teve 18 processos, eu tive uns quatro ou cinco. Achei que não fazia sentido sair do Brasil. Isso foi discutido com a minha mulher. Jornal da ABI – Mas você chegou aconsiderarquandosaiuessanota? Ziraldo – Quandosaiuessanota,eu estava conversando muito sobre isso. Jornal da ABI – Conta um pouco a história dessa revista aqui: a Fairplay. Ziraldo (folheando um exemplar da revista) – É uma revista intelectual, uma revista chique. Olha os colaboradores: Paulo Mendes Campos, Ruy Castro, Paulo Gil, Marina Colasanti, Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Sérgio Malta... Grandes fotógrafos brasileiros começaram a vida aí. Clóvis Scarpino, Jacques Avadis, Ronaldo Câmara, Luís Cláudio Trípoli, o fotógrafo mais caro do Brasil, começou aqui. Olha isso: “A empregada da Senhora Flicts” é um texto do Wagn, que também desenhava. Esse “Flicts” ele tirou da história da Supermãe; eu inventei essa onomatopéia. Ele adorou e botou aqui. E depois virou o meu livro... Jornal da ABI – E na Supermãe o que era o Flicts? Ziraldo – Era o ruído do gás lacrimogêneo. Era uma tira que eu fazia

no JB, ensinando as pessoas como ir à passeata. Eu fiz no O Cruzeiro também, o Jeremias ensinando como é que se ia numa passeata. Olha que mulher chique! (mostrando uma das fotos do ensaio com Odette Lara, ao lado) Jornal da ABI – Odete Lara cobrou muito para fazer essas fotos sem roupa? Ziraldo – Nada! Nunca pagamos um tostão. Nós tiramos a roupa da Florinda Bulcão também! Eram ensaios de fotógrafos altamente credenciados. Affonso Beato, um dos maiores fotógrafos da História do cinema brasileiro, fez as fotos da Odete Lara. Ele já era um fotógrafo de respeito, as mulheres já sacavam que não era um fotógrafo qualquer. Jornal da ABI – Como surgiu esse projeto? Ziraldo – Primeiro a revista era feita em São Paulo, muito bonitinha, bemfeitinha.Compravafotosdeagência. Entrei no número 6. Sabe quem era minha inspiração? A Esquire. Essa era uma Esquire com mulher pelada. Jornal da ABI – Ganhava-se bem para trabalhar nessa revista? Ziraldo – É... ganhava bem... Tinha um padrão de vida razoável, nunca tive problema financeiro na minha vida. Eu nunca fui rico, por uma razão muito simples: eu nunca quis o que não pudesse ter. Nunca tive objeto de desejo. Eu só começava a ter um objeto de desejo quando arrumava dinheiro para isso. Por exemplo, eu tinha um objeto de desejo, uma casa na Ilha Grande. Aí botei uma casa lá. E ia para lá no barco dos farofeiros, acordava às 5 da manhã aqui com a minha família toda, para poder chegar cedo e pegar o barco dos farofeiros. Eu não queria ter uma lancha, agora tenho duas. Mas eu não queria ter uma lancha porque não podia comprar. Essa coisa você aprende em Minas Gerais, com seu pai e sua mãe mineiros. Meu pai falava: não avance além dos passos que você pode dar. Meu pai escreveu isso para mim, num decálogo (ver boxe). Eu ainda tenho esse decálogo do meu pai. Jornal da ABI – O Ziraldo tem alguma religião? Ziraldo – Fui católico. Mas o homem lúcido, decente, não precisa de religião. Religião é para os que têm dúvidas e para os que têm fé. Tem gente que tem fé verdadeira. Mas a maioria é religioso por medo, por insegurança. Se o sujeito é decente, é honesto, é generoso, é leal, para quê ele precisa de religião? A religião é fundamental para a massa, porque nem todo mundo tem consciência das suas possibilidades rumo ao bem. Muito pouca gente sabe que pode ser boa. O que sabe, não precisa de religião. Mas para a maioria, tem que botar um freio, botar pecado. O cara que é bom tem pecado, mas não vai

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DEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOS

JOSÉ DUAYER

Ziraldo em seu estúdio de pintura. Abaixo, um dos cartazes de cinema que marcaram época: Os Fuzis.

queimar no fogo eterno! Você vai queimar no fogo eterno? O cara passou 80 anos sofrendo aqui, cheio de carências afetivas e desejos não realizados, aí faz uma besteira e fica o resto da eternidade queimando? O que é isso? A maior religião do mundo é a Umbanda, porque não é maniqueísta. Não existe preto e branco. Todos os seres vivos estão a caminho da luz, você vai caminhando em direção da luz, alguns voltam cinqüenta vezes à Terra, até aprender. E outros, 10 passagens pela Terra já está bom. Então, quando o cara morre cedo, ele já alcançou a luz, isso segundo a Umbanda. Bonito, né? Ah! Uma outra coisa que eu quero falar: velho não tem é medo da morte! É importante dizer isso para as crianças: velho que tem medo da morte... é um idiota! Por que ele acha que deve viver mais que todo mundo? O velho saudável não reivindica esse direito. Quando eu nasci, a ida-

de média do brasileiro era de 45 anos. Eu tenho 80! Rubem Braga, quando ficou com câncer só dizia: “Me dá morfina! Me dá morfina e não encham o meu saco”. Sofrer pra caramba para ter uma subvida? Eu quero a minha vida! Esta que eu tenho! E não quero sentir dor e não vou me suicidar. Eu pensava muito nisso quando era jovem. Meu sonho era chegar ao século 21. Pronto. Século 21 com 68 anos, tudo bem. Mas a gente, nessa faixa, não tem precisão do que é um velho. Eu lembro quando o José Lewgoy tinha feito 70 anos e eu o encontrei: “O Zé, parabéns!” E ele: “Parabéns, o caralho! Eu estou fazendo 70 anos, olha aqui na minha testa escrito VELHO. Eu sou velho. E não tem graça nenhuma ser velho”. Eu falei: “Pois é. 70 é velho?” “É.” Podia ser. Mas hoje eu considero, com precisão, o sujeito só pode se chamar de ancião aos 80 anos. Antes ele não pode. O americano de 80 anos é ‘older’, que é uma palavra bonita, mas aqui no Brasil é ‘velho’. Então, pára com essa porra de ‘terceira idade’. ‘Melhor idade’ então, é nojento! É nojento porque é de uma hipocrisia sem limite! Por que a velhice é a melhor idade? Porra! Na velhice você continua se divertindo e não venha

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me dizer que não se diverte! Só que eu não agüento mais aquele Bum! Bum! Bum! Me derruba o crânio. Agora, sentar lá em casa, olhando a paisagem e lendo os livros que me faltam!... Pô! Isso me dá uma paz! Não é conformismo, não! Eu é que estou feliz de ter vivido 80 anos nestes dois séculos. Puta que pariu, porra! (batendo na mesa com entusiasmo) Jornal da ABI – Você já falou de grandes amigos que encontrou pela vida: Millôr, Zé Aparecido, Enrico Bianco, Reynaldo Jardim. Que outros nomes você gostaria de lembrar? Ziraldo – Jaguar e Zuenir Ventura, claro! Eu devo muito ao Jaguar. Muito mesmo! Ele que me apresentou ao Rio. Quando eu cheguei ao Rio, o Jaguar tomou-se de um carinho por mim. Toda a descoberta de Ipanema eu devo ao Jaguar. Eu não posso fazer uma entrevista sem falar no Jaguar e no Zuenir Ventura. Eu tenho muitos amigos e não posso citar um ou outro. Mas o Jaguar e o Zuenir... Falei muito menos do Carlos Leonam. Ele vivia aqui em casa e era apaixonado pelo Zuenir! Vivia me dizendo: “Você precisa conhecer o Zuenir!”. Até que eu conheci e ficamos amigos para sempre. A minha formação e a do Jaguar são The Punch, The New Yorker, Graphis, todas essas revistas estrangeiras a que a gente podia ter acesso. Quando eu vim para o Rio pela primeira vez, havia uma banca que vendia revistas internacionais ali na Almirante Barroso (Centro do Rio), e era onde eu comprava Mad, Fortune, e outras revistas. E muitas vezes eu devo ter cruzado com o Jaguar, que trabalhava no Banco do Brasil e vivia por ali também. Quando conheci o Jaguar, nós tínhamos as mesmas influências, gostávamos dos mesmos desenhistas, só que eu fui um cara que alcancei o meu desenho com muito sofrimento. Eu não sou de desenhar com muita facilidade. O desenho quando tem muita facilidade tem menos invenção, porque você sabe fazer o que está vendo. Então o Jaguar, que desenhava bem, virou um dos maiores cartunistas do mundo. Tudo o que ele desenha é uma coisa espontânea. Nós ficamos muito juntos. Quando eu estava puxando o saco do Millôr, eu era o “gafanhoto” do Millôr (uma referência à famosa série de tv, Kung Fu, dos anos 1970). Eu sofria muito quando eu saía com o Millôr, porque ele nunca fez um gesto de agrado para ninguém. Nem o Jaguar! Eu faço tudo para não desagradar as pessoas, e o Millôr cortava logo. Já eu tenho muita paciência porque acho que eu era chato também, e como chateava as pessoas, aceito quando o cara vem me chatear. Eu pedia autógrafo, falava com as pessoas “Sou seu fã”. (risos) Um dia eu estava com o Millôr e o Jaguar comendo na churrascaria em Ipanema, o Mario’s, e eu vi o García Márquez

numa mesa com um casal. Aí eu falei “Eu vou lá falar com ele”, porque eu tinha escrito um livrinho da minha Coleção ABZ, com um personagem que fazia referência a Cem Anos de Solidão. E eu desenhei essa história e queria dar o livro para o García Márquez. Queria saber o hotel em que ele estava. Aí o Millôr disse: “Se você for falar com ele nunca mais falo com você na minha vida! Deixa de ser babaca!” (risos) E eu disse: “Não vou pedir autógrafo para o García, quero saber o hotel onde ele está, vou dar um livro para ele”. E o Millôr: “Nós vamos sair daqui. Saia com a gente! Porque se a gente sair você vai falar com ele, seu babaca!”. “Não, pode deixar que eu não vou, não!”. Aí eles saíram, eu fiquei... e depois levantei e fui lá falar com o García. Quando eu cheguei perto dele, falei “Dá licença?” Eu esperava que o casal que estava com García Márquez fosse brasileiro e me ajudasse, dissesse para ele que eu era escritor, mas o casal era estrangeiro também! E quando você está na mesa com pessoas conhecidas, e chega alguém para pedir autógrafo, a pessoa que está com você se sente muito mais incomodada que

O decálogo do pai 1. Sê perfeito em tudo o que fizeres. 2. Ouvir missa aos domingos e dias santificados. Faça suas orações da noite e da manhã. 3. Apresentar-se sempre na hora certa ou antes da hora no serviço e nos estudos. 4. Cuidar dos seus deveres do serviço bancário e dos estudos com antecedência. 5. No serviço do banco, nunca dispensar sua atenção para coisas fúteis. Cuide do seu serviço e procure adquirir a simpatia dos seus superiores e dos colegas. 6. Afaste-se das más companhias. Quando se oferecer oportunidade de ir a alguma festa em casa de família, em clubes ou outras organizações festivas, saiba se apresentar com decência, bem vestido e jogar sempre com uma carta de menos, quero dizer, meu filho, nunca ceder o seu direito a não desejar para outrem o que não deseja para si. 7. Recomendo mais uma vez visitar as pessoas que já falamos. Quando se oferecer oportunidade de encontrar um caratinguense, trate-o com a sua habitual camaradagem. 8. Procure deitar e levantar em horas certas. 9. Procure controlar sua receita e despesa, a fim de não passar por vexame. 10. Queira cumprir as recomendações acima.

você. Aí os dois fizeram aquela cara de incomodadíssimos! E eu falei: “Eu sou um escritor brasileiro”. E ele disse “En Brasil hay muchos”. Aí eu pensei: “Eu vou mandar esse cara para a puta que o pariu. O que é que eu faço?” (risos) Mas não tive coragem. Aí eu disse: “Só queria cumprimentá-lo, muito obrigado”. Por isso é que eu trato as pessoas bem quando elas vêm falar comigo. Porque a pessoa já vem toda contrafeita, sabe, ela já está se violentando. Então, eu tenho o maior carinho, a maior paciência. Mas eu pensei comigo: o dia que eu encontrar com ele de novo eu vou dizer “Você é um bom filho da puta”. Depois eu estive com ele numa reunião de intelectuais europeus, e ele estava numa paquera danada com a Lucélia Santos, na época da Escrava Isaura. E quando eu conversei com ele, foi muito simpático comigo. Mas o que eu queria mesmo é dizer pra ele: “Eu só queria mandar o senhor à puta que o pariu”. (risos) Mas eu vou te falar: toda vez que um cara conta uma história em que ele fez uma coisa assim, está mentindo! O cara elaborou isso depois! Todos nós temos a reação perfeita diante do desapontamento... mas meia hora depois, só no dia seguinte! Quando você vai contar para os outros, você conta a versão que te absolve. E é mentira. O único sujeito que nunca titubeou foi o Millôr Fernandes. Toda resposta era em cima da bucha. O Millôr era de uma velocidade de raciocínio espantosa. Eu ficava morrendo de inveja. Jornal da ABI – O Audálio Dantas, que também está comemorando 80 anos neste mês e sendo homenageado Brasil afora, escreveu um lindo livro sobre a Infância de Ziraldo... Ziraldo – Audálio Dantas é uma grandefigura.Conheço-odesdeaépoca de O Cruzeiro. Audálio é um patrimônio deste País. Ele é outro marciano!

Jornal da ABI – Como foi sua participação nesse projeto? Ziraldo – O velho Audálio, meu irmãozinho, figura da maior importância na história da imprensa brasileira, decidiu escrever a história da infância de alguns amigos seus. Não é exatamente um projeto, é um livro. Bonito e carinhoso. Que me deixou muito comovido e gostando ainda mais do nosso guerreiro de Tanque D’Arca. Eu ainda tenho alguns amigos de infância que estão vivos, que quero falar deles também: o Alan Viggiano, que é o macaco no Pererê; Pedro Vieira, que é o tatu; Galileu que é a onça; o Pimentel morreu, mas tem o Moacir Viggiano e Paulo Nogueira, que é de Itajubá. Nós conseguimos uma coisa que os quatro grandes mineiros não conseguiram (Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino, retratados no Jornal da ABI/Edição 382). Estamos juntos, somos irmãos, vou na festa deles, eles vão na minha festa, eu tenho que ir a cinco festas este ano! Todo mundo de Caratinga. Jornal da ABI – Vai fechar a cidade! Ziraldo – É, uai! Cinco mil crianças, todos os colégios da cidade vão desfilar, e dos Municípios vizinhos. Caratinga é uma cidade atípica. Porque mineiro tem muito problema com quem volta. Se volta, é porque fracassou. “Eu não fracassei não”. “Então por que voltou?” “É porque eu gosto da minha cidade”. “Ah, gosta... Sei.” Essa é a alma mineira. (risos) Mas o pessoal em Caratinga faz festa até para quem passa no vestibular, rapaz! Carreata! (risos) Faz festa para tudo! Então, você não pode imaginar o que estão aprontando para mim, lá! É uma coisa impressionante. Vai todo mundo para Caratinga no dia 28, vai ter uma festona em Caratinga... (Continua no Jornal da ABI/Edição 384)


80 anos em 120 minutos Ao completar 80 anos, o cartunista recebe homenagem com o lançamento do dvd Ziraldo em Profissão Cartunista, documentário especial, de Marisa Furtado. P OR P AULO C HICO

Quantos anos têm Ziraldo? Aliás, quantas vidas existem dentro de um cartunista? Difícil responder tais questões, quando o personagem real envolvido é ‘pai’ de tantos outros, que povoam o mundo encantado da ficção. Porém, para todos os efeitos, e desconsiderando a natureza plural que envolve a fértil existência dos artistas, segundo o calendário nosso de cada dia, Ziraldo Alves Pinto completa 80 anos em 24 de outubro deste 2012. Como não poderia deixar de ser, o aniversário será marcado por festa e homenagens. Uma das mais especiais aconteceu na noite do dia 18 de outubro, na Livraria Travessa do Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro, quando foi lançado o dvd Ziraldo em Profissão Cartunista, documentário de Marisa Furtado de Oliveira. “Neste especial, os fãs têm acesso a toda a trajetória gráfica do artista. O documentário se fundamenta no contexto histórico que acompanha a trajetória de Ziraldo e se estrutura em dois episódios. O primeiro, chamado O Menino Astronauta, vai de 1932 a 1969, passando pela Segunda Guerra Mundial até a chegada do homem na Lua. Este episódio fala de um garoto que tem a ambição de ser um astro, se possível um astronauta. Quer dizer, um aventureiro do espaço, que sonha ser autor de quadrinhos e cartunista internacional. O segundo – Ziraldo o Homem, que vai de 1969 a 2002 – aborda um cidadão que vive o desbunde dos anos 1970, que tem suas ambições carnais de ser atuante, em todas as esferas da vida nacional, da fundação de O Pasquim, da política, das prisões, de suas campanhas de publicidade e da imensa obra gráfica do maior cartazista brasileiro de todos os tempos. E ainda foca no multimídia, que envereda pela literatura infantil e obtém sucessos estrondosos, vira balé, filme, e trabalha em tv. Em 2002, Ziraldo completou 70 anos e foi tema de enredo de escola de samba em São Paulo. Isso também aparece lá”, conta Marisa ao Jornal da ABI.

Ziraldo em Profissão Cartunista, uma produção da Scriptorium e da Robdigital, faz parte da premiada série de documentários – levou o Prêmio HQMix em 2000 e 2002 – que biografou Henfil, Jerry Robinson e Will Eisner, e que foi exibida em cinemas e televisões de mais de 40 países. Como o dvd está sendo lançado para celebrar seus 80 anos, não poderia deixar de abordar o fato de o artista ter mergulhado na pintura. Por isso foi produzido um pequeno Extra chamado Ziraldo Pintor, que mostra um pouco do que foi exposto no Rio e Brasília na exposição Zeróis. A edição que chega agora ao mercado traz ainda outro Extra, que é uma animação feita pelo Pequeno Cidadão, onde o biografado canta uma música que fez para ninar seus filhos, evidenciando o talento deste mineiro enquanto compositor. “Ao pensarmos em mestres cartunistas no Brasil, Ziraldo certamente é o nome na linha de frente. Referência e formador de tantos discípulos, ele estimulou várias gerações de artistas em diversas áreas: cinema, televisão, teatro, literatura... Não há fronteiras para o seu trabalho. O artista pujante e ativo não tem como parar para fazer retrospectivas e refletir sobre a própria obra. Todos os artistas que eu retratei só tinham planos futuros e, na maioria das vezes, fui eu quem organizou a obra em forma de catalogação e pesquisa. Este trabalho dos documentários busca servir como referência sobre a obra do autor. Acho que isso é herança da minha mãe que trabalhava como enciclopedista na Britânica”, afirma Marisa, lembrando que o documentário conta com depoimentos de personalidades como Paulo Caruso, Miguel Paiva, Sérgio Cabral, Gerald Thomas, Fernando Barbosa Lima, Fernando Pamplona, Ique, além de parentes e amigos de infância – muitos deles depois transformados em personagens. A pedido do Jornal da ABI, a diretora avalia a produção de Ziraldo nos dias atu-

ais. “Quando terminei o documentário, em 2004, fiz um projeto para recriarmos o Mural do Canecão que foi pintado em 1968 e destruído... Cheguei a conseguir aprovação do Vivo Rio e do Mam, Ziraldo doaria a obra para a cidade do Rio de Janeiro e nós faríamos, com a ajuda de museólogos e de alunos de Belas-Artes, uma recriação do Painel de 180 metros quadrados do Canecão para durar pelos próximos 200 anos. Não consegui patrocínio e o projeto não vingou. Mas naquela época ele estava começando a enveredar pela pintura e de lá pra cá não parou mais. Mas ele continua trabalhando na TV Brasil e agora tem um portal exclusivo na internet onde entrevista pessoas, na TV Zira. Se você quer definir em que ramo ele está atuando, simplesmente não vai conseguir, porque ele ‘joga nas onze’ posições”, explica ela, que segue em seu detalhado relato. “Sobre técnicas eu posso dizer que, há poucos dias, estive na casa dele. Ziraldo estava criando uma campanha para a Brahma – linda! – que começava desenhando em bico de pena, daquele tipo de bico que se mergulha na tinta, coisa ancestral mesmo! E que depois é transposto para o computador por um assistente, onde ele vai elaborando e colorindo cada etapa até o produto final. No segundo episódio do dvd há um trecho onde a gente mostra exatamente isso, como ele trabalha, suas técnicas, paleta de cores e como alcança seus produtos finais. A série Profissão Cartunista tenta sempre mostrar como é a mágica nos bastidores, para aqueles que como eu desejam desenhar.” O dvd chega agora ao mercado para ser parte da bibliografia sobre o Ziraldo, para

servir de fonte de informações para os admiradores que quiserem pesquisar sobre o artista. “Estou desenvolvendo um trabalho com escolas que já começaram a produzir projetos a partir dos documentários da série”, adianta Marisa, que, além do evento no Rio, pretende fazer lançamentos em São Paulo e Belo Horizonte, e em algumas cidades do Nordeste. Mas, como será que Ziraldo assistiu ao documentário a seu respeito, quando de seu lançamento? “Creio que para ele o documentário é mesmo muito emocionante, e talvez por isso tenha se esquivado tanto de mim, até que eu o realizasse. Ele só assistiu ao filme quando estava pronto, dentro do cinema. Se mostrou muito emocionado com o depoimento dos filhos sobre o período das prisões. Acho que, por ter feito sempre tanta piada daquilo, aquelas histórias viraram folclóricas e engraçadas... Mas havia ali um aspecto de dor e medo, que ficou impregnado na família e foi recordado. Ele se emocionou muito com a música que o filho Antônio fez pra Vilma – sua mãe, esposa do Ziraldo –, que tinha falecido subitamente dois anos antes. Ao final de uma sessão em São Paulo, ouvi pessoas me dizerem que haviam chorado, se emocionado. Acho que não só o Ziraldo se emociona com sua história. Todo mundo acaba se emocionando, pois ela é também a História do nosso país”, define Marisa. O próprio Ziraldo também falou ao Jornal da ABI, sobre este momento de lançamento do dvd. “Nessas horas, minha reação é sempre a mesma. Acho que há uma severa dose de exagero na atenção dispensada a mim. O fato é que o documentário é um trabalho muito bem feito, e que me comove demais. Fico agradecido a Marisa pelo fato de ela achar que minha vida e minha obra merecem ser documentadas, ainda mais por ela, cuja capacidade enquanto documentarista é inegável. É uma honra fazer parte de uma série dedicada aos cartunistas, ao lado de nomes como Henfil e Will Eisner, este segundo meu primeiro ídolo de infância, quando ainda morava em Caratinga, e de quem depois me tornei amigo. Mas quando você me pergunta a sensação que sinto agora, diante do lançamento deste dvd, posso responder que experimento mesmo uma espécie de pavor! (risos) E penso em dizer: ‘Menos, querida Marisa, menos...’”, conta Ziraldo. E cabe mesmo a Marisa a tarefa de tentar definir Ziraldo – o homem e a obra. “Há uma entrevista que ele deu ao Roda Viva, da TV Cultura, em que diz desejar provocar a reflexão das pessoas. Ziraldo afirma, parafraseando o Chacrinha: ‘Eu vim para confundir, para fazer as pessoas pensarem’. Mas eu diria que ele faz isso com muita alegria, e com uma beleza plástica inigualável. Se você reparar bem, são raríssimos os artistas que produzem a partir da alegria – a maioria o faz a partir da dor, pois esta é mais produtiva mesmo! O ‘ser feliz’ quer curtir a vida e não viver em devoção ao trabalho. Mas quando há uma inquietação latente como a de Ziraldo, é preciso botar pra fora. E a isso eu chamo de talento, vocação”, teoriza. Pelo visto, mais do que confundir ou fazer pensar, Ziraldo sabe encantar.

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DOCUMENTO

O RELATÓRIO DA BOMBA O texto integral do Relatório encaminhado pela ABI à Comissão Nacional da Verdade pleiteando investigação sobre o atentado terrorista praticado contra sua sede em 19 de agosto de 1976. P ESQUISA E REDAÇÃO DE

M ARIO A UGUSTO J AKOBSKIN E A RCÍRIO G OUVÊA N ETO

1. UM SÉCULO DE LUTAS EM DEFESA DAS LIBERDADES 1.1. Desde sua fundação, em 7 de abril de 1908, por iniciativa do jornalista Gustavo de Lacerda, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) tem participado ativamente das mobilizações populares em defesa da democracia. A ABI defende o que considera um dos principais valores da grandeza de uma nação, ou seja, a liberdade de imprensa, assim como o repúdio a qualquer tipo de censura. 1.2. Ao longo dos seus mais de 104 anos de existência, a ABI se destaca também pela defesa intransigente dos direitos humanos e não abre mão dessa defesa. O respeito a esses valores é sua marca registrada e a razão de ser de uma instituição que sempre esteve presente nos momentos relevantes da História contemporânea brasileira, com destemor e coragem, sem se intimidar com ameaças e tentativas de calar a sua voz. 1.3. Seguindo esses princípios, a ABI criou logo após o golpe militar a Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa, com o objetivo de estar sempre vigilante na defesa do que considera ser o melhor para o País, Comissão essa que se destacou historicamente em tantos momentos relevantes e significativos da vida política nacional. 1.4. A ABI é uma entidade que reúne trabalhadores da área de comunicação e proprietários dos mais variados e diversos meios de comunicação, sem discriminação de qualquer tipo. Através de sua Diretoria e do Conselho Deliberativo, tem-se esmerado no sentido de jamais esmorecer ou retroceder na luta em prol das instituições e pessoas que prezam a liberdade, a justiça e a igualdade social, predicados esses que considera serem os propulsores do desenvolvimento humano. 1.5. Dentro desse espírito, a partir de abril de 1964, quando do golpe civil militar que retirou do poder o Presidente João Belchior Marques Goulart e suprimiu todas as garantias constitucionais do cidadão, a ABI nunca deixou de lado a sua razão de existência como entidade, mesmo nos momentos mais difíceis 12

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e perigosos, atitude que lhe valeu a admiração e o respeito da população e das mais importantes instituições do País. 1.6. Já nos primeiros dias após o golpe de 1964, a ABI não mediu esforços na proteção e defesa dos cidadãos brasileiros, jornalistas ou não, que não compactuavam com o arbítrio, fossem presos ou sofressem torturas, e nessa luta destacaram-se os Presidentes Herbert Moses, Danton Jobim, Prudente de Moraes Neto, Barbosa Lima Sobrinho e tantos outros. 1.7. Foi assim que se empenhou o quanto pôde na libertação do jornalista João Etcheverry, integrante do Conselho Deliberativo da Casa, preso na Polícia do Exército por 30 dias, conforme consta da Ata de Reunião da Diretoria, com data de 27 de maio de 1964. 1.8. Nessa mesma reunião, os Conselheiros relataram que a Diretoria da ABI também se empenhou para que o escritor e jornalista Astrogildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro, fosse libertado imediatamente e que durante a sua prisão tivesse respeitada a sua integridade física. 1.9. Poucas horas depois da eclosão do golpe civil militar, dezenas de jornalistas foram à sede da ABI, por a considerarem local seguro, para tentar de alguma forma resistir e expressar sua indignação pelos rumos dos acontecimentos. 1.10. A Diretoria da ABI empenhouse ao máximo também na libertação dos jornalistas José Gomes Talarico e Arthur Cantalice, Conselheiros da ABI, e Carlos Heitor Cony. E sempre esteve atenta ao longo dos anos para evitar que outros jornalistas sofressem violência nos porões da ditadura. Foram célebres as reuniões para traçar estratégias de enfrentamento ao regime militar, realizadas sob o perigo constante de seus participantes serem presos, sem contar o oferecimento de suas dependências para manifestações de todo tipo contra as arbitrariedades praticadas durante aquele período.

2. FARSA NO ASSASSINATO DE VLADIMIR HERZOG 2.1. Quando ocorreu o assassinato, nos porões da ditadura, do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, além de demonstrar a sua indignação pelo ato de barbárie cometido na área do II Exército, em São Paulo, a ABI

esteve presente não apenas na capital em um depósito terceirizado pelo Estado paulista, por ocasião do sepultamento de São Paulo, na cidade de Cotia (SP). do jornalista, como abriu o auditório do 2.7. Em A Ditadura Encurralada, pág. 9º andar de sua sede no Rio de Janeiro 177, Elio Gaspari resume a indignação para mais de 300 jornalistas, artistas e innacional: “Herzog não precisava ter telectuais, que permaneceram em silênamarrado a tira de pano na grade infecio durante dez minutos, exatamente rior. Na cela especial nº 1 havia uma cano horário do sepultamento de Vladideira. Poderia ter subido nela e feito o nó mir Herzog. Indo mais além em sua na barra superior, projetando-se em vão indignação, a Diretoria da ABI decretou livre”. É o que comprova a imagem, agoluto oficial de oito dias, como repúdio ra revelada. pelo covarde ato. 2.2. Juntamente com o Sindicato de 3. A REPRESÁLIA CONTRA A ABI: Jornalistas Profissionais no Estado de UMA BOMBA DE FORTE TEOR São Paulo, então presidido pelo jornalista Audálio Dantas, empenhou-se a ABI 3.1. Tais fatos ao longo de 21 anos de com todas as forças no sentido de desvigência da ditadura civil-militar no mascarar os argumentos mentirosos País, e muitos outros que aumentariam dos que então detinham o poder, segunsobremaneira este relato, escritos literaldo os quais Vladimir Herzog teria se suimente a ferro e fogo na memória histócidado. Com isso, evitou-se que o corpo rica da ABI e ainda recentes também na do jornalista fosse sepultado na ala de memória de tantos heróis daqueles temsuicidas de um cemitério judaico, relipos sombrios que ainda militam na Casa, gião da vítima. Graças a são importantes de serem isso a verdade pôde ser resUNCA VI UMA lembrados. tabelecida como prova a 3.2. Para se entender EXPLOSÃO TÃO recente declaração do Demelhor os motivos da fúVIOLENTA legado Cláudio Guerra, ria dos apoiadores do regique disse ter sido Vladimir me ditatorial de 1964, fúQUANTO ESSA Herzog realmente assassiria essa manifestada com ELA PODERIA TER ameaças e truculência em nado e toda a cena de enPROVOCADO forcamento em sua cela vários episódios, o maior e ter sido montada pelo Dops mais grave deles ocorrido VÁRIAS MORTES de São Paulo. às 10h15m do dia 19 de 2.3. Ainda com relação a esse episóagosto de 1976, com a explosão de uma dio, que tanta luta e denodo mereceu da bomba de alto teor destrutivo, que daABI, no sentido de buscar a verdade, nificou as instalações do 7º andar da uma nova fotografia do corpo de Vladisede da entidade, na Rua Araújo Porto mir Herzog, obtida com exclusividade Alegre, 71, prédio este tombado pelo e divulgada pelo Deputado Miro Teixeira Instituto do Patrimônio Histórico Na(PDT/RJ), no site leidoshomens.com.br, cional-Iphan. amplia as possibilidades de reabertura 3.3. A barbaridade e alcance do ato judicial do caso e seu exame pela Comispodem ser traduzidos na frase estupefasão da Verdade. ta de um velho e experiente perito do 2.4. Como se pode ver na foto, a cinInstituto de Criminalística do Rio: ta passada em torno do pescoço de Vla“Nunca vi uma explosão tão violenta dimir Herzog estava amarrada em uma quanto essa, ela poderia ter provocado barra de ferro a 1,63m de altura, o que várias mortes”. Preparada com dinamite impedia a suspensão em vão livre do seu comercial e acionada através de ácido corpo, cujas pernas se dobravam no chão. sulfúrico, a bomba, colocada na caixa de 2.5. Na correspondência trocada entre inspeção da coluna d’água do 7º andar, o General Newton Cruz, chefe da Agênera de efeito retardado e os peritos não cia Central de Informações, e seu superisouberam afirmar se ela fora armada or, o General João Batista Figueiredo, ficom várias horas de antecedência ou micam evidentes as divergências internas a nutos antes da explosão. respeito do assassinato e um acordo táci3.4. A explosão, planejada nos mínito de silêncio dos dois sobre o caso. mos detalhes e programada para des2.6. A fotografia que exibe as barras truir o “centro nervoso” da entidade, sesuperiores da janela está entregue às tragundo os peritos da Polícia Civil, “proças, arquivada nos autos do Caso 7338/75, vocou a destruição de uma viga de con-

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ARQUIVO ABI

“A CICATRIZ DESSA AFRONTA FICARÁ PARA SEMPRE NA LEMBRANÇA DOS QUE COMUNGAM DOS IDEAIS DE LIBERDADE E PROGRESSO, QUE EMANAM DESSA NOBRE ENTIDADE. PORÉM, DEPOIS DISSO, FICAREMOS MAIS FORTES E COESOS PARA COMBATERMOS O INIMIGO TRAIÇOEIRO. PORQUE SÓ ASSIM, À TRAIÇÃO, É QUE SE FERE UMA CLASSE COMO A DOS JORNALISTAS”

creto de 30 centímetros de espessura, arcia, a Sala das Telefonistas, o Serviço de remessando-a sobre o teto de um elevaMecanografia e um pequeno arquivo. dor, o derretimento de mais de dois Na ocasião, lá se encontravam apenas metros de tubulação de chumbo e meoito funcionários, que por sorte não estal da coluna hidráulica; a destruição da tavam próximos ao banheiro onde exparede divisória entre os banheiros plodiu a bomba. masculino e feminino, bem como de to3.6. O mecanógrafo Hugo Martins, das as peças sanitárias; rachaduras na que trabalhava próximo ao local da exparede externa dos banheiros; o desloplosão, conta o que viu: “Quando ouvi camento de duas portas do aquele barulhão todo, penbanheiro masculino, sensei que fosse algum probleORRI ATÉ O do uma delas arremessada ma na caixa de força, que BANHEIRO E longe; o estufamento da fica perto do banheiro. HORRORIZADO VI Tive sangue-frio para suparede externa do corredor que leva ao auditório; o desAQUELE ESTRAGO gerir que todos os outros locamento de várias janefuncionários descessem TODO ENTE las de ventilação e lambris pela escada, principalmenCHORANDO E de todo o sétimo andar; a te as duas mulheres que esqueda de parte do revestitavam lá na hora que a ASSUSTADA mento do teto da sala da bomba explodiu, dona JuM CENÁRIO presidência e a destruição rema e dona Camila. De reINDESCRITÍVEL das bandeiras do Brasil e da pente, vi uma fumaceira ABI”. danada saindo pela porta DE PAVOR 3.5. Nesse andar funcido banheiro. Era uma fuonavam a Sala da Presidência, a Sala do maça espessa, com muita poeira e um Conselho Administrativo, dois Auditócheiro forte de pólvora. Corri até o barios, a Secretaria, a Tesouraria, o Deparnheiro e horrorizado vi aquele estrago tamento de Pessoal, o Serviço de Assistodo. Enquanto isso, os lambris da paretência Social, a Comissão de Sindicânde iam se soltando, os vidros partindo e

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caindo no chão. Muitas cadeiras e móveis foram arremessadas longe. Gente chorando e assustada. Um cenário indescritível de pavor ”. 3.7. Vários panfletos da Aliança Anticomunista Brasileira (AAB), que assumiu a autoria da explosão, foram encontrados em todo o 7º andar. Inúmeros jornais, espalhados por todo o Brasil, mesmo proibidos pelo regime militar de divulgar atos dessa natureza, destemidamente, estamparam manchetes denunciando o ato terrorista. Entre eles, podemos citar o Diário de Notícias, de Porto Alegre; o Jornal de Brasília, O Estado, de Florianópolis; o Diário do Grande ABC, o Correio Braziliense, o Correio do Estado, de Mato Grosso; a Folha Metropolitana, de São Paulo; a Tribuna da Imprensa, o Jornal do Commercio, de Recife; O Popular, de Goiânia; o Diário de Brasília; A Tribuna, de Santos; o Diário do Paraná, Última Hora, de São Paulo. 3.8. Os extremistas agiram estimulados pelo discurso proferido no dia anterior pelo Deputado José Bonifácio de Andrade, da Arena de Minas Gerais, líder do Governo do General Ernesto Geisel, que em linguagem de ódio acusava a ABI e órgãos de imprensa de “infiltração comunista”. De fato, o discurso do líder do Governo detonou a bomba na ABI. Bonifácio chegou a acusar textualmente “todos os meios de comunicação de estarem sendo efetivamente comandados pelos comunistas”. 3.9. Nos mesmos moldes de ação da entidade similar argentina conhecida como “Triple A” (Aliança Anticomunista Argentina), os extremistas da AAB também tentaram horas mais tarde explodir uma bomba na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), o que não ocorreu porque foi descoberta a tempo por um funcionário da entidade, que, como a ABI, se empenhava na luta pelo restabelecimento da democracia no País. 3.10. Logo após a explosão da bomba na ABI e da tentativa frustrada na OAB, o mesmo líder do Governo, ao ser indagado sobre a grave ocorrência, simplória e ironicamente, responsabilizou “os comunistas” pelo ocorrido, segundo notícia veiculada pelos principais órgãos de imprensa. 3.11. Para se ter mais uma idéia daqueles tempos de repressão ao povo brasileiro, à liberdade de expressão e a entidades representativas da sociedade, que se empenhavam na luta pela democracia, os agentes policiais que chegaram à ABI após a explosão da bomba agiram de for-

ma autoritária e cuidaram de recolher os panfletos deixados pela AAB. Foram muito rápidos ao tentar recolher os panfletos antes dos trabalhos da perícia. 3.12. Procuraram revistar o jornalista Davi Chargel, Diretor de Sede da ABI, em uma clara demonstração de evitar que o panfleto ganhasse publicidade e ajudasse a se chegar aos responsáveis pelo ato terrorista. Chargel só conseguiu evitar a revista porque protestou aos gritos contra a insistência policial. 3.13. Como se isso não bastasse, o Conselheiro da ABI e Coordenador de Redação da sucursal do Rio da revista Veja, afastado momentaneamente do cargo para tratamento de saúde, jornalista Henrique Miranda Sá Neto, era seqüestrado em sua residência, no bairro de Ipanema, por três elementos não identificados. Miranda Sá ficou mais de três horas em poder dos seqüestradores, provavelmente integrantes de algum órgão de segurança, segundo revelou o Diário do Povo, de Campinas, em sua edição de 20 de agosto de 1976, sob o título ‘Jornalista da ABI seqüestrado’. Momentos depois da explosão da bomba, Miranda Sá tinha sido interpelado por um militar. 3.14. As lideranças parlamentares dos dois partidos políticos de então (Arena e MDB), ministros de Estado e governadores, associações profissionais de diferentes áreas, instituições culturais e civis (entre elas, órgãos maçônicos, sindicatos e de comunicação), a Presidência da República e personalidades de todos os setores da vida pública nacional manifestaram a sua enérgica condenação aos atentados de que foram alvos a ABI e a OAB.

4. UM CLAMOR DE INDIGNAÇÃO CONTRA A VIOLÊNCIA 4.1. De Norte a Sul do País e mesmo do exterior, ergueu-se em um único coro o clamor de indignação e repúdio à violência, expresso em uma mensagem enviada à Casa pela Biblioteca Maçônica da Paraíba: 4.2. “Quando mãos criminosas atacam o Sagrado Templo da Liberdade, ferindo a alma da Nação brasileira, ninguém pode calar diante de tamanha monstruosidade, especialmente aqueles que comungam nos sacrossantos ideais da grandeza e honra da Pátria, apanágio de todo jornalista brasileiro.” 4.3. Prossegue a mensagem: “A cicatriz dessa afronta ficará para sempre na lembrança dos que comungam dos ideais de liberdade e progresso, que ema-

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DOCUMENTO O RELATÓRIO DA BOMBA

UCHA ARATANGY/FOLHA IMAGEM

afirmavam “de agora em diante tomem nam dessa nobre Entidade. Porém, decuidado seus lacaios de Moscou”. Os pois disso, ficaremos mais fortes e coeagentes da AAB em um panfleto ameasos para combatermos o inimigo traiçoçaram: “não daremos trégua e já que as eiro. Porque só assim, à traição, é que se autoridades recolhem-se covardemenfere uma classe como a dos jornalistas”. te nós passaremos a agir ”. Ao final do 4.4. O Presidente em exercício da ABI, panfleto, a AAB reafirmava as ameaças Fernando Segismundo, denunciou a coacrescentando: “cuidado simpatizannexão entre os atentados ocorridos no tes, aproveitadores, políticos sem escrúRio e as declarações que vêm sendo feipulos e traidores de todas tas em Brasília pelo líder as matizes”. do Governo na Câmara, M EPISÓDIO 4.9. Como prova conDeputado José Bonifácio: COMO ESSE NÃO creta de que as ameaças 4.5. “Esse Deputado CONTA APENAS não intimidaram a enticertamente, está por trás dade, vale lembrar que desse atentado, principalPELOS DANOS inúmeros associados da mente pelo seu posicionaMATERIAIS MAS ABI responderam positimento de luta aberta e PELOS PROPÓSITOS vamente à idéia de mutisuspeita contra veículos de rão, doando somas em comunicação. Ele é o por- DE QUE SE REVESTE dinheiro para se refazer ta-voz desse ódio contra a PELO TIPO DE AÇÃO as instalações danificaimprensa. Tem de haver QUE SE DESEJA das do 7º andar. uma conexão entre ele as 4.10. A Diretoria da ABI pessoas que fazem isso.” ADOTAR E PELO havia impetrado ação no 4.6. O Conselheiro da INTERESSE GERAL Supremo Tribunal Federal ABI Odylo Costa Filho tamDE AMEAÇAR A para que o Estado brasileibém externou a sua revolro ressarcisse os prejuízos ta: “Um episódio como esse LIBERDADE DE materiais provocados pelo não conta apenas pelo daINFORMAÇÃO ato terrorista, mas nunca nos materiais, mas pelos DE PENSAMENTO foi atendida. propósitos de que se re4.11. Os extremistas veste, pelo tipo de ação E DE CRÍTICA autores do atentado, proque se deseja adotar e pelo vavelmente os mesmos que torturavam interesse geral de ameaçar a liberdade de e matavam covardemente opositores do informação, de pensamento e de crítica”. regime ditatorial, não foram localizados 4.7. Barbosa Lima Sobrinho, então e seguiram impunes ao longo de todos Presidente do Conselho Administratiestes 36 anos. vo, assinalou que, ferida, a ABI se sente 4.12. Outro exemplo de resistência orgulhosa da provação que sofreu: “O da Casa foi o fato de a Diretoria da ABI atentado é a confirmação de que esta ceder generosamente seus espaços para Casa permanece coerente e inflexível na encontros de familiares de vítimas da defesa da liberdade de imprensa, dos ditadura. E, como se não bastasse, a sede jornalistas e dos direitos humanos, sem da ABI foi palco ainda do ato de lançafugir um só instante aos ideais em tormento do Comitê Brasileiro pela Anisno dos quais foi fundada por Gustavo de tia, em 14 de fevereiro de 1978, com a Lacerda e seus companheiros”. presença do General Pery Constant 4.8. A Diretoria da ABI, seus ConseBevilacqua. Em todo o tempo que dulheiros e associados, após o atentado, não rou o regime de exceção, a ABI defendeu temeram as ameaças extremistas que

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Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com

Barbosa Lima Sobrinho: “O atentado é a confirmação de que esta Casa permanece coerente e inflexível na defesa da liberdade de imprensa, dos jornalistas e dos direitos humanos.”

uma anistia ampla, geral e irrestrita, buscando a reconciliação dos brasileiros.

5. O ESTADO NACIONAL TEM DE PEDIR DESCULPAS À ABI 5.1. Tendo em vista os fatos relatados, que, como já assinalado, tratam apenas de um resumo sintético de outras tantas ameaças do regime ditatorial contra a ABI, a Diretoria e o Conselho Deliberativo da Casa entendem que é chegada a hora de o Estado brasileiro pedir desculpas por todo o dano causado à entidade, por todo o constrangimento e perseguição, pelo único motivo de ter ela lutado e se posicionado contra as violências e torturas de toda espécie praticadas

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira

Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

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contra cidadãos brasileiros inocentes, que se opunham ao regime vigente de 1964 a março de 1985, e tinham o direito inalienável de expressar livremente suas preferências políticas e ideológicas. 5.2. A Diretoria da ABI e os Conselheiros acreditam que a Comissão da Verdade criada por lei terá a missão histórica de fazer justiça para com uma entidade que lutou com todas as suas forças para que o Brasil de hoje viva em plenitude democrática. 5.3. A Diretoria da ABI e seus Conselheiros entendem também que o Estado brasileiro deve rever medidas recentes adotadas contra a entidade, entre as quais as que cassaram seu status de entidade beneficente de assistência social, medida que lhe tem imposto pesados encargos. 5.4. Com isso, fiscais da União, agindo de forma que lembra os tempos de arbítrio, estiveram na sede da ABI examinando documentos e decretaram o pagamento de encargos e multas que se não forem anulados levarão à extinção de uma Casa que é um dos maiores orgulhos e glórias do povo brasileiro.

ERRATA • Na Edição 381, de agosto de 2012, matéria Emoção e lágrimas na Caravana da Anistia, página 27, segunda coluna, segunda linha, onde se lê Avenida Visconde de Pirajá, leiase Rua Visconde de Pirajá. • Na Edição 382, página 28, terceira coluna, tanto na sexta linha quanto no primeiro parágrafo, a palavra oarístico foi grafada com erro. • No título da matéria publicada na Edição 382, página 30, leia-se: As Duas Mortes de Marat, L’Ami du Peuple, e não Morat.

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • OUTUBRO DE NÃO 2012 ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008. O 383 JORNAL DA ABI


MEMÓRIA

Um diálogo Konder-Hebe Ao entrevistar o jornalista Rodolfo Konder, em 1989, Hebe Camargo expôs seu pensamento humanista.

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REPRODUÇÃO

Hebe – Houve um tempo, muito próximo, em que as pessoas tinham medo de tomar uma atitude, de gritar. Hoje você vê que a população está mais alerta, ela exige. Hoje eu vi uma manifestação num cemitério pedindo até pena de morte. Veja a que ponto nós chegamos. Você acha que neste caso, especialmente aqui no Brasil, as pessoas estão mais participantes, enfim, tomando Hebe – Nós vamos receber o jornalista e mais posição? escritor Rodolfo Konder, meu amigo queKonder – Eu diria que o número de violações rido. Seja bem-vindo. Dá um jeitinho de aos direitos humanos no mundo, eu tenho cerchegar com a câmera bem perto dos olhos teza, não aumentou. O que aumentou foi a dele para ver a cor: é turquesa. consciência de que é necessário denunciar esRodolfo Konder – Eu não sei, porque sou sas violações, então elas aparecem mais hoje. Os daltônico. governos se sentem mais pressionados. Então, num mundo cada vez mais integrado, através Hebe – Você não precisa ver, porque são da telecomunicação, da informação, os goverseus. A gente é que precisa. E enquanto vocês nos temem a opinião pública mundial e essa é ficam mostrando o Rodolfo, bem bonito, Konder foi recebido por Hebe Camargo em seu programa no fim da década de 1980. a nossa grande arma. Acredito que, nesse seneu vou dizer para vocês que ele é ex-diritido, a gente avançou muito, até porque, sob presgente sindical da Petrobrás, professor de posse do Raúl Alfonsín; no Chile, houve casos também são da opinião pública, os governos freqüentemente reJornalismo. Em 1975, quando era editor internacino Brasil. No Chile ainda existem 700 casos de pessocuam. A Anistia Internacional não costuma alardear os onal da revista Visão, foi preso no Doi-Codi. Fora as desaparecidas e até hoje as famílias dessas pessoas efeitos do seu trabalho, mas temos conseguido salvar da prisão, denunciou publicamente as torturas praprocuram obter informações sem saber o que acontemuitas vidas, pessoas nos procuram de todas as partes ticadas lá dentro, inclusive contra seu amigo Vladiceu com elas. E nós, do nosso grupo de Anistia, estamos do mundo, agradecendo a Anistia quando estiveram mir Herzog. Konder já esteve duas vezes exilado. tratando de um caso, de um homem de 60 anos, mexipresos, pois a pressão fez diferença para elas freqüenteQue vida hein, Konder? Por que aconteceu isso tudo cano, que desapareceu em 1977 em Guadalajara e que, mente entre a vida e a morte. Eu diria que o trabalho da com você? Você era subversivo? certamente, foi assassinado. Mas é um crime particuAnistia tem dado resultados como parte dessa consciKonder – Apesar desse perfil, a minha vida não tem larmente perverso porque é a morte sem cadáver e as ência crescente no mundo inteiro de que é preciso visido muito difícil, no sentido de que tem sido uma vida pessoas ficam sempre na expectativa de que um dia o giar os governos e pressioná-los quando eles não estão movimentada, que até me permitiu conhecer outros desaparecido possa ressurgir, e passam a acreditar em agindo corretamente. países, viver em outras culturas, e isso abre muito a caqualquer alternativa, porque se agarram nisso. Na esAgora, você falou num ponto polêmico, a respeito beça da gente e me ajudou a me tornar mais moderno. perança de que a pessoa ainda esteja viva. Mas, na maior do qual tenho certeza de que temos a mesma opinião, parte dos casos, essas pessoas já foram assassinadas e, que é a questão da pena de morte. Nós devemos deixar Hebe – E por que você foi tão perseguido? freqüentemente – como aconteceu no Chile – são claro que, no momento que abandonamos um direito Konder – Em razão das opiniões políticas externadas enterradas em minas abandonadas, leitos de rios, lugares universal, que é o direito à vida, nós estamos contribupacificamente. Eu nunca preguei a violência e nem reafastados, para que ninguém descubra. Só que sempre indo para que as bases morais da sociedade se corromcorri à violência. Isso, aliás, é uma das definições de “prialguém acaba descobrindo. pam. E, na verdade, nós não estamos fazendo nem jussioneiro de consciência”, que é um conceito com o qual tiça – e todos os estudos mostram isso com clareza –, a Anistia trabalha: a pessoa que é detida por defender paHebe – Você tem conseguido alguma coisa nesse nem contribuindo para reduzir a criminalidade e o númecificamente as suas convicções. Eu nunca recorri à viosentido? ro de crimes violentos. Nos Estados Unidos, por exemplo, lência, mas fui vítima da violência de um regime autoKonder – O movimento tem conseguido muitas coinos Estados da Geórgia e da Flórida, que são estados ameritário. Mas isso também ajudou a aprofundar a minha sas desde que surgiu em 1961. Um advogado inglês, um ricanos onde freqüentemente há execuções, nos períodos consciência de que acima das ideologias e das convicções homem muito influente, leu nos jornais em Londres logo subseqüentes às execuções aumenta o número de partidárias há princípios universais que nós precisamos a notícia de que dois estudantes tinham sido presos em crimes violentos. Por quê? Porque se o Estado, que é o símdefender contra qualquer governo, contra regimes auLisboa por terem feito um brinde à liberdade. E ele disbolo supremo do poder e até, freudianamente, do poder toritários sejam eles de direita ou de esquerda. se: “É preciso fazer alguma coisa”. Não apenas em depaterno, é capaz de usar essa violência suprema para sufesa desses estudantes, mas de todas as pessoas detidas postamente fazer justiça, no âmbito das suas vidas partiHebe – Eu disse isso à revista Visão. Eu até estava por governos ao redor do mundo que não sejam conheculares as pessoas se sentem justificadas às vezes a apelar lendo sua ficha e disse: “Olha que coincidência, ele cidas. Porque, se a pessoa é conhecida, é famosa, sempre para a violência para conseguir seus direitos, e não é por foi da Visão”. Hoje está saindo a minha entrevista há quem se mobilize em defesa dela. Mas se a pessoa é aí. Então, a pena de morte, sob todos os aspectos, não ajuna revista e eu falo exatamente isso: eu não supordesconhecida, é um prisioneiro anônimo, esse advogado da a reduzir a violência e a criminalidade. Ao contrário, to esse negócio de ditadura, seja de direita, seja de achou que era preciso criar um movimento que a deestimula a violência. esquerda. Ditadura é um horror. fendesse, que falasse por aqueles que não tinham voz. Konder – Devemos combatê-las em qualquer parte Então a Anistia surge como um esforço de mobilização Hebe – Nós temos aqui o livro do Rodolfo, Anistia Indo mundo. A Anistia é uma grande mobilização da da opinião pública para fazer pressão sobre governos. ternacional: Uma Porta Para o Futuro. E aqueles pôsteres? opinião pública mundial contra os governos que vioÉ importante esse detalhe porque às vezes as pessoas coKonder – É um pôster do Millôr Fernandes e um do lam os direitos das pessoas. bram de nós para que tomemos atitudes em relação a, Petcov, que fizeram recentemente para a Anistia. por exemplo, violações dos direitos humanos cometiHebe – E como é que age a Anistia Internacional em das por organizações clandestinas ou até por indivíduos. Hebe – Como é que pode acontecer uma coisa horrírelação ao desaparecimento de pessoas? Mas o campo de ação da Anistia envolve o trabalho de vel como a que aconteceu na Praça da Paz Celestial? Konder – Esse é um crime particularmente pervergovernos. Então, quando não é alguma coisa que envolE estão dizendo que os estudantes vão ser fuzilados. so e marca muito esta segunda metade do século 20, o va a ação de governos, a Anistia não atua. Porque ela se Konder – Como é uma ação de governo, a Anistia já desaparecimento de pessoas sob responsabilidade dos especializou em determinados objetivos, em determiestá em cima do governo chinês fazendo pressão, a Seção governos. Aqui na América Latina mesmo, nós temos nados campos. Brasileira também. países como a Argentina, até recentemente antes da rograma Hebe, 13 de junho de 1989. Rodolfo Konder, na época Presidente da Anistia Internacional, Seção do Brasil, é recebido por Hebe Camargo. Ele é o primeiro convidado a ser entrevistado pela dama da tv brasileira naquele dia. A seguir, a reprodução do que eles conversaram:

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ACONTECEU NA ABI

A FICHA LIMPA BARROU 2.200 CANDIDATOS NO RJ A Justiça Eleitoral impugna postulantes de cargos públicos que não têm bons antecedentes.

Com base na Lei da Ficha Limpa, o Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro promoveu a impugnação de nada menos de 2.200 candidaturas às eleições de outubro. Jamais houve nas eleições no Estado um número tão elevado de impugnações. A informação foi prestada pelo Procurador-Chefe do Ministério Público Eleitoral junto ao TRE-RJ, Maurício Ribeiro, em resposta a uma indagação que lhe foi feita no Seminário Votar Legal, que a ABI promoveu no dia 21 de setembro, das 9h às 20h, com a participação de jornalistas, cientistas políticos, professores e pesquisadores. Organizado pela Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Casa, o seminário teve por objetivo divulgar informações sobre o processo eleitoral então em curso e a influência que nele teria, assim como nas eleições, a Lei da Ficha Limpa, com a qual o Congresso Nacional, acolheu a proposta popular de moralização do processo eleitoral. A abertura do evento foi feita pelo Presidente da ABI, Maurício Azêdo, que destacou a relevância do debate em torno do processo eleitoral e de ações que contribuem para o voto consciente. Mudar, só com a consciência A primeira plenária reuniu Margarida Pressburger, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção do Estado do Rio de Janeiro-OAB e integrante do Alto Comissariado de Direitos Humanos da Onu; o Procurador-Chefe Maurício Ribeiro e, como mediador, o jornalista Arcírio Gouvêa Neto, Secretário da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI. Margarida Pressburger ressaltou os avanços promovidos pela Lei da Ficha Limpa, que “ representa um passo importante, mas não vai modificar o eleitor, pois a mudança virá através da conscientização”. “Esta lei – disse – tem um grande apelo, porque veio do povo e foi criada após um abaixo-assinado com mais de 1 milhão e 500 mil assinaturas, por meio do qual, cansados de roubalheira, mensalões e do que vemos todos os dias na televisão, clamamos por limpeza e transparência nas eleições, o que denota a conscientização para a necessidade de sermos governados por pessoas íntegras em todos os escalões.” Sobre a aplicação da lei, Margarida comentou o caso específico do Estado do Rio de Janeiro: “O Tribunal Regional Eleitoral e o Tribunal Superior Eleitoral têm aplicado esta lei. Muitos candidatos foram cassados, impedidos. Por outro lado, temos tido algumas surpresas, como artistas e outras figuras públicas que se candidataram e estão cumprindo o seu papel na política. São políticos ficha limpa trabalhando para o social, e não para obter vantagens pessoais. O eleitorado deve prestar atenção nesses detalhes”. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, ela destacou a lisura na propaganda eleitoral como elo fundamental para a formação do voto consciente: “Muitas vezes a propaganda eleitoral pode parecer uma perda de tempo e de dinheiro, mas ela nos dá um sentido. Preocupo-me com os feudos e o coronelismo. Deveria haver um acréscimo à Lei da Ficha Lim-

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pa para proibir que o filho ou o irmão de um político se candidate. Quando o político vai a público pedir voto para o parente, esta situação me lembra o tempo das famílias dominantes. Se essa realidade está crescendo com força no Município do Rio de Janeiro, imaginem no interior do País, onde as famílias ainda reinam e mandam”. Margarida Pressburger considera que a propaganda eleitoral precisa ser revista: “Assim como os políticos são proibidos de contratar parentes, deveriam ser proibidos de fazer propaganda eleitoral indicando filho, irmão, mãe. O candidato deve ter a sua experiência própria”. Ainda com relação ao processo eleitoral no Rio de Janeiro, Margarida Pressburger citou as milícias como entrave ao posicionamento crítico do eleitor: “Os milicianos dominam regiões inteiras nesta cidade. Vereadores são cassados, mas elegem parentes ou indicam seus sucessores. Várias comunidades elegem certos candidatos locais, até mesmo por medo, enquanto outros candidatos são proibidos de fazer campanha nessas áreas. Esses fatos nem sempre são denunciados. O importante é que a conscientização do eleitor comece na infância, ainda na escola, onde o cidadão deve aprender os valores dos direitos humanos, incluindo o voto consciente em benefício de toda a sociedade”. No começo, um vazio O Procurador-Chefe Maurício Ribeiro detalhou aspectos da criação da Lei da Ficha Limpa: “A origem desta lei se encontra na Constituição Federal, no artigo 18, parágrafo 9º, que dispôs sobre a necessidade de uma lei complementar que estabelecesse causas de inelegibilidade de postulantes a cargos eletivos. Logo em seguida, o Congresso Nacional promulgou uma Lei de Inelegibilidade, mas de forma muito tímida, englobando poucas hipóteses de improbidade cometidas por políticos. As sanções eram vazias”. “Após alguns anos do advento da Constituição – historiou o Procudador-Chefe –, a previsão de uma lei complementar para tratar das inelegibilidades foi esmiuçada por uma emenda de revisão de 1994, que passou a trazer no texto a necessidade de estabelecer causas de inelegibilidade que atentassem para a vida pregressa do postulante a um cargo eletivo, visando a proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. Após 14 anos dessa emenda constitucional, surgiu uma mobilização popular através da sociedade civil organizada para a coleta de votos de 1% do eleitorado, com o objetivo de apresentar em 2008 um projeto de lei para dar concretude a esse mandamento da Constituição. Em 2010, por força da iniciativa popular, conquistamos a famosa Lei da Ficha Limpa.” Em relação aos projetos de lei de iniciativa popular, relatou Ribeiro que duas das quatro primeiras leis trazidas à sociedade tiveram cunho eleitoral. “Uma delas de 1999, previu a sanção da cassação do mandato de políticos condenados por compra de votos, o que era antes um ilícito eleitoral vazio de sentido, porque não tirava o mandato do político. A outra lei é do ano de 2010, a Lei da Ficha Limpa.” Informou Ribeiro que há cerca de um ano está sendo organizado um grande movimento popular

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P OR C LÁUDIA S OUZA

Modesto: “Quando estive no Congresso só encontrei lá homens brancos e ricos. Só havia um negro típico de São Paulo”.

na internet (no site reformapolitica.org.br), nas redes sociais, de coleta de assinaturas para uma ampla reforma política no Brasil que englobe mudanças a respeito do financiamento de campanhas eleitorais. Outro objetivo, disse, é garantir por meio de ações afirmativas a participação mais incisiva de minorias sociais, como homoafetivos, afrodescendentes, mulheres: “Através dessas assinaturas eletrônicas podemos dar nossa contribuição para uma sociedade mais avançada”. O Procurador-Chefe assinalou pontos positivos da Lei da Ficha Limpa, entre os quais as novas hipóteses de crimes: “A Lei da Ficha Limpa trouxe importantes conquistas, como o prazo de oito anos para inelegibilidade. Na lei anterior eram apenas três anos. Também tivemos nesta lei a dispensa de uma decisão com trânsito em julgado para que se pudesse aplicar a inelegibilidade ao político. Num país como o Brasil, há processos quase intermináveis”. De acordo com o representante do Ministério Público, o próprio Supremo Tribunal Federal aplicava aos casos eleitorais a presunção da inocência do Direito Penal. Ele disse que isso não é cabível para políticos que estão sendo acusados, processados por ilícitos incompatíveis com a própria função que ele exerce: “Agora nós temos a necessidade do devido processo legal dentro de um prazo razoável. Basta haver uma condenação por um órgão colegiado. Várias novas hipóteses de crimes comuns foram trazidas com a Lei, como corrupção eleitoral e captação ilícita de sufrágio, práticas antigas que agora passam a merecer sanção por oito anos. As pessoas condenadas nos seus conselhos de classe também ficam inelegíveis por oito anos”. A polêmica em torno da lei Sobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa pelos Tribunais, Maurício Ribeiro grifou que a Justiça Eleitoral começou a indeferir registros de candidaturas com base em seu texto. Os políticos começaram a recorrer e quando foi chamado a se pronunciar acerca disso o Supremo definiu, após hesitação inicial, que a Lei da Ficha Limpa só valeria um ano após o seu

advento. Observou o Procurador que esse tipo de decisão surgiu em clima de polêmica: “A Nação ficou perplexa, diante da proximidade das eleições. Havia candidatos fichas-sujas concorrendo. No início de 2012, o STF decidiu pela plena eficácia da Lei, inclusive determinando a sua aplicação para as eleições deste ano para casos já julgados antes do advento da Lei, em 2010. Esta situação está sendo levada com muita intensidade aos Tribunais Regionais Eleitorais neste momento. O trabalho da imprensa nesse aspecto tem sido muito importante.” Em resposta a uma pergunta acerca de dados de impugnação de candidaturas nas eleições municipais no Rio de Janeiro, Maurício Ribeiro comentou os procedimentos da Justiça Eleitoral: “Com o objetivo de dar transparência e visibilidade à questão, a Procuradoria Regional Eleitoral tomou a iniciativa de catalogar todas as impugnações decididas pelo TRE do Rio de Janeiro. Foram 2.200 impugnações no Rio de Janeiro”. Ao comentar as novas hipóteses de inelegibilidades, Ribeiro citou os crimes contra o meio ambiente, abuso de autoridade, crimes contra a vida, racismo, tortura, terrorismo, captação ilícita de sufrágio, captação ou gastos ilícitos de campanha, entre outros. Em relação ao financiamento privado de campanha, o procurador defendeu a proibição desta prática: “Proibir este tipo de doação seria bom, já que sabemos da conduta do caixa 2, como no exemplo do escândalo do mensalão, com a banalização do caixa 2, além da situação da corrupção. Se caminhássemos para uma situação de proibição de verba privada seria muito mais transparente”. Brasil atrasado O tema ‘Financiamento de campanha’ continuou a ser debatido na segunda rodada de debates, com a participação do Deputado Paulo Ramos (PDT-RJ); do economista Paulo Passarinho; dos jornalistas Mário Augusto Jacobskind, Presidente da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI; e Ernesto Müzell Vianna, Diretor do Sindicato dos Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro. Paulo Ramos falou sobre a situação do Brasil em relação às regras de financiamento público e privado: “No campo eleitoral integro aquele grupo que dificilmente encontra alguém disposto a financiar a campanha. Dificilmente vamos arraigar as simpatias daqueles que têm dinheiro e dos que pretendem influir e se beneficiar com o resultado da eleição. Na democracia os partidos políticos são os instrumentos que definem a ocupação do poder. Os eleitos se legitimam através do voto, dos meios para a obtenção do voto e na forma de legislar”. Paulo Ramos citou uma matéria publicada recentemente no jornal O Globo, a qual informava que o custo das campanhas eleitorais já ultrapassou R$ 3 bilhões. Este fato, disse, demonstra à população que a eleição é muito cara e comprometida: “Os financiadores são aqueles que querem interferir nos gastos públicos em benefício pessoal. São as empreiteiras, os bancos, os fundos de pensão, as prestadoras de serviço, os planos de saúde. O financiamento é privado, mas o dinheiro é público. Ele mascara o desvio de recursos públicos. O Brasil é um país economicamente pujante, mas socialmente atrasado”. O Deputado comentou que o Brasil é um dos raros países que têm Justiça Eleitoral, ao contrário do que ocorre nas nações desenvolvidas: “É preciso entender o significado do financiamento público, que possibilitará um controle maior e vai oferecer o mínimo de igualdade de condições, já que nós temos campanhas ostensivas, massacrantes”.


Mais debates Após o intervalo para almoço, teve início a terceira plenária, com o tema O Papel da Mídia e da Pesquisa, cujos debatedores foram César Romero Jacob, cientista político e professor da Puc-RJ, e Bruno Cruz, Diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro. A mediação foi feita pelo jornalista Vitor Iório, professor da UFRJ e membro da Conselho Deliberativo da ABI. O tema do debate da penúltima mesa foi Voto Nulo e Descrédito do Eleitor, que reuniu Modesto da Silveira, jornalista, advogado e membro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República; Gisálio Cerqueira, cientista político e professor da Uff; André Fernandes, Diretor da Agência de Notícias das Favelas; e o mediador Alcyr Cavalcanti, repórter-fotográfico, Conselheiro da ABI e integrante da Comissão. A última mesa do encontro abordou o tema A Reforma Eleitoral e o Voto Eletrônico”, com a participação do jornalista Osvaldo Maneschy; Jesus Chediak, jornalista, teatrólogo e Diretor de Cultura e Lazer da ABI. A mediação foi de Daniel Mazola, 2º Secretário da Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI.

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O gerador de corrupção Em prosseguimento ao debate, Ernesto Müzell Vianna passou a palavra ao economista Paulo Passarinho, que se mostrou pessimista em relação ao atual cenário político: “O esquema de financiamento de campanha se dá fundamentalmente através de mecanismos privados e esse padrão talvez seja o principal fator de corrupção dentro da máquina do Estado. Ele cria um vínculo entre o financiador e o beneficiado. As nossas eleições situam-se entre as mais caras do mundo”. Passarinho ressaltou que do ponto de vista dos financiadores existiria uma concentração de poucos agentes em relação aos recursos transferidos para os partidos políticos ou para candidatos. Ele explicou que mais de 90% dos recursos recolhidos pelos candidatos têm origem em setores muito específicos: bancos, construtoras, empresas das áreas de mineração, siderurgia, papel celulose e agricultura, planos de saúde: “Curiosamente, são setores que para os seus negócios a relação conquistada é fundamental. Os mandatos vitoriosos por este tipo de financiamento acabam se vinculando a esses financiadores”, disse. Vianna destacou, também, que o direito de votar e de ser votado se revela dependente do poder econômico: “Este tipo de deformação nos leva a pensar em como mudar o nosso processo eleitoral. Sou pessimista neste sentido. O financiamento de campanha está vinculado às mudanças na reforma política, tributária, etc. Elas apenas seriam viáveis no âmbito de uma reforma global decorrente de um processo de ruptura com o status quo, que hoje não interessa aos políticos dominantes. Não existem mecanismos por parte da cidadania para que enfrentemos o problema. A idéia de se alterar o padrão atual de financiamento deve ser vinculada ao capítulo mais amplo da reforma política”. Na seqüência, Mário Augusto Jacobskind também chamou a atenção para o jogo eleitoral, no qual o poder econômico elege os seus candidatos. Ele considera que está havendo uma despolitização da política que favorece os financiamentos de campanhas. O capital financeiro dita as regras do jogo e prioriza aqueles que vão defender os seus interesses: “Vivemos em um País de pouca memória, no qual os financiadores de ontem são os mesmos de hoje. Para mudar isso precisamos democratizar os meios de comunicação e mobilizar os setores sociais em pé de igualdade. Sem isso ficaremos eternamente criticando este modelo que nos foi imposto pelas elites”.

A intervenção da mídia no processo eleitoral P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES “A pesquisa pode contribuir muito para o processo de conscientização do eleitor. Quanto aos veículos de comunicação social, infelizmente não cumprem o papel que deveriam cumprir de ampliar o debate político” – afirmou o Diretor da Agência de Notícias das Favelas, André Fernandes. “Já a reforma do sistema eleitoral deveria começar por mudanças no próprio Tribunal Superior Eleitoral”, complementa. Ao abrir a plenária O Papel da Mídia e da Pesquisa, o cientista político César Romero Jacob, professor da Puc-RJ, fez uma abordagem sobre a série histórica do processo eleitoral no Brasil, comentando a recorrência de fenômenos eleitorais em campanhas para presidente da República e governador no Rio e em São Paulo, a partir dos anos 1980. “A série histórica – disse – é um tipo de pesquisa que faço há muitos anos, que visa a ajudar a entender a recorrência dos fenômenos. Claro que a política é dinâmica e pode mudar, a partir de alianças, dinheiro, uma série de fatores, mas há certa ocorrência de tendências políticas em determinados territórios. Por exemplo, a cidade do Rio de Janeiro não é una, aqui existem várias cidades dentro de uma só. E a nossa pesquisa é uma contribuição da Puc para ajudar as pessoas a terem um voto mais consciente pela compreensão das tendências históricas.” Em relação à função da pesquisa num processo eleitoral, Romero disse que esta pode contribuir muito para a conscientização do eleitor: “A mais conhecida é a de opinião pública, que acompanha a tendência do eleitorado. Como se utilizam em sua metodologia de dados sobre partidos e candidatos, essas pesquisas ajudam o eleitor a entender o que está acontecendo”, disse Romero. Respondendo a uma pergunta sobre se seria possível apontar que candidato do Rio viria ganhar a eleição para prefeito, Romero explicou que não poderia antecipar uma previsão, já que o estudo que ele e o seu grupo desenvolvem na Universidade não é uma pesquisa de opinião: “Nós não trabalhamos com pesquisa de opinião, o nosso trabalho é feito com base nos dados oficiais do TRE ou do TSE. O que nós tentamos fazer, após seis eleições consecutivas para presidente e sete para prefeito, é buscar entender a recorrência do fenômeno. Previsões para as próximas eleições eu não tenho, poderia apenas levantar a hipótese. Eduardo Paes tem grande chance de ganhar no primeiro turno, mas se houver segundo turno ele pode perder”. As máquinas partidárias Segundo Romero, freqüentemente os governadores não conseguem eleger seus candidatos, sobretudo quando há segundo turno, por uma razão muito simples: “Não é o eleitor que quer o equilíbrio, ele não tem essa consciência, mas as máquinas partidárias, que preferem que o grupo do governador não seja hegemônico. Para justificar a sua tese, Romero usou como exemplo os casos de Tasso Jereissati e Ciro Gomes, que dominam a política estadual do Ceará há muitos anos e nunca conseguiram eleger o prefeito de Fortaleza. Isso acontece, disse, porque o

Deputado Paulo Ramos, economista Paulo Passarinho e jornalistas Ernesto Vianna e Mário Augusto Jakobskind: O poder econômico tem forte influência no jogo eleitoral.

conjunto de forças locais da cidade não deseja que o grupo que se mantém na liderança tenha poderes demais: “A mesma coisa acontecia na Bahia, onde Antônio Carlos Magalhães foi o dono do Estado durante anos e não conseguia eleger o prefeito de Salvador. Como agora acontece com o PT gaúcho, que dominou a Prefeitura de Porto Alegre por muito tempo, e o seu candidato está em terceiro lugar. Isso se dá porque as outras forças políticas não querem que o mesmo grupo domine as duas instâncias”, argumentou. Romero mencionou também o caso de Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas, em São Paulo: “Fernando Henrique em 1996 estava no auge do seu poder, tinha o Plano Real e o primeiro orçamento da República. Mário Covas, um nome respeitadíssimo, tinha o segundo orçamento. No entanto, Serra tem 15% dos votos. O que eu estou tentando explicar é que há uma recorrência de fenômenos”. Explicou Romero que quando há segundo turno a lógica tem sido sempre o conjunto de forças políticas disponibilizar suas máquinas para trabalhar contra o candidato do governador: “Sistematicamente ocorre essa tendência, em que as forças políticas locais, que não integram a base de sustentação do governador, ou às vezes até fogo-amigo, agirem para que o grupo do governador não seja hegemônico. As máquinas atuam porque elas agem sobre o território”. Ele chamou a atenção para um dado importante sobre a conjuntura política do Rio de Janeiro atualmente: “Depois de anos de o prefeito brigando com o governador, e de brigas do governador com o presidente da República, hoje não é mais assim. A série histórica mostra que desde que o Saturnino rompeu com o Brizola, em 1987, houve no território fluminense uma sucessão de prefeitos brigando com os governadores, e uma seqüência de brigas de governadores com os presidentes da República. Mas a minha impressão é que em um dado momento um conjunto de forças na cidade chegou à conclusão de que era preciso parar de brigar”. Na opinião do professor da Puc, existe hoje no Rio um acordo tácito: o PT nacional reconhece a hegemonia do grupo do Sérgio Cabral, o grupo do governador reconhece a liderança do PT nacional. E isso de algum modo mudou a política no Estado: “Não julgo se isso é bom ou ruim. Pode estar acontecendo também um esgotamento do material humano. O Sérgio Cabral elegeu-se governador em 2006 e 2010, e o Eduardo Paes foi eleito prefeito em 2008, com chances de se reeleger em 2012. Isso mostra que a geração de políticos que dominou a cena do Rio de Janeiro de 1983 a 2008, como Marcelo Alencar, César Maia e Garotinho, pode ter passado, e a passagem de grupos políticos é normal”, afirmou Romero. O papel da mídia Bruno Cruz, Diretor do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, disse que

para entender o papel da mídia no processo eleitoral é preciso observar o comportamento dos grandes meios de comunicação de olho no financiamento da publicidade institucional: “A mídia faz um balanço econômico da fonte de recursos. De onde estiver vindo mais dinheiro é o segmento que ela vai apoiar. Infelizmente os meios de comunicação não cumprem o papel que deveriam cumprir, que é ampliar o debate político. Não é isso que acontece”, disse. Bruno Cruz acha que as pesquisas de opinião são fundamentais no sentido de que podem orientar os candidatos na condução de suas campanhas: “Mas eu considero muito complicada a divulgação das pesquisas nos jornais para a grande população, porque induz o voto. E isso é importante, porque se trata de opinião política. Já em relação à mídia, os veículos impressos e eletrônicos não fazem campanhas diretas para candidatos, mas organizam uma forma de pensamento. As mídias sociais cumprem um bom papel, mas eu considero que o seu alcance ainda é restrito”. César Romero disse que, guardadas as devidas proporções, é preciso desmistificar a influência dos veículos de comunicação nas eleições: “A mídia pode ‘desfazer’ presidente (referindose ao impeachment de Collor), mas ela não elege presidente. Há muitos outros grupos que trabalham em rede. As redes partidárias existem há muito tempo. Numa eleição para presidente vamos ver na série histórica que existe um Brasil dos grotões dominado por oligarquias, onde programas como Bolsa-Escola e Bolsa-Família romperam com a hegemonia das oligarquias em seus próprios redutos. Isto porque são regiões onde os grandes veículos como O Globo, Veja e CartaCapital não circulam”. Segundo Romero, a mídia influencia a classe média escolarizada: “Por isso o candidato para se eleger precisa ter um discurso convincente, para conquistar a classe média independente, que tem renda própria e não depende de favores das oligarquias. Mas eu diria que no Rio a mídia conservadora da cidade, hegemônica, não consegue se impor em alguns lugares de classe média. Ela convence o eleitor que já está convencido. Quando se olha o Brasil como um todo, é uma falácia dizer que foi a mídia que elegeu Collor. Ela o derrubou, pois tem poder para derrubar, influenciar o Congresso e até o Supremo. Mas a mídia não tem o poder de eleger, por causa da diversidade do País”. Disse o cientista político que quem primeiro percebeu esse processo foi Marcos Coimbra na campanha do Collor, em 1989, quando montou um discurso para convencer a classe média escolarizada, fez alianças com políticos populistas e pastores pentecostais nas periferias e bairros populares das capitais e nos grotões com a rede das oligarquias: “Cinco anos depois, Fernando Henrique Cardoso fez a mesma coisa e ganhou a eleição. A história se repetiu em 1998.

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Não ao voto nulo Na abertura do painel sobre voto nulo e o descrédito do eleitor com a política, Alcyr Cavacanti lembrou que o Brasil viveu sob duas grandes ditaduras, a de Vargas e a militar, que, na opinião dele, trouxeram ao processo democrático vícios que o afetam até hoje. “O voto democrático é uma arte do cidadão. As mudanças de estrutura só são feitas de duas maneiras: ou pela força ou pelo voto. A questão do voto nulo ou em branco é gerada pelo descrédito por parte da sociedade devido aos governantes não terem feito nada em relação aos avanços esperados. Por outro lado, a classe dominante não tem interesse pela mudança; pelo contrário, deseja que a situação piore, enquanto a sociedade de maneira geral está interessada em mudança”, afirmou. Primeiro palestrante dessa plenária, André Fernandes, Diretor da Agência de Notícias das Favelas, elogiou a ABI pela realização de um debate sobre eleições, e conclamou a direção da entidade a incentivar outros grupos a promover o mesmo tipo de discussão. Fernandes disse que não aprova o voto nulo e que a população não deve abrirmãododireitodeescolherseusrepresentantes legislativos, mas alerta para a necessidade de o eleitor agir com consciência na hora de votar, para não correr o risco de eleger pessoas que não estejam comprometidas com o bem-estar coletivo. O Diretor da Agência de Notícias das Favelas disse que até o dia das eleições deveriam acontecer outros debates como o que foi organizado pela ABI, para ajudar o eleitor a se conscientizar e votar em candidatos que estejam realmente dispostos a se doar para contribuir para a melhoria da qualidade de vida do cidadão: “A nossa escolha passa por isso, não votar nulo e caminhar no sentido de eleger pessoas que tenham boas intenções, que não estejam buscando benefício próprio, porque a vida pública de um político não pode servir para aqueles que só pensam em se dar bem, amealhar fortunas. A vida pública tem que ser em prol do povo. E a população tem que ter o poder de escolher, votar e eleger, mas também de retirar da vida pública o mau político”. Fernandes disse que o clientelismo e a compra de voto são fatores que prejudicam uma eleição limpa e democrática. Contou que uma vez pôde observar, com clareza, o quanto o poder político é baseado na questão financeira: “Vi uma pessoa ser eleita sem sair de casa, sem que os eleitores conhecessem o candidato. Esse indivíduo elegeu-se com a doação de cestas-básicas e a instalação de um posto de saúde numa comunidade. O tal candidato só foi eleito na vaga de um bom político “porque os eleitores que têm mais consciência não foram às urnas, votaram em branco ou nulo e deixaram a eleição nas mãos daqueles que venderam os seus votos”. Disse Fernandes ter informações de casos em que os eleitores já estão com seus votos supostamente comprados. Por isso ressaltou a importância do debate sobre a disputa de voto em áreas

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E o Lula, depois de três derrotas sucessivas seguiu o mesmo caminho e só então foi vencedor”. No caso da mídia eletrônica, Romero acha que a cobertura da televisão está se tornando mais equilibrada por causa da concorrência. Refletindo sobre as propostas que estavam sendo debatidas no Seminário, Vítor Iório disse que não poderia deixar escapar a oportunidade de dizer que “a ABI continua sendo uma voz política forte em nosso País”: “Nada mais interessante do que neste momento estarmos começando a discutir aqui na ABI a questão das eleições no Brasil. E com certeza isso vai repercutir em muito, seja por meio do Jornal da ABI ou da TV Brasil, que esteve cobrindo o debate, logicamente porque são os canais mais off mídia possível, do ponto de vista político”, afirmou Iório.

