DESAFIOS UMA HISTÓRIA DE DIREITOS NA GUINÉ-BISSAU
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DESAFIOS UMA HISTÓRIA DE DIREITOS NA GUINÉ-BISSAU
TÍTULO
DESAFIOS
AGRADECIMENTOS
ALFREDO CALDEIRA ANA VAZ MILHEIRO CARLOS LOPES CARLOS SANGREMAN CATARINA SANTOS CLAIRE LAUTIER CMTE. ARMANDO NHAGA DOMINGOS JOSÉ DA SILVA ELISÉE TURPIN FERNANDO JORGE PEREIRA FILIPA FIÚZA GUELAJO SILA JOÃO VAZ JOSÉ TCHALES LEOPOLDO AMADO LUÍS NANCASSA MARC-ANDRE BOISVERT MARIA JOSÉ MOTA MIGUEL NUNES PAULO GONÇALVES SADJO COROMUTH YASMINE CABRAL
UMA HISTÓRIA DE DIREITOS NA GUINÉ-BISSAU
COORDENAÇÃO
FÁTIMA PROENÇA COLABORAÇÕES
ALAIN CORBEL ALVARO VICTOR PIRES ANA FILIPA OLIVEIRA ANTONIO J. K. DE CARVALHO ARMINDO DA SILVA AUGUSTO MÁRIO CADIJA MANÉ DEMBA SANHÁ FERNANDO JORGE B. FERREIRA FRANCISCO MARIO GOMES TÉ IVARILDO C. CAMARA JOÃO BAÍA JOAO DITO SAMBU JOSÉ ROBERTO TÉ KEVIN PEREIRA MIRANDA LIMA LILIANA AZEVEDO LIONEL GOMES LUÍS VAZ MARTINS M’BEMBA CANDÉ META CAMARA MIGUEL BARROS PAULO NUNO VICENTE POMBO D. SEMEDO CAMARA RUI ADOLFO GOMES SÁ TAUFIK ASSAD DE ALMEIDA TONY TCHEKA
e
AIDA – AYUDA, INTERCAMBIO Y DESARROLLO CAMÕES – INSTITUTO DA COOPERAÇÃO E DA LÍNGUA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES
REVISÃO
ACEP CRIAÇÃO GRÁFICA
ANA GRAVE PRÉ-IMPRESSÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTO
GUIDE ARTES GRÁFICAS APOIO FINANCEIRO
CAMÕES - INSTITUTO DA COOPERAÇÃO E DA LÍNGUA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN EDITORES
ACEP [ASSOCIAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS], LISBOA, PORTUGAL LGDH [LIGA GUINEENSE DOS DIREITOS HUMANOS], BISSAU, GUINÉ-BISSAU
© ACEP, LGDH | MAIO
2014
| DEPÓSITO LEGAL N.
376348/14
AO PEPITO
Ao assinalar, de portas bem abertas, o segundo ano da Casa dos Direitos, quis o conjunto de organizações que nela impulsionam a ideia de persistência no caminho difícil para a liberdade, de que falava Nelson Mandela, que nos focássemos no tema dos direitos cívicos. Num espaço que foi prisão, degradante e degradado, a concretização dessa abstração deveria passar, neste momento, por um primeiro processo de reconstituição de algumas memórias, pessoais e colectivas, que o espaço da 1ª esquadra aprisionou ao longo dos tempos, até há pouco mais de dois anos atrás. Desde a sua edificação junto ao forte de S. José de Amura, no Bissau Velho colonial, para aí instalar no piso térreo a administração concelhia e polícia (não é provavelmente por acaso que nenhum documento da época encontrado refere a existência de um subterrâneo, fora de vistas e onde não entra a luz), até a um pós Independência com muitas mudanças por concretizar, este foi ao longo de décadas um espaço de violação de direitos, começando pelo direito à dignidade. Se mérito tem a ideia da construção colectiva, ali mesmo, de um
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espaço de liberdade, “para mostrar à face do mundo que somos gente com dignidade”, como diz Cabral na parede lateral da Casa, o mérito deve ser reconhecido a todos os que viabilizaram e continuam a acarinhar essa ideia – ainda mais num país onde os atropelos impunes à liberdade e muitas razões de medo teimam ciclicamente em ressurgir. A proposta contida neste livro é simples: uma primeira parte que é uma “linha de tempo”, desde a decisão de criação de uma polícia (1936), que ali veio a ser instalada, até à decisão, concretizada (2012), de aí criar uma Casa dos Direitos. São documentos recolhidos e selecionados aos poucos ao longo de alguns meses, bem como alguns depoimentos, todos encadeados de uma entre várias formas possíveis. A segunda parte traz-nos uma forma de concretizar o sonho que foi e é a Casa dos Direitos: através do trabalho empenhado de cerca de uma dúzia de jovens, apoiados por um professor de ilustração, vemos desfilar, em texto e em desenho, as histórias de várias pessoas que por ali passaram - na categoria de preso, familiar, guarda prisional, no tempo colonial ou depois da Independência - e que ali voltaram agora para contar. O processo deste atelier propõe-nos assim uma ideia de Casa como um espaço de liberdade criativa, para jovens e mais velhos, de encontro com a história e de construção do futuro – sem medo. As informações, documentos e depoimentos recolhidos, e aqui assim revelados, não pretendem naturalmente transmitir a ideia de uma “história única”: ao longo das páginas muitos dos protagonistas
revelam-nos a sua história, a forma como a recordam e não nos cabe questioná-la, antes agradecer o terem-na partilhado connosco. Este não é portanto um livro de História, mas um livro de muitas histórias que nos ajudam a compreender o passado longínquo ou recente, a forma como ele condicionou a vida de tanta gente, e que desejamos que possa ser inspirador para a construção de um futuro comum. Chinua Achebe, o velho contador de histórias nigeriano, diz-nos que, numa batalha, tão ou mais importante que os guerreiros que a travaram, são os que depois a vieram a narrar, pois que nos ajudam a compreender os erros cometidos e impedem os nossos filhos de vaguear, como cegos, por meio dos cactos do deserto. De novo Mandela: não há caminho fácil para a liberdade em lugar nenhum. E António Machado (poeta exilado): o caminho faz-se caminhando. Maio de 2014
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“NÃO EXISTE NENHUM PASSEIO FÁCIL PARA A LIBERDADE EM LUGAR ALGUM” Mandela
1936
2012
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Governador Luís António de Carvalho Viegas (1936/40) identifica necessidade dos serviços de policiamento deixarem de ser feitos por militares e ser criada força policial civil: ”(…) reconhecidos os inconvenientes de, nesta Colónia, o serviço policial propriamente dito ser atribuído a forças militares, tudo aconselha a formação duma polícia civil, integrada no “Corpo de Cipaios”, sob a ingerência directa do Administrador (…), terminando-se com a dualidade de funções intromissoras na vida do indígena (…). Para tal finalidade, exige-se naturalmente um corpo de cipaios apropriados em numero suficiente (…). Há porém mais a justificar: é a previsão da necessária existência de monitores policiais europeus. É intuitivo que o Administrador do Concelho não pode ocupar-se permanentemente da vigilância do serviço policial urbano, nem pode ministrar a preparação necessária aos agentes respectivos, porque outros e variado serviços exigem a sua atenção e consomem tempo. Tem por isso que dispor de auxiliares da sua confiança e com certa preparação para dirigirem e vigiarem os detalhes do policiamento. Em meios coloniais, é sempre exigência natural que se mantenha o prestígio do elemento colonizador e do civilizado, sempre que seja possível, mas sem desprestígio para o agente da autoridade. A prisão de um desses componentes sociais, efectuada por um indígena, traz quasi sempre como consequência – a resistência: e, como resultante desta, o desprestígio do capturado ou do captôr”
Relatório do governador Tenente Coronel Carvalho Viegas informa que: - em 1939/40 prosseguiu a construção em Bissau do edifício destinado aos serviços de Administração e Fazenda - concluído o edifício do Comando da Colónia Penal Agrícola da Ilha das Galinhas em “Guiné Portuguesa”, III volume, 1939-1940, IPAD/MU
em “A Guiné Portuguesa”, 1936
Segundo o “Anuário da Guiné Portuguesa”: “(…) Segundo o censo de 1940, a população indígena da Colónia foi de 345.267 indivíduos” (concelho de Bissau com 30.608, circunscrição de Mansoa 78.511, a de Cacheu 62.052, Bafatá 45.002) (…). “A densidade da população indígena é de 9,55% e a da não indígena de 0,16%. (…) a população não indígena em toda a Colónia é de 5.882 habitantes” (1.900 em Bissau e 1329 em Bolama, sendo classificados como brancos 1419, mistos 2.200 e Negros 2.190, indianos 10 e amarelos 3). em “Anuário da Guiné Portuguesa, 1946, IPAD/MU
em “A Guiné Portuguesa”, 1936
1936
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1940
em “Anuário da Guiné Portuguesa, 1946, IPAD/MU
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Transferência da capital de Bolama para Bissau
Inquérito à cidade de Bissau, realizado pelo Gabinete de Urbanização Colonial : “ (…) A cidade de Bissau, capital da Colónia, está situada na parte insular – Ilha de Bissau (…) fica situada ainda entre 3 zonas pantanosas. A obra portuária em estudo resolverá em parