OLHO DO TEMPO
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“Olho do Tempo” é uma joia de platina e brilhantes, criada por Salvador Dalí em 1949.
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Olho do Tempo
Copyright © Thelma B. Oliveira
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TEXTO
EDITORA
Thelma B. Oliveira / Tekka
Above Publicações
relvaw@uol.com.br
www.aboveonline.com.br
CAPA
EDITOR RESPONSÁVEL
Ivan Henrique
Uziel de Jesus
ivan@vente.com.br REVISÃO da AUTORA PROJETO GRÁFICO Ivan Henrique O0484o
Oliveira, Thelma B. (Tekka) Olho do Tempo / Thelma B. Oliveira. -- Vila Velha, ES : Above Publicações - 2010 - 240 p. 20 x 20 cm. Não inclui bibliografia. ISBN 978-85-63080-28-8 1. Crônicas 2. Literatura Brasileira I. Título. CDD. 869B
Apresentação OLHO DO TEMPO é uma coletânea de crônicas e artigos publicados em blogs e sites da internet. Textos despretensiosos, baseados na vida real e em leituras de livros, jornais e revistas. Há uns dois ou três contos, como exercícios de ficção. Contrariando os manuais de estilo, os textos contêm aspas e citações. Isso porque atribuo mais valor ao que leio do que ao que escrevo. Guardadas as abissais e incomensuráveis distâncias, era o que também achava um certo Jorge Luis Borges, que escrevia ao sabor de sua biblioteca. E Joseph Conrad: “O autor escreve apenas a metade do livro. A outra metade fica por conta do leitor”. Alberto Manguel diz, em sua “História da Leitura”: “Eu poderia viver sem escrever, não poderia viver sem ler”. Para Borges,“ler é uma amizade” e Ariano Suassuna recomenda “ler com alegria”.
Há escritores e escreventes. Escreventes escrevem sobre alguma coisa e são (somos) a maioria. Já escritores escrevem. Ponto. São bem mais raros. Felizmente, a humanidade tem suas grandes cabeças pensantes e atemporais, que atravessam os séculos. Delas emprestamos, humildemente, as perucas, para elaborar nossos “almanaques do pensamento”. Este livro procura atender à advertência de Schopenhauer: “É preciso ser econômico com o tempo, a dedicação e a paciência do leitor, de modo a receber dele o crédito de considerar o que foi escrito digno de uma leitura atenta e capaz de recompensar o esforço empregado nela”. E a uma dica de Roland Barthes: “Esse leitor, é mister que eu o procure ( que eu o ‘drague’) sem saber onde ele está. Um espaço de fruição fica então criado. Não é a ‘pessoa’ do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute; que os dados não estejam lançados, que haja um jogo”. Que o jogo seja jogado com prazer: o prazer do texto.
Agradecimento matemático Pelos Valores Fundamentais Pelas Constantes Pela Transformação das Coordenadas Pelas Identidades Úteis Pelas Integrais Básicas Pelas Transformadas Pelo Máximo e pelo Mínimo Pela Conversão das Unidades Pela Derivada Fracionária Pelos Fractais e pelos Vetores Pelas Raízes e pelas Tangentes E, principalmente, Pelas Paralelas Infinitas… Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. Clarice Lispector Ao Ivan, meu amado e ilustre ilustrador. À Academia Itaperunense de Letras, pela acolhida. E gratidão eterna a quem ler estas páginas.
Dedicatória AOS ESCRITORES e AMIGOS:
Adelaide Amorim (Rio), Antonio Caetano (Rio), Arquimimo Novaes (Niterói), Chris Hermann (Alemanha), Glória Kirinus (Curitiba), Eva Lopes (Brasília), Evelyne Furtado - Veca (Natal), Fabrício Brandão & Leila Lopes (Ilhéus, Bahia), Luciana Pires Pessanha (Itaperuna, RJ), Maria Lúcia Almeida (Belo Horizonte), Roberta Tostes (Rio) e Roberto Joaldo de Carvalho (Araci, Bahia). A MEUS “ORKUT-FRIENDS” DAS COMUNIDADES:
Discutindo Literatura http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=3332336 Pediatria Radical http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=1651309 A meus candanguinhos: Luiza, João Pedro, Joana, Julia e Henrique. A Jussara, que nasceu com Brasília. Ao Leco, forever. Aos acrobatas do eixão, argonautas da rodoviária, beirutianos bacantes & brincantes, cabeças marginais & corpos performáticos, calangos & candangos, cantantes & hierofantes, malabaristas do sinal, mamulengos mutantes e peripatéticos do Grande Circular, tribos & trupes de legionários urbanoides & trans-cênicos. A Levino de Alcântara, Oscar Niemeyer e Reynaldo Jardim. Aos ventos que virão & aos Defensores do Cerrado. E a toda a galera poética de Brasília.
A:
Agatha Christie, pelo mistério. Billie Holiday, pelo strange fruit. Cecília Meireles, pelo mar absoluto.
Clarice Lispector, pela felicidade clandestina. David Cooper, pela gramática da vida. Dorothy Parker, pela graça da ironia.
Emily Dickinson, pela campina e pelo orvalho.
Fernando Mendes Vianna, marinheiro do tempo. Graciliano Ramos, pelas vidas secas. Hilda Hilst, pelo dia magnânimo. Josué de Castro, pelo livro negro da fome. Kazuo Ohno, pela vida, pela morte. Marly de Oliveira, a suave pantera. Paulo Mendes Campos, pelo domingo azul do mar. Pina Bausch, pela magia da beleza. Rachel de Queiroz, pelo insolente coração. Rosa Parker, porque não cedeu o lugar no ônibus. The Beatles, pelo céu de diamantes. Virginia Woolf, pelo passeio ao farol. Walt Whitman, pelas folhas de relva.
Convite, à maneira de introdução Não precisas bater quando chegares. Toma a chave de ferro que encontrares sobre o pilar, ao lado da cancela, e abre com ela a porta baixa, antiga e silenciosa. Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa, o cântaro de barro e o pão de trigo. O cão amigo pousará nos teus joelhos a cabeça. Guilherme de Almeida
Prezado leitor: Leia-me com indulgência e olhos de bem-querer. No mais, muito obrigada: EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ!
