Considerações Sobre a Arte e a Existência

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C o n s i d e r a ç õ e s s o b r e AA r t e e AE x i s t ê n c i a

E ma n u e l R . Ma r q u e s



Título: Considerações Sobre a Arte e a Existência Autor: Emanuel R. Marques Editora: Abismo Humano Capa: André Consciência Prefácio: Johnny Almeida © Abismo Humano, 2019



Prefácio Em sinopse: no dia em que o raciocínio e a vida se conheceram, casaram e tiveram filhos. Esta frase tosca podia muito bem ser um pouco digno fio condutor para a clarividência das orações deixadas pelo autor, traduzidas num almejo de alma contra a relativização dos valores, cada vez menos fundamentais, perdidos em desonra por qualquer boa, média ou fraca razão, mas também em desfavor do pré-estabelecido, grito de revolta O que existe não satisfaz. Talvez por ser fraco, talvez por ser fraquinho. Como se ele estivesse numa canoa de papel a tentar subir na corrente de um rio rápido. Só vamos ser loucos até termos o conforto da razão, mas vivemos na iminência desconfortável de nunca a vir a ter. É essa a função de quem pensa: ser assumidamente louco, sem medo do rótulo que lhe colam na testa, ou nas costas, ou no peito, ou onde for. A beleza, quase poética, desta fragilidade é essa ambivalência de sermos olhados de lado, mas, no segundo que se coloca a seguir, ser-nos apertada a mão em sinal claro de reconhecimento. É como que se descobríssemos que aquele homem de barbas longas e sobrancelhas fartas, afinal não tem cabelos no cocuruto. Só o descobrimos porque olhamos de um ângulo diferente, mais ao lado e mais de cima. É justo afirmar que se questiona a própria da existência, esse grande chavão para o qual todos tentamos desenhar um sentido, pela mesma forma que é justo afirmar que alteramos a praia por cada vez que levamos areia nos calções para casa. Por mais pequeno, ou não, que seja aquilo que se pensa, nada fica igual. Posto isto, é correcto dizer que num universo cheio de dogmas e frases feitas é preciso quem abane edifícios ao pontapé. Também o será necessário neste globo onde se desbarata o que se sente e se fica mal sentado a assistir à convalescença do valor das coisas em prol das coisas com valor. Em contraponto, celebremos processos criativos, porque de tudo o que existe na arte, eles são o grão mais puro, nessa singularidade de transformar a realidade. Que se levantem questões, como aliás, e muito bem, faz o autor neste manifesto cronológico. Levantar questões é o caminho para o futuro, e estamos sempre a tentar viajar para lá por cada vez que se pensa, mas quando lá chegamos, para nossa infelicidade, já é presente. Johnny Almeida


"Ébrio, sob o olhar da noite sagrada, os deuses cobrem-me com o seu manto de palavras e transformam os meus passos em mantras de inquietação."

Emanuel R. Marques


CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE E A EXISTÊNCIA

04h20 da manhã e as certezas são utopias do indefinido: -Todas as obras de arte que se submetam a uma avaliação são merda, pois estão a ser submetidas. -Todas as obras que sejam avaliadas positivamente são merda, pois estão a ir ao encontro dos parâmetros dos avaliadores. -Todas as obras que sejam avaliadas negativamente são merda, pois estão a ser interpretadas pela perspectiva dos avaliadores. -Toda a merda é fertilizante e a arte é um distúrbio das intenções humanas para explicar a beleza do óbvio. Resta o amor a tudo o que é feito com amor e foi fertilizado à germinação. Tudo é uma merda, ainda bem. 02h59 da manhã. O futuro pode ter a beleza do inesperado. -A vida perguntou à arte qual era o seu sentido, mas a arte estava demasiado entretida e concentrada a criar e não conseguiu responder. -A arte perguntou à vida qual era o seu sentido, mas a vida estava demasiado ocupada a acontecer e não pode responder. Entretanto, a natureza continuou a seguir o seu rumo e tanto a arte como a vida deixaram de perder tempo a fazer perguntas inúteis. 02h42 da manhã e as munições da alma são disparadas sem rumo. O gato que te cruza o olhar, sem temor, demonstra-te que a harmonia é possível se o espírito for predisposto. O seu sorriso é sábio. Ele caga onde tem de ser e como cavalheiro que é faz questão de cobrir a sua obra. Nunca se sabe o que poderá nascer. Não usa papel para se limpar, mas também não o usa como símbolo de valor de troca. Se um pedaço de papel pode ter um valor de troca, poderá um pedaço de pedra ter um valor de troca? É a magia da civilização e do seu formato dominador. No mercado dos sentimentos e da compaixão vão à falência os melhores comerciantes. Não.. não vão à falência porque o comércio não é um negócio de animais.


