Abismo Humano nº6

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Editorial

6 A Associação de Artes 'Abismo Humano’ dedica-se ao aproveitamento da tendência artística presente nas novas camadas jovens e a integrar, junto da arte, os valores locais, bem como ao entretenimento, educação e cultura de forma a ocupar os espaços livres na disposição dos seus associados. Para tal a associação compromete-se a contactar vários artistas, tanto na área da pintura, da literatura, escultura, fotografia, cinematográfica, ilustração, música e artesanato, de forma a expor as suas obras tanto num jornal de lançamento trimestral, consagrado aos sócios, como na organização de eventos, como tertúlias, exposições, festas temáticas, concertos e teatros. A associação das artes compromete-se igualmente a apoiar o artista seu colaborador, com a montagem de, por exemplo, bancas comerciais e com a divulgação do trabalho a ser falado, inclusive lançamentos, visando assim proteger a arte do antro de pobreza ingrata e esquecimento que tantas vezes espera as mentes criativas após o seu labor. Os eventos, que são abertos ao público, servem inclusive o propósito de angariar novos sócios, sendo que é privilégio do sócio, mediante o pagamento da sua quota, receber o jornal da associação, intitulado de “Abismo Humano”. Este jornal possui o objectivo de divulgar as noticias do meio artístico bem como promover os muitos tipos de arte, dando atenção à qualidade, mais do que à fama, de forma a casar a qualidade com a fama, ao contrario do que, muitas vezes, se pode encontrar na literatura de supermercado. Afiliada às várias zonas comerciais de cariz artístico, será autora de promoção às mesmas, deixando um espaço também para a história, segundo as suas nuances artísticas, unindo a vaga jovem ao conhecimento e à experiência passada.

Abismo Humano

Equipa Editorial André Consciência - Albano Ruela

Assinaturas Assinaturas: abismohumano@gmail.com Para assinar a Revista Abismo Humano contactar por email


Sumário Editorial Assinaturas Sumário Manifesto Ruínas Circulares Hieróglifos Existênciais Flauta de Pã Ensaios Filosóficos Captações Imaginárias Desenho Ilustração Escultura

3 3 4 5 6

Tábua de Ilusões Âmagos Teatralizados Trans Missões Arautos Sonoros Publicidade

24 27 33 37 50

Ruínas Circulares Gótico Página 6

8 12 19 20 23

Hieróglifos Existenciais Flauta de Pã

Poema Morango com Açúcar ou o Gótico de Veludo de Kindergarten Página 8

Hieróglifos Existenciais Ensaios Filosóficos

Hyeronimus Bosch: A Fábrica de Monstros Página 12

Captações Imaginárias Desenho

Ophalos Página 19

Captações Imaginárias

Arautos Sonoros Festival Entremuralhas Página 43

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Captações Imaginárias

Ilustração

Ilustração

Fourir Página 20

Mid-;Moon Página 21

Arautos Sonoros Festival Entremuralhas Página 47

Abismo Humano


Manifesto Abismo Humano O Abismo Humano compromete-se a apresentar a sapiência, o senso artístico, e o cariz cultural e civilizacional presente no gótico contemporâneo tanto como nas suas raízes passadas. O Abismo Humano toma o compromisso de mostrar o que têm tendência a permanecer oculto por via da exclusão social, e a elevar o abominável ao estado de beleza, sempre na condição solene e contemplativa que caracteriza o trabalho da inteligência límpida e descomprometida. O Abismo Humano dedica-se a explorar as entranhas da humanidade, e é essencialmente humanista, ainda que esgravatando o divino, e divino é o nome do abismo no humano. O Abismo Humano é um espaço para os artistas dos vários campos se darem a conhecer, e entre estes, preferimos as almas incompreendidas nos meios sociais de maior celebridade. O Abismo Humano é um empreendimento e uma actividade da Associação de Artes, e por isso tomou o compromisso matrimonial para com as gémeas Ars e Sophia, duas amantes igualmente sôfregas (impávidas), insaciáveis (de tudo saciadas) e incondicionais (solo fértil à condição). O Abismo Humano compromete-se a estudar o intercâmbio da vida e da morte, da alegria e da tristeza, do amor partilhado e da desolação impossível, do qual o Abismo Humano é rebento. Como membro contra-cultura, o Abismo Humano dedica-se à destruição da ignorância que cresce escondida, no seio das subculturas, cobrindo-as à sombra do conformismo e da futilidade. Retratamos a tremura na mão do amor, a noite ardente, e a dança dos que já foram ao piano do foi para sempre.

André Consciência Imagem - Tatiana Pereira

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Ruínas Circulares

Gótico 169 – Longinus ergueu o sublime. No século XVIII o gótico ressuscitou-o. Descreve como a natureza se usa do sobrenatural na sua retórica própria. 170 – O sublime na literatura gótica é não-transcendente, é um "para o fundo" e não um "para lá de". É o horror como o libertador. 171 – Confrontado com o colossal e o absolutamente grande o gótico regressa aos labirintos da consciência à procura de um modo de se livrar do sublime de Kant e do romantismo (a imaginação nos espaços entre a razão). É agora o mesmo sublime oceânico de Schopenhauer e de Freud. O eu e a esfinge da morte. A relação radical entre a coisa e aquilo a que se refere. 172 – No gótico, o anjo caído outro não é além do Mundo Caído. Dentro desse mundo, existe o herói, isolado e em perpétuo exílio. O gótico vê a partir da sombra e com a sombra se expressa, mas não para revelar o irreal ou o fantasioso, o sobrenatural é usado para revelar o real. O misterioso atrai e escraviza, tudo aquilo que o herói não compreende é-lhe superior. Ruínas Fingidas, Susana Carrasquinho, 2009

(...) Confrontado com o colossal e o absolutamente grande o Gótico regressa aos labirintos da consciência. (...)

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173 – A Lira Insubmissa tece que o "sobrenatural" é hoje mais que nunca utilizado, em vez, para desviar o homem do real: na linguagem (monopolizada pelos especialistas e virtualizada de forma a que cada parcela sistematize, isoladamente, o todo, transformando-o em hipnótica ilusão) ou no ocultismo (de ocultar) cibernético, ou no abismo inumano entre o homem e o ser, facilmente detectado pela distância insondável entre o governo e aquilo que o governa e entre o cidadão e o governo. 174 – Na Lira Insubmissa sabemos que o conceito do anti-herói é a assimilação do horror em espectáculo de humor e o disfarce do herói incapacitado. Mas, acima de tudo, um insulto à inteligência.

André Consciência Excerto da Lira Insubmissa previamente publicado em: http://renascimentolusitano.blogspot.com/

(...) O conceito do anti-herói é a assimilação do horror em espectáculo. (...)

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Hieróglifos Existênciais Flauta de Pã

Poema Morango com Açúcar ou o Gótico de Veludo no Kindergarten

(...) A perniciosa leveza sarcástica de ser mais um gótico. (...)

Broken Hearts, Angela, 2010

«A coisa mais linda do mundo, minhas meninas, é viver feliz com um pé na cova e saber as mãos ensanguentadas e doces.» Sabedoria Popular

Amanhece. Amanhece sempre. A Aurora e o Destino. E, foda-se, O Fado! Ó, the Pain! Sim, Senhora Doutora! Imensa Pain of it all! As mortes e os dias, o peso de ouvir magnificar a escória, essa torpe, Vil e escandalosa escória que invadiu o nosso Templo com sua lenta, Fúnebre canção! Tudo estímulos materiais e pornográficos enviados Lá p’lo Senhor Deus, para que a humanidade conhecesse o excelso, Exânime Amor. Não, não me tome por louco! Não faço os trabalhos. Sabe, Senhora Doutora, o que me custa não é a Mentira, o Vómito, Nem a perniciosa leveza sarcástica de ser mais um gótico, saltimbanco

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Hieróglifos Existênciais Flauta de Pã

Poema Morango com Açúcar ou o Gótico de Veludo no Kindergarten E sonhador, perdido de horrores na lúgubre e encantadora cidade de Castelo Branco, Anno Funebri de Nossa Desgraça e a do Senhor, O

Sempre

Dom

Senil

e

Próspero

Técnico

de

Vendas/Trespasses.

Satanás! O menino acorda cedo, desenha lágrimas nas toscas janelas Da vida e o seu desespero o pulmão perdido que respira ainda túmulo, O

eco

da

Criança

Pequenina,

que

envelhecemos

demasiado

depressa,

Senhora Doutora, por entre a sombra e a promessa, por entre a glória E a prostituição, todo o nosso sonho devassado p’la Traição. Injúrias! A minha amada tem a alma de um violino. Todos os dias são o Outono, Um vaguíssimo cemitério de felicidade onde não obstante se colhem os Morangos mais frescos cá da nossa miséria. Sabe como é, é-se criança Com mil lâminas nas mãos e uma extrema fome de harmonia, a Last Exit For The Lost antes de ir para a escola, depois dá nisto, a nossa amada Esquece-se do violino em casa. Não mais voltou. Então faço o Tempo Um pedacinho do poema mais sublime e perspectivo o insidioso Cancro Pulmonar da Humanidade. Sim, Senhora Doutora! Sei da Corrupção. Não se preocupe, tenho privado com a Palavra e breve assemelhar-me-ei A um deles, um desses deuses sarcásticos que chamam Mãe à escuridão E tratam a sua angústia orquideamente. Ora, um shot de Outono! Sim, Senhora Doutora! Pagamos com a alma suja? Ah! Conheceu a Escola! Sim, as mortes e os dias, o peso de ouvir magnificar a escória, essa torpe, Vil e escandalosa escória que invadiu o nosso Templo com sua lenta, sim, Fúnebre canção… Exacto, Senhora Doutora! Agora frua deste prazer Ignominioso e divino de se saber eternamente jovem e wildeamente vomite: «É urgente a Nuvem e o Sonho, a Tempestade e a Bonança!» Exacto! O Fado! Ó, the Pain! Sim, Senhora Doutora! A Imensa Pain de morrer! Mas, noute, amanhece. Amanhece sempre. É o nosso Destino. Fada-se! The Poisonous I AVozdaSerpente.blogspot.com

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Hieróglifos Existênciais Flauta de Pã

Manhã de Nevoeiro

O Bosque - Albano Ruela

esta é a manhã das invisíveis coisas enraízadas na humidade e no frio, das paisagens de pedras brancas e lírios, dos barcos quietos, ancorados em jorros de névoa.

sentes? é o corpo que arde, muito devagar, por entre brancas pétalas, e muito devagar tudo se reacende, tudo se eterniza uma ilha, uma casa, um rio, uma árvore antiga numa nostalgia de horizontes perdidos.

ouves? são passos que gritam sobre o leve respirar dos anjos,

Aquilária

são sussurros de sangue, sob o solo.

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Hieróglifos Existênciais Flauta de Pã

O Lamento de Ariana

noite. ariana absorta, olhando o mar. acaricia um novelo. este novelo é uma espécie de globo que guarda a geografia dos passos de teseu, que há muito partiu. guarda, também, a memória dos breves dias felizes de ariana, para sempre entristecida.

dirige-se agora ao leito onde o homem que a desposou repousa, adormecido. é um rei. mas, ao olhá-lo, deixa-se comover pela total fragilidade que o sono lhe confere. "pesado fardo o teu!" suspira. "teres-me a mim por labirinto!" * ariana já em fuga. os seus passos, muito leves e brancos, atravessam a ilha. e são já asas negras de pássaro quando atingem, sangrando, o ponto mais alto do mais alto penhasco. amanhece. * ariana está agora deitada no fundo do mar. fragmentos de corais e algas entretecem os seus longos, ondulantes cabelos. de um verde líquido os seus olhos, muito abertos. é o seu doce lamento, e não o canto das sereias, que atrai para a grande bruma os solitários navios.

Aquilária dedicado a um amigo que se suicidou, na madrugada de um dos primeiros dias do ano de 2004

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Hieróglifos Existênciais Ensaios Filosóficos

Hyeronimus Bosch: A Fábrica de Monstros

Painel central do tríptico "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch, Museu 9acional de Arte Antiga, Lisboa.

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Hieróglifos Existênciais Ensaios Filosóficos

Bosch morreu em 1516, deixando-nos um legado de figuras que nunca foram vistas pelos olhos humanos. A originalidade artística de Bosch não consiste em combinar partes de animais e de humanos, mas na sua fusão para gerar novas criaturas. Nos "Jardins das Delícias", Bosch exibe a sua criatura mais fantástica: uma cabeça de homem enxertada numa casca de ovo quebrada, que, por sua vez, se liga a duas pernas que são troncos de árvores com raízes lançadas em dois barcos. Apesar do mal e, em especial, da luxúria assumirem diversas formas nas suas pinturas, Bosch não mostrou interesse no Diabo, como mostra o seu tratamento do tema dos anjos rebeldes ("A Queda dos Anjos Rebeldes"): os anjos em queda são semelhantes a peixes e ratos voadores e o Inferno onde caiem não é feito de chamas, mas habitado por duas cabeças sem corpos que rastejam com os seus pés. No "Juízo Final" de Bosch, a expulsão dos anjos rebeldes assemelha-se a uma tempestade de areia pelo movimento, cor e textura, e, no "Cristo Coroado de Espinhos", o conflito entre diabos e anjos é eclipsado pela composição central do Cristo torturado. Para Bosch, não existe conflito entre o bem e o mal: o seu Cristo e os seus santos habitam outro mundo completamente distinto do mundo da luxúria, resguardado e protegido das tentações, perversidades e torturas e, no "Juízo Final" de Viena, a corte celestial é constituída pela Virgem, João Baptista e doze figuras que parecem ser os apóstolos. Na visão quase onírica de Bosch, os humanos são quase todos pecadores e tolos que habitam um mundo carnal. A bondade não tem existência nesse mundo real habitado por pecadores: os sete pecados espreitam em todos os lugares do mundo carnal e, como são vistos por Deus, serão punidos de modo severo. A preocupação com a maldade humana real domina completamente a pintura de Bosch. O tríptico comprado por Filipe II, rei de Espanha, mostra as legiões do mal que invadem o mundo, dando forma concreta e tangível aos medos que capturaram o espírito do homem no fim da Idade Média: o painel da esquerda mostra a criação de Eva, a tentação de Adão e a sua expulsão do Paraíso. No topo, os anjos rebeldes são expulsos violentamente do Céu como um enxame repugnante de insectos. O painel da direita exibe uma visão do Inferno que mais parece o mundo carnal, onde todos os tipos de demónios pavorosos, meio animais, meio humanos ou mesmo máquinas, flagelam, fustigam e castigam as almas pecadoras ou, mais exactamente, os corpos humanos corruptos.

(...) Os anjos em queda são semelhantes a peixes e ratos voadores e o Inferno onde caiem não é feito de chamas, mas habitado por duas cabeças sem corpos que rastejam com seus pés. (...)

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Hieróglifos Existênciais Ensaios Filosóficos

O imaginário de Bosch é quase onírico e, numa antecipação genial, surrealista: a sua fábrica de monstros gera continuamente criaturas fantásticas que povoam densamente as suas pinturas. O que significam esses monstros? Em termos genéricos, um monstro é definido em relação à norma ou, simplesmente, ao tipo ideal, que, segundo Aristóteles, é a reprodução idêntica, mediante a qual o filho é semelhante ao pai. Quanto maior for a distância do modelo, maior será a imperfeição da "criatura", que, no ponto mais afastado, deixa de ter a aparência humana e passa a ser um monstro. O monstro é um "ser diferente", ou melhor, um desvio à norma: a monstruosidade constitui um fenómeno que se opõe à "generalidade dos casos", sem no entanto questionar a ordem universal da natureza (Aristóteles) ou pôr em dúvida o bom fundamento e a perfeição da criação (Santo Agostinho). Embora tenha excluído o ponto de vista finalista e tipológico, a genética evolutiva e molecular não se afasta muito de Aristóteles quando define o monstro como uma excepção ao destino comum da combinatória genética. Ambas as teratologias - a aristotélica e a médico-genética - estão preocupadas com as causas das anomalias e das malformações observadas em todos os níveis da natureza viva. Porém, a Idade Média viu preferencialmente os monstros como reproduções defeituosas dos modelos. A concepção de monstro monstrum - varia muito de sentido no decorrer da Idade Média, mas no seu outono as noções de monstruoso e de demoníaco estão de tal modo ligadas que é praticamente impossível distingui-las: o contingente diabólico substitui o monstro cosmológico e implanta-se no mundo, modelando-o em tons sombrios e pessimistas. O monstro-diabólico coloca questões para as quais a Idade Média não tinha respostas, vacilando intermitentemente entre a necessidade de explicar a desordem representada pelo monstro e a necessidade de crer no postulado de que a natureza, como obra de Deus, só pode ser perfeita e organizada segundo uma disposição imperturbável. O segredo é propriedade de Deus, o único Senhor de todas as criaturas, incluindo os monstros. Quando confrontado com os monstros, o homem está diante do sentido misterioso, oculto e admirável, da manifestação do poder divino (Mandeville): como sinal divino, o monstro é prodígio, no sentido de constituir um aviso prévio de acontecimentos futuros, cujo sentido oculto desafia a interpretação ou mesmo a adivinhação. Deus criou o mundo segundo uma determinada ordem ou norma que nunca abandona, a não ser que queira anun-

(...) Quando confrontado com os monstros, o homem está diante do sentido misterioso, oculto e admirável, da manifestação do poder divino (...)

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Hieróglifos Existênciais Ensaios Filosóficos

ciar algo oculto e deveras importante. A ruptura do curso normal da natureza desencadeia no homem o sentimento de horror, que se intensifica à medida que a Idade Média se torna cada vez mais sombria. A eclosão de monstros funciona no imaginário de Bosch como indicador figurativo da irrupção real de elementos de uma nova ordem social dentro da ordem moribunda: as figuras fantásticas de Bosch são seres mutagénicos que subvertem internamente a iconografia cristã dominante. Enquanto o inventário completo e exaustivo das figuras não estiver feito, com a ajuda de programas de computador, não podemos decifrar todo esse imaginário fantástico. No entanto, a reunião de dois corpos num só corpo revela que a sua individualidade se encontra na própria fusão: um dos corpos dá vida - o corpo mãe, enquanto o outro ameaça parar. Isto significa que a pintura de Bosch configura uma nova concepção do corpo: o corpo é aberto e incompleto e, como não está claramente delimitado do mundo, mistura-se com o mundo, onde se confunde com os outros, os animais, as plantas, as coisas, os elementos, a terra, a arquitectura e as máquinas. É um corpo cósmico que representa e encarna o conjunto de todo o universo material e corporal, concebido como o inferior absoluto, como um princípio que absorve e dá luz, como um sepulcro e um seio corporais, como um campo lavrado e semeado que começa a germinar. Ora, a concepção do corpo explicitada nas pinturas de Bosch deriva da filosofia humanista do Renascimento, nomeadamente da filosofia italiana que concebeu a ideia fundamental de microcosmos: o corpo humano era visto como um princípio susceptível de efectuar a destruição do quadro hierárquico do mundo medieval e de criar um novo quadro. A filosofia renascentista operou a desagregação do cosmos hierárquico medieval, em especial a sua gradação dos valores no espaço, mediante a qual aos graus espaciais no sentido de baixo para cima correspondiam os graus de valor, colocando todos os seus elementos no mesmo plano: o alto e o baixo foram relativizados e a ênfase deslocou-se para as noções de frente e atrás. Esta substituição do vertical pelo horizontal, acompanhada pela intensificação do factor tempo, realizou-se em torno do corpo humano: o corpo tornou-se assim o centro de um cosmos que, em vez de se mover de baixo para cima, se move para a frente sobre a horizontal do tempo, do passado para o futuro, o que possibilita ao

(...) O corpo é aberto e incompleto e, como não está claramente delimitado do mundo, mistura-se com o mundo. (...)

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Hieróglifos Existênciais Ensaios Filosóficos

homem carnal afirmar o seu valor fora da hierarquia do cosmos. Pico della Mirandola defendeu - na sua Oratio de Hominis Dignitate - a tese de que o homem é superior a todas as outras criaturas, incluindo os espíritos celestes, porque não é somente existência mas também e essencialmente futuro. A noção de hierarquia refere-se única e exclusivamente à existência estável, firme, imóvel e imutável: as criaturas não se alteram desde o nascimento, porque a sua natureza foi criada completa, acabada e imutável. Ora, o livre devir que caracteriza o homem escapa à noção de hierarquia: o homem não recebeu uma única semente como sucede com as criaturas -, mas as sementes de todas a vidas possíveis. De modo qualitativamente diferente da natureza das outras criaturas condenadas a desenvolver-se na única semente que receberam, o homem pode escolher a semente que desenvolverá, cuidando dos seus frutos e fazendo-os desabrochar dentro de si. Isto significa que o homem pode tornar-se simultaneamente vegetal e animal ou mesmo anjo e filho de Deus. O seu corpo reúne em si todos os elementos e todos os reinos da natureza: a existência de múltiplas sementes e possibilidades e a liberdade de escolha colocam o homem fora da hierarquia, ou seja, sobre a horizontal do tempo e do devir histórico. Para Pico della Mirandola, o homem não é algo fechado e acabado; pelo contrário, o homem é um ser inacabado e aberto. A filosofia humanista do Renascimento é atravessada por duas tendências teóricas: uma tendência deseja descobrir no homem todo o universo, com os seus elementos naturais e as suas forças, o seu alto e o seu baixo, enquanto a outra linha de pesquisa procura esse universo no corpo humano que aproxima e une no seu seio os fenómenos e as forças mais distantes do cosmos. O imaginário de Bosch filia-se nesta segunda tendência subterrânea do Renascimento, a qual exprime a nova sensação do cosmos como a habitação familiar do homem. Pintado e visto como habitação do homem, o novo cosmos tal como emerge nas pinturas de Bosch, em tensão dialéctica com o mundo medieval, retoma as ideias - aliás muito difundidas no Renascimento - da magia natural, da simpatia e da astrologia, as quais ajudaram Giordano Bruno e Campanella a destruir o quadro do mundo medieval. Pico della Mirandola deu particular ênfase ao motivo do microcosmos sob a forma da simpatia mundial, de resto levada a cabo pelos Descobrimentos

(...) Os monstros boschianos são demónios da mudança que visam desinstalar o poder eclesial que justificava e legitimava a opressão feudal. (...)

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Portugueses que possibilitaram que todos os membros da humanidade entrassem em contacto real e efectivo uns com os outros, de modo a tornar a humanidade una e única: o homem pode finalmente reunir em si o superior e o inferior, o longínquo e o próximo, e sondar os mistérios escondidos nas profundezas da terra. O imaginário mágico de Bosch reúne o que o universo medieval tinha dissociado, apagando as fronteiras maltraçadas entre os fenómenos e transpondo a diversidade infinita do mundo para a superfície horizontal única do cosmos em devir. Marcilio Ficino introduziu a animação universal para mostrar que o cosmos não era um mero agregado de elementos mortos, mas um ser animado: cada uma das suas partes constitui um órgão do todo. A biologização do mundo é consumada pela teoria da natureza de Cardano: todos os fenómenos são vistos como análogos das formas orgânicas, incluindo os metais que são as sepulturas das plantas e que percorrem uma evolução semelhante à evolução orgânica, com uma juventude, uma adolescência e uma idade madura. Esta visão animada do mundo - recentemente retomada pela Hipótese Gaia de James Lovelock e Lynn Margulis - impregna as pinturas de Bosch, onde todos os fenómenos se dirigem para a superfície horizontal única do mundo em estado de mudança, de modo a descobrir novos lugares, a atar novos laços, e a criar novas vizinhanças. Mas no centro deste reagrupamento fenoménico está o corpo humano que alberga no seu interior a diversidade do universo. O corpo humano é matéria criadora destinada a organizar toda a matéria cósmica, cujo movimento no tempo biológico e histórico é garantido pelo nascimento de gerações incessantemente renovadas. Neste novo cosmos, cada ser humano pode fazer parte do povo imortal: aquele que inova e cria história, resistindo às tentações contrárias às forças da mudança social qualitativa. As pinturas de Bosch são representações assustadoras das forças do mal ou, mais precisamente, de monstros, e foram interpretadas pelos críticos imbuídos de espírito científico como expressões de uma mente patológica ou, pelo menos, de uma mente sujeita ao uso de alucinógenos. Além de não apreenderem a riqueza imaginativa de uma época - o fim da Idade Média ou as dores de parto do mundo moderno, estas leituras deixam escapar a própria riqueza criadora do psiquismo humano, sobretudo da dialéctica entre a angústia e o desejo. O monstro é produto de funções mentais partilhadas pelos humanos de todas as épocas, culturas e idades e, por isso, desempenha uma função natural no seu psiquismo. Ao desvalorizar a imaginação como faculdade cognitiva, a tecnociência revela o seu elemento ideológico: a apologia do status quo e a promoção da dimensão adaptativa do homem em detrimento do princípio da possibilidade histórica. Bosch pintou a 17

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Hieróglifos Existênciais Ensaios Filosóficos

colisão de dois mundos durante o período da sua coexistência quase sincrónica: os seus monstros são figuras utópicas que emergem num mundo prenhe de vida ainda-não-nascida contra as figuras ideológicas do imaginário medieval. É certo que os demónios da mudança que se mostram e se de-monstram nas pinturas de Bosch assustam, mas não assustam todos os indivíduos: assustam e aterrorizam apenas os indivíduos instalados e satisfeitos com as ordens do mundo hierárquico medieval. Os monstros boschianos são demónios da mudança que visam desinstalar o poder eclesial que justificava e legitimava a opressão feudal. Se a mudança atemoriza os membros das ordens instaladas, o mesmo não acontece com aqueles que desejam e anseiam por um mundo melhor. Para os que sonham acordados, os monstros são figuras cómicas que assombram e incendeiam o mundo fechado medieval, desencadeando neles o riso orgiástico que funda um mundo melhor.

J Francisco Saraiva de Sousa http://cyberdemocracia.blogspot.com/2009/06/hieronymus-bosch-fabrica-dos-monstros.html

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Captações Imaginárias Desenho

Ophalos, Sua Manifestação (2010) - Cláudio Carvalho www.fantasticatmospherictangential.blogspot.com

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Captações Imaginárias Ilustração

Fourir - Robin Moses http://www.youtube.com/user/robinmosesnailart

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Captações Imaginárias Ilustração

Mid-Moon - Robin Moses http://www.youtube.com/user/robinmosesnailart

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Captações Imaginárias Ilustração

Two Card Jack- Ricardo dos Reis http://oldwestartrr.weebly.com/

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Captações Imaginárias Escultura

Apocalypse Knight gives ride to Androgynous Christ - Albano Ruela http://neoartes.blogspot.com/

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Távua de Ilusões Filosofia Segundo Perdidos

(…) E qual é o problema da vida antes da morte? O seu sentido, obviamente, ou a falta dele. (…)

"A Filosofia Segundo Perdidos" é uma compilação organizada por Sharon M. Kaye que engloba uma série de pequenos ensaios de diversos autores que abordam a série "Perdidos" sob o ponto de vista da filosofia, da mais clássica à mais moderna. Ler um livro destes fez-me sentir humilde, e perceber que não sou tão inteligente quanto imaginava e que sou muito mais ignorante do que pensava. É esta capacidade que têm sobretudo os autores de filosofia americanos de tocar o homem comum, sem pretensiosismo, e de o levar numa aventura intelectual que põe toda a "máquina" a trabalhar até... bem, na verdade, até onde esta conseguir dar. Mas esta humildade, com que o leitor médio se tem de confrontar, este vislumbre de que afinal há muito mais para descobrir do que pensámos a princípio, é no fundo o que nos faz sentir humildes e, ao mesmo tempo, empoleirados nas costas de gigantes, almejar um dia a sermos maiores e a ver também mais longe. Só para o mais distraído é que "Perdidos" é apenas uma série de televisão igual às outras, para consumir e deitar fora. Perder "Perdidos" é simplesmente perder o melhor que se faz -- corrijo, o melhor que já se fez -- em séries de televisão até ao dia de hoje. Perder "Perdidos" é perder uma chave civilizacional. Neste livro, inspirado pela série, variados autores dissertam sobre os temas filosóficos suscitados pelas primeiras três temporadas (tenho para mim que a partir da quarta era chamar os cientistas a comentar, em vez dos filósofos), abordando temas

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Távua de Ilusões Filosofia Segundo Perdidos

como o determinismo, o livre-arbítrio, a ética, a ciência, a fé, e os “outros” (em todos os sentidos, até no de Sartre, cujo existencialismo é também peça fundamental de "Perdidos"). Mas o meu artigo preferido é mesmo o último, e intitula-se "Perdidos e o problema da vida depois do nascimento", que é como quem diz "a vida antes da morte". E qual é o problema da vida antes da morte? O seu sentido, obviamente, ou a falta dele. Jeremy Barris é de facto o autor que melhor resume uma certa atitude desatenta em relação a "Perdidos": "Perdidos" dá muita atenção à razão e à forma como cada pessoa chegou à ilha. Sob muitos aspectos, o modo como o programa apresenta e explora esta questão ecoa a forma como nós, nos nossos momentos de maior reflexão, somos perturbados pela questão: "Porque estamos aqui?". (...) Como resultado, o programa é acerca do mistério. As histórias do passado de cada uma das personagens faz sobressair, de modo semelhante, as estranhas voltas que a suas vidas dão e as espantosas coincidências entre as suas vidas (...) Este mistério da chegada dos náufragos à ilha está no âmago das nossas vidas, levando-nos à pergunta acerca da vida: "Porque estamos aqui?". Em termos heideggerianos, nós, tal como as personagens de "Perdidos", achamo-nos atirados para a situação da nossa vida, como partes de um meio ambiente e de uma história basicamente desconcertantes, nenhum dos quais feitos por nós, e ambos, sob muitos aspectos, indiferentes às nossas preocupações e à nossa própria existência. Outro sentido da pergunta "Porque estamos aqui?" é se existe um propósito para estarmos aqui e, se tal for o caso, que propósito será esse. "Perdidos" presta uma especial atenção também a este sentido da questão. Estarão os náufragos ali para realizar uma tarefa importante, para servir um objectivo importante, embora desconhecido, como Locke acredita? Ou estarão talvez ali para serem moral ou espiritualmente redimidos? A pergunta que a série e o autor nos põem é esta: E nós, porque estamos aqui? Para cumprir um destino pré-determinado por uma entidade exterior (Deus, a natureza, os nossos genes), ou teremos livre-arbítrio e a liberdade de escolher o nosso caminho? É igualmente curioso que antes de ler este livro nunca tinha reparado neste pormenor escandalosamente evidente: Também é interessante que várias pessoas deste pequeno grupo tenham nomes

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Távua de Ilusões Filosofia Segundo Perdidos

de grandes filósofos do séc. XVIII: John Locke, (Desmond) Hume e (Danielle) Rousseau. Há mais exemplos pela série fora, mas o que eu gostaria de destacar é este comentário de Jeremy Barris, imperdível: E, mais importante, a personagem Henry Gale é interpretada pelo actor Michael Emerson. Coincidência? Ou será que o campo electromagnético da ilha se libertou do controlo dos argumentistas e começou agora a absorver o nosso próprio mundo para a sua realidade? Penso que ele se refira a este Emerson, Ralph Waldo Emerson, de quem se diz: Emerson's religious views were often considered radical at the time. He believed that all things are connected to God and, therefore, all things are divine. Critics believed that Emerson was removing the central God figure; as Henry Ware, Jr. said, Emerson was in danger of taking away "the Father of the Universe" and leaving "but a company of children in an orphan asylum". Emerson was partly influenced by German philosophy and Biblical criticism. His views, the basis of Transcendentalism, suggested that God does not have to reveal the truth but that the truth could be intuitively experienced directly from nature. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Ralph_Waldo_Emerson Pode muito bem ser que o campo electromagnético da ilha se tenha escapado pelo écran da televisão... Depois de "Perdidos", isso é certo, não direi que tudo mudará, mas sem dúvida que muitas pessoas se irão questionar duas vezes se devem ou não carregar no botão. katrina a gotika http://gotikka.blogspot.com/2010/06/filosofia-segundo-perdidos.html

(...) Achamo-nos atirados para a situação da nossa vida, como partes de um meio ambiente e de uma história basicamente desconcertantes, nenhum dos quais feito por nós. (…)

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Âmagos Teatralizados

LUA UMA BREVE VISITA

Lua- Pssst! Acorda! Não entres já no palácio dos sonhos. Não disponho de muito tempo. Homem- Hã, quem me chama? Quem a mim se dirige a esta hora da noite? De onde vem esta forte luz que me ofusca o olhar ensonado. Lua- Não me reconheces? Sou aquela que tantas vezes invocaste e que em silêncio ouve as tuas preces, os teus males e os teus prazeres; sou a Lua. Este brilho argênteo que te espanta é a luz que tanto veneraste. Homem- A Lua? Tão perto de mim… julgo isto ser um sonho, um devaneio convertido em imagem falante. Como será possível que a sublime dama, suprema senhora noctívaga, desça dos céus, onde reina sob um manto estrelado, para me falar à minha janela. Haverá na psicanálise explicação para tão poderosa alucinação, ou será apenas um indício da completa demência? Lua- Não sou criação tua, e desculpa se te assustei, mas julguei que gostarias de me ver tão próxima de ti. Deixei-me induzir pelas doces palavras que me teces confidencialmente. Homem- Espera um pouco; vou abrir a janela. Mas, comunicas com os humanos? Como é que nunca alguém relatou uma experiência destas? Ou serei eu o único privilegiado? Bela Lua… Lua- Prefiro comunicar com os outros animais, com o mar, com os restantes elementos, mostro-me àqueles que compreendem a minha existência, a minha essência. Os poucos humanos com os quais comuniquei, assim como o estou a fazer contigo, nunca seriam ouvidos com credibilidade ao narrarem as suas experiências. Apesar dos inúmeros poemas, crenças, músicas ou quadros criados em minha homenagem, durante a vossa existência no planeta, a minha presença e companhia sempre foi testemunhada de uma perspectiva mais abstracta do que concreta, estando também envolta em misticismo. Os astrónomos, e outros cientistas que me estudam, são apenas anónimos transeuntes que tentam deduzir aquilo que sou e o que faço, somente baseados no meu aspecto exterior e nos meus movimentos; como um estranho que encontramos todos os dias na rua e que, a certa altura, nos desperta um interesse especial que nos leva a analisá-lo, estudá-lo e tentar decifrá-lo.

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Homem- E qual o motivo da minha bênção, da tua ilustre presença, quando são incontáveis os seres que te prestam vassalagem; devotos como eu não sou? Lua- Não me iludo com essas extremas devoções. Esse é um defeito da tua espécie. As vossas promessas roubam a sinceridade e plantam o medo e a opressão. Uma das necessidades e capacidades que vos distingue das outras criaturas. A ti me dirijo, simplesmente, porque me apeteceu conversar com alguém e tu me pareceste a pessoa indicada. Aliás, várias vezes, já tu a mim te dirigiste e comigo falaste. Conheço-te bem, mas tu também me conheces, a tua opinião em relação a mim esteve sempre correcta, por isso mesmo, aqui estou, pela confiança que me ganhaste. Não achas que está uma bela Lua para conversar? (Risos) Homem- E os outros a quem, em tempos, falaste? Não voltas a revê-los, a presenteá- -los com a tua presença? Lua- A Lua só pode aparecer desta forma uma única vez a cada um desses escolhidos, pois, para além de eles correrem o risco de enlouquecer, a magia terminaria, e nem eu nem eles a podemos perder. Os verdadeiros momentos só acontecem uma vez na vida. Homem- Sinto-me honrado pela tua presença, lisonjeado pelas tuas palavras, mas, sou apenas um normal indivíduo, com uma vida até um pouco aborrecida, plena de tédio… Lua- Julgas tu… Homem- Que interesse poderás ter numa conversa comigo, sábio satélite que tudo observas dos teus ciclos em redor da terra? Podemos discutir filosofia, ódios, amores, História, aquilo que quiseres, mas, desde já te previno que não sou o mais sapiente dos Homens. Lua- Calma, meu delicado afilhado, que em seda me procuras deleitar. Não apoquentes o teu espírito em busca de tão complicados temas. A mim, basta-me uma conversa banal, um infindável novelo que se deixe desenrolar pelo inesperado e, com os seus fios, elaboraremos uma indumentária de sensações e emoções, que nos aquecerá nesta noite de cumplicidade. Deixa que a tua alma se liberte nas palavras que a minha procura. Homem- Serei eu capaz de arriscar tornar-me banal contigo? Lua- Tratando-me com a mesma normalidade que usas com qualquer pessoa. Homem- E será a mãe de todas as musas uma pessoa qualquer? Nunca eu te trataria com o mesmo semblante com que encaro os restantes Homens. Lua- E serão todas as musas dignas de me terem como mãe? Homem- Concordo plenamente contigo.