Sumário A arte de perder A farra dos bois A fila anda A grande abóbora A insustentável leveza A lenda de Prometeu e do abutre que o seu fígado comeu A mãe do Feitosa A mão e a palmatória A Vidente do Amor A viuvinha Adoção homoparental e visibilidade gay Amar é ... Amores líquidos Ando meio desligado Antibiótico é uma arma quente Ariadne em seu labirinto Baixio das bestas Basta um dia Beber comer viver Beijos nos pés Bom de cama Bullying, uma angústia moderna Buriti, minha palmeira
15 17 19 21 23 25 27 29 31 32 34 39 41 43 46 47 49 50 52 53 55 58 61
Cabala da inveja 63 Cabo do medo 65 Canta, canta, minha gente 66 Carga pesada 68 Carta a minha filha 71 Carta aberta a papai e mamãe 74 Cine Brasília 76 Claudionor 78 Conjuntura Internacional 79 Conto de fraldas 80 Cordisburgo, cidade do coração 82 Criança é o pretexto da pediatria 84 Da crônica e de cronistas 87 De embriões e crianças 90 Do acalanto ao cafuné 91 Do amor 94 Do paraíso perdido à rosa inexistente 96 Doenças e doentes imaginários 98 Efeitos colaterais 101 Escrito nas estrelas 103 Eu não existo sem você 105 Eva e a fruta estranha 108 F de fake 111 Febre 115
Festa no Muquém 117 Fora de mercado 119 Hair 122 Hipermodernidade 125 Identidade, cegueira e panetone 126 Jeca Tatu e o amarelão 128 Josué de Castro, a fome e a pediatria 130 Livros de ponto 133 Lutar com palavras 135 Mãe só tem uma 138 Matança dos inocentes 142 Mar adentro 144 Marilyn não morreu 146 Meu irmão camarada 148 Meu pai é quem paga seu salário 151 Negócio da China 154 No meio do caminho 156 O anjo exterminador 158 O “capinha” 160 O dia da caça 162 O diabo veste Prada 164 O direito à preguiça 167 O filho de Francisco 169 O lado B das viagens aéreas 171 O ovo é inocente 173 O sorriso de Mona Lisa 175 O trem da minha vida 178 Olho do tempo 180
Orkut e o Père Lachaise 183 Pânico 185 Pão de queijo 187 Papo cabeça 189 Perdido e achado 191 Persistência da memória 192 Politicamente correto 194 Procura-se 196 Rap da criança morta 198 Quando eu morri 199 Quando Nietzsche chorou 202 Quarentinha 204 Que hoje é carnaval 206 Quem é Beta? 209 Ronda 211 Sangue do meu sangue 213 Santiago 215 São Paulo, a cultura e as vacas 217 Strange fruit 219 Tabus alimentares 223 Thanksgiving ou o que há com seu peru 224 Tou no sal 226 Tua beleza é um avião 229 Tutu Marambá 232 Última Quimera 235
A presente edição homenageia a galera poética de Brasília: Adriana Nunes, Adriana Vasconcelos, Afonso Ligório, Agilson, Aglaia Souza, Alan Viggiano, Alessandra Roscoe, Alexandre Ribondi, Amneres, Ana Miranda, Ana Vasconcellos, Anand Rao, Anderson Batista de Melo, Anderson Braga Horta, André Giusti, André Togni, Andrea Alfaia & Arthur Tadeu Curado, Andrea Glória, Andrey Amaral, Angelica Torres, Antônia Vilarinho, Antônio Brito, A. Carlos Osório, Antonio Miranda, Ari Cunha, Armando Bulcão, Asta-Rose Alcaide, Atila Regiani, B. de Paiva, Basirah, Bené Fonteles, Bernardo Scartezini, Beth Behring, Beth Ernest Dias, Betse de Paula, Bic Prado, Carlos Marcelo, Carmen Moretzsohn & Donzelas Inocentes: Adriana Lódi, Bidô Galvão e Catarina Accioly, Carol Moreira de Mello, Célia Porto, Cely Curado, Chacal, Chico Alvim, Chico Amaral, Cibele Amaral, Cícero Rodrigues dos Santos, Cildo Meireles, Cléo Diaz, Climério e Clodo Ferreira, Clotilde Chaparro, Conceição Freitas, Conceição Moreira Salles, Coqueiro, Cristiane Sobral, Cristina Bastos, Cristina Roberto, Custódia Wolnei, Dad Squarisi, Dani Baggio, Danilo Gomes, Danyella Proença, Darlan Rosa, Déia Porto, Denis Cavalcanti, Donzílio Luiz, Dora Wainer, Édi Oliveira, Elena Herrera, Ellen Oléria, Eliana Borges, Eliane Cotrim, Elizabeth Hazin, Erik de Castro, Erika Bauer, Esdras Nogueira, Ézio Flávio Bazzo, Ézio Pires, Faraó, Fátima Bueno, Fernanda Barreto, Fernanda Cabral, Fernando Fonseca, Fernando La Rocque, Fernando Villar, Francisco Ansiliero, Francisco Peixoto, Gabriel Linhares, Galeno, Gê Martú, Gê Orthof, Gilberto Mello, Gisele Niremberg, Giovana Caputo, Glênio Bianchetti, Gog, Gougon, Graça Coutinho, Graça Ramos, Guilherme Reis, Gustavo Dourado, Hamilton de Holanda, Heitor de Andrade, Herbert Vianna, Hugo Rodas, Irlam Rocha Lima, Irmãos Guimarães, Iza Antunes Araújo, Isabella da Paz, Isabelle Mara, Ivan Monteiro, Ivan Presença, Jansy B. S. Mello, João Almino, João Reis, Jorge Antunes, José Belmonte, José Cabrera, José Garcia Caianno, José Rangel, José Rezende Jr., Kazuo Okubo, Leandro Braga, Lelé Filgueiras Lima, Lenora
Lobo, Lígia Cademartori, Ligiana, Liziane Guazina, Lourenço de Bem, Lourenço Cazarré, Lourenço Dutra, Lourival Marques, Lucas Gehre, Lúcia Garófalo, Luciana Martuchelli, Luciana Paiva, Lucília Garcez, Luda Lima, Lula Galvão, Luiz Amorim, Luis Humberto, Luis Turiba, Luiza Dornas, Madelon Cabral, Maíra Oliveira, Manoel Jevan, Manoel Lages, Marcela Heitor, Marcelo Miranda, Márcia Duarte, Márcio Cotrim, Márcio Moraes, Márcio Vianna, Marco Polo, Marconi Araújo, Marcos Freitas, Margarida Patriota, Maria Cristina Bahia, M. do Rosario Caetano, Maria Georgina, Marianne Peretti, Mário Fontenelle, Mário Pacheco, Marlene Godoy, Matheus Gorovitz, Maurenilson, Mauro Giuntini, Mila Petrillo, Milton Marques, Míriam Virna, Murilo Grossi, Néia e Nando, Néio Lúcio & Cabeças: [Badu, Beirão & Carrapa, Eduardo Rangel, Esquadrão da Vida, Ivan Sérgio, Jaime Ernest Dias, Liga Tripa, Maurício e Ticho Lavenere, Mel da Terra, Milton Guedes, Miquéias Paz, Oficina Blues, Reco do Bandolim & Choro Livre, Renato Matos, Renato Vasconcelos, Rênio Quintas, Suzana Mares]. Nelson Maravalhas, Neusa França, Ney Matogrosso, Nicolas Behr, Nilson Lima, Noélia Ribeiro, Nonato Veras, Omar Franco, Orlando Brito, Oswaldino Marques, Oswaldo Amorim, Oswaldo Montenegro, Paulo André Tavares, Paulo Humberto, Paulo Iolovitch, Paulo Paniago, Pedro Biondi, Pedro Gordilho, Pedro Lacerda, Péterson Paim, Plínio Mósca, Renata Jambeiro, Renato Barbieri, René Sampaio, Resa, Ricardo Gutti, Roberto Corrêa, Roberto Klotz, Roger Mello, Ronaldo Costa Fernandes, Rosa Passos, Rosana Cruz, Ruben Vargas, Rudney Silveira, Rui Faquini, Ruiter Lima, Sandra Duailibe, Santil Ribeiro, Sérgio de Sá, Sérgio Magalhães, Sérgio Maggio, Sérgio Moriconi, Sérgio Rizo, Setebelos, Seu Teodoro, Severino Francisco, Sonia Montagner, Stella Maris Rezende, Stella Rodopoulos, Tagore Alegria, Takaki, Tereza Padilha, Tetê Catalão, Thiago Moysés, Valcirema, Valéria Cabral, Vera Brant, Vicente Sá, Vítor Moreira, Victor Alegria, Vladmir Carvalho, Wagner Hermusche, Waldemar Lopes, Wamireh Chacon, William Ferreira, William Lopes e Zélia Duncan.
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A arte de perder Diz Elizabeth Bishop que perder é uma arte. Perdas são inevitáveis e até necessárias. A primeira e mais dramática perda do ser humano é a do paraíso uterino, lugar de bem-aventurança e ausência total de necessidades. Perde-se a infância, perdese a mocidade. Perdem-se pessoas, objetos, dinheiro, poder, saúde, amizades, cargos, importância. Perdem-se ilusões, ganham-se desenganos, até que se perde toda a esperança – a última que morre. Perdem-se dentes, perdem-se cabelos, perde-se a memória; perdemos cerca de 50.000 células cerebrais por dia. Perde-se o bonde, o trem, o avião. Perde-se o tempo, perde-se a vontade. Perde-se até a si mesmo, o que talvez seja a maior perda, que nos faz quebrar a cara em muitas buscas vazias. Perde-se o rumo. Perde-se a vida. Mas nada disso é nenhum mistério, como diz Elizabeth:
A arte de perder não é nenhum mistério. Tantas coisas contêm em si o acidente De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. [...]