André Fernandes (à esquerda) considera que o eleitor deveria poder tirar da vida pública o mau político. César Romero (à direita) pesquisa desde 1980 o comportamento do eleitor no Estado do Rio e São Paulo.

carentes. Para justificar o seu ponto de vista, contou um caso que presenciou no Morro Santa Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio: “Convidamos para um debate candidatos que já freqüentavam o Morro. O nosso interesse era conscientizar os políticos de que eles deveriam apresentar suas propostas. Em dado momento, tive que retrucar uma liderança, quando disse que a necessidade imediata do grupo era ganhar um jogo de camisas para o time de futebol. Eu fiz ver a essa pessoa que ela estava vendendo o seu voto em troca de uma benesse antes mesmo da eleição”. Ao final da sua intervenção, André Fernandes disse que a Agência de Notícias das Favelas se compromete a ser parceira da ABI no lançamento, em eleições futuras, de uma campanha de conscientização do eleitorado sobre a importância do voto: “Trata-se de uma iniciativa para que o cidadão vote consciente, principalmente nos bolsões de miséria das favelas do Rio de Janeiro”. A descrença do eleitor Também cientista político e professor da Universidade Federal Fluminense, Gisálio Cerqueira, disse que não compartilha da idéia de descrédito da população para com a política: “O que vejo são as pessoas fazendo esforços em meio a muitas dificuldades para se informarem e para se desalienarem. É difícil, não é fácil. Não vejo nem descrédito especial ou novidadeiro, mas o costumeiro. E também não vejo uma campanha pelo voto nulo. Observo o que é de costume nas eleições municipais, que é o voto pragmático. Um voto que é diferente daquele que ocorre nas eleições para Presidente da República e para Governador”. Gisálio enxerga no voto pragmático um comportamento compreensível do eleitor. E chamou atenção para “a penetração do voto dos Municípios”, que no seu entendimento parece deixar a descoberto as capitais: “Na mesa anterior levantou-se essa questão, que eu achei bem interessante, sobre o voto nas capitais como contrapeso do voto para Presidente da República e Governador. Eu acrescentaria que o voto nas capitais é também um contrapeso para a concentração do voto no interior, ou seja, nos municípios. Outra coisa que observo é que o voto pragmático talvez demonstre o desgaste de quem está no poder. Sugiro que tenhamos mais atenção com o que está ocorrendo nas capitais em torno da expressão pragmatismo”, argumentou. Recém-empossado como membro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, o jornalista e advogado Modesto da Silveira disse que o debate realizado na ABI tinha significado histórico: “Este evento é histórico porque reflete a nossa maneira de conquistar espaços e direitos humanos em um mundo que, sobretudo, viola o direito humano fundamental, a vida, a segurança, a liberdade, a igualdade, os meios de sobrevivência e tudo mais que sabemos do enor-

me elenco de direitos humanos pelos quais tantos companheiros da ABI vêm lutando”, disse. Modesto recorreu a uma observação de André Fernandes sobre o processo eleitoral norte-americano, para falar da sua visão sobre o sistema de voto naquele país, comparado com o que ocorre no Brasil: “Falamos hoje de eleição e voto. Foi lembrado aqui que o processo eleitoral norte-americano é opcional, dando a entender que a opção de votar seria mais democrática, porque respeita um direito humano. Mas nos Estados Unidos o patrão sabe quem vota em quem e dá trabalho ao empregado no dia da eleição, para ele não ir votar se o voto for para um candidato que o empregador não apóia. No Brasil o voto é obrigatório, para não permitir que o patrão impeça o eleitor de exercer o seu direito, o que é muito mais democrático”, afirmou. Em relação ao voto nulo, Modesto expressou opinião contrária à do cientista político Gisálio Cerqueira, que disse que o voto nulo não chega a ser um grande problema no quadro eleitoral brasileiro: “Nós temos gradações de voto. O voto nulo, em branco e até a ausência de voto, que é quando o eleitor deixa de comparecer à seção eleitoral com uma justificativa qualquer. Quando somamos essas três situações verificamos que há um peso. Nunca vi uma estatística nesse sentido, mas presumo que o impacto não seja pequeno, quando se soma aos votos nulos e brancos a ausência do voto. Ou seja, o percentual daqueles que nem tomam conhecimento da eleição”, salientou. Na opinião de Modesto, a descrença da população para com a política é resultado da composição do Congresso Nacional, cujo quadro não reflete a realidade da maioria da população brasileira: “Quando eu estive lá como Deputado, só encontrei homens brancos e ricos, só havia um negro típico de São Paulo entre mais de 500 parlamentares. E esse negro votava contra o interesse dele, porque tinha sido eleito pela Arena. Agora entre os machos brancos e ricos figuravam banqueiros ou seus lacaios, latifundiários ou seus representantes, industriais e grandes comerciantes ou seus apaniguados e parentes que cumprem fielmente a ordem empresarial”. Modesto revelou que até hoje lhe perguntam se houve mudança nesse quadro: “Mudar não mudou, mas ficou menos ruim. Mas se misturarmos as fotos dos Parlamentos brasileiro, norte-americano e francês, ninguém saberá qual é o Congresso do Brasil, da França e dos Estados Unidos. Isto porque são métodos que dão no mesmo e não foram alterados da eleição grega na Antiguidade até agora. A eleição no Brasil na época do Império era mais ou menos parecida com a dos gregos: somente os ricos tinham direito de votar, os chamados homens bons, brancos e que tinham muita grana”, lembrou . Ele disse que é preciso lutar pelo aperfeiçoamento que possibilite a igualdade em um processo elei-

toral. Segundo ele, se essa mudança não ocorrer não haverá evolução: “Tem que haver uma abertura para a evolução. E não se pode colocar o operário ou o favelado em disputa com o banqueiro, industrial ou grande comerciante porque ele não vai ganhar. Quem tem mais dinheiro ganha a eleição e a realidade dos Congressos capitalistas confirma essa tese”. Modesto considera-se otimista, mas sem a ilusão de que haja avanços rápidos. “É possível evoluirmos e acabarmos com o descrédito que leva à prática do voto nulo no Brasil”, disse.

Reforma e voto eletrônico Em seus comentários sobre reforma eleitoral e eficiência do voto eletrônico, o jornalista Osvaldo Maneschy levantou um ponto polêmico ao afirmar que um dos aspectos mais importantes da reforma política no Brasil passa pela discussão do papel da Justiça Eleitoral: “A reforma eleitoral deveria começar pela própria Justiça Eleitoral”, disse Maneschy, que lembrou que ela foi criada em 1932 pelo então Presidente Getúlio Vargas para impedir o voto cartorial e colocar o processo eleitoral brasileiro num estágio mais profissional e acabar com os vícios da República Velha, período em que, segundo ele, a fraude era uma prática constante nas eleições do País: “Mas a Justiça Eleitoral perdeu um pouco o seu rumo. Tanto é que na primeira eleição pósditadura militar, em 1982, no pleito para governador, nós tivemos uma tentativa de fraude, enquanto o antigo sistema funcionou durante décadas sem problemas. Não se falava de fraude. Mas no primeiro pleito pós-regime militar tivemos um caso de fraude por meio do uso de computadores”, afirmou Maneschy, referindose ao caso Proconsult na eleição para governador do Rio, em 1982. Jesus Chediak, Diretor de Cultura e Lazer da ABI, fez uma abordagem que ele mesmo classificou como filosófica sobre a reforma eleitoral e o voto eletrônico: “Em uma democracia formal, quem garante o poder não são as armas, é o voto do cidadão. Então se o poder emana do cidadão ele é o agente do poder. Eu quero saber para onde vai o meu voto e a urna eletrônica me impede. O Brizola foi ‘assassinado’ pela urna eletrônica, quando se candidatou a Prefeito do Rio, em 2000, e para Senador, em 2002”. Chediak levantou um ponto polêmico: afirmou que hoje no Brasil vive-se um processo muito perigoso, porque o País “não chegou a uma democracia”: “O que ocorre hoje no Brasil com toda clareza é o seguinte: a eleição foi totalmente entregue ao poder econômico. O candidato é um produto; a eleição, um mercado. Tiramos o Governo das mãos dos militares, para devolver para a população. Mas não fizemos isso, porque perdemos para o poder econômico. Acho que, atualmente, nós estamos vivendo o momento mais difícil da nossa História”, disse. Maneschy ressaltou que é preciso questionar a posição do Tribunal Superior Eleitoral de não permitir auditoria do resultado das eleições: “A Justiça Eleitoral não permite que nós cidadãos passemos a ter controle sobre esse processo. O Jesus filosoficamente matou essa questão: o que antes era feito sob o controle das armas, hoje é fundamentalmente realizado pela urna eletrônica e pelos institutos de pesquisa que vendem os dados. A mídia prepara a cabeça das pessoas e a urna eletrônica fabrica o resultado!” Ele chamou a atenção para os riscos de fraude eleitoral que podem ocorrer nas 450 mil seções eleitorais distribuídas por todo o País: “A fraude


A galinha dos ovos de ouro Maneschy comparou a urna eletrônica usada no Brasil à galinha dos ovos de ouro: seu uso fraudulento pode permitir perfeitamente uma eleição para Vereador, Deputado estadual e federal, e até Senador. Segundo ele, atualmente no Brasil se ganha uma eleição no hd de um computador: “Tenho absoluta convicção do que eu estou afirmando. Nós vamos ter uma eleição daqui a 15 dias e se não houver fiscalização na seção eleitoral o presidente de mesa, com a ajuda de mesários desonestos, pode votar pelo eleitor, uma vez que tem em mãos os chamados documentos da urna, que são as listas com o número do título de cada eleitor”. Disse Maneschy que isso aconteceu na eleição de Roseana Sarney para o Governo do estado do Maranhão: “Comprovamos no Maranhão que uma grande quantidade de votos para Roseana Sarney foi computada depois do horário de fechamento da seção eleitoral. Mais de 200 votos foram dados pelo presidente da mesa. Ele pôde votar pelo eleitor porque tinha o número do título eleitoral do cidadão”, afirmou. Apesar desses problemas, Maneschy disse que não acha que o voto eletrônico seja um equívoco, mas comentou que no Brasil ele foi criado com o propósito de controlar a sociedade: “O Brizola comparava a urna eletrônica à argola que se coloca no focinho do touro para levar o animal para onde a gente quiser. Na opinião de Brizola, o Brasil era o touro e a urna eletrônica a argola que se coloca no focinho do animal para ele votar”, declarou Maneschy provocando risos na platéia. Maneschy entende que o povo brasileiro está sendo usurpado no seu direito de conduzir o processo eleitoral: “O voto eletrônico é uma coisa moderna, que chegou para que pudéssemos superar muitas coisas erradas do passado, e uma delas era exatamente a velocidade da apuração dos votos. Agora, é fundamental que permaneça a possibilidade de fiscalização. Atualmente, no mundo inteiro usam-se urnas eletrônicas, mas não com sistemas atrasados e programas superados como os que são utilizados aqui no Brasil. Igual aos nossos somente na Índia, que também já está mudando de sistema”, finalizou.

Chineses propõem intercâmbio A colaboração se daria em cinema, fotografia, música, dança, artes plásticas, artesanato e comunicação. CLÁUDIA SOUZA

pode se dar na mesa, no atacado, se alguém mexer no programa da urna eletrônica. Dependendo do nível de atuação da pessoa que está interessada em fraudar o resultado, a fraude pode ser nacional para Presidente da República, ou pode ocorrer na votação no varejo”. Na opinião de Maneschy, o sistema do voto eletrônico foi forjado em 1986, quando foi feito o recadastramento eleitoral: “O recadastramento nacional de eleitores realizado em 1986 permitiu que dez anos depois fosse introduzido no Brasil o voto eletrônico. Participei desse processo junto à Justiça Eleitoral no Rio de Janeiro e não tinha a menor idéia de que estava colaborando para criar esse monstro”. Destacou Maneschy que foi o Governo norte-americano que patrocinou o uso das urnas eletrônicas no Brasil e no Paraguai. O partido do ex-Presidente Lugo questionou na Justiça a eficácia do equipamento brasileiro, exatamente por causa de uma série de defeitos que ele apresenta.

P OR C LÁUDIA S OUZA Uma comitiva de autoridades e de profissionais de mídia da cidade chinesa Shenyang visitou no dia 26 de setembro a ABI, onde foi ciceroneada pelo jornalista Sérgio Caldieri, Primeiro Secretário do Conselho Deliberativo da entidade. A Vice-Ministra do Departamento de Publicidade do Comitê do Partido Comunista da China, He Shu Hua, liderava o grupo integrado por Ju Baoping, Vice-Prefeito de Shenyang; Xu Zengjun, Diretor da Divisão de Integração do Departamento de Comunicação da Prefeitura de Shenyang; Ding Yu Xiu, membro do Comitê para Cultura e Esporte em Rádio e TV; Guan Ronghni, Diretora da Literal Art Association de Shenyang, e David Xiang, Assessor de Imprensa do Centro de Comunicação Brasil-China. O objetivo da visita foi apresentar propostas para que, através da ABI, sejam estabelecidas atividades de intercâmbio nas áreas de cultura e comunicação no âmbito Brasil-China. Na saudação aos visitantes, Sérgio Caldieri expôs a relevância histórica da ABI em defesa das liberdades, dos direitos humanos e da cultura nacional. David Xiang, tradutor da comitiva, aplaudiu a trajetória da ABI e destacou a importância das relações de amizade na tradição cultural chinesa: “Estou morando no Brasil há mais de dez anos, sempre procurando aprofundar o relacionamento com os brasileiros. Na China, antes de pensarmos em negócios, prezamos o sentimento de amizade. Por esta razão estamos nos aproximando da ABI”. Em nome da comitiva, He Shu Hua agradeceu a oportunidade de conhecer a ABI e falou sobre o atual cenário socioeconômico de Shenyang, capital e a maior cidade da Província de Liaoning, no Nordeste da China. “A população de Shenyang é de 8 milhões de pessoas. Somos o principal centro financeiro, tecnológico, científico e cultural do nordeste chinês, e temos muito interesse em estabelecer intercâmbio cultural com a ABI e o Brasil”, disse a Vice-Ministra. De acordo com o último relatório da Economist Intelligence Unit, divulgado em julho de 2012, Shenyang é uma das 13 megacidades emergentes da China. Desde a abertura econômica do país, a região tem registrado elevadas taxas de crescimento econômico e demográfico. Fundada no ano 300 a.C., sede de palácios imperiais, a cidade acompanha as práticas globais de sustentabilidade e preservação do meio ambiente e desde os anos 1930 é um grande centro industrial, com diversificado parque industrial, boa rede de transportes, recursos naturais abundantes e força de trabalho qualificada. “Achados arqueológicos apontam para assentamentos humanos em Shenyang há cer-

A Vice-Ministra He Shu Hua entrega ao Conselheiro Sérgio Caldieri uma lembrança da visita à ABI.

ca de 7.200 anos. Hoje, Shenyang é uma cidadeirmã e recebe investimentos de mais de 100 países, sendo conhecida também como cidadefloresta, por seu papel de destaque nas questões relativas ao meio ambiente. Em Shenyang foram construídos o primeiro automóvel da China, o primeiro avião e o primeiro robô submarino do país”, frisou He Shu Hua. O conceito de cidade-irmã tem como objetivo estabelecer relações e mecanismos protocolares nos setores espacial, econômico e cultural, através de políticas que valorizemlaços de cooperação. “Por toda a força e riqueza cultural dos povos brasileiro e chinês, gostaríamos de promover um intercâmbio bilateral nas áreas de cinema, fotografia, dança, artes plásticas, artesanato, música, comunicação. Temos todas as condições para realizar este trabalho e o apoio da ABI é muito valioso”, afirmou Guan Ronghni, Diretora da Literal Art Association de Shenyang. Ao final do encontro, He Shu Hua e a comitiva entregaram ao jornalista Sérgio Caldieri uma placa comemorativa de saudação à ABI e um dvd com imagens e informações sobre a cidade de Shenyang. História O nome da cidade Shenyang significa “a cidade ao norte do Rio Shen” e é derivado do nome do Rio Hun, que corta o lado Sul da cidade, anteriormente conhecido como Rio Shen. A região foi fundada pelo General Qin Kai, cerca de 300 a.C. Após a queda da dinastia Ming, em 1644, os manchus caíram sob domínio chinês e a capital foi transferida para Beijing. No entanto, Shenyang manteve considerável importância como a capital anterior e o lar espiritual da dinastia Qing, a última dinastia imperial da China. Com a construção da Ferrovia do Sul da Manchúria, Shenyang se transformou em

uma fortaleza russa após a Revolta dos Boxers (1899-1900), movimento popular antiocidental e anticristão na China, que teve início na Província de Shandong. As raízes da revolta estavam na pobreza rural e no desemprego, cuja responsabilidade era atribuída às importações do Ocidente. Para sufocar a rebelião, foi organizada uma força internacional colonialista composta por 20 mil soldados russos, americanos, britânicos, franceses, japoneses e alemães. Durante a Guerra Russo-Japonesa (19041905), Shenyang foi palco da Batalha de Mukden. Após a vitória japonesa, a concessão de Shenyang foi uma das principais bases para a expansão da economia japonesa no Sul da Manchúria. Foi também a sede do vice-reino chinês das três províncias da Manchúria. Na década de 1920, Shenyang foi a capital da Manchúria sob o comando de Zhang Zuolin, posteriormente assassinado. No início do século 20, foram construídas a estação ferroviária da Ferrovia da Manchúria do Sul e a estação ferroviária do Norte de Shenyang, que viabilizaram a expansão urbana da cidade e a construção em suas margens de núcleos industriais, tornando Shenyang um grande centro comercial e industrial. O Japão explorou os recursos na Manchúria utilizando a extensa rede ferroviária que atravessava Shenyang. Em agosto de 1945, forças soviéticas ocuparam Shenyang, logo após a rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial. Pouco tempo depois os soviéticos deram lugar aos nacionalistas chineses durante a Guerra Civil Chinesa, no período 1946-1948, quando Shenyang foi um reduto antiesquerdista, embora os comunistas chineses controlassem o entorno da cidade. Em 30 de outubro de 1948, após uma série de ofensivas conhecidas como a Campanha Liaoshen, Shenyang foi tomada pelos comunistas. No ano seguinte, em 1º de outubro, foi proclamada a República Popular da China.

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VEÍCULOS

Correio Popular de Campinas faz 85 anos

COMEMORAÇÃO

A ABI presente nos 185 anos do Jornal do Commercio

Referência entre os jornais do interior do País, o combativo diário festeja seu aniversário com edição especial e muitos planos para o futuro. AUGUSTO DE PAIVA

P OR P AULO C HICO

O mês de setembro foi marcado pelo aniversário de um dos mais importantes jornais do interior do Brasil, o Correio Popular, fundado em 4 de setembro de 1927 pelo jornalista Álvaro Ribeiro. Principal veículo impresso do Grupo RAC (Rede Anhanguera de Comunicação), ele tem como grande trunfo a sua forte atuação regional. “Na área de Campinas, este é o maior, o mais importante e influente jornal em circulação. Com o passar dos anos, consolidou-se como uma espécie de porta-voz de Campinas e das 19 cidades que integram sua região metropolitana”, avalia Nelson Homem de Melo, Diretor Editorial do Grupo. Em comemoração ao aniversário, o Correio Popular circulou no dia 4 de setembro com uma edição especial de 40 páginas. “Os leitores podem esperar o que eles já sabem que habitualmente acontece: o jornal vive em constante evolução. Até o final do ano, teremos novidades na internet e, possivelmente no início de 2014 passaremos por uma nova reformulação gráfica e editorial, que fazemos sempre em parceria com o estúdio Cases y Associats, de Barcelona”, adianta Homem de Melo. O perfil combativo do jornal esteve explícito desde seu primeiro número, que trazia aos leitores uma declaração de intenções, em que afirmava, com a grafia típica da época: “seremos na imprensa vigilantes fiscaes da administração pública e zeladores intransigentes do direito collectivo”. Tal promessa foi concretizada ao longo de sua trajetória. Durante a Revolução de 1932, o jornal sofreu severas sanções por ser contrário ao Governo ditatorial de Getúlio Vargas. A mesma

Primeira edição do jornal: “vigilantes fiscaes da administração pública”.

Nelson Homem de Melo: O Correio Popular é porta-voz da região de Campinas.

posição foi mantida durante os anos posteriores ao golpe militar de 1964. Tempos sombrios em que a Redação do impresso teve atuação marcante em defesa da retomada da democracia. Em entrevista ao Jornal da ABI, Homem de Melo explicou o poder de fogo do conglomerado de comunicação de que é um dos diretores. “O Grupo é integrado por seis jornais diários – Correio Popular, JÁ Campinas, Gazeta de Piracicaba, Gazeta de Ribeirão, JÁ Ribeirão e Diário do Povo, este último de propriedade do ex-Governador de São Paulo, Orestes Quércia até 1996, quando foi adquirido pelo RAC. Além deles, temos uma revista – Metrópole, encartada no Correio aos domingos, com reportagens especiais e informações sobre as principais atrações das cidades da região –, uma agência de notícias, o portal RAC e o site do Correio Popular. Em Campinas, temos 130 jornalistas em nossos quadros. A tiragem atual do Correio é de 34 mil exemplaERICA DAHLSTROM DEZONNE

Dalcio Machado: Primeiro grande veículo de comunicação a acreditar em meu trabalho

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res diários. O portal registra a média de cinco milhões de visitas por mês.” Longe de ameaçar a tradicional edição impressa, a maior atenção dada pelo grupo às mídias digitais veio somar audiência e reforçar a imagem de sua principal publicação. “A proliferação dos sites de notícias fortaleceu ainda mais o Correio Popular. Ao contrário dos jornais de circulação nacional, que chegam às bancas com boa parte de seu noticiário já veiculado na noite anterior pela internet ou pela televisão aberta, o Correio tem em suas páginas um grande percentual de matérias exclusivas, de interesse regional, que normalmente não fazem parte da pauta da chamada ‘grande imprensa’. Nossa presença na internet, atualmente, é feita através do portal RAC e do site do Correio, que também sofrerão modificações neste mês de outubro. As versões online e impressa atuam em conjunto, uma fortalecendo a outra.” O jornal é um celeiro de talentos, sendo reconhecido no interior de São Paulo por abrir espaço para novos profissionais. “Quando completei 17 anos, botei uma pasta com desenhos debaixo do braço e fui para a Redação. Quatro dias depois, minha caricatura do Aureliano Chaves estava na capa. O Correio Popular foi o primeiro grande veículo de comunicação a acreditar em meu trabalho, por isso minha gratidão é infinita”, conta o cartunista Dalcio Machado, que também faz trabalhos para a revista Veja. Além de Campinas, onde fica sua sede, o jornal circula por importantes cidades da região, como Americana, Artur Nogueira, Mogi-Guaçu, Mogi-Mirim, Paulínia, Santa Bárbara D’Oeste, Sumaré, Valinhos, Vinhedo, Indaiatuba, Itapira e Jaguariúna – feito que garante seu lugar de destaque como o mais expressivo jornal do interior do País. Presidente do Grupo RAC, Silvino de Godoy Neto reafirma o compromisso do grupo com a população local. “O Correio Popular hoje é a síntese do que significa o termo jornal regional, uma tendência moderna e eficiente de praticar jornalismo, próximo da realidade vivida pela comunidade da qual faz parte, abraçando as bandeiras consideradas essenciais para o crescimento saudável e sustentado da região onde atua.”

A ABI associou-se à comemoração dos 185 anos de fundação do Jornal do Commercio, festejado em solenidade com a presença de mais de 500 convidados no Golden Room do Hotel Copacabana Palace, em 1º de outubro, dia em que o periódico veio a público pela primeira vez, em 1827. O Jornal do Commercio é o mais antigo diário do País em circulação ininterrupta. Antecedeu-o no início da circulação o Diário de Pernambuco, do Recife, criado em 1825, mas que deixou de ser publicado em vários períodos, por força de embates políticos de que participou. Durante a cerimônia, o Presidente dos Diários Associados, Álvaro Teixeira da Costa, e o Presidente do JC, Maurício Dinepi, entregaram um troféu comemorativo do aniversário ao Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral; ao Presidente da empresa Unicafé, Jair Coser; ao Presidente do Grupo Gerdau, Jorge Gerdau Johannpeter; ao Presidente da Light, Paulo Roberto Ribeiro Pinto. Também foram homenageados o exPresidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Presidente Dilma Rousseff, o Presidente do Bradesco, Lázaro de Melo Brandão, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux; o Prefeito Eduardo Paes, representado por seu pai, e a atriz e cantora Bibi Ferreira, representada por sua filha, Tina Ferreira. Da mesa participaram o consultor da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Turismo e Serviços, ex-Ministro Ernane Galvêas, que completava 90 anos, os Presidentes Álvaro Teixeira da Costa e Maurício Dinepi, o Governador Sérgio Cabral e o Vice-Governador Luiz Fernando Pezão, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, Desembargador Manoel Alberto Rebelo dos Santos, e o Presidente da ABI, Maurício Azêdo.


HISTÓRIA

REPRODUÇÃO

Um texto inédito de Edmar Morel sobre os mortos da imprensa Pesquisador incansável, o autor de ABI – A Trincheira da Liberdade levantou a trajetória de jornalistas que perderam a vida no exercício da profissão.

N

ão é tarefa fácil escrever sobre o sacrifício de jornalistas assassinados pelos poderosos, quer do Governo e grupos dos “coronéis do sertão”, financiadores de Sindicatos da morte, enquanto outros tiveram um fim de vida miserável. Acrescem, ainda, embustes criados através de um noticiário que não corresponde, em absoluto, à verdade dos fatos.

BAUMGARTE, O ESCROQUE

APULCRO DE CASTRO, O PASQUINEIRO Outro caso foi o do pasquineiro Apulcro de Castro, que dirigia o imundo O Corsário, que enxovalhava a honra de qualquer cidadão que não atendesse aos seus processos de intimidação. Apulcro não respeitava ninguém, inclusive a família Imperial, levando-a ao pelourinho. Nelson Werneck Sodré, em História da Imprensa Brasileira, baseado num estudo de Carl Von Koseritz em Imagem do Brasil, traçou o perfil do pasquineiro, morto a 25 de outubro de 1883, com sete punhaladas e dois tiros, desfechados por oficiais do 1º Regimento de Cavalaria.

cano, cujo primeiro número circulou no Natal de 1823. Jornalista por excelência, foi a voz rebelde contra o domínio português que, no dizer do seu biógrafo Marco Morel, foi fuzilado porque três carrascos recusaram enforcá-lo, como consta do livro Frei Caneca, editado pela Brasiliense de São Paulo em 1987. Frei Caneca, por ter participado da Revolução Pernambucana em 1817, foi arrancado do Convento e levado para a Casa de Detenção de Salvador, ficando sob os ferrões do temível Conde dos Arcos. Em conseqüência de uma campanha popular pró anistia, liderada por Cipriano Barata, a primeira no Brasil, Frei Caneca voltou à liberdade e logo ingressou na Confederação do Equador, lançando o jornal Tifis Pernambucano. Ele, que saíra do Recife acorrentado, agora, era saudado como jornalista do povo, pregando, como narra Marco Morel, de quem tenho orgulho de ser avô, a luta revolucionária com frases como esta: “Um Monarca quando incorre na desconfiança da Nação é imediatamente repudiado como inimigo interno”. Defendia os princípios da Confederação do Equador (1824) exaltando Bolívar e San Martin. Dominado o movimento, o Presidente da Confederação refugiouse numa belonave inglesa fundeada no porto do Recife. Pais de Andrade, protegido pelos ingleses, soube que Frei Caneca organizara uma expedição e rumou para os sertões em busca de apoio, caindo prisioneiro no interior da Paraíba. Num processo relâmpago, foi condenado à morte e fuzilado a 13 de janeiro de 1825. Quem quiser conhecer a verdadeira hisREPRODUÇÃO

Um exemplo típico foi o assassinato do escroque Alexandre Von Baumgarte, que se infiltrou ao Serviço Nacional de Informações e conseguiu a proteção de determinados setores, recomendando-o a órgãos públicos e particulares para obtenção de farta e cara publicidade destinada à revista O Cruzeiro, que recebia o dinheiro adiantado e não divulgava o anúncio. O Cruzeiro, quando célula dos Diários Associados, chegou a vender, por semana 750.000 exemplares, teve o título arrematado em leilão judicial por 200 cruzeiros, o mesmo acontecendo com o intrépido Correio da Manhã, cuja marca foi adquirida por 210 cruzeiros, por um grupo de pivetes. Chantagistas deste porte não podem ser apontados como jornalistas, uma afronta aos brios da categoria. E claro que o escroque avançou o sinal, ficou sabendo coisas que não deviam chegar ao seu conhecimento e caiu numa cilada, cuja autoria intelectual do crime é atribuída ao General Newton Cruz, outrora senhor todo-poderoso e chefe do Serviços Nacional de Informações-SMI em Brasília. Com a sua morte, a sociedade ficou livre de um chantagista que agia com o rótulo de jornalista. Baumgarte foi atraído para uma pescaria, levando a esposa e um pescador. Dos três só o corpo do aventureiro deu à praia, isto em 25 de outubro de 1982.

Escreveu Carl Von Koseritz: “O Corsário, o pasquim que aqui representou um papel não destituído de importância, não mais existe. Ele foi bastante inábil para atacar de maneira afrontosa alguns oficiais do 1º Regimento de Cavalaria e a conseqüência imediata foi que alguns vinte oficiais do mesmo Regimento invadiram e depredaram as oficinas. O proprietário teve que fugir e está até hoje escondido, pois a sua vida está seriamente ameaçada. Apenas o carro se afastava vinte pessoas da Polícia que os homens acima referidos o cercaram e apesar da tentativa de defesa do Capitão Ávila arrancaram dele o mulato e o assassinaram com sete facadas e dois tiros de revólveres. Tudo fora questão de um momento. O morto se chamava Apulcro de Castro e era proprietário e redator do famoso Corsário, este pasquim que desde há muito servia do Rio de Janeiro como repositório de escândalos. O atentado não provocou protestos.” Nelson Werneck Sodré adiantou: “Somente a Folha Nova arriscou alguns comentários pouco seguros e as suas oficinas tiveram que ser guardadas pela Polícia durante as duas últimas noites”. O Jornal do Commercio, por exemplo, escreveu: “A repressão pela força era uma necessidade imposta pelas circunstâncias e impossível é evitar os tristes resultados do emprego das armas contra a multidão amotinada”. No episódio, inicialmente figurou o Coronel Moreira Cezar como um dos criminosos. Anos depois seu nome voltou à evidência, agora como comandante de uma expedição militar liquidada a ferro e a fogo pelos fanáticos de Antônio Conselheiro. Nilo Peçanha, da sacada de O Paiz, num meeting improvisado, declarou: “Moreira Cezar foi vítima do fanatismo aliado à politicagem de brasileiros desnaturados”. O Governo homenageou a memória do Coronel dando seu nome à Rua do Ouvidor, que continua sendo Rua do Ouvidor. Separado o joio do trigo, a História tem novas dimensões. Os picaretas não eram jornalistas e por isto não podem figurar como mártires da imprensa. Foram, sim, seus coveiros.

FREI CANECA Começo falando do admirável frade Joaquim do Amor Divino Ravelo, o bravo Frei Caneca, diretor do Tifis Pernambu-

Frei Caneca: voz rebelde contra o domínio português.

Cipriano Barata: pregação cívica contra os excessos da Corte.

tória da Confederação do Equador tem que ler o livro Pernambuco: da Independência à Confederação do Equador. Sorte semelhante teve o Padre Mororó, redator do Diário do Governo do Ceará, órgão da Confederação e militante da primeira linha no movimento que empolgou o Nordeste. O Governo criou um Tribunal Especial que mandou fuzilar mais de 150 patriotas, inclusive o Padre Inácio Loiola de Albuquerque Melo, conhecido apenas por Padre Mororó. Mororó colocou a mão no coração e gritou: “Camaradas, o alvo é este”.

CIPRIANO BARATA Outro jornalista que dignificou a profissão foi o baiano Cipriano José Barata de Almeida, revolucionário por índole. Preso dezenas de vezes nas fortalezas medievais, jamais deixou de publicar as Sentinelas da Liberdade. O jornal saía com o local da edição: Sentinela da Liberdade da Guarita de Pernambuco, número 9 de 3 de maio de 1823. Eleito deputado pela Corte, deu o seu recado e de volta ao Brasil reiniciou sua pregação cívica, combatendo o colonialismo e os excessos da Corte, atirando a plebe contra a família real que fugira de Lisboa em 1808 com medo de cair nas garras das tropas de Napoleão. O Brasil, no calamitoso período de 1808 a 1825 pode ser comparado ao Brasil de 1964 a 1979, com as prisões superlotadas de presos políticos. Cipriano foi envolvido em vários motins, sendo figura de destaque na Conjuração Baiana. Mesmo doente e lutando com imensas dificuldades, jamais deixou de fazer jornalismo, lecionando em colégios, e acabou seus dias em Natal, em 1º de julho de 1838, na mais extrema miséria, e foi sepultado em cova rasa. Seu exemplo de revolucionário foi seguido pelo seu bisneto Capitão Agildo Barata, um dos chefes do levante do 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, em 27 de novembro de 1935, quando o quartel foi atacado por terra, mar e ar. A História, entretanto, não esqueceu Cipriano. Seus biógrafos são Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Luís da Camara Cascudo, Marco Morel, João Cabral de Melo Neto e Gilberto Vilar de Carvalho entre muitos outros.

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HISTÓRIA UM TEXTO INÉDITO DE EDMAR MOREL SOBRE OS MORTOS DA IMPRENSA

REPRODUÇÃO

Casa redigiu os estatutos da Associação Brasileira de Imprensa, fundada a 7 de abril de 1908, com um programa nitidamente socialista, perfeitamente adaptável aos dias de hoje. Totalmente abandonado, faleceu na miséria a 4 de setembro de 1909, como consta no registro de óbito, “enterrado em veículo número 3, caixão número 3 e em cova rasa”, características de sepultamento de indigentes. O atestado de óbito diz que a causamortis foi arterioesclerose. Mentira. A verdadeira foi desnutrição, fome.

PATROCÍNIO

Gustavo de Lacerda: morreu de fome.

GUSTAVO DE LACERDA

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TRAJANO CHACON Era um jornalista que condenava a violência e a política caudilhesca de Pinheiro Machado, que transformou o Brasil numa fazenda de sua propriedade, fazendo do Presidente Hermes da Fonseca uma figura de marionete. Quando estourou a sublime Revolta dos Marinheiros, em 1910, sob o comando do fabuloso negro João Cândido, o Governo, num ato de pussilanimidade, jogou centenas de marujos anistiados nos porões do cargueiro Satellite para que muitos fossem fuzilados e outros vendidos como escravos na Amazônia. A escolta militar do navio foi confiada aos Tenentes Francisco Mello, João da Silva Leal e Libânio da Cunha Matos. De regresso ao Rio, o Satellite, depois de cumprir a nefasta missão, fundeou no Recife, sede do Governo do General Dantas Barreto, chefe político oposicionista de Pinheiro Machado, que convidou o Tenente Francisco Melo para trabalhar em sua Casa Militar. Aureolado pela triste fama de fuzilar marinheiros anistiados e algemados, o Tenente Melo achou que Pernambuco era um campo aberto para suas novas torpezas. Vivia no Recife o jornalista Trajano Chacon, que fundara a revista Atenaide e, posteriormente, o Pernambuco. Era destemido e defendia as reivindicações populares, fazendo-o com uma coragem inaudita. Seus artigos incomodavam o General Dantas Barreto e foi tramado o seu extermínio: foi assassinado pelo Tenente Francisco Melo à luz do dia, crime que apaixonou a opinião pública e que ficou impune. Ainda hoje o nome de Trajano Chacon é lembrado pelos pernambucanos, que reverenciam a sua memória com seu nome dado em ruas e praças. REPRODUÇÃO

Chegou o momento de exaltar três personalidades marcantes na vida jornalística do País: Gustavo de Lacerda, Trajano Chacon e José do Patrocínio. Gustavo era um autêntico filho do povo. Viveu 11 anos dentro de um quartel do Exército. Embora não suportasse o tambor e a corneta, deixou a tropa no posto de primeiro-sargento, falando e escrevendo corretamente o francês e o português, matérias que foram úteis na sua curta existência. Trabalhou em vários jornais, ocupando funções secundárias até que em 1884 fundou Meio Dia, que durou um mês e dois dias, vendido o exemplar por um vintém. Era um pequeno tablóide, com oito páginas, combatendo o luxo dos gabinetes ministeriais, as transferências por motivos políticos de oficiais do Exército para unidades distantes. Bradava contra a escravatura e defendia a República. Existe uma coleção completa do Meio Dia na Seção de Obras Raras na Biblioteca Nacional. Com o fechamento de sua minúscula gazeta, de jornal em jornal, deu com os costados em O Paiz, de propriedade do português João Lage, que perdia milhões nas patas dos cavalos, nas mesas de bacará, levando vida de marajá, enquanto seus redatores e repórteres percebiam salários de fome. Gustavo, por exemplo, que cobria o noticiário da Prefeitura, ganhava 50 mil réis por mês. Só o quarto que ocupava numa cabeçade-porco perto da Praça Tiradentes custava 20 mil réis. Para equilibrar o mirrado orçamento fazia traduções e dava aulas. Não tinha emprego público e passava por duras privações. Mal alimentado e enfermo, teve desmaios na Redação, sendo internado na Santa Casa de Misericórdia como indigente. Quando jovem, Lacerda fundou o Partido Socialista Coletivista e promoveu várias greves, inclusive, a dos cocheiros e carroceiros, parando o Rio de Janeiro. Escapou de dois atentados e foi um dos animadores do Centro Operário Radical. Caiu doente e na enfermaria da mesma Santa

Quando o Tigre da Abolição morreu, em 1905, depois de ter tido o Brasil a seus pés, como jornalista e tribuno, a família, como escreveu seu biógrafo Osvaldo Orico, não tinha sequer dinheiro para comprar as quatro velas que iluminassem o corpo de um rei que morreu como mendigo. Paradoxal como pareça, o maior tribuno popular do abolicionismo, depois da Lei Áurea, em 1888, começou sua viacrucis. O que fazia seu jornal Cidade do Rio, uma folha de grande penetração popular, era a campanha antiescravagista. O dinheiro para José do Patrocínio não tinha nenhum valor. Esbanjou verdadeiras fortunas, inclusive na tentativa de construir um dirigível que deveria sobrevoar o Rio. A República, por sua vez, dividiu os abolicionistas e Patrocínio deixou de ser figura que empolgava multidões. O jeito foi morar num distante subúrbio da Central do Brasil, escrevendo um artigo semanal para A Notícia para ganhar 20 mil réis. Aquele negro fabuloso, cujo verbo destruía os grilhões das senzalas, em 1884 em Paris, ofereceu um grande banquete a Victor Hugo. Olavo Bilac definiu Patrocínio: “Quando chegou a hora da erupção daquela cólera vingadora, toda a sociedade estremeceu, abalada, tomada de uma comoção entontecida, nunca houve no Brasil uma voz que soasse tão alto e que ferisse tão fundo, que derramasse em torno uma tão larga torrente de ódios, de

sustos, de maldições, e, ao mesmo tempo, de esperanças e de bênçãos. E a raça negra viu aparecer o profeta esperado, o Messias anunciando nas eras, dentro de uma tempestade de raios e de flores, acendendo cóleras, pensando feridas, despedaçando grilhões, fulminando orgulhos, beijando cicatrizes, ateando a fogueira com que se havia de purificar o Brasil.”

José do Patrocínio: o Tigre da Abolição.