03h50 da manhã e o surrealismo dos teus sonhos é o fruto de um puzzle desfeito pelos espasmos da realidade. O ontem não existe, o amanhã não existe e o agora é ocupado a juntar a letra "a" com a letra "g", com a letra "o", com a letra "r" e com a letra "a". Demasiado tempo perdido a juntar letras na tentativa de formar um puzzle que faça sentido. Quem come uma sopa de letras não está preocupado com a junção que as letras farão na sua barriga. Está alimentado, pelo menos até à necessidade da próxima refeição. Esse é o sentido da vida. Esse é o sentido da arte. Toda a arte é comunicação, mesmo quando não o parece ser. Todos os pensamentos são vida, mesmo quando não o parecem ser. 03h30 da manhã e a Nina Simone resumiu o que é ter e não ter. Amanhã, os pássaros despercebidos retomarão o seu canto pela manhã. Os mais atentos irão ouvi-lo. É preciso estar atento. É preciso estar atento ao que não nos foi ensinado a ter atenção, para perceber o que deve ser percebido. O insignificante mundo das suposições torna-nos surdos de presente . 03h10 da manhã e a magia do indecifrável é o jogo da existência. Um copo de água não apaga um incêndio, mas mil copos de água podem apagar um fogo. Demora tempo, mas é nesse tempo que se aprende a arte do fogo e da água. A água alimenta a terra, o vento espalha as sementes e o pensamento é a fonte de todas as alquimias. Os semeadores de ideias sobrevivem ébrios na doce ignorância das energias. Todos somos energia. 03h00 da manhã e a arte deixa de o ser quando é avaliada por um preço. Um preço definido por Homens. É aí que deixa de pertencer aos deuses. Uma elaborada moldura torna qualquer coisa apresentável. O sítio certo, a recomendação certa, tudo se torna uma certeza de recomendações e apresentações. O circo das ideias é infinito, por isso o seu espectáculo não tem preço. As ideias são o rumo da existência. 24h47 e o Kerouac nunca saberá que eu tenho o seu Tristessa. Ele não sabe nada acerca de mim, mas eu sei da sua paixão pela jovem mexicana em 1955. Os caminhos que não se cruzam encontram-se no limbo das ideias. O Dharma da criatividade é um trilho demasiado confuso.


04h00 da manhã e os ponteiros do relógio são confusas reflexões ao ciclo dos dias e ao valor da existência humana. Alimentas a máquina monetária de alguém, para que com uma pequena parcela te possas alimentar e sintas o respeito das outras peças iguais a ti. Se não pertences não és, é importante pertencer, mesmo que seja a um qualquer clube de insatisfatório conformismo. Quanto mais tiveres menor será o fardo da obrigação de pertencer. É melhor ter do que ser, dizem as subliminares sabedorias da comunicação. O conforto é bom, mesmo que seja somente em cinco minutos de uma hora, uma dádiva de homens para homens, quando todos os segundos deveriam ser sentidos como uma celebração de existência e partilha. Desta forma, terás a capacidade de produzir novas peças, que serão a máquina monetária de alguém e assim terão a capacidade de produzir também novas peças num contínuo jogo de dever. A alquimia do esperma e dos óvulos passou a ser controlada numa linha de montagem. A magia da criação ou a arte do sexo são tempo, dinheiro, produção e investimento. O próprio acaso nasce com esse peso de dívida futura e responsabilidade pré -definida. Dá-te por agradecido por poderes comer pão fresco todas as manhãs, alguém o fez não para que o possas comer, mas sim para ter a capacidade de poder produzir novas peças que serão a máquina monetária de alguém. Há quem não possa fazer pão e quem não o possa comprar e comer. Se não for rentável não existe. Se não houver dinheiro no deserto ninguém vai vender água. Entretanto, a ilusão dos brinquedos faz-te perder a capacidade de brincar. - "Mas achas que a vida é uma brincadeira?!" Não, a vida é uma obediência em que o teu objectivo enquanto máquina monetária de alguém é produzir novas peças, que serão a máquina monetária de alguém e assim sucessivamente... a ilusão da posse ajuda a distrair da impossibilidade de vencer o jogo. Aproveita o nascer de cada sol. Alguém vai censurar o facto de estares a contemplar o nascer desse sol, quando devias estar a sentir-te grato na tua escuridão por poderes produzir a contemplação do nascer do sol de alguém. E na ébria condução dos pensamentos abraço o sono e desligo a noite... 02h30 da manhã e tanto na arte como na vida o importante é sentir. Vivemos numa época de catálogos virtuais, sendo a estética preferencial de cada um válida, uma época de currículos vitae, onde a avaliação do passado pode valorizar a produção do presente e influenciar o lucro do futuro, mas onde reside a avaliação aos espíritos? A magia do desconhecido reveste-se de inesperado. Oculto é o que não está à vista nem nos é apresentado na banalidade dos previsíveis caminhos. É quando nos perdemos nos trilhos da intuição que somos abençoados com uma visão de certeza.