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Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero Lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império Que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério. Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. (One Art - tradução de Paulo Henriques Britto)
Esse preâmbulo é para falar de um brasiliense especial: Mateus Jensen Didonet, menino bem nascido, com todas as condições afetivas e materiais, primeiro lugar no vestibular da UNB e o melhor em todo o curso. Tem carro, casa boa, pais amorosos, amigos e carisma. Não é que – de repente – largou tudo e se tornou franciscano, um servidor dos pobres? Quando Francisco de Assis saiu de casa e se despojou das ricas vestimentas paternas, causou espanto e até compaixão, sem falar nos rumores de que era louco. Mas, no mundo de hoje? Um mundo que se esforça por “chegar lá”, que adora o supérfluo, o luxo, a grife? É, no mínimo, uma atitude inusitada. É adotar, conscientemente, o risco da perda das referências sociais, do status, de ser “alguém”, de preferência famoso. Para esse menino, a arte de perder não é – também – nenhum mistério…
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A farra dos bois Ambientalistas não se cansam de advertir-nos a respeito do sofrimento dos animais criados para o abate: confinamento, lâmpadas que jamais se apagam, bicos das aves serrados. Mil artifícios usados para a engorda até chegarem ao corredor da morte. A lista de sofrimentos infligidos aos animais é infinita e atinge os ursos chineses, gansos que viram patê, leões e outras feras encarceradas, bebês focas dizimados a golpes de pauladas. Não são os únicos seres que sofrem no mundo: a escalada da exploração começa na infância do próprio ser humano, em qualquer parte do planeta. A pecuária intensiva e extensiva vem devastando os campos e exaurindo a terra. No Brasil, criar gado é atividade muito lucrativa, principalmente nas afluentes pastagens paulistas, goianas, mineiras e sulinas. O estado de Alagoas foi também alçado, miraculosamente, ao patamar de grande produtor de gado de primeira. Tenebrosas transações pastoris foram descortinadas a cada noticiário de jornal, revistas e TV, acobertando o caixa dois das contabilidades. Consórcio entre vida pública e privada, num verdadeiro escárnio ao povo. A carne humana (flesh) é fraca, pela tendência intrínseca à vaidade e à luxúria. Já a carne animal (meat) é forte e cara. Um hambúrguer pode custar mais de oitenta dólares em Nova York ou em Tóquio. O gado, riqueza semovente, pode servir de respaldo à cobiça, lastreando patrimônios inexplicáveis. No século XIX, Darwin – o próprio – escreveu um “Diário do Beagle”, no qual mencionava que, qualquer que fosse o crime, “um homem de posses em pouco tempo ficaria livre no Brasil”. Ele se mostrou impressionado com a injustiça e a hipocrisia de nossos “tristes trópicos”, onde “todos podem ser subornados”.
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Não sem razão, certo político declarou que o boi é o verdadeiro animal de estimação do brasileiro. Não apenas de estimação mas de alto apreço e preço. A ponto de fazer com que a História continue a repetir-se como eterna farsa: dos brioches de Maria Antonieta aos bois do senador alagoano, passando pelos panetones do GDF. E pela ‘bezerra de ouro’! Denúncia após denúncia, vamos sendo tratados como mentecaptos e sonsos pelo corporativismo de uma instituição que, em Roma, era a expressão da compostura, da probidade e do zelo pela pátria e seus cidadãos. Do rescaldo da farra e da farsa do senador só restou aos eleitores uma repetitiva, inaceitável e acintosa conversa para boi dormir.
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A fila anda Aonde nos dirigimos com tanta pressa? Harold Bloom
Dizia Heráclito, o grego, que não nos banhamos duas vezes no mesmo rio: ou as águas já são outras ou nós não somos os mesmos. Para ele, o sol não apenas é novo a cada dia, mas sempre novo, continuamente. Diz Mário Quintana: - Nunca dês nome a um rio: sempre é outro rio a passar. Nada jamais continua, tudo vai recomeçar! “Nada do que foi será, De novo do jeito que já foi um dia, Tudo passa, tudo sempre passará…”, não é, Nelson Motta? Monges tibetanos constroem imensas mandalas de areias coloridas, trabalho meticuloso que leva meses. Quando o elaborado desenho fica pronto, despejam a mandala num rio, para representar a impermanência. O tempo foge e as coisas também. Amores começam e acabam, sem choro, nem vela, nem fita amarela. “A gente mal nasce, começa a morrer”. O lactente dá lugar ao menino, que passa a bola ao adolescente, que deixa de existir ao virar adulto, o qual – de repente – envelhece. A uma estação de flores se segue a friagem do inverno; chuvas convidam à semeadura, que é seguida pela colheita. A natureza renova-se e morre sucessivamente, ensinando-nos que nada permanece e tudo é sempre novo e relativo. As folhas mortas do outono preservam a umidade das árvores, que vão eclodir em verdor primaveril. À noite segue-se o dia, ao nascer do sol, o ocaso… A roda gigante dos lançamentos eletrônicos nos atordoa e seduz. A internet está migrando para os smartphones e os games de hoje serão esquecidos amanhã. O dvd é substituido pelo blu-ray, o tubo de catódio pela tela de plasma, pelos leds e
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3D. Um mega-acelerador de partículas reproduz o Big Bang, a engenharia genética prospera e cientistas acabam de criar a célula artifical. Sondas espaciais passeiam rotineiramente pelo cosmo. Os modernos objetos do desejo são verdadeiros OVNIs, girando a velocidades inimagináveis. Não é apenas o sol que nasce no Oriente: é toda uma indústria de gadgets, que atiça a vaidade de possuir os últimos lançamentos da indústria dos chips. A tecnologia faz e acontece, mas o homem continua preso a sua engrenagem biológica: nasce dependente, leva um ano para andar, dois para falar, três para começar a pensar. E a vida inteira para aprender a viver. Esse descompasso entre a velocidade das criações eletrônicas e a relativa lentidão das aquisições da natureza humana gera no homem uma ansiedade crescente. E acentua as disparidades: enquanto uns salivam sobre escolhas tecnológicas, o maior contingente de habitantes da terra nem saiu da linha de miséria e da exclusão social. A fila anda. Aliás, a fila voa – para alguns: a fila amorosa, a fila automobilística, a fila da informação, a fila dos terabytes, a fila tecnológica inteira. Tudo exige um ‘novo modelo’ ou uma ‘nova pessoa’, para que a fila continue andando. A única fila que não anda é a dos que esperam pelas beiradas do sistema: a fila burocrática dos processos, a fila dos benefícios sociais, a fila dos enjeitados, a fila dos famélicos e dos doentes crônicos. A fila da ‘sucata humana’, de que falava Saramago, em busca de rechauchutagem para seu próprio sucateamento. Físico e moral. Emblematicamente, essa fila se materializa todos os dias nos postos da previdência e nas portas dos hospitais. É como se ela existisse desde que o mundo é mundo e jamais conseguisse sair do lugar. É renitente e mastodôntica. Não adianta reclamar: o cidadão pode ser acusado de “desacato”. Não há santo que faça essa fila andar.
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A grande abóbora “A noite de 31 de outubro era conhecida entre os celtas como “noite entre os tempos” - uma pausa entre o ano que terminava e o que começava. Era também chamada de Festa das Maçãs, porque coincidia com a época da terceira e última colheita e o início do rigoroso inverno europeu, que matava toda a vegetação. O que não fosse colhido até o dia de Samhain ou Halloween deveria apodrecer nos campos e todo excesso de rebanho sacrificado, uma vez que, com a escassez de alimentos, era impossível alimentar tantos animais. Em meio a tanta matança e à morte de alguns homens por causa do frio, a data ficou marcada como momento de reflexão sobre a própria morte e a dos que os antecederam. Por isso, ao contrário do que se imagina, as lanternas de abóboras não são usadas para afastar os ancestrais. Elas serviam para que os parentes mortos pudessem reencontrar a casa em que viveram e assim participar da festa. A data é véspera do Dia de Todos os Santos e no México acontecem grandes comemorações, com muita vela, caveiras e bebedeiras.” (*) Nos rituais de bruxaria, serviam-se “bolos das almas”, feitos de maçã, pela tradição de compartilhar a energia vital ou substância etérea do alimento. Como nesse dia se consideravam abertos os portais entre os dois mundos, o momento era propício para a realização de feitiços, pedidos, previsões, limpeza espiritual. Na festa do Samhain, as fogueiras apagadas para evitar a presença das almas penadas eram acesas de novo com as brasas da fogueira sagrada, onde os druidas - sacerdotes dos celtas faziam sacrifícios e pediam a bênção aos seus deuses. Para levar as brasas para casa, as pessoas recortavam nabos e beterrabas e faziam com elas uma espécie de lanterna e caixinha de brasas.