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Lua- Quantas vezes ouvi serem-me atribuídas responsabilidades, por situações com as quais nada tinha a ver. Criaturas que me adoptam e reclamam como magna rainha, com uma veemente fraternidade, da qual eu não tenho como me defender, pois longe e incomunicável arde a minha frustração por tamanhas infâmias. E sob a minha égide proclamam falsos misticismos às suas conveniências e assumem leviandades e repugnâncias. Homem- Sim. A tua auréola é colocada e assumida, muitas vezes, pelas cabeças erradas. Lua- É a desvantagem de não poder expressar a minha opinião tão claramente como os seres da Terra. Sou única; a única Lua que gira em torno da Terra, o que, como podes imaginar, por vezes se torna numa solitária agonia. Homem- Tens um planeta que se guia, também, por ti. Lua- A principal azáfama…, saber que o Mundo inteiro se calendariza pelos meus aéreos passos. Homem- Deves ser muito viajada, conhecedora de todos os recantos do Mundo, a tua sabedoria deve ser imensurável. Lua- Sigo apenas a rotina que também a mim é, por vezes, enfadonha. Um insuportável tédio que de mim se apodera, mas, é um facto, vou sempre vendo e descobrindo novas coisas. Este é também um dos motivos que me leva a ousar e arriscar comunicar com alguns seres; a busca pelo conhecimento, o peculiar modo como vocês, os da tua espécie, sentem e interiorizam certas situações ou acontecimentos, algo que julgo nunca poder vir a sentir da mesma forma, com a intensidade que vos é natural. Homem- Não te rebaixes à ignorância humana. O teu conhecimento é infinito e mais profundo do que aquele que qualquer um de nós algum dia alcançará. A tua longa experiência tornou-te apenas mais perspicaz e prudente nas tuas avaliações, isso não te reduz a capacidade de sentir, aliás, ajuda-te a seres cautelosa e a evitar situações complicadas. Os milénios que a história desenvolveu ofereceram-te sensações que nenhum de nós conseguirá reunir na mesma vida. Tu acompanhaste os grandes momentos, as grandes paixões, os maiores desastres, tudo; e eis-te aqui, demonstrando-me a tua generosa humildade, sob a soberba sensibilidade que te faz duvidar das odes que a História te dedicou. Lua- Devo confessar que as tuas frases me são aprazíveis, que me embalam sobre um altar de confiança e conforto. Não me enganei quando te escolhi. Mas também tu tens uma rotina, da qual apenas retiras alguns aspectos, aqueles que te são mais facilmente perceptíveis, deixando que uma imensidão de pormenores e particularidades te escapem, assim como à minha rotina também passam despercebidos. A importância das coisas mais simples. Homem- Sim, adorada Lua, que ordenas os desígnios de todos os amantes e testemunhas os gestos dos corpos e as vozes dos corações.

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Talvez te recordes daquela noite em que, para mim, o teu abraço foi maior do que todos os outros, o expoente máximo de todas as noites, a melhor e a pior noite de todas. Lua- Claro que sim. Enternecida observei a comunhão das almas e dos corpos e, sob o meu feitiço, também eu me deixei enfeitiçar. Homem- Como te agradeço aquele auge, a ti e a todos os espíritos da floresta, da lagoa, ao construtor de cenários que semeia e concebe a beleza e estimula inefáveis afectos. Lua- E como nos amaldiçoas, também, pela adaga de desilusão que, mais tarde, fez ruir o teu templo sagrado. Homem- Não interessa. Tudo tem um fim; única inevitabilidade. Mas tive sempre a mesma Lua, eterna contemplação. Lua- As situações da vida não dependem somente de um único factor. Homem- Mas existem factores mais significativos e influentes do que outros. Outras situações iluminaste, também essas de grande valor. Lua- E outras ainda virão, talvez mais iluminadas do que alguma vez julgaste. A magia do inesperado surpreende-nos sempre com a certeza de uma recordação. No fundo, somos apenas coleccionadores de memórias. Homem- Sabes alguma coisa acerca da origem do Mundo? Como tudo isto se formou, o teu aparecimento ou se realmente existe um Deus responsável pela criação de tudo? Desculpa, queres ter uma conversa banal e estou-te a incomodar com estas questões. Lua- E o que pode ser mais banal do que o ciclo da vida? Nada mais vulgar do que o suceder de existências. Quando apareci, não sei ao certo como, disseram-me que fui gerada por explosões, estrelas e planetas. A minha ignorância era completa e, tal como acontece com vocês, a minha aprendizagem foi-se desenvolvendo e crescendo comigo. Mais tarde, percebi que em tempos fizera parte de um corpo maior, pelo que deduzi que sou apenas um pedaço de algo. Talvez de um cometa, de um planeta…, não sei. Homem- Um pedaço importante para nós. Um pedaço com uma autonomia e uma identidade. Lua- Um pedaço ao qual vocês se adaptaram, pois, se eu não existisse, as espécies surgiriam também, mas com outra influência que não a da Lua. Quanto a um ser criador, nada sei acerca disso. No entanto, considero de alguma beleza e até poético o modo com alguns de vocês acreditam. Acho também hedionda a forma como a espécie humana usa as suas alegorias divinas para matar ou escravizar.

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Homem- Como é que te sentiste quando em 1969 o Homem te alcançou e pela primeira vez pisou o teu solo? Lua- Nada em especial. Matéria sobre matéria. O mesmo não digo em relação ao primeiro homem que deixou o seu espírito viajar até à Lua. Homem- Como o desflorar de um novo universo. Lua- Como a arte de sonhar. Homem- Ou o quebrar da solidão. Lua- Refúgio permissivo. Homem- O prazer de contigo conversar é inultrapassável, uma indescritível sensação de privilégio. Lua- Mas que terminará, como tudo. Dentro em pouco, terei de me movimentar e de me afastar. Iniciarei o caminho que, daqui a algumas horas, me conduzirá a outras paragens. Aqui, deixarei o meu lugar para a chegada do Sol. Seguirei, solitária, o meu fado. Homem- Como solitária? Existe sempre alguém que te olha, que te questiona e saúda. Lua- Tudo à distância. Homem- Mas eles sabem que tu estás lá, no alto, noite após noite, nos bons e nos maus momentos. Lua- Tens razão. De novo, as tuas palavras são para mim um conforto inigualável. Homem- Ou não fosses tu a voluptuosa Lua. Voltarei algum dia a ver-te? Lua- Todos os dias em que o céu o permita. ( Risos ) Homem- O tempo passou demasiado rápido, quando ainda muito havia para falar. Como gostaria que todos pudessem conhecer a tua verdadeira natureza. Lua- Um louco… Homem- Como os outros… Lua- Um sonhador… Homem- Como alguns…

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Lua- Único… Homem- Como a Lua…

E a Lua afastou-se, deixando aquele homem adormecido e envolvido por um nimbo de encanto e fantasia. Pela manhã, ele próprio se questionava se realmente havia sido visitado pela Lua ou se tudo não passara de um sonho.