Muitas obras de arte são de uma beleza minuciosamente trabalhada. A história que as acompanha é impressionante. No entanto, não é essa a música que nos faz arrepiar ou o quadro que queremos pendurar. Não há catálogos, currículos ou avaliações definidas na arte de sentir. Talvez a vida seja a arte de sentir. 04h00 da manhã. Como é que as civilizações antigas conseguiam tamanhas construções, quando não usavam cartões multibanco, paus de selfie ou telemóveis? Como é que se conseguiam concentrar na execução dessas obras, quando não tinham uma sociedade de infinitas distracções ou procedimentos de demoradas burocracias? A ironia não deixa dúvidas, é demasiado óbvia a oscilação do conhecimento ao longo da História. Quando nos afundamos na abundância do desnecessário, tendemos a menosprezar a importância do essencial. O Homem esquece com a mesma facilidade com que aprende. Quando éramos crianças construíamos cabanas e brincávamos à simplicidade da arquitectura. É importante criar santuários para apaziguar a alma e descansar o corpo. Toda a arte é criação, mesmo que seja a criação de ideias ou conceitos. Todo o Homem deve ser criador, acima de tudo de si mesmo. Isso é "divino". A política e a religião são perigosas armas de destruição, enquanto a arte só é perigosa quando ataca a política ou a religião. Só à arte é permitida a imperfeição da aprendizagem. 03h50 da manhã e a capacidade de criação é um belo utensílio na alquimia das energias. A aprendizagem da arte de transformar merda em ouro é um segredo bem guardado, por isso é que nem todos conseguem fertilizar os melhores terrenos e nem tudo o que luz é ouro. O árduo trabalho da evolução nem sempre é compreendido como tal. Nem tudo tem de ser compreendido, pois por vezes o sentir é mais importante que o compreender e as suas respostas mais significantes na estrada da evolução. Sentir para compreender. Compreender para evoluir. Partilha boas energias. Boas energias são vida. Se não as tiveres, finge que as tens. Num mundo de tantos encobrimentos, pelo menos estás a fingir pela positiva e podes acabar por as ter mesmo sem perceberes. Estás a estudar a alquimia e a fertilizar o teu próprio terreno. De tanto tropeçares em pedras talvez acabes por tropeçar numa filosofal. A arte liberta o bem e o mal e torna-os unos numa exaltação de sentido. A arte de transformar. 03h30 da manhã e o inexistente futuro tem influência na destruição do presente. É a sina das visões do passado.


Coroado com os espinhos da razão o homem sentimental caminha pelo limbo da inconstância. Inconstância é um bom nome de baptismo para uma existência. Mas tudo na vida é incerteza e essa é a única certeza, pois só assim se encontra a beleza do jogo do inesperado, com toda a sua plenitude de sucessos e fracassos. A magia do inevitável conduz à melhor aprendizagem, o acaso e a intuição aos melhores momentos criativos. Deus disse: "O Mundo é grande, mas a minha imaginação é maior", e em seguida pagou a conta e foi para casa brincar à imperfeição. A perfeição é uma invenção de Homens e os Homens guiam-se pelas modas criadas por outros Homens. Os deuses estão demasiado ocupados a terminar a última bebida. Um dia, todos os Homens serão deuses. Um dia, os deuses deixarão de existir. 04h15 da manhã e o caminho da evolução individual passa pela influência à evolução dos outros e dos outros a nós. Todos somos mestres e aprendizes neste caminho de indefinições. As intuições, os ritmos e as jornadas são diferentes, algumas viagens mais demoradas que outras, mas os portos de iluminada plenitude são comuns. A partilha é um remo importante num oceano de tempestades iminentes. A criatividade é um espelho mágico onde tudo pode ser depositado. A arte é uma comunicação para homens e para deuses e todas as vidas são evolução. Algumas noites são bonitas, mas todas as noites têm a sua beleza e o segredo para a percepção do belo está na atenção que dedicamos às coisas. Uma mistura de sensibilidade e predisposição que permite sentir a linguagem suprema da contemplação. 01h40 da manhã e se na eventualidade da reencarnação o processo evolutivo dos espíritos tivesse o início como espécie humana, para ir crescendo na simplicidade existencial de outras espécies animais. A filosofia e outras doenças do pensamento vistos como pesos desnecessários às viagens da carne, até assumirmos o estado mais simples de "ser". A natureza consegue ser cruel, com todos os seus preceitos de sobrevivência, mas mostra-me uma sociedade humana onde isso não aconteça. A diferença na nossa sabedoria é que desenvolvemos mais técnicas e mais audazes de exercer essa crueldade. A racionalidade tem as costas largas. Nós perdemos tempo a agradecer a beleza da vida e a catalogar e escolher as merdas desnecessárias que nos foram ensinadas a escolher, numa pressão de aceitação. Os animais vivem a vida. Cruzei-me com um cão vadio e invejei a sua liberdade. Ele seguiu o seu caminho sem


conhecer o conceito de inveja. Criamos arte, produtos, conceitos e outros artefactos que nos saciam a alma, cada um à sua maneira. Qualquer ave nasce com o curso de arquitectura que lhe permitirá construir um ninho, sem autorizações, avaliações, proibições ou outras burocracias. Talvez todos nasçamos arquitectos, não só de ninhos, mas sejamos impedidos de o perceber. Do pó viemos ao pó voltaremos. 03h00 da manhã com reflexões acerca da importância do invisível. A electricidade é invisível, mas reflecte-se nas mais diversas expressões visuais. O magnetismo exerce o seu poder num bailado de energias cósmicas. A aproximação energética a certas coisas ou pessoas e o seu resultado sensorial. Esta própria forma de transmitir ideias, de fazer chegar as palavras com o impalpável wireless. Tudo é uma alquimia de física e química, causas e consequências, uma conexão de sentidos que se interligam e complementam. Ouves um som e podes até sentir a sua vibração, mas não o vês. Vês um desenho, mas não o podes decifrar com o tacto. Eis que surge o pensamento, a forma primordial da origem, que cria, inova, destrói e questiona. Guardas o tempo e a experiência num baú invisível que existe num frenesim de neurónios e que transformas em reflexões, definições, devaneios e, após esta magia do invisível, num qualquer produto material ou consequência sentimental. As intenções são os fetos invisíveis das concretizações. As concretizações nunca serão o perfeito resultado dessas intenções, pois nascem do invisível que é impossível de transfigurar com toda essa plenitude. Por vezes, essa imperfeição é o caminho para o desejável e abençoamos os desvios do inesperado. Outras vezes não... tal como a ambição de tornar este texto coerente. 04h30 da manhã e a aprendizagem da vivência no desconforto chama-se vida. Assim que abandonas a placenta estás em contacto com essa realidade desconfortável. Para bem ou para mal estás na jogada, mas estás. És jogador. Os conceitos de bem e de mal são ilusões culturais, mas os valores são as sementes da tranquilidade da consciência individual. O mal é fruto da ignorância e a sua consequência é o sofrimento. O príncipe Siddhartha sabia-o bem. No fundo, tudo é bom porque tudo é caminho. Ninguém morre se comer o fruto proibido e só se vai sentir mal se o seu organismo não for o indicado para o comer. Há mais frutos na terra e a aprendizagem é a escolha do que é alimento. E a vida é a possibilidade de criação e as possibilidades são infinitas, e o infinito é o romper com os limites das possibilidades. A realidade é o esterco da criação e a magia é o seu fruto.


03h50 da manhã e desde o nascimento a vida é apresentada como um sacrifício. Tudo se consegue com sacrifício. A aprendizagem do que não queres para teres o que não precisas. Aguenta, porque nós também. Se tiveres um sacrifício de 80%, com sorte, terás uma felicidade de 20%, e no final vais erguer a mesma taça, a morte. Os teus semelhantes vão estar a ohar para a taça e não para a tua infeliz carne sem vida. Algumas civilizações antigas usavam os sacrifícios humanos para acalmar os deuses. Algumas civilizações modernas usam os sacrifícios humanos para acalmar os homens e as suas divindades dominadoras. O deus capital está acima de todos. Um dia, se conseguires, vais fingir que as frustrações da realidade são a melhor maneira de ser aceite e acabarás por assumi-lo numa ilusão de existência colectiva. Talvez consigas criar alguma coisa, se as ideias te derem 20% de criação e não te exigirem qualquer coisa em troca. 14h05 da tarde e a arte não tem manual de instruções. Os Homens sim, têm vários manuais de instruções que lhes manipulam e direccionam a percepção. A arte é o universo em inquietação, a bênção com que os deuses amaldiçoaram o Homem, o expoente máximo da motivação que nunca oprime e sempre liberta. A arte é a acendalha para as virtudes do pensamento, apenas desvirtuada pelos tentáculos qualificativos do negócio. A representação das almas, nas suas várias formas, cores, expressões e estados emocionais é o maior elixir contra a insatisfação (pelo menos durante o processo de criação) A indefinição é o melhor mestre e os seus segredos confissões invisíveis. 02h30 da manhã e os robots não contemplam, executam. A ilusão do controlo ceganos para a valiosa consciência de que tudo é instável. O universo sempre se orientou pela beleza da inconstante instabilidade, em que se renovam todos os conceitos de beleza e se aprumam os sentidos da existência. Somos ensinados a alimentar a locomotiva do ego com o carvão da frustração e esquecemo-nos de contemplar as estações mais pequenas, os apeadeiros da surpresa e da simplicidade. 15h30 da tarde e o William Burroughs destacou, e com razão, o impacto que as gravações sonoras e a manipulação das mesmas pode ter na intensificação de certas situações, ou apaziguamento de outras, como motins, por exemplo. Em tempos, num qualquer país, passavam música clássica durante a noite nas estações de metro, para acalmar os noctívagos mais exaltados. Noutros casos, o som é usado como estímulo à euforia dos espíritos ou à exaustão dos mesmos. Também os restantes sentidos podem ser condicionados desta maneira, seja directamente ou subliminarmente. Os meios de comunicação oferecem-te uma opinião. Os resistentes recusam essa opinião, aceitam as oferendas de outros meios de comunicação. Tudo é comunicação e a verdade é um mutável jogo de ping-pong, ao qual a razão assiste da primeira fila.


Arte é comunicação e também ela é abrangente nos seus propósitos, mas é sempre fiel à intenção de criar e construir. 00h33 da manhã e todas as lutas contra o tempo são batalhas perdidas. O tempo nunca se ganha, passa e é perdido. A ilusão de ganhar tempo é apresentada sob a forma de memórias. Caminhar lado a lado com o tempo. Abraçá-lo como um amigo neutro e inseparável, que nunca sabes como te irá surpreender. 03h20 da manhã e toda a arte é autobiográfica. Mesmo sendo uma representação, a transmissão de uma ideia ou conceito já existente ou uma ilusória invenção, passa sempre pela metamorfose do ser criador. O surrealismo, o dadaísmo ou qualquer outro ismo que surja da magia do inexplicável ou de um acaso experimentalista, tem sempre as vírgulas, ou a falta delas, a que o ser criador se predispõe, seja consciente ou inconscientemente. Um jornalista debita a informação que lhe sai da boca, da sua boca e não da de outra pessoa qualquer. O seu timbre de voz, a entoação, a expressão. O cunho pessoal. Ninguém vai dizer que gosta de ti de maneira igual a outra pessoa, ninguém te vai odiar de forma igual a outra pessoa. A magia da individualidade é uma das maravilhas da existência. 02h00 da manhã e talvez a melhor forma de apurar a percepção fosse começar por criar algo através da ocultação de algum ou vários sentidos, numa tentativa de amplificar capacidades para a posterior conjugação dos mesmos. Desenhar de olhos fechados, compor de ouvidos tapados e jogar com as variações possíveis na construção de inúmeras outras coisas. No entanto, quando estamos imóveis, antes de adormecer, por exemplo, de olhos fechados, alheios às distracções dos sons, sabores e cheiros que nos rodeiam, estamos a pensar. Talvez o pensamento seja um sentido supremo de criação que não necessita destes sentidos auxiliares, numa fase da prématerialização. Temos um amazém de memórias disposto a novas configurações. Estarão outros sentidos despertos, que pela ausência de nome não são tidos como relevantes para o futuro processo de criar em sintonia com os outros? Será que a arte tem de fazer sentido, quando a vida muitas vezes parece não fazer, ou talvez esse sentido para a vida seja a ausência de sentido e a arte possa ser um reflexo disso? É complexo decifrar o sentido de certos pensamentos e mais complexo utilizar o tacto e a visão para os decifrar e exprimir em frases. Qual o sentido da vida, qual o sentido da arte, qual o sentido deste texto... qual o sentido de sentir. 03h30 da manhã e todas as promessas de outrora se perderam nos trilhos da


convicção e da falta dela. É preciso aprender a lidar com a arte das incertezas e do inesperado. Nem para bem nem para mal. Para o que quer que seja. Uma vez estava um belo dia de sol e uma criança brincava a fazer buracos na terra, Subitamente, começou a chover e as pequenas escavações tornaram-se poças. A brincadeira terminou? Sim, deixou de ser brincadeira. As poças tornaram-se fontes de lama… e da lama se fez vida. 13h30 da tarde e o tempo que se usa a dormir nunca é perdido. Se o Homem está vivo durante o sono e a sonhar, se é abordado por sensações, emoções e revoluções mentais durante esses sonhos, então existe uma ligação entre eles e a realidade física. Estão a existir num espaço físico que é o corpo do autor do sonho e, assim sendo, também num espaço temporal. São vida, comunicação e criação. São arte. Por vezes, passamos horas em frente de entretenimentos bastante inferiores a alguns que nos assaltam durante o sono, mas a forma como encaramos uns e outros é diferente, quando, no fundo, todos os entretenimentos são passageiros, seja qual for a sua forma. Todos acabamos por ser criadores surrealistas, mas nem todos conseguem apreciar esta matéria-prima. 17h53 da tarde e o Johnny Cash conta-me a história de Give my love to Rose. A trágica beleza de um moribundo. Todas as pessoas que ouvirem esta música, ao darem atenção às palavras cantadas, vão estar de alguma forma conectadas a mim nesse momento. Sabem que eu a ouvi, a estou a referenciar e a minha apreciação vai estar presente na vossa memória quando estiverem a ouvi-la. Comunicação não presencial. Serão os pensamentos uma forma de comunicação, ainda que apenas absorvidos por quem os está a ter? Eventualmente, haverá sintonias. Ou não, como em qualquer outra forma de comunicação presencial. A arte das palavras e dos sons, a alquimia da criação e a comunicação de sensações. 04h20 da manhã e o que é que distingue um animal livre de um animal abandonado? Um animal abandonado foi um animal com dono, um animal livre é um animal senhor da sua natureza existencial. Conheci um cão que passava os dias alegremente a correr atrás de tudo o que se movia, alimentava-se várias vezes ao dia, sem conselhos de qualquer nutricionista, em pequenas quantidades, e contemplava todos os dias o nascer e o pôr-do-sol. Um dia, veio um homem e disse-lhe que tinha pena dele, por viver abandonado na