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Essas luzes, carregadas pelo povo no meio da noite, simbolizavam as almas dos mortos e dos duendes. Quando chegaram à América, os irlandeses - de origem celta - trouxeram o costume das lanternas de abóbora. Que, juntamente com figuras de bruxas, gatos pretos e vampiros, vieram a servir de brincadeiras com a morte. O costume americano se estendeu ao Brasil e aqui também as crianças nesse dia pedem doces e guloseimas nas casas. Bater na porta e sair correndo é um ótimo truque contra o poder da morte. Na cosmovisão dos índios andinos aimará, o 1º de novembro, Dia de Todos os Santos, é o dia ritual de receber as “almas novas”, dos que morreram nos últimos três anos. O Dia de Finados é reservado às almas dos antepassados e dos fundadores da comunidade. A ocasião coincide com a chegada das chuvas e rituais agrícolas de fecundidade. Cultuam-se os mortos para que protejam a semente: ambos estão sob a terra, de onde deverá brotar vida nova e colheita abundante. A abóbora é da família das cucurbitáceas, da qual fazem parte algumas espécies com frutos comestíveis: além da abóbora, a melancia, o melão, o pepino. Existem diferentes lendas sobre a abóbora de Halloween. A mais famosa e conhecida é a de que um homem chamado Jack conseguiu enganar o diabo no dia de sua morte. Quando ele finalmente morreu não pôde ir para o céu, pois era muito malvado, e nem para o inferno porque havia enganado o diabo. Que acabou dando a Jack uma lanterna de abóbora para ele carregar até o fim dos tempos. De certa forma, esse dia tem um sentido especial para mim, pois de uns tempos para cá me tornei adepta dos “Adoradores da Grande Abóbora”, o que me conferiu o direito inalienável de falar abobrinhas…
(*) Fonte: correioweb de 23.10.04.
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A insustentável leveza Dança é uma das seis artes clássicas, talvez a mais bela das manifestações estéticas. Coordena corpo, emoção e ritmo, que evoluem na sincronia de movimentos organizados, culminando em inesperado arrebatamento. Ver o Grupo Corpo, de Belo Horizonte, mover-se à música de Lecuona, Ernesto Nazareth, ou Tom Zé, ou Bach, ou Caetano e Zé Miguel Wisnik, nos dá a sensação do que se pode convencionar como “beleza”. Do figurino às coreografias, o CORPO se mostra no ápice da expressividade sensório-motora: cabeça, tronco e membros malemolentes, com destaque para as “quebradas” das ancas, súbitos “desmaios” e meneios aparentemente descuidados. Os corpos desafiam a gravidade e desconstroem a metafísica, com suas contraposições entre valor do corpo e valor da alma. Para Anna Kisselgoff do New York Times, “os quadris do CORPO têm vida própria”. E a crítica Ella Baff afirma que “Não há nenhuma companhia no mundo, e eu viajo o mundo todo para ver balé, dança folclórica, contemporânea e de todo tipo, que tenha esse vocabulário de movimentos do Grupo Corpo. Não há outra companhia que tenha tanta integração com elementos artísticos”. A dança é simulação estilizada da sexualidade, traduzida em sutilezas. Ou representações primaveris de fertilidade e fartura. O calor gerado pelos corpos em movimento comunica-se aos espectadores, que são tomados pelo mesmo entusiasmo. Distingue-se a dança-arte, ou técnica, do bailado das danças populares e folclóricas. Cada região tem seu tipo de dança, predominando, entre nós, o samba. Argentina gosta de tango, a Europa já dançou muita valsa e polca. Os Estados Unidos e o mundo - nunca mais foram os mesmos depois do rock. As baladas e raves modernas
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são manifestações coletivas quase tribais, nas quais impera a música eletroacústica. Dança-se a vida (e a morte) conforme a música. Até os astros dançam, toda a natureza dança. O Grupo Corpo, referência mundial em dança, desta vez nos apresentou “Onqotô”, onomatopeia mineira de “onde é que eu estou”, uma das questões fundamentais: Onqotô? Proncovô? Quenqosô? Caetano intervém com seu baião, cantando esse corpo, “que se desmede que se despede que se descola do onde, do longe, do então”. As coisas lindas, essas ficarão, “já dizia a poesia o agora nada não mais nada não”. É só isso tudo? É. Todo prazer provém do “CORPO”.
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A lenda de Prometeu e do abutre que o seu fígado comeu ( estudo para cordel ) Após a criação do homem, Prometeu achou por bem dar-lhe de presente o fogo dos céus. Com ajuda de Minerva, capturou em sua tocha um raio de sol. De posse do fogo, o homem ia poder construir armas e ferramentas, cunhar moedas e promover o comércio globalizado. Naquele tempo ainda não se falava no efeito estufa nem no aquecimento da terra. Zeus, indignado com a audácia da proeza, amarrou Prometeu num rochedo, onde um abutre vinha todos os dias comer-lhe o fígado. Que se regenerava durante a noite, para ser comido novamente pelo rapinante no dia seguinte. De quebra, Zeus - ou Júpiter - criou Pandora para castigar os homens, a quem Prometeu o fogo concedeu. Vênus deu-lhe a beleza, Mercúrio a persuasão, Apolo o dom de cantar. De Atena ganhou linda roupagem, das Cáritas, os ornamentos, de Poseidon um colar de pérolas, de Hera a curiosidade, de Hermes a astúcia. Mas Zeus determinou que seria frívola, mesquinha e inconstante. Foi a primeira vez que se disse: - Cherchez la femme … O mundo não mais teve sossego. Pandora recriou o caos. Abriu, curiosa, a caixinha destinada a seu marido, o irmão de Prometeu, espalhando no mundo todo tipo de pragas. Os males se multiplicaram desde então: doenças, febre reumática, gota, hipertensão. Cólica, TPM, escarlatina. Varíola, diarreia, tuberculose, amarelão. E a dor de cabeça! Semeou discórdia, inveja, ingratidão. Despeito, mágoa, olho gordo.
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Ressentimento, dor de cotovelo, cobiça, ambição. As obras do bem se evaporaram: são de curta duração. Restou no fundo a esperança, tímida, frágil – ave de arrribação. Ah, Prometeu, ah, Epitemeu, viram só? Deu no que deu! Prometeu, revoltado, foi na pedra acorrentado, mas não se deu por vencido. Ficar ali no rochedo era o eloquente sentido da humana condição. Criatura mutilada, nos grilhões aprisionada, faz da dor sua missão. Em sua resistência muda, olhava o céu com desprezo. A vontade era mais forte e mais tenaz que o medo. A faísca que caiu do céu também fez e aconteceu. Botou fogo nas queimadas, nos prédios e arranha-céus. Devastou nossas florestas, o mundo hiperaqueceu. Geleiras se derretendo, água fervendo nos rios, bois morrendo sem pastar. Vulcões de lavas ardentes, o mundo inteiro está quente, quem irá nos refrescar? Ah, Prometeu, ah, Epimeteu, que tremenda ousadia, roubar o fogo do céu! Agora não tem mais jeito, em vez do antigo dilúvio, fogueira, dizimação. Que inveja causou a Júpiter, tirando dele o fogaréu. Ah, Prometeu arrogante, você viu no que deu?