ANTÔNIO DRUMOND Era pernambucano, porém, fez jornalismo em Fortaleza, no Ceará, onde fundou Gazeta de Notícias, isto em 1928, salvo engano. A despeito de ser o Procurador-Geral da Fazenda no Ceará, não escondia as falcatruas do Governo. Apesar da precariedade do parque gráfico, A Gazeta era um dos órgãos mais lidos pelo povo. O Governador Matos Peixoto tinha a sua corte de bajuladores, conhecidos por Maravilhas, entre eles o Juiz de Direito Virgílio Gomes. Drumond o chamara de queratinoso animal com pequenos chifres. Que fez o magistrado para levar a honra ultrajada? Retirou cinco famosos bandidos de cadeia pública, à frente o celebérrimo José Colares, autor de 12 homicídios, e arquitetou o crime praticado na calada da noite, numa rua quase sem iluminação. O próprio

Juiz comandou a malta que fulminou o jornalista, com mais de 20 tiros. Premido pela opinião pública e imprensa, o magistrado ficou em prisão especial. Se a revolução de 1930 tivesse fracassado ele teria recuperado a liberdade através do júri Popular. Mas, com a vitória da Aliança Liberal, o processo foi reaberto e Virgílio Gomes condenado a 30 anos de prisão. Visitei-o várias vezes na medieval cadeia pública, onde centenas de homens apodreciam em vida, encarcerados como feras. Explico minhas visitas. Ele era freguês da barbearia do meu pai. Na mocidade foi barbeiro e na prisão tornou-se tipógrafo. Morreu no cárcere, no mais completo abandono, tendo apenas como companheira a esposa, o pivot do drama.

TOBIAS GRANJA Era um jovem cheio de esperanças e de futuro promissor. Antes de concluir seu curso de Direito, em Maceió, fez estágio no Diário da Noite e O Cruzeiro, firmando reportagens de alto nível. Não tinha medo e enfrentava os usineiros alagoanos que sustentavam o Sindicato da Morte, com a mesma bravura com que atacava os “coronéis do sertão”, assassinos de indefesos camponeses. Tentava a reeleição para deputado estadual. Ao deixar seu escritório em companhia de um filho menor, foi metralhado na Rua do Comércio. O crime revoltou o povo e teve repercussão nacional, sobretudo na imprensa, da qual Tobias Granja era uma figura querida. Houve um julgamento farsa e os criminosos, à custa de muito dinheiro, tiveram uma pena mínima. Tobias não tinha 35 anos quando foi executado.

NESTOR MOREIRA Chegou a vez de falar sobre o repórter Nestor Moreira de A Noite, fundada por Irineu Marinho em 1911 e que caiu nas mãos do gangster Geraldo Rocha em 1925, o mais audacioso advogado dos trustes internacionais. Reduto de corrupção e de toda sorte de negocistas antinacionais, no período dirigido por Geraldo Rocha surgiu uma escola de subliterados sob o comando do vazio Berilo Neves e Carvalho Neto, o secretário que não escrevia sequer uma notícia de aniversário. Berilo, que era general farmacêutico, se vangloriava de ser o inimigo número 1 das mulheres. Tão inimigo que o levou a contrair núpcias com uma filha do Ministro da Fazenda. A reportagem tinha em Nestor Moreira um excelente apanhador de notas, varando madrugadas para apurar um caso policial. Era um inveterado boêmio. Numa madrugada de maio de 1954, compareceu à Delegacia de Polícia da Rua Hilário Gouveia, em Copacabana, em companhia de um motorista de táxi, para resolver um problema de pagamento. De súbito foi agredido a pontapés pelo guarda conhecido por Coice-de-Mula, que com o bico fino dos sapatões perfurou os intestinos do jornalista, cuja agonia no Hospital Miguel Couto emocionou a cidade. Seu martírio durou dez dias e seu enterro foi verdadeira consagração, tendo sido acompanhado por mais de 10 mil pessoas. Nestor, vítima da monstruosidade policial, de simples repórter, após sua morte, passou


VEÍCULOS

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Mario Alves: assassinado no Doi-Codi.

a ser um dos mártires da nossa imprensa, sendo nome de rua. Infelizmente era repórter de um jornal desmoralizado, uma cópia do Diário Oficial e que aplaudia os atos mais ignóbeis do Governo, inclusive, a violência contra os trabalhadores e estudantes.

MÁRIO ALVES Militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, ao lado de Apolônio de Carvalho, saiu cedo de sua casa ao Largo da Abolição para nunca mais voltar. Ao passar pela Praça Saenz Pena foi preso pela famigerada dupla Doi-Codi, sendo visto pela última vez no dia 16 de dezembro de 1970, no quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, que era o quartelgeneral da Gestapo Brasileira, onde os presos políticos eram barbaramente espancados até à morte. Os torturadores davam sumiços aos corpos. Vinte anos depois do seu assassinato Dilma, sua viúva, recentemente falecida em Niterói, esperou em vão pelo regresso do esposo.

VLADIMIR HERZOG Foi um crime, com todos os requisitos de crueldade, e que revelou o quanto era odiosa e odienta a ditadura militar instaurada no País em 1964, quando o Brasil mergulhou num regime de trevas que durou 20 anos. Herzog apresentou-se a um quartel do Exército numa manhã de 1975, onde deveria prestar depoimento. No mesmo dia o famigerado Doi-Codi

chamou a imprensa para mostrar Herzog enforcado. A opinião pública repudiou a farsa. Levado pelo clamor público o então Presidente Ernesto Geisel demitiu o Comandante do II Exército, em cuja jurisdição ocorreu o crime, Herzog foi assassinado e o mundo inteiro ficou sabendo como eram tratados os presos políticos brasileiros. O corpo foi entregue à família num caixão lacrado, a fim de que não fossem vistas as marcas das torturas. Soube-se, então, que outros presos tiveram a mesma sorte que Herzog e até hoje estão desaparecidos 153 corpos das vítimas da repressão feitas pelos Doi-Codi, legenda que espalhou a viuvez e a orfandade em centenas de famílias brasileiras, sem distinção social. Na infame arte de matar, os sequazes dos órgãos de segurança fuzilaram até mulheres e menores. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo instituiu o Prêmio Wladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, que tive a honra de receber em 1979.

LEON ELIACHAR Num exame de consciência não considero o jornalista Leon Eliachar como mártir da imprensa. Foi vítima de suas aventuras amorosas, assassinado a mando de um marido traído. Verdadeiro complô foi organizado no interior do Paraná para exterminar o humorista. Fui seu companheiro de Redação, porém, nunca tivemos maior relacionamento profissional. Pela primeira vez na História do nosso jornalismo, todos os que participaram do hediondo crime estão presos e o próprio Delegado de Polícia que armou o esquema foi julgado e pegou 14 anos.

MÁRIO EUGÊNIO

INSTITUTO VLADIMIR HERZOG

O jornalista Mário Eugênio era uma das figuras mais populares em Brasília, onde diariamente ocupava o microfone narrando casos policiais e denunciando graves irregularidades na Polícia da Capital Federal. Eram 6 horas da manhã e ele foi avisado de que dois estranhos estavam em atitudes suspeita atrás do seu automóvel. Ele não deu maior importância ao fato e ao sair do edifício foi metralhado. Era preciso fazer calar o jornalista. E para isto foi organizado um complô dentro da própria Polícia. O crime abalou a população, e o Governo sob pressão mandou abrir inquérito e toda a cúpula da Polícia foi ouvida, ficando mais que provado que Mário Eugênio foi fuzilado por investigadores. Ninguém foi preso.

PAULO BRANDÃO

Herzog: símbolo da luta contra a ditadura militar.

Jornalista paraibano, cujo assassinato foi tramado no próprio Palácio do Governo. Fazia oposição cerrada ao Governo e já havia recebido várias ameaças de morte. Paulo Brandão Cavalcanti Filho chegou a pedir garantias de vida ao então Ministro da Justiça. O Governador, na época, foi acusado publicamente de ter sido um dos mentores do crime. O Boletim da ABI, em várias edições, solicitou providências para a elucidação do hediondo crime. A impunidade, como era de esperar, imperou, mais uma vez.

Fim de linha para o Diário de Natal Após 73 anos, o jornal suspende a sua edição impressa. A direção dos Diários Associados anunciou o fim da versão impressa do Diário de Natal em nota publicada na primeira página da edição do veículo do dia 2 de outubro. Fundado em 18 de setembro de 1939, o Diário de Natal era o mais antigo jornal impresso na capital potiguar, com circulação média de 10 mil exemplares, chegando a 15 mil aos domingos, dia em que era o único jornal a circular em 95% dos Municípios do Rio Grande do Norte. O Diário foi o primeiro jornal do Nordeste a ser impresso em ofsete, a partir de 13 de junho de 1970 e o primeiro jornal da região a informatizar seus equipamentos. O fechamento da Redação do veículo impresso foi motivado pela necessi-

dade de reformulação das áreas financeira e operacional, disse a nota dos Diários Associados. Em fevereiro passado, último, o grupo empresarial já havia descontinuado o Diário de Borborema, com 55 anos de fundação, e O Norte, com 104 anos de história, ambos da Paraíba. A empresa alegou prejuízos da ordem de R$ 2,5 milhões em 2011 e anunciou investimentos em outras mídias, como internet, TV e rádio. Com o fim do Diário de Natal foram demitidos cerca de 40 funcionários. O Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Norte-Sindjorn divulgou nota contra as demissões e o fechamento do jornal e assegurou apoio aos jornalistas dispensados. (Cláudia Souza)

Íntegra da nota do Sindjorn “O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Norte lamenta profundamente o fim da edição impressa do Diário de Natal, anunciado nesta terça-feira (2) e se solidariza com os trabalhadores que deram a vida pela instituição. Nos colocamos à disposição destes profissionais para quaisquer dúvidas. Também repudiamos o anúncio feito para os colaboradores do jornal, através do próprio, mostrando total desrespeito para com os que o fazem. Por se tratar de um número tão alto de demissões, a empresa não poderia ter tomado tal atitude sem comunicar ao sindicato e ao Ministério do Trabalho. Por isso estamos protocolando um pedido de mediação de urgência no Ministério do Trabalho para revermos a posição do jornal. É fato que o formato do jornalismo vem mudando nos últimos tempos e que é preciso que as Redações se adaptem ao que desejam as novas gerações. No entanto, também é possível que com um formato mais opinativo e com mais informações fortale-

ça a forma de fazer um jornalismo cada vez mais sério. A notícia da versão impressa do Diário de Natal lembra o que vivemos há pouco com o Jornal do Brasil. Os dois casos são exemplos de empresas que quebraram pela incompetência de administrações conservadoras que usaram o jornalismo em benefício próprio. Aos demais profissionais de jornalismo do Rio Grande do Norte lamentamos o fechamento de postos de trabalho e nos colocamos à frente de mais uma luta em defesa do jornalismo do RN. Ao sofrermos um ataque deste no meio da Campanha Salarial não duvidem que este será um dos principais argumentos dos patrões, o que nos obriga a renovarmos nosso discurso e pensar em novas estratégias. Que a competência dos profissionais que ainda se encontram por lá fortaleça as novas plataformas e não deixe morrer 73 anos de história. Agora, mais do que nunca, sai do chão jornalista do RN! Diretoria Sindjorn”

Íntegra da nota publicada pelos Diários Associados “O Jornal Diário de Natal, a partir desta data, 02/10/12, deixa de circular em sua versão impressa. De acordo com o programa de reestruturação das nossas atividades empresariais no Rio Grande do Norte, vamos priorizar e ampliar a nossa versão eletrônica. Nesse sentido, estamos dando mais ênfase à internet e também às rádios. Tal decisão, aliás, se enquadra na tendência, de amplitude in-

ternacional, de se alargar, cada vez mais, as opções eletrônicas, graças aos formidáveis avanços tecnológicos. Aproveitamos a oportunidade para agradecer aos nossos colaboradores, aos parceiros e ao povo potiguar pela atenção que têm dispensado aos nossos veículos, ao longo de muitos anos. Natal, 02 de outubro de 2012. Diários e Emissoras Associados” JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

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LIBERDADE DE IMPRENSA

Dono de jornal é morto em Mato Grosso do Sul Luiz Henrique Georges, proprietário do Jornal da Praça, de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, foi assassinado na tarde do dia 4 de outubro, na Avenida Brasil, fronteira entre esse Estado brasileiro e o Paraguai, quando seguia de carro para sua residência, junto com seu segurança, conhecido como Gordo Veras, que também foi morto, e outro funcionário, Ananias Duarte, que foi hospitalizado em estado grave em virtude dos ferimentos. Luiz Henrique estava dirigindo uma caminhonete quando foi atingido por pelo menos 20 tiros de fuzil, segundo informações do site Conesul News, desferidos por dois homens não identificados que ocupavam um veículo. Ele era sobrinho do empresário Fahd Jamil Georges, acusado de ser o chefe do crime organizado e do tráfico de drogas na região da fronteira. Responsável pelo caso, o Delegado Sandro Márcio Pereira, da 1ª Delegacia de Polícia Civil de Ponta Porã, disse que iria aguardar a recuperação de Ananias Duarte para obter mais detalhes sobre o crime. No dia 12 de fevereiro deste ano, Paulo Roberto Cardoso Rodrigues, 51 anos, conhecido como Paulo Rocaro, Editor do Jornal da Praça, foi morto a tiros de fuzil no mesmo local. A Polícia suspeita que o crime tenha sido motivado pela publicação de matérias de denúncias contra traficantes de drogas. O caso ainda não foi elucidado. A Polícia vai investigar se os dois crimes estão relacionados.

Área de risco

Luiz Henrique Georges comprou há pouco tempo o jornal, único diário da região. Em entrevista à RBV News, Edmundo Tazza, Editor-Chefe do jornal, disse que a reportagem de capa do dia 5 trazia graves acusações contra um dos candidatos à Prefeitura da cidade, onde há uma forte disputa partidária. “Não podemos acusar ninguém, já que não há provas, mas é muita coincidência este atentado ter acontecido logo depois de o jornal ter publicado as acusações.” A fronteira entre Brasil e Paraguai é considerada uma área de risco para a atividade jornalística, “uma zona sem lei e ponto de trânsito importante para o contrabando de armas e drogas”, segundo dados do International Press Institute-IPI divulgados em março deste ano. Além de atentados, casos de ameaças de morte são freqüentes, como as dirigidas ao correspondente paraguaio Cândido Figueiredo. Em 2012, nove mortos

Com a execução de Luiz Henrique Georges sobe para nove o número de jornalistas mortos no primeiro semestre de 2012 no Brasil, que figura entre os países mais perigosos para jornalistas no mundo. Segundo o Comitê de Proteção a JornalistasCPJ, o Brasil apresenta índice de impunidade de 75% dos crimes e é o país da América Latina que registra maior número de mortes relacionadas à profissão. (Cláudia Souza)

Jornalista ameaçada em Camaçari, Bahia A ABI fez no dia 9 de outubro um apelo ao Governador da Bahia, Jaques Wagner, para que intervenha junto ao Prefeito de Camaçari Luiz Carlos Caetano, para a cessação das ameaças que os correligionários dele vêm fazendo à jornalista Ana Maria Mandim, que é hostilizada pela independência do noticiário e das opiniões do jornal Jauá Abre o Bico, publicação quinzenal que ela fundou há um ano e meio e que tem uma tiragem de 3 mil exemplares, distribuídos gratuitamente numa cidade que conta com 5 mil habitantes. O Prefeito Caetano e seus partidários passaram a hostilizar a jornalista depois que o jornal denunciou irregularidades no processo eleitoral do dia 7 e na gestão da associação de moradores local. Caetano levou à vitória o seu candidato e agora postula em seu partido, o PT, a inclusão de seu nome entre os candidatos à sucessão de Wagner. Ana Maria Mandim é originária do Rio de Janeiro, onde trabalhou no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, e estava radicada em São Paulo há anos. Como o 26

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seu automóvel ainda tem placa de São Paulo, os autores das ameaças a hostilizam com frases como “Vamos te expulsar para São Paulo”. O apelo ao Governador

A mensagem da ABI ao Governador Jaques Wagner, idêntica, em essência, à enviada ao Prefeito Caetano, tem o seguinte teor: “A Associação Brasileira de Imprensa encarece a intervenção de Vossa Excelência junto ao Prefeito de Camaçari, seu correligionário Luiz Carlos Caetano, visando à cessação das ameaças à nossa companheira jornalista Ana Maria Mandim, editora do jornal Jauá Abre o Bico, a qual vem sofrendo hostilidades por partidários seus pela independência do noticiário e das opiniões da publicação. Esses constrangimentos caracterizam violação da liberdade de imprensa e de expressão, bens jurídicos com que o seu partido está historicamente comprometido. Atenciosamente, Maurício Azêdo. Presidente da ABI.”

O direito de resposta, um tema em discussão Tramitam na Câmara dos Deputados 12 projetos de lei que visam a regular a matéria. O autor da ação que revogou a Lei de Imprensa, Miro Teixeira (PDT-RJ), considera desnecessária a regulamentação legal da matéria. Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou em 2009 a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67), por considerá-la inconstitucional, o direito de resposta de quem se sente ofendido por veículos de comunicação ficou sem regulamentação específica. As questões relacionadas ao tema passaram a ser decididas pela Justiça comum, que julga cada caso com base na Constituição, no Código Civil e em decisões já proferidas por tribunais. Atualmente, a Constituição estabelece apenas que o direito de resposta deve ser proporcional ao agravo e ensejar indenização por dano material, moral ou à imagem. Na Câmara dos Deputados tramitam pelo menos 12 projetos de lei que tratam do direito de resposta ou de assuntos relativos à liberdade de imprensa. Autor de uma das propostas (PL 3523/12), o Deputado André Vargas (PT-PR) defende a regulamentação. Na opinião dele, o direito de resposta configura uma “cláusula fundamental” para a democracia e a proteção da imprensa livre. “É comum pessoas da imprensa atacarem personalidades e instituições e não serem obrigadas a dar o contraditório. Depois é comprovada a inverdade, mas aí já passou”, observa o parlamentar. Considera o Deputado André Vargas que o direito deve ser garantido o mais rapidamente possível e a resposta deve ganhar o mesmo espaço da ofensa. “Tem que ser dado do mesmo tamanho, na primeira página, se foi em capa de revista, ou no editorial, por exemplo, no mesmo espaço onde a honra foi atacada”, acrescentou. Autor da ação que resultou na revogação da Lei de Imprensa, o Deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) tem opinião contrária à de André Vargas. Ele considera que não há qualquer lacuna a ser preenchida e uma nova regulamentação do direito de resposta apenas cercearia a liberdade de imprensa. “A regulamentação beneficiaria apenas as autoridades e pouco influenciaria a vida do cidadão comum”, entende Miro. “Quando se fala de direito de resposta, você fala de autoridades privilegiadas que não gostam da crítica. Para fiscalizar essas autoridades, o povo conta com a imprensa. Sou contrário a qualquer iniciativa que possa significar inibição da imprensa”, afirma o deputado.

André Vargas diz que um rito sumário de direito de resposta fará com que o jornalismo seja praticado com mais responsabilidade no Brasil. Os donos dos veículos, diz, ficariam imunes aos interesses de grupos políticos. Para Miro Teixeira basta o que está definido na Constituição, além de outras disposições passíveis de aplicação pelos juízes: “Qualquer autoridade pode convocar uma entrevista coletiva e dizer o que quiser. No entanto, o que elas buscam é o silêncio em torno do seu desempenho. Elas querem intimidar, inibir ”, completa. Na opinião da ABI, o direito de resposta, por ser uma garantia constitucional, carece de regulamentação, ainda que a Constituição o defina de forma “precisa e objetiva”. Segundo a ABI, ficariam de fora dessa regulamentação prazos de acolhimento, de recurso ao Poder Judiciário, a dimensão da retratação ou a reparação a ser concedida. A ABI lembra que no Estado do Rio de Janeiro o direito de resposta tem sido concedido pela Justiça em combinação com disposições do Código Civil (Lei nº 10.406/02), mas são raros os processos judiciais em que se reclama a resposta, porquanto há uma preocupação dos veículos de comunicação em evitar a divulgação de informações e opiniões que suscitem a invocação do direito de resposta. Além disso, os veículos dão acolhida aos pedidos de retificação, exatamente para evitar o questionamento judicial, afirma. Contrário à utilização do Código Civil ou do Código Penal no processo, o Presidente da Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj, Celso Schröder, defende a elaboração de uma nova Lei de Imprensa, desde que respeite o cidadão e a liberdade de expressão: “As punições com base no Código Civil ou no Código Penal trazem penalidades que já estão banidas nos países democráticos”, observa. Uma nova lei sobre a matéria, continua Schröder, não cercearia a liberdade de imprensa. Pelo contrário, protegeria os cidadãos do erro, da maledicência e dos equívocos cometidos pelos jornais. No entendimento da ABI, uma eventual regulamentação favoreceria principalmente os ocupantes de cargos públicos, “cuja atuação é objeto de permanente acompanhamento pelos veículos de comunicação”.


Mais uma da Justiça Eleitoral: a prisão do Diretor do Google Como em outros episódios, o exagero veio do Tribunal Eleitoral de Mato Grosso do Sul. Em declaração ao portal Imprensa, no começo da noite de 26 de setembro, a ABI condenou a prisão do DiretorGeral do Google no Brasil, Fábio José da Silva Coelho, efetuada pela Polícia Federal de São Paulo horas antes por determinação do Juiz Flávio Saad Perón, da 35ª Zona Eleitoral de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. Além de mandar prender o diretor do Google, o Juiz Perón determinou a retirada de vídeos considerados ofensivos pelo candidato a Prefeito de Campo Grande Alcides Bernal. A ABI considerou ilegal a prisão de Fábio Coelho, que, como diretor do Google, não teve qualquer intervenção na divulgação das supostas ofensas, já que esse site de buscas apenas veiculou no You Tube mensagem de responsabilidade de terceiros. Quanto a estes, sustentou a ABI, não caberia qualquer medida restritiva da liberdade individual, nem da liberdade de informação, em respeito à Constituição da República. Alegou o Juiz Perón que sua ordem de prisão, expedida no dia 20, assim como a de retirada do vídeo, não poderia ser descumprida pelo Google. “Se a cada pessoa fosse dado escolher entre cumprir ou não uma determinação judicial que legalmente lhe foi imposta – justificou –, a nossa sociedade viraria um caos.” O Google recorreu da decisão, mas o Juiz Amaury da Silva Kublinski, do TRE de Mato Grosso do Sul, indeferiu a apelação. A prisão do Diretor do Google foi divulgada pela própria Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, que indicou a origem da ordem, partida do TRE de Mato Grosso do Sul, e sua motivação – crime de desobediência previsto no Código Eleitoral. Informou a Polícia Federal que, por se tratar de crime de menor potencial ofensivo, o Diretor do Google seria liberado após assinar o compromisso de comparecer à Justiça.

Tentativa de censura em Mariana, MG Editor de A Semana, Douglas Couto enviou carta à ABI, na qual denuncia tentativa de mordaça política imposta pelo prefeito da cidade. P OR P AULO C HICO

Períodos de disputa eleitoral costumam ser quentes. São comuns as batalhas judiciais e a troca de acusações entre políticos. O clima, no entanto, esquentou além da conta na cidade mineira de Mariana, onde o candidato à reeleição pelo PTB, o Prefeito Roberto Rodrigues, da coligação “Todos Juntos por Mariana”, entrou na Justiça para tentar impedir a circulação do jornal A Semana. Na ação cautelar, os advogados do chefe do Executivo municipal alegaram que a publicação semanal, cuja distribuição é gratuita, “influencia negativamente a candidatura do atual Prefeito”. Eles pediram a “suspensão do jornal até a data das eleições”. Em decisão, no dia 5 de setembro, o juiz da 171ª Zona Eleitoral de Mariana, Frederico Esteves Duarte Gonçalves, negou o pedido, destacando a revogação “há tempos” do AI-5 – numa referência ao Ato Institucional emitido pelo regime militar nos anos seguintes ao golpe militar de 1964, com a institucionalização da censura como prática do Estado. “Tanto na primeira quanto na segunda instância, ou seja, na Justiça de Mariana e na Corte do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais/TRE-MG, foi negado o pedido e o processo foi arquivado, considerando que o próprio Judiciário reconheceu que procedemos de maneira isenta com a cobertura eleitoral. Isso o magistrado expressou na sentença, afirmando que, ao analisar as edições, nada viu que pudesse justificar tão drástica medida. Segundo ele, fora concedido espaço ‘equivalente’ aos candidatos, o que revelou o intento jornalístico do periódico e seu comprometimento com a notícia, e não com uma ou outra facção política”, contou Douglas Couto, jornalista responsável por A Semana, em entrevista concedida ao Jornal da ABI. A batalha judicial entre o Prefeito candidato à reeleição e a publicação, que tem grande repercussão na cidade, foi destaque das edições 441 e 442. Na primeira delas, que circulou de 13 a 19 de setembro, foi editada ampla reportagem sobre o caso, além do contundente editorial ‘Quem tem medo da verdade?’, texto do qual é possível destacar o seguinte trecho: “Temos, diante de nossos olhos, uma oportunidade de ouro: a de colocar em pratos limpos quem é democrata de fato e quem usa a democracia como bandeira de conveniência. Em franco ataque à liberdade de imprensa, o nosso inexperiente Prefeito de Mariana, Roberto Rodrigues, há apenas seis meses no cargo, demonstra a sua verdadeira face ao retirar da gaveta o seu chicote para tentar trazer à tona a face mais cruel nos anos de chumbo: a censura”. Na edição seguinte, com data de 20 a 26 de setembro, A Semana voltou a tratar do tema no editorial Perda de Tempo. “Ao invés de colocar o seu plano de governo

na rua, o Prefeito de Mariana, Roberto Rodrigues, candidato à reeleição pelo PTB, preferiu abrir uma guerra contra o jornal. Lançou uma campanha difamatória inútil, espalhando folhetos com informações falsas. Pura perda de tempo. Essa estratégia de campanha, feita por meio de panfletos, é bem a cara de quem está à beira do desespero. No mês passado, tentaram difamar um candidato com calúnias em uma folha espalhada pela cidade. O que virou? Caso de polícia, crime eleitoral, com flagrante, registro de ocorrência e muita sujeira nas ruas”. Douglas conta como foi o clima eleitoral na cidade. “De fato houve uma série de abusos e desrespeitos no processo eleitoral em Mariana. Prova disto é a avalanche de processos judiciais no período. Foram cerca de 45, que chegaram ao TREMG e outros tantos julgados e arquivados na Comarca. Alguns casos, mais graves, como denúncia de compra de votos, abuso de poder econômico e fraude em pesquisa eleitoral, ainda estão sendo investigados e podem resultar em punição séria. Temos que aguardar.” O Editor de A Semana chegou a enviar documento à ABI denunciando a perseguição contra a publicação, por ação de políticos e por membros do judiciário. “Venho comunicar a essa entidade de classe as tentativas de censura. (...) “O órgão de imprensa apenas veiculou o que, verdadeiramente, é notícia na cidade. Não inventou nada. De mais a mais, a imprensa, que tem, ao meu exame, colaborado decisivamente para a democracia neste País, não tem que se isentar de noticiar assuntos que, virtualmente, sejam do desagrado de uma ou de outra pessoa. Críticas são inerentes ao jogo democrático”, diz trecho da carta. Com tiragem média de 5 mil exemplares, A Semana recebeu o apoio de diversas entidades. Em nota, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, felicitou o jornal pela “vitória contra o autoritarismo do Prefei-

to”, que, segundo ele, “constitui vitória não só do veículo em questão, mas da causa da liberdade de imprensa no País”. A Federação Nacional dos JornalistasFenaj, que reúne os sindicatos de jornalistas de todo o País, também foi informada da tentativa de censura. “A Fenaj e seus sindicatos filiados se posicionam sempre a favor da liberdade de expressão e de imprensa, fazendo a defesa dos profissionais jornalistas”, destacou nota firmada pela Vice-Presidente Maria José Braga. Pela Associação Nacional dos Jornais-ANJ, o Diretor de Comunicação, Carlos Müller, informou que comunicaria o fato à Comissão de Liberdade de Expressão da entidade para providências cabíveis. Apesar da pressão política, e graças ao apoio de entidades representativas do setor e com a devida garantia da Justiça, Douglas Couto afirma que o jornal segue em sua rota de independência editorial. “De verdade, não tivemos que fazer qualquer alteração neste sentido. Pelo fato de eu ter tido experiência na grande imprensa, assumi a edição de A Semana com o compromisso de aplicar em Mariana a postura profissional adotada na capital. Acredito que isso tenha assustado alguns políticos aqui do interior, acostumados a pagar por manchetes elogiosas ou por matérias positivas para sua imagem. Esse tipo de jornalismo não nos atende”, afirmou. Como definiu o editorial de uma das mais recentes edições de A Semana, o papel da imprensa é, mais do que informar, provocar a reflexão. “Quando damos notícia, cuidamos para que ela tenha conteúdo suficiente, de maneira que o leitor forme a sua própria opinião. Nosso papel aqui é fazer oposição, sim, àqueles que querem mesmo é o povo cada vez mais burro e influenciável. Recorremos ao saudoso Millôr Fernandes para lembrá-lo, Senhor Prefeito, que ‘jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados’. Gostar da gente é opção, respeitar-nos é um dever. Democracia é isto!”.

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DIREITOS HUMANOS

Emoção e muitas lágrimas na 62ª Caravana da Anistia Quase 40 anos após serem torturadas, Maria Célia Lundberg e Maria Cristina Lyra narram sob choro convulsivo as sevícias que sofreram durante a ditadura militar. CLÁUDIA SOUZA

P OR C LÁUDIA S OUZA

Uma sessão marcada pela forte emoção de duas vítimas de torturas durante a ditadura militar , Maria Célia de Melo Lundgren, que vive na Suécia, e Maria Cristina da Costa Lyra, seviciada barbaramente quando tinha 19 anos, levou às lágrimas os que assistiram à 62ª Caravana da Anistia, realizada em 8 de outubro no Armazém da Utopia, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, dentro da programação do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro. A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça julgou e deferiu então os requerimentos de Maria Célia, de Maria Cristina e de Daniel Carvalho de Souza, filho de Herbert de Souza, o Betinho. Na ocasião foi lançado o documentário Eu Me Lembro, dirigido por Luiz Fernando Lobo, e produzido por Tuca Moraes, sobre as ações do projeto Caravanas da Anistia nos últimos cinco anos. O documentário mostra como a luta contra a ditadura atravessou gerações e ainda é latente, não se restringindo ao passado e ao esquecimento. Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia e Secretário Nacional de Justiça, Valquíria Barbosa, Diretora do Festival do Rio, e Luiz Fernando Lobo, que é Presidente do Instituto Ensaio Aberto, formaram a primeira mesa do evento. Valquíria e Lobo agradeceram a oportunidade de sediar a 62ª Caravana da Anistia no âmbito de debates e atividades promovidos pelo Festival do Rio. Disse Valquíria que um país que se pretende forte precisa preservar a propriedade intelectual, bem maior daqueles que trabalham com a cultura.“Militei durante muitos anos na época da ditadura e reconheço vários companheiros na platéia. No Festival do Rio não fazemos apenas cinema de entretenimento, mas sim um espaço de discussão em torno da liberdade de expressão e da democracia no Brasil e no mundo”. Paulo Abrão saudou os membros da mesa e os presentes e destacou a oportunidade de realizar a Caravana da Anistia no Festival do Rio como forma de confrontar o processo de invisibilidade das vítimas da ditadura e empoderar a sociedade na luta contra o esquecimento. “Durante muitos anos, e de modo autoritário – disse –, se pretendeu impor o esquecimento à sociedade brasileira sobre as graves violações aos direitos humanos. Essa luta em favor da construção da verdade, do reconhecimento da memória enquanto elemento constitutivo da nacionalidade do povo brasileiro é a luta pelas liberdades e a democracia. Considero o Armazém da Utopia um espaço de resistência dentro da cidade 28

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Maria Cristina da Costa Lyra: “A dor física foi ultrapassada por uma grande dor moral que acompanhou alguns de nós por toda a vida”.

do Rio de Janeiro. A ditadura não sabe conviver com o mundo das artes, da cultura e da criatividade”. O Secretário Nacional de Justiça ressaltou o empenho da Caravana da Anistia em construir “a idéia de que o brasileiro, a despeito de trabalhos reconhecidos de muitos antropólogos, não é apenas um homem cordial, um homem ou uma mulher do jeitinho, mas um homem e uma mulher que sabem resistir e lutar contra um ambiente ditatorial capaz de destruir os nossos irmãos”. Choro e emoção

Após essas intervenções, os Conselheiros da Comissão da Anistia Marina da Silva Steimbruch, Luciana da Silva Garcia, Carolina de Campos Melo, Prudente Melo e, Carol Proner deram início ao julgamento dos três requerimentos. O primeiro caso a ser analisado foi o de Maria Célia de Melo Lundberg, graduada em Educação Física em 1966 e em Geografia em 1971 pela Universidade Católica de Minas Gerais. Maria Célia, que trabalhou como professora no Município de Sabará e era militante da Aliança Libertadora NacionalALN, foi presa em Belo Horizonte, em 7 de janeiro de 1971, juntamente com seu irmão Hervê Melo. Na prisão sofreu torturas e violências sexuais praticadas por agentes do Estado. Buscou exílio na Suécia e não retornou ao Brasil. Atualmente reside em Lund, Ejdervagen, Suécia. Com o eventual deferimento da anistia, aspira a voltar a viver no Brasil. Muito emocionada, Maria Célia falou sobre os momentos dramáticos que enfrentou ao longo de quatro décadas: “Difícil é descrever o que senti nestes últimos

dias, antes de chegar da Suécia. É como um turbilhão de sentimentos e idéias confusas. Uma ferida aberta e profunda. O que mais fiz na vida foi tentar esquecer, mas as memórias voltam e me colocam cara a cara com o sofrimento do passado, que deixou marcas principalmente no corpo, mas também na alma”. Contou Maria Célia que em 1971 foi presa, torturada e violentada por seu vínculo com a ALN. “Nunca participei de ações armadas, mas sim dando aulas de alfabetização para adultos em Belo Horizonte. Vivi longe de minha família na condição de exilada, primeiro no Chile, depois na Suécia, enfrentando uma sociedade, língua e costumes diferentes. Fiquei impedida de manter contato e dar notícias sobre as amarguras, as tristezas e as angústias de uma exilada. Perdi meu referencial e os anos de estudo e de trabalho no Brasil foram deixados para trás”. A brutalidade da tortura afetou gravemente a saúde de Maria Célia, que ainda hoje sofre as seqüelas: “Por todo esse tempo lutei imensamente com problemas de saúde que tinha e ainda tenho em conseqüência da tortura. Lembro-me ainda de quando um médico sueco, após longo tratamento ginecológico ao qual fui submetida, diagnosticou que eu provavelmente nunca poderia ter filhos por causa das seqüelas do estupro na prisão, que resultou em um aborto espontâneo e difícil. Mas, casada com o sueco Lundberg, tive dois filhos e hoje sou avó. Tenho uma netinha”. Por insistência de amigos e da família, Maria Célia deu entrada no requerimento para a anistia: “Estes terroristas, torturadores da ditadura, continuaram a receber os seus salários sem ter de apresentar pedido ou requerimento. Nunca precisaram ser julgados pelas torturas físicas e psíquicas que praticaram contra tantos brasileiros jovens e velhos, cujo único ideal era o sonho de fazer um Brasil livre, democrático e justo, onde o direito da expressão livre seria o direito do cidadão. Os criminosos precisam ser punidos, mas não com a mesma desumanidade que impuseram a nós, e sim dentro dos direitos humanos”. O segundo requerimento analisado pela Comissão de Anistia foi o de Maria Cristina da Costa Lyra, que participou do movimento estudantil em Brasília e militou no Rio de Janeiro junto ao Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Na época a jovem foi designada para trabalhar como operária. Presa em 1970, foi vigiada pelas agências de informação durante o regime militar. Tentou suicídio duas vezes em virtude do trauma provocado pelas violentas sessões de tortura. Entre lágrimas, Maria Cristina falou sobre o período.

“Pertenço a uma geração que sonhou com um mundo melhor e lutou de diferentes maneiras por uma sociedade justa, igualitária, um Brasil democrático. Essa luta, para muitos de nós, culminou na prisão, onde conhecemos a crueldade, a brutalidade, a tortura. Um jogo perverso no qual nem sempre soubemos agir com a astúcia necessária. Muitas vezes, diante das armadilhas, oscilamos entre a astúcia e a ingenuidade. Muitas vezes fomos coagidos a agir contra as nossas vontades ao sermos colocados diante de cruéis escolhas de Sofia”. Citando a escritora Clarice Lispector, Maria Cristina ressaltou a importância do espírito de solidariedade que a incentivou a prosseguir, apesar do sofrimento: “a dor física foi ultrapassada por uma grande dor moral que acompanhou alguns de nós por toda a vida. Mas, apesar de todos os infortúnios, vivemos, muitos de nós, momentos de grande esperança e motivo de celebração ao encontrarmos, até no ambiente hostil do cárcere, seres capazes de exercer a solidariedade, a bondade, a compaixão, o amor ao próximo. Até mesmo através de uma palavra, um gesto, um olhar que nos deram força, que nos prestaram socorro. Como disse Clarice Lispector, talvez seja uma das experiências humanas das mais importantes: a de pedir socorro e, por pura bondade e compreensão do outro, este socorro ser dado”. No final do seu depoimento, Maria Cristina homenageou as pessoas que a acolheram nos momentos de dor: “Quero expressar minha gratidão a todos os que me socorreram, que me deram alento e esperança e fortaleceram a minha vontade de viver, em especial aos médicos do Hospital Souza Aguiar que me atenderam, às enfermeiras do Hospital Central do Exército, que cuidaram de mim e contaram histórias para eu dormir. Às minhas queridas companheiras do hospital-prisão que me deram tanto amparo, força e alegria: Abigail Paranhos, in memoriam, Maria Dalva Leite de Castro, Regina Maria Toscano e muito especialmente o Dr. José Luis Campinho Pereira, in memoriam, e o Capitão Moraes, que souberam ouvir os pedidos de socorro daquela garota de 19 anos, e, por pura bondade, compreensão e compaixão, estenderam a mão. A eles, a minha mais profunda gratidão”. O terceiro e último julgamento da 62ª Caravana da Anistia foi o de Daniel Carvalho de Souza, filho de Irles Carvalho e Herbert José de Souza, o Betinho, irmão do cartunista Henfil. Nascido em São Paulo, em 23 de outubro de 1965, Daniel exilou-se com os pais em Cuba, em 1968. Voltou ao Brasil em 1969 na clandestinidade sem contato com familiares e amigos. Até os cinco anos de


CLÁUDIA SOUZA

MARIA C RISTINA DA C OSTA LYRA

“A dor moral nos acompanhou por toda a vida”

MARIA C ÉLIA DE MELO L UNDGREN

“Cara a cara com o sofrimento do passado” capítulo da tortura e da repressão. Aqui volto porque quero e espero fechar este capítulo doloroso para mim e minha família, que também sofreu com o que aconteceu comigo. Meu irmão, Hervê, aqui presente, foi torturado e eu ouvi os seus gritos. Eu era retirada da pequena cela onde estava para o quarto de trabalho dos policiais, onde presenciei nomes como o de Dan Mitrione, que foi para o Uruguai, provavelmente com as mesmas incumbências de tortura. Quero sentir-me, juntamente com meus filhos e com meu marido, livre e sem medo de sentir represálias ao chegar e morar no Brasil. O reconhecimento do Estado pelos crimes cometidos durante a ditadura é importante para mim. Por insistência de amigos e de minha família brasileira e sueca entrei com este processo. Na realidade, originalmente, eu não queria remexer neste assunto, pois as recordações me reabrem a chaga profunda do mal que fizeram a mim. Nenhuma indenização pode ressarcir nem uma fração milésima do mal do terrorismo que o Estado brasileiro causou a mim e a muitos brasileiros, uns que até mesmo foram mortos. Esses terroristas, torturadores da ditadura continuaram a receber os seus salários sem ter que apresentar pedido ou requerimento para isso. Nunca precisaram ser julgados pelas torturas físicas e psíquicas que praticaram contra tantos brasileiros jovens e velhos, cujo único ideal era o sonho de fazer um Brasil livre, democrático e justo, onde o direito da expressão livre seria o direito do cidadão. Muitos desses criminosos foram promovidos e até hoje continuam vivendo com suas regalias, suas mordomias. Espero que a tortura física ou psíquica nunca, jamais seja usada contra nenhum brasileiro ou qualquer ser humano, independente de sua religião, grupo étnico ou ideal político. Assim, para que a justiça seja feita, não podemos esquecer que esses criminosos precisam ser punidos, mas não com a mesma moeda, não com a mesma desumanidade que impuseram a nós, mas punidos e castigados dentro dos direitos humanos.”

Como disse Clarice Lispector, talvez seja uma das experiências humanas das mais importantes: a de pedir socorro e, por pura bondade e compreensão do outro, este socorro ser dado. Talvez possa valer a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Quero expressar minha gratidão a todos aqueles que me socorreram, me deram alento e esperança, fortaleceram a minha vontade de viver, em especial aos médicos do Hospital Souza Aguiar que me atenderam, às enfermeiras do Hospital Central do Exército, que cuidaram de mim e contaram histórias para eu dormir. Às minhas queridas companheiras do hospital-prisão que me deram tanto amparo, força e alegria: Abigail Paranhos,in memoriam, Maria Dalva Leite de Castro, Regina Maria Toscano e muito especialmente ao Dr. José Luis Campinho Pereira, in memoriam, e ao Capitão Moraes, que souberam ouvir os pedidos de socorro daquela garota de 19 anos, e, por pura bondade, compreensão e compaixão, estenderam a mão. A eles a minha mais profunda gratidão.”

DANIEL CARVALHO DE SOUZA

“Filho de exilado não tem muita história” “O meu caso é muito diferente e, digamos, mais leve em relação aos dois anteriores apreciados nesta sessão. Na condição de filho de exilado a gente não tem muita história. Vamos aonde os pais vão. Vivíamos na clandestinidade, com nome falso. Eu não sabia o nome certo da minha mãe e do meu pai. E não sabia que o meu nome era falso. Passei o tempo todo mudando de casa, de escola, de amigo. Era uma época em que não havia Twitter e Facebook. Você simCLÁUDIA SOUZA

Chorando muito e levando às lágrimas os que ouviam o seu relato, ora amparada para poder prosseguir, Maria Célia de Melo Lundgren fez este depoimento diante da Comissão da Anistia: “Difícil é descrever o que senti nestes últimos dias, antes de chegar da Suécia. É como um turbilhão de sentimentos e idéias confusas. Uma ferida aberta e profunda. O que mais fiz na vida foi tentar esquecer, mas as memórias voltam e me colocam cara a cara com o sofrimento do passado, que deixou marcas principalmente no corpo, mas também na alma. Em 1971 fui presa, muito torturada e violentada. Minha atividade foi pertencer à ALN. Nunca participei de ações armadas, mas sim dando aula de alfabetização para adultos analfabetos em Belo Horizonte. Depois tive uma trajetória difícil. Viver longe da família como exilada, primeiro no Chile, depois na Suécia, enfrentando uma sociedade, língua e costumes diferentes. Como venho de uma família muito unida do interior mineiro, fiquei impedida de manter contato e dar notícias sobre as amarguras, as tristezas e as angústias de uma exilada. Vivi em um desafio e, como muitos outros brasileiros exilados, tive de refazer toda a minha vida. Perdi meu referencial e os anos de estudo e de trabalho no Brasil foram deixados para trás. Sem nada a fazer e sem nada a ser aproveitado. Por todo esse tempo lutei imensamente com problemas de saúde que tinha e ainda tenho em conseqüência da tortura. Lembro-me ainda de quando um médico sueco, após um longo tratamento ginecológico ao qual fui submetida, explicoume que eu provavelmente nunca poderia ter filhos por causa das seqüelas do estupro na prisão, que resultou em um aborto espontâneo e difícil. Mas, casada com o sueco Lundberg, depois de vários anos, um milagre aconteceu: descobri que estava grávida. Tivemos dois filhos e hoje sou avó. Tenho uma netinha. De muitas formas tenho me realizado na Suécia, embora tenha sido um caminho de muita luta constante e dura. No entanto, sinto que não pude fechar o

Também muito emocionada, Maria Cristina da Costa Lyra fez este relato: “Pertenço a uma geração que sonhou com um mundo melhor e lutou de diferentes maneiras por uma sociedade justa , igualitária, um Brasil democrático. Essa luta para muitos de nós culminou na prisão onde conhecemos a crueldade, a brutalidade, a tortura. Um jogo perverso e nem sempre soubemos agir com a astúcia necessária. Muitas vezes, diante das armadilhas, oscilamos entre a astúcia e a ingenuidade. Muitas vezes fomos coagidos a agir contra as nossas vontades ao sermos colocados diante de cruéis escolhas de Sofia. A dor física foi, então, ultrapassada por uma grande dor moral que acompanhou alguns de nós por toda a vida. Mas, apesar de todos os infortúnios, vivemos, muitos de nós, momentos de grande esperança e motivo de celebração ao encontrarmos, até no ambiente hostil do cárcere, seres capazes de exercer a solidariedade, a bondade, a compaixão, o amor ao próximo. Até mesmo através de uma palavra, um gesto, um olhar que nos deram força, que nos prestaram socorro.

plesmente deixava para trás um pequeno universo e seguia adiante. No Brasil era um pouco mais fácil, mas no exterior, tudo se perde. O que ficou daquela época, talvez a parte mais complicada, é você passar 15 anos da sua vida sem pertencer àquele lugar. Eu sabia que algum dia, independente de onde eu estivesse, teria de sair dali. Ao mesmo tempo, mantínhamos uma relação muito forte com o Brasil, com a música brasileira, a culinária brasileira. Quando chegava feijão-preto na Europa, saía logo uma feijoada. O disco novo do Chico Buarque era enviado para nós ouvirmos. É uma situação na qual você quer estar e não pode, não cria raízes, vínculos, não cria nada. Você tem apenas uma mala pronta para a qualquer momento fugir. Cheguei no Brasil em 1979, tirei nota 10 nas provas de Inglês e Matemática e nota zero nas provas de Português, História e Geografia. Era assim que a gente chegava. Você precisa reaprender a viver. Hoje eu trabalho em comunicação por conta desta educação diferenciada baseada na luta pelo Brasil, que hoje em dia, com a Comissão de Anistia, está reescrevendo a sua história da forma correta, sem deixar o passado cair no esquecimento.”

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DIREITOS HUMANOS idade usou o nome falso de Mariano. Aos seis anos, seguiu com a mãe para o Chile, onde permaneceu durante 28 dias e, em seguida, partiu para a Suécia. O retorno ao Brasil aconteceu em 1979, após a anistia. Daniel passou a infância e parte da juventude na clandestinidade em virtude da perseguição política a seus pais, já anistiados pela Comissão do Ministério da Justiça. Ele recordou a angústia dos 15 anos vividos na clandestinidade e a ausência de perspectiva em relação ao futuro: “O meu caso é muito diferente dos dois anteriores apreciados nesta sessão. Na condição de filho de exilado a gente não tem muita história. Vamos aonde os pais nos levam. Vivíamos na clandestinidade com nome falso. Eu não sabia os nomes certos da minha mãe e do meu pai e também não sabia que o meu nome era falso. Passei o tempo todo mudando de casa, de escola, de amigo. A única certeza era de que algum dia, independente de onde eu estivesse, teria de sair dali”. Apesar de viver em outros países, a família Souza cultivava laços estreitos com o Brasil: “Mantínhamos uma relação muito forte com a música brasileira, a culinária brasileira. Quando chegava feijão-preto na Europa, saía logo uma feijoada. Quando Chico Buarque lançava um novo disco, era enviado para nós. É uma situação na qual você quer estar e não pode, não cria raízes, não cria vínculos, não cria nada. Você tem apenas uma mala pronta para sair dali a qualquer momento”. O retorno ao Brasil foi uma experiência marcada pelo reaprendizado, descreve Daniel: “Quando voltei ao Brasil em 1979, tirei nota 10 nas provas de Inglês e Matemática e nota zero nas provas de Português, História e Geografia. Você precisa reaprender a viver. Se hoje eu trabalho em comunicação é por conta desta educação diferenciada, baseada na luta pelo Brasil, que hoje em dia, com a Comissão de Anistia, está reescrevendo a sua história da forma correta, sem deixar o passado cair no esquecimento”. Paulo Abrão salientou que a concessão de anistia aos filhos dos perseguidos se justifica por eles terem enfrentado situações de privação de seus direitos fundamentais. O documentário

Logo após a sessão da Caravana da Anistia, o público foi convidado a participar do lançamento de Eu me Lembro, que apresenta a luta dos perseguidos políticos por reparação, memória, verdade e justiça através de entrevistas, imagens de arquivo da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, incluindo julgamentos de processos de anistia, como os de Glauber Rocha, José Celso Martinez e Carlos Marighella, além de acervos pessoais. O documentário recebeu recursos da primeira chamada pública do projeto Marcas da Memória, que reúne depoimentos, sistematiza informações, fomenta e financia ações culturais relacionadas à anistia, como exposições e documentários. Produzido pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade-Iets, organização da sociedade civil de interesse público-oscip do Rio de Janeiro, o projeto foi produzido entre 2010 e 2012. 30

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Justiça altera atestado de óbito de Herzog: ele foi assassinado Cai por terra, quase 40 anos depois, a farsa montada pelo Doi-Codi de São Paulo O Juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, determinou em 24 de setembro a retificação no atestado de óbito do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do Doi-Codi de São Paulo, em 25 de outubro de 1975. A partir da decisão da Justiça, no atestado de óbito de Herzog deverá constar que “a morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos na dependência do 2º Exército em SP”. Como se trata de uma decisão em primeira instância a Promotoria de Justiça, contrária à medida, poderá recorrer. Em seu despacho, reproduzido pelo jornal O Estado de S.Paulo, o Juiz Márcio Martins Bonilha Filho exalta a ação da Comissão da Verdade, destacando que “conta com respaldo legal para exercer diversos poderes administrativos e praticar atos compatíveis com suas atribuições legais, dentre as quais recomendações de adoção de medidas destinadas à efetiva reconciliação nacional, promovendo a reconstrução da História”. Preso em 25 de outubro de 1975, Herzog foi levado para ser interrogado no Doi-Codi do 2º Exército, na capital paulista. Ele foi torturado e morto na cela por agentes da ditadura militar (1964-1985), mas a versão oficial foi de que cometeu suicídio, enforcando-se em sua cela. No laudo assinado pelo médico-legista Harry Shibata está registrado que Herzog morreu “por asfixia mecânica”, explicação técnica para enforcamento. A determinação da Justiça atende a uma solicitação da Comissão Nacional da Verdade e foi assinada pelo coordenador do órgão, Ministro Gilson Dipp. O pedido foi formulado por Clarice Herzog, viúva do jornalista. Ao jornal O Estado de S.Paulo o advogado e membro da Comissão da Verdade José Carlos Dias disse que a decisão da Justiça terá grande repercussão, porque existem muitos casos semelhantes ao de Herzog: “Nós já estamos estudando vários outros casos para encaminhar à Justiça. A decisão de agora confirma que estamos no rumo certo”. (José Reinaldo Marques)

Executado em 1973 no Araguaia, Maurício Grabois ganha cidadania do RJ Proposta pelo Deputado Paulo Ramos (PDT), a homenagem integrou as comemorações do centenário do líder militar da Guerrilha do Araguaia. Morto na Guerrilha do Araguaia em 25 de dezembro de 1973, o ex-Deputado Maurício Grabois, nascido em São Paulo, é agora cidadão do Estado do Rio de Janeiro, por ato da Assembléia Legislativa do Estado, que aprovou proposta com esse fim formulada pelo Deputado Paulo Ramos (PDT). A entrega do diploma de Cidadão, em sessão solene, no dia 2 de outubro, integrou as comemorações do centenário de nascimento de Grabois, que foi deputado à Assembléia Nacional Constituinte de 1946 e era o comandante militar da Guerrilha do Araguaia quando foi aprisionado e executado pela tropa do Exército que o rendeu. À mesa de honra da sessão tiveram assento a filha de Grabois, Victoria Grabois, que é Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro; Elizabeth Silveira, diretora do Grupo; Suely Belato, Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade; a socióloga Maysa Santana, que foi aluna de Grabois no curso de Ciências Sociais da antiga Faculdade Nacional de FilosofiaFNFi, e Carlos Henrique Tibiriçá, Presidente da Fundação Maurício Grabois. A ABI fez-se representar no ato por seu Presidente, Maurício Azêdo, como homenagem a esse antigo associado: Grabois foi jornalista e editor na clandestinidade do jornal A Classe Operária, órgão do Partido Comunista Brasileiro-PCB, do qual ele se afastaria para fundar em 1962 o PCdoB, ao lado de João Amazonas e outros dissidentes do PC. Ao agradecer a manifestação da Assembléia e a iniciativa do Deputado Paulo Ramos, Victoria Grabois fez comovido relato sobre a vida do pai, que foi o primeiro parlamentar a ocupar a tribuna da

Assembléia Constituinte de 1946 e passou grande parte de sua existência na clandestinidade. Ela se emocionou ao relembrar que só conviveu com o pai durante a adolescência, e assim mesmo por pouco tempo. Assim como outros oradores, entre os quais dois sobrinhos netos de Grabois, Carlos Henrique Tibiriçá e Suely Belato, Victoria Grabois apontou a criação da Comissão Nacional da Verdade como resultante da luta de muitos anos de instituições da sociedade civil, como o Comitê Brasileiro pela Anistia e o próprio Grupo Tortura Nunca Mais. Ela reclamou a abertura dos arquivos da ditadura militar, para identificação dos agentes do Estado que mataram centenas de presos políticos, apuração das circunstâncias em que esses crimes foram cometidos, quais foram os mandantes e quais as vítimas. Sempre com forte emoção e indignação, Victoria Grabois lamentou a impunidade dos torturadores, como o Major Lício Augusto Maciel, atualmente reformado, que confessou num livro que matou seu irmão André Grabois, jovem comandante de um dos destacamentos da Guerrilha do Araguaia, e mais três guerrilheiros. Contou Victoria que numa audiência do processo criminal aberto contra ele por esses crimes, Maciel ofendeu a juíza e xingou o então Presidente Lula. Disse Victoria que ele deveria sair preso da audiência, mas nada lhe aconteceu. Em homenagem a Grabois, que era judeu, o coral da sociedade israelita Scholem Aleichem interpretou um hino da resistência judia ao nazismo, a canção Grandola, Vila Morena, senha para a deflagração da Revolução dos Cravos em Portugal, em 1974, e, encerrando a sessão, o hino A Internacional.


Mais que um prêmio, um símbolo A 34ª Edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos registra recorde de inscrições: apresentados 545 trabalhos. DIVULGAÇÃO

P OR M ARCOS S TEFANO

Quando a idéia de criar um prêmio de imprensa que denunciasse a repressão e carregasse o emblemático nome de Vladimir Herzog ganhou forma e finalmente se tornou possível no Brasil, ainda em 1978, participar dele era visto como um ato de coragem e um desafio ao Governo. O País estava sob as sombras da ditadura militar e a sociedade clamava por justiça e por liberdade. Ter um trabalho selecionado para disputá-lo era como fazer parte dessa História, aliás, escrevê-la. Passados mais de três décadas, o cenário nacional é outro. Hoje, a nação experimenta um regime democrático e não há cerceamento da informação. Mas concorrer ao troféu “Vlado Vitorioso” continua sendo tão importante e prestigiado quanto no passado. São inegáveis os avanços durante todo esse tempo, mas o clamor pela cidadania, pela justiça social e por direitos básicos continua e a premiação tornouse um ícone dessa luta. Mais do que uma lembrança, essa foi a certeza que marcou a divulgação dos vencedores da 34ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em São Paulo, no dia 10 de outubro. A recente instauração da Comissão Nacional da Verdade e a determinação judicial da correção do atestado de óbito de Vladimir Herzog, com o reconhecimento de seu assassinato pela repressão, deram ainda mais destaque ao anúncio dos vencedores nas nove diferentes categorias: Artes – ilustrações, charges, cartuns, caricaturas e quadrinhos –, Fotografia, Jornal, Internet, Rádio, Revista, Documentário para TV, Reportagem para TV e Especial, que engloba todas as mídias e neste ano teve como tema “Criança em situação de rua”. “Este ano, tivemos um recorde de inscrições, com 545 trabalhos. Há materiais de muita qualidade e chama a atenção o fato de os vencedores estarem espalhados por todo o País e serem tanto veteranos como jovens. Quer dizer, a geração mais antiga continua produzindo coisas relevantes, mas as novas estão indo pelo mesmo caminho”, analisa Ana Luísa Zaniboni Gomes, Diretora da empresa Oboré e uma das organizadoras do prêmio. A 34ª edição do prêmio foi organizada por onze instituições: ABI, Associação Brasileira de Jornalismo InvestigativoAbraji, Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil-Unic Rio, Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo- Eca-Usp, Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj, Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, Instituto Vladimir Herzog, Ordem dos Advogados do Brasil-Seção São Paulo, Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo e Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo. Essas entidades

Os ganhadores do 34º Prêmio Vladimir Herzog ARTES Defesa falha com as vítimas Fernando de Castro Lopes, do jornal Correio Braziliense, de Brasília, DF

ESPECIAL Filho da Rua Letícia Duarte, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre ,RS Menção honrosa - Direito à infância Cleomar Almeida, de A Redação, de Goiânia, GO A última sessão do júri do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos se reuniu no dia 10 na Câmara Municipal de São Paulo e o evento foi transmitido em tempo real pela internet.

tiveram a tarefa de analisar cada trabalho em um processo de avaliação que também trouxe novidades. Este ano, a avaliação foi realizada em duas etapas, o que qualificou ainda mais a escolha dos vencedores. Na primeira, observou-se a qualidade técnica e jornalística do material. Na segunda, valeu o ineditismo e a relevância para os direitos humanos e a democracia. Anúncio na praça

A preocupação de usar o prêmio como inspiração para os jovens jornalistas e para os estudantes é antiga entre as entidades que o promovem. Para fomentar ainda mais isso, na atual edição, ao fazer a inscrição de seu trabalho, o jornalista precisou desvelar seu processo de produção. Ou seja, escrever uma espécie de making off da matéria, contando como nasceu a pauta, como se deu sua apuração, de que forma foi feita a reportagem e como foi seu trabalho. Algo que, na opinião dos organizadores, pode dar mais elementos para se descobrir como é feita uma boa reportagem. “Estamos acostumados a ver o produto final e ignorar seu processo de construção. Essa apresentação não apenas dá uma nova visão ao júri, também incentiva a reflexão de quem tem contato com o material. E cada vez mais podemos ver que o jornalismo brasileiro continua pujante e com vitalidade, não restrito apenas às grandes empresas ou a um centro ou outro”, observa José Augusto Camargo, o Guto, Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, comentando a relação dos vencedores. Reconhecer a importância do trabalho e inspirar, também foram critérios usados para escolher a entrega do Prêmio Especial. Desde sua concepção, o Vladimir Herzog já previa homenagear profissionais por serviços relevantes à causa da democracia e da justiça social ou por suas carreiras, mas esta categoria só foi institucionalizada em 2009. Dessa vez, no entanto, dois nomes foram escolhidos para serem agraciados com a distinção. O primeiro é

o do jornalista, professor e escritor Alberto Dines, dono de uma carreira de mais de 60 anos em alguns dos principais veículos nacionais e criador do site Observatório da Imprensa, o primeiro noticiário de análise e crítica da cobertura da mídia. O outro é o do jornalista Lúcio Flávio Pinto, homenageado pelas denúncias que faz em seu Jornal Pessoal, em Belém, no Pará. Sem se intimidar com ameaças, processos e censura imposta pela Justiça paraense, ele mantém uma publicação independente e com cunho investigativo e de denúncia. A última sessão do júri do Prêmio Vladimir Herzog foi realizada nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo e transmitida em tempo real pela internet. Logo após, os representantes das entidades organizadoras deixaram o Palácio Anchieta e se dirigiram até uma praça ao lado para fazer o anúncio dos ganhadores. Foi uma forma de valorizar outra iniciativa, essa da Comissão Municipal da Verdade, que também se chama Vladimir Herzog, e da Câmara de Vereadores. Atualmente chamado de Praça da Divina Providência, esse espaço será reformado nos próximos meses e ganhará uma escultura “Vlado Vitorioso”, do artista Elifas Andreato, em bronze, medindo 2,2 metros de altura, e um mosaico reproduzindo a tela 25 de Outubro, conhecida como a “Guernica Brasileira”. Finalmente, no dia 13 de dezembro, aniversário do Ato Institucional número 5, será entregue renovada e renomeada como Praça Vladimir Herzog. “Esse é mais um passo nessa caminhada pela cidadania. Uma caminhada feita diariamente e da qual cada edição do prêmio faz parte. Não tenho dúvidas de que, por seu caráter e mensagem política, hoje o Vladimir Herzog é o principal prêmio do jornalismo brasileiro. Os ganhadores não recebem dinheiro nem são considerados melhores profissionais que os outros, mas ajudam a mudar o País e continuam a reescrever sua história”, afirma Nemércio Nogueira, Diretor do Instituto Vladimir Herzog.

FOTOGRAFIA O amor é o dom maior! Ame Francisco França, do Jornal da Paraíba, de João Pessoa, PB Menção honrosa Mutilado na guerra do crack Severino Silva, do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, RJ

INTERNET “Depois que comecei a estudar, não vejo mais grades”, diz preso de São Paulo que faz pedagogia Camila Rodrigues, do Uol Menção honrosa Um navio estacionado na porta de casa Yan Boechat, do IG

JORNAL Quando a ditadura entrou em campo Murilo Rocha, de O Tempo, de Belo Horizonte, MG Menção honrosa - Dossiê Curió Ismael Machado, do Diário do Pará, de Belém, PA

RÁDIO Crimes contra indígenas na ditadura Maíra Heinen, da Rádio Nacional da Amazônia, de Manaus, AM Menção honrosa - À espera de um lar Renata Colombo, da Rádio Gaúcha, de Porto Alegre, RS

REVISTA Especial Comissão da Verdade Débora Prado, da Caros Amigos, de São Paulo, SP Menção honrosa - Guarani-Kaiwá: O genocídio silencioso de um povo Sandra Alves, de O Mensageiro de Santo Antônio, de Santo André, SP

DOCUMENTÁRIO PARA TV Crimes da ditadura Conchita Rocha, da TV Brasil/EBC Menção honrosa - A mão de obra escrava urbana Bianca Vasconcelos, da TV Brasil/EBC

REPORTAGEM PARA TV Caso Rubens Paiva: Uma história inacabada Miriam Leitão e Claudio Renato, da Globo News Menção honrosa - Liberdade aprisionada Eliana Victorio, da TV Tribuna/Rede Bandeirantes, de Recife, PE

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DEPOIMENTO

DIVULGAÇÃO/MAURO VIEIRA /ZH

As revoluções de Sylvio Back Entre a ficção e a realidade, cineasta apela para médiuns na narrativa de seu novo documentário, O Contestado – Restos Mortais.

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te esquecida entre os grandes perrengues sociais que tumultuaram a Primeira República. Minha proposta neste filme é provocar o público. Fazê-lo pensar se deve ou não acreditar naquilo que vê. Eu faço um cinema moral que desconfia!”, diz. O Contestado – Restos Mortais, será lançado neste 2012 como celebração dos 100 anos simbólicos do conflito, completados em 22 de outubro, data do Combate do Irani. “Ainda que seja um antidocumentário – eu diria mais, um ‘docudrama’ – pela inédita presença do testemunho mágico, é nessa linguagem iconoclasta que deposito todas as minhas fichas no sucesso. De outro lado, em se tratando de um espetáculo, a imponderabilidade é a melhor e mais fiel companheira de uma obra de arte”, constata Sylvio Back. Sucesso ou fracasso de bilheteria? Qual será a resposta? Talvez algum médium de plantão possa antever...

Jornal da ABI – Sua primeira incursão na história da Guerra do Contestado ocorreu em 1971, com a direção do filme A Guerra dos Pelados. O que o levou a filmá-lo, naquela época?

Sylvio Back – Os anos 1960 foram uma década de fogo, brasa e cinzas, essas ainda hoje em trágica suspensão. Algo incontornável, fruto do golpe militar de 1964, cuja violência institucional sofri na própria carne, jornalista profissional que era e cineasta estreando no longa-metragem com Lance Maior em 1968, sendo eu denunciado por crime de opinião. Mas também foi o tempo de uma religiosa e surda radicalização político-ideológica: quem não se alinhasse ao regime vigente, estava contra e deveria ser execrado. Surgiam os primeiros arroubos da luta armada para derrubar a ditadura. Convicto de verdades que o cotidiano voraz acabou esmaecendo, nascido em Blumenau (SC) DIVULGAÇÃO

onversar com Sylvio Back é quase tão interessante quanto assistir a seus filmes. Nascido em Blumenau em 1937, além de cineasta, ele é também jornalista. E é com faro de repórter, e a paixão típica dos historiadores, que este catarinense planeja, produz, filma e divulga suas obras. Provocativo, em seu novo filme, O Contestado – Restos Mortais, que trata dos bárbaros conflitos ocorridos nas divisas entre Paraná e Santa Catarina, no início do século passado, o diretor propõe a derrubada de fronteiras. Adota uma inédita e inusitada linha narrativa para seu documentário: a fala de médiuns em transe. “A inserção do relato dos médiuns no âmago do filme, e que perturba e conturba seu fluxo, serve justamente para borrar as fronteiras draconianas entre documentário e ficção. Essa proposta, premeditadamente procurada e já bem recebida por público e crítica, por enquanto apenas em festivais, é uma das claves que emprestam a amperagem polêmica do filme. E que melhor lhe definem o torque revisionista do tema face às minhas convicções como homem e artista”, explica ele que, nesta entrevista ao Jornal da ABI, faz um detalhado resgate das batalhas. E, sem papas na língua, duras críticas ao papel desempenhado pela imprensa da época, que minimizou ao máximo a relevância política e a gravidade dos conflitos. Sylvio não tem medo de críticas. Curiosamente, iniciou suas atividades no Jornalismo exatamente na função de crítico de cinema – antes mesmo de tornar-se cineasta. Houve quem já tenha ridicularizado a ‘narrativa mediúnica’ proposta pela obra. Mas não é isso que move ou preocupa o diretor. “O fato é que, ao longo das pesquisas, tomamos consciência do quanto o Contestado vem sumindo na memória das pessoas, reforçado pelo fato de que nos livros didáticos essa verdadeira revolução nos sertões do Sul do Brasil é citada com meia dúzia de palavras, quando não inteiramen-

e então morando em Curitiba, Paraná, a partir daí fui realizando um cinema voltado, precipuamente, para os contornos históricos e telúricos da região, cujas temáticas eram inteiramente ignoradas pelo eixo Rio-São Paulo. Então, o projeto de um filme sobre o Contestado, uma autêntica guerra civil nos sertões sulinos, soou como uma epifânia. Tanto como um ousado projeto cinematográfico – A Guerra dos Pelados ainda hoje é um dos poucos filmes épicos do cinema brasileiro – como por levantar o sangrento véu da Guerra do Contestado, ocorrida entre 1912 e 1916, resgatando uma luta fraticida envolvendo caboclos, imigrantes europeus, índios, negros e fanáticos religiosos fascinados por ideais utópicos. Tudo isso provocando a nada surpreendente repressão do Exército e das forças militares regionais, associadas a ‘coronéis’ e seus jagunços. Nem é preciso ressaltar que da preparação às filmagens de A Guerra dos Pelados, em 1969 e 1970, no próprio teatro de operações do Contestado, em Caçador, no Centro-Oeste catarinense, em plena ditadura Médici, a produção enfrentou obstáculos inimagináveis, a ponto de os figurantes terem sido fichados na delegacia local. O Exército temia que as filmagens fossem apenas um álibi e que, em verdade, estávamos treinando a caboclada para uma nova guerrilha. Atuamos sem fugir ao ideário que nos movia naquela quadra, aí incluído o romancista catarinense Guido Wilmar Sassi (1922-2003), em cujo belo livro, Geração do Deserto, de 1964, eu baseara o roteiro do filme, assinado em parceria com o jornalista Oscar Milton Volpini. A partir daí um conhecido provérbio tornou-se evidente: ‘quem sai aos seus não degenera’. Jornal da ABI – E o que o faz voltar ao tema em novo filme, mais de quatro décadas depois?

Cenas da guerra: desolados, os soldados feridos são levados de volta no trem. Na página ao lado, jagunços com armas em punho fazem pose para o fotógrafo.

Sylvio Back – A Guerra dos Pelados não degenerou. Embora continue vivo e for-


noticiários chamuscados de compromissos financeiros e/ou políticos, onde apenas o humor, charges e chistes ridicularizando os poderosos e as personalidades da época emprestavam algum toque de inconformismo. Em O Contestado – Restos Mortais, algumas dessas sintomáticas e ácidas tiras publicadas em O Malho, FonFon e Careta, do Rio de Janeiro, foram tecnologicamente coloridas e animadas, criando um pertinente contraponto às manchetes bombásticas que davam um ar de “guerra do fim do mundo” às escaramuças e aos ataques de canhão e metralhadora do Exército e das forças militares do Paraná e de Santa Catarina sobre os revoltosos. E, claro, evidenciado o revide violento e virulento dos fanáticos do “Exército Encantado” de São Sebastião, ungidos de uma força, destemor e ousadia militar, política e mítica que assustavam a repressão. Em ambas as capitais, Curiti-

reu o líder dos caboclos, o monge José Maria. Estopim dessa verdadeira guerra civil nos sertões do Sul, o desastre do Coronel João Gualberto desencadeou um luto midiático nunca visto em Curitiba, até os dias de hoje. Fotógrafos, poetas, jornais contra e a favor do Governo se conjugaram para mitificar o soberbo militar que foi à região contestada disposto a liquidar com os posseiros fanáticos do monge José Maria. E mais: para escarmento de quem ousasse algo no gênero, desfilar com os cadáveres deles na então mais que emblemática Rua XV de Novembro, ex-Rua da Imperatriz, atualmente Rua das Flores. O Funeral do Coronel João Gualberto, de autoria do cineasta pioneiro do Paraná, Annibal Requião (18731929), cujas antológicas imagens de nitrato recuperei e estão em alta resolução no meu filme, são de uma beleza, ostentação e desfaçatez nobiliárquica inacre-

testado deve-se à suposta falta de “um Euclides da Cunha”, a exemplo do que ocorrera com a fama assumida por Canudos após as geniais reportagens dele em O Estado de S.Paulo. Depois, apenas o milenarismo lhes dá certa irmandade mítica, de resto, são interdependentes, ainda que ambos os conflitos sejam revoltas de campônios, uns com terra, outros, não, com laivos de um utópico retorno à Monarquia, liderados e manobrados por fanáticos religiosos.

ba e Florianópolis, os registros da imprensa são invariavelmente desproporcionais aos fatos, a maioria hagiográfica, inclusive, com acrósticos laudatórios aos sucessos militares e a seus personagens oficiais, ilustrados com desenhos tétricos, mais resposta a relatos de pessoas letradas da região do que o testemunho de algum jornalista enviado às frentes de batalha. Assim, as notícias vinham ao sabor da politicagem paroquial e regional, raras vezes extravasando para o nacional. Nos jornais do Rio de Janeiro, como de resto em todo o País, pertencentes à elite e vassalos de partidos políticos, o eco só cresceu mesmo depois que o Exército nacional foi convocado para intervir no conflito, em 1914, sob o comando do General Setembrino de Carvalho. Antes, o sinal vermelho fora aceso para quem olhasse em perspectiva com a inesperada morte do Coronel João Gualberto no famoso “Combate do Irani”, em 22 de outubro de 1912, quando também mor-

ditáveis: parece que estamos assistindo ao enterro de Luís XV! No diz-que-diz-que pop da capital paranaense corria a lenda de que o Coronel João Gualberto, no comando de 400 homens armados até os dentes, saíra de Curitiba sentado e voltou deitado... A partir da iminência da I Guerra Mundial (1914-1918) e ao longo dela, coincidindo com os embates cruciais no Contestado (ocorridos nos ataques às cidadelas sertanejas, os chamados redutos de Taquaruçu e Caraguatá), o noticiário internacional também colaborou para ofuscar ainda mais o que se passava na longínqua Santa Catarina. No entanto, e os poderes local e nacional tinham consciência dela, não arrefecia a sua gravidade junto ao meio militar, aos latifundiários e ao Governo federal. Isso, de forma cabal, desfaz e desmente uma balela que vem sendo impunemente repetida ao longo dos anos por acadêmicos, jornalistas e curiosos de que o desconhecimento da historiografia nacional sobre o Con-

ra e contra a sua usurpação, ou questão das fronteiras entre Paraná e Santa Catarina, ou ainda, ideologizando suas razões, à presença do capital estrangeiro ou à chegada modernizante do “capitalismo perverso” à região. As lideranças do Contestado almejavam não a volta da Monarquia, mas a criação de um Estado independente, com liberdade de voto, culto e de expressão, ideário ancorado na Revolução Farroupilha (1835-1845). Esse é o mantra que a geopolítica dos portugueses, desde a Colônia, inoculou no inconsciente coletivo nacional à sombra dos nossos vizinhos latino-americanos: o Brasil jamais será desmembrado como acabou sendo toda a América Latina! Dito e feito. Todos os levantes separatistas do Brasil foram sufocados à base da saliva, da corrupção e à bala! Portanto, não é nada inocente que o noticiário em torno do conflito tenha passado a ser esporádico, em pílulas, minguado e de baixa credibilidade, uma inequívoca e surda censura

Jornal da ABI – Seria correto, então, afirmar que o Contestado teve sua importância minimizada pela imprensa? A luta pela posse de terras foi mesmo seu estopim central?

Sylvio Back – O achatamento acadêmico e midiático da Guerra do Contestado deve-se à sua vocação política separatista antes que mera luta pela posse da terCLARO JANSSON

te, filme dileto por tudo que me fez sofrer e trouxe de alegria, fortuna crítica e prêmios, ele acabou decantado pelo cinema moral que instaurei na minha filmografia a partir de Aleluia, Gretchen. Nesses 41 anos que separam o filme de ficção A Guerra dos Pelados ao de agora, às vésperas da fruição nacional do documentário O Contestado – Restos Mortais, nos cinemas neste mês de outubro, uma sensação de ‘lesa pátria’ nunca deixou de me assombrar. Claro, não apenas como cidadão, mas por ser um cineasta cuja obra é seduzida pela ânsia de reverter as falácias, as distorções e o esquecimento da História oficial. Enfim, quão submersos, ignorados, omitidos, quando menos, minimizados, permanecem personagens, fatos e atos, desse inusitado embate no ‘hinterland’ do Brasil sulíssimo, conhecido como a Guerra do Contestado pelos tempos afora. Voltei ao tema talvez movido pelo desafio do esclarecimento histórico que tento sempre responder em minha obra feita de 37 filmes de documentário e ficção – por onde trafego impunemente, porque, afinal, qual é a diferença entre a realidade bruta e o imaginário contemporâneo e sobrevivente depois que um e outro são transformados em cinema? Jornal da ABI – Como foi feita a pesquisa para seu novo filme e quais dificuldades encontrou? Há muitos equívocos históricos relativos às batalhas?

Sylvio Back – À época de sua eclosão, segunda década do século passado, na falta de melhor compreensão do violento levante e até pela proximidade histórica, logo se alcunhou o Contestado de ‘Canudos do Sul’. Sim, há semelhanças com a tragédia de Vaza Barris (18951896), principalmente na crença da chegada de um Messias, no fanatismo dos revoltosos e na feroz repressão militar, mas seu espectro místico, bélico e geopolítico, sócioeconômico e demográfico extravasa em envergadura, recorrência e reflexos nas décadas seguintes – e até hoje – a trágica epopéia de Antônio Conselheiro. A Guerra do Contestado, deflagrada nas então movediças fronteiras entre o Paraná e Santa Catarina – daí a expressão ‘contestado’ – abrangia uma área do tamanho do Estado de Alagoas. Ali, entre 1912 e 1916, milícias de ‘coronéis’ (ou “patrões”, na linguagem coloquial da região), ervateiros, madeireiros, políticos, advogados, comerciantes, banqueiros e financistas multinacionais, asseclas de empresas estrangeiras; pequenos proprietários (locais ou estrangeiros), posseiros, desempregados, fugitivos da lei, caboclos devotos e errantes, além de forças militares estaduais e federais armadas até os dentes, protagonizaram o maior morticínio no campo brasileiro do século 20. Jornal da ABI – A imprensa acompanhou aquele conflito com a devida atenção? Os jornais da época foram uma boa fonte de pesquisa?

Sylvio Back – Como desde as últimas décadas do século 19, também nos anos contemporâneos ao Contestado a imprensa se dividia em assumir uma postura “chapa branca” e a do tipo “morde e assopra”. Jornais e revistas veiculavam

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DEPOIMENTO AS REVOLUÇÕES DE SYLVIO BACK

Jornal da ABI – Falta ao cinema nacional debruçar-se com mais profundidade sobre a histórica questão fundiária do Brasil?

Sylvio Back – Sim, o cinema brasileiro, ainda que incipiente naquela quadra em matéria de registros documentais de extrato militar, não ficou alheio à Guerra do Contestado. Da descrição das imagens hoje perdidas, sabe-se, no entanto, que ele se manteve rigorosamente dentro do mesmo diapasão ideológico da imprensa diária e semanal, ela própria que preferia quase sempre ficar do lado do campeão. Conhecem-se três únicos títulos cinematográficos restantes que remetem ao conflito, dois patrocinados pelas forças repressoras e pela cooptação de seus cinegrafistas, coetâneo aos fatos e dos quais subsiste apenas uma iconografia mínima: Os Funerais do Coronel João Gualberto (1912), de Annibal Requião, o “pai” do cinema paranaense – um hino ao comandante das tropas do Paraná, morto juntamente com o “monge” José Maria no Irani; e Os Fanáticos de Taquarussu (1914), de Emílio Guimarães, documentário de “cinco longas partes”, financiado pelo Exército e lançado em Porto Alegre, de acordo com o pesquisador gaúcho Antônio Jesus Pfeil, sob os títulos Na Região dos Fanáticos ou As Forças Expedicionárias do Sul, exibido no mesmo ano em São Paulo, e que o jornal O Estado de S.Paulo anunciava como “filme patriótico da exclusiva atualidade”. Do primeiro, encontrada solitária cópia em meados de 1950, junto a familiares de Requião, em Curitiba, o filme teria sumido, dizia-se à época, no grande incêndio que destruiu boa parte da Cinemateca Brasileira de São Paulo, em 1957, mas que acabou ali preservado ao longo de décadas. Do segundo, é mais uma peça-símbolo da “cinemateca imaginá34

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agenciada pelo Exército, pelo Governo da República e pelos “presidentes” (governadores) do Paraná e de Santa Catarina. Desde a primeira hora quando foi captada a amplitude do conflito, no Rio de Janeiro decidiu-se por abafar seu implícito caráter separatista e de explícito viés de poder dos líderes da caboclada, cujos objetivos iam além da simples reivindicação da posse da terra. Só a partir do rescaldo das batalhas e do fim da guerra mundial, em 1918, é que, timidamente, vieram à tona as barbaridades perpetradas por ambos os litigantes, tanto entre as hostes que se enfrentavam com uma fúria inaudita, como junto à população civil. Terror agendado pelos caboclos religiosamente fanatizados dentro dos “redutos”, depois acuados, desesperados pela fome, doenças e lideranças cegas pelo poder, como pelas forças militares e dos chamados vaqueanos, tropa servil dos coronéis e assalariada pelo Exército que, com o apoio da Polícia Militar de Santa Catarina, protagonizaram uma verdadeira limpeza étnica, que durou de dois a três anos após o epílogo e o armistício assinado em 1916. A população entocada e refugiada nos confins do Contestado, quer tivesse participado das refregas, quer não, foi literalmente caçada e assassinada a sangue frio. Era como que não se quisesse deixar memória e rastro algum do que ocorrera na região.

tivamente, a Brazil Railway e a Lumber and Colonization Company, que já citei. O capitalismo se instalava no planalto de Santa Catarina com todo ímpeto, expulsando os caboclos sem título de propriedade de suas terras, transformando muitos em operários ou, no caso da maioria, entregues à própria sorte, rima terrível para morte, seu único futuro. Jornal da ABI – Em que medida o filme de 1970 e o documentário de agora se diferenciam ou se complementam?

Sylvio Back – Para o bem e para o mal, o que eu imaginava que jamais fosse acontecer, aconteceu: A Guerra dos Pelados e este por vir à luz, O Contestado – Restos Mortais, parecem filmes feitos por dois cineastas diametralmente opostos. Não apenas quanto à narrativa e realização cinemáticas, mas em todos os sentidos: da apreensão crítica da sua linguagem, que enseSylvio Back analisa uma cena durante as filmagens de O Contestado – Restos Mortais. jou uma estética suprarreal, ao sentido político-ideológico do conteúdo; do questicorrente do Contestado só pôde ser conria”, na antológica definição de Paulo onamento existencial às mais pertinenEmilio Salles Gomes, pioneiro na salvatado a posteriori pelos seus autores e testes incursões filosóficas e morais que saguarda da nossa memória em nitrato e temunhas, militares ou não, em diários, cudiram o País e o mundo nas últimas décelulóide – de que se constitui o passado partes da frente de comcadas. Meu cinema tem do cinema brasileiro. A surpresa fica rebate, cantorias e romaninvestido, quase de forNOTÓRIA A servada para um terceiro título. Duplaces, que se orgulham até ma intuitiva, no desDIFICULDADE QUE hoje pelo serviço sujo que mente, por ser o único feixe de fotogramonte de tabus, mitos e EXIBIR UM LONGA mas a salvo e por “denunciar” (numa leirealizaram, como pelos utopias da História do tura atualizada) a predação das florestas descendentes dos fanáti- METRAGEM NO RASIL Brasil, seja tematizando cos ainda vivos que carredo Contestado. Companhia Lumbe, de A. o conluio do nazismo É TÃO OU MAIS Botelho – documentário de encomenda gam na lembrança a tracom o integralismo (em TRABALHOSO filmado por volta de 1920 – é exemplar gédia que os 100 anos da Aleluia, Gretchen), a evanguerra tornam ainda mais ONEROSO DRAMÁTICO gelização autoritária dos ao dimensionar a voracidade do complexo madeireiro da multinacional Sounítida. Na guerra, como índios guaranis nas misE FRUSTRANTE diz Rudyard Kipling, a thern Brazil Lumber & Colonization sões jesuíticas do Cone primeira vítima é sempre QUANTO REALIZÁ LO Company, subsidiária da Brazil Railway, Sul (em República Guaraa estrada de ferro que cortava a região a verdade. Na Guerra do ni), o genocídio da GuerContestado não foi nem é diferente. contestada invadindo terras e vidas dos ra do Paraguai (em Guerra do Brasil), a caboclos. Centenas de operários, poderotragicomédia da presença da ForçaExpesas serras elétricas, esteiras mecânicas, Jornal da ABI – É possível mensurar o dicionária Brasileira-Feb na II Guerra Munuma ferrovia particular cujos trilhos iam quanto foram sangrentos os combates da dial (em Rádio Auriverde); denunciando a época? Qual o número de baixas de civis avançando à medida que as árvores escasmilitarização do índio brasileiro (em Ynseavam, para o fundo do matagal de cene militares? dio do Brasil), e ainda revelando a magnitenárias araucárias, perobas e imbuías, Sylvio Back – Saldo do horror: mais de tude do criticado maior poeta negro da soberbas imagens hoje reproduzidas em 20 mil pessoas, entre civis e militares, língua portuguesa, nosso conterrâneo, o O Contestado – Restos Mortais. Diante das mortas à bala, de fome e doenças, feridas, genial Cruz e Sousa (em Cruz e Sousa – O decrépitas, mas ainda imponentes consaleijadas ou simplesmente desaparecidas Poeta do Desterro). Sempre confrontei e truções (antigas sede da empresa e hospinos desvãos dos pinheirais centenários. coloquei sob suspeita as próprias convictal, casas da vila-dormitório, cinema...) e ções e certezas poliítico-ideológicas de da malha ferroviária e do porto fluvial Jornal da ABI – De que forma a disputa toda uma vida e carreira. Para tanto buspor terras ganhou contornos também de em decadência, que conheci em 1969 quei formatar em O Contestado – Restos (nas pesquisas de campo e à procura de ‘Guerra Santa’? Mortais um debate com a ficção de A Guerra locações para o futuro filme de ficção, A Sylvio Back – Nessa retomada ao tema dos Pelados, lançando mão de uma narratiGuerra dos Pelados, de 1971), no Municísob outro registro, vali-me como inspirava, que eu chamaria de insólita: a inserção pio norte catarinense de Três Barras, dá ção o substrato mítico e mitológico que do depoimento de médiuns em transe! para entender a origem da extrema concercava os monges João e José Maria – Um discurso imagético que fosse ao âmatundência dos embates, como a corrupinspiradores do movimento, o primeiro, go dessa história insepulta que o Brasil ção política que sancionou e avalizou as pacifista, o segundo, com vocação guerprecisa homenagear com as merecidas atividades açambarcadoras da Lumber. rilheira. Bem como de seus seguidores, exéquias morais. Assim, por vias transvercuja devoção espiritual era moeda corrensas e transformando o invisível e o indiJornal da ABI – A História poderia ter sido te. Além de rezarem pela ressurreição de zível em visibilidade e oralidade, freqüenoutra, talvez menos sangrenta, se a imprensa ‘são’ José Maria, alçado à condição de tei cinematograficamente um pretérito tivesse atuado de forma mais incisiva? santo depois de morrer desafiando a Pomágico na pele de personagens que podeSylvio Back – Não saberia avaliar se a lícia Militar do Paraná no combate do riam ter existido. imprensa teria evitado esses massacres, Irani, em 1912, os caboclos começaram a ela que sempre se caracterizava pela sua acreditar, cegos e ensandecidos em “chaJornal da ABI – Incluir relatos espíritas à vocação e gosto sabugos, alinhada e cormadas do além”, na vinda de um “exércinarrativa é uma decisão inédita. O que o rompida pelos donos do poder paroquial to encantado”, liderado por São Sebastilevou a essa inovação? e central, ou simplesmente, reproduzindo ão, para tirá-los da pobreza e da opressão. Sylvio Back – Ainda na fase das pesquio sentimento nacional que via nas revolE lançavam mão da fé, igualmente, para sas, falando com o historiador Euclides tas do campo manifestações de “pessoas enfrentar o “polvo” da modernidade, Philippi, por sinal já falecido, expus que como se alcunhava a chegada do capitaatrasadas, sem instrução”, ainda carentes pretendia investir em médiuns para “oudo que se conhecia como “civilização” nas lismo à região através da estrada de ferro vir ” a história oculta, não presencial de e de uma serraria multinacionais – respeccapitais. Assim, o terror que virou moeda revoltosos, caboclos possessos e soldados

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

envolvidos na Guerra do Contestado. Então, ele próprio espírita, lascou à queima-roupa e em tom solene: “O senhor é espírita?” Mesmo pego de surpresa, consegui responder na lata: “Sou cineasta!”. Ele abriu um lindo sorriso que, aliás, pode ser visto no filme em várias cenas, contando suas incursões à galáxia da mediunidade imperante entre as “meninas-virgens” que lideravam os fanáticos do Contestado. O transe, como uma insondável camada do inconsciente coletivo e da História do homem, por isso mesmo matéria-prima de altas indagações no campo da física quântica, para mim, é a mais pura e límpida poesia. Não sou espírita, nem cientista, sou poeta! Nada no transe é real, tudo imaginação e imaginário, um salto no escuro na invisibilidade de fatos e feitos inconscientes, eu diria, como se prestidigitação fora rumo ao mais denso dos mistérios da alma humana! Em O Contestado – Restos Mortais a aposta é nessa direção, imiscuir-se, resgatando através da palavra, pela sua verbalização cifrada e entrecortada pela fluidez do tempo e do espaço, no que foi esquecido e no que é preciso lembrar. Carrego a primazia, nessa hora em que tanto espiritismo tem explodido nas telas, de ter sido o primeiro cineasta brasileiro – quiçá, do mundo, ora direis! – a ter incorporado o transe mediúnico à linguagem cinematográfica como elemento da narrativa de um documentário! Ao longo de meses, sem muita nitidez e tateando pelas veredas que a História oficial do Contestado escamoteia, desvirtua e se cala, arregimentei trinta médiuns em sessões espíritas dentro do perímetro bélico do conflito e em Florianópolis e os transformei em ‘influxos condutores da linguagem’ do filme, uma espécie de personagens plasmáticos. Não foi fácil convencê-los de que, sem ser espírita, jamais iríamos manipular o testemunho deles, nem colocá-los em alguma situação constrangedora. Dito e feito: todos os médiuns comparecem com uma dignidade e uma verdade impressionantes no decorrer de O Contestado – Restos Mortais. O que apenas ensaiei em A Guerra dos Pelados transformou-se nesse contundente poder narrativo da mediunidade, um discurso sempre cifrado, quando menos, profético e dispersivo, a assumir a condição de ogro cinematográfico introduzindo o espectador à inesperada atemporalidade da Guerra do Contestado. Para atingir essa, digamos, intimidade com os médiuns, fizemos questão de jamais industriá-los sobre o que queríamos saber ou ouvir na hora da filmagem e da gravação. Jornal da ABI – Teme que a adoção da narrativa por meio de relatos mediúnicos seja alvo de críticas, ou mesmo coloque em xeque a classificação do filme como ‘documentário’?

Sylvio Back – A inclusão do relato mediúnico como fio condutor do filme já pegou de surpresa espectadores e críticos quando da exibição na competição dos festivais É Tudo Verdade e em Gramado. Houve quem, equivocadamente, elogiasse a minha direção de atores durante os debates por não acreditar que aquela trintena de médiuns explodindo em falas

Mais duas cenas dramáticas da Guerra do Contestado que são mostradas no documentário: centenas de pessoas humildes, incluindo mulheres e crianças, são feitas prisioneiras por grupos muito bem armados.

mente procurada, e colocada sob suspeita pelas recordações afetivas e pela História, é uma das claves que emprestam a amperagem polêmica do filme. E que melhor lhe definem o torque revisionista do tema face às minhas convicções como homem e artista. Jornal da ABI – Qual sua expectativa em relação à resposta ao filme, em termos de público?

insólitas, choros, risos, apelos, gritos e sussurros, era um elemento de linguagem. Ao invés de uma encenação teatral, era uma incursão à, digamos, “invisibilidade” do Contestado, ele mesmo, inoculado pelas mais insondáveis vertentes místicas e míticas. Houve, sim, quem ridicularizasse o recurso, talvez, por desconhecer minha filmografia, toda ela na contramão do discurso cinematográfico banalizante em cartaz, repleta de documentários “chapa branca”, hagiográficos e/ou turísticos, e onde jamais dublei um estilo narrativo, mas cujo objetivo sempre foi deixar o espectador desarvorado, sem saber se deveria ou não acreditar no que vê e ouve. Como também houve crítico que deu crédito ao recurso pontuado por “vozes do além” que trazem à tona uma “outra” verdade nunca antes discutida sobre a Guerra do Contestado. E, pela constatação de que eu, com essa operação cinemática, levo ao espectador a própria polêmica se a mediunidade pode ser aceita hoje dentro de um filme que se quer “histórico”? Por não ser “espírita”, nem militante de qualquer credo religioso, mas por respeitar e admirar a imponderabilidade e o mistério que corpo, espírito e alma mutuamente conjuram, é que promovi em O Contestado – Restos Mortais um amálgama de cinema, depoimentos, iconografia fixa e em movimento, pretérito histórico e mítico, fatos & atos sob ralos de veracidade e verossimilhança, para

tentar desvendar um Contestado até hoje insepulto, inacessível, inconcluso! O espectador é sempre mais esperto e rápido do que o filme e o diretor juntos, justamente porque o olho é mais rápido do que o pensamento. Portanto, a inserção do relato dos médiuns no âmago do filme, e que perturba e conturba seu fluxo, serve justamente para borrar as fronteiras draconianas entre documentário e ficção. Afinal, qual a diferença entre ambos: uma vez o real filmado torna-se depositário infiel do pretérito, ou seja, uma ficção sempre midiatizada pela imponderabilidade da memória. Cada um apropria e introjeta seu complexo sentido como achar melhor, acreditando, endossando, edulcorando, contraditando ou desconfiando. Eu faço um cinema moral que desconfia! Depois, a idéia nunca foi fazer um documentário lato sensu – não sou um documentarista clássico – sobre a Guerra do Contestado... Daí os “clipes” com imagens de arquivo, fotos e filmes, por exemplo, raras vezes surgirem para sublinhar depoimentos e entrevistas, o que seria empobrecê-los, desacreditar nas minhas próprias imagens e na capacidade de “viajar ” do espectador. Ao contrário, por serem todas flagrantes oficiais, encomendados, a própria “História oficial”, elas funcionam como uma espécie de contraponto heróico do que sobrevive na cabeça das pessoas um século depois do conflito. Essa autonomia do acervo, premeditada-

Sylvio Back – Penso que soaria prematura qualquer opinião sobre como o filme será recebido pelo público. Esse, na verdade, é o lado fascinante do showbiz. No entanto, pelas concorridas exibições nos certames É Tudo Verdade e Gramado, eu só teria motivos a comemorar. Sabemos que a reação do público de festivais é sempre suspeita. Contaminado pelo privilégio de assistir ao filme antes de quem vai pagar para vê-lo, confesso, não fiquei indiferente à calorosa recepção que teve, inclusive, da crítica. Agora, no circuito exibidor profissional, tudo fica zerado, ainda que a expectativa seja das maiores e melhores! Ainda que seja um antidocumentário – eu diria mais, um “docudrama” – pela inédita presença do testemunho mágico de trinta médiuns, ficando a meio caminho entre o documento e a ficção, é nessa linguagem iconoclasta e inesperada que deposito todas as minhas fichas no sucesso de público de O Contestado – Restos Mortais. Num panorama nacional de documentários e ficções da última década, majoritariamente diluindo narrativas conservadoras, tanto para ganhar como para apascentar o espectador, levando aos seus olhos e mentes o já visto e ouvido, meu filme é um corpo estranho e entranhado de surpresas. De outro lado, em se tratando de um espetáculo, a imponderabilidade é a melhor e mais fiel companheira de uma obra de arte. Como sempre fiz filmes para mim mesmo, pois jamais brindaria o público das telas e telinhas com algo em que não tivesse investido minha expertise, meu estro, minha vida e a minha liberdade moral, mantive o esquema neste O Contestado – Restos Mortais, fruto de quase dez anos de pesquisas, produção, realização, montagem/edição e, agora, neste processo de lançamento nacional. É notória a dificuldade que exibir um longa-metragem no Brasil é tão ou mais trabalhoso, oneroso, dramático e frustrante quanto realizá-lo. Mas, se você não toma o cinema como uma obsessão existencial, para que fazê-lo, então?

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HOMENAGEM

MUNIR AHMED

O grande Lua do Sertão Luiz Gonzaga é lembrado em inúmeros eventos de Norte a Sul do País, no ano de seu centenário. Compositor versátil, gravou músicas em 20 diferentes gêneros. P OR C ARLOS J URANDIR

Do samba vitorioso da Unidos da Tijuca no Carnaval do Rio este ano, campeã do desfile com o enredo O Dia em Que Toda a Realeza Desembarcou na Avenida para Coroar o Rei Luiz do Sertão, a shows no Sesc paulista e apresentações de grupos de artistas jovens e veteranos por todo o País, cantando e tocando baião, xaxado, maracatu, forró, marcha, frevo, ciranda, boi, xote, caboclinhos e quadrilha – Luiz Gonzaga, o Lua, também conhecido como o Rei do Baião, está sendo celebrado nos palcos do Brasil este ano, quando completaria 100 anos. Agora em outubro chega aos cinemas brasileiros o filme Gonzaga – De Pai para Filho, longa de Breno Silveira, o mesmo diretor de Dois Filhos de Francisco (2005). O filme retrata a relação entre o sanfoneiro Luiz Gonzaga e seu filho, o cantor e compositor Gonzaguinha (1945-1991). Ainda na esfera cinematográfica, outra atração que não pode ser esquecida é o filme O Homem que Engarrafava Nuvens (2008), documentário musical que conta a vida de Humberto Teixeira, o mais famoso parceiro de Luiz Gonzaga. Culinária, dança, filmes e literatura também integram a programação em homenagem a Luiz Gonzaga do Nascimento, nascido a 13 de dezembro de 1912 na fazenda Caiçara, Serra de Araripe, sertão de Pernambuco, segundo filho de Januário José dos Santos e Ana Batista de Jesus, conhecida como Santana. Januário trabalhava na roça, tocava sanfona de oito baixos nas horas de folga e mantinha uma oficina de reparos do instrumento. Admirado por grandes artistas brasileiros de várias gerações, como Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Raul Seixas e Caetano Veloso, entre outros, inclusive maestros e compositores eruditos, foi genial instrumentista e inspirado compositor. Em sua obra, destacam-se as antológicas canções Baião (1946), Asa Branca (1947), Siridó (1948), Juazeiro (1948), Que Nem Jiló (1949) e Baião de Dois (1950). Começos

Luiz Gonzaga ajudava o pai no roçado desde os sete anos, inclusive no manuseio das sanfonas que chegavam para conserto, 36

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e não tardou a aprender a tocar. Ainda adolescente, passou a se apresentar em bailes, forrós e feiras, de início acompanhando Januário. Mesmo depois, quando se tornou uma figura nacional, com vitoriosa carreira especialmente no Sudeste e no Sul do País, foi essa vivência que plasmou sua produção artística de autêntico representante da cultura nordestina. “Nenhum artista brasileiro foi tão importante para a cultura das Regiões Nordeste e Norte do Brasil, para a divulgação de como vivia, trabalhava e sofria o homem do mato quanto Luiz Gonzaga”, resume o jornalista Luís Pimentel. O próprio Luiz Gonzaga recordou numa entrevista a época dessas andanças pelo sertão, acompanhando o velho Januário: “Eu gostava daquela vida. Das festas de São Bento, dos sambas da Chapada do Jirome ou do São João do Araripe, onde aprendi também a tocar zabumba, caixa e pife (pífaro). As festas do Bom Jesus do Exu eram o que mais me atraía. Também as da padroeira do Granito, que se enchiam de gente de todo canto”. “Luiz Gonzaga escreveu seu nome na história da música popular brasileira ao resgatar a cultura popular no período pósguerra”, destaca o professor da Universidade Federal de Minas Gerais Carlos Ernest. “O gênero baião já existia, mas Lua adequou o folclore popular ao universo artístico da grande cidade e encontrou um filão que era desconhecido nacionalmente. Uma música de raiz que estará sempre presente.” “Ele trouxe um novo modo de olhar para o sertão, o Nordeste, a cidade, a migração e a condição do migrante”, explica a professora Maria Sulamita de Almeida Vieira, da Universidade Federal do Ceará, autora de Luiz Gonzaga, O Sertão em Movimento (Editora Annablume, 2000). Da extensa produção do homenageado, que gravou quase 100 discos, entre lps e cds, ela destaca a música Lá no Meu Pé de Serra, em parceria com Humberto Teixeira, como exemplo de sua capacidade de falar diretamente aos milhares de nordes-

tinos obrigados a deixar a terra natal para melhorar de vida: Lá no meu pé de serra Deixei ficar meu coração Ai, que saudades tenho Eu vou voltar pro meu sertão... O gênero musical que consagrou Luiz Gonzaga foi o baião, que ele consolidou e transformou num sucesso nacional. A canção emblemática de sua carreira foi Asa Branca, que compôs em 1947, em parceria com o advogado cearense Humberto Teixeira (1915-1979). No entanto, apesar do talento, ele teve que lutar muito nos primeiros tempos para conseguir o reconhecimento e poder viver de sua arte, depois que veio tentar a vida no Rio, muito distante da família, que ficou em Exu. Pouco antes, durante a Revolução de 1930, alistara-se no Exército, como muitos jovens naquela época, em busca de melhores condições de vida. No Rio, ao dar baixa em 1939, não sabia o que fazer da vida, até começar a tocar sanfona no Mangue, centro da cidade. “Um fuzuê dos diabos”, recordaria mais tarde o futuro Rei do Baião, que palmilhava as Ruas Júlio do Carmo e Carmo Neto e arredores. Ganhava a vida tocando nos botequins, docas do porto, festinhas de subúrbio e cabarés da Lapa ou simplesmente nas esquinas, correndo depois o chapéu, acompanhado pelo guitarrista Xavier Pinheiro. Choros, sambas, fox-trotes e outros gêneros da época integravam o repertório. Tentava, sem sucesso, os programas de calouros, apresentando-se com o típico figurino do músico profissional: paletó e gravata. Até que, em 1941, no programa de Ary Barroso, foi aplaudido executando Vira e Mexe, tema de sabor regional, de sua autoria. Ganhou nota 5 do famoso compositor e radialista, e o prêmio de 15 mil réis. O sucesso lhe valeu um contrato com a gravadora Victor, pela qual

lançou em seguida mais de 50 músicas instrumentais. Vira e Mexe foi a primeira música que gravou em disco. Gonzaga gravou mais de setenta composições, entre xotes, mazurcas, sambas e choros, sem se empolgar com o resultado como solista de sanfona. Pouco depois foi contratado pela Rádio Nacional, onde conheceu o acordeonista gaúcho Pedro Raimundo, que usava os trajes típicos dos pampas. Passou a aparecer nas rádios vestido de vaqueiro, figurino com que viria a se consagrar como artista. Gravou sua primeira música como cantor no estúdio da RCA Victor: a mazurca Dança Mariquinha, em parceria com Saulo Augusto Silveira Oliveira. O grande encontro

Apesar da aceitação, Lua não se realizava sendo apenas sanfoneiro. Queria cantar e gravar suas músicas nordestinas. Tinha novo parceiro, Miguel Lima, que colocava letra nas canções. Vibrou quando descobriu, pelos registros de venda, que também agradava o público como cantor. Mas isso só viria a acontecer de fato com a revolução musical que promoveu depois de substituir Miguel Lima, que era fluminense, por um parceiro nordestino, Humberto Teixeira, que tocava flauta e bandolim e era compositor de sucesso da gravadora Continental. Logo no primeiro encontro dos dois, em agosto de 1945 – no escritório onde Teixeira se iniciava como advogado, na Avenida Calógeras, Centro do Rio – surgiu Asa Branca. Decidida a conquistar a então capital do País, a dupla passou em revista os diversos gêneros do Nordeste, chegando à conclusão de que o baião era o que mais se enquadrava nessa finalidade. Os habituais viola, pandeiro e rabeca foram substituídos pelo acordeão, triângulo e zabumba.


Gravada no dia 24 de maio de 1946, a música intitulada Baião, que decidiram lançar primeiro, converteu-se num dos maiores êxitos da carreira de Luiz Gonzaga, gravada pelo grupo Quatro Ases e Um Coringa, em disco Odeon, com a participação de Luiz apenas como acompanhante, à sanfona. Só em 1950 Lua gravaria a sua versão. Estava consolidada a aceitação do gênero por todo o País. A melodia singela, no estilo gregoriano, com versos também simples, bastante entranhados no universo popular, juntamente com a batida uniforme, convidando para dançar – tudo isso configurou o sucesso estrondoso no novo/velho estilo. Eu vou mostrar pra você Como se dança o baião E quem quiser aprender É favor prestar atenção Novo porque inaugurava uma nova época na música brasileira, dividida entre o samba-canção e o fox-trote, além do samba; velho porque o baião ou baiano era uma dança tradicional mestiça, de origem africana, típica do interior de Pernambuco. O maestro Júlio Medaglia destacava o fato de o baião utilizar modos medievais do canto gregoriano ao lado do sistema tonal. Especialistas acreditam que essa utilização vem da catequese dos padres carmelitas, e franciscanos, assim como beneditinos, que se espalharam pelo Norte e Nordeste do Brasil. Em 1947, o já chamado Rei do Baião se imortalizaria com o lançamento afinal de Asa Branca, gravada em disco RCA Victor. Tornou-se internacional ao ser interpretada por Carmem Miranda no filme Romance Carioca (Nancy Goes To Rio), dirigido por Robert Z. Leonard. Apesar do enorme sucesso, a parceria com Humberto Teixeira teria fim quando, em 1950, Humberto se elegeu deputado, mas Gonzaga encontraria um outro parceiro tão bom quanto o primeiro: o médico José de Souza Dantas, mais conhecido como Zédantas, que entretanto morreu logo depois, aos 41 anos de idade. São eles os responsáveis pela belíssima Vozes da Seca, que constitui o primeiro brado de alerta em relação ao problema da seca no Nordeste. “Respeita Januário”

Primeiro artista tipicamente nordestino a conquistar os grandes centros, através dele o nordestino passou a ser mais respeitado e ouvido. A influência de Lua foi mais marcante que a de Catulo, no início do século XX, pois enquanto este deu ênfase apenas ao lirismo em seus trabalhos literários e nas letras das músicas, Luiz Gonzaga sempre deixou transparecer a preocupação maior de levar ao conhecimento de todos os valores da cultura e da arte nordestina. Em 1946 Luiz voltou pela primeira vez a Exu, e teve um emocionante reencontro com Januário e Santana, que há anos não sabiam nada sobre o filho e sofreram muito esse tempo todo. O reencontro é narrado em sua composição Respeita Januário, em parceria com Humberto Teixeira. Em 1948, casou-se com sua noiva, a pernambucana Helena Cavalcanti, professora que se tornara sua secretária par-

ticular, por quem Luiz se apaixonou. O casal viveu junto até o fim da vida de Luiz. Eles não tiveram filhos biológicos, por Helena não poder engravidar, mas adotaram uma menina, a quem batizaram de Rosa. Nesse mesmo ano morreu de tuberculose a cantora de coro e sambista Odaléia, mãe de Luiz Gonzaga Filho, o Gonzaguinha, que tinha apenas dois anos e meio. Léia era antiga namorada de Lua. Quis levar o menino para morar com ele, mas Helena não o aceitou. Gonzaguinha acabou sendo criado pelos padrinhos, Leopoldina e Henrique Xavier Pinheiro, que moravam no Morro de São Carlos. No entanto, Luiz não se dava bem com o filho, situação que só veio a se reverter muitos anos depois. Artista que depois se tornou uma das lendas vivas de sua época, Luiz Gonzaga teve que enfrentar, no começo, a resistência das gravadoras, que consideravam sua arte como simples folclore. Quando a Bossa Nova surgiu, nos primeiros anos da década de 1950, com uma proposta mais voltada para o público do meio urbano, o Rei do Baião, mesmo já famoso, passou de repente a não contar com o mesmo espaço na imprensa. E o baião rompia fronteiras naquela época, em especial por conta do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953), que ganhou o prêmio de Melhor Filme de Aventura no Festival de Cinema de Cannes, na França, e também menção honrosa pela trilha sonora, que entre outras trazia a toada Muié Rendera, música de Zé do Norte, interpretada por Vanja Orico. Na mesma década, o compositor norte-americano Burt Bacharach veio ao Brasil acompanhando a atriz alemã Marlene Dietrich. “Ele ouviu o baião e se encantou. Entre suas canções de sucesso dos anos de 1960 está Do You Know The Way to San Jose. É muito forte a presença do baião. Só falta o triângulo”, comenta o jornalista e historiador Paulo César de Araújo, autor do livro Eu Não Sou Cachorro, Não (Editora Record, 2005). O baião Delicado, instrumental de Waldir Azevedo, teve cinco versões gravadas em Buenos Aires, vendendo mais de 130 mil cópias em toda a Argentina, segundo o jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão. A música também passou a fazer parte do repertório dos maestros norte-americanos Stan Kenton e Percy Faith. Grande divulgador do novo gênero, Humberto Teixeira buscou promovê-lo no exterior, levando à Europa caravanas de músicos brasileiros, mas sem grandes resultados. Como analisa Tinhorão, o ritmo estilizado por Luiz Gonzaga (assim como ocorreu com a Bossa Nova) não tinha condições de competir com a indústria norte-americana de discos e com a novidade do rock, que tinha em Elvis Presley seu maior ícone. Somente na década de 1980 Gonzaga, já consagrado pelo público e pela crítica, iria apresentar sua obra nas grandes casas de espetáculo de Paris. Mas o fim dos anos 1960 não trouxe bons ventos ao baião. A época do rádio acabava. Vinha a televisão. E, no Brasil desenvolvido, urbano, propagado por

Juscelino Kubitschek, a música nordestina perdeu espaço. Outro nordestino, esse de Juazeiro, na Bahia, entrava em cena e já anunciava que algo novo estava por vir. Era João Gilberto, que em 1959 lançou Chega de Saudade, seu primeiro disco com duas músicas: a que dá nome ao álbum e Bim Bom: É só isso o meu baião E não tem mais nada não Meu coração pediu assim, só... Volta por cima

No entanto Luiz Gonzaga tornou-se ídolo do povo nordestino e figura reverenciada de Norte a Sul do País. Não tardou em voltar à mídia. Muitos artistas de sucesso nos anos posteriores jamais esconderam suas influências do Gonzagão. A começar pelo grupo pernambucano Quinteto Violado, que surgiu em 1971, logo após a eclosão do movimento tropicalista. Integrado por jovens músicos, adotou a obra do Rei do Baião como principal inspiração. Com uma proposta fundamentada em elementos da cultura regional, o grupo traçaria a partir de então um caminho para a música brasileira que na essência reproduzia e reforçava a temática de Luiz Gonzaga. Hoje com cerca de 50 discos lançados no Brasil e no exterior, utilizando como base a aparente simplicidade da música nordestina, o Quinteto demonstrou que ela tinha parentesco com o erudito e a sofisticação. Em 1965, o compositor Geraldo Vandré, ícone da música de protesto, gravou Asa Branca, e Gilberto Gil, líder dos tropicalistas, citou Luiz Gonzaga como uma de suas principais influências. Na década de 1970, várias das composições do Rei do Baião foram incluídas em gravações, como Asa Branca, por Caetano Veloso (1971), outro líder tropicalista. No mesmo ano, saiu o lp O Canto Jovem de Luis Gonzaga, RCA, com composições de Gil, Caetano, Edu Lobo, Dori Caymmi, Geraldo Vandré e outros. Em março de 1972 foi realizado um show no Teatro Teresa Raquel, do Rio de Janeiro, chamado Luiz Gonzaga Volta pra Curtir. Em 1977 ele participou do show comemorativo Trinta Anos de Baião, realizado no Teatro Municipal de São Paulo, com Carmélia Alves, Hervé Cordovil e Humberto Teixeira. Lançou em 1979 o Eu e Meu Pai, pela RCA. Januário falecera no ano anterior. No início da década de 1980, sua carreira ganhou novo impulso, graças principalmente a Gilberto Gil e Caetano Veloso. Em 1981, fez parceria com Gonzaguinha e, na tournée de divulgação de seu lp A Vida do Viajante, retomou a trajetória de sucesso. Foi quando ganhou o apelido de Gonzagão, que usou até a morte. No mesmo ano, lançou A Festa, pela RCA, disco no qual interpreta, ao lado de Milton Nascimento, com grande sucesso, Luar do Sertão. Em 1984 Gonzaga obteve o primeiro disco de ouro com o lp Danado de Bom, no qual a maioria das músicas foi composta em parceria com João Silva. Apresentouse pela primeira vez na Europa em 1982, no Teatro Bobino, de Paris, França, a convite de Nazaré Pereira, cantora amazonense radicada em Paris. Em 1984 recebeu

o Prêmio Shell e dois anos depois retornou à capital francesa, para fazer o show de encerramento do festival de música brasileira Coleurs Brésil. Nesse mesmo ano, foi lançado o livro Luiz Gonzaga, O Rei do Baião, de autoria de José J. Ferreira (Editora Ática, São Paulo). Afastado das tvs e das rádios, ainda na década de 1980, continuava a apresentar-se em shows pelo interior do Brasil, cantando em quermesses, circos, cinemas, feiras e fábricas. Em 1990, foi lançado o livro Eu Vou Contar pra Vocês, de Assis Ângelo (Ícone Editora, São Paulo). Em 1996, a BMG lançou em cd triplo 50 Anos de Chão, uma reedição da caixa de cinco lps homônima, lançada em 1988, que compreendia o período de 1941 a 1987, com seleção do próprio Gonzagão. Em 1996 saiu o livro Vida de Viajante - A Saga de Luiz Gonzaga, de Dominique Dreyfus e prefácio de Gilberto Gil (Editora 34, Coleção Ouvido Musical, São Paulo). A Editora Globo lançou, em 1997, fascículo e cd Luiz Gonzaga, na série MPB Compositores, n° 20. No mesmo ano, o Jornal da Tarde lançou outro cd e fascículo Luiz Gonzaga, na série MPB no JT, n° 5. Já nos anos 1970, a Editora Abril incluiu Luiz Gonzaga em sua coleção Música Popular Brasileira, também disco e fascículo biográfico vendido nas bancas de jornal. Gonzaga participou de inúmeras iniciativas em prol dos flagelados pela seca no Nordeste, muitas vezes por conta própria. Em 1982, no show Nordeste Urgente, em Natal, RN, conheceu Alceu Valença, que participou de seu disco Luiz Gonzaga, 70 Anos de Sanfona e Simpatia, em 1983. Em meados da década de 1980, criou a Fundação Vovô Januário, destinada a ajudar as mulheres de Exu. O candeeiro apagou

Até o final da vida Luiz Gonzaga seguiu compondo e lançando discos. O produtor Marcos Veloso assegura que não existe artista mais pesquisado que Luiz Gonzaga: “Ele tem música com todas as letras do alfabeto e gravou em mais de vinte gêneros diferentes. Além disso, Lua quebrou muitos tabus por ser preto, pobre e nordestino. A música, hoje em dia, tem influência direta do Rei do Baião”. O candeeiro se apagou O sanfoneiro cochilou A sanfona não parou E o forró continuou “Continuou por mais de meio século”, registra Luís Pimentel, “período em que compôs grande número de sucessos, com mais de uma dezena de parceiros, entre os quais os mais freqüentes foram Humberto Teixeira, Zé Dantas, João Silva, Hervê Cordovil, Guio de Moraes e Onildo de Almeida”. Uma de suas últimas aparições foi no Teatro Guararapes, no Centro de Convenções no Recife, na qual recebeu homenagens de diversos artistas, inclusive de seu filho, Gonzaguinha. Luiz Gonzaga sofria de osteoporose há alguns anos. Morreu a 2 de agosto de 1989, vítima de parada cardio-respiratória no Hospital Santa Joana, na capital pernambucana. Seu corpo foi velado em Juazeiro do Norte e posteriormente sepultado em seu Município natal. JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

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MEMÓRIA

A ascensão e queda da Manchete nas lembranças de Arnaldo Niskier Funcionário do Grupo Bloch durante 37 anos, seu ex-Diretor de Jornalismo evoca a densa presença das revistas criadas por Adolfo Bloch. GUILHERME GONÇALVES

P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES

Os bastidores de quase cinco décadas de história da revista Manchete (19522000) estão relatados no novo livro do acadêmico, jornalista e professor Arnaldo Niskier, Memórias de um Sobrevivente – A Verdadeira História da Ascensão e Queda da Manchete (Editora Nova Fronteira), lançado em 20 de setembro, na Academia Brasileira de Letras. Niskier trabalhou 37 anos nas empresas Bloch, onde foi Chefe de Reportagem, Diretor de Jornalismo e o responsável pela criação de um estilo próprio da fotonovela brasileira, quando dirigiu a Redação da revista Sétimo Céu. No livro, o autor conta experiências que vivenciou na Redação da Manchete e os fatos marcantes que presenciou no convívio com grandes nomes do jornalismo, dentre os quais Murilo Melo Filho, Carlos Heitor Cony e Gervásio Batista, entre outros. As lembranças mais curiosas registradas no livro vêm da sua proximidade com os diretores da revista, entre os quais o “controvertido Adolpho Bloch”, que “era uma figura capaz de grandes gestos de nobreza e em seguida se deixar trair por sentimentos menores”, afirma Niskier, que ocupa a cadeira nº 18 da ABL, eleito em 22 de março de 1984, na vaga deixada pelo jornalista, médico e escritor Peregrino Júnior. Lançada em abril de 1952, Manchete surgiu como um dos maiores sucessos editoriais da imprensa do Brasil; o livro de Arnaldo Niskier tem como objetivo fazer perdurar esse rico legado, narrando desde sua ascensão até à queda, “a partir de reminiscências de um grande amigo”. “Eu devia este livro a mim mesmo. Durante muitos anos resisti à idéia de escrevê-lo. Mas eu achava que, tendo convivido 37 anos com a revista, a sua glória e, depois, o seu fracasso, era importante um depoimento do jornalista parceiro de todas essas aventuras”, diz ele sobre os motivos que o levaram a escrever o livro. A obra levou três anos e meio para ser escrita, período em que Niskier diz que foi relembrando os fatos, pesquisando números antigos da revista, revendo matérias que escreveu em diferentes épocas: “E daí saiu o livro que em boa hora a Editora Nova Fronteira está trazendo a lume. Achei que o livro ficaria muito enriquecido se tivesse um caderno de fotografias, e por isso incluímos um encarte de 16 páginas com 40 fotos históricas a respeito da Manchete, sua história, seus problemas, edições especiais e os vários produtos jornalísticos que a revista publicou em cinco décadas. Assim nasceu o livro que aí está, graças a Deus, com boa receptividade junto ao público.” 38

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de criação de outro espaço teatral, mesmo que seja em outro local. “A cultura do Rio de Janeiro e do País pede que isso seja cumprido o mais rápido possível”, afirma Niskier. O salto de “Sétimo Céu”

Niskier: Adolpho Bloch era uma figura capaz de grandes gestos de nobreza e em seguida se deixar trair por sentimentos menores.

Histórias e memórias

Memórias de um Sobrevivente, diz o autor, é uma obra que mistura História e memórias. Não é uma biografia, porque Niskier não é a figura central do livro, em cujas páginas quem aparece em evidência é Adolpho Bloch, que na opinião do autor foi o “gênio criador” do império que mais tarde, quando ele envelheceu e morreu, seus sucessores não tiveram competência para mantê-lo vivo. Ao pedido para definir o gênero do seu livro, Niskier diz que Memórias de um Sobrevivente é uma obra que reúne memórias misturadas com um ensaio histórico a respeito de uma empresa gráfica que durante quase 50 anos teve momentos de excepcional brilho: “A Manchete foi considerada a melhor impressão do Brasil, tinha um parque gráfico esplêndido, equipado com máquinas italianas e alemãs que o Adolpho ia buscar a cada ano nas feiras internacionais da Europa, para manter o parque gráfico sempre atualizado. E com isso ele granjeou a fama, que ele queria e adorava, de grande tipógrafo. Quando alguém o chamava de doutor ele soltava um palavrão”, contou Niskier (risos). Adolpho Bloch também reagia com palavrões quando era chamado de jornalista:”O Adolpho falava muito palavrão, era engraçado ver aquele russo falando palavrões. Ele veio para o Brasil aos 12 anos e foi criado na Aldeia Campista,

próximo de onde viveu também o Nelson Rodrigues, que, ao contrário dele, não falava palavrão. Convivi por um longo período com o Nelson e conhecia bem as suas particularidades. Ele não pronunciava um palavrão, contava aquelas histórias cabeludas, mas palavrão não dizia. Já o Adolpho era fã do nome feio. Porra ele usava como vírgula”, disse Niskier. O todo-poderoso dono da Manchete explodia de raiva quando era chamado por aquilo de que não gostava. Ele queria que o chamassem de tipógrafo, a exemplo do pai Joseph, que na Rússia foi dono de uma tipografia, onde eram impressos programas de teatro. Adolpho foi acostumado com essa realidade desde garoto e jurou a si mesmo que quando tivesse recursos investiria em teatro. Considera Niskier que talvez a noite mais gloriosa e feliz da vida de Adolpho Bloch tenha sido a da inauguração do teatro batizado com o seu nome, que infelizmente foi paralisado totalmente pelos novos donos do prédio, que prometeram devolvê-lo ao público e não o fizeram, contrariando a lei municipal que determina que teatros não podem ser destruídos sem que haja uma compensação

Niskier foi convidado para trabalhar nas empresas Bloch como repórter da revista Manchete Esportiva, em cuja Redação trabalhavam os irmãos Augusto, diretor, Paulo e Nelson Rodrigues. Junto com ele chegou o jornalista Ney Bianchi de Almeida, vindo da Última Hora, onde os dois trabalharam como colaboradores. Da reportagem Niskier foi promovido a assistente do diretor. Como ele vinha fazendo um bom trabalho, Pedro Jack Kapeller, conhecido como Jaquito, sobrinho de Adolpho, que o acompanhava de perto, achou que ele deveria dirigir a revista Sétimo Céu, “publicação para jovens sonhadoras, que publicava fotonovelas”, diz Niskier. A revista era deficitária, vendia somente 6 mil exemplares, não era um bom produto editorial. Usava fotonovelas argentinas que ele classifica como “abomináveis”. Foi aí que Niskier percebeu que havia espaço para a criação de fotonovelas essencialmente brasileiras. Sétimo Céu concorria com a revista Carinho, da editora Abril, que usava tramas italianas esplêndidas, com Gina Lollobrigida e Sofia Loren: “Nós não tínhamos dinheiro para comprar esse material, então precisávamos criar uma coisa nova que tivesse a cara do Brasil. Eu fiz contato com o Mário Lago e lhe pedi que me cedesse originais da série que ele produzia na Rádio Nacional intitulada Presídio de Mulheres. Ele me cedeu a primeira história Adelaide Simon Não Quis Matar, com a belíssima Anilza Leone. Então nós fizemos a primeira fotonovela brasileira e foi uma explosão. A revista saltou de 6 mil para 200 mil exemplares vendidos.” Seis anos depois, o sucesso das fotonovelas de Sétimo Céu levou Niskier a ser convidado para Chefe de Reportagem da Manchete, substituindo Darwin Brandão, que deixou o comando das equipes de reportagem da revista em janeiro de 1960. Niskier foi Chefe de Reportagem e Diretor de Jornalismo da Bloch Editora durante 18 anos. Nos últimos anos passou a dirigir a Bloch Educação, empresa do grupo que cuidava de cursos, seminários e livros didáticos, a qual em dez anos faturou US$ 20 milhões: “Alguns desses livros, como os de Matemática, eram de minha autoria, que te-


ACERVO PESSOAL

nho licenciatura nessa disciplina. E os livros de Matemática para as séries do antigo primeiro grau tiveram 10 milhões de exemplares vendidos. Tudo o que eu consegui na vida em termos de conforto é proveniente dos direitos autorais dessa coleção, A Nova Matemática.” Adolpho Bloch, um gênio

O autor de Memórias de um Sobrevivente conta que ficou impressionado com Adolpho Bloch logo no primeiro contato. “Eu fui apresentado ao Adolpho Bloch pelo Augusto Rodrigues e fiquei impressionado diante daquele homem forte, narigudo, com um sapato de camurça azul. Na hora o que me ocorreu foi a idéia de que estava na presença de uma pessoa muito rica. Eu achava que só um milionário poderia usar um sapato daqueles. Essa foi então a primeira impressão que tive do Adolpho.” Dois anos depois desse encontro, Niskier viveu uma situação delicada e resolveu pedir ajuda a Adolpho Bloch. Tinha sido despejado do apartamento em que vivia com a mãe e uma irmã mais nova e não conseguia um fiador para alugar outro imóvel. Niskier lembra que a situação era dramática. “Tocou o desespero e resolvi procurar o Adolpho Bloch”, contou. “Todo mundo tinha medo do Adolpho, a turma tinha receio das explosões dele. Eu fui falar com ele. Ele me olhou, me perguntou quem eu era e em que setor trabalhava. Eu contei a situação, disse que estava precisando de um fiador. Ele me disse que o fotógrafo Hélio Santos tinha lhe pedido a mesma coisa, mas que não estava fazendo o pagamento em dia. Ele me fez jurar que não ia lhe trazer aporrinhação, pegou a minha mão e disse: Vamos fazer uma combinação. Eu vou ser o seu fiador, mas se você não pagar o aluguel em dia eu corto os seus culhões.” (risos). Na visão de Niskier o sucesso editorial da revista Manchete se deve à figura de Adolpho Bloch. Sem ele, a revista não teria acontecido: “Ele era um gênio. Intuía as coisas, tinha um olhar diferenciado para os detalhes gráficos, a beleza da impressão. A sua atuação era realmente uma coisa extraordinária. Ele era generoso em certos momentos e mesquinho em outros. Os salários são um exemplo da sua falta de generosidade. Ele argumentava que o funcionário deveria se sentir orgulhoso de trabalhar na Manchete. E que isso tinha um preço, um valor que na cabeça dele deveria ser descontado no pagamento de cada um de nós.” Niskier lembrou um episódio que presenciou de uma conversa de Adolpho Bloch com o jornalista Augusto Nunes. Adolpho pediu que este viesse de Porto Alegre para encontrá-lo, porque queria contratá-lo para dirigir a Manchete no lugar do Justino Martins. “Depois do almoço, ofereceu 25 mil cruzeiros para o Nunes, que disse que esse era o salário que ele ganhava no Zero Hora, e que não sairia de lá para ganhar a mesma coisa. Adolpho pôs a mão no ombro dele e disse: ‘Meu filho, olha essa vista do Aterro, da praia. Quanto vale isto?’ O Augusto então respondeu: ‘Seu Adolpho no fim do mês quando eu tiver que pagar as minhas contas essa vista não irá me ajudar em nada. Eu preciso de grana’. Como

Adolpho disse que não poderia aumentar a oferta Augusto Nunes não aceitou a proposta.” Segundo Niskier, Adolpho Bloch tinha um comportamento intempestivo; muitas vezes alternava explosões de raiva, que duravam não mais do que três minutos, com manifestações de carinho. “Engraçado isso, porque quem tivesse a burrice de enfrentá-lo no momento em que a onda subia levava ferro, porque ele era violento”, conta Niskier, acrescentando que com os anos de convívio aprendeu a lidar com as alterações de humor de Adolpho Bloch. Quando Bloch explodia o segredo era lhe dar razão até que ele fosse se acalmando e se mostrasse disposto a mudar de idéia. Essa tática foi usada por Niskier na sua relação com o empresário, e ele a considerava “infalível”. No livro, o autor fala sobre um pensamento que o mesmo tinha sobre isso: “Eu conto no livro que ele costumava dizer que toda raiva que durasse mais de três minutos era uma doença patológica. Depois que explodia, ele se desculpava com o ofendido como uma criança. Se a agressão verbal tivesse sido muito forte, o Adolpho cuidava de presentear a pessoa com um corte de fazenda francês ou uma garrafa de champanhe. Era assim que ele se desculpava com as suas vítimas.” Era esse comportamento que na opinião de Niskier fazia de Adolpho Bloch uma figura muito controvertida, que muitas vezes tomava decisões injustas com relação às pessoas: “O Adolpho muitas vezes foi injusto nas suas reclamações. Isso acontecia porque ele se deixava influenciar pela opinião da turma de puxa-sacos que vivia em torno dele. Aliás, ele adorava esse tipo de pessoa. Como ele não apurava a verdade dos fatos, saía atacando o funcionário. Mas quando percebia que não tinha razão, se desculpava e voltava a ser generoso, como era também do seu comportamento”. Alguns não resistiram

Memórias de um Sobrevivente é um título sugestivo que foi escolhido porque muita gente sucumbiu ao fechamento da Manchete, em 2000. Alguns morreram de desgosto, como Ney Bianchi e Tarlis Batista, lamenta Niskier. “Quando o título me veio à cabeça, tive a certeza de que era um sobrevivente da fase gloriosa da Manchete com a felicidade de ter tido a idéia de sair da revista no tempo certo, sem nenhuma dívida.” O leitor vai encontrar no livro muitas histórias curiosas sobre a Manchete. A obra traz uma seleção de reportagens, cuja pesquisa contou com a colaboração do jornalista e ex-redator da revista Renato Sérgio, a quem o autor presta uma homenagem. Dentre as reportagens selecionadas, está a série de campanhas promovidas pela revista como a que apoiou a construção de Brasília:

“Depois que o Juscelino foi cassado o Adolpho me chamou, perguntou se eu estava com o passaporte em dia, me entregou US$ 7 mil em espécie e pediu para eu comprar uma passagem de avião e fosse a Nova York entregar pessoalmente o dinheiro ao Juscelino, que segundo ele estava passando dificuldades financeiras no exterior ”, contou Niskier, que cinco meses depois viajou a Paris com a mesma missão. Para Niskier, Adolpho e Juscelino “não fizeram negócios, não foram sócios, mas se aproximaram fraternalmente para dar um exemplo de amor ao Brasil e de confiança em seu futuro, com a construção da nova capital”. Com a televisão, o declínio

Durante mais de 20 anos, entre as décadas de 1950 e 1970, Manchete foi a principal revista do País, à frente de O Cruzeiro e Veja, que hoje é outro fenômeno Eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 1984, Niskier foi acolhido com carinho por Rachel de Queiróz. editorial, com circulação de mais de 1 milhão de exemplares. Mas na época em que disputava mercado “Naquela época a Manchete defendia a construção da cidade, enquanto O Crucom a Manchete, Veja esteve longe de amezeiro baixava o pau. Eu participei ativaaçar a hegemonia editorial da publicação dirigida por Adolpho Bloch. Nas décadas mente, como Chefe de Reportagem, da campanha de defesa da mudança da cade 1960 e 1970 Manchete foi o principal pital para o Planalto Central”, disse veículo de comunicação do País. A partir dos anos 1980, com a história da televisão Niskier. A Manchete já tinha se envolvido em é que veio o seu declínio. outras campanhas importantes, como a A causa da queda, diz Niskier, foi porque “misturaram as estações”: que apoiou o movimento da Bossa Nova, liderado por Ronaldo Bôscoli. Lutou tam“O Adolpho nasceu tipógrafo, e nesse bém pelo Cinema Novo com o Justino campo ele se destacou. Conseguiu fazer, graças à equipe que juntou, uma belíssiMartins quando este dirigiu a revista: “Como ele adorava cinema, foi sensíma revista como Manchete e outras mais vel ao movimento. Protegeu o Cinema que a acompanharam, como Fatos & Fotos, Ele e Ela, Pais e Filhos, entre outras. Quando Novo nas páginas da Manchete, contribuindo para que o movimento ganhasse forsurgiu a televisão na vida dele, começou ça. Outro que esteve engajado nesse proo fim. Não faltou quem o alertasse de que uma grande empresa precisa ter televisão jeto foi o Nelson Pereira dos Santos, que trabalhava conosco, como redator da também. O Roberto Marinho me disse Manchete”, recorda Niskier. que muitas vezes alertou Adolpho Bloch para não entrar na aventura da tv. MariPara dar uma idéia da força editorial da Manchete, Niskier lembrou o momento em nho me contou que se não tivesse sido que a revista publicou a série A Morte de um ajudado, a TV Globo jamais teria alcançado o sucesso que alcançou. Presidente. A iniciativa foi tomada depois que a revista encomendou uma pesquisa ao Lembra Niskier que inicialmente, anIbope, que constatou que os leitores quetes de se arrepender de ter investido nesse projeto, Adolpho Bloch ficou encantado riam que a publicação aumentasse o volume de texto, no lugar da fotografia: com a idéia de ser dono de um canal de “De posse dessa informação, o Jaquitelevisão. Ele participava pessoalmente das reuniões da emissora, a ponto de se to foi a Nova York e comprou os direitos de A Morte de um Presidente. A série foi envolver com palpites nas produções das publicada entre os anos de 1964 e 1965, novelas. A extinta Rede Manchete chegou a ter após a morte do Kennedy, em 1963, e a revista deu um salto de venda de 200 para 7 mil funcionários no auge da televisão 350 mil exemplares, mas não interessava brasileira (1980-1990), mas, diz Niskier, os Bloch não entendiam nada do mercado aos Bloch vender mais do que isso.” Niskier narra também o episódio da de televisão e por isso perderam muito amizade de Adolpho Bloch com Juscelidinheiro. A tv dilapidou as reservas do Grupo Bloch: no Kubitschek e revela que a relação entre os dois era baseada numa admirável “Eles queriam competir com a TV solidariedade. Diz Niskier que Adolpho Globo, quando poderiam ter ficado num confortável segundo lugar, e jamais terie Juscelino se gostavam como irmãos; ele foi testemunha de que Adolpho, após a am quebrado. Quando iniciou a tevê, em 1983, Adolpho tinha em caixa nada mecassação de JK, em 1964, precisou socornos que 25 milhões de dólares — e isso rer o amigo com remessas de dinheiro que fez para Nova York e depois Paris: tudo virou pó.”

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LIVROS

Deus é investigado em livro-reportagem de José Carlos de Assis Jornalista e professor de Economia Internacional sublima tragédia pessoal e guia o leitor através de teoria, fatos e opiniões sobre o cosmo e a vida. P OR P INHEIRO J UNIOR

Após cerca de 20 livros sobre economia e política, o jornalista, escritor e professor de Economia Internacional da Universidade Estadual da Paraíba (Uepa), José Carlos de Assis, se propõe a construir “uma ponte entre materialismo e espiritualidade”. E o faz investigando em abrangente e pedagógica reportagem baseada em testemunhos históricos, filosóficos, e científicos que se aprofundam com fatos, relatos, opiniões e situações. Tudo reunido no livro intitulado A Razão de Deus. Perseguido desde as mais remotas manifestações da inteligência humana, o tema é dos mais ousados e desafiador, bem diferente de ensaios jornalísticos anteriores do autor. Ensaios críticos que lhe deram ampla exposição na mídia e na academia ao analisar desvios e desacertos econômicos na administração pública. Com alguma profecia em A Crise da Globalização (Ed. Mecs, 2008), J. C. Assis chegou a antecipar a atual erosão capitalista. Seu novo livro A Razão de Deus (Civilização Brasileira, 351 pgs, R$ 40), destina-se igualmente ao debate. Até com mais polêmica e paixão. Principalmente porque A Razão de Deus expressa claramente a sublimação de uma inesperada tragédia, que se o autor não a exibe em detalhes por motivos evidentes, também não a esconde como um opróbrio. Tão pungente e espantosa se afigura a tragédia em sua íntima espiritualidade, vamos dizer “quântica”, que a morte como óbvio mistério da vida, o sofrimento como sinal e conseqüência deste fim e o desapego como filosófico remédio para neutralizar fatalidades sem volta, toda essa iminente perda de fôlego – o Atman ou força vital dos hindus referido pelo autor entre tantas outras teológicas referências – estende um fio de patética e sutil emoção através do livro. Mesmo quando o autor, a páginas tantas, se envereda numa recidiva econômica ao dissertar sobre as implicações múltiplas da atual realidade político-financeira de um mundo pretensamente em marcha para a nova “Idade da Cooperação”. Desde o início o leitor é convidado a tomar uma fascinante posição: – Ponha-se no lugar de Deus! Tamanha responsabilidade, ainda que meramente retórica ou simplesmente utópica, impõe incríveis enfrentamentos que podem, paradoxalmente, soar como uma prazerosa lisonja à compreensão do leitor. Como, por exemplo, ter que satisfazer necessidades básicas de seres criados “à sua imagem e semelhança” estando você no hipotético lugar de Deus. Assim – pergunta o autor -, você se con40

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formaria em aceitar a divisão de povos e mais povos em diferentes religiões e em milhões ou bilhões de seitas tão contraditórias? Você – “como Deus” – se sentiria honrado com tantos rituais, liturgias, orações e oferendas para ter que cuidar pessoalmente do destino individual dos atuais 7 bilhões de seres humanos? São indagações que levam em conta a inquestionável modéstia divina, um atributo oposto a louvores, lisonjas e glórias vãs. São também indagações que se justapõem à propalada bondade infinita de Deus. Índole máxima e basicamente cristã. Que acabaria manipulada na busca do consolo espiritual tão desejado por todos, tão necessário e tão difícil embora oferecido por tantas e por vezes contraditórias interpretações religiosas. Explicando o inexplicável

O leitor é maciçamente submetido a uma sucessão de proposições e desafios históricos direcionados à compreensão do cosmos e da vida, em toda maravilhosa complexidade desses fatores essenciais. Fatores que intrigam os pensadores desde a aurora da Civilização. Desta forma, o convite a tão complexa compreensão acaba se resumindo à escolha de três caminhos clássicos vislumbrados ou simplificados por sábios hindus e (possíveis) exegetas gregos: 1. O caminho do conhecimento; 2. O caminho da devoção; 3. E o caminho da ação. O terceiro seria o mais fácil dos caminhos. Porque ao longo dele, apenas agindo, “você evitará as perguntas mais complexas e simplesmente procurará fazer o que lhe parecer bom para si mesmo e para os outros”. Embora concluindo que qualquer que seja seu caminho, “ele o libertará se perseguido com afinco”, J. C. Assis entra pelo mais complexo e por vezes tortuoso caminho do conhecimento. Mas deixa claro que não pretende ater-se à metafísica, à filosofia, à teologia ou à ciência. E como não consegue escapar de nenhuma dessas especialidades, o autor é levado a referir-se a uma predominância para situar seu livro. Se é que os pensamentos, argumentos e fatos ali reunidos poderiam ser circunscritos a uma especialidade. Como não podem, o autor cita a área mais intrigante e de curso talvez mais misterioso cientificamente dentro das conveniências do tema:

– Trato de física quântica – diz em conversa telefônica com o resenhista deste livro. Física ou mecânica quântica é aquela que trata da intimidade – ou seria alma? – da matéria. Cuidando a mecânica energética exatamente dos fenômenos que ocorrem entre o universo infinitesimal dos átomos e subátomos. É aí, nessa intimidade, vamos dizer espiritual, que a metafísica e a metapsíquica buscariam a tão procurada “partícula divina”. Com a qual a ciência explicaria irrevogavelmente a existência de Deus. Na penúltima página o autor reforça o rótulo mágico que apõe ao seu livro com uma conclusão de transcendência poética: – ... na física quântica há inúmeros fenômenos descritos, mas não explicados, inclusive a luz. E inclusive Deus. Assim o inexplicável é sempre explicado com testemunhos às vezes contraditórios e contraditados. Como acontece com a mais conhecida das afirmações de Einstein de que “Deus não joga dados”, enquanto pesquisas recentes poderão, ao contrário, mostrar que “Deus joga dados, sim!” Ou como as sempre renovadas posições do mais celebrado cosmólogo da atualidade, o matemático-show Stephen Hawking, citado “para (o leitor) entender metafisicamente a mente de Deus no processo da criação”. Com essa ótica e sem querer antecipar a complexidade por vezes escorregadia de A Razão de Deus, observamos que J. C. Assis não foge às suas origens como repórter ao investigar causas e descrever conclusões próprias ou de cientistas longa e minuciosamente pesquisados. Sempre no caminho do conhecimento, ele certamente não usa o método do frade inglês Okhan -– a citada Navalha de Occan – como regra de produção literária. Segundo este método secular, a mais simples é sempre a melhor entre duas (ou várias) hipóteses. Por acreditar porém nesta simplicidade ou simplificação, J. C. Assis revela como fundamento de suas pesquisas que “a existência de Deus não pode ser provada cientificamente, mas é uma exigência da razão”. A exigência da razão provaria, como ponto de referência do livro, a existência de Deus. E se manifestaria em três momentos supremos da realidade do universo conhecido ou inferido cientificamente. Momentos nos quais, pelo menos

como tese central, a presença de um Criador consciente se fez necessária: 1. A criação do universo ou o (pretenso?) Big Bang; 2. A criação da vida e posterior diversificação (evolução?) das espécies; 3. A aquisição de inteligência criativa no homem ou da (subjetivo-objetiva?) linguagem. Já na dedicatória – para Aniucha e Lucinha in memoriam – o autor deixa claro que A Razão de Deus lhe adveio, foi inspirada ou sublimada em conseqüência de inenarráveis e sofridas emoções. Pesquisa no Google indica a existência de algo como uma onda de desestímulo à vida veiculando métodos e práticas de auto-extermínio. Os anjos desse “desencanto quântico” exploram um sinistro glamour de inexplicável filosofia atrativa para predispostos à depressão, envolvendo mentes oprimidas por fatores vários que sempre preocuparam a psiquiatria, a psicologia e a metapsicologia. As vítimas são descritas como jovens notadamente brilhantes com desenvolvimento intelectual bem acima da média. Mas permanentemente insatisfeitos com o que a vida lhes pode oferecer como justificativa existencial. Embora não apareçam no livro referências ao fenômeno que se aguçou com as facilidades da internet, jornais europeus principalmente vêm-se ocupando em desmantelar plataformas da web usadas para a disseminação no mínimo sinistra. A filha e sua prima

Ana Assis, a Aniucha da dedicatória, morreu em abril de 2011 presa de inesperado evento psicológico/psiquiátrico/ quântico!? E Lucinha era a prima yoguerosa-cruz Lúcia Maria Silva, inspiradora do autor e vítima de um câncer que não lhe respeitou o vigor intelectual. Após advertir com humildade que não é “muito sábio, nem muito virtuoso, nem muito bom”, esclarece J. C. Assis nas linhas finais de A Razão de Deus: “O desaparecimento de uma filha, Ana, em circunstâncias trágicas e inesperadas me ensinou a compreender do fundo da alma a necessidade do conceito budista de desapego como caminho para nos consolarmos da perda trágica de um relacionamento com uma pessoa amada. Essa experiência pessoal e intransferível, mesmo para uma obra de investigação filosófica e literária com ritmo de empolgante reportagem, confere amarga riqueza e ineditismo ao livro. Amargo também é o contexto de A Razão de Deus ao conectar de passagem a tragédia do autor com a experiência de morte vivida


por Charles Darwin. Ele – o evolucionista criador tão contestado e nunca completamente comprovado em sua magnífica teoria das espécies em evolução – teria se convertido de ateu em agnóstico, em razão da morte prematura de uma filha. O pensamento literário, conduzido quase em suspense e desesperado controle, é outra característica confessada, capítulo após capítulo, notadamente quando o autor explica com singeleza as poucas referências literais necessárias à exposição e argumentação no curso da obra: “Minhas idéias sobre física, biologia e espiritualidade desenvolveram-se ao longo de mais de 40 anos de leituras anárquicas.” Ele sobrepõe, também com deliberada anarquia, linha após linha, autores e livros que exerceram grande influência sobre o seu pensamento, considerando “uma desonestidade intelectual não mencioná-los nominalmente”. A começar por Bertrand Russel (Analysis of Matter) e Albert Einstein (Mein Weltbild) termina ele a vasta bibliografia de duas páginas sem parágrafos, com Robert Monroe (Journeys out of the Body). Quem é

Muito jovem, J. C. Assis deixou militâncias jornalísticas e sindicais no interior de Minas e veio para o Rio. Em 1972 estreou como repórter e depois editor de assuntos educacionais em O Jornal do Rio de Janeiro, extinto órgão dos Diários Associados, tendo dirigido a Redação por breve período. Transferiu-se como repórter de economia para o Jornal do Brasil e depois para a Folha de S. Paulo. Foi colunista de política econômica de O Globo, onde ocupou a página 3 com severas críticas à economia oficial. Atualmente colabora com CartaCapital. Dentre seus livros de maior interesse/sucesso destacamos A Chave do Tesouro (1983), Os Mandarins da República (l983), A Dupla Face da Corrupção (1984), O Grande Salto para o Caos(1985), com a economista Maria da Conceição Tavares, A Nêmesis da Privatização (1997) e As Sete Bestas do Fim do Mundo (1998). Convite à reflexão

Sem comprometer o integral interesse de A Razão de Deus, cito o parágrafo final do livro. Diz J. C. Assis: “Quando iniciei a elaboração deste livro, pensei principalmente nas minhas filhas, como forma de compensá-las por não lhes ter dado formação religiosa convencional: infelizmente, Ana partiu antes de lê-lo”. Mais que uma curiosidade, é sintomático que o prefaciador Francisco Antonio Doria – físico-matemático e membro da Academia Brasileira de Filosofia – se autoproclame um ateu. Diz ele que “só algo como o ateísmo faria sentido” neste mundo. Mas garante que a hipótese que J. C. Assis “expõe do Criador natural, simultaneamente determinístico e probabilístico, portanto quântico, se não convence, certamente convida à reflexão!”

Retratos de Lima Barreto por ele próprio Professor da Unicamp recolhe na obra do escritor confissões, sentimentos e aspirações. “Bem sabes o que é a dor de escrever. Essa tortura que o papel virgem põe n’alma de um escritor incipiente. É uma angústia intraduzível, essa de que fico possuído à vista do material para a escrita. As coisas vêm ao cérebro, vemo-las bem, arquitetamos a frase, e quando a tinta escreve pela pauta afora – oh! que dor! – não somos mais nós que escrevemos, é o Pelino Guedes”. (Diário íntimo, 1905, sem data). “Há meses inaugurou-se a iluminação elétrica em uma qualquer cidade. Para evitar desastres pessoais, o chefe da usina mandou pôr o seguinte aviso junto aos dínamos de alta voltagem, os transformadores etc.: ‘Perigo! Quem tocar nestes fios cairá fulminado. Pena de prisão e multa para os contraventores.’ Fazer um conto. Pelino, quando vê um sujeito ser fulminado pelo fio elétrico...” (Diário íntimo, 1910, sem data).

P OR R ITA B RAGA

Acaba de ser lançado o livro Lima Barreto: Uma Autobiografia Literária (Editora 34, 2012). O volume organizado por Antonio Arnoni Prado, professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, mescla vários escritos de ficção e não ficção, com notas explicativas para identificar personagens e situações. O primeiro trecho reproduzido acima é da carta de Lima Barreto a Mário Galvão – repórter do Diário do Comércio que viria a ser um dos fundadores da Associação Brasileira da Imprensa. Essas palavras foram escritas em 16 de novembro de 1905 e são um exemplo de como a leitura nos faz imergir em contextos, sentimentos e expressões que beiram os limites da linguagem. A figura de Pelino Guedes, uma espécie de “símbolo da intolerância e da gramatiquice prepotente”, como se vê, aparece em outros momentos e é um dos muitos elos entre a vida pessoal e a obra de Lima Barreto. Prado comenta que depois de um desentendimento com Pelino – à época, Diretor-Geral da Justiça do Rio de Janeiro – esse homem se tornou uma referência convertida em personagens como o Xisto Beldroegas, do romance Gonzaga de Sá (1919), e o ministro J. F. Brochado, de Numa e Ninfa (1915). Não seria o primeiro episódio em que a relação entre vida e obra é especialmente notável no caso de Lima Barreto. Aliás, outros livros recentes reforçam essa peculiaridade. Entre eles: Contos Completos de Lima Barreto, (Companhia das Letras, 2010), com organização de Lilia Moritz Schwarcz; e o volume Lima Barreto, da coleção Retratos do Brasil Negro (Selo Negro, 2011), no qual Luiz Silva (Cuti) mostra a atualidade dos problemas apontados e enfrentados pelo escritor no início do século 20. As edições acima e o lançamento da autobiografia literária reafirmam a experiência de que um bom livro leva a outro, sem qualquer necessidade de ordem cronológica. São leituras que despertam ou intensificam a vontade de saber mais.

De conhecer e de mais uma vez reconhecer o artista, o intelectual, o cidadão crítico, uma mente libertária tantas vezes rechaçada pelo preconceito. Bricolagem

A estrutura de nove capítulos, do “Autorretrato” aos “Outros retratos”, passa por temas como o narrador, os personagens, a crítica, a arte, a morte e a penitência, entre outros. Chama a atenção o caráter de bricolagem da obra que, com delicadeza e discrição, faz que o leitor se sinta, ele mesmo, um curioso revirando papéis de um baú alheio. Nessa colcha de retalhos, quase nem se repara o quanto nos deixamos conduzir pelo olhar do organizador. Ao nos confrontarmos com preciosidades do Diário íntimo – por vezes palavras soltas, a intenção de um escrito – ouvimos em alguma

DOIS FRAGMENTOS “Nunca me meti em política, isto é, o que se chama política no Brasil. Para mim a política, conforme Bossuet, tem por fim tornar a vida cômoda e os povos felizes. Desde menino, pobre e oprimido, vejo a ‘política’ do Brasil ser justamente o contrário. Ela tende para tornar a vida incômoda e os povos infelizes. Todas as medidas de que os políticos lançam mão são nesse intuito. [...]” (Da crônica Palavras dum simples, 1922 – em Marginália, 1953). “Quando me julgo – nada valho; quando me comparo sou grande.” (Diário Íntimo, 1905)

medida sua voz embargada, mas, logo adiante, a autocrítica, a consciência e a perspicácia diante de pessoas do seu tempo. Cabe destacar, quanto a isso, as palavras de João Antônio, também citadas na autobiografia: “Lima Barreto, a bem dizer, deu de ombros à própria glória literária. Não pensou nela. Escrevia por desafogo. Romances, contos e crônicas que publicou mantiveram caráter de protesto. Contra as rotinas, os preconceitos, contra a tolice, as frivolidades, contra o ramerrão, contra as normas e regras, que só o tempo consagrara. Não houve nas letras brasileiras, escritor tão revolucionário” (Jornal do Brasil, 17 de junho de 1978). A lista de comentários sobre o autor traz a voz de outras personalidades como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado, esses, aliás, valorizando a ousada perspectiva histórica e social adotada desde as primeiras publicações. Nomes como Antonio Candido, Alfredo Bosi e outros também estão registrados entre os comentaristas. Talvez seja oportuno para lembrar as palavras de João Antonio, na apresentação de um livro de crônicas escolhidas (Ática,1995): “apesar de algumas tentativas sérias de redescobrimento de Lima Barreto [...] há sempre pontos a ressaltar na importância do mulato de Todos os Santos, pois vão sendo esquecidos novamente, logo após esses ‘redescobrimentos’. [...]” “Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Despeço-me de um por um dos meus sonhos.” (Diário íntimo, 20/04/1914) O fato é que após 90 anos de sua morte, cá estamos lendo até seus mais íntimos lamentos. Suas reivindicações e revoltas continuam atuais, bem como suas esperanças e seu exemplo de compromisso com a verdade.

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JUAN ESTEVES/FOLHAPRESS

VIDAS

A unanimidade de

Eric Hobsbawm Marxista mesmo após o colapso do bloco soviético, historiador inglês se tornou um dos intelectuais mais lidos e respeitados do mundo. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

Está correto descrever Eric Hobsbawm, morto aos 95 anos no dia 1º de outubro, como um dos mais importantes historiadores britânicos. Correto, porém incompleto. Nas últimas três décadas, ele se tornara muito mais que isso: era um intelectual lido e respeitado em todo o mundo por gente de todas as áreas de conhecimento e mesmo de expressão ideológica diferente da sua – embora fosse um marxista que nunca foi sectário, manteve-se marxista mesmo após o colapso do bloco soviético. Ou seja, à esquerda ou à direita, seus leitores, do leigo ao mais especializado, apreciavam a lucidez com que refletia sobre o nosso tempo e a clareza com que escrevia seus livros. Ele fazia que o prazer da leitura nunca se perdesse por mais complexa que fosse a argumentação. Um caso raro. Uma perda irreparável. Da geração de historiadores que surgiu no pós-guerra – como os colegas E.P. Thompson e Christopher Hill, igualmente brilhantes, mas nem tanto conhecidos fora do campo de atuação –, Hobsbawm teve a princípio como especialidade o século 19. Como poucos, soube explicá-lo, em pinceladas largas, porém precisas, numa série de três livros que começou com A Era das Revoluções. O sucesso foi tanto que ele voltou a pensar sobre o período em A Era do Capital e A Era dos Impérios. Assim, a história do capitalismo, de 1789 a 1991, era revista com erudição, um pouco de humor e linguagem acessível. Para o século 20, reservou um dos seus livros mais elogiados: um quarto volume das Eras foi lançado em 1994. Ele o denominou A Era dos Extremos, menos histórico e mais especulativo, sobre o período que vai de 1914, quando começou a Primeira Guerra Mundial, ao ano de 1991, com o fim da União Soviética. Um desafio e tanto para um historiador: falar do próprio tempo em que viveu. A biografia de Eric Hobsbawm decerto o ajudou a compreender seu tempo. Nasceu em Alexandria, no Egito, em 9 de junho de 1917 – era a época em que o império britânico dominava aquele país. O local de nascimento o tornava particularmente sensível ao tema da hegemonia e da colonização. O ano coincidia com o da Revolução Russa. Era neto de judeus poloneses, o que o fez não só testemunhar, como viver ele mesmo o terror do antisemitismo que culminou com a Segunda Guerra Mundial. O pai era um inglês que se mudara para o Egito; a mãe, austríaca, estava de passagem pelo país. O filho Eric 42

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foi o primeiro, depois nasceria Nancy. Ele passou a infância em Viena, na década de 1920. Ficou órfão na adolescência – o pai morreu de ataque cardíaco em 1929, a mãe, de tuberculose dois anos depois. Jazz, uma paixão

Eric e Nancy, então, foram viver com um tio em Berlim, até ele completar o ensino secundário. Aprendeu a falar perfeitamente o alemão e então leu Marx pela primeira vez e se tornou um jovem politizado. Logo entraria para o Partido Comunista. No começo da década de 1930, quando Adolf Hitler ocupava o poder na Alemanha, ele já era um estudante de História em Cambridge, pólo de uma das mais importantes universidades do Ocidente. Foi na Inglaterra, assim que chegou, que descobriu o jazz, uma de suas paixões e que renderia um dos mais respeitados estudos sobre o tema, A História Social do Jazz, lançado no Brasil pela editora Paz & Terra. A reputação cresceu muito cedo. “Há alguma coisa que Hobsbawm não saiba responder?” Era assim que os colegas de universidade falavam do rapaz, ainda jovem. Antes do fim da guerra, em 1943, casou-se com Muriel Seaman, sua primeira mulher. Como professor, estreou quatro anos depois, no Birbeck College, em Londres. O primeiro livro veio logo depois: em 1948, lançou uma coletânea de textos sobre o começo da Revolução Industrial. Sua trajetória como autor foi cada vez mais fecunda e original – além da história social do jazz, publicou, por exemplo, o banditismo social de Pancho Vila a Lampião, a invenção de tradições, sociedades secretas da Europa. O casamento de Hobsbawm com Muriel terminou em 1951. De um relacionamento que não foi oficializado, nasceria seu primeiro filho, Joss Bennathan. O segundo enlace ocorreu em 1962, com Marlene, sua companheira até a morte. O casal teve dois filhos, Andrew e Julia – ao morrer, contava também sete netos e um bisneto. Os volumes das Eras saíram entre os anos 1960 e 1990. Vieram fazer sua fama, inclusive no Brasil. Entre os mais recentes, destacam-se o volume de memórias Tempos Interessantes, e um tomo sobre questões contemporâneas: Globalização, Democracia e Terrorismo. Até se aposentar, Hobsbawm continuaria a lecionar na Birbeck College. Universidades de vários países concederam-lhe o título de doutor honoris. Com bons argumentos na ponta da língua, Hobsbawm se manteve marxista mesmo após o colapso do mundo soviético. Por sua qualidade como pensador, era respeitado mesmo pelos mais ferrenhos críticos

do comunismo. Uma prova de como sua audiência era eclética foi a lista de convidados de seus aniversários de 80 e 90 anos: compareceram às celebrações pessoas tanto da ala liberal quanto da esquerda britânicas. Apesar da idade avançada, continuou a escrever. Era constantemente procurado por jornalistas para falar de todos os assuntos. Atendia-os quase sempre, só não acontecia devido a impedimentos de saúde ou compromissos. Subia os três andares de uma escada estreita e íngreme e enfim alcançava seu escritório, sala 33 da Tavistock Square nº 35, sede do Instituto de Estudos Latino Americanos da Universidade de Londres. Quem se recordou da cena, num dos obituários publicados na imprensa brasileira, foi Nicolau Sevcenko, respeitado historiador brasileiro, hoje professor titular de línguas e literaturas neo-latinas da Universidade Harvard, que compartilhou o lugar enquanto preparava seu livro Orfeu Extático na Metrópole. “A direção do Iela havia insistido várias vezes para que ele aceitasse se alojar nos andares inferiores. Nunca aceitou. A sala 33 era uma das maiores e nela ele dispunha sua miríade de livros, em estantes horizontais, pilhas verticais, arcos, pirâmides e labirintos. Sempre sabia encontrar o que precisava”, contou Sevcenko, que se recorda de que Hobsbawm ia ao prédio de sapatos, mas trocava por um par de tênis especialmente reservado para a grande escalada. Chegando, levava alguns minutos para recuperar o fôlego, e logo se punha a trabalhar concentrado. “Nunca se queixou do esforço.” “Vulgarizador”

A generosidade de Hobsbawm era espontânea e genuína, como recordou Sevcenko. “Gentilmente, ele me perguntava sobre o andamento das minhas pesquisas, fornecendo indicações preciosas, rebuscando dentre seu enorme acervo tudo o que considerava relevante para o desenvolvimento do trabalho. Não raro, me

trazia livros de sua biblioteca pessoal.” Hobsbawm se apresentava como “vulgarizador ”, mas, como ressalta Jorge Grespan, historiador brasileiro que leciona no Departamento de História da Usp, a autodenominação não deve levar a enganos: “atingir um público amplo significava não satisfazer a curiosidade acrítica do mercado editorial, e sim participar de um esforço formador.” Como outro de seus legados, diz que Hobsbawm “mostrava aos críticos que o marxismo não precisa ser economicista; mas o mostrava também aos marxistas”. Continua Grespan: “Como seria inevitável, há quem discorde de teses expostas na sua vasta obra. Mas não quem negue que ele foi um dos maiores historiadores marxistas de nossa era, cujos ‘extremos’ parece que só começaram depois de 1991.” A sorridente simplicidade do gigante britânico encantou imprensa, leitores e moradores de Paraty quando lá esteve como um dos convidados da primeira Festa Literária da cidade, a Flip, em 2003. O vigor o ajudou a vencer o calçamento irregular e as tantas solicitações. Uma queda em meados de 2010 reduziu sua mobilidade. Intelectualmente, manteve-se ativo. Numa das últimas entrevistas à imprensa brasileira, falou sobre que imagens marcavam o século 21. Respondeu que no começo da Era das Revoluções um observador que estivesse fora do planeta só via a Grande Muralha da China como resultado da ação do homem na Terra. Vendo hoje por satélite, encontravam-se muitos mais sinais: o declínio das florestas, o tamanho e a luz das metrópoles, o reflexo de guerras e catástrofes. Hobsbawm observou ainda que a grande dificuldade de ir de um lugar para o outro que se tinha até o século XVIII foi superada por duas revoluções sem precedentes: o trem, depois o avião. Outra, ainda mais imprevisível, foi a da internet. Sua capacidade de jogar luzes sobre o óbvio sempre deixou a todos boquiabertos. E, a partir de agora, órfãos de sua inteligência e simplicidade.