natureza, e que precisava de ser institucionalizado, ter um chip e cagar num sítio definido. Essa obediência ia conseguir-lhe um tecto, afecto e um horário para refeições. Ele tentou explicar que não era um cão abandonado e não queria ir para uma casa, que esse conceito de benevolência era um sistema de humanos e não de cães e que não queria ter problemas com as finanças por entrar num sistema que não era seu. O humano não percebeu a mensagem, pois o seu ego era alimentado pela domesticação de uma liberdade e o Homem sabe sempre o que é melhor para os outros, mesmo de outras espécies. O cão tornou-se cómodo a essa nova realidade e aprendeu a abanar a cauda. O dono estava feliz e ele também. Mas a palavra dono pertence à língua dos humanos e não à dos outros animais. Um dia foi abandonado numa cidade. Houve quem o quisesse atropelar, quem o quisesse ajudar e quem disparasse conflitos acerca do que era melhor para ele. Mas ele não queria nada disso, ele não queria ser humano nem ter nada que ver com esses conflitos de egos, ele só queria correr atrás de coisas em movimento e comer várias vezes ao dia sem o conselho de qualquer nutricionista. O homem pensa que tudo o que não tem dono é vadio e merece pena. Depois reclama a sua liberdade quanto aos donos do mundo, praticando os mesmos conceitos diariamente em pequena escala. Qualquer semelhança entre cães, outros animais, tribos indígenas ou banalidades do dia-a-dia, não é pura coincidência para a ideia a transmitir. 04h00 da manhã e certa vez criaram uma Faculdade de Belas, Feias e Mais-ou-menos Artes. Os exames de admissão eram complicados de avaliar, pois todos os trabalhos ou eram belos, feios ou mais-ou-menos. Houve mesmo um candidato que se recusou a fazer o que quer que fosse, disse que essa era a sua forma de expressão artística. Foi inovador, conceptual ou preguiçoso, houve quem o considerasse genial, absurdo ou mais-ou-menos. Vendo que seria difícil albergar todos aqueles alunos numa única Faculdade, o reitor decidiu enviá-los todos para um planeta, onde pudessem explorar e desenvolver as suas capacidades criativas. Converteu-se ao budismo e abandonou o cargo, mas deixou que os alunos continuassem a acreditar, para manter alguma ordem na propositada desordem, que mais cedo ou mais tarde seriam chamados a um exame de final do curso... das Belas, Feias e Mais-ou-menos Artes. 02h50 da manhã e todo o Homem é alquimista da sua essência, ou o que quer que isso signifique e a busca da definição para o significado não é o objectivo. Embebeda-te de boas energias. Escolhe um estalajadeiro de confiança e se esse bar tiver casa-de-banho estás à vontade para deixar as más, só pagas o que consomes, tu só queres consumir as boas e por vezes as melhores são oferecidas. A definição de bom ou mau é apenas um produto de expectativas e a vida é uma aprendizagem na arte da verdadeira alquimia. Solve et coagula. Se adormeceres descansado terás percebido o verdadeiro significado do momento. A


vida é uma passagem e todos os momentos criativos, em todas as suas formas de expressão, são portais. Pagas a tua conta e voltas para a tua cama. O fumo do teu cigarro continuará, eventualmente, a dançar no produto da tua essência. 09h40 da manhã e as ilusões são os placebos da existência, por isso devem ser tomadas três vezes ao dia. Pela manhã, para estimular o espírito, a meio do dia, para manter o entusiasmo, e à noite para alimentar a esperança do dia seguinte. Dosagem controlada, mediante a necessidade e resistência de cada organismo. Após algum tempo, pela universal lei da aprendizagem que impede a concretização de todas as ilusões na forma desejada, vamos questionar a utilidade daquele tempo. Aquele tempo chama-se vida e a vida é a tentativa de um confortável consumo de ilusões. Quando usada correcta e incorrectamente esta semente pode dar origem à criação de "algo". "Algo" é um conceito muito vago, como as certezas da vida. 00h00 e a insatisfação é um negócio que nos é seduzido pelo marketing da comparação. Crescemos numa educação em que o suficiente nunca o é e o mais é sinónimo de sucesso. Um ciclo infindável de insatisfação que nos atravessa de todas as formas, diariamente. Desvalorizamos o que temos por estarmos demasiado ocupados a desejar o que não temos, numa desenfreada ansiedade, quem muitas vezes nem sequer tem origem nas nossas genuínas vontades. O que tivemos, o que teremos, o que foi, o que será... nunca o que é e o que temos. Talvez o segredo esteja no prazer da construção. 03h40 da manhã e o filme da existência é sempre uma maravilhosa incógnita, por mais árdua que seja. Tu és a personagem principal do teu filme, que viu o genérico inicial, com os nomes iniciais, mas não estarás cá para ver os créditos finais, com os nomes de todas as equipas que ajudaram à construção do teu filme. Como em qualquer filme, o final inesperado é sempre mais interessante do que o final previsível. No entanto, o inesperado da vida é sempre mais assustador, pois insistimos em ter tudo controlado e sentimo-nos frustrados quando o futuro não é previsível e não corresponde às nossas expectativas de filme previsível e, consequentemente, banal. Somos todos excelentes argumentistas a escrever o filme que não gostávamos de ver. Mas a vida encarrega-se de escrever por si mesma o argumento. És o personagem principal, trata de o interpretar bem e da melhor maneira possível, seja qual for o teu papel, se é que saberás qual é ou que isso tenha alguma importância. Aproveita a experiência e as sandes mistas do backstage. Podes não ganhar um Óscar, mas participaste num bom filme independente. 05h00 da manhã e um dia vou ganhar muito dinheiro, vamos viajar, vais ser a minha princesa, não vai faltar nada, o sol vai sorrir todas as manhãs e a minha mão vai