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A mãe do Feitosa Novelas são uma mistura de ficção com traços delirantes da realidade e do teatro do absurdo. Em Senhora do Destino, um personagem, o Feitosa, funciona à base do desejo de sua mãe, a “dedicada” D. Diva. Tamanha dedicação parece coisa louvável, a ponto de o personagem só fazer o que mamãe mandar e de ela só viver pensando nele. A namorada que ele escolhe é alvo do desprezo materno, que sempre a chama de “vagabunda” e faz tudo para acabar com o namoro. O filho cede e se entrega a outra criatura, supostamente casta que, assim, não constituiria obstáculo ao controle materno. Outro personagem de minissérie, o Beiçola, é virgem aos 50 anos, e na única vez que tentou uma transa amorosa, teve que jogar um lençol no retrato da vigilante mãe que, mesmo morta, lhe aparece ameaçadora, não deixando o ato se consumar. A díade mãe-filho é constituída no útero e os dois formam um vínculo singularmente exclusivo. Quando se estende para além da adolescência, passa a ser doentio e é sempre preciso alertar as mães de filho único: “filho não é namorado da mãe”. A situação é confortável para ambos: a mãe faz do filho seu exclusivo objeto de amor, que lhe deve suprir a falta de um companheiro marital. Já o filho se vale dessa prerrogativa para ser paparicado servilmente e isentar-se da castração placentária. Suas namoradas nunca estão à altura da mãe, de seus cuidados, de seu amor, de sua comidinha. E da multidão de mimos e presentes, tantos que até enjoam. Toda pretensão é pretensiosa – e cega. Sob a chancela do “amor materno”, há mães que exageram na adoração e interceptam, por vias perversas, o desejo sexual do filho para uma possível parceira. Contando com a aprovação da sociedade, bestificada com tamanho devotamento bilateral, vão elas cegamente cuidando da roupinha, do
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lanchinho, da caminha do filho, que às vezes já tem mais de 20, mais de 30, mais de 40 anos. Recentemente, uma operadora de celular apresentou comercial em que mamãe está com filho marmanjo no colo, sugerindo que ela mantenha uma webcam no micro do filho “qualquer que seja a idade dele”, para controlá-lo... Françoise Dolto, a psicanalista francesa de crianças, não tem a menor complacência com a situação, e cita o exemplo bíblico do filho da viúva de Naim: “Órfão desde criança, para quem a mãe se tornara companheira, tão órfã quanto ele”, que recupera sua potência viril ao ser ressuscitado por Jesus. Trata-se de uma morte simbólica, porque morte do desejo do jovem: “a ausência do pai na relação mãe e filho tinha petrificado de impotência seu desejo”, cabendo-lhe o papel de “cônjuge artificial da mãe”. Ficara impossibilitado de viver a própria vida, asfixiado pela “abusiva e esclerosante solicitude materna”. Quando Jesus o chama, com voz firme: - Jovem! - é que nele, filho, a criança não mais existia e ele deve escapar à mãe, mesmo com reprovação da sociedade, sob pena de continuar morto. Dia desses, mãe que suspira idilicamente pelo filhote se confessou decepcionada quando lhe falei da interdição do incesto. Como se fosse possível, num passe de mágica, eliminar o tabu e suas consequências. Disse-lhe que era o mesmo que tentar revogar a lei da gravidade. Lembrei-lhe, mais uma vez, que “filho não é namorado da mãe”. E contei-lhe da sacação do filho de Clarice Lispector, que queria ser marinheiro e ir para bem longe: “Você não quer que eu fique amando você a vida inteira, né mãe?”
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A mão e a palmatória O Brasil tem resquícios coloniais que ainda hoje se refletem nos costumes sociais, familiares e políticos. Como o chefe da casa era, ao mesmo tempo, senhor de terras e de escravos, ele se achava com direito de “disciplinar” seus servos e, por extensão, os filhos. O escravo, ao errar, tinha que dar a mão à palmatória, o pescoço ao tronco e o lombo à chibata. Em casa, usava-se a palmada, o chinelo, o cinto, para deixar os filhos com o “couro quente”. Escolas religiosas passaram a adotar a palmatória e a vara para dobrar alunos rebeldes. E tudo era considerado naturalíssimo e necessário. Nas histórias infantis há componentes sádicos do adulto sobre a criança, punições, privações, castigos. Romances de Charles Dickens são ricos em menções ao uso da vara e do chicote nos jovens alunos. Batia-se para ensinar, para fazer comer, para obrigar a estudar, para moderar o comportamento. Ao qual, aliás, correspondia nota no “boletim”: fala alto, conversa com os colegas, não presta atenção às aulas. Graciliano Ramos tem lembranças vívidas do quanto apanhava - sem saber por quê. Motivos não faltavam para despertar a sanha vingativa e desarrazoada dos pais e pedagogos. Até hoje se usa falar em “palmada educativa” ou “psicotapa”, que justificaria a ira e o descontrole dos adultos. Aliás, há uma postura dupla e inexplicável da sociedade: tanta festa para comemorar o nascimento de um bebê, comemorações, bercinho, chá de bebê, brindes, visitas, cumprimentos. E até “baby planners” aparecem para escolher a parafernália de mimos destinados ao recém-nascido. Como e por que essa mesma criança virá a ser alvo das palmadas desses felizes pais e parentes? Ano passado, foi lançada a campanha “Não bata, Eduque”, no Palácio do
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Planalto, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pela apresentadora de televisão Xuxa Meneghel. A coordenadora, Eleonora Ramos, afirmou que é preciso acabar com a cultura de que a “palmadinha” é lição de educação. “Ela [palmada] é o primeiro passo de uma relação que não é eficiente e que ensina uma linguagem onde a criança só entende, só obedece com esse estímulo físico da palmada. A palmada, geralmente, deixa de ser palmada para se tornar uma agressão”, afirmou Eleonora, em entrevista à TV Nacional, da Radiobrás. Como se pode ver na página da Agência Brasil, “Para as Nações Unidas, palmadas, beliscões e tapas são transgressões aos direitos da criança. Dezoito países modificaram suas legislações para evitar a prática. No Brasil, tramita no Congresso Nacional, desde 2003, projeto de lei que prevê o direito da criança de não ser submetida a castigo físico. A proposta já foi aprovada pelas comissões de Educação, Seguridade Social e de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados”. O ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, afirmou que “educação não pode passar qualquer risco que envolva possibilidade de marcas físicas e marcas da alma”. De acordo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o sistema de informação da infância e adolescência do país registrou 500 mil casos de violência psicológica, física e sexual de 1999 até hoje, sendo que apenas 1% das agressões é denunciado. O ato, mesmo que simbólico, deve surtir algum efeito na prática, pelo prestígio inegável da apresentadora, que é vista e ouvida em todos os lares brasileiros. O decreto não visa a punição de pais zelosos. Quando nada, causará desconforto a pais e cuidadores violentos. Esse foi o verdadeiro “Xou da Xuxa”.
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A Vidente do Amor A Bahia não existe, como se sabe: é um estado de espírito. Venha comigo procê ver. Pegue o elevador Lacerda, desembarque na Cidade Baixa e vá direto ao Mercado Modelo. Desde a entrada até o segundo piso, há bancas de búzios, patuás, orixás. Numa barraca, alguém faz um mapa astral legal, em outra você pode mandar ler a mão e em pouco tempo fica conhecendo seu passado mais remoto, suas presentes disposições e seu promissor futuro. Em outra, fica sabendo tudo sobre sinastria amorosa. Nunca ouviu falar? Oxente, cê tá por fora total. Encomendei um “trabalho” e combinei uma ida ao terreiro. Fiz um despacho pro meu amor voltar e visitei o Preto Velho do Pelourinho, para aprender a cura dos mais diversos males: desânimo, frieza, casamento em decadência, filhos problemáticos, más condições financeiras, asma, tísica, dordói; amarração, nervosismo e fraqueza espiritual. Joguei búzios, invoquei a pomba-gira e fiz reza para abrir os caminhos, cortar máu olhado e trazer sorte nos negócios. Cheirei um rapé que, se não chega a ser o “perfume da alma”, é o afrodisíaco do espirro. Salvador tem um quê de paraíso reencontrado: as praias mais lindas, a mais saborosa moqueca de camarão, os amigos mais incríveis. Com eles fui ao Pontal do Unhão, bebericar umas geladas e ver o deslumbrante pôr-do-sol. Visitamos igrejas e a Casa de Jorge Amado. Agora que meus problemas acabaram, só penso em tirar férias na Bahia. Minha maior aspiração no momento é voltar a cheirar o rapé do Preto Velho e me tornar a Vidente do Amor.
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A viuvinha Enviuvou cedo. O casamento durou cerca de dez anos. Resolveu fazer, sozinha, a tão sonhada viagem. Veneza. Estudava os guias Fodor, fazia roteiros, assinalava museus, restaurantes, passeios. Via filmes e escutava Aznavour: Que c’ est triste Venise... Leu “Morte em Veneza” e esperava ficar no mesmo hotel do filme. Escutava a 5ª Sinfonia de Mahler e sabia tudo sobre a peste. Acostumou-se a levar milho para os pombos da Serzedelo Correa, fazia gestos teatrais, como se estivesse na Praça San Marco. Que c’ est triste viajar sozinha foi um pensamento fugaz ao tomar o navio. À noite houve jantar com o Capitão, apresentação dos grupos de viagem, orquestra, brindes, e sua cabeça entrou em “pause”. Triste, nada. Lembrou-se de uma crônica do Veríssimo sobre a alegria das viúvas em cruzeiro, tomou um drinque e dormiu o sono dos justos. A cama toda para si, trocava de travesseiro, folgava. Pela manhã, fez um pouco de ginástica, sempre teve preguiça de malhar. O café da manhã era uma visão do Olimpo, não faltava nem a ambrosia. Jamais um suco de laranja lhe parecera assim divino. Serviu-se várias vezes, ou era servida por garçons atentos. Pena não poder fumar, o décor era mais que apropriado para uma cigarrilha. No almoço, hesitou entre pratos franceses e comida japonesa, decidindo deixar os sushis para a noite. À tarde viu um lançamento no telão, nem estava passando no Rio: Memórias de uma Gueixa. Foi o bastante para ver-se no papel, o que a fez vestir um quimono de seda para o jantar. Escolheu uma mesa perto de um grupo, que logo a convidou e rapidamente ela se deixou levar. O ambiente encantador fez com que contasse piadas sutis e de bom gosto. Participou do karaokê, imitando Elis em “Atrás da
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Porta”, e se saiu muito bem. Foi intensamente aplaudida, coisa que a deixou afogueada e feliz. Pensou em como a vida era bela e em quanto tempo havia perdido. Dançou, arriscou passos ousados enquanto a turma aplaudia, pedindo mais. Lembrou-se de Veneza de leve, nem tocara nos mapas durante a viagem. Chegou ao hotel e pediu um quarto perto do grupo, não queria perder o primeiro passeio da manhã. Saíram em duas gôndolas, ela ouvia o guia sem prestar atenção: - O Doge fulano de tal, o balcão, os canais, a basílica… Na Piazza, tirou fotos junto aos pombos, achou tudo uma sujeira. Ficou louca para voltar ao hotel, à noite jantava com os novos amigos. Nem se lembrava do cardápio elaborado com tanta atenção nos tempos de casada. A comida estava soberba, provou três tipos de vinho, de olho na discoteca. Jogou-se na pista e se sentiu uma rainha. Dormiu com um desconhecido, sem remorso. Amanheceu renovada, ficou longo tempo na banheira. Nem precisou indagar ao espelho: sabia-se esplêndida. Jogou squash, nadou, o dia estava magnífico, mas declinou de passeios. À tarde ficou no deck, queria fazer anotações e planejar o dia seguinte. Tomou do diário, deu uma olhada nos planos e jogou o caderninho longe, sem pressa de voltar. Ligou para o cartório, remarcando a leitura do testamento. Não tinha filhos nem ninguém para dividir os bens. Recostou-se, tranquila, combinou a programação pelo celular, folheou uma revista e tirou uma soneca. Golden slumbers, pensou. Quando chegou o dia de arrumar as malas para a volta, encontrou uma folha de jornal do começo do ano. Trazia o horóscopo do marido, na data do falecimento. Sorriu ao ler a previsão para ele naquele dia: “Leão, farás uma longa viagem em breve”…
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Adoção homoparental e visibilidade gay O escritor Ítalo Calvino legou-nos um testamento literário que ele denominou de Seis Propostas para o Milênio, a saber: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade. Não deixou a que seria ‘consistência’. O argentino Ricardo Piglia se propôs escrever a sexta, não a de Calvino, mas o que ele chama de desplazamiento, deslocamentos, “deslocamentos estratégicos, distâncias, que permitem um olhar enviesado, tornando possível medir diferentes direções e velocidades: o espaço e o tempo numa concepção que não ignora o que foi transmitido ou imposto pelo poder hegemônico, pelo Estado, e possibilita gerar descontinuidades, cortes, desvios, para além de uma relação causal e linear dada como hegemônica”. As propostas de ambos são para a literatura, mas bastante aplicáveis à vida. Grupos ativistas da comunidade gay buscam visibilidade, organizando paradas, passeatas, movimentos de “orgulho gay” como ação afirmativa da diversidade. Deslocamentos estratégicos. Antes de prosseguir, aviso que o artigo não tem a intenção de discutir ‘causalidade’ ou ‘normalidade’ sexual. O foco é: por que o movimento gay busca visibilidade e inclusão, ou até mesmo constituir família, com filho e tudo? Na vida o que mais se precisa é de uma testemunha de nossos atos. O amor que antes não ousava dizer o nome, agora quer proclamar-se de cima dos telhados, ou pelo menos nas ruas, nos cinemas, nos shoppings. Tanto é triste não poder amar quanto não poder demonstrar amor. Ou, para isso, ter que ficar à margem da sociedade. O principal motivo, entretanto, é que a invisibilidade é uma forma de negação. Negar é deixar de existir.
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Para Heidegger, “A ausência seria equivalente à morte. É a angústia dessa inexistência que faz com que o Sujeito tome consciência de si. A invisibilidade é insuportável, quiçá pior, porque é um existir sem ser visto. Daí a eterna busca por reconhecimento. Melhor ser visto como exótico, do que não ser visto”. A psicanalista neozelandesa, Joyce McDougall, explica o que ela chama de invenção de neossexualidades: “Esses cenários eróticos, complexos e inelutáveis não servem apenas para salvaguardar o sentimento de identidade sexual (como o faz todo ato sexual), mas frequentemente mostram ser técnicas de sobrevivência psíquica, uma vez que eles são necessários para a preservação do sentimento de identidade subjetiva”. E continua: “Para enfatizar o caráter inovador dessas invenções eróticas, denomineias neossexualidades. Por meio dessa terminologia, eu quis evocar alguma coisa semelhante às neorrealidades que alguns pacientes frágeis criam, a fim de encontrar uma solução para uma dor mental que para eles se mostra inelaborável de outra forma. A libido homossexual serve, em primeiro lugar, para enriquecer e estabilizar nossa autoimagem narcísica”. No caso da mulher, ela afirma em seus livros: “Em Defesa de Uma Certa Anormalidade” e “Conferências Brasileiras”: “O percurso da infância até a feminilidade adulta é infinitamente mais complexo do que até Freud imaginava. Não só as raízes do erotismo feminino são estabelecidas no começo da infância, mas a identificação com a mãe genital, mesmo quando a mudança de objeto para a heterossexualidade foi adequadamente realizada, deixa ainda em aberto muitas questões relativas à integração da libido homossexual feminina”. Na homossexualidade feminina, encontram-se componentes da mesma ternura que há – ou deveria haver – na relação entre mãe e filha, às vezes revivida na ligação com uma boneca, que faz o papel de ‘filha’ da dupla. Cássia Eller sacou bem o lance:
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“sou minha mãe, minha filha, minha irmã, minha menina”. As novelas insistem em que as duplas homo têm que optar por adotar um filho, assumir responsabilidade de casal e amar com moderação. Na vida real, ninguém tem filho por imposição ou obrigação. Nem existe uma compulsão irresistível em adotar crianças. As criações intelectuais e artísticas são meios conhecidos de sublimação, pois neles se pode ser homem e mulher ao mesmo tempo, e gerar filhos simbólicos. Mesmo em tempos liberais, não é sem algum sofrimento, ou perplexidade, que se sai dos ‘armários’ do inconsciente. Nem é tudo sempre tão ‘gay’ assim, livre, leve, desencanado. Há uma contrapartida depressiva e até persecutória. Há um preço social que a pessoa decide se quer - e se pode - pagar. E ainda extrair o devido proveito pessoal. Embora não seja desejo de todo gay inserir-se na sociedade ‘careta’, grande parte almeja incluir-se na vida comum de qualquer cidadão. Os ‘outcasts’ promovem deslocamentos regeneradores das margens, contestando a hegemonia e exclusividade do ‘normal’. O deslocamento espaço-temporal e discursivo inclui a ideia de transgressão, de desterritorialização, de confronto às identidades propostas pela tradição. “Deslocamentos estratégicos”, a sexta proposta de Ricardo Piglia. Como se define uma família hoje? Christiane Collange responde: Família “casulo”, família “clube”, família “moderna”, família “tradição”, família “monoparental”, família “reconstituída”, família “aberta”, família “invisível”, família “new look”, família “nuclear”, família “comunitária”, família “fragmentada”, família “parceira”, família “de fusão” ou “mosaico”. Como fica a criança nesse novo universo de fronteiras deslizantes? No caso de adoção, o primeiro princípio é o do “melhor interesse da criança”, indicado no artigo 3.º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989). O intuito é assegurar a precedência do bem-estar da criança ao dos pais. O segundo ponto é a regulamentação do artigo 227 da Constituição através da Lei nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura à
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criança e ao adolescente o direito à convivência familiar e comunitária. Uma vertente importante é que a adoção não deve ser um prêmio de consolação a pais carentes, mas sim um ato de amor. Pais podem prescindir de filhos, filhos sempre precisam de pais. Há um universo de abandonados esperando adoção, quando fogem do padrão estético ou etário desejado. A mestra do direito, desembargadora Maria Berenice Dias, é enfática: A moderna doutrina não mais define o vínculo de parentesco em função da identidade genética. A valiosa interação do Direito com as ciências psicossociais ultrapassou os limites do direito normatizado e permitiu a investigação do justo buscando mais a realidade psíquica do que a verdade eleita pela lei. Para dirimir as controvérsias que surgem – em número cada vez mais significativo – em decorrência da manipulação genética, prevalece a mesma orientação. Popularizaram-se os métodos reprodutivos de fecundação assistida, cessão do útero, comercialização de óvulos ou espermatozóides, locação de útero, e todos viram a possibilidade de realizar o sonho de ter filhos. Nesse caleidoscópio de possibilidades, os vínculos de filiação não podem ser buscados nem na verdade jurídica nem na realidade biológica. A definição da paternidade está condicionada à identificação da posse do estado de filho, reconhecida como a relação afetiva, íntima e duradoura, em que uma criança é tratada como filho, por quem cumpre todos os deveres inerentes ao poder familiar: cria, ama, educa e protege.[...] Se a família, como diz João Baptista Villela, deixou de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que imprimiu considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade, torna-se imperioso questionar os vínculos parentais nas estruturas familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. (DIAS, Maria Berenice. Paternidade homoparental. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov. 2009. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.25503>. Acesso em: 02 jun. 2010).
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Ainda no campo do direito, diz a autora (*) de “Procriação Aritifical e Sucessão Legítima”: “O direito de família sofreu direta repercussão dos avanços tecnológicos na área de reprodução humana, mormente envolvendo as fontes de paternidade, maternidade e filiação. Todas essas transformações permitiram a ocorrência de um importante fenômeno, denominado “desbiologização”, ou seja, a substituição do elemento carnal pelo elemento biológico ou psicológico.” [...] “Há um misto de Bioética e Biodireito. De um lado, a evolução cultural e, do outro, a ética. Observando sempre o direito mais fundamental de todos os direitos, quer dizer o direito à vida, já que sem ele os outros seriam em vão”. (*) Vitorino, Catarina C. Lima. in: Justilex, Revista Jurídica, Ano V, nr 60, dezembro 2006, pgs 46 a 53.
A imprensa tem noticiado um discreto baby boom gay, que pode ser um sinal da própria visibilidade em marcha. O caso mais noticiado é o da filha do ex-vicepresidente americano, que ‘teve’ um filho com sua companheira. A justiça brasileira autorizou o registro da filha de um casal gay. E há pleiteantes na fila de espera. Em Cannes 2009, foi premiado o filme “The kids are all right”, com Julianne Moore e Annette Benning no papel de um casal lésbico que tem dois filhos. O título já diz o que realmente interessa: que as crianças estejam bem. Não cabe aqui comentar a mão pesada da roteirista/diretora, em seu afã de replicar os mesmos condicionamentos da família tradicionalmente vertical e impositiva, mas pseudo-liberada... Entre constituir família e, eventualmente, integrar-se à sociedade, ou permanecer à margem da corrente, busca-se antes afirmação, valor como pessoa e voz própria. Luta-se pela promoção e defesa da igualdade de direitos de pessoa. Com ou sem um filho nos braços.
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Amar é ... Se eu te amo, que tens a ver com isso? Eric Berne
Amor é coisa total, profunda, infinita. As pessoas não. Aí começa o drama de amar. Ilusoriamente, colocamos nossas douradas fichas em um ser e passamos a dele esperar a felicidade perpétua, entregando-lhe nosso mundo para que o complete. Esperanças fatais: gastamos essa curta vida tropeçando em pedras de caminho alheio. Ou nos debatendo feito náufragos, lançando sinais e inúteis garrafas ao oceano. As ondas do mar do amor vão bater em outras praias. Não é doce morrer nesse mar. Viramos barcos à deriva, com olhos de ressaca, inventando cais. “AMAR É”… Buscar distantes vias lácteas, paralelas que desaparecem na direção do infinito, inatingíveis horizontes. Água em peneira. Caixa temporária. Contagem regressiva. Mera coincidência. Mirações. Labirintos. Asas de cera ao sol. Peito dilacerado, sonhos desfeitos, nuvens de lágrimas. Chave sem porta. Espinho na garganta. Gargalhar de araras. Borboletas efêmeras, arapucas. Riscar de fósforo. Fogofátuo faiscando fugaz na foz da noite. Salto mortal sobre o abismo. Voo cego, nau sem rumo, rosa dos ventos desnorteada. Canoa furada, âncora de papel. Abraço de afogado. Toque de alvorada, clarim de despedida. Mão quente, coração frio. Ânsia: quem virá nos desvendar e nos ver com bons olhos? Pois amar é um ponto de vista: cego buscando luz. Amar é coisa de cabeça: enlouquece. Amar é sondar o absoluto. Amar é uma alucinação anatômica: boca que se beija a si mesma, beijo que se beija do avesso. Amar é uma figuração surrealista: acreditar na persistência da memória. Amar é o que resta de uma das operações
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fundamentais: noves fora nada. Amar é pura ilusão de óptica. Amar é coisa de química: substância volátil. Amar é coisa vegetal: chorar pitangas. Amar é coisa animal: pegar peixe com sabão, seguir voo de andorinha. Amar é coisa de pele: é pegar ou largar!
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Amores líquidos Que reste-t-il de nos amours? - canção francesa.
A palavra “romântico” tornou-se obsoleta e detestável. Foge-se dela como o diabo da cruz. Tem um antiquado cheiro de alfazema, lenço de cambraia, alcova… Foi Carlos Drummond de Andrade quem criou a famosa QUADRILHA premonitória: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém… Sofrer por amor – trocando em miúdos – é pagar mico. Amor “micou”, ficou anacrônico e precisa de muito incentivo do comércio, que entra com as flores, chocolates, anéis e outros mimos para manter o “clima”. A realidade crua – e nua! – é que amor ficou reduzido à expressão mais simples e imediata do desejo, que é mercurial, cambiante, fugidio. Os envolvidos na ciranda estão sempre avaliando a próxima conquista que, pela novidade, já se antecipa como mais excitante e prazerosa. Laços do casamento são corrediços, deslizam e derivam facilmente; ou estrangulam. Regina Navarro em “Cama na Varanda” explica os fundamentos do novo “poliamor”: “Uma opção ou modo de vida que defende a possibilidade prática e sustentável de se estar envolvido de modo responsável em várias relações íntimas simultaneamente”. Coisa que sempre existiu mas se escancarou com a internet. Ninguém é fiel por natureza – só os torcedores do Coríntians. Amores agora se chamam “relacionamentos” e confrontam as crenças monogâmicas.
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Para Roland Barthes, “Desacreditada pela opinião moderna, a sentimentalidade do amor deve ser assumida pelo sujeito amoroso como uma transgressão forte que o deixa sozinho e exposto; por uma reviravolta dos valores, é esta sentimentalidade que constitui, hoje em dia, a obscenidade do amor.” (Fragmentos de Um Discurso Amoroso). O amor quer perpetuar o desejo, mas o desejo não aceita os grilhões do amor. E haja sofrer! Como sair do impasse, se é que se pode sair? Zygmunt Bauman em seu “Amor Líquido”, que trata da fragilidade dos laços humanos, afirma que “a definição romântica do amor como ‘até que a morte nos separe’ está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas do parentesco às quais costumava servir e de onde extraía seu vigor e sua valorização”... “O amor é uma rede lançada sobre a eternidade, o desejo é um estratagema para livrar-se da faina de tecer redes. O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável”. No filme “A Quase Verdade”, Anne é casada com Thomas, que se sente atraído por Caroline, mulher de Marc, primeiro marido de Anne, que se interessa por Vincent, que ama Lucas… Amor não quer mais admitir cláusulas pétreas, tá mais pra caixa dois ou dispositivo transitório. Rosas duram uma manhã. Amores hoje duram uma noite, uma semana, um verão, uma balada, três dias de carnaval. Em seu começo já está seu fim. Amores são águas passadas, barquinhos de papel na enxurrada. Regatos, córregos, riachos, aspirando aos sete mares. Cascata pura! Amores são espumas que recuam. Cascas de nozes brincando de caravelas. Rápidas e pesadas chuvas de verão. Sereno da madrugada. Amores são aqueles rios temporários que sulcam o semiárido do coração: coisa líquida e incerta.