Emanuel R. Marques

www.myspace.com/emanuelrm

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Trans Miss천es Judeo Plague the Judeo plague be thick drips like prison songs from the quivering lips of the isol(h)ated -------------i Baron the myth of a soul I absent the imposition of divinity I Rebuking the position of superiority ------------i am an animal in a kingdom of animals Doctrines carved to abort that truth Are ----flawed -----dividing ------detrimental -------dangerous --------------Marching Dogmatic Boots stomp debilitating schisms into the mush of our skulls

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Trans Miss천es Judeo Plague

forging enemy lines forming enemies forming lines the ---US----and ---THEM---invasion equation ----------------

tribes chanting from swollen lungs and full throats to the firmament of martyrs hyena gods cackle and sniff for the meat of other gods words to sticks sticks to stones stones to bullets bullets to bombs brothers to slabs til the span of man is zero Dan Kellet blogs.myspace.com/dk_d

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Trans Missões Praga Judaica

a praga judaica seja espessa o gotejar como canções prisionais de lábios trémulos e isolódiados -------------eu Barão o mito de uma alma eu abstido da imposição da divindade eu Testando a posição da superioridade ------------eu sou um animal num reino de animais Doutrinas inscritas para abortar essa verdade São ----falaciosas -----divisoras ------detrimentais -------perigosas --------------Marcham Dogmáticas Botas batendo debilitantes cismas batido a dentro

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Trans Missões Praga Judaica

forjando linhas inimigas formando inimigos formando linhas os ---NÓS----e ---ELES---invasão equação ----------------

Tribos cantantes desde pulmões intrujados E repletas gargantas ao firmamento dos mártires deuses hiena esterrincam e farejam à procura de carne de outros deuses de palavras para paus de paus para pedras de pedras para balas de balas para bombas irmãos às lajes até que o comprimento do homem seja zero Dan Kellet Tradução de André Consciência

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Festival Entremuralhas, o espaço e as conferências

O projecto era ambicioso, mesmo tendo em conta que por trás estava a Fade In cuja qualidade na organização e escolha de eventos tem sido comprovada e reconhecida ao longo dos dez anos de existência, ainda assim um concerto é uma coisa, um festival outra e ainda outra é o primeiro festival gótico do país. Reconhecida para já, nesta crónica, fica a coragem da associação em assumir tal projecto. Chegados a Leiria no dia 27 à tarde, primeiro dia de festival, alguns sinais faziamse notar na cidade, desde logo o gigantesco e controverso cartaz na fachada do castelo, algumas bandeiras pelas praças da cidade e cartazes colados em montras, contribuíam para um aumento de ansiedade e com ela, as expectativas. Após um breve descanso, fizemo-nos ao caminho para uma volta de reconhecimento ao espaço. O Espaço O castelo de Leiria, já conhecido de outras “árvores”, é sem dúvida imponente e o seu bom estado de conservação fazia-o prever como o sítio ideal para este festival. Pelas 18:30 cruzávamos a entrada, após uma decisão consciente de que abriríamos mão das curtas. O palco Corpo, logo em frente, exibia orgulhosamente um espaço suficiente para albergar confortavelmente as 700 almas (limite de publico imposto pela organização, facto que desde logo permite perceber o bom senso reinante), embora o palco fosse a estrutu-

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ra mais imponente na área, o porco no espeto pareceu-me a estrela (assim que o vi os meus olhos nunca mais o largaram... Hipnotizante o bicho, sempre às voltas...), ladeado pelas restantes bancas de comida e bebidas. Aqui, uma pequena nota, embora se perceba a separação entre a zona de pagamento e a de serviço, faltaram no início alguns avisos sobre a logística da coisa, a exemplo: que não seria boa ideia poupar o tempo da primeira fila comprando desde logo as 50 senhas de cerveja para o fim-de-semana, já que estas apenas serviam para o próprio dia. Para alguns, o aviso chegou tarde demais.

Iniciando a subida rumo à zona de conferências e exposição, passando pela área das casas de banho (mais uma ou duas junto ao outro palco não teria sido má ideia) e seguindo pelo caminho mais directo que apenas estava acessível, pelo que percebi, durante o horário das mesmas, chegámos à área menos bonita do castelo, uma zona reconstruída recentemente em que o contemporâneo entrou sem “pés de lã”. Um pouco mais à frente, mais recolhido, mais intimista, estava o Palco Alma, cuja área deixou algumas das pessoas com uma visão deficiente dos concertos mas ainda assim, e tendo em conta que o espaço não foi feito para isto, parece-me que a organização pensou bem os locais dos concertos, tendo apenas notado escassez em caixotes do lixo junto à muralha, não incomodava muito e sempre eram menos copos no chão.

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De volta ao caminho e tal como o porco que dava voltas no espeto assim nós completámos a nossa, descendo em direcção à zona comercial das roupas, merchandising das bandas, musica, livros e adereços, apenas senti falta de umas bancas de música em segunda mão, mas a Fnac e as bandas eram capaz de não achar piada. ;) A volta completa-se e a partir da hora dos concertos não haveria, ao contrário do porco, mais voltas a dar, o caminho passava a ser só um, eficaz a nível de organização.

As conferências e a Exposição Os títulos são sempre uma faca de dois gumes, por um lado pretendem reflectir o que se quer mostrar, mas por outro, aumentam demasiado a expectativa de quem vai assistir, isto foi, a meu ver, o que se passou nas conferências. Mas primeiro a exposição de Alexandre Estrela, facto é que o trabalho se

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preendido, não pelo titulo da exposição mas pelo tópico da conferência, confesso que esperava ver uma exposição que invadisse as margens e nos mostrasse algo novo, tal não foi o caso. Em ambos os dias de conferências não ouvimos nem margens nem rupturas, exceptuando talvez a referência pelo arquitecto urbanista Pedro Trindade Ferreira em relação à irresponsabilidade na recuperação da zona do castelo onde nos encontrávamos e a do arquitecto Miguel Figueira, no segundo dia, sobre o centro histórico de Montemor-o-Velho. Mesmo assim, o discurso geral dos intervenientes, que contavam com a participação de Fernando Ribeiro e Adolfo Luxúria Canibal, não passou de apresentações e comentários breves, que por falta de tempo ou pertinência, não abriram espaço à discussão. Em jeito de sugestão, fica a ideia de para a próxima as fazerem mais cedo e até fora do recinto, abrindo esta parte do festival à cidade e à população “sem bilhete” que possa estar interessada e talvez assim, os objectivos sugeridos no tema sejam mais facilmente abordados. Mas não nos podemos esquecer que o festival é de música e como tal, todas as actividades extras, embora necessárias e bem introduzidas no evento, não devem comprometer os concertos, tal como aconteceu com os Uxu Kallus no Sábado. Em jeito de conclusão, tirando pequenas notas cuja importância é relativa, a organização esteve muito bem e diria que não houve uma alma que tenha saído insatisfeita deste fim-de-semana.

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Festival Entremuralhas, os concertos

Leiria, 27 de Agosto de 2010

ASHRAM Não é fácil fazer uma crítica a algo excelente sem correr o risco de cruzar a linha da bajulação, mas é facto que os italianos Ashram são compostos por três músicos virtuosos, isso penso que ninguém duvida, que terão feito, a nível pessoal, o melhor concerto do fim-de-semana.

Pouco depois das 21h30 entram Alfredo Notarloberti e Luigi Rubino em palco, os primeiros acordes alimentam a alma em jeito de aperitivo para o manjar que por aí vinha. Ao longo de pouco mais que uma hora, um violino, um piano e a voz do peculiar Sérgio Panarella, levaram-nos pela melancolia dos dois álbuns do grupo. A postura e voz emotiva de Panarella, fez do concerto uma luta constante com a emoção, aqui

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não se cantou em uníssono nem se perturbou a música, ao invés, o publico permitiu-se apenas intervir quando era a sua vez.

Apesar de alguns problemas pontuais de som que foram sendo resolvidos (de resto, problemas que foram constantes em todos os concertos deste palco), a prestação não foi comprometida. Houve música, emoção e espaço para tudo: “Melancholic Lisbon” solo de piano de Luigi Rubino inserido em “A Theme for The Moon” (trabalho a solo editado o ano passado) que tem tanto de simples como de belo e um intenso solo de violino de Notarloberti que rivalizou grandemente em erotismo com as letras cantadas por Ordo Rosarius Equilíbrio revelou-se pela reacção do publico como o momento alto da noite. Em jeito de conclusão, estes italianos fizeram algo que raramente acontece, não só suplantaram o seu anterior concerto, no Santiago Alquimista (primeiro em terras lusas), como colocaram a fasquia demasiado alta para quem viesse a seguir neste festival.

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ATARAXIA Com 20 trabalhos originais editados, os Ataraxia poderiam muito bem ter feito o festival sozinhos. São conhecidos por incluir no seu registo neoclássico influências de todo o mundo, criando em cada trabalho uma narrativa de viagem, uma história, por onde somos guiados pela voz de Francesca Nicoli.

A voz de Francesca é realmente magnífica (rivalizando em amplitude vocal com Chloé Saint-Liphard, que veríamos no dia seguinte) e estes músicos, à semelhança dos Ashram, são também excepcionais, mas senti falta de algo neste concerto dos Ataraxia: do risco. Estávamos perante músicos profissionais e foi como eles se comportaram ao assumir apenas um set seguro, sem surpresas. O set optado, que não deu grande protagonismo ao último álbum Llyr, teve como consequência raras variações de ritmo ao longo do alinhamento, talvez devido a ausências em palco, mas ainda assim o que nos foi dado a ouvir, demonstrou aquilo que os Ataraxia fazem melhor: a ligação do etéreo com a terra, o poder e intensida-

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de da voz suavizado pelo instrumental delicado. “Gayatri Mantra” foi talvez a música que mais me marcou neste concerto. Como dizia alguém, eles não conseguem tocar mal mesmo que queiram e de facto é verdade, no entanto, os Ashram foram excelentes os Ataraxia “apenas” muito bons.

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PROJECT PITCHFORK

Quem acompanha o pórtico já sabe que os meus gostos pessoais não me colocam na melhor posição para fazer analises a música electrónica, ou a música é de facto excelente ou então não consigo perceber as diferenças. Todos nós temos um ponto fraco, eis um dos meus. Assim, foi após pouco mais de meia hora do concerto de Project Pitchfork que decidimos abandonar o recinto. Esperava, após algumas leituras que antecederam o festival, que ao vivo fossem bem mais roqueiros, mas não o foram. A julgar pela reacção do público, creio que fizeram uma boa prestação. Comprovou-se ao vivo o que disse anteriormente a propósito do álbum "Continnum Ride", depois de ouvir “Endless Infinity” (haverá algum que acabe?!), não consegui evitar que o refrão se colasse ao cérebro e permanecesse aí como um intruso de que não nos conseguimos livrar. Ao aperceber-me que com isto perdia algumas memórias dos dois primeiros concertos decidi afastar-me dali, afinal, ninguém gosta de perder a Alma…

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Leiria, 28 de Agosto de 2010

Não tendo assistido a Uxu Kalhus, esta análise ao segundo dia apenas se reflecte sobre três dos quatro concertos.

Collection d’Arnell Andrea Chegados ao segundo dia, o palco Alma abre com Collection d’Arnell Andrea. Apesar do mentor musical da banda ser Jean-Christophe d'Arnell, a voz e presença em palco da simpática e deliciosamente serena Chloé St. Liphard é o seu melhor trunfo, jogado com mestria tanto nos já dez álbuns de originais como nas prestações ao vivo. Completado por uma projecção vídeo que conjugou de forma harmónica (e felizmente não literal) o universo musical do grupo, o palco pareceu por vezes pequeno para os seis elementos oferecerem a quem assistiu, um alinhamento de carreira, bem pensado para um concerto de estreia. Foi impressionante em alguns temas ouvir aquela voz delicada no meio de uma muralha sonora, quase tão impressionante como a aparente ausência de esforço de Chloé aquando das mudanças de tom. Se Panarella canta como quem chora, Liphard canta como quem respira.

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Na

memória

ficam

“Verdun” (“Villers-aux-vents”) e “Un Matin de Septembre” do álbum “Au Val des Roses”. Fica também a sensação de que os franceses conseguiram agarrar com este concerto mais uns fãs e a ideia do que poderia ser um concerto fora do âmbito de um festival.

Ordo Rosarius Equilíbrio Tendo perdido o primeiro concerto em Portugal e olhando a carreira de estúdio destes suecos, a expectativa para este concerto era enorme, talvez por isso a desilusão se tenha instalado, apesar do concerto ter melhorado à medida que decorria, pareceu-me claramente que a coisa não correu tão bem como poderia: desde Tomas Pettersson não ter usado, de todo, o poder vocal que possui, às entradas algo bruscas dos artifícios electrónicos em algumas músicas, a certos comportamentos estranhos em palco, pareceu-me a dada altura que Pettersson queria antecipar o fim do concerto.

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Ainda assim quem tem boas musicas nunca desilude completamente - a projecção vídeo ao longo da actuação seduziu e compensou um pouco a falta de intensidade em palco, que apenas se revelou perto do fim, aquando de “Three is an orgy, four is forever”, música que me fez cantarolar e encerrou da melhor maneira aquele que, contra todas as expectativas, veio a ser um concerto morno.

Covenant E eis que nos dirigimos ao Palco Corpo, apesar de lhes reconhecer qualidade, as minhas expectativas para o concerto destes suecos não era grande. Reconhecidos como uns dos melhores representantes do EBM, era altura dos Cybergoths e demais amantes da electrónica saírem do covil e dar ao corpo aquilo que ele precisa. Com uma presença simpática e bastante energética a banda desfilou, para gáudio do público presente, tudo aquilo que os fez. Eskill, senhor de excelente voz e de postura em palco na linha dum one-man-performer, entusiasmou e deixou-se entusiasmar naquele que creio ter sido o melhor concerto electrónico do festival, digo isto, não por conhecimento próprio mas pela reacção entusiasta do publico.

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Mais uma vez, reforcei a protecção da Alma durante todo o concerto, ao mesmo tempo que perdia de vez a esperança de exibir o Corpo.

Em resumo, foram dois dias de boa música com excelentes prestações, para um público que aparentemente, mereceu todo o vosso esforço. À Fade In, o reconhecimento de um bom trabalho na gerência dum festival com 6 possíveis cabeças de cartaz e a esperança de um até pró ano!

Fotografias de film-m k. e Bruno (I Am 9o One)

Reportagem por Bruno (I Am 9o One) http://portico2.blogspot.com/

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