afastar todos os demónios sociohumanoputaqueospariu. Um dia vou brincar à perfeição e a minha cara vai ser o papel com que a moda limpará o cú. Mas não tenho esses poderes, pois deixei-os com um desconhecido sem abrigo e espero que ele masturbe mais um pouco da sua existência até ao derradeiro sopro. Tu és a sombra dos passados que o futuro deseja melhorar e não existes, as mil faces da expectativa, o reflexo das minhas imperfeições. Talvez me encontres a mijar numa qualquer ruela e te encantes pela doce melodia do meu alívio. Tenho uma couraça para partilhar e o sabor de uma lâmina capaz de conquistar um mundo. O meu sorriso tem a eternidade da estupidez da humanidade e eu sei disso mas eles não, por isso continuo a sorrir. Tudo é efémero, mas o amor é infinito. Mas o que é o infinito? O que é o amor? O que sou eu? O que serás tu? O que é a existência? As grandes respostas estão na ponta da língua... dos apaixonados. 03h40 da manhã e a doença que mata mais pessoas por ano é a ansiedade e a expectativa. Todos te questionarão acerca do que esperas fazer da vida, mas nunca terão a sensibilidade para te ensinar a aceitares o que a vida espera fazer de ti. Todos esperam que respondas os dias de sol, mas esquecem que a chuva é necessária no inesperado equilíbrio construtivo e destrutivo da existência. Essa é a maravilha da criação. Quando souberes respirar o inesperado sem sofrimento estarás apto a aceitar o que quer que seja, e o que quer que seja é o confronto do que queres com o que não queres e isso é vida, é existência. Trabalhar cada momento com a alma de artista, amar todos esses segundos como cada pincelada que ornamentou a capela sistina ou qualquer outra obra majestosa. Poderás fazer escolhas e aceitar os seus fracassos e ter esperança que o santo Graal resida no processo desses erros. Tudo é limitado, finito e incontrolável, menos a capacidade de aceitar e amar. Talvez esses sejam os super poderes do ser humano normal. Talvez sejamos todos anormais numa sociedade de ansiedade e expectativa, ensinados a aceitar o sofrimento da desilusão pela comparação entre o que supostamente deveria ser e não é. 17h30 da tarde e por vezes uma música ou uma imagem têm a mágica influência de te inspirar uma certa disposição. Uma palavra de estímulo, um sorriso ou uma acção intencionada podem encher-te de magia. A magia existe e todos nós somos feiticeiros capazes. As palavras são instrumentos poderosos. Os rituais são encenações comunicativas. Uma maldição só funciona se houver sintonia entre as duas partes. Se o emissor disser "desejo-te mal" mas o receptor perceber " és especial", o efeito é inverso. As palavras podem comandar energias. Todas as pessoas comandam palavras, mas nem todas têm noção do poder das energias. Podes segurar uma maçã envenenada, mas não significa que tenhas de a comer. Foi isso que lixou a Branca de Neve. 04h25 da manhã e as maiores construções do que quer que seja são sempre


reconstruções. Por vezes, um qualquer factor externo abala e faz desabar a certeza construtiva que tinhamos idealizado. Excelente! A estatística diz que o que vem a seguir será melhor. Os "grandes" dizem que foi o melhor que lhes aconteceu e só esse desmoronar lhes permitiu alcançar o verdadeiro objectivo, que na maior parte das vezes é bem melhor do que o ilusoriamente previsto. No entanto, existe um espaço sombrio entre o construir e o reconstruir. Se não aceitares o abalo como a dádiva da reconstrução, vais padecer à frustração do que poderia ter sido e não é, nunca conhecerás os louvores do inesperado. Todos os dias são dias de reconstrução e nunca sabes quando é que um tremor de vida pode ser aquilo que te dará vida. 02h40 da manhã e era uma vez um atleta que quando ouviu o disparo da partida ficou a contemplar as aves que voaram assustadas pelo som. Começou então a correr, mas com calma, pois havia pessoas no público com quem queria trocar palavras. Em seguida, apaixonou-se por um pedaço de papel que encontrou no chão e tentou decifrar de que contexto faria parte. Algum tempo depois, contrariando as regras da competição, fez uma pausa para comer uma sandes, enquanto olhava a euforia do público e o esforço dos outros atletas. Tirou fotografias àquela azáfama, acendeu um cigarro e contemplou as raparigas bonitas na primeira fila. Lembrou-se então que estava numa corrida e rumou à meta, não sem antes ajudar um atleta que tinha caído a levantar-se. Ainda chegou a tempo de ver a subida ao pódio dos vencedores e bateu-lhes palmas. Respirou fundo e questionou o verdadeiro significado da palavra vencedor. 14h15 da tarde e se perguntares a um Homem o motivo para o teu nascimento, ele vai responder que foi para seres uma peça útil na engrenagem de uma máquina de desenvolvimento económico. Se perguntares a um Deus, ele vai responder que foi para seres mais um adepto de uma equipa no infinito campeonato das devoções. Há Homens com muito dinheiro que julgam ser Deuses e Deuses com pouco dinheiro que julgam ser Homens. Perdido nesta confusão está o sentido que perguntas a ti próprio, mas sem resposta, porque as respostas têm-nas os Homens e os Deuses, enquanto tu continuas à procura. 04h00 da manhã e um dia, ou vários, vão exigir-te uma motivação válida para o que quer que faças ou não faças. Convém que tenhas um argumento na ponta da língua ou sejas hábil a criar um convincente, senão estás fora do jogo que deverias jogar. De forma geral, todas as motivações são inventadas de forma a serem aceites como o almejar de um objectivo concreto e prático da vida comum. Na maioria das vezes, os objectivos são ilusões para o próprio e para os outros. Torna-te actual e finge como objectivo uma máquina qualquer. Todos ficarão satisfeitos e as máquinas não têm alma.