Carlos Nelson Coutinho: perdemos um grande pensador Ao lado do filósofo Leandro Konder, ele foi um dos maiores divulgadores da obra de Marx, Gramsci e György Lukács no Brasil. ALEXANDRE CAMPBELL/FOLHAPRESS

P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES

A morte do filósofo Carlos Nelson Coutinho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos pensadores políticos marxistas mais respeitados do Brasil, está sendo considerada uma grande perda, pois abre uma lacuna em um dos mais importantes ciclos da produção intelectual brasileira sobre o estudo da política e do marxismo, que ele ajudou a difundir no País com a inestimável colaboração do também filósofo Leandro Konder. Coutinho, que faleceu de câncer em 20 de setembro, aos 69 anos, alcançou reconhecimento internacional como um dos maiores especialistas no pensamento do filósofo húngaro György Lukács e do italiano Antonio Gramsci. Sobre este último, foi responsável pela tradução, coordenação e edição da obra no Brasil, a exemplo de Cadernos do Cárcere (Civilização Brasileira, 1999-2002). É também autor de vários livros considerados fundamentais para os estudos de teoria política, entre os quais Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político e A Democracia Como Valor Universa. Além disso, sua tradução de O Capital, de Karl Marx, é muito elogiada. Pelo vasto legado que Coutinho deixou para o Brasil nos campos da filosofia, política e serviço social, sua morte teve grande repercussão nos meios acadêmico e intelectual. Em nota, o Reitor da UFRJ, Carlos Levi, disse que Coutinho foi “um dos nomes de maior destaque na História da UFRJ e um dos principais pensadores do Brasil”: “Gramsciano de referência nacional e internacional, seu trabalho ajudou a formar pesquisadores e pensadores marcados pelo traço crítico essencial para a Universidade e para a mudança social”. Levi falou ainda sobre o prazer de conferir a Carlos Nelson Coutinho, recentemente, o título de Professor Emérito da UFRJ, “numa cerimônia onde se via nos olhos de estudantes, professores, funcionários, políticos e amigos o carinho e o respeito que tinham por esse grande pensador’: “Presto minha solidariedade e pesar à família e amigos”. Coutinho foi professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, dirigida pela professora Mavi Pacheco Rodrigues, cuja formação teve forte influência do filósofo: “Fui formada por ele, toda uma geração de pesquisadores da área de Serviço Social, que hoje são reconhecidos, foi formada por Carlos Nelson Coutinho. Ele extrapolava o serviço social, era nosso Gramsci brasileiro e foi um dos pioneiros na divulgação da obra de Lukács no Brasil, a partir dos anos 1960”, disse Mavi Rodrigues. Nos meios de comunicação do País registrou-se enorme manifestação de

Para o Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon), Coutinho foi intelectual combativo e intransigente defensor da democracia e do socialismo. “Sua morte é uma perda mais sentida ainda em razão do momento em que os rumos da Humanidade se encontram atingidos pelo crescimento de manifestações de barbárie a mutilar os espaços de democracia e liberdade conquistados pelas forças sociais progressistas”, escreveu o historiador Lincoln de Abreu Penna, Presidente do Modecon. Coutinho nasceu no interior da Bahia, no Município de Itabuna, em 28 de julho de 1943. Com a família mudou-se para Salvador quando ainda era menino. Seu pai era advogado e elegeu-se três vezes Deputado estadual pela antiga União Democrática Nacional (UDN). Ele se formou em Filosofia na Universidade Federal da Bahia. “Um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria dos professores”, disse numa entrevista à revista Caros Amigos. Na entrevista, Coutinho revela como se tornou comunista: “Eu me tomei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento”. Nessa época, Coutinho era um adolescente perto de completar 14 anos. Resolveu cursar Direito porque era a faculdade onde se fazia política. “Eu estava interessado em fazer política. Me dei conta de que uma maneira boa de fazer política era me tornando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela época tinha presença”, disse Coutinho a Caros Amigos. Florescimento político

Carlos Nelson tinha adoração pelo pensador Gramsci, aqui na tela de seu computador.

apreço e respeito pela memória de Carlos Nelson Coutinho. Cristina e Leandro Konder prestaram uma homenagem ao amigo e companheiro, de muitas lutas políticas e relevantes trabalhos no campo acadêmico num artigo publicado no JB Online, no qual afirmam que “a morte do filósofo Carlos Nelson Coutinho nos desafia a um reexame das relações de um marxismo aberto, fundado em Gramsci e Lukács, com as complexas relações exigidas pela situação do campo socialista”. Cristina e Leandro Konder ressaltam que a atuação e a contribuição filosófica e política de Coutinho têm duas vertentes. De um lado, “temos um movimento tenso na História das idéias sociais, uma proposta que mudou o mundo nos últimos dois séculos, mas agora enfrenta o desafio de se renovar ”. De outro lado, “temos a agitação peculiar à ascensão da classe operária ao poder por caminhos bastante diferentes daqueles que haviam sido previstos pelo barbudo filósofo alemão: Karl Marx”.

Segundo Cristina e Leandro Konder, esse foi o quadro em que Carlos Nelson Coutinho empreendeu sua trajetória. (Para ler o artigo na íntegra acesse jb.com.br/ pais/noticias/2012/09/21/morte-de-carlos-nelson-coutinho-deixa-legado) Socialismo e democracia

A revista História & Classes se refere a Coutinho como um dos maiores pensadores brasileiros, “sempre renitente em defesa da tradição marxista”. A publicação ressalta as edições das obras de Gramsci realizadas pelo filósofo, em conjunto com Leandro Konder, na década de 1960, suas teses polêmicas sobre a formação econômico-social do Brasil e o significado da democracia e conclui que “a perda de Carlos Nelson Coutinho nos deixa mais desamparados intelectualmente na resistência à tentativa de imposição neoliberal de um ‘pensamento único’ e contra os relativismos pós-estruturalistas que tanto seduzem os meios acadêmicos e intelectual”.

Em 1976, meses após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, por agentes da ditadura militar (1964-1985) nas dependências do DoiCodi do 2º Exército, em São Paulo, Coutinho disse que teve o pressentimento de que ia ser preso. Exilou-se na Europa, onde pasou três anos e, contou, aprendeu muita política. Coutinho morou na Itália “na época do florescimento do eurocomunismo. Nesse período, publicou o artigo A Democracia Como Valor Universal, seu primeiro texto, do qual tinha orgulho do “auê causado na esquerda brasileira” na época. O texto foi considerado reformista e revisionista, o que o deixou entusiasmado com a sua repercussão. Após retornar do exílio na Itália, ingressou na UFRJ, onde lecionou por quase 30 anos. Em sua biografia como militante político consta que foi filiado a três partidos políticos: PCB, PT e PSOL. Sobre o PCB, onde ingressou aos 17 anos, disse que se desfiliou em 1982, “quando me dei conta de que era uma forma política que tinha se esgotado”. Carlos Nelson Coutinho era professor titular de Teoria Política na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de vários livros, entre os quais, além dos já citados,Contra a Corrente: Ensaios Sobre Democracia e Socialismo (Cortez, 2. ed., 2008) e O Estruturalismo e a Miséria da Razão (Expressão Popular, 2. ed., 2010).

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VIDAS

“Sulzberger tinha uma forte crença na importância de uma imprensa livre e independente, sem ter medo de procurar a verdade, vigiar os poderes e contar as histórias que precisam ser contadas”, avaliou o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. “Ele foi um defensor absolutamente feroz da liberdade. Sua batalha pessoal no caso dos ‘papéis do Pentágono’ ajudou a ampliar o acesso à informação crítica e a refrear a censura e a intimidação do Governo sobre os jornalistas”, declarou Arthur Sulzberger Jr., seu filho e sucessor no comando do conselho do grupo. Além de Junior, Arthur deixou as filhas Karen, Cynthia, Cathy e sua esposa Allison Cowles. Quando deixou a presidência do jornal, em 1997, o The New York Times começava a explorar o universo digital, que nunca assustou Sulzberger. O jornalismo impresso como único pilar do veículo não era o que defendia. Assim conseguiu desenvol-

ver uma empresa que hoje está à frente na maioria das áreas, tanto no papel como no online, com os conteúdos mais diversificados. Basicamente o que fez foi fortalecer a posição do papel, expandir o negócio, suas operações e crescer, a partir de Nova York, para o resto do país e do mundo. “Muito presente na Redação, Punch será lembrado por raramente interferir no trabalho de edição. Seu comando foi marcado também pela revitalização financeira e pelas inovações no jornal”, destacou Luciana Coelho, correspondente em Washington da Folha de S.Paulo, em artigo publicado no Observatório da Imprensa. “Sob sua direção o jornal norteamericano ampliou e consolidou sua circulação nacional, reforçou sua independência editorial e iniciou inovações como o uso de cor, a ampliação de cadernos e a criação de suplementos. Ele foi um dos últimos representantes de uma espécie hoje em extinção nos Estados Unidos, a do publisher todo-poderoso, que se guia principalmente por suas convicções”, definiu Sérgio Dávila, Editor-Executivo da Folha de S.Paulo, no mesmo site. A eficiência de sua gestão sob o ponto de vista empresarial pode ser medida pelos números. Quando assumiu a direção do periódico, o Times tinha uma tiragem de 714 mil exemplares diários. Ao deixar o cargo para a sucessão de seu filho, o jornal contabilizava tiragem diária de 1,1 milhão de exemplares. Durante este período, o faturamento do diário que se tornou o mais influente do mundo subiu de US$ 100 milhões anuais para US$ 2,6 bilhões.

Peixoto até à Rua Dr Celestino e a Avenida Marquês do Paraná. Rememorar UH era de praxe, como se cumpríssemos um dogmático ritual de saudade ao Velho Vespertino de Samuel Wainer. Enquanto ele comprava laranjas e peras no Hortifruti da Marquês, eu buzinava novidades no ouvido dele. Ele retribuía com críticas ácidas quase sempre aos personagens do dia-a-dia, que podiam ser críticas a um candidato malenjambrado à Presidência, como podiam ser uma comparação dos políticos da hora com os bons nomes de outrora – um dos quais era Leonel Brizola, ao qual se referia como ‘O Engenheiro’. Ori era comuna. Daqueles comunas idealistas bem abertos e bonachões. De uma das últimas vezes ele comentou o quanto estava bom o Jornal da ABI: ‘A melhor leitura que temos agora!...’ Concordei com ele, falando de matérias que tinham saído no Jornal da ABI, como aquela do fim do JB, a dos sinos dobrando pela Tribuna da Imprensa... E então voltávamos à vaca-fria da morte de UH: ‘Uma pena, nunca mais apareceu outro jornal igual’. Concordei. Então pegávamos o gancho e nos comprazíamos em desancar os jornalões sem livrar a cara de nenhum: ‘Ler qualquer um é ler qualquer todos’. Rimos ao constatar que notícia mesmo a tv até estava dando para o gasto. ‘Pena que a Globo continuava esterilizada, facciosa, fascista’. E imprecisa, inclusive imperdoavelmente quanto a locais: ‘Como é que pode eles não dizerem nem a cidade onde as coisas aconteceram?!’ Era verdade, é verdade: a precisão dos fatos até com relação

à localização é ignorada em detrimento da imagem. ‘Afinal, Pinheiro, texto é só legenda e fala de apresentador analfabetizado que não está nem aí para a verdade do que ele está falando ou escreveram para ele falar como um papagaio que só fala bem se for palavrão’. Concordei. E vou continuar concordando com tudo de e sobre Ori. Só não concordo com sua morte assim tão depressa. Será que não dava, oh! Deus!, para esperar mais um pouco? O Continentino Porto tinha me pedido para fazer um perfil dele que ia sair no próximo número de O Jornalista, o jornal do Sindicato. Prometi fazer. Continentino me disse então que ia pegar uns dados iniciais com ele: nascimento, educação, jornais todos onde trabalhou etc... Eu falei com Continentino que ia arrancar dele umas coisas engraçadas sobre sua vida de jornalista e de assessor de imprensa pra botar no perfil que faríamos a quatro mãos, pois duas mãos só não iam dar conta para fazer um bom perfil do cara. Ficou combinado. Só esquecemos a lição do Garrincha de combinar com ele, com Ori. Não esquecemos não, aliás! Não deu foi tempo. Ori morreu nesta quarta-feira, 12 de setembro. Enquanto escrevo essas anotações que me vêm de repente à cabeça... e aos olhos turvos... penso que Ori acabou de ser sepultado naquele cemiteriozinho meio miracemense do Saco de São Francisco. Onde também está enterrado Paixão. Sílvio Paixão, o cabeça de chapa sindical. Será que os dois já se encontraram lá em cima e estão no maior abraço depois de tanta atribulação aqui por baixo?...”

Sulzberger, parte da história da imprensa norte-americana P OR P AULO C HICO

Nas três décadas em que atuou como publisher do The New York Times, Arthur Ochs Sulzberger ajudou a renovar o jornal com seções especiais e diversificou o modelo de negócios da empresa. Sulzberger, que sofria de Mal de Parkinson, morreu na manhã de 29 de setembro, aos 86 anos, em sua casa em Southampton, Nova York. Nascido em 1926, mais novo de quatro irmãos, formou-se em Inglês na Universidade de Columbia, mas fez carreira no jornalismo. Na maior parte do tempo ele atuou no próprio The New York Times, onde começou como repórter. Em seguida, foi correspondente em Paris, Roma e Londres. Assumiu a direção do jornal em 1963, aos 37 anos, quando o veículo passava por séria crise econômica. Ajudou a companhia a conquistar estabilidade financeira, abrangência nacional e a ampliar os negócios com revistas e emissoras de rádio e de televisão. Em sua gestão, a publicação ganhou 31 prêmios Pulitzer. Entre 1992 e 1997, Sulzberger atuou como Presidente da empresa, mantendo voz ativa na administração até 2002, quando se despediu do Conselho do grupo. Veterano da Segunda Guerra Mundial e mais conhecido pelo apelido de Punch (‘soco’,

em inglês), recebido ainda na infância, Sulzberger atuava na Marinha, em função de comando dos fuzileiros navais. Talvez por este perfil, tenha surpreendido tanto os críticos ao transformar o The New York Times em um enorme conglomerado de mídia nos Estados Unidos e na Europa. Sua decisão mais radical como editor ocorreu em junho de 1971, quando bancou a divulgação de reportagens sobre papéis secretos (Pentagon Papers) que revelavam que o Governo americano havia mentido sobre seu envolvimento na Guerra do Vietnã. Na ocasião, combateu a tentativa do Presidente Richard Nixon de barrar a veiculação das matérias. Os documentos obtidos pelo jornal na época mostravam que os Estados Unidos encobriram operações no Vietnã, tais como a expansão dos bombardeios e ações por terra, ao contrário do que informavam oficialmente. “Eu não tinha dúvidas de que os americanos tinham o direito de ler essas informações, e que nós no Times tínhamos a obrigação de publicá-las”, disse o próprio Sulzberger, no auge do conflito com o Governo Nixon, numa disputa que chegou aos tribunais. “Foi ele quem decidiu que aquele seria um caso que tinha de ser enfrentado. Essa decisão honrará para sempre não somente os jornalistas, como

Oriovaldo Rangel, jornalista-escritor Afastado há anos de atividade na imprensa, o jornalista Oriovaldo Rangel faleceu no dia 12 de setembro, em Niterói, onde se radicara desde jovem. Ori, como era chamado pelos amigos, trabalhou no diário Imprensa Popular, no começo dos anos 1950, na Última Hora de Samuel Wainer e na Agência Fluminense de Informações, órgão do Governo do antigo Estado do Rio. Sobre ele o jornalista Pinheiro Júnior, Conselheiro da ABI, fez comovida crônica sob o título “Oriovaldo podia ter esperado um pouco. Nós íamos fazer o seu perfil”, a seguir transcrito: “Trabalhamos juntos na velha e atribulada UH. Ele como redator de Esportes. Cobria o Flamengo. Era 1958. Vez por outra nos esbarrávamos na Redação da Geral. Sabia que ele tinha vindo da Imprensa Popular, onde contou que entrou em 1953 para fazer tudo ou quase tudo na Redação do órgão superesquerdista que só faltava ter a foice e o martelo junto ao logotipo. Apesar de sermos vizinhos de bairros em Niterói, não o via com muita freqüência na Última Hora da Sotero dos Reis, pois talvez ele passasse às carreiras pela Redação principal, que era a Redação-corredorde-trânsito da Reportagem Geral. Muito tempo depois – o jornal já empastelado e incendiado pelos paramilitares em 44

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1964 e depois comprado em 1972 pela própria ditadura – encontrei Oriovaldo Rangel, o Ori, no Sindicato-RJ, quando ambos integramos nos anos 2000 as seguidas chapas encabeçadas por Sílvio Paixão e por Ernesto Vianna. Das duas vezes entramos na representação junto à Fenaj. Em seguida ele lançou o seu Espólio de Fantasmas. Fui à noite de autógrafos na Sala Carlos Couto e comentamos acontecidos de Miracema – ‘um burgo fluminense mineiríssimo’ –, o set literário, aliás, de seu livro, uma fracionada ilíada regional com Maria Batuquinha e outros protagonistas de acontecências sertanejas miracemenses, fronteira com MG. Um livro de histórias curtas, mas de primeira grandeza como memorial gostoso de ser lido. O jeito narrativo e literário faz lembrar muito Guimarães Rosa, Grande Sertão, Corpo de Baile, Sagarana... E quando um jornalista/escritor faz lembrar o inimitável e por vezes impenetrável Rosa é porque ele é muito bom. E Ori era muito bom mesmo! Depois dos autógrafos que atraíram velhos companheiros ultimahorenses – inclusive o também miracemense e homem do samba José Carlos Rêgo – desandei a ver o Ori na rua. Quase sempre o via e parava para um dedo de papo na área de sua casa que se estende no raio que vai do fim da Amaral

as futuras gerações americanas”, lembrou Floyd Abrams, o advogado que representou o jornal na Justiça, esfera em que o NYT obteve autorização legal para publicação das denúncias, numa histórica decisão em favor da liberdade de imprensa. Defensor da liberdade


A solidão, segundo Autran Dourado Escritor, morto aos 86 anos no dia 30 de setembro, deixou uma obra sólida e consagrada, embora não buscasse o status de best-seller.

P OR G ONÇALO J ÚNIOR

O

mineiro Autran Dourado (19262012) costumava dizer que o escritor é, na verdade, um solitário. A frase resumia seu próprio modo de encarar o ofício que abraçou por toda a vida: explicava não saber quem era seu leitor nem pretender procurá-lo. Apenas ocupava-se em fazer seus livros. Via com espanto as novas gerações de autores que, entre festas literárias e listas de mais vendidos, dedicavam-se a logo se tornar famosos – afinal, “vender livro é um acidente na vida de um escritor ”, como declarou em longa entrevista em 2005, quando sua obra voltava outra vez às prateleiras em novas edições da Rocco. E foi assim, em quase silêncio, combinando um tipo de sensibilidade e discrição que, para muitos, advinha sobretudo de uma mineiridade ainda marcante apesar de tantas décadas de vida no Rio de Janeiro, que construiu uma obra sólida, caracterizada não por ser fenômeno de vendas, mas por ser apreciada como poucas não só no Brasil como no exterior. Escrever – como explicou Dourado em outra de suas definições – é uma fatalidade. “Você é destinado à literatura, e não a literatura a você”, disse ele, que morreu no dia 30 de setembro, aos 86 anos. Sua vocação apareceu muito cedo. Quando se lembrava de como tudo começou, gostava de citar a primeira frase que construiu, ainda criança, já com personagem e enredo. Foi simples assim: “Paulo tinha uma bola”. Da infância e começo de juventude, passou então a colecionar personagens e ambientes guardados das cidades onde viveu: nasceu em Patos de Minas, depois morou em Monte Santo de Minas e São Sebastião do Paraíso, até se mudar para Belo Horizonte, aos 17 anos, como faziam os jovens que desejavam continuar os

estudos. As memórias desta época ajudariam a povoar sua literatura ao longo de seis décadas. Como não reconhecer nas lembranças de sua vida mineira as tintas com que pintou a fictícia Duas Pontes, repetida em muitas das histórias, narradas pelo mesmo João da Fonseca Ribeiro? O incentivo para prosseguir na literatura veio também muito cedo: ainda na juventude, Autran Dourado recebeu seu primeiro prêmio literário – sem grande expressividade, tanto que não se lembraria do nome – por um conto. Com prêmio ou sem prêmio, decerto não iria parar. Estudou Direito, pois não havia cursos de Comunicação. Mas foi como jornalista estabelecido no Rio de Janeiro, então capital do País, que obteve sua subsistência. A dele e da família, que logo se tornaria numerosa. Do casamento com Lúcia Campos, que durou seis décadas, teve quatro filhos, dez netos, dois bisnetos. Num curto intervalo da vida na Redação, trabalhou, durante o Governo Juscelino Kubitschek (1902-1976), como seu Secretário de imprensa. O Rio de Janeiro em que viveu era também de outros mineiros, com quem compartilhou dias de sol e chuva, como Fernando Sabino (1903-2004) e Otto Lara Resende (1922-1992), e o capixaba de Cachoeiro do Itapemirim Rubem Braga (19131990), mestres como ele. Entre romances, contos e ensaios, foram mais de duas dezenas de livros que Dourado escreveu, entre as quais obrasprimas como O Risco do Bordado e Ópera dos Mortos, este escolhido pela Unesco como um dos livros da lista dos mais representativos da literatura mundial.

Outro de seus romances, Os Sinos da Agonia, foi escolhido para exames em universidades francesas. Os exemplos servem apenas para dar uma medida de sua apreciação no exterior. A idade avançada não o impediu de se manter ativo nos últimos anos: o derradeiro romance saiu em 2003, Monte da Alegria, e, três anos depois, ele lançou o volume de histórias curtas O Senhor das Horas. Entre os prêmios e honrarias que essas obras lhe renderam, recebeu do brasileiro Jabuti ao alemão Goethe. Dos mais significativos, destaca-se o Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa, e o Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Não só o Autran Dourado dos romances e contos se tornou presente e apreciado. Publicou um livro de memórias, Gaiola Aberta, em que se recordou dos tempos de JK. Como lição aos aprendizes do ofício, preparou seis livros de ensaios, entre eles Uma Poética do Romance, Um Artista Aprendiz e Breve Manual de Estilo e Romance. Nessas obras, revela suas mais importantes influências, de Cervantes a Flaubert, refaz sua trajetória e estabelece suas principais idéias sobre a arte da escrita. Sua obra também chegou às telas do cinema. Uma Vida em Segredo se tornou filme homônimo dirigido por Suzana Amaral. Autran Dourado concordava que seus personagens se pareciam muito com ele mesmo. Certa vez, confessou: “Eu os conheço muito bem e sofro a angústia que eles sofrem”. Longe do glamour que cerca a vida literária, explicava que não tinha prazer em escrever. A satisfação vi-

“Você é destinado à literatura, e não a literatura a você”

nha quando o livro estava pronto, quando experimentava o sentimento de quem descarrega um peso grande dos ombros. Sobre o que seria a inspiração, respondia com graça: dizia sempre que preferia usar a expressão “idéia súbita”, e esta se devia cultivar até se tornar um romance. A quem lhe perguntava se o romance como forma narrativa iria morrer, respondia, ainda mais bem-humorado: “Se vai morrer, eu não posso dizer, porque quem pode morrer antes sou eu.” Até seus 86 anos, Dourado acordava cedo e, com as mãos trêmulas devido ao mal de Parkinson, escolhia na estante o livro que iria ler – ou reler — durante o dia. Até que, na manhã do domingo, 30 de setembro, sentiu-se mal assim que despertou em sua casa em Botafogo, Zona Sul do Rio. Sofria de insuficiência respiratória, o que o levara a passar quase cinco meses internado. Liberado pelos médicos, estava convalescendo em casa havia dois meses. Foi enterrado no fim da tarde do mesmo dia em que partiu. Na despedida, a filha Inês Autran Dourado Barbosa se recordou de um pai “muito afetivo e sempre muito carinhoso”, que chamava cada um dos netos de “menino bom”. Dizia, com a sapiência de quem sabia do poder transformador da palavra: “A gente tem que chamar de menino bom. Vai que ele acredita.’’ O apuro com o estilo sempre foi muito elogiado pelos pares – à notícia de sua morte, seguiram-se textos e declarações de colegas de ofício que o respeitaram toda vida. Carlos Heitor Cony, cronista e romancista, recordou em crônica na última semana o seu estilo inconfundível, na verdade “mais uma técnica do que um estilo”, que o fez estudado em universidades brasileiras e do exterior. Para Cony, é difícil catalogar Autran Dourado em qualquer escola ou geração. “Como mineiro, pode lembrar Cornélio Pena ou mesmo Lúcio Cardoso.” Para ele, o colega não inventou palavras, “mas soube usálas de forma magistral, rompendo as frases de maneira tão pessoal que qualquer um de seus textos pode ser facilmente identificado. Não criou uma linguagem, como Guimarães Rosa, mas a usou de forma tão pessoal que o torna original, para não dizer único.” O escritor baiano Antônio Torres lembrou o seu legado com o que de melhor ensinou à literatura brasileira: “a carpintaria literária”. Raimundo Carrero, ficcionista pernambucano, disse que o que definia o autor mineiro era a seriedade com que lidava com a literatura: “criar era algo como um ritual religioso para ele. Seus livros apontam diretamente para as contradições do mundo. O romance, para ele, tinha que ser cruel, tinha que bater no centro da alma humana”. Para o poeta maranhense Ferreira Gullar, o mineiro, sem fazer alarde, exercia o ofício com muita consciência e sensibilidade. O crítico literário José Castello, carioca radicado em Curitiba, também o elogiou em declarações públicas depois do anúncio de seu falecimento: “Ele foi um escritor de uma obra muito coerente, seguiu por décadas a fio no seu caminho. Não se deixou influenciar por modismos ou tendências, era muito convicto de seu projeto literário”.

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VIDAS

Leonor Guedes, criadora da Orbe Press Primeira mulher no Brasil a criar e manter uma agência de notícias, a jornalista Leonor Guedes morreu no dia 14 de setembro, em Niterói, onde morava. Leonor, de 88 anos, estava internada havia um mês no Hospital Procordis, em Santa Rosa, Niterói, com quadro de insuficiência respiratória e renal. Seu corpo foi sepultado no dia 15, no cemitério do Maruí, no Barreto. Leonor Guedes iniciou a carreira na imprensa ainda na adolescência, em Florianópolis, Santa Catarina. Sócia da ABI desde 17 de janeiro de 1963, ela fundou a Agência Orbe Press, que se especializou na produção e distribuição de reportagens e notícias sobre a vida nos países socialistas e principalmente na antiga União Soviética. Isso provocou perseguições pela ditadura militar, após o golpe de 1º de abril de 1964. A repressão plantava notícias falsas a seu respeito, como uma publicada na primeira página do jornal O Globo sob o título “Espiã brasileira a serviço da União Soviética.” Mulher de fibra, apesar do seu 1,47 m de altura, Leonor invadiu o gabinete do diretor do jornal, Roberto Marinho, chamando-o de leviano, mentiroso e covarde. Dali foi para o Departamento de Ordem Política e Social-Dops e exigiu providências, mas foi presa e torturada. Com a intervenção do advogado Heleno Fragoso, conseguiu ser libertada no dia seguinte. Após inúmeras invasões de membros da Polícia Federal à sua agência de notícias, Leonor decidiu deixar o Brasil e viajou para diversos países, incluindo a Rússia, onde recebeu várias homenagens. Anos mais tarde, retornou ao Brasil e casou-se, em segundas núpcias, com Valdir Muniz. “A trajetória de Leonor Guedes merece ser reverenciada pelo seu firme propósito de combater a brutalidade e a prepotência do regime militar”, disse o jornalista Arcírio Gouvêa Neto, Secretário da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI. 46

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A rainha da televisão brasileira Com 62 anos de carreira, Hebe Camargo se tornou personagem singular da História da televisão do País e deixa como legado uma vida emblemática. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

Contra as lendas não há argumentos. Foi assim com a apresentadora e cantora Hebe Camargo (1929-2012), falecida aos 83 anos, em 29 de setembro. Ela deveria cantar o Hino da Televisão brasileira, no dia da inauguração da primeira emissora brasileira, a Tupi, de São Paulo, em 18 de setembro de 1950. A música fora composta para a ocasião. O convite partiu do próprio Assis Chateaubriand, magnata da imprensa brasileira, dono dos Diários Associados. A jovem, com certo atrevimento, faltou ao evento para – como confessaria apenas décadas mais tarde – sair com um namorado. E assim foi substituída por aquela que seria uma de suas melhores amigas, a atriz Lolita Rodrigues. Outra história, porém, diz que foi por causa de Hebe que somente uma das duas câmeras adquiridas para colocar a Tupi no ar funcionou porque ela seguiu o protocolo de quebrar uma garrafa de champanha no equipamento, que o danificou de modo irremediável. Corre a história de que a primeira versão é verdadeira e a segunda, não. Foi a própria Hebe quem confirmou isso. Como não havia tv gravada, só ao vivo, nada restou daquele momento histórico. Fato foi que aquela moça de 21 anos que queria ser estrela, sem saber exatamente se faria isso como cantora, atriz ou apresentadora, atrelou sua longeva vida à longa trajetória do veículo no Brasil e símbolo de uma época que só havia em seu programa. Se existe uma realeza na tv brasileira, Hebe foi a grande soberana por mais de meio século. Não podia então ser diferente no dia de sua despedida: as transmissões de sua morte no sábado, 29, e de seu sepultamento no domingo, 30 de setembro, atingiram recordes de audiência. O SBT, casa onde atuou nas últimas três décadas e que anunciara dias antes de sua morte a assinatura de um novo contrato com a estrela, elevou em dois pontos sua média diária. A emissora que costuma alcançar seis pontos aos domingos

– cada ponto corresponde a 60 mil domicílios na Grande São Paulo – chegou a 7,8 pontos. No velório, uma das cenas mais marcantes, destas que entram para a história, foi a do beijo comovente que seu corpo recebeu do rei da tv brasileira – se existe mesmo uma realeza. Debruçado sobre o caixão, Silvio Santos, patrão e amigo, lhe deu um selinho, marca registrada da apresentadora. A doença que acometia Hebe havia dois anos nunca conseguiu lhe tirar o bom humor. Se isso aconteceu, ela foi uma lady em esconder. Com classe e graça. A risada larga, sonora e fácil a acompanhava desde a estréia, quando os primeiros aparelhos de televisão começaram a chegar ao País. Em 1950, ela era uma jovem cantora de rádio quando foi convidada a cantar na transmissão que inauguraria a televisão no Brasil. Até aquela data, a moça morena nascida em Taubaté, interior paulista, em 8 de março de 1929, já tinha uma trajetória bem sucedida. Com o pai, o violinista e maestro Fêgo Camargo, descobriu a música cedo. Ele a levava para participar de corais nas igrejas da cidade. O destino, então, deu-lhe uma mão. A família Camargo se mudou para São Paulo em 1943, onde Fêgo passou a integrar a Orquestra da Rádio Difusora. Ao lado da irmã Estela, Hebe formou uma dupla, Rosalinda e Florisbela, que se apresentou no programa Arraial da Curva Torta, na Rádio Difusora; pouco depois, ela seguiu em carreira solo. Nos programas de calouros, um dos números recorrentes era a imitação que fazia de Carmem Miranda. Logo a dupla Camargo gravaria o primeiro disco, em formato de 78 rotações (apenas uma música de cada lado), pela gravadora Odeon. No repertório, havia de tudo – samba, boleros, mambos e guarânias. Até baião as duas irmãs cantaram. A simpatia extrema foi cada vez mais abrindo portas nas rádios para Hebe. Na Tupi,

fez par com o comediante Amacio Mazzaropi (1912-1981), então humorista de sucesso no cinema. Na Rádio Nacional, a cantora estrelou o programa Encontro Musical – ao microfone, a informalidade na conversa com convidados era cativante e inovadora. Ninguém antes se atreveu a ficar tão à vontade. Se a primeira aparição na televisão foi adiada, logo entraria para nunca mais sair. Já com os cabelos tingidos de loiro, estreou, enfim, no comando do seu primeiro programa na tv. Era o ano de 1955. Chamava-se O Mundo é das Mulheres, considerado o primeiro voltado para o público feminino, exibido pela antiga TV Paulista nos cinco dias da semana. Uma maratona televisiva que a levava à exaustão, apesar da pouca idade, porque tudo continuava a ser feito ao vivo. “Nunca tive a intenção de me tornar apresentadora. Aconteceu”, dizia Hebe, sobre a estréia na profissão que a consagrou. Agnaldo Rayol, cantor e amigo dessa época, se recordaria numa entrevista, no dia de sua morte: “Ela batalhou e trabalhou muito. Venceu pelo talento e demonstrou uma força extraordinária até o fim. E era aquela mulher de felicidade transbordante sempre, era aquilo mesmo, muito autêntica”. A trajetória de cantora não foi completamente interrompida, mas não era mais prioridade. Após lançar três discos entre 1959 e 1966, Hebe compilou suas canções mais conhecidas no cd Maiores Sucessos, de 1995. Depois, lançou mais quatro discos. Pra Você (1998), Como é Grande Meu Amor por Você (2001), As Mais Gostosas da Hebe (2007) e Hebe Mulher (2010, ano em que participou do badalado Prêmio Grammy Latino).

“Nunca tive a intenção de me tornar apresentadora. Aconteceu”

Pedidos de casamento Na década de 1960, a cantora silenciava, a apresentadora explodia. Nessa épo-


DIVULGAÇÃO/SBT

ca, já era a rainha na TV Record, e assim passou a ter um programa com seu nome, “Hebe Camargo”. O primeiro convidado? O galã Roberto Carlos, líder do movimento musical da Jovem Guarda. Seria outro dos grandes amigos. Até os últimos dias, a apresentadora se divertiria lhe fazendo pedidos de casamento nas horas mais inesperadas. Em 1969, ela mostrou ao repórter da revista Realidade José Hamilton Ribeiro, com humor, um diploma para comprovar não ter só o curso primário. Nele estava escrito: “Homenagem a Hebe Camargo, pela colaboração prestada na divulgação do primeiro aniversário do governo do Presidente Costa e Silva.” Quando a tv em cores chegou ao País, em 1973, o programa de auditório que inaugurou a novidade foi o seu. Foi assim que a trajetória de Hebe passa a se confundir com a História da televisão no Brasil – sua presença nas telas foi ainda mais longeva que a de Flávio Cavalcanti, Jota Silvestre, Blota Junior e Chacrinha, outros gigantes como ela nas primeiras décadas. Se brincava muito, ela

jamais expôs sua vida pessoal em busca de publicidade. Na vida amorosa, dois casamentos deram tranqüilidade a Hebe. Em 1964, casou-se com Décio Capuano, empresário com quem teve Marcelo, hoje com 47, seu único filho. Na ocasião, por dois anos, ela ficou afastada da tv, para cuidar do seu bebê. A união do casal, no entanto, não durou muito. E chegou ao fim em 1971. Dois anos depois, Hebe passou a namorar o empresário Lélio Ravagnani (1921-2000), com quem viveu até à morte dele. Jamais deixou de mostrar em público seu amor e respeito pelo companheiro de tantos anos. Hebe começou a virar mito da tv em 1972, quando foi lançado o livro A Noite da Madrinha, um inovador estudo sobre o meio televisivo, numa época em que a academia e a elite intelectual torciam o nariz para a televisão, que já era o mais importante veículo de comunicação de massa do País. Seu autor, o hoje respeitado acadêmico Sergio Miceli, dedicou-se a desvendar os suportes ideológicos da classe média brasileira e investigou as

condições em que a indústria cultural se consolidou no País. Ao focar em Hebe, ele demonstrou como a apresentadora, assumindo as personas de mãe, filha, esposa e dona de casa, duplicou os papéis sociais reservados à mulher. Desse modo, reforçou a necessidade de conformidade social e a adesão a um determinado universo ideológico. Ao adotar um programa de auditório como tema, ainda no início dos anos 1970, o sociólogo propôs uma reorganização da hierarquia dos objetos de estudo acadêmico e inaugurou uma fecunda linha de reflexão nas ciências sociais brasileiras. Mais do que isso: mostrou os meios de comunicação de massa como instrumentos estratégicos da dominação de classe, numa crítica contundente à cultura oficial do País em plena ditadura militar. Só uma brincadeira Era uma época em que os holofotes estavam sobre ela, o tempo todo. Em reportagem publicada na revista Intervalo, em 1971, que Miceli reproduziu em seu livro, Hebe declarou que era uma “calúnia dessa gente” considerá-la “uma atriz”. E um absurdo quererem ver suas participações em especiais humorísticos da Record “como se estivessem julgando uma Cacilda Becker, uma Fernanda Montenegro”. E perguntou: “Será que eles (os jornalistas) não entendem que tudo isso é só uma brincadeira?”, concluiu antes de dar uma de suas gargalhadas características. Mesmo assim, como lembrou Eduardo Escorel, da revista Piauí, os variados papéis que Hebe representou em seu programa não deixam dúvida de que, à sua maneira, ela sempre foi e continua a ser uma atriz, embora pareça não saber que brincadeira é coisa séria. Em 1985, quando assinou contrato com o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), de Silvio Santos, Hebe deu início à sua última e uma das mais gloriosas fases como apresentadora. Foram quase três décadas em que receberia no seu famoso sofá artistas, políticos, desportistas, celebridades do Brasil e do exterior (leia a entrevista que Hebe fez com Rodolfo Konder em seu programa na página 15). “Gracinha!” se tornaria seu elogio preferido; as roupas vistosas e as jóias enormes, parte do seu estilo. Um figurino sofisticado que variava sempre. Jamais liderou a audiência, mas tinha público cativo e influente, pois suas atrações rendiam muitos comentários e a imprensa televisiva não se cansava de seguir seus passos e comentar sua vida. Ela só sairia da TV do amigo Silvio em dezembro de 2010, quando anunciou que se transferiu para a Rede TV! Na época, ela argumentou que deixava o canal devido às constantes mudanças e horário de sua atração. Quando isso aconteceu, ela estava muito doente, embora a informação não tivesse se tornado pública. A doença O diagnóstico divulgado em janeiro de 2010 assustou: Hebe descobriu que era portadora de um câncer raro, no peritônio, membrana que reveste a cavidade ab-

dominal. Após a cirurgia, que retirou parte dos nódulos, começou a fazer sessões de quimioterapia para combater a doença. Em março deste ano, a doença voltou. E de modo letal, como se veria. A apresentadora passou por outra cirurgia, desta vez para retirar um tumor no intestino. Um mês depois, recuperada, voltou ao ar na Rede TV! Em junho, foi levada às pressas ao hospital para a retirada da vesícula. No mês seguinte, é internada por cinco dias para realizar exames de rotina. “Vou vivendo como se nada tivesse acontecido”, disse a apresentadora ao fim da gravação, em uma de suas últimas entrevistas. “Vou para a quimioterapia e não sinto nada, é uma coisa mágica na minha vida”, contou. Não acordou no sábado, dia 29. Morreu em sua casa de uma parada cardíaca. Sua última semana não tinha sido fácil. O câncer a debilitara bastante; apesar da piora, preferiu ficar em casa a enfrentar mais uma internação. A decisão era passar os últimos dias em repouso. Ao velório no Palácio dos Bandeirantes compareceram fãs anônimos e famosos, cerca de 8 mil pessoas, segundo sua assessoria. Coroas foram enviadas pela Presidente Dilma Rousseff, e os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Colegas de ofício – Ana Maria Braga, Fausto Silva, Luciana Gimenez, Serginho Groisman, Jô Soares – fizeram homenagens. Na manhã de domingo, houve uma missa de corpo presente rezada pelo padre Marcelo Rossi. O padre contou ter escolhido as músicas das quais Hebe mais gostava – entre elas, Como É Grande o Meu Amor por Você e Jesus Cristo, ambas de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. O SBT transmitiu durante toda a manhã a despedida. O caixão, coberto por uma bandeira do Brasil, saiu em um carro do Corpo de Bombeiros por volta de 10h. O cortejo aberto foi acompanhado por batedores nos cerca de três quilômetros até o Cemitério Gethsemani, no Morumbi. Entre os cerca de 600 presentes, havia autoridades, amigos e familiares, do filho Marcelo ao Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Nas mãos, muitos seguravam rosas colombianas vermelhas, as preferidas da apresentadora; pétalas foram jogadas no caixão enquanto era depositado; suas músicas preferidas, cantadas mais uma vez. De tão emocionado, Silvio Santos não conseguiu gravar o comunicado que o SBT pretendia colocar no ar como parte das homenagens naquele dia. Roberto Carlos publicou em seu site oficial: “Hebe é um símbolo de alegria e de amor. Uma alegria e um amor que ela distribuiu durante toda a sua vida. Uma mulher e uma artista maravilhosa e um ser humano da maior qualidade, amada por todos nós brasileiros. Hebe vai ficar pra sempre no meu coração e com certeza no coração de todos nós. A gente nunca vai esquecer alguém como Hebe”. Dias após seu enterro, uma avenida da Zona Sul da capital paulista ganhou seu nome. Uma garantia de que ela jamais será esquecida. Não que precisasse. JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

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