DESAFIOS - Direitos das Mulheres na Guiné-Bissau

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DESAFIOS DIREITOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU ANA CRISTINA PEREIRA


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DESAFIOS DIREITOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU HISTÓRIAS DE ANA CRISTINA PEREIRA | TEXTO FINAL DE NELSON CONSTANTINO LOPES


| dep贸sito legal n.340343/12



DIFICULDADES E A MUDANÇA


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A VIDA DE AIDA É UM CORROPIO O sol vai alto. Aida Nhafor Djata abriga-se num cajueiro frente a casa. No banco corrido, ao lado, aninha-se a neta que está a criar. Atrás, dormita a penúltima filha a nascer. A última não pára. Anda por ali, apenas com um pano na cabeça, outro na cintura. Agora, varre o terreiro. Daqui a pouco, estende roupa numa corda um tanto frouxa. As dores nas costas, hoje, mordem. Aida tem andado na bolanha. Só para lá chegar tem sido um custo. O arado manual está em cima dos bidões de vinho de caju dispostos sob um frondoso mangueiro. É só uma chapa de ferro ligada a um comprido cabo de madeira. O marido pousou-o com todo o cuidado sobre os cinco bidões azuis com tampos reforçados a plástico. Os homens usam o arado para preparar o terreno para o arroz. As mulheres fazem a sementeira, arrancam-na, transplantam-na. Quando o arroz está quase maduro, as crianças vigiam-no, correm os pássaros à pedrada. No fim, há que cortá-lo, debulhá-lo e transportá-lo, à cabeça, até casa. “O arroz é muito pesado.” Come-se muito arroz nesta casa. Às vezes, arroz com peixe. Na falta de arroz, mandioca.

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NÃO É SÓ O ARROZ QUE LHE DÁ CABO DAS COSTAS. VAI LONGE BUSCAR LENHA. O QUE LHE VALE É QUE TEM UM POÇO DE ÁGUA. 8

Não é só o arroz que lhe dá cabo das costas. Vai longe buscar lenha. Procura-a na mata ou nas margens dos cursos de água. Apanha muita lenha no tempo seco. Armazena-a para a época das chuvas. - Tarrafe morto. Há mangais a perder de vista na região de Cacheu, Norte da Guiné-Bissau, na fronteira com o Senegal. Na África Ocidental não há bloco contínuo de mangal maior do que o da Reserva Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu. E Aida sabe que o deve proteger. São preciosos para demasiadas espécies. Daqui, avista-se um monte de lenha encostada a dois pilões. Pilões grandes, moldados pelo muito uso. Pilar arroz é trabalho de Aida e das filhas – pilá-lo e lavá-lo em pequenos cestos, que mergulham em água sem lhe tocar com as mãos antes de deitar na panela para cozer. O que lhe vale é que tem um poço de água. Basta-lhe uma dúzia de passos para chegar ao furo. Pesar-lhe-á a idade? A mulher de olhos claros, um tanto turvos, não sabe quantos anos tem. Pensa um bocado. Sorri. Esboça uma resposta. Isaque, o quarto filho, o que se senta à sua frente para traduzir o felupe em que ela se expressa para um português rudimentar, faz contas de cabeça. “Quando ela levou umas injecções disseram-lhe que tinha 52. Isso foi há uns três anos. Deve ter 55.” Andou com os filhos apertados contra as costas com um pano pente. Mesmo a cozinhar, com o fumo a dar-lhe nos olhos. Quando apanha-


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vam alguma doença levava-os ao curandeiro ou ao médico, conforme o tamanho da aflição. E tantas vezes tiveram paludismo, parasitoses, diarreias, sabe lá. Custa-lhe andar. Depois do primeiro filho, as suas pernas nunca mais foram as mesmas. Um osso mudou de sítio. Tem doze filhos. “Nove filhos fêmea e três filhos macho.” Os filhos fugiram quase todos da tabanca. Só as duas mais pequenas permanecem em casa. Aqui, só há escola até à 6.ª classe. Dois estão em São Domingos, oito em Bissau. Engrossam o êxodo rural que desemboca no crescimento descontrolado da capital, a fazer a ponte entre uma tradição enraizada e uma modernidade que parece escapulir-se a todo o custo. Os três rapazes partilham uma casa abarracada no Bairro de Bor, na periferia de Bissau. Conciliam estudos com trabalho. O do meio é guarda-nocturno. Os outros montaram uma banca à porta – bolachas, açúcar, manteiga, gusto, cigarros, detergente para a roupa. Nas férias escolares, vêm cá aliviar os pais. Não todos, que alguém tem de ficar a cuidar da banca e Bissau é longe. Isaque descreve uma viagem feita em três etapas. Bissau-São Domingos: três a quatro horas de candonga. São Domingos-Varela: umas duas horas – não pela distância, pelo ziguezague permanente a que obrigam as lombas e as covas da estrada. Varela-Catão: mais de uma hora a pé. Telefonam uma vez por mês. Um primo tem um telemóvel. Quando


querem falar com a mãe, ligam-lhe. E ele corre para aqui, para esta casa com estrutura de cibe, cobertura de palha e paredes de adobe com pequenas frestas em vez de janelas. Duas filhas já casaram. As outras combinam estudos com serviço doméstico. As freiras convenceram os pais a deixá-las estudar. Aida nunca foi à escola. O trabalho apanhou-a muito cedo. Mandaram-na servir uma família que morava no Senegal – trabalhou por lá anos sem aprender outra língua, porque quem fala felupe desenrasca-se entre o Rio Casamansa e o Rio Cacheu. Só veio conhecer o noivo. Não o escolheu nem foi escolhida por ele. O pai dele pediu-a ao pai dela. Ele era um homem e ela era “menininha mesmo”. Ele teria uns 20 e ela uns oito, nove, 10. Casaram muitos anos depois. Não sabem quantos. E o casamento não lhe aliviou a carga. Pelo contrário. A vida é um corrupio de marido, filhos, casa, comida, roupa, bolanha, horta. Planta tomate, alface, cebola, cenoura, beringela, couve, malagueta. Isso vende-se. Isso e castanha de caju. Aparecem sempre compradores para a castanha de caju. Já por isso a encaram como uma espécie de seguro de velhice. Para o resto é que é raro. Para o resto não se estragar, em casa, é preciso levar a Susana. Também é lá que Aida vai ao médico. Há um posto médico em Varela. No passo de Aida, Varela fica a uma hora e meia, no sentido litoral, mas ela não encontra lá quem lhe dê pelo menos parte dos medicamentos. Por isso, prefere caminhar umas três horas até Susana, mais para o interior.

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Em Susana, existe uma congregação cujo nome lhe escapa. O padre vem cá de três em três semanas e traz um par de freiras. À missa e à catequese aliam a observação de doentes, a entrega de medicamentos. Aida está à espera delas. Talvez tragam qualquer coisa que amanse esta dor de costas – o problema de saúde que mais afecta as mulheres da zona, segundo diagnosticou uma equipa de médicos cubanos que por aqui andou uns tempos.


AIDA ESTÁ À ESPERA DELAS. TALVEZ TRAGAM QUALQUER COISA QUE AMANSE ESTA DOR DE COSTAS.

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DE UM LADO E DO OUTRO 15

Tem um olhar triste. Tão triste que até incomoda. Nené Bejan está há meses internada no Hospital Nacional Simão Mendes, uma roda-viva que extravasa os edifícios, agita os alpendres, invade a rua Eduardo Mondlane. Foi operada a uma perna. Não sabe o que tem. Só reteve o essencial das palavras do médico. “Problema de ossos.” No sábado, o especialista passou-lhe três novas receitas. A rapariga recebeu o papel e guardou-o ao lado da cama: não tinha dinheiro para ir à farmácia. Segunda-feira era feriado. Esperou até terça. Esperou que abrisse a AIDA – Ayuda, Intercambio y Desarrollo. A coordenadora, Liliana Pontes Menut, assoma à porta. Olha para quem aguarda no alpendre, em cadeiras de plástico. Na mão, o papel emaranhado que Nené lhe entregou. Talvez tenha sorte. A organização espanhola costuma ter os medicamentos mais procurados. Um mundo parece separar as duas raparigas. Nené, a de 22 anos, nasceu numa recôndita tabanca de Quínara. Pouco foi à escola. Nunca passou da 2.ª classe. Liliana, a de 28, nasceu em Bissau e em Bissau viveu até terminar o secundário. Depois, rumou ao Nordeste do Brasil.


PARA LÁ DE NENÉ, ESTÃO CINCO MULHERES, UMA COM UM MENINO DE UNS SEIS OU SETE ANOS, OUTRA COM UM BEBÉ DE COLO.

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“Concorri para vários países. Queria muito estudar Serviço Social. Tinha lido alguns artigos. Apaixonei-me pela ideia de lutar pelos direitos dos outros. E neste país não falta campo de actuação.” Liliana fez uma licenciatura em Serviço Social e um mestrado em Recursos Humanos. Regressou no final de 2009. Ficou desiludida: o Estado, afinal, “não reconhece o papel dos assistentes sociais”. Procurou um lugar no seio das organizações não governamentais. Passou pela Enda Tiers Monde. Nessa altura, andavam a fazer uma cartografia das trabalhadoras do sexo. Aqui mesmo, no centro, a noite aquece. Nos bancos da praça Che Guevara ou no passeio da rua Eduardo Mondlane amontoam-se raparigas – algumas pagam 500 francos cfa aos guardas e recebem clientes ali, nas traseiras da EAGB e do Ministério das Pescas. Também passam por estabelecimentos como o Caliste ou o X Club. Interessa-lhe esta realidade um tanto encoberta. Talvez por influência do companheiro – oficial de programas ao serviço do Secretariado Nacional de Luta Contra a Sida – que conheceu no Brasil e trouxe para a Guiné-Bissau. Muitas trabalhadoras do sexo aparecem-lhe aqui. “Sempre que fazem testes, descobrem alguma doença nova. A maior parte não faz trabalho sexual porque quer. Luta para sobreviver. E isso faz com que tenha menos cuidado…” Luta pela sobrevivência é palavra de ordem no maior hospital da Guiné-Bissau, conjunto de edifícios construído ainda no período colonial. E isso sente-se, sobretudo, no serviço de urgências, com um intenso cheiro

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a urina e um som contínuo de suspiros, gemidos, soluços. Sobram doentes. Faltam médicos, equipamentos, materiais, medicamentos. Os assistentes sociais saem deste edifício lateral, pintado em tons de verde, como quase todos os outros. Vão às enfermarias avaliar a situação financeira de cada um. O crivo é apertado, muito apertado. Quem passa por ele tem direito a certos exames, consultas, medicamentos. A privação parece desmedida. O Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza II dá uma ideia: a taxa de pobreza subiu de 64,7 para 69,3 por cento entre 2002 e 2010. Por força da “contínua instabilidade política” vivida nesses anos. Por força do historial de política económica que os antecedeu. E pelos “exacerbados aumentos dos preços dos alimentos e dos combustíveis”. E, ainda, pela “desaceleração económica mundial de 2008/2009”. “Se a pessoa só tem mil francos cfa por dia acaba saindo do hospital porque não consegue comprar os remédios. E há pessoas que só têm 500 francos cfa por dia para viver.” Numa terça-feira como esta, a equipa chega a aviar mais de cem receitas. Aparecem-lhe homens, mulheres, crianças. Há muitas mães – solteiras, divorciadas, viúvas, casadas-ignoradas por homens que, um dia, partiram, esperançados, para um país menos pobre do que este. Neste preciso instante, para lá de Nené, estão cinco mulheres, uma com um menino de uns seis ou sete anos, outra com um bebé de colo. De pé, um homem de boné. De repente, chega outro. Precisa da história clínica


LILIANA TAMBÉM CONTA AS HORAS. UMA RECÉM-NASCIDA ESPERA-A NAS MÃOS DE UMA NOVA AMA.

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de um sobrinho que está de partida: será tratado em Lisboa. Nené espera. Há muito que os seus dias se fazem de espera. Esteve perto de um ano em casa, agarrada à perna. “Um branco, que trabalha numa ONG, é que me trouxe.” O “branco” tem ajudado a rapariga a comprar os medicamentos. Talvez a ajude outra vez. Ela precisa de três. Liliana correu os armários e só encontrou dois. O outro pode chegar amanhã ou depois. Se o médico o achar fundamental, terá de passar uma nova receita. A expressão de Nené não se altera. Continua a contrastar com o seu vestido rosado, florido. Está fraca. Já passa das onze e ainda não comeu. Não está desamparada. Tem de esperar. Tem de esperar mais um pouco. Uma vez por dia, um irmão ou a mulher trazem-lhe alguma comida. Liliana também conta as horas. Uma recém-nascida espera-a nas mãos de uma nova ama. A Guiné-Bissau prevê dois meses de licença de maternidade. A licença de Liliana acaba de expirar. E ela quer amamentar a filha, pelo menos, até aos seis meses. Quando teve a filha mais velha, já lá vão cinco anos, entregou-a à mãe e concentrou-se nos estudos. Agora, quer conciliar a vida inteira. Até ao bebé celebrar um ano, tem direito a uma hora para amamentar. Vai colá-la ao almoço para ter tempo de ir a casa. Ser mãe não lhe pode matar o sonho de “lutar pelos direitos dos outros” – pelo direito à saúde, pelo menos.


LÍGIA SENTE-SE AO COMANDO DE UM “EXÉRCITO DE PAZ” Lígia Dama Ferreira trabalhou 18 anos no Sul antes de vir para o Leste. Nunca vira tantas mulheres a morrer com anemia. “É por causa dos hábitos alimentares. Só comem os alimentos existentes. Não há peixe. Há alguma carne, mas quem a consegue arranjar?” Uma planta de caule pequeno e raiz aprumada propaga-se pelo mundo, a aliviar carências. A sua semente é uma das maiores fontes de proteínas. Come-se crua, cozida, torrada. Chamam-lhe amendoim em Portugal, mancarra em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Não chega. “A anemia é a primeira causa de mortalidade materna no Gabú. Uma mulher com anemia pode sofrer um aborto ou um parto prematuro. É muito frequente a mãe e a criança morrerem durante o parto. Às vezes, num dia, morrem duas, três, quatro mulheres.” A enfermeira-parteira não se habituou, apesar de viver num país com uma taxa de mortalidade materna altíssima – uma das cinco mais altas do mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde [1]. Há meia dúzia de anos, aliou-se a outros inconformados. Agora, a despachar na sua cadeira de presidente da organização não governamental Intervenção

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AOS SÁBADOS, CAMINHA ATÉ À RÁDIO COMUNITÁRIA SINTCHAM-OCCO PARA FAZER O PROGRAMA BALUR DI MINDJER. 22

Feminina, sente-se “um general” a comandar “um exército de paz”. Aos sábados, caminha até à rádio comunitária Sintcham-Occo para fazer o programa Balur di Mindjer. Na sua voz calma, mas firme, fala de nutrientes construtores, protectores e energéticos. Recomenda o consumo de proteína animal (carne, peixe, ovos), proteína vegetal (mancarra, feijão, grão) e cálcio (leite, iogurte, manteiga). Dá dicas sobre modos de cozinhar. Enfatiza a importância do acompanhamento médico durante a gravidez, o parto e o pós-parto. “Não podemos ir até à última tabanca. Talvez as pessoas possam ouvir o programa. Há muitas coisas que precisam de ser esclarecidas.” Poucos fazem planeamento familiar. E quem o faz prefere guardar segredo, não vá alguém ver aí um indício de adultério. Lígia confronta-se com a resistência de alguns maridos. “Tem de tirar, de tirar”, ordenou-lhe ainda há pouco o de uma mulher que colocara um dispositivo intra-uterino. Há qualquer coisa de revolucionário na ideia de um casal poder decidir, de forma livre e responsável, quantos filhos deseja ter e quando. Ao longo de mais de 20 anos de trabalho, conheceu poucos homens capazes de dizer: “Já temos muitos filhos. Queremos parar.” “Para a maior parte dos homens, uma mulher é uma máquina de dar filhos. Quantos mais, melhor.” Ainda nos bancos da Escola Nacional de Saúde aprendeu que as insuficiências alimentares, sozinhas, não provocam tantas hemorragias, distocias, infecções, eclampsias, abortos. A experiência leva-a a apontar o dedo à


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falta de informação, às tradições. “Muitas das mulheres que moram nas tabancas mais distantes não têm consultas. O marido não aceita que a mulher seja vista por um médico ou por um enfermeiro. E nem todos os centros têm parteira…” A activista, de 42 anos, até suspira ao dizer isto. “As violações dos direitos da mulher são muito frequentes aqui. Muitas das mulheres que morrem são vítimas de casamento precoce. O corpo não está preparado para dar à luz. O corpo está preparado aos 17, 18 anos. Elas têm 13 ou 14. E os maridos, às vezes, podiam ser avôs.” Rebelar-se é arriscado. As famílias podem votá-las ao abandono. E há mulheres que não aguentam. Lígia nunca esqueceu uma rapariga que conheceu quando andava pelas tabancas a fazer despistagem de alto risco obstétrico. Fora dada em casamento. Recusara casar-se. Engravidara de outro. Ninguém se interessou por ela. Morreu. E, depois dela, o bebé. Tenta acelerar mudança. Alargou o seu campo de acção. Dirige a Plataforma de ONG da Região do Gabú. Orgulha-se de em 2011 ter vencido uma “corrida” disputada com “muitas listas encabeçadas por homens”. Meses antes, celebrara outra vitória: a liderança da Frente Unida Contra a Sida. Continua a trabalhar no hospital regional. Deixou de fazer turnos. Trabalha lá das 8h00 às 12h00. Depois, retoma o activismo. Sobra-lhe pouco tempo para a vida pessoal. Desengane-se, porém, quem julga que abdicou dela. É casada. Tem um filho adolescente. Acaba de adoptar um bebé. “O meu marido ajuda, ajuda bastante. E tenho empregada. Não posso


REBELAR-SE É ARRISCADO. AS FAMÍLIAS PODEM VOTÁ-LAS AO ABANDONO. E HÁ MULHERES QUE NÃO AGUENTAM.