O objectivo de não ter objectivo é a aceitação do acaso, da consequência, da magia e tão simplesmente da vida como objectivo. Se pessoas, religiões e crenças podem ser considerados motivações e objectivos, a arte pode ser tida como tal. Criar motivações também requer alguma arte. 03h00 da manhã e tenho pena que os livros sagrados tenham sido escritos por vendedores de teorias. Manuais de felicidade submissa em nome de reaccionários e subversivos. Uma enorme contradição. Acredito em homens sábios e com boas intenções, mas não acredito nos seus seguidores e acredito na frustração desses homens sábios pelo que foi inventado em seu nome. Acredito que se conhecessem o futuro preferissem ficar calados e bebessem mais uma cerveja. As palavras são perigosas, ainda que ditas com a melhor das intenções. Um ovo tanto pode simbolizar o nascimento para uma espécie como o alimento para outra. É tudo uma questão de perspectiva de sobrevivência e poder. Enquanto o Homem utilizar deuses e demónios para justificar os seus actos e os dos outros, terá sempre o bode expiatório para a cegueira da sua própria natureza. A justificação divina para os seus medos ou ansiedades. Só a arte criada em redor de todas essas doutrinas tem a mão divina do poder da criação. 01h00 da manhã e a arte só existe na sensação de criar algo e no momento do abandono dessa mesma obra. Um clímax sem pretensões nem complicações. Tudo o que sucede este momento já não é arte, é um produto seco, acabado, eventualmente num mostruário do que quer que seja de bom, mau, emocionante, desinteressante, reaccionário, sujo, imperfeito, sumptuoso ou tudo aquilo que é caracterizado por um dicionário de valores. É nesta sensação que reside a diferença entre um artista e um profissional da manufactura criativa. O artista morre no momento em que termina a sua obra e é substituído pelo seu alterego das ambições humanas. 03h47 da manhã e talvez todos os poetas e artistas tenham sido cães vadios ou gatos numa outra vida. Nesta, talvez consigam convencer as pessoas certas ou erradas com os resquícios das suas disfunções de realidade e isso seja uma ilusão convincente e rentável.


No fundo, a realidade é um prato que já nos foi cozinhado, só temos de o comer da maneira "certa", para o podermos apreciar. 01h40 da manhã e a arte implica parâmetros de beleza ou intenções de significado, tudo dentro de uma norma comunicativa se possa ser abrangida por todos e interpretada por alguns, como qualquer outra religião. Assim sendo, a definição de o que é arte e o que não é tem como base a consideração de alguém que, mediante a sua apreciação, usa a palavra "arte" para definir uma criação como tal. E a arte é apenas uma palavra. A arte é uma definição abstracta para as instabilidades do concreto. Todas as competições, invejas ou distracções são estímulos sociais de vendedores de escravos em busca do melhor marfim para lhes enfeitar o ego. 04h00 da manhã e talvez os rastilhos que comandam a nossa arte sejam partículas e conexões de uma herança espiritual. E os ossos que carregam os nossos corpos em decrescente putrefacção não são o maior diamante da existência, esse talvez resida na influência da memória do espírito e no que podemos fazer com ele. Um dia, os meus ossos juntar-se-ão aos vossos, antepassados, e eu próprio nas vossas ilusões, na construção sublime do nosso esquecimento, farei parte do futuro. O futuro dos nossos descendentes será sempre melhor do que o nosso, pois eles são e nós já fomos, mas uma réstia de luz brilhará sobre as suas almas e nós seremos sem o sermos. 03h30 da manhã e a única Arte que existe é a que conduz ao auto-conhecimento, serenidade e evolução do artista em todos os aspectos da sua essência. O processo criativo é apenas isso, um processo, e a obra é mais uma pedra de uma calçada que procura equilibrar o seu criador e conduzi-lo a seja lá o que for. "Seja lá o que for" devia ser o nome de uma entidade divina ou uma terra de oportunidades fantásticas. Quando uma obra é bela e quase perfeita, conceitos discutíveis, é objecto de admiração ou decoração. Quando é crua e corrosiva é uma manifestação idealista ou social. Quando é tranquilizante é terapia. Quando é vendida é um negócio. Se é banal é uma habilidade. A Arte é a transformação de um mundo individual. Um mundo que interage com outros. A Arte é um conceito que devia ser destruído e esse acto de destruição transformado numa obra de arte.



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