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Ando meio desligado “Foi quando meu pai me disse: - Filha, você é a ovelha negra da família / agora é a hora de assumir / e sumir… - Rita Lee
As revistas pediátricas indagam se está ocorrendo uma “epidemia” de crianças hiperativas ou com “déficit de atenção”. O chamado Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade é um distúrbio neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e costuma acompanhar o indivíduo por toda a vida. Caracteriza-se por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. A infância é, por natureza, turbulenta. Sua energia e curiosidade naturais tornam as crianças inquietas e buliçosas. Mas a escola e a sociedade as querem amorfas, paradas, “boazinhas”. Segundo Anna Freud, a criança só é “boazinha” graças a alguma abdicação de si mesma. Para dobrá-la ao jugo da disciplina, são usados vários tipos de castigos e corretivos, que vão desde a palmada ao beliscão, gritos, cintadas, ou à privação de alguma regalia ou guloseima. Usa-se, também, enquadrá-la em cânones psicopedagógicos, que não levam em conta sua originalidade. Qualquer desvio do “normal” vai para a vala comum dos distúrbios da personalidade. Muitas vezes provêm de famílias “disfuncionais”, que agem com violência e nas quais imperam vícios e desentendimentos. A vida moderna não propicia o contato da criança com a natureza, onde ela poderia não só usar sua energia física mas adquirir autocontrole. Sua principal mestra hoje é a televisão, que lhe apresenta um repertório de estímulos sedutores e ilusórios. Assim, fica difícil para a criança entrar em sintonia com seu próprio eu e com lições reflexivas e lentas.
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A criança vai para a escola cada vez mais cedo e tem mil e uma atividades extracurriculares. É transportada o dia inteiro daqui prali e mal tem tempo para uma conversa sossegada com os pais. Busca-se febrilmente a aquisição de conteúdos, para a melhor performance. É input/output. O que se almeja é uma criança de resultados. Que o bebê aprenda a ler cedo e receba lições de uma segunda língua. Ou isso ou o corredor psicopedagógico, cujas metas, para o educador Lauro de Oliveira Lima, são: “Pastorear a criança permanentemente, mantê-la em estado fetal passivo, dopá-la pela transmissão de conceitos e pré-conceitos dos adultos e transmitir-lhe informações pré-programadas, tirando-lhe a capacidade de pensar. O produto apreciado são alunos lineares, unidimensionais, disciplinados, sem ousadia nem imaginação”. A natureza não é tecnológica; a criança nasce com reflexos básicos de sobrevivência e as unidades neuronais vão se constituindo paulatinamente em redes, conforme a atividade do brincar. Para a educadora Maria Montessori, a criança é o maior trabalhador que existe, pois trabalha sem cessar na construção de si mesma. As atividades lúdicas estimulam as sinapses, que levam à associação, que estimula mais sinapses. Antes de socializar-se, a criança precisa adquirir a estrutura sequencial adaptativa, no lar, na casa, com os seus. A dependência dos cuidados maternos é determinada pela natureza, pois o ser humano nasce incompleto, devendo primeiro desenvolver sua vida instintiva, tomar conhecimento de si e depois partir para a vida em grupo. Até os três anos, a criança não “pensa” abstratamente, como o adulto. Ela percebe o mundo como fazendo parte dele, vivenciando as coisas sensorialmente, sentindo-as com todo o corpo, que se ajusta ao que é percebido e sentido. Não se pode dizer que todo gênio da humanidade tenha padecido de transtorno da atenção ou de algum distúrbio mental, embora a maioria deles seja desviante dos padrões “normais”. Mas se fossem submetidos a testes e avaliações, poderiam ser enquadrados como portadores de DDA. Esse transtorno é tratável com medicamentos
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estabilizadores dos circuitos cerebrais hiperativos. Difícil avaliar qual seria a perda para o patrimônio intangível da humanidade se nossos grandes filósofos, pintores, escritores, cientistas, fossem submetidos a algum “tratamento”. Que seria de nós sem a imaginação de Shakespeare, os argumentos de Espinoza, a loucura de Van Gogh, a excentricidade de Einstein - para citar apenas alguns expoentes. Caso fossem enquadrados nas fôrmas psicopedagógicas, possivelmente sua genialidade não poderia manifestar-se. Tais “ovelhas desgarradas” são fundamentais para o progresso da manada humana. O professor inglês Ken Robinson afirma que a escola mata a criatividade e o prazer de aprender. Na escola, na família e na sociedade ficam enterrados os talentos, os dons naturais, ao se privilegiar conteúdos programáticos e não abrir espaço para a arte. A criatividade na criança passa pelo corpo e suas infinitas possibilidades de expressão: cantar, dançar, brincar com a bola, fazer circo, jogar capoeira, nadar, desenhar, lidar com materiais plásticos, explorar a natureza - o maior livro do mundo. Como seria bom saber tocar um instrumento, cozinhar, subir nas árvores, olhar o céu estrelado... Botar a criança desde pequena para “pensar” é um atentado de lesa-criação. Na infância, “o corpo governa, a mente acompanha como pode”, diz André Comte-Sponville. A hiperatividade provém do tédio de aprender e da contenção corporal. Bebês de apostila, cansados desde muito cedo com os conteúdos e pré-conceitos adultos. As opções que hoje se oferecem à expressão da originalidade da criança e do jovem são: a terceirização por diversos especialistas e intermediários da educação e da saúde, a equalização televisiva e a regulamentação medicamentosa. A criança vive engaiolada, cercada de cuidados, sedentária, sem espaço para expandir-se e queimar energia. A base dos medicamentos para aquietá-la é a “ritalina” ou metilfenidato, agora sob o nome comercial ‘sutil’ de “Concerta”, cujo uso vem-se ampliando exponencialmente. Impossível não lembrar o ditado mineiro: Menino, ou você “conserta” ou deserta!
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Antibiótico é uma arma quente O primeiro antibiótico (ATB) foi a penicilina, descoberta por Fleming, tão potente que uma dose bastava para curar infecções graves. A síntese dos ATBs popularizou seu uso, o que fez com que as bactérias causadoras de doenças fossem desenvolvendo mecanismos de resistência a eles. A indústria vem sofisticando sua fabricação, criando ATBs cada vez mais complexos. Ultimamente seu uso banalizou-se, pela crença infundada de que devem ser usados para gripes, resfriados e outras viroses. O grande desafio da medicina é vencer a infecção hospitalar causada por bactérias ultrarresistentes e que já são encontradas fora do ambiente hospitalar. Os bons hospitais têm comissões de controle da infecção hospitalar, cuja primeira e mais importante tarefa é difundir - sem trégua - o hábito de lavar as mãos antes e depois de manusear pacientes e suas secreções. Vírus não respondem ao tratamento com antibióticos. Temos aí a dengue, a febre amarela, a AIDS, a hantavirose, e as “novas” viroses como a do Ebola e a gripe aviária e suína, para as quais eles são inúteis. Se não adquirirmos essa consciência coletivamente não haverá quem nos salve, como no filme “Eu sou a lenda”. Que se passa em Nova York, despovoada por epidemia avassaladora do vírus “K”. Nem mesmo Will Smith, armado de fuzil e dirigindo carros supervelozes, conseguirá livrar-nos dos efeitos de epidemias viróticas e bacterianas incontroláveis pelos ATBs. Estes são “armas quentes”, que exigem cautela, precisão e alvo certeiro. Temos obrigação de zelar pela ecologia humana, pois, como diz TT Catalão, “o meio ambiente começa no meio da gente”.
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