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parar. Por ser parteira, vejo muitas mulheres a sofrer. E a morrer…” Talvez já não soubesse viver sem este rodopio. A 11 de Outubro de 2011, numa sala contígua à sua, começou a funcionar o Centro de Apoio, Aconselhamento Social e Jurídico da Mulher e da Criança. O serviço, encabeçado pelo jurista António Oliveira Martins, arrancou mesmo sem financiamento específico. “Como entre os membros da associação há jurista, sociólogo, médico, parteira, conversámos sobre a hipótese de fazer trabalho voluntário. E estamos a trabalhar. Temos um pequeno espaço. Não temos recursos para muitas deslocações. Fazemos as que podemos.” Novas vivências femininas entram agora neste edifício térreo, impecavelmente limpo e arrumado, muito central, como convém. Como o da guineense que se uniu a um nigeriano e teve gémeos. Separaram-se. O tribunal tirou-lhe as crianças e entregou-as ao pai. “Não sei como essa justiça foi feita. Ele é comerciante. Viaja sempre. Se fica com as crianças é para entregar a outra pessoa. Se tem dinheiro, deve dar pensão de alimentos. A mãe tem condições para dar educação e amor. Esse direito não lhe foi dado. Aqui, os direitos das mulheres são muito pouco respeitados. As mulheres nem conhecem os seus direitos…” [1]

A mortalidade infantil também é uma das mais elevadas do planeta. Aliás, a taxa subiu de 123 mortos por cada mil nados vivos para 138 em 2006, mas caiu, alcançando os 104 em 2010, de acordo com o MICS.


CRIME E CASTIGO 27

A mulher que matou o recém-nascido já não estava no calaboiço do Comissariado Regional da Polícia de Ordem Pública. Nas traseiras do edifício arrumavam-se apenas homens. António Oliveira Martins, responsável pelo Centro de Apoio e Aconselhamento Social e Jurídico da Mulher e da Criança, na Intervenção Feminina, conhecera-a havia um mês. Precipitara-se para ali ao ouvir falar num rapaz encarcerado sob suspeita de homicídio e deparara-se com ela. Estava isolada numa cela minúscula. Sentia-se doente, triste. Tivera de casar-se com um homem mais velho, que já antes se casara duas vezes. Ele partira para Cabo Verde. Deixara mulheres e filhos, com escassas notícias, às ordens de sogros e cunhados. Certa ocasião, ela conhecera um rapaz mais ou menos da sua idade. Viviam perto. Cruzavam-se nos caminhos estreitos. Engraçaram um com o outro. Iniciaram namoro clandestino. Quando ela ficou grávida, ele encheu-se de medo, fugiu para Bissau. E ela ficou ali, aterrada. Silenciou a notícia, o desgosto, o medo. Fiou-se no excesso de peso para mascarar a gravidez. Mas uma gravidez não é só barriga – crescem as


SILENCIOU A NOTÍCIA, O DESGOSTO, O MEDO. FIOU-SE NO EXCESSO DE PESO PARA MASCARAR A GRAVIDEZ. 28

mamas e os quadris, aumenta o apetite, a vontade de urinar, o cansaço, a sonolência… No dia do parto, uma mulher seguiu-a mato adentro. Viu-a estrangular o bebé e escavar uma cova. Levou a notícia à tabanca. António não se atreve a julgar aquela mulher de 31 anos. Põe-se na sua pele. Culpa “a sociedade machista”. “Mesmo que ela se quisesse separar, seria muito difícil. Só se fosse o marido a pedir… Se for a mulher, a sociedade não aceita. A própria família rejeita a mulher, diz que ela não presta.” Por que não usou contraceptivo? Por que não interrompeu a gravidez? Por que não entregou o bebé a alguém que o pudesse criar? Por que não fugiu? Não tinha ainda respostas para estas perguntas, mas estava disposto a obtê-las. E roía-se de curiosidade por não as encontrar dentro do cubículo que mais parecia um forno, com um intenso cheiro a rato morto, mas que era o gabinete do sub-comissário Regional da Polícia de Ordem Pública. “A justiça funciona um pouco em Bissau. Gasta-se pelo caminho. ” Isso mesmo comentara antes de ouvir o sub-comissário falar numa emergência médica – uma valente hemorragia. A mulher não estava ali porque o tribunal lhe alterara a medida de coacção. Fora levada pela família. Bastava-lhe apresentar-se às autoridades de quinze em quinze dias. O tal rapaz de 18 anos, esse, permanecia encarcerado. Vestia os mesmos calções e a mesma T-shirt com que António o conhecera havia um mês.


Só tinha a roupa que trazia no corpo, comia o que os outros presos lhe davam para comer, bebia o que os outros presos lhe davam para beber. António ficou preocupado. Tanto com ele como com ela. Não é por alguém cometer um crime que deixa de ter direitos básicos. Não quis ficar sem respostas. Foi à procura dela. Estrada de terra batida fora. Uma, duas, três tabancas. Perguntou aqui, perguntou ali. Ninguém parecia interessado em ajudá-lo. Estaria a família dela a escondê-la, com medo de uma eventual vingança da família do marido? Regressou dias depois, com o delegado do Ministério Público. Descobriu-a na última tabanca que visitara, onde até cavaqueara com um homem que encontrara em tronco nu, descalço, a descascar mancarra. Confirmava-se: quis fazer um aborto. Ingeriu um preparado de folhas tradicionais e nada. Confirmava-se: não tinha dinheiro. O marido envia algum, mas para os pais. A mãe encarrega-se das despesas domésticas. A mulher nem podia decidir a compra de roupa interior. Confirmava-se: não podia ir à cidade sem dizer para quê. Os seus movimentos eram controlados pelos sogros, pelos cunhados. Confirmava-se: a relação conjugal era distante. Nem sequer tinha autorização para telefonar ao marido. De quando em quando, ele telefonava à mãe. No final, “dava uma palavrinha” às esposas. Confirmava-se: sentia-se sozinha. Não tinha a quem pedir conselhos. Sabia que a vizinhança andava desconfiada. Agarrava-se à esperança,

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NÃO QUIS FICAR SEM RESPOSTAS. FOI À PROCURA DELA. ESTRADA DE TERRA BATIDA FORA. UMA, DUAS, TRÊS TABANCAS. 30

ainda que ténue, de ter vivido uma aventura inconsequente. Confirmava-se: naquela madrugada, uma vizinha seguiu-a mato adentro e avisou a sogra e as outras mulheres. Elas não tentaram encobri-la, pelo contrário, obrigaram-na a confessar o crime. Dormiu no calabouço quase uma semana. A hemorragia persistiu. As guardas quiseram conduzi-la ao Hospital Regional de Gabú. Os serviços hospitalares pediram um documento judicial. Compareceu então perante o juiz. E ele ordenou-lhe que aguardasse julgamento em liberdade. E ali estava António, a oferecer-lhe os seus préstimos de jurista. “Não há um advogado nesta região. Paga-se 50 mil francos cfa para vir um advogado de Bissau. Só pela deslocação, cobra 50 mil! Ele ainda não recebeu a acção para trabalhar e já está a cobrar 50 mil!” Mas quem adivinhava o que lhe reservava o futuro? “As duas famílias estão a negociar…” A espera não seria longa. A 17 de Janeiro de 2012 o Juiz de Vara Crime do Tribunal Regional de Gabú haveria de a condenar a um ano de prisão efectiva.


A REVOLTA DE NHIMA AJUDA A MUNDO EM VOLTA Não queria ser mais uma deputada sentada na Assembleia Nacional Popular, a votar contra ou a favor, conforme a orientação do PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde. Nhima Sissé queria defender os direitos das mulheres da Guiné-Bissau. “Devia haver legislação para punir certas práticas. Já conseguimos uma lei contra a mutilação genital feminina. Queremos uma lei contra a violência doméstica. As mulheres guineenses sofrem. Embora a Constituição diga que somos iguais, não somos.” Tinha oito ou nove anos, mas o episódio mantém-se na sua memória, como uma nódoa impossível de limpar. Havia um grupo de miúdas numa sala que dava para um quarto fechado. Entrou uma, outra, e outra, e ainda outra. “A minha tia é que me levou. Duas mulheres seguraram-me, outra fez o corte. Uma mulher disse: ‘Não, não tiraste tudo! Deixaste, está lá!’ A minha tia pediu: ‘Coitadinha, tens de limpar tudo!’ A fanateca respondeu: ‘Não. Está a sangrar muito.’ Aquilo não foi bem feito.”

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TINHA OITO OU NOVE ANOS, MAS O EPISÓDIO MANTÉM-SE NA SUA MEMÓRIA, COMO UMA NÓDOA IMPOSSÍVEL DE LIMPAR. 32

Percebeu que algo estava mal ao conversar com as amigas sobre o fanado. E confirmou-o ao estudar, nas aulas de Biologia, o corpo humano. Aos 18 anos, antes de casar, foi ao médico. O ginecologista observou-a com cuidado. Reparar o estrago não seria fácil. Nhima percebeu que teria limitações. Não suspeitou que tal significasse complicação grave durante o parto. “Diminuiu a minha dilatação. A criança não conseguia sair. Isso estava muito apertado. Deram três cortes para a criança sair. Saiu mesmo cansada e acabou por falecer. Fez tanto esforço...” Tornou a engravidar. Uma, duas, três vezes. Foi ter os filhos a Portugal. Cesariana, claro. A certa altura, a saúde do marido fê-lo procurar tratamento em Portugal. Enquanto ele esteve fora, ela ganhou espaço de manobra. Começou a assistir a reuniões do PAIGC. Retomou os estudos – está agora a estudar Língua e Cultura Portuguesa no Instituto Camões. “Tudo o que eu passei revoltou-me tanto. Ser deputada era a minha maneira de superar. Não me ia defender a mim mesma. Ia defender as mulheres. Ia lutar para as nossas filhas não passarem pelo mesmo.” Não foi só a mutilação genital. “Fui a casamento forçado. Tinha 19 anos. A história começou quando tinha 17. Insistiram, insistiram. Tive de aceitar. Depois daquele casamento, fui obrigada a abandonar os estudos no 9.º ano. Foi uma guerra. Fiquei com uma mancha.”


Ana Cristina Pereira

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Adriano Gomes

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SINTO MESMO QUE CONSEGUI VENCER ALGUMA COISA. NÃO É TÃO SIGNIFICANTE, MAS ALGUMA COISINHA CONSEGUI. NÃO SOZINHA. Mostra uma cicatriz que tem num braço. “Esta aqui é pela minha insistência. Fui à escola. Cheguei a casa, ele puxou o cinto. Bateu-me.” Sentiu-se sozinha na sua dor. “Por causa da nossa cultura, a mulher tem de aceitar tudo o que é dito pelo homem. Mesmo sofrendo, mesmo morrendo, é obrigada a aceitar.” Foi eleita uma vez. Tornou a sê-lo nas legislativas que se sucederam numa democracia ainda em construção. Na anterior legislatura, apresentou uma proposta anti-mutilação genital feminina. “Nem foi discutida pela assembleia. Fui ameaçada de morte. Na rua, no parlamento, pelo telefone de casa, pelo telemóvel, pela rádio. Fui insultada, mesmo aqui no parlamento. Os muçulmanos disseram que eu não sou uma boa muçulmana. A direcção do partido chamou-me. Chorei… Chorei muito. Ia haver eleições. Retirei a proposta, porque podiam relacionar o resultado com a mutilação genital feminina. Na nova legislatura, retomei a batalha.” Nhima diz isto no seu gabinete de presidente da Comissão Especializada para a Mulher e a Criança. Em frente à secretária, uma estante atestada de relatórios internacionais. Nela sobressai uma escultura de madeira: uma mulher agarrada a uma carga, que é África, África inteira. “Sinto mesmo que consegui vencer alguma coisa. Não é tão significante, mas alguma coisinha consegui. Não sozinha. Houve muita gente a trabalhar….”

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Sentiu-se apoiada pelo ministro da Justiça, pela presidente do Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas e por inúmeros membros de organizações nacionais e internacionais, a começar pela UNICEF. Em Junho de 2011, a proposta foi votada no parlamento: 64 votos a favor, um contra, três abstenções. Nhima tinha 46 anos. “Muitas vezes, não damos importância ao que estamos a fazer no dia-a-dia, aos seminários, às acções de sensibilização, mas tem.” E agora? “A maioria da população concorda com o fim daquela prática, mas sabemos que isto é um processo. Aprovámos para que esteja no Orçamento do Estado uma verba para se continuar as acções de sensibilização e para se construir um centro de acolhimento das vítimas. No passado, quando se falava em mutilação genital, diziam que era um insulto, que se estava a mexer com uma religião, mas não há um versículo sobre a mutilação genital feminina no Alcorão.” Leu o Alcorão. Discute-o com quem quer que o use para legitimar a excisão. Nega que a reza de quem escapou a tal ritual de iniciação seja inválida, que a sua comida seja imprópria. E livrou as filhas, agora com 13 e 21 anos, do que lhe parece ser uma violenta prova de conformismo. “A irmã mais velha do pai delas até hoje não se dá bem comigo por causa disso. Ela veio para pegar a menina para submeter à mutilação genital e eu disse: não, não, o que eu passei, ela não vai passar. A família quase toda ficou de mal comigo. Para eles, eu não sou cem por cento muçulmana.


Sentem-se mais à vontade com a outra mulher. Ela é mais própria.” Não partilha casa com a cumbossa. Cada uma tem o seu espaço Adaptou-se ao marido que não escolheu. Vergar-se é que já não. “Dentro do respeito que deve existir entre pessoas casadas”, faz a sua vida. “Eu pergunto: se eu ficar com os braços cruzados à espera de licença, ele vai dar? Não!”

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NA ENCRUZILHADA 39

“Fazer uma lei é como dar à luz. A criança não se cria sozinha. No princípio, é preciso dar-lhe peito. A questão das fanatecas é igual. Isto é uma tradição que passa de mães para filhas. Quando a mãe está cansada, entrega as facas à filha interessada em continuar aquela prática. Não as entrega de qualquer jeito. Faz-se uma cerimónia. O chefe da tabanca é informado. O régulo é informado. Toda a gente da tabanca é convidada. Vai-se buscar comida. As pessoas comem até ficarem bem fartas. Quando as pessoas já estão bem fartas, a fanateca entrega as facas à filha: “Hoje, acabou. Toma. É da tua responsabilidade.’ Depois, as famílias vão à nova fanateca e pedem-lhe para fazer o ‘fanado’ às filhas.” Umo Embaló tem uma voz pausada, ainda que grave. Usa um vestido com desenhos geométricos, em tons de azul, branco, dourado. Discursa numa sala do UCT- Programa de Apoio à Emergência na Segurança Alimentar. Mama Canté, presidente da organização não governamental Miajen Fidjango, juntou ali fanatecas de várias tabancas do Gabú para discutir modos alternativos de vida. Mama parecera determinada quando fizera o discurso que servira de abertura ao encontro.


JÁ FAZEMOS ISTO HÁ MUITOS ANOS. DIZER ÀS PESSOAS PARA PARAREM DE REPENTE É MUITO DIFÍCIL.

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“Eu quero erradicar o fanado. Digo às mulheres que o fanado traz doenças, como tétano, VIH-sida. Digo às mulheres que por causa do fanado muitas perdem a vida no parto. Estou a tentar arranjar um crédito para as fanatecas do Gabú. Sem uma ajuda, elas não vão parar.” Quando Umo, do alto dos seus 65 anos, agradece a quem se senta em seu redor e retoma o seu lugar, uma mulher da mesma família, com o mesmo nome, só que dez anos mais nova, pede a palavra. “Já fazemos isto há muitos anos. Dizer às pessoas para pararem de repente é muito difícil.” Por tradição, a cerimónia de iniciação faz-se nos meses de Novembro, Dezembro e Janeiro. O clima não dá grande trégua. Quanto mais alta a temperatura, mais sangue perdem as crianças. Os estudiosos identificam três fundamentos para esta prática com raízes ancestrais, anteriores à islamização: controlo da sexualidade feminina (ideais de submissão, de fidelidade, de pureza), integração social (mecanismos de identificação), benefícios económicos. Umo não argumenta que o clítoris é um elemento masculino, que amputá-lo é purificar a mulher. Nem usa expressões pomposas como “perpetuar mecanismo de identificação com o grupo”. Diz: “As raparigas vão ao fanado para limpeza. Se não forem, os mais velhos têm nojo. Uma rapariga que não vai ao fanado é gozada pelas outras. Por isso muitas, ao chegar à adolescência, pedem aos pais para ir.”

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Agora, a lei proíbe, lembra-se-lhe. “As pessoas sentem medo, mas fazem na mesma. Membros do conselho islâmico lançaram um apelo para as fanatecas não pararem. Se elas param, eles lançam uma praga.” Quando Umo retoma o seu lugar, a mais velha do grupo, Nhamo Camará, de 67 anos, expõe outros argumentos: “Eu faço fanado há muitos anos. Comecei a fazer fanado no tempo dos tugas. Nunca as pessoas a quem fiz fanado tiveram problemas [de saúde]. Quinze mil francos cfa, uma galinha, três quilos de arroz, uma barra de sabão, dez nozes-de-cola, uma roupa completa é o que eu recebo.” Fala no fanado grande, o que vai além da excisão do clítoris, o que inclui ensinar danças, cânticos, princípios de submissão feminina. Mama Canté esclarece: “Elas adaptaram estratégias para continuar. Antes, as meninas iam a casa das fanatecas, agora as fanatecas vão a casa das famílias. As famílias chamam-nas para irem a casa delas e elas vão. Praticam às escondidas. Isso vai continuar, porque a pobreza, a subsistência, é a questão de fundo.” A idosa assente: “Nós continuamos, mas queremos parar.” O que é preciso para pararem? “Um apoio, um crédito, para montar uma banca e vender pequenas coisas. Tenho cinco pessoas lá em casa. Uns filhos, outros netos. Eu é que pago alimentos, cadernos, roupa para as crianças irem à escola.”


QUINZE MIL FRANCOS CFA, UMA GALINHA, TRÊS QUILOS DE ARROZ, UMA BARRA DE SABÃO, DEZ NOZES-DE-COLA, UMA ROUPA COMPLETA. Há uns anos, a organização guineense Sinin Mira Nassiquê e a organização alemã WFD, apoiadas por diversas entidades nacionais e estrangeiras, impulsionaram o fanado alternativo – sem corte de clítoris. Centenas de crianças frequentaram tais barracas. Dezenas de fanatecas entregaram as facas. Houve um apoio financeiro à mudança de actividade. Isso acabou. Se a presidente do Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas, Fatumata Dajau Baldé, aqui estivesse explicar-lhes-ia o que aconteceu: “Pensou-se que, com uma quantia, as pessoas podiam abandonar a prática, mas viu-se que não resulta. As fanatecas entregam as facas, recebem o dinheiro, vão comprar outras – ou nem entregam as verdadeiras. E isso ainda contribuiu para pessoas que não pertenciam a gerações de fanatecas iniciarem a actividade. A estratégia é sensibilizar, não é dar dinheiro.”

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“TENS DE SER AQUELE FILHO HOMEM” Chamo-me Fatumata Djau Baldé. Sou do Norte da Guiné-Bissau. Nasci em Canchungo. Tradicionalmente, não só na comunidade fula a que eu pertenço, ter filho homem dá mais valor à mulher no casamento. A minha mãe deu à luz filhos homens, mas morreram. E ela sofreu discriminação por causa disso. Cresci com alguma coisa lá dentro a dizer: “Tu tens que mostrar que ter filho homem ou filho mulher não tem diferença, tens de ser aquele filho homem que a tua mãe não teve – para poder protegê-la, para poder fazer tudo o que o filho homem pode fazer.” Foi com a libertação da Guiné-Bissau que se começou a falar de igualdade entre homens e mulheres. Entrei aos nove anos nos Pioneiros Flor de Setembro. Estive nos Pioneiros Abel Djassi e na Juventude Africana Amílcar Cabral, a JAAC, antes de me tornar militante do PAICG. Foi aí, nas organizações de massas, que despertei para as questões da igualdade de género, que percebi que o que a minha mãe sofria era discriminação. O filho homem daria continuidade à família dos pais, enquanto que a filha mulher formaria outra. Hoje, já ultrapassámos muito isso, mas ainda existe. A minha família tinha todas as práticas nefastas que eu combato. Por ter

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HÁ 25 ANOS NÃO ERA COMUM UMA MULHER ESCOLHER O MARIDO. SOBRETUDO EM ETNIAS ISLAMIZA46

ganho consciência, lutei para não ser dada em casamento forçado. Deram-me, mas eu recusei casar-me. Tradicionalmente, os pais do noivo arranjam noiva para os filhos. Diz-se que se uma mulher respeita o marido, as filhas também respeitarão. A minha mãe foi uma mulher sofredora, então muitos queriam que os seus filhos casassem com filhas dela. A minha irmã mais velha foi uma mulher sofredora. Eu não fui, embora seja casada e tenha duas filhas e um filho. Eu é que escolhi o meu marido. Há 25 anos não era comum uma mulher escolher o marido. Sobretudo em etnias islamizadas como a minha. Isso foi um processo. Fui dada em casamento aos nove anos. Aos 17, queriam que o casamento se efectuasse. Por causa do meu comportamento, da minha reacção, não se efectuou. Depois, conheci o meu namorado. Ele foi estudar para a antiga União Soviética. E eu fui dada em casamento a um primo. Com esse primo, tinha mais liberdade. Disse-lhe que não me queria casar. Ele tinha namorada. Quando ela engravidou, o meu tio achou que ele já não se podia casar comigo. Apareceu uma terceira pessoa. Ele já era casado. O pai dele é que veio a nossa casa dizer que gostaria muito que o seu filho se casasse com uma das filhas da minha mãe. Escolheram-me porque a minha irmã mais velha já se tinha casado e a minha irmã mais nova era muito nova. Como ele


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era comerciante e eu estava a estudar, eles pensaram que eu podia aju-dá-lo. Eu tive de lhe dizer que tinha um namorado a estudar fora. “Melhor esperar. Se ele chegar e a gente não se casar, então eu caso contigo.” Ele foi compreensivo: “Vamos esperar. Quando o teu namorado chegar, se não tiver um compromisso lá do outro lado, a gente casa.” Namorámos seis anos. Na altura, havia voos semanais ou quinzenais da companhia aérea russa. Recebia uma carta por mês, não era como agora que as pessoas falam todo o dia ao telefone. Às vezes, demorava dois meses a receber uma carta. Regressou. Os meus pais acabaram por aceitá-lo. Eu morava em Bissau. Tinha vindo fazer o liceu. Estive cá dois anos a estudar. Dei aulas no interior do país. Depois voltei. Estava à espera de uma bolsa para estudar no estrangeiro. Queria estudar Economia e pilotagem. E não estudei nem uma coisa nem outra. Não foi pelo casamento, porque terminei o liceu com 19 anos e casei com 23. Foi por não conseguir bolsa. Só voltei a estudar quando abriram os cursos aqui. Estudei Contabilidade. Fui membro fundador do sindicato dos professores, o primeiro sindicato independente da Guiné-Bissau. Quando deixei de dar aulas, ingressei na Liga Guineense de Direitos Humanos. A partir daí, comecei a trabalhar no domínio dos direitos das mulheres e das crianças. Já estive no Governo – fui ministra do Turismo, da Solidariedade Social e dos Negócios Estrangeiros. Sou presidente do Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas, um organismo semi-público


que tem uma ligação directa ao Ministério da Mulher, da Família, da Coesão Social e da Luta Contra a Pobreza e congrega organizações não governamentais que trabalham na área dos direitos da mulher e de criança. As pessoas dizem-me muitas vezes: “Tinhas de estudar Direito. Falas tanto de leis.” Neste momento, estou na Universidade Aberta a fazer um mestrado em Estudos sobre Mulheres. Uma lei é um importante suporte de prevenção e de repressão. Foram anos a lutar por uma contra a mutilação genital feminina. Ainda se faz, mesmo em Bissau. Levam crianças cada vez mais pequenas, porque quanto mais pequenas, menor a hipótese de se descobrir. Mas já se escondem. Já têm noção de que o que estão a fazer não é correcto. Se os casos descobertos forem levados à justiça, isso terá algum efeito. Fui lá, a Bafatá, entregar a primeira denúncia ao Ministério Público. Não planeava, mas acabei por participar num encontro de fanatecas. Não fui bem recebida. Viram-me com a pessoa que mandou prender a fanateca. Estavam contra mim, familiares, colegas, membros da comunidade que continuam a acreditar que essa prática é uma tradição que devemos manter. Achavam que eu podia retirar a queixa. O líder religioso, o deputado da nação, cada um que usava a palavra dizia que eu podia ilibar a senhora que estava a ser procurada pela justiça, que estava escondida. Não os culpo. É o conhecimento que têm. Com o mau funcionamento da justiça, muitas vezes, deputados régulos, imãs, vão à polícia pedir

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A MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA CHAMA MUITO A ATENÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL, MAS HÁ MUITAS PRÁTICAS NEFASTAS. para libertar uma pessoa que cometeu um crime e a pessoa é libertada. Por isso estamos a pedir apoio para fazer uma divulgação dessa legislação a nível nacional. Temos de explicar às pessoas até o que é crime público. A mutilação genital feminina chama muito a atenção da comunidade internacional, mas há muitas práticas nefastas. O costume sucessório, por exemplo, prejudica muitas mulheres. As mulheres têm uma esperança média de vida superior à dos homens. E a maior parte casa-se com homens muito mais velhos. Quando morre o marido, muitas vezes os seus familiares vêm para tomar conta de tudo. Nem sequer querem saber se a mulher ajudou na construção da casa, na compra da viatura. A mulher até pode não ter ganho dinheiro, mas o facto de estar lá, ao lado do marido, de se ocupar da casa, dos filhos, faz com que tenha contribuído para a existência desses bens. Embora haja cada vez mais mulheres que se recusam a ser herdadas pelos irmãos ou sobrinhos do falecido, um bom número ainda se submete a essa prática, porque não tem formas de subsistência ou coragem. Pensa que vai ficar só, isolada, com os filhos, sem suporte familiar para os educar. Se os casos forem levados aos tribunais, a viúva é beneficiada. Como a maior parte se resolve pela via tradicional, vigoram as regras tradicionais de sucessão, a mulher é sacrificada. Nós falamos com os líderes tradicionais, religiosos, para se abandonarem essas práticas. São práticas com consequências nefastas não só para as mulheres: dentro desse sistema, as pessoas podem contrair VIH-sida.

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Há muita gente que morre e não se sabe qual é a causa. Se uma mulher herdada por um familiar, num sistema de poligamia, estiver contaminada, vai contaminar quantas pessoas? Pedimos a esses líderes para convencerem as comunidades. As mulheres trabalham, batalham para o sustento da família, para a criança ir à escola, para comprar medicamentos. Como não protegem aquela mulher que tanto trabalhou para que essa família exista?


COMO UMA MIÚDA CANSADA Parece uma miúda no meio daqueles miúdos que saltam em seu redor de calções gastos e sapatos de plástico. Senta-se na varanda e eles sentam-se com ela, atentos àquela voz mansa e cansada que ouvem desde que abriram os olhos pela primeira vez, a voz de Mama Biai. Ninguém esperou que ganhasse corpo. Mama não é dessas mulheres que ganham corpo. Os filhos começaram a vir, uns atrás dos outros. Vieram oito. E ela manteve aquele ar frágil, quase infantil. “Estou cansada.” Diz isto uma e outra vez. “Estou cansada.” Anda a arrastar cansaço de mês para mês, de ano para ano. “Quando o meu marido estava doente, ninguém se aproximava de mim. As pessoas tinham medo da doença dele.” Ele ia buscar noz-de-cola à família. E ela ia vender esse fruto florestal que reduz o apetite. “Dava o dinheiro ao meu marido para os tratamentos. Ele melhorava, piorava. Continuou assim até morrer. Morreu há três anos.” Nem uma só palavra contra o marido morto.

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AS PESSOAS PEDEM DINHEIRO PARA AJUDAR. E AS CRIANÇAS SÃO MUITO PEQUENAS, AINDA NÃO CONSEGUEM TRABALHAR. “Era um bom homem.” A viúva de idade indefinida vive em Buba, Sul da Guiné-Bissau formada por planícies cobertas de arvoredo e mato e cortadas por braços de mar. O marido ia à bolanha. Preparar terreno alagado para cultivar arroz é É uma arte milenar, feita de acções de desmatação, desenraizamento de mangal, construção de diques, inserção de sistemas de gestão da água. A família sobrevivia com o arroz e com a venda de fruta que Mama colhia no terreno que se estende atrás da casa. Sem o marido, o mato tomou conta de tudo. “As pessoas pedem dinheiro para ajudar. E as crianças são muito pequenas, ainda não conseguem trabalhar.” Dá-lhe comida três vezes por dia. Amiúde, arroz confunde-se com bianda – só há kuntango, não há mafé. Às vezes, há kuntchuro. Dar-lhes comida três vezes por dia é uma canseira. Mama está como o país, que nunca conseguiu alcançar a auto-suficiência alimentar com que sonhou. Os estudiosos culpam a política de fixação do preço do arroz, que durou até 1989. E a míngua de crédito destinado a recuperar as bolanhas abandonadas durante a guerra de libertação. E a crescente dificuldade de mobilizar mão-de-obra familiar. Vingaram as políticas de incentivo à produção de castanha de caju. Até pela subida de preço no mercado internacional. Na ponta, Mama apanha castanha de caju, manga, limão, banana ou ananás, conforme a época. No mato, procura fole para transformar em

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COMPRO ROUPA UMA VEZ POR ANO. NÃO POSSO COMPRAR MAIS. O QUE PROCURO FAZER É TER SEMPRE ROUPA LIMPA PARA VESTIREM. 56

sumo e vender a quem o puder comprar. Tenta o mercado de Buba. Havendo muita concorrência, faz-se ao caminho, anda de casa em casa em busca de clientela. Como faz com o farelo. Quando alguém está a debulhar arroz, pede o farelo ao dono da máquina e vai vendê-lo a quem tem porcos. Não é só a comida que cada um mete na boca. São também os cadernos e as canetas e as roupas. Encontrou estratégias. “Compro roupa para a mais velha. Compro calças, que tanto servem para rapaz como para rapariga. Quando fica apertado na rapariga mais velha, passa para o rapaz mais velho e desse para o outro, e desse para o outro... Compro roupa uma vez por ano. Não posso comprar mais. O que procuro fazer é ter sempre roupa limpa para vestirem.” A roupa limpa está arrumada nos dois quartos de dormir: o que ela partilha com a filha mais nova e o partilhado por cinco rapazes. Em cada um deles, uma cama com um mosquiteiro, algumas roupas penduradas num cabide de parede e muitas outras dobradas e sobrepostas em bacias de plástico. A terceira divisão está quase, quase vazia. Só se vê uma bacia, a um canto, com uns legumes verdes dentro. Não era assim a casa dela e do marido. A casa dela e do marido era uma palhota, segura por plásticos, a ameaçar desmoronar-se. A RA – Rede Ajuda, Cooperação e Desenvolvimento derrubou-a e construiu-lhe esta


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casa com paredes de tijolo assente em adobe, cobertura de zinco sobre traves de madeira. Dizem que apareceram logo pretendentes. Não aceitou casar-se, apesar do cansaço que arrasta há tanto. A mulher encontrou na RA uma forma de escapar à pressão familiar. Não desarma. Insiste. Resiste. E tudo se vai compondo. Tudo se vai compondo. Os primeiros filhos a nascer já não dormem nesta casa com serapilheira colorida a fazer as vezes de janelas. Estudam fora. A filha mais velha mora no centro de Buba. Combina as aulas com o trabalho doméstico – cozinha e faz limpeza na casa do professor que, perante tal aflição, se ofereceu para a acolher. E o filho mais velho mora em Empada. Mora na casa de um colega de escola. Faz trabalhos agrícolas e com isso ganha para as suas despesas. Estão bem. Devem estar bem. Até onde pode uma mãe seguir os filhos?


A MÃE NEM IMAGINAVA 59

Arranjou-se para receber visita. Usa um colar de contas por cima da blusa branca, imaculada, e um lenço no mesmo tom de azul que a saia rodada. As visitas sentam-se em cadeiras de plástico. Fatumata Binto Baldé e os filhos sentam-se em bancos de madeira. Só fala fula. E fala pouco. Fala quando os homens lhe indicam que fale. E os homens, às vezes, respondem por ela. Homem é voz. Mulher é silêncio. Foi isso que lhe ensinaram desde miúda. Homem é voz. Mulher é silêncio. Nunca foi à escola. Casou cedo. Teve nove filhos. Perdeu cinco. As duas raparigas casaram-se, saíram de casa, estão para lá, na vida delas. E o rapaz mais velho casou-se uma e outra vez – é o chefe desta família composta por duas esposas, três filhos, uma mãe, um irmão. A mãe está preocupada com o “amanhã” do caçula, Suleimane Djau, que se encolhe, no banco de três pés, ao seu lado, com os olhos postos no chão. Ele não se sabe defender como qualquer rapaz de 15 anos. Não aprende tão depressa como os outros. E tem deficiência num pé e numa mão. Aos 12 anos, partiu para a capital de um país que começa a alguns


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quilómetros daqui, da tabanca, a poucos minutos do centro de Gabú. O marido da irmã mais velha de Fatumata quis levá-lo para lá, para o Senegal. Era mestre de uma escola corânica. Criá-lo-ia. Ensinar-lhe-ia o Alcorão. O fenómeno é bem conhecido. Persiste ano após ano, como se fosse um mosquito impossível de erradicar. Mestres corânicos cruzam a fronteira e andam pelas tabancas a recrutar estudantes. Antes, apenas rapazes eram levados para longe e sujeitos a várias formas de trabalho infantil. Nos últimos anos, também as meninas engrossam os números de crianças talibés e até passam de boca em boca histórias de crianças atiradas para a prostituição. Fatumata ouvia histórias de meninos talibés atirados para a mendicidade em Dacar, claro que ouvia, mas nunca pensou que o rapaz fosse um deles. Despediu-se dele e ficou com o filho mais velho, ao cuidado das noras, atenta aos netos. “Tinha confiança.” Confiança no cunhado. Eram 17 rapazes a dormir em esteiras estendidas no chão de terra batida de uma barraca toda de zinco. Todos os dias, às cinco e meia da manhã, tinham de se levantar e de ir mendigar o pequeno-almoço para as ruas de Dacar. Regressavam a tempo das aulas, que duravam das dez ao meio-dia. E tornavam a ser postos na rua, com ordens para voltar ao cair da noite, com comida na barriga, se tivessem sorte, e mil francos cfa cada


ERAM 17 RAPAZES A DORMIR EM ESTEIRAS ESTENDIDAS NO CHÃO DE TERRA BATIDA DE UMA BARRACA TODA DE ZINCO. um para entregar ao mestre. Não faltam mãos estendidas nas ruas de Dacar. Os rapazes tentavam tudo por tudo, às vezes até batiam nos vidros das janelas dos carros e faziam sinais a quem ia dentro deles, mas nem sempre conseguiam a quantia exigida. Falhar era pedir gritaria, porrada. Suleimane sofreu dois anos e meio. Conheceu quem tivesse sofrido quatro, cinco, seis. Muitas vezes, órfãos que ninguém procurou. Há uns meses descobriram uma forma de se libertarem. Em vez de tornarem à barraca, bateram à porta da Samu Social, como têm feito muitos meninos talibés da Guiné-Bissau, a maior parte das regiões de Bafatá e Gabú. Identificaram-se, conforme puderam. Nem sempre sabiam dizer tudo: nome, idade, nome do pai, nome da mãe, tabanca, secção, sector. E a listagem foi enviada para organizações não governamentais que, na Guiné-Bissau, trabalham com crianças talibés. Os animadores da Associação dos Amigos da Criança – AMIC foram de tabanca em tabanca, a pé e de moto, conversar com os familiares. Pediram-lhes que ficassem atentos à rádio comunitária Gandal. Avisariam quando as crianças chegassem. Entregá-las-iam no tribunal. Quando o animador da AMIC a procurou, Fatumata já sabia o que acontecera ao rapaz. Soubera havia pouco. O cunhado ligara a dizer que Suleimane desaparecera. Não se pusera a inventar histórias: o rapaz saíra para mendigar e fora levado por activistas dos direitos da criança. A mulher,

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AGORA, SULEIMANE SÓ TEM DE CAMINHAR UNS MINUTOS ATÉ À ESCOLA CORÂNICA E OUTROS ATÉ À ESCOLA COMUNITÁRIA. 62

58 anos atormentados por uma insistente dor de costas, zangou-se. “O meu filho ficou na rua. Podia ser um ladrão.” As suas palavras são abafadas pelo som produzido por mulheres que, a uns metros, pilam arroz. “Podia ser um larápio.” Nunca mais falou com o cunhado. Nunca mais o viu. Sabe que nada lhe aconteceu. Não apresentou queixa. Alguém terá apresentado? As crianças chegaram a 13 de Junho de 2011. Foram recebidas pela AMIC, que tem um centro de acolhimento na cidade, um edifício de tons terra equipado com beliches e armários doados pela UNICEF. Um tio ouviu a notícia na rádio e correu com ela para aqui. Agora, Suleimane só tem de caminhar uns minutos até à escola corânica e outros até à escola comunitária. A AMIC matriculou-o a 14 de Agosto. Pagou-lhe as propinas de nove meses. E ofereceu-lhe uma tábua de leituras tradicionais. E dois uniformes e uma mochila com cadernos, canetas, lápis, afiadores, borrachas, lápis de cor. O mesmo empurrão que, com o patrocínio de parceiros internacionais, dá a cada menino resgatado. Suleimane está no segundo ano de escolaridade. Podia estar no primeiro. Esteve demasiado tempo sem aparecer. Não fala português. Mal fala crioulo. Bem, só fula, como a mãe. E isso chegou-lhe para se entender com os outros meninos que estavam com ele naquela barraca distante. E chega-lhe para se desenrascar nesta região dominada por fulas e mandingas. Ninguém espera que seja como o irmão, um desses comerciantes


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ambulantes capazes de cruzar fronteiras, actividade facilitada pela unidade monetária comum. As suas limitações físicas não o predispõem a percorrer grandes distâncias. Mas o irmão está decidido a fazer dele um comerciante. Já lhe arranjou uma mesinha com pequenos produtos – com açúcar, amêndoa, sabão, pastilhas elásticas – para vender rente à estrada, lamacenta ou empoeirada, consoante a época. E a mãe já pode ficar mais descansada.


A SENHORA BUBACALHAU 65

Atribuíram-lhe uma viagem a Meca. Sene Nhabali ficou encantada. “Essa viagem é muito importante para qualquer muçulmano. Ir a Meca é um desejo de todos.” Convocou os filhos. Pediram-lhe para ter paciência. Não era o momento. Não tinham dinheiro. Quando Sene for a Meca, a família alugará dois ou três carros para a trazer, em caravana, desde o aeroporto internacional de Bissau até casa. E a vizinhança recebê-la-á em festa. Festa rija é festa farta. Há que comprar uma vaca, algumas cabras, muito arroz. “Se não há condições para fazer os festejos, para quê ir?” Enviuvou. Antes de fazer qualquer coisa, convoca os filhos. Conversa com eles. Ouve-os. Não herdou do marido. Herdaram os filhos. E está com eles, como sempre esteve. Ainda apareceu um cunhado pronto para a desposar, mas ela recusou-se a fazer parte da herança da família do falecido. “Ninguém me pode obrigar a aceitar a ardansa. Já sei o que é o casamento e já eduquei os meus filhos.” Casou-se muito jovem. Um dia, o pai chegou a casa a anunciar o enlace.


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SENTADA NA VARANDA, A MULHER DE 58 ANOS ALONGA O OLHAR ATÉ AO RIO QUE CORRE TRANQUILO E E ela resignou-se. Naquela época, quem não se resignava? “Obrigou-me a casar aos 15 anos.” Ele, o noivo, levava-lhe dez anos de avanço. Quem sabe quantos lhe levará agora? Sene cumpriu 100 dias de luto, como manda a tradição. E dispôs-se a seguir em frente, com os dez filhos já crescidos. “Vou continuar a lutar como lutava com o meu marido para ajudar os meus filhos e os meus netos.” Não é uma mulher vulgar. É a presidente da Associação de Mulheres Produtoras de Bubacalhau, feito a partir de Barracuda da Guiné. E tais andanças alargam a autonomia feminina – o marido e a família extensa deixam de ser as únicas fontes de solidariedade social ou os únicos detentores de recursos. As produtoras de bubacalhau organizaram-se em 1994, meses depois dos homens que ali se dedicam à pesca artesanal e à preservação do mangal. Ainda houve outra presidente antes de Sene, mas, pelo que ela se lembra, não era muito activa, não trazia grande dinâmica ao grupo. Associaram-se 22 mulheres. Aproveitaram uma formação da UICN – União Internacional de Conservação da Natureza. E essas primeiras já ensinaram outras. Agora, 35 trabalham nesta unidade de seca e salga de peixe, num edifício térreo, rosado, virado para o Rio Grande de Buba. Passam noites inteiras aqui, a trabalhar, à luz de velas. Quando chega o peixe têm de se lançar a ele. Não se podem demorar: arranjar gelo é

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AS MULHERES GUINEENSES SÃO OS MOTORES DAS FAMÍLIAS. SE OS HOMENS TÊM CAMPO, AS MULHERES TÊM DE IR LÁ. 68

um problema. O bubacalhau ocupa-as desde meados de Setembro até ao início de Novembro. Fora disso, fazem escalada de sinapa, bentana, barbo, tainha, sareia. Sentada na varanda, a mulher de 58 anos alonga o olhar até ao rio que corre tranquilo e dita o que a vida lhe ensinou. “A mulher guineense é a escrava da casa. A mulher guineense assume tudo o que se passa em casa. E, todos os dias, pensa: ‘O que será dos meus filhos? Não quer que eles passem pelo que ela passou. O que o homem decide é o que ela tem de fazer. Com as muçulmanas, pior.” Fala de forma vagarosa, como se pesasse cada palavra. Não perde o ar ponderado, um tanto sisudo. “As mulheres guineenses são os motores das famílias. Se os homens têm campo, as mulheres têm de ir lá. Eles não vão, ficam em casa, sentados. A mulher trabalha até se cansar. Volta para casa, encontra o marido sentado ou deitado, e tem de se ajoelhar para o cumprimentar.” A margem que cada uma ganha ao levar dinheiro para casa tem um tamanho variável. A dela chegava-lhe. “Sempre que precisava de ir a um encontro, o meu marido dava-me autorização. Eu saía e deixava o meu marido em casa. E agora, com essa liberdade, com esse costume… Será que um novo marido ia aceitar isso? Há dois anos, fui para Cacheu dar uma formação de técnica de salga. Foram duas semanas. Era Ramadão. Se fosse outro homem, não aceitava…” Não diz quanto ganha. Nenhuma associada o diz. Talvez porque a hipó-


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tese de gerir o próprio dinheiro não é óbvia para todas. Puxa-se por elas uma manhã, na unidade de salga, e elas dão apenas uma ideia. Compram barracuda por 3750 francos cfa. Tiram-lhe a cabeça, as barbatanas, as tripas. Seco e salgado, o peixe é vendido a 7500 francos cfa em Bissau. A produção caiu de uma tonelada para perto de metade. Perderam o apoio da UICN no transporte – deslocações facilitadas para Bissau. Passaram a ter peixe de sobra. Restava-lhes salgar menos. Perderam vitalidade. No início de 2010, foram auxiliadas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Ganharam novas instalações, novos materiais, alfabetização funcional, formação em gestão de pequenos negócios. Recuperaram fôlego. Têm de encontrar uma forma de garantir o escoamento do produto, que agora embalam com mais cuidado e com o rótulo Di Nôs i Mindjor. Privilegiaram venda directa e arrependeram-se. Houve quem lhes tivesse comprado o peixe por altura do Natal e da passagem de ano e nunca o tivesse pago. Agora, sonham com um intermediário que venha buscá-lo por seis mil francos cfa.


SAL FEITO EM CIMA DE UMA FOGUEIRA É uma luta: nem sequer por um por cento dos fogões da Guiné-Bissau passa sal iodado [1] e isso põe em risco o desenvolvimento cerebral das crianças mesmo antes de nascerem. Mas não é bem disso que fala Fátima Sanhá quando associa a palavra “luta” à palavra “sal”. Ainda agora, esteve a fazer sal lá em baixo, junto ao Rio Grande de Buba. Vem a andar, entre palhotas, passo largo. Transpira sem perder o sorriso largo, largo, nem a vontade de tocar nos outros. Está decidida a salvar a Associação das Mulheres Produtoras de Sal – AMPROSAL. “O presidente era um homem. Correu tudo mal. Agora estão as mulheres a levantar o projecto. E os homens estão a apoiar as mulheres a trabalhar, para o projecto seguir, para sairmos desta pobreza.” A tentativa de iodar sal remonta a 1992. O processo tem sido lento. Sal não iodado continua a vir de países vizinhos. No território nacional ainda não há produção industrial: por tradição, o sal é feito por mulheres, a título individual, através de fogões de três pedras. A AMPROSAL nasceu em 1998, ano em que estourou o confronto entre velhos companheiros de armas. E entortou-se. Fátima não sabe explicar o que terá passado pela cabeça do seu antecessor.

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ARTE ÁRDUA. AS MULHERES VÃO CORTAR LENHA AO MATO, QUE EM MUITOS LUGARES É CADA VEZ MAIS LONGE. 72

Sabe que o presidente andou anos pelas tabancas da região a arrecadar sal feito por milhares de mulheres, entre a campanha da manga e a campanha do caju. Acumulou umas cem toneladas. A UNICEF impulsionou a criação de uma unidade de iodatação, promoveu acções de formação entre as produtoras de sal, construiu um armazém, introduziu técnicas de embalagens apropriadas – sacos de 50, dez e cinco quilos e pacotes de 500 e 250 gramas. “O homem fugiu para Bissau. Ficámos sem meio de renovar os materiais. O sal estraga muito.” O sal esteve anos, em bruto, a estragar-se, no armazém de paredes brancas e grandes portas azuis que pertence à UNICEF. “O homem deixou muitas dívidas. Temos muitas dívidas para pagar. A nossa preocupação, agora, é pagar as dívidas para recuperar a confiança das produtoras de sal. Não podemos pagar logo tudo, senão ficamos sem fundo de maneio e não podemos trabalhar.” Arte árdua. As mulheres vão cortar lenha ao mato, que em muitos lugares é cada vez mais longe, porque a mancha tem vindo a diminuir. Trazem-na à cabeça. E estão ali, horas, em cima da fogueira, ao calor, ao fumo, à espera que a água evapore, que o sal apareça. Fátima pediu auxílio à RA – Rede Ajuda, Cooperação e Desenvolvimento. Como a secretária executiva lhe disse que era complicado, foi à Embaixada de Portugal, em Bissau, pedir o contacto da directora da ACEP – Associação para a Cooperação Entre os Povos. Nem o analfabetismo a atrapalhou.


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Pediu a alguém que lhe escrevesse uma carta e mandou-a para Lisboa. A Fundação Calouste Gulbenkian estava a financiar o projecto “Mulheres e Desenvolvimento – auto-emprego e auto-confiança”, que permitira àquelas duas organizações não governamentais ajudarem produtoras de bubacalhau e produtoras de sabão. Aceitou alargar o apoio a pescadores e produtoras de sal. Fátima já imagina a sede AMPROSAL, com armazém, alguidares, luvas, botas, panelas. “Se as mulheres tivessem escola, isso não tinha acontecido. Não temos escola, o homem enganou-nos. Ele está lá, sentado, na casa dele, em Bissau. E as autoridades não resolvem porque somos mulheres. Se fôssemos homens com escola isto não acabava assim.” Cresceu sem saber o que era a escola. Só há pouco entrou numa sala de aulas – aprendeu a escrever o nome. “Eu quero aprender mais que a assinar o meu nome. Eu quero aprender muito. Eu luto para que as mulheres possam ir à escola e possam aprender a assinar em todas as partes. Eu luto para que as mulheres não fiquem atrás. Eu quero que as mulheres também tenham os seus direitos. Nós estamos cansadas. Nós estamos cansadas de não ter direitos perante os homens. A minha luta é para que as mulheres possam ter iguais direitos. Por isso me colocaram como presidente.” Dirigir a associação não é fácil. “Ficamos debaixo das ordens dos maridos, mas quem se cansa somos nós. Se as crianças estão na escola, nós é que lutamos para comprar o


O QUE FÁTIMA QUER AGORA É IR ÀS TABANCAS COMPRAR SAL. PAGAR A QUEM O PRODUZIU. ARMAZENÁ-LO. IODÁ-LO. VENDÊ-LO. que é preciso.” O marido dela “está contente”. “Encoraja-me a lutar para sairmos desta pobreza.” Ela sabe levá-lo. Ainda há pouco, fez uma formação subsidiada. Pegou no dinheiro e comprou-lhe roupas. “Quando ganho dinheiro, entrego-lho: “Está aqui o dinheiro que eu ganhei. Decide o que vamos fazer com este dinheiro, como vamos ajudar os nossos filhos.” Teve oito. Morreram três. Restam-lhe dois rapazes e três raparigas. Os dois mais velhos já casaram. Os outros estão a estudar – o rapaz está a fazer o 11.º em Bissau, as raparigas o 5.º e o 6.º em Buba. Ganhou autonomia. “Antes de estar na associação, como mulher casada, muçulmana, não tinha ousadia de sair de casa sem pedir autorização. Eu dizia: ‘Preciso de sair, posso?’ Se ele aceitava, eu saía. Se não, não saía, esperava enquanto ele quisesse. Não tinha ousadia de sair. Assim é que eu estava.” Agora, pode. “Ele sabe que luto muito pelas mulheres e que ando à procura de melhor orientar a nossa vida. Mesmo que eu saia sem perguntar, ele não fica mal. As pessoas sabem que fui trabalhar.” Tinham 40 toneladas de sal iodado. O Programa Alimentar Mundial comprou-lhas. O resto estava estragado. Deitaram fora. Hoje, ainda se vê metade, no velho armazém de chão de cimento e tecto de zinco.

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Ana Cristina Pereira

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Sobrepõem-se sacos brancos, de serapilheira, com um desenho de uma mulher e, em letras vermelhas, os dizeres: “Sal iodado, Guiné-Bissau, 50 kg”. O que Fátima quer agora é ir às tabancas comprar sal. Pagar a quem o produziu. Armazená-lo. Iodá-lo. Vendê-lo. “Quero que as mulheres confiem em mim. Não quero que pensem que posso fazer a mesma coisa que o homem.” O Programa Alimentar Mundial é cliente garantido. Precisa de muito sal para usar nas cantinas escolares. E pode ser que a vizinhança ajude. Quando as mulheres do sal retomaram, depois de anos, as do bubacalhau já tinham uma reserva. Quando acabarem a reserva, baterão à porta. E talvez a arte se torne mais leve. Os olhos da mulher magra, de 50 anos, iluminam-se quando ouve falar em sal solar. Estender uma folha de plástico escuro no solo nivelado, deitar uma camada de água salobra, ir à sua vida, regressar volvidas cinco horas, recolher o sal? Um sal com mais qualidade, com melhor aparência, com compradores assegurados? Um dia destes vai a Guiledje ver isso.

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International Council for Control of Iodine Deficiency Disorders, volume 27, número 1, Fevereiro de 2008.

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“AQUELA DINÂMICA DE QUEM NASCEU PARA LUTAR” Chamo-me Alice Mané, mas toda a gente me chama Nené. Sempre valorizei a escola. Levantava-me às cinco da manhã para pilar arroz. Só assim podia ir às aulas. Mandavam-me lá fora cinco a dez vezes por dia. - Compra-me cebola. - Quero estudar. - Tens de ir. Não queriam que estudasse. Achavam que estava a perder tempo. O meu pai ajudou-me a continuar. Era professor. Deu aulas até à 4.ª classe e trabalhou na administração colonial portuguesa. Estudou na escola técnica. É um homem com visão, o que não o impediu de casar com várias mulheres. Foi até à quinta esposa. Uma morreu. Tem quatro. A mãe do meu pai não aceitava que ele se casasse com a minha mãe enquanto não se casasse com uma prima. Ela fez finca-pé. Ele fez-lhe a vontade. Casou-se com ela. Casou-se com a minha mãe. Depois, casou-se com uma senhora que organizava tudo. A quarta esposa é uma pessoa que a minha mãe tinha em casa. O meu pai quis casar-se com ela e a

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Demba BaldĂŠ

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ERA UMA MIÚDA COM SONHOS. TIVE SORTE. MESMO AO FANADO, AS MINHAS IRMÃS FORAM, EU NÃO. EU SOU PICUINHAS. minha mãe não disse que não. Talvez por falta de conhecimento, por dependência financeira…. A minha mãe pressionou-me muito. Depois dos meus 18 anos, ela só me dizia: “Vou morrer porque não aceitaste casar.” Lembro-me de ir às freiras, à costura. Homens, já com duas ou três mulheres, viam-me passar e iam lá a casa. Um dos antigos combatentes quis casar-se comigo. “Aceita. Tem reforma!” E o director de uma fábrica de algodão também. “Aceita. Tem carro.” O meu pai falava comigo: - Queres casar-te com ele? - Vou estudar. - Onde tens o dinheiro? - Não sei, mas vou estudar. Era uma miúda com sonhos. Tive sorte. Mesmo ao fanado, as minhas irmãs foram, eu não. Eu sou picuinhas. Pensava: “Ai, fazem corte, comem na mesma tigela, não lavam as mãos.” Estive em Bafatá até à 9ª classe. Mudei-me para Bissau porque lá não havia 10.ª classe. Fiquei em casa de um tio que foi ministro dos Negócios Estrangeiros. Integrei-me rapidamente. Entrei na associação de estudantes. Já tinha aquela dinâmica de quem nasceu para lutar. A esposa do meu tio ajudou-me a evoluir. Cada vez que ela ia a Portugal, levava-me. Ia para limpar, cozinhar, tomar conta das crianças. E era isso que fazia, mas ouvia as pessoas a falar, via televisão, percebia coisas.

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AINDA ME LEMBRO DA PRIMEIRA TABANCA A QUE FOMOS FALAR DE ALFABETIZAÇÃO FUNCIONAL. NÃO ENCONTRÁMOS SENHORAS. 82

Afinal, os homens cozinham, limpam, fazem tudo! Isso era notícia! O meu tio pediu bolsa à Fundação Calouste Gulbenkian. Com dificuldade, estudei sociologia em Portugal. Fui em 1987. Perdi no 3º ano. Fiquei sem bolsa. Terminei o curso com uma bolsa da Cooperação Portuguesa. Co-fundei em 2002 – com outros 16 guineenses – a organização não-governamental RA – Rede Ajuda, Cooperação e Desenvolvimento, com o objectivo de melhorar as condições das populações desfavorecidas nas zonas periurbanas e rurais. Sou secretária executiva. A maior dificuldade das mulheres da Guiné-Bissau é a dependência económica. Quando dependem do marido, submetem-se. Analfabetismo também. Falta de informação cria obstáculo. É preciso sensibilizar a sociedade para a importância da educação. A educação traz mudanças graduais. Ainda me lembro da primeira tabanca a que fomos falar de alfabetização funcional. Não encontrámos senhoras. Os senhores estavam sentados, a descansar, debaixo do mangueiro. As senhoras estavam todas a trabalhar na bolanha. Anunciámos que estávamos a pensar fazer um projecto. - Têm alfabetização? - Não temos, mas isso é para as mulheres. Elas é que precisam de aprender a ler. - Vocês sabem ler? - Não, mas elas é que precisam. - Podemos falar convosco e vocês transmitem? - Melhor esperarem por elas. Esperámos uma hora e tal. As senhoras chegaram. “Ai… o meu filho não


tomou banho. Ainda tenho de preparar arroz para o meu marido. Só comeu um bocadinho de arroz que deixei.” Não têm tempo. Disseram: “Se nos querem ajudar, façam isso à noite. À noite, vamos um bocadinho.” No início, era um problema. De dia, as senhoras tinham muito trabalho. De noite, os maridos não as deixavam sair. “Mulher casada não anda de noite.” Andámos a fazer acções de sensibilização. Começámos a fazer furos de água nas tabancas. Isso facilitou um bocadinho. Temos o projecto a funcionar em 30 tabancas da região de Buba. As aulas vão das seis às sete e meia. Arrancam em Janeiro. Em Maio, há intervalo por causa da campanha da castanha de caju. Em Junho, começam as chuvas. As mulheres vão para a bolanha. Trabalham nisso vários meses. Recomeçam as aulas em Outubro. Em Dezembro, acaba o ano lectivo. Temos centenas de mulheres a fazer alfabetização funcional em diversas zonas. São três níveis de ensino. Há muitas desistências. Nunca têm tempo! Alguns ciclos de alfabetização dão algum incentivo. O maior incentivo que pode haver é o microcrédito. Não faltam. Dá-lhes jeito. Algumas acham que é suficiente saber escrever o nome. Ficam contentes só por assinar o bilhete de identidade e o cartão de eleitor. Gabam-se: “Este ano votei e não pus o dedo.” Também ficam muito contentes por conseguirem distinguir os medicamentos ou reconhecer os números de telefone. Algumas conseguem escrever mensagens por telemóvel ou cartas. Tentamos aliar a alfabetização à formação em pequenos negócios e ao microcrédito. A ideia é potenciar o desenvolvimento sustentável.

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Ana Filipa Oliveira

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Há muito trabalho para fazer. Fui ganhando cada vez mais consciência disso através dos órgãos de comunicação social, das viagens, das formações. E gosto de ajudar, sobretudo mulheres e crianças. Neste país, é muito difícil ser mãe, esposa, profissional. Eu sou um exemplo disso. Estou com 48 anos. Os meus filhos estão grandes. O rapaz está com 20 e a rapariga com 18. No início, eu trabalhava até às dez da noite e o meu marido ficava à minha espera. Eu vinha àquela hora e ainda tinha de cozinhar e de servir. Eu pedia-lhe: “Ajuda-me.” Ele fazia barulho. Até que se cansou. Começámos a viver juntos quando estávamos em Portugal a estudar. Ele dizia: “Sei fazer cafriela.” E fazia. Quando chegámos aqui, disse-me: “Se os meus familiares me vêem a cozinhar, dizem que não sou homem.” Eu protestei: “Mas lá cozinhavas!” Ele respondeu-me: “Aqui prefiro pagar.” Pagamos a alguém para cozinhar. Mas eu tenho de pôr no prato. E devo cozinhar durante o fim-de-semana para ele ficar contente. Se não cozinhar, fica triste. Embora seja mais evoluído do que o homem tradicional da Guiné-Bissau, sempre sobra alguma coisa. O meu marido é licenciado em gestão. Tem uma empresa de madeiras e uma agência de pescas. É uma pessoa com muita cultura geral. Lê todos os dias antes de adormecer. Ajuda-me a melhorar profissionalmente. É a tal coisa: tive sorte, era aquela menina com sonhos…

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DJABI PEDE AOS PAIS PARA DEIXAREM AS MENINAS ESTUDAR Djabi Cassamá está estourada. É directora da Escola do Ensino Básico e Unificado de Samboldo. E ser directora da Escola do Ensino Básico e Unificado de Samboldo é gerir 13 professores mal pagos, amiúde queixosos de salários em atraso, e 420 alunos tantas vezes sem material. De segunda a sexta, levanta-se bem cedo. Entra na escola às 7h00. Às vezes, sai às 15h00, outras às 16h00. “Faço isso para poder controlar, porque na minha escola há três turnos. lguns professores entram às 7h00, saem às 11h00. Outros entram às 11h00, saem às 15h00. E outros entram às 15h00, saem às 19h00.” O que tanto controlava Djabi no início do ano lectivo? “Estamos com falta de professores, mas já distribuímos os horários. Em vez de mandar as crianças para casa, retenho-as até comerem a papa. Às 15h15, se o professor não aparecer, mando para casa.” Ainda não recebera as autorizações para integrar os cinco professores contratados. Nem imaginava que no dia seguinte o sindicato dos professores do ensino básico e secundário anunciaria uma greve de um mês e meio a exigir o estatuto da carreira docente e o pagamento de salários em atraso.

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NO INÍCIO, VIU-SE AFLITA. TINHA TÃO POUCA IDADE E TÃO POUCA PREPARAÇÃO. E ERAM TANTAS CRIANÇAS, TANTAS CARÊNCIAS.

Ana Cristina Pereira

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Não desarma, apesar de só ter concluído o liceu. No início, viu-se aflita. Tinha tão pouca idade e tão pouca preparação. E eram tantas crianças, tantas carências. Com o tempo, aprendeu a lidar com as crianças, a avaliá-las. Tantas vezes já lhe aconteceu ensinar sem livros. “Tenho experiência, assisti a seminários. E, quando vou a Bissau, compro livros que me ajudam a transmitir a mensagem às crianças.” Há cada vez mais crianças a aprender a ler e a escrever. Os dados oficiais indicam-no: a taxa de matrículas nos primeiros níveis de ensino subiu de 42 para 65 por cento entre 2000 e 2010. Nessa mesma década, o rácio entre inscrições de raparigas e de rapazes cresceu de 0,67 para 0,94. “O Programa Alimentar Mundial faz aquela cantina. E no fim do ano dá a cada aluna alguns quilos de arroz para motivar.” O pior é Março, Abril, Maio, Junho. Na época da campanha de castanha de caju, a comunidade concentra-se naquilo. De vez em quando, Djabi vai à rádio comunitária Sintchan-Occo pedir às famílias para libertarem as crianças, para que possam ir à escola, para que não percam o ano. Não lhes pede para as crianças não trabalharem. A castanha de caju – trazida pelos portugueses do Nordeste do Brasil e levada pelos portugueses para a Índia, que agora compra quase toda a produção nacional – requer uso intensivo de mão-de-obra. Djabi pede-lhes para organizarem o tempo de modo a que as crianças possam conciliar o trabalho com a ida às aulas. Fá-lo enquanto coordenadora regional da Rede da Campanha de Educação

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para Todos, organização não governamental empenhada no acesso gratuito ao ensino. “Queríamos ir porta a porta, mas não temos meios. Oferecem-me tempo de antena. Vou lá dar as minhas opiniões, sensibilizar a comunidade. A mensagem passa duas vezes por semana.” Adulai Djau, líder da Rede Nacional de Luta Contra a Violência de Género, admira-lhe a dedicação: “O Estado devia dar prioridade absoluta a programas de educação que permitissem o exercício de cidadania às raparigas. Chegam à 4.ª classe, vêm os pais, tiram, dão em casamento. O Estado não, faz nada: ‘É sua filha’. É sua filha, mas quem a protege?” Não fala de cor. O Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza II refere-o de uma forma muito directa: “Embora as taxas de inscrição de raparigas nos níveis primário e secundário estejam quase se equiparando às dos rapazes, as chances de as raparigas terminarem os estudos são entre 1,4 e duas vezes menores que as dos rapazes.” Djabi nota-as cansadas. “Pedimos aos pais para dividirem o trabalho doméstico ao meio – se as raparigas vão buscar a água, os rapazes vão lavar os pratos. Pedimos aos pais para não penalizarem só as raparigas com trabalho, para lhes darem tempo para estudar. A comunidade é muito difícil...” Não penalizou as suas. A primeira filha fez o 11º ano, casou, já vai no terceiro filho. A segunda acaba de concluir o curso de Administração em Bissau. O terceiro e o quarto filhos também lá moram, mas estudam


O PIOR É MARÇO, ABRIL, MAIO, JUNHO. NA ÉPOCA DA CAMPANHA DE CASTANHA DE CAJU, A COMUNIDADE CONCENTRA-SE NAQUILO. Medicina Geral. Os outros três estão por cá, pelo Gabú, no básico ou no secundário. Também teve os seus desgostos. Reagiu de forma agressiva ao segundo casamento do marido. “Estive muito radical. Tinha medo que nos déssemos mal, que não nos entendêssemos, que brigássemos muito. Às vezes, quando o homem tem duas mulheres, não faz força para as juntar e cada uma fica a puxar para seu lado. Isso acaba por levar o homem à pobreza.” Naquele final de tarde, o marido estava sentado num sofá. Paralisou-o uma trombose. Djabi chamou a cumbossa para a varanda. E a cumbossa ficou a ouvi-la falar em português, com ar de quem não compreende mas confia. “Com o tempo, habituei-me. Compreendemo-nos uma à outra. Cooperamos. Eu sou funcionária. Eu estou muitas vezes fora. Tenho aulas, reuniões, seminários. Ela é que cuida das nossas crianças. Ela é que fica com o nosso marido. Se temos qualquer coisa, ela vende aqui, à porta de casa.” Crianças pequenas corriam pela casa. Ali, viviam 15 pessoas. O homem, as duas mulheres, nove filhos, três netos. “Com ele doente, se não estivéssemos juntas, como íamos passar?”

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A MENINA DA RÁDIO ANDA A TIRAR MULHERES DO CASTIGO A AD – Acção para o Desenvolvimento queria mais alguém em Guiledje. Maimuna Cassamá alistou-se, apesar daquilo ficar “lá longe”, a três quilómetros da fronteira com a Guiné-Conacry. “Queria convencer a organização de que sou capaz. Pensei: ‘Sou a única que vai ficar lá, mas vou tentar fazer o que está na minha mente.’” Desloca-se de moto de tabanca em tabanca. Ensina a fazer sal solar e a cultivar legumes. Tenta convencer adultos a mandarem crianças à escola. Tem um programa sobre a vida das mulheres na comunidade que é emitido na rádio comunitária Lamparam. “Estou com elas. Sou como elas. Se estivesse diferente, se achasse que era mais, elas não falavam. Como faço? Visto-me como elas. Quando falam uma língua que eu percebo, falo essa língua. Nunca sabem que estou a gravar. Se sabem, às vezes, não querem falar.” Afinou estratégias. “Estou sentada. Tenho o saco em cima da mesa ou dos joelhos. Faço umas brincadeiras. Se é mandiga, falo mandinga. Elas ficam admiradas. ‘Sabe falar mandinga?’ Depois digo: ‘Agora vamos falar em crioulo. O que se passa aqui?’ Elas falam à vontade, porque não sabem que estou a gravar.”

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NOS ÚLTIMOS TEMPOS, SENTIA-ME A ANDAR PARA TRÁS. QUERO ARRANJAR VIDA! QUERO TER MAIS CONHECIMENTO, MAIS PRÁTICA. 94

Amiúde, alguma mulher aproxima-se dela: “Ouvi uma voz na rádio. Parece que é a minha.” Maimuna confirma. E a entrevistada alegra-se. “Falei muito bem, afinal.” Elas enchem-se de curiosidade. “Como gravaste? Com o telemóvel?” Mas ela não se desmonta. “É um segredo.” Ninguém parece incomodar-se com esta sua prática – reprovada por qualquer código deontológico de jornalistas. Ainda há pouco, contou-lhe uma senhora que, ao ouvir a sua voz na rádio, chamou os filhos. “Parece que eu estou a falar.” Os filhos refutaram: “Não. Não é. Não pode ser.” E ela insistiu: “É! Escutem o que eu estou a dizer!” A radialista riu-se. “É uma alegria. Se vissem o gravador, não queriam. Depois, até pedem para dar entrevistas. Não têm vergonha de falar.” Ela também se diverte com estas andanças. A sua prioridade, porém, é ensinar a fazer sal solar. “O projecto é um sucesso. Foi uma surpresa para mim e para a gente da AD. Nos últimos tempos, sentia-me a andar para trás. Quero arranjar vida! Quero ter mais conhecimento, mais prática.” No primeiro ano, houve grande disparidade: umas tabancas produziram cento e poucos quilos, outras perto de dois mil. Consequência de dúvidas e empenho. Houve quem temesse não lucrar com a experiência. “O sal é para nós?”, perguntavam-lhe uma e outra vez. E houve quem nem sequer se fiasse no método. Seria possível fazer sal sem suor e lágrimas? Poder-se-ia deixar o trabalho por conta do sol e do vento? “Este projecto


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é para tirar as mulheres do castigo de fazer sal com fogo”, assegurava-lhes ela. Ficaram maravilhados ao ver a flor de sal brilhar. Gosta de estar ali, no mato, a ensinar algo de útil àquelas mulheres que tanto trabalham e tão pouco ganham. “Trabalham menos, ganham mais. Um quilo de sal solar custa até 500 francos cfa. Há muitos compradores. A gente de pesca compra para fazer escalada.” Conhece a AD há muito. “Sempre gostei de trançar as pessoas. Ia para debaixo de um mangueiro fazer tranças e cobrava para poder ir à escola.” Um dia, estava na 6.ª classe, ouviu anunciar uma rádio comunitária. O que era isso? Era uma rádio feita pela comunidade para a comunidade. Era a Rádio Voz de Quelélé. Entusiasmou-se: “Eu gostava de ser jornalista.” Inscreveu-se na AD. “Quando vamos começar a falar no microfone?”, perguntou. Refrearam-na: “Estás com muito pressa! Não é assim.” Tinha de aprender o bê-á-bá da rádio. “O meu primeiro trabalho era dedicatória. Estava lá para mandar música. Comecei logo a falar. Era uma dificuldade. A gente ficava a rir em casa. Quando saía da rádio, as pessoas diziam: ‘Esta jornalista nem sabe falar crioulo!’ Isso não me importava. Queria aprender.” Aprendeu a fazer outras coisas. Talvez se tenham apressado a pô-la a ler comunicados e notícias em crioulo. Pedia tantas vezes que mudassem as palavras que não conseguia pronunciar. Insistiam: “Faz força para chamar


a palavra.’ E ela insurgia-se: “Não. É melhor tirar as palavras que eu não sei chamar.” Teve um programa infantil. De repente, estava a ler comunicados e notícias em português. “Ler em português era um problema, porque naquele momento estava na 7.ª classe. E há muitas palavras que nem gosto de chamar. Eu chamava outras. E a gente ficava a rir em casa.” Aperfeiçoou-se. Esteve no Mali. Tirou um mini curso de comunicação. Ensinaram-lhe a fazer uma entrevista, a escrever uma notícia, uma reportagem. Também aproveitou uma formação na Guiné-Bissau. Lembra-se de se juntarem animadores de rádio de Bissau e São Domingos a fazer exercícios em diversas tabancas. E de frequentar um curso de rádio em Portugal. Assumiu as rédeas do Clube Jovem. Aprendeu um bocadinho de jornalismo televisivo. Passou pela Escola de Artes e Ofícios de Quelélé. Tirou um “curso de auxiliar de infância” e até trabalhou no Centro de Educação Infantil. Mas nunca deixou de fazer rádio. Coordena o Núcleo de Mulheres Radialistas – da Rede Nacional de Rádios e Televisões Comunitárias. “A minha maior luta é integrar mulheres na rádio. Tirando isso, a minha luta é Guiledje”. São muitas horas desde a sua casa, no Bairro de Quelélé, até ao seu trabalho. Instalou-se em 2011 no sítio onde o exército português se instalara havia 47 anos, na tentativa de impedir a entrada de armamento e de

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GOSTA DE ESTAR ALI, NO MATO, A ENSINAR ALGO DE ÚTIL ÀQUELAS MULHERES QUE TANTO TRABALHAM E TÃO POUCO GANHAM. 98

víveres para o PAIGC, via “caminho di povo” ou “corredor da morte”, consoante o lado da luta armada. Por ora, o Núcleo Museológico de Guiledje é pouco mais do que uma sala com utensílios e textos de época. A maqueta dá uma ideia do que pode ter sido aquele lugar: rede dupla de arame farpado, trincheiras a céu aberto, trincheiras subterrâneas, morteiro, posto de rádio, posto de socorro... “Pepito” quer recuperar o aquartelamento, sonha fazer dele um ponto de reencontro de antigos inimigos, uma atracção turística, já a cheirar a Parque Nacional de Cantanhez. Apesar da diversidade biológica e cultural, o turismo na Guiné-Bissau está quase por explorar. Durante a guerra da libertação, a floresta avolumou-se na península de Cubucaré. Encolheu a zona sujeita a queima e corte. Regenerou-se a vegetação dos pomares de coleiras. Tudo se adensou, inclusive ali, em Guiledje, área na qual se produz arroz pelo sistema de sequeiro. Não é que não lhe custe estar neste fim de mundo. Namora desde os 11 anos. Vive com o namorado desde os 14. Tem dois filhos: uma rapariga de 9 anos, um rapaz de 18. Sentia que tinha de ir. E o companheiro, electricista de profissão, voluntário da Televisão Comunitária de Quelélé, não a impediu. “Estou na área há muitos anos. Eu disse-lhe que queria ver qual era a realidade, que queria ver o que era capaz de fazer. Ele concordou. É uma zona muito verde. Dá para pensar em muitas coisas. Dá para pensar em muitas iniciativas para fazer com as mulheres.”


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MILZA ENCONTROU O CAMINHO NO MATO 101

Milza Nanqui não sabe a que horas parte o Baria. Ninguém sabe a que horas parte o barco grande e branco que liga Bissau a Bubaque. A maré é que manda. O capitão só obedece. Sexta-feira, azáfama no porto. Um homem sentado num banquinho com dois blocos de bilhetes: um amarelo, outro azul. Quem viaja no andar inferior acomoda-se no chão – entre arcas frigoríficas, sacos de serapilheira, cestos artesanais. Fala-se alto. Representa-se um pouco. Às vezes, canta-se. Milza viaja no andar superior, o que tem mesas de madeira, bancos de correr, ecrã gigante. Está habituada a circular. Nasceu em Bissau, mas o seu português tem sotaque lisboeta. Partiu pequena para Portugal. Entre os quatro e os 14 anos, estudou no Cacém. Quando regressou, Catarina Silva, a melhor amiga, até gozava com ela: “Eu é que sou branca e tu é que não sabes falar crioulo!” Aprendeu o crioulo sem esquecer o português. Estudou na Escola Portuguesa até o casamento dos pais se desfazer, estava ela no 10.º ano. Os pais perderam muito dinheiro. E Milza, que já se habituara a viver na praça


O SEU MUNDO TINHA-SE DESMORONADO. E A RAPARIGA DE CABELOS NEGROS, LONGOS, LISOS, IA-SE DESMORONANDO COM ELE.

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com a família inteira, mudou-se para o Bairro da Ajuda, com o pai e com os irmãos. A guerra de 7 de Julho de 1998 forçou-a a uma nova mudança. Primeiro para Bafatá, para casa do avô paterno. Como o confronto era urbano, houve um amplo movimento de famílias para as zonas rurais. Muitos saíram do país também, como lhe aconteceu depois. Instalou-se em Dacar, onde a mãe, que trabalha para o Banco da África Ocidental, fora colocada. O seu mundo tinha-se desmoronado. E a rapariga de cabelos negros, longos, lisos, ia-se desmoronando com ele. “Foi loucura. Parei de estudar. Em 2001, fiquei grávida. Tive uma filha. Em 2002, fiquei grávida outra vez. Tive um filho. Não tinha trabalho. Fui sustentada pelos meus pais até 2005.” Recompôs-se. Trabalhou como hospedeira de terra de uma companhia de aviação falida antes de descobrir a sua vocação, a mesma que agora a faz apanhar o barco que liga Bissau a Bubaque. Cristina Silva, uma amiga bióloga, desafiou-a a acompanhar estudantes de mestrado e doutoramento de universidades portuguesas. Decorria 2008. De repente, Milza convertia-se em intérprete de crioulo-português de equipas de investigadores que se aventuravam pelo Parque Nacional do Cantanhez e pelo Parque Nacional das Lagoas de Cufada. A maior parte das pessoas da praça não aprecia o trabalho no mato. É duro, sobretudo na época das chuvas. Ora as estradas parecem um lamaçal, ora têm valas de profundidade variável, por vezes impossível de

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COMEÇOU POR LANÇAR UMA RÁDIO COMUNITÁRIA. NUNCA TINHA FEITO RÁDIO. ANDOU POR VÁRIOS SÍTIOS A VER RÁDIOS A FUNCIONAR. 104

contornar. Quem acompanha equipas de investigação tende a exigir temporadas curtas, intervalos frequentes. Ela aguentava-se 15, 17, 19 dias, conforme o contrato. Gosta do mato. É um gosto que lhe vem dos dias de meninice passados com o pai a acampar. Adorava andar pelas tabancas, reunir com os chefes, explicar quem eram aqueles estrangeiros e quais os seus planos: “Olha, homem grande…” Admirados com o seu jeito, investigadores que com ela trabalhavam recomendavam-na a outros. Era como se fosse “herança” da ciência. Agora, ocupa um lugar pensado para alguém com formação superior: coordenar um projecto da organização não governamental francesa Noé Conservation, no Parque Nacional de Orango. O arquipélago dos Bijagós é um reservatório de uma diversidade biológica ímpar: tartarugas marinhas, manatins, lontras, hipopótamos, crocodilos, golfinhos, tubarões. Os muitos recursos atraem gente da pesca industrial da Europa e da Ásia e gente da pesca artesanal da sub-região, sobretudo do Senegal e da Guiné-Conacry, que até ergueram aldeias costeiras. Começou por lançar uma rádio comunitária. Nunca tinha feito rádio. Andou por vários sítios a ver rádios comunitárias a funcionar. Depois, fez uma sondagem. “Ia de tabanca em tabanca a perguntar se queriam uma rádio comunitária e para quê. Ia de bote. Dormi duas noites em cada tabanca. ”


Cristina Silva

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Queriam. Dava-lhes jeito para noticiar as mortes. E para alertar os guardas do parque para a presença de pescadores de países vizinhos, que parecem não se atrapalhar com os bancos de areia e os labirintos de canais que durante tantos anos travaram a pesca comercial. “Ficámos dois dias e já não nos queriam deixar ir. Ao fim e ao cabo também éramos médicos sem fronteiras. Às vezes, tínhamos trabalhos para fazer, o combustível já não chegava para tudo, mas levávamos alguém ao médico tradicional.” Ter uma rádio comunitária implica gastos. Impunha-se encontrar um modo de a financiar. “Se querem uma rádio, temos de pensar como é que se pode fazer isso. A rádio é vossa. Como é que a vão sustentar? Vão vender produtos locais? Fazer espectáculos de teatro ou folclore e cobrar? Pôr dinheiro numa caixinha para comprar combustível e materiais, como cassetes ou canetas?” Também tinha de encontrar gente com vontade de fazer rádio. Encontrou oito mulheres e oito homens. Desafiou os futuros ouvintes: “Se vamos fazer uma rádio, temos de ter um símbolo da rádio.” Levou folhas, canetas. Recebeu 250 propostas de logótipo da comunidade. Ganhou o desenho de uma braçadeira tradicional. A rádio Okinka Pampa foi inaugurada em Outubro de 2011, em parceria com o Instituto de Biodiversidade e das Áreas Protegidas. Com um plano para emitir todos os dias – três a quatro horas. Notícias nacionais e internacionais chegam via Rádio Sol Mansi, uma das rádios mais ouvidas do país.


De produção local, programas de saúde, ambiente, cultura, dia-a-dia. A reserva é outro mundo. É uma aventura para lá chegar. Quatro horas de barco, sexta-feira, de Bissau a Bubaque. Duas horas de barco, sábado, de Bubaque a Orango Grande. Com vacas, porcos, galinhas. Milza tem ficado mais tempo por lá do que em Bissau. Ficará ainda mais agora que foi promovida de coordenadora de rádio comunitária para coordenadora de desenvolvimento comunitário. O namorado e os filhos terão de se ajustar.

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ENTRE A FAMÍLIA E A PROFISSÃO 109

Apresenta-se como a primeira mulher recrutada pelo Ministério do Desenvolvimento Rural para fazer animação. Não o faz para se gabar. Por ela, tinha ficado na secretária, sentada, frente à máquina de escrever. Carlos Schwarz, mais conhecido por “Pepito”, então no Departamento de Experimentação e Pesquisa do Arroz, é que não deixou: “Não és mulher para ficar à secretária. Tens de aproveitar a tua energia.” Chorou baba e ranho. “Isso não é trabalho de mulher!” Sábado Vaz achava que trabalho de mulher era escrever, receber pessoas, “fazer mordomia”. O engenheiro agrónomo mandou-a espreitar o que se passava lá fora. E ela, durante 45 dias, viajou por diversos países africanos para conhecer exemplos de integração de mulheres no desenvolvimento rural. “Vi mulheres a conduzir tractores! Tirei as dúvidas todas. Cheguei aqui cheia de energia.” Trabalhou oito anos na extensão rural. Enquanto lá esteve, fez uma formação em redes sociais e outra em técnica agrícola. “Comecei a trabalhar cedo. Tinha 20 anos. Francamente, não era mulher para ficar sentada. Isso implicou muito na minha vida, mas não me


DEVE VER-SE A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA E A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO E DISCUTIR COM OS CHEFES PARA TER TEMPO PARA TUDO. 110

arrependo. Não é só benefício de dinheiro. É conhecimento, experiência. Conheço a Guiné-Bissau inteira. Sul, Norte, ilhas.” A mulher de pele lisa e olhos claros não é só um poço de energia, é também um sorriso rasgado e frequente. Augusta Henriques convidou-a para trabalhar no gabinete de apoio à criação de organizações não governamentais. Ela aceitou. Primeiro, sentou-se a aprender a ensinar. Depois, ajudou a preparar pessoas ansiosas por vestirem a pele de animadoras rurais. Há 20 anos, “Pepito” fundou a AD – Acção para o Desenvolvimento e Augusta Henriques fundou a Tiniguena, ambas viradas para a conservação, o desenvolvimento e a cidadania. Augusta levou Sábado com ela. E é lá que ela tem estado. Trabalha no arquipélago dos Bijagós. Coordena a Área Marinha Protegida de Gestão Comunitária das Ilhas Urok. A vida desta mulher de 48 anos divide-se entre Bissau e Formosa, a maior das três ilhas do delta do Geba, as primeiras que encontra quem vem do continente africano. Fica dez dias na cidade, 20 dias entre mangais, palmares e florestas que bordejam o habitat de múltiplas espécies, algumas bem raras. Só na época das chuvas e no Natal fica mais tempo em casa. Das nove da manhã às nove da noite só pára uma hora para almoçar. Há sempre muito que fazer. Despachos para assinar, contas para acertar, hóspedes para acomodar, reuniões para ter com as comunidades… Além das três ilhas, a área engloba ilhéus e bancos de areia que oferecem repouso à vida animal. Às vezes, para ter uma reunião, Sábado faz viagens de duas horas numa canoa com um motor de 15 cavalos.


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Conceição Vaz, “Titina”, uma prima quatro anos mais velha, criada na mesma casa, na mesma cama, também começou a vida profissional na extensão rural. Foi supervisora no Sonaco. E responsável pela área da horticultura no Projecto Integrado de Biombo. Ao fim de três anos, estava a trabalhar com “Pepito”. Continua com ele. Trabalha na AD. Gere a Mutualidade de Crédito do Bairro de Quelélé. Prepara formação. Organiza concessões de créditos. Avalia o seu impacte. Trabalhar no mundo rural implica passar muito tempo longe de casa. E isso pode ter consequências na vida pessoal e familiar. Sábado sente-o – Sábado sentiu-o toda a sua vida de adulta: “Não é a todo o momento que o companheiro e os filhos estão satisfeitos. Os meus filhos não tiveram todo o acompanhamento que precisavam. Eu não tenho tempo. Sobretudo o mais velho fica chateado. Julga-me. Diz que a mãe não tem paciência para ele, que a mãe gosta é de trabalhar. Mas, para eles terem uma vida boa, a mãe precisa de trabalhar. Sempre há uma escolha. Tento agradar à família e trabalhar. Isso cansa-me muito.” Os filhos têm de aceitar. Não têm outra mãe. O marido não. O marido não estava feliz. Sábado retirou-se. “As mulheres trabalhadoras têm dificuldade em ter a compreensão dos maridos. Não dependem deles. Isso cria instabilidade familiar. Também não criámos momentos para estarmos juntos. Ele tinha mais necessidade de estar com a mulher. Eu inclinei-me totalmente para a vida profissional.” Houve alguma pressão externa.


“Na cultura africana, ter uma mulher em casa é uma coisa, ter uma mulher que anda muito é outra. Mesmo a família do marido fica chateada. Às vezes, interfere na relação. ‘Tu não tens mulher. Essa mulher é do mundo. Mulher que faz uma semana e sai não é tua.’” Procura um equilíbrio. “Estou a tentar criar um espaço intermédio, porque a vida pede para trabalhar, mas também pede para criar uma relação com a família. Deve ver-se a importância da família e a importância do trabalho e discutir com os chefes para ter tempo para tudo. Naquela altura, não tinha experiência de vida. Não me arrependi, mas estou a dar a volta para colmatar os erros.” Quem disse que descarta a possibilidade de ter um homem na sua vida? Gosta de se sentir “protegida”. Só não quer envolver-se com alguém até os filhos “criarem estratégias de sobrevivência”. Os filhos já cresceram. O mais novo tem 22 anos. Estuda nos Estados Unidos. O mais velho tem 27. Tirou um curso profissional de electrotecnia. Trabalha na construção civil. Quer ir para o ensino superior. Sábado está a tentar ajudá-lo a arranjar uma bolsa de estudo para a China. - Uma mulher precisa de trabalhar, mas também precisa de um companheiro – entende. - Uma mulher sem companheiro não é respeitada. Qualquer homem pode chegar lá e gozar, falar o que quiser. Se há uma pessoa ao lado dela, não é qualquer um que pode falar – opina a prima, que se junta a ela, numa tarde, no centro de Bissau.

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EU ESTAVA EM CASA A VER OS DEPUTADOS A FAZER AQUELAS GUERRINHAS, A CHUMBAR DOCUMENTOS MUITO IMPORTANTES. 114

- Não é por isso. Não dou a cara para os homens me faltarem ao respeito. Sinto-me sozinha. Às vezes, precisava de partilhar ideias, desabafar um pouco. Por temer algo deste tipo, “Titina” desistiu do trabalho de campo. - Gostava muito de trabalhar na horticultura, mas em Bissau não há espaço para isso. Só no mato. Como sou casada, fico aqui. Recebi essa formação e não estou a pôr em prática, mas…. - É uma escolha – atalha a prima. “Titina” assume a escolha. Também não se arrepende de a ter feito. Encontrou forma de a compensar. - Dou formação no Norte e no Sul. Estou a transmitir conhecimento. As formações duram duas, três semanas, não muito, porque tenho de voltar para continuar a minha actividade aqui. Tem três filhos. O mais velho estuda no Brasil – há-de ser bibliotecário. A filha frequenta a 9.ª classe – teve uma criança na adolescência, ficou três anos em casa. “Não gosta de se agarrar seriamente aos estudos.” E o filho mais novo, que ainda é um miúdo, está na 7.ª classe. - Trabalho muito pelos meus filhos. Independência financeira ajuda. Neste momento, o meu filho mais velho está no Brasil e é uma preocupação, porque o meu marido trabalha na função pública. Salário de função pública não dá para nada. Se arranjar dois sacos de arroz já é muito. Ele é director de recursos humanos no Ministério de Luta Contra a Pobreza. É uma mulher de convicções. Já se sentou na Assembleia Nacional


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Popular. Foi eleita deputada em 2004, nas terceiras eleições legislativas multipartidárias realizadas em 30 anos de independência. - Fui lá para defender as mulheres e as crianças. As mulheres e as crianças passam muito mal. Eu estava em casa a ver os deputados a fazer aquelas guerrinhas, a chumbar documentos muito importantes. Eu disse: “Como mulher, vou batalhar para passar como deputada e fazer com que leis importantes para as mulheres e para as crianças passem. Conseguimos aprovar a lei sobre direitos das crianças, que já estava na assembleia há muito tempo.” Sabe que as leis não bastam. Acha que, cá fora, a “luta” começa dentro da casa de cada um. - Faço o meu direito. Não ultrapasso o meu direito. Os homens também têm deveres. Não é só trazer mulher para casa! Sábado interrompe-a: - Nós mesmas incentivamos [o comportamento machista] na forma como educamos os nossos filhos. As tarefas que damos aos meninos não são iguais às que damos às meninas. Eles comem de manhã e saem e elas ficam a lavar os pratos. Isso é um problema cultural. Tem de se trabalhar na base. Contra ela fala: - Quando o meu filho foi para casa do pai, nos EUA, ele telefonou-me: “O gajo não sabe cozinhar!” E eu disse-lhe: “Introduz o teu filho no mundo da cozinha.” O que está em casa faz esparguete. Quero mandá-lo para

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fora para aprender. Eu sou mãe galinha. Os filhos ficam com mimo. Não querem fazer nada. - O meu estava com a minha irmã. A minha irmã não tinha filhos. Ele era filho e filha. Sabe fazer todo o trabalho de menina: lavar, cozinhar, tudo. Agora está no Brasil e cozinha para ele. Ele diz: “As minhas colegas aqui não sabem lavar nem cozinhar. Eu é que estou a ensinar.” Tudo se pode inverter. Tudo se pode inverter.


UMA MULHER DE FIBRA COMO TANTAS M’Bom João Longa está a despachar bem a tainha. Por este andar, à hora do almoço está em casa. É sábado. Compradores e vendedores afluem, em candonga ou toca-toca, e esfumam-se no labirinto que é o mercado de Bandim. Entrando lá em cima, pelo Bairro de Mindará, temperos caseiros, caldos industriais. Em bancas pequenas, quase sobrepostas, djacatu, candja, mancarra… Passa-se por muito sapato usado, porventura vindo do estrangeiro num contentor qualquer, pronto-a-vestir, tecido de origem diversa, água em sacos de plástico transparente, galinha viva, peixe fumado, peixe fresco. M’Bom está sentada para lá da valeta atolada de lixo. Levantou-se às 6h30 e foi ao porto comprar peixe fresco, como de costume. De manhã, atracam barcos velhos e coloridos com barbo, barracuda, corvina, linguado, perca, peixe-gato, peixe-espada, arenque, sável… E é uma azáfama de pescadores, intermediários, retalhistas. Comprou uma caixa cheia de tainha e trouxe-a até aqui, a este espaço estrategicamente situado numa entrada do Bairro de Mindará. Numa mesa de plástico inclinada, fez três filas. Numa, montinhos de cinco peixes a 500 francos cfa. Noutra, a 1000. Noutra, a 1500. É consoante o tamanho.

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CADA DIA É UMA LUTA. FAZ PARTE DE UM GRUPO DE ABOTA. DA SUA ABOTA FAZEM PARTE 30 A 40 MULHERES. Tem 38 anos e anda nisto há uns 20. Inspirou-se numa tia. Primeiro, vendia peixe dela. Depois, peixe seu. Desenrasca-se, apesar de ter estudado pouco. O pai não a deixou ir além da 4.ª classe. Julgava que deixá-la estudar era perder o controlo sobre ela. Tirou-a da escola e deu-a em casamento. Pouco durou esse casamento com um homem bem mais velho. O marido adoeceu. Nem quer falar nisso. O pai foi buscá-la. E ela saiu da tabanca, lá no Biombo, e veio para a cidade, para casa da tia. A orientação política de tipo socialista, adoptada a seguir à independência, cedera. Por força do programa de ajustamento estrutural, tutelado pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, o Estado recuara em sectores fundamentais e liberalizara a economia. Cada vez mais mulheres montavam banca nos mercados municipais, nos lumos, nas bermas das estradas, nos alpendres das casas. Punham-se a vender – de dia ou mesmo de noite, iluminadas por velas ou lâmpadas de querosene. Tinham de ganhar sobrevivência – a sua e a dos seus. “Nos primeiros anos, esta actividade dava muito dinheiro. O negócio enfraqueceu. Agora, dá menos.” Num dia, ganhava 20 mil francos cfa. Ganha cinco mil, sete mil, dez mil – quinze mil, só com muita sorte. O preço do combustível subiu, os pescadores aumentaram o preço dos seus produtos. Antes, as bideiras compravam uma caixa de peixe por 16 mil. Agora, não. Esta manhã, M’Bom pagou 25 mil.

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DAQUI A BOCADO, M’BOM TAMBÉM PODE CUIDAR DELA. A TAINHA ESTÁ QUASE, QUASE VENDIDA. 122

Multiplicaram-se as bideiras, mas a clientela parece ter encolhido. Adivinha-se porquê. A pobreza alastrou. Nos becos de Bissau insinuam-se raparigas que fazem sexo em troca de uma refeição. Algumas mulheres que andam pelos mercados a vender pequenas coisas também prestam ocasionais serviços sexuais. Podem encontrar-se a qualquer hora nas zonas portuárias de Bissau. Há quem se tenha profissionalizado. Essa aparecem em bares como o Caracol e o Baxada [1]. M’Bom passa ao lado disso tudo. Sai de casa às sete da manhã. Cruza a porta ainda em jejum. Só depois de comprar o seu peixe tira tempo para comer um bocado de pão e beber qualquer coisa. Senta-se no banquinho, atrás da mesa, debaixo de um guarda-sol, ao lado de um bidão cheio de água. Com uma canequinha, vai regando o peixe, para o manter fresco. O normal é acabar por volta das duas ou três da tarde, mas acontece-lhe não escoar o produto. E, quando não escoa o produto, tem de ir comprar gelo para o conservar para o dia seguinte. Às vezes, só volta a casa às oito da noite. Cada dia é uma luta. Cada dia é uma luta. Faz parte de um grupo de abota. Da sua abota fazem parte 30 a 40 mulheres, conforme a situação de cada uma no início de cada ciclo de poupança. Todos os dias, entrega dois mil francos cfa. Quando chega a vez de ela receber, ajuda as filhas – estão sempre à espera de vestuário, calçado, material escolar… Tem três filhas que parecem só dela. O homem com quem fez vida em


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Bissau emigrou para Portugal e deixou-lhas para criar. Já se habituara a pagar as contas. Continuou a pagar as contas. A mais velha casou – vive com o marido e com os filhos. As mais novas estão com M’Bom. “Estão a estudar.” Uma frequenta a 7.ª classe e a outra a 10.ª classe. A primeira só fez a 3.ª classe. “Não foi por falta de dinheiro. Na altura, só tinha aquela filha, tinha mais dinheiro para os gastos escolares. Ela não queria ir. Não queria estudar. Eu não andava atrás dela, estava a trabalhar. Finalmente, engravidou. Não quis ir mais. Felizmente, estas mais novas não são assim. Gostam de ir à escola...” A mais velha já veio cá buscar tainha para grelhar para o almoço. Por aqui também se vê preparar refeições em panelas feitas a partir da reutilização de latas. Algumas mulheres passam os dias à volta de fogões tradicionais. Vendem pratos a preços populares. As filhas estão lá em casa, sossegadas. A esta hora, há muitas mulheres sossegadas, debaixo dos alpendres, abrigadas do calor inclemente de Bissau. Algumas, pachorrentas, penteiam-se horas a fio. De quando em quando, uma reclamação – pela imposição de imobilidade, pelo puxar dos cabelos. Daqui a bocado, M’Bom também pode cuidar dela. A tainha está quase, quase vendida. [1] O retrato surge em “Cartografia Trabalhadoras do

Sexo”, Guiné-Bissau 2009, um trabalho feito pela ENDA Tiers Monde / Guiné-Bissau.


“É VER OS PROBLEMAS COMO DESAFIOS” Helena Nosolini Embaló não pára. O terreno da Ministra da Economia, do Plano e da Integração Regional é o mundo. Desdobra-se em reuniões. Mesmo assim, tirou perto de duas horas para falar sobre o país e sobre a vida. Sentou-se, com as pernas cruzadas, numa cadeira do seu espaçoso gabinete. Primeiro, manteve o ar fechado de quem pesa cada palavra. Depois, soltou-se. - Diz-se que as mulheres são o motor de África. As mulheres são o motor da Guiné-Bissau? - São importantes no processo de desenvolvimento do país, mas há entre elas maior incidência de pobreza. É importante não tomar isto como uma fatalidade, mas como um desafio que o país tem de tentar vencer. Não basta haver uma Constituição com direitos consagrados. Há necessidade de criar condições para que as mulheres os possam exercer. - Que avaliação faz da participação das mulheres na vida económica? - Trabalham mais nos campos. Nada impede a sua participação nas empresas. Podem é não ter tempo, até pelo peso que ainda têm na gestão familiar. Eu gostaria que a participação das mulheres não se cingisse ao sector informal ou a empregos muito precários.

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EU GOSTARIA QUE A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NÃO SE CINGISSE AO SECTOR INFORMAL OU A EMPREGOS MUITO PRECÁRIOS. - Têm mais peso na agricultura e no comércio informal… - Sim. Também ocupam lugares na administração pública. O Estado continua a ser o grande empregador. - Elas entraram no mercado informal com o primeiro programa de ajustamento estrutural. O fenómeno continua a crescer ou estabilizou? - Continua. Antigamente, seria o homem que se ocuparia de prover a família. Com o aumento da pobreza e com o conflito de 98 – que acabou por destruir grande parte das infraestruturas e que conduziu o país a uma recessão profunda –, muitas mulheres assumiram esse papel. Elas revelaram uma maior capacidade de adaptação à crise. Perante uma situação de dificuldade, agarraram-na e transformaram-na numa oportunidade: começaram negócios como a produção e venda de legumes ou a venda de peixe. - Como é que foi ser ministra das Pescas [no primeiro Governo de Carlos Gomes Júnior, formado em 2004]? - Foi um desafio muito aliciante. A contribuição das pescas para o Orçamento Geral do Estado era muito significativa. Havia necessidade de actuar no saneamento financeiro. Era preciso construir infraestruturas que pudessem apoiar uma política de exportações. Havia muitos desafios importantes. Foi apaixonante. - Mais do que agora? - No Ministério das Pescas, estava no nível micro. As acções tinham um impacte muito grande na vida das pessoas. No Ministério da Economia,

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estou num plano diferente. Tínhamos muita preocupação com as questões ecológicas. Lembro-me de um programa de fábricas de gelo, que melhorou bastante as condições de trabalho dos pescadores e das vendedoras de peixe. - Teve pouco tempo [já que o Governo foi exonerado pelo então Presidente da República “Nino” Vieira ao fim de 17 meses]. - Desde que haja boa vontade e motivação, num ano e meio consegue-se fazer muita coisa. É um sector estratégico para o país. As receitas baixaram. Isso tem a ver com os acordos. É importante criar uma frota nacional em vez de fazer acordos de pesca com frotas estrangeiras. Com a construção do porto de pesca, vamos poder criar condições para lançar essa frota. - Faz parte de um Governo com 32 membros, entre os quais três ministras e uma secretária de Estado. O que é que isto quer dizer? - Estamos longe da paridade, claro! Mas se compararmos com o passado vemos que já há mulheres em pastas que antigamente eram reservadas aos homens. - Como a sua? - Penso que é a primeira vez que uma mulher se ocupa da Economia. E quando fui ministra das Pescas também era a primeira vez. Isto implica um grande investimento na mulher desde criança para que ela possa ter um percurso que lhe permita ascender a lugares de topo. - Alguma vez se sentiu tratada de forma diferente por ser mulher ministra? - Não propriamente. Acho é que o facto de sermos mulheres nos obriga a fazer mais. A um homem não seria exigido tanto trabalho.


- Tem sido uma das apostas do primeiro-ministro nos contactos com os parceiros da cooperação. Viaja imenso. É complicado conciliar tantas viagens com a vida pessoal e familiar? - Tenho duas filhas. São crescidas. Infelizmente, não vivem comigo. Estão a estudar no Senegal. Foram as circunstâncias da vida. Quando se deu o conflito militar, fomos para Dacar. Estivemos lá refugiados. Acabei por ir trabalhar para lá e as minhas filhas começaram a estudar no sistema francês. Quando regressei, elas também vieram. A escola aqui tinha até um certo nível. A partir daí tiveram de ir para Dacar. Estão no liceu. Vivem com a minha irmã. Tenho lá a minha irmã mais velha, que trabalha na embaixada dos Estados Unidos. - E ficou viúva recentemente [de Aguinaldo Embaló, que também fez carreira na banca]… - Sim. O meu marido faleceu. - Como é que se lida com isto tudo? - São muitas frentes ao mesmo tempo, mas isso também me permitiu ver que há uma força que desconhecia. A vida colocou-me perante situações difíceis. Temos de ter capacidade de resistir, mas sobretudo coragem para ir para a frente e tentar mudar as coisas. - Já falou várias vezes em ver as dificuldades como oportunidades. Isso é um lema de vida? - É. É o lema da minha vida. Quando aparecem factos inesperados, ou uma pessoa se resigna ou não. Evidente que estar aqui, não só pelas viagens

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SE AS PESSOAS SENTIREM QUE TÊM VOCAÇÃO PARA A POLÍTICA DEVEM SEGUI-LA, MAS O PAÍS DEVE DAR OPORTUNIDADE A TODOS. mas por todo o trabalho que se faz, exige muito de nós. - Qual é a prioridade? - As pessoas têm de atingir a plenitude com a profissão que têm. Dou-lhe o meu exemplo: nunca exerci política activa. As circunstâncias levaram-me para o Governo. E, uma vez que estou no Governo, há todo um comprometimento com um programa, com a dimensão política das coisas. A política apareceu naturalmente. Não foi uma opção que tomei no início. Acho que há necessidade de maior participação das mulheres, não só na vida política, mas também noutros centros de decisão. Agora, costumo dizer que o mais importante é nos sentirmos bem connosco. Se as pessoas sentirem que têm vocação para a política devem segui-la, mas o país deve dar oportunidade a todos – aos que estão na política por vocação e aos que são mais tecnocratas... - Trabalhou sempre na banca? - Sim. Toda a minha carreira. Comecei no Banco Nacional. Logo a seguir, deu-se a grande reforma bancária: passou a haver um banco central e bancos comerciais de desenvolvimento. Isso foi em 89/90. O processo de liberalização económica estava em curso. Fiquei no banco central. Com a adesão à União Económica e Monetária do Oeste Africana [em 1997], houve outro processo de ajustamento. O banco central foi transformado numa agência do Banco dos Estados de África Ocidental e eu transitei para lá. Depois, fui para Dacar. Trabalhei na sede 5 anos. Em 2004, fui convidada para integrar o Governo. Em 2005, o Governo

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foi demitido, voltei ao meu quadro de origem. Estou outra vez em comissão de serviço. Quando sair, volto para o banco. - Ter um sítio para voltar dá-lhe mais independência? - Creio que sim. As condições também não são iguais às de outros ministros. Preservo todas as condições de remuneração, de segurança social. Quando somos destacados, a nossa instituição recorda-nos que estamos numa missão. Além de ser muito prestigiante servir o país, temos de proteger a credibilidade do banco central, temos de ter uma postura de grande dedicação. - Nasceu em Bissau… - Sim. Nasci em Bissau há 50 anos. - O seu português é muito português de Portugal… - É natural. Ainda era muito pequenina quando a minha família foi para Portugal. Estivemos lá uns anos valentes. Só o meu pai ficou aqui. Eu, a minha mãe e os meus irmãos fomos para lá. Somos oito. Fomos todos menos a minha irmã mais velha, que já era casada. Fiz lá a escola primária e o ciclo preparatório. Regressámos depois da independência, em finais de 1974. - Como foi o regresso? - Não houve dificuldades de maior. A minha mãe sempre falou connosco em crioulo. Fiz aqui o liceu. Depois, tive um período de trabalho produtivo, uma espécie de trabalho cívico, antes de apanhar a minha bolsa de estudo. - Estudou em Portugal?


- Sim. Foi lá que me licenciei. Na altura, quem queria estudar tinha de sair. Fiz Direito em Lisboa. Acabei a licenciatura e voltei. O Banco Nacional da Guiné-Bissau era o único que existia. Comecei a trabalhar lá. Só depois fiz formação complementar no sector da banca. - Hoje, há mais mulheres matriculadas nas escolas do que quando voltou. Que apreciação faz disto? - Não há nenhum país que se possa desenvolver se não fizer uma aposta no capital humano. Hoje, mais raparigas têm acesso à escola, mas é preciso manter a assiduidade, dar continuidade. Muitas assistem um bocadinho da aula e saem porque têm de ir vender mancarra… - Continua a haver sítios onde a escola não chega. E sítios onde a escola chega mas não há livros.. -É um problema com muitas décadas. A parte dos estudos que fiz aqui foi pelo sistema de apontamentos. Não havia livros. O professor passava a aula a ditar apontamentos. Essa é uma das fraquezas. Mas estou optimista. Está em curso o Programa Educação para Todos, que é financiado pelo Banco Mundial. Temos também uma série de projectos ao nível do Banco Africano de Desenvolvimento. É ver esses problemas como desafios e não como fatalidades.

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DIREITOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU ENTRE AS DIFICULDADES E A MUDANÇA

Embora a defesa e protecção dos direitos humanos exijam a participação de todos os membros de qualquer sociedade, é aos Estados que compete garanti-las através de prestações positivas. Apesar de viver uma situação difícil do ponto de vista político e económico e dos numerosos desafios que se lhe colocam, a Guiné-Bissau tem vindo, porém, a realizar alguns progressos em matéria de direitos humanos, incluindo no que diz respeito à ratificação e adopção de algumas convenções e textos internacionais. Entre estes encontram-se vários textos referentes aos direitos das mulheres como a CEDAW – Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (1979)[1]; as Resoluções 1325 (2000) e 1820 referentes à participação das mulheres e sua protecção em situações de conflitos e pós-conflito e

o Protocolo Adicional à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos sobre os Direitos da Mulher [Maputo, 2003] (MEPIR, 2011). No entanto, alguns destes textos aguardam ainda a transposição para textos nacionais para que possam ser efectivamente aplicados e as mulheres guineenses a eles possam recorrer. Não obstante a demora na transposição de algumas destas normas internacionais, nos últimos anos foram tomadas, ao nível nacional, com o apoio das organizações internacionais, várias medidas ao nível institucional, de criação de estruturas e mecanismos estatais vocacionados para a promoção e protecção dos direitos das mulheres, como o Instituto da Mulher e Criança, a Comissão Nacional de Direitos Humanos, a Comissão Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas, entre outros (MEPIR, 2011). A supremacia da posição jurídica do homem em relação à mulher foi um marco importante do Direito Civil anterior à Independência, sobretudo

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no âmbito do Direito da Família, mas não só. Tanto no que respeita ao Direito das Obrigações, como ao Direito Comercial e Laboral, a posição da mulher dependia da vontade do homem. Com a afirmação do princípio de igualdade entre os sexos, segundo o qual “o homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural”, ficaram afastadas na lei todas as particulares situações discriminatórias então vigentes (Mané, 2004). Seguindo o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição da República da Guiné-Bissau de 1984, no capítulo dos direitos fundamentais, estabelece claramente que “todos os indivíduos são iguais, independentemente do sexo, raça ou cor, beneficiando das mesmas oportunidades”. De acordo com o último censo populacional de 2009, as mulheres da Guiné-Bissau representam 51,5% da população total do país e contribuem decisivamente para a produção de bens e serviços, nomeadamente ao nível de produção rural familiar e no quadro da economia informal, sendo o seu contributo cada vez mais essencial para o sustento das famílias em tempos de crise económica. Paradoxalmente, apesar da sua contribuição reconhecida em todos os domínios, as mulheres continuam a sofrer, de forma mais acentuada que os homens, os efeitos de sistemas de saúde e de justiça ineficientes, das poucas oportunidades educativas, de formação e de emprego formal.

Há, no entanto, transformações sociais e políticas a realçar. De acordo com os resultados provisórios do inquérito MICS/IDSR (2010), a diferença entre as raparigas e os rapazes em matéria de taxa de escolarização é cada vez menor no ensino básico (uma taxa de 65,4% para as raparigas e 69,3% para os rapazes). Ao mesmo tempo, muitas organizações

de mulheres trabalham cada vez mais para melhorar as condições de vida e o acesso aos recursos; existe, ainda, um ímpeto legislativo para punir as várias formas de violência contra as mulheres. Olhemos, então, mais de perto para algumas destas tendências.

ACTIVIDADES ECONÓMICAS E ASSOCIATIVISMO A contribuição das mulheres guineenses para os progressos sociais e para o equilíbrio das famílias e comunidades, nomeadamente através das actividades económicas que exercem, tem sido, ao longo da história, extremamente relevante e precede mesmo a existência do Estado da Guiné-Bissau: Já a partir do século XVII, registam-se casos de mulheres comerciantes (chamadas nharas) que gozavam de grande prestígio entre as populações locais e controlavam recursos humanos e materiais (…) A sua actuação como gerentes e proprietárias de casas comerciais – nos meados do século XIX, 11 das 65 casas comerciais existente em Bissau per-


tenciam a mulheres, enquanto elas de facto geriam muitas outras – deu a estas femmes d’affaires uma “força” negocial significativa, na altura facilitada pela falta de controlo territorial das autoridades coloniais e pelo seu fraco poder económico, a qual contribuiu para fazer delas intermediárias e interlocutoras imprescindíveis” (Havik, 1995: 25 – 36).

Agrupando-se em associações podem desenvolver o sentido de pertença e a consciência do seu poder enquanto actores sociais e, deste modo, as associações podem ser espaços de transformação das identidades femininas e base das suas estratégias de empoderamento nas suas sociedades (Borges, 2010: 292).

estatísticas nacionais e internacionais, as quais se baseiam no chamado «agregado familiar», família (ménage) com um chefe masculino, como a unidade económica de base. Contudo a base da economia rural não é o agregado doméstico, mas sim o fogão, cujo abastecimento é uma responsabilidade conjunta das mulheres e dos homens, apesar das suas contribuições serem variáveis e diferentes” (Atchinger, 1992: 67).

Através de uma estratégia de denúncia pública das discriminações a que estão sujeitas, influenciam outras mulheres também a reclamar seus direitos sociais, económicos e políticos. Esses agrupamentos de mulheres conseguem colocar em marcha um processo de mudança social que promove os direitos de raparigas e mulheres por muitas gerações. Um exemplo específico desse processo é o da Associação das Mulheres de Actividade Económica (AMAE)[3]. Mas o associativismo de base económica, protagonizado por mulheres, está implantado um pouco por todo o país, em particular nas zonas rurais.

Porém, as atitudes socioculturais em relação aos papéis de género podem mudar e efectivamente têm vindo a mudar. Um dos catalisadores mais importantes dessa mudança parte, muitas vezes, directa ou indirectamente, de dinâmicas de associação e movimentos de mulheres. Na Guiné-Bissau, através de associações e madjuandades[2], as mulheres associam-se para melhorar as suas condições de vida e as das suas comunidades. De certa forma, essas mulheres acabam, muitas vezes, por resistir a atitudes de discriminação, exercendo um impacto considerável nas suas comunidades:

Os grupos de mandjuandade e as associações tendem a construir uma cultura participativa e colectiva de todas e todos nos múltiplos aspectos da vida comunitária, que vai desde a participação sociocultural à política e têm ganho um considerável espaço público. O impacto das associações de mulheres ultrapassa a mera preocupação de ajudar economicamente os seus membros. Muitas vezes, desafiando o status quo, essas associações e grupos de madjuandades provam também que são poderosos agentes de mudança social no país, apoiando a participação das mulheres na tomada

No entanto, a sua contribuição para o rendimento das famílias, (…) é desprezada de um modo sistemático pelas

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de decisões ao nível da comunidade e fornecendo-lhes uma fonte importante de apoio moral.

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 138

Na Guiné-Bissau os partidos políticos continuam a dificultar o avanço da participação das mulheres na vida política. As mulheres são usadas sistematicamente nas campanhas eleitorais, trabalhando para as listas que dificilmente encabeçam pois, como tem sido hábito, nas eleições legislativas os partidos optam por escolher os homens para liderar as listas, relegando as mulheres para lugares de difícil eleição. De acordo com a Constituição da República e a Lei Eleitoral guineense todas as barreiras formais ao acesso ao parlamento e demais órgãos electivos foram eliminadas. No entanto, esta mudança formal não é suficiente para resolver o problema do desequilíbrio de género na governação. Isto porque, desde muito cedo, as mulheres são discriminadas de várias formas: no acesso à escola ou nas tomadas de decisão, em particular da esfera pública. Esta discriminação, bem como a carga de trabalho significativamente maior, desencoraja e impede a sua entrada na vida política. No entanto, nos últimos anos, têm surgido sinais de um reconhecimento crescente de que em situações de conflito, caracterizadas por instabilidade e falta de firmeza na aplicação das leis, a partici-

pação das mulheres é essencial para garantir mudanças de longo prazo. Desde a abertura política têm sido dados passos importantes para o reconhecimento do papel das mulheres na governação, como agentes relevantes para garantir o sucesso do processo de estabilização e pacificação do país. No entanto, a capacidade das mulheres moldarem activamente os processos políticos, nacional e localmente, depende, de certa forma, da existência e estabilidade de instituições democráticas e de um ambiente político favorável, o que não se tem verificado na Guiné-Bissau. Embora as mulheres sejam frequentemente defensoras das políticas relativas à criança, à mulher e à família, e ainda que a sua participação no parlamento seja uma meta central dos Objectivos do Milénio (ODM3), ainda é pequeno o número de mulheres no parlamento nacional: em 2011 ocupavam apenas 10% dos cargos parlamentares, percentagem bastante abaixo da média regional para a África Ocidental (19.30%) (Gaanderse e Valasek, 2011:13). Um aumento considerável da representação política feminina pode constituir um ponto crucial para se garantir que a voz das defensoras e dos defensores dos direitos das mulheres seja ouvida. Aumentar a participação das mulheres na política é vital para a promoção de igualdade de género e para aumentar o seu poder – os dois princípios do Objectivo 3 de Desenvolvimento do Milénio.


LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA Na Guiné-Bissau mulheres e raparigas são vítimas repetidamente de violência física, psicológica e sexual, dentro e fora de casa, embora muitas dessas agressões sejam frequentemente escondidas ou simplesmente não declaradas às entidades policiais. A violência exercida no âmbito doméstico parece ser a forma mais comum de agressão contra as mulheres, ultrapassando fronteiras de etnia, classe e estatuto económico e social e religião. Segundo uma pesquisa recente, entre 2006 e 2010, foram registadas, pela Polícia de Ordem Pública, em todo o país, 23.193 denúncias em que as vítimas foram mulheres. No entanto, 71% das mulheres vítimas de violência abrangidas por um inquérito exploratório do mesmo estudo não apresentou qualquer queixa depois de ter sido vítima de um acto violento (Roque, 2011: 13-14). A fragilidade dos sistemas judicial e de protecção das vítimas favorece a manutenção ou até aumento dos níveis de violência. No entanto estão em marcha os trabalhos preparatórios para a aprovação de uma Lei contra a violência com base no género. A mutilação genital feminina não é ainda suficientemente denunciada enquanto prática utilizada como forma de controlo social sobre a mulher e que tem efeitos prejudiciais na sua saúde. O último inquérito de 2010 (MICS-4/IDSR) indica que 44,5% das mulheres com idades compreendidas entre 15 e 49 anos foram sujeitas à prática de excisão na Guiné-Bissau.

Nos locais onde a mutilação genital feminina é praticada de forma generalizada ela é apoiada tanto por homens como por mulheres e os seus opositores podem estar sujeitos à condenação e desonra, à perseguição e ao ostracismo. Como tal, a mutilação genital feminina é uma convenção social acompanhada por recompensas e punições que constituem uma poderosa força para a continuação da prática. Face a esta natureza convencional da MGF torna-se muito difícil para as famílias o abandono da prática sem apoio da comunidade alargada. Na realidade, é frequentemente praticada mesmo com consciência do dano provocado nas meninas, uma vez que os supostos ganhos sociais são percepcionados como mais elevados que as desvantagens (UNICEF, 2005: 123). Ao longo dos últimos 15 anos, foram várias as organizações da sociedade civil a lutar para a erradicação desta prática, denunciando-a como violação flagrante dos direitos das mulheres e raparigas. Ela viola de facto uma série de princípios, normas e padrões dos direitos humanos, que incluem o princípio de não-discriminação e igualdade, o direito à vida e o direito a viver livre de tortura, punição ou tratamento cruel, assim como direitos subsequentes, constantes na CEDAW e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Lei que proíbe e pune a prática da MGF, aprovada recentemente pela Assembleia Nacional Popular e promulgada pelo Presidente da República, constitui uma ferramenta indispensável na

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luta contra esta prática. De acordo com a lei, no seu artigo 5º, “a excisão praticada sobre menor de idade é punida com pena de prisão de 3 a 9 anos”. O ponto 2 do mesmo artigo rege que “os pais, tutor, encarregado de educação ou qualquer pessoa a quem cabe a custódia da criança têm o dever de impedir a prática da excisão”. Nos outros artigos do mesmo diploma, a lei prevê penas de prisão para “quem com intenção de praticar excisão sobre outrem, lhe causar efeitos previstos nas alíneas c), d) e e) do artigo 115º do Código do Processo Penal, a pena será de 2 a 8 anos de prisão” (ANP, 2011).

[1]

CONCLUSÃO

[4] Início do processo democrático no país que consiste no processo de inclu-

Dificuldades económicas, vicissitudes políticas e a permanência de condições e práticas discriminatórias não impediram totalmente que os direitos das mulheres, na Guiné-Bissau, tenham sido objecto de algum progresso legislativo nos últimos anos. As dinâmicas associativas, no domínio económico e cultural, a crescente implicação das mulheres na governação e na política, nomeadamente em matéria de luta contra a violência com base no género, são alguns dos sinais de uma mudança desejada no longo caminho para alcançar e garantir o cumprimento dos direitos das mulheres.

Mais de 185 países assinaram e ratificaram a CEDAW. No entanto, muitas das assinaturas foram feitas com reservas em relação a alguns artigos específicos. De modo geral, a CEDAW aparece como uma das convenções internacionais com maior número de reservas, destacando a ampla resistência relativamente aos direitos das mulheres. [2] “Agrupamentos de poupança mutualista, a partir da quotização periódica ou ocasional, propõem-se assegurar a realização de actividades cerimoniais religiosas e/ ou outras de fins lúdicos e de solidariedade social” (Borges, 2010: 291–296). O termo mandjuandade vem da palavra mandjua, que significa pessoa da mesma faixa etária. As mandjuandades reúnem, assim, mandjuas para a confraternização, danças e outras manifestações “tradicionais” com objectivo de estreitar laços de solidariedade (Bull, 1989). [3] AMAE – Associação das Mulheres da Actividade Económica, tem como objectivo agrupar em rede mulheres ou associações de mulheres com os objectivos de se ajudarem para garantir o sucesso das suas empresas, promover e valorizar os bens e serviços que estas produzem, defender os seus direitos, melhorar as suas condições de vida e garantir uma troca de experiências ao nível regional e internacional.

são e participação da oposição na edificação dos instrumentos que viabilizem a organização do pluralismo (Lopes, 2010) e na supressão do artigo 4º que consagrava o PAIGC como “a força política dirigente da sociedade e expressão suprema da vontade soberana do povo, decidindo da orientação política da política do Estado e assegurando a sua realização em estreita ligação às massas trabalhadores” (Constituição da RGB, 1984). [5] Os dados relativos a 2010 apenas dizem respeito aos casos reportados durante o primeiro trimestre. Entre os casos reportados encontramos actos de violência física, psicológica e sexual, bem como algumas denúncias concretas de casamento forçado.


BIBLIOGRAFIA Constituição da RGB (1984). Bissau: Imprensa Nacional ANP (2011). Lei sobre a Proibição e Criminalização da Excisão Feminina. Bissau: Boletim Oficial Atchinger, G. (1992). Efeitos do Programa de Ajustamento Estrutural sobre as condições económicas e sociais das mulheres da zona rural. In INEP, Soronda: revista de estudos guineenses Nº14 (pp. 67 - 70). Bissau: INEP Borges, M. (Maio de 2010). Associativismo feminino no Atlântico lusófono: Bissau (África) e Cachoeira (Brasil). In P. J. Havik, C. Saraiva, & J. A. Tavim, Caminhos Cruzados em História e Antropologia: Ensaios de homenagem a Jill Dias (pp. 291 -296). Lisboa - Portugal: Imprensa de Ciências Sociais Bull, B. P. (1989). O crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e Sabedoria. Bissau: INEP Gaanderse, M.; Valasek, K. (Eds.) (2011). The Security Sector and Gender in West Africa. A survey of police, defence, justice and penal services in ECOWAS states, Geneva: DCAF Havik, P. J. (Jan. 1995). Relações de Género e Comércio: estratégias inova-doras de mulheres na Guiné-Bissau. In INEP, Soronda: revista de estudos guineenses (pp. 25 -36). Bissau: INEP Lopes, N. C. (2010). As Forças Armadas num Estado em “Interrogação”. VII - Congresso Ibérico dos Estudos Africanos, (pp. 09 -12). Lisboa Mané, F. (Julho 2004). A Mulher e a Criança no Sistema Jurídico Guineense. In INEP, Soronda: revista de estudos guineenses (pp. 33 - 41). Bissau: INEP MEPIR (Ministério da Economia, Plano e Integração Regional) – DENARP – II, Bissau, Junho 2011 MICS-4/ IDSR - (Inquérito aos indicadores múltiplos) realizados com apoio de UNICEF, 2010

NU. (Nov. 2010). Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Descriminação contra as Mulheres. In R. d.-B. Unidas, Guia dos Direitos Humanos e Género - Volume I (pp. 27 - 28). Bissau Roque, S. (2011). Um retrato da violência contra mulheres na Guiné-Bissau, Bissau: Governo da República da Guiné-Bissau / Nações Unidas Teixeira, R. D. (2010). In R. D. Teixeira, Sociedade Civil e Democratização na Guiné-Bissau 1994 - 2006 (p. 71). Recife : Universitária UFPE UNICEF. (2005). Female genital mutilation / female genital cutting: a statistical report. New York: UNICEF UNICEF. (2007). Mulheres e Crianças: O duplo dividendo da Igualdade de Género. New York: UNICEF

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GLOSSÁRIO ABOTA ARDANSA BIANDA BIDEIRA BOLANHA CANDONGA CAFRIELA CANDJA CIBE CUMBOSSA DJACATU ESCALADA KUNTANGO KUNTCHURO FANADO FANATECA FRANCO CFA FERA FOGÃO FOLE GUSTO LUMOS MAFÉ MANCARRA NOZ-DE-COLA LUMOS PANO PENTE PRAÇA PONTA TABANCA TALIBÉS TARRAFE TOCA-TOCA TUGA

sistema de poupança comum com crédito rotativo herança alimento principal, normalmente arroz comerciante informal arrozal em campos inundados transporte público de ligação entre Bissau e os outros centros urbanos prato preparado com galinha ou frango “da terra”, para acompanhar com arroz legume árvore cuja madeira é muito usada na construção co-esposa legume peixe seco ao sol e salgado arroz branco sem molho mistura de arroz de terra cozinhado com amendoim ritual de iniciação à vida adulta mulher que pratica a excisão Franco da Comunidade Financeira Africana espaço de venda e compra agregado familiar composto por mãe e filhos fruto silvestre caldo concentrado usado para tempero mercados periódicos acompanhamento, conduto amendoim fruto silvestre mercados periódicos pano de algodão executado segundo técnica de bandas estreitas cidade colonial área agrícola dedicada a produção comercial aldeia estudantes do Alcorão mangal transporte público informal que faz a ligação entre o centro da cidade e as periferias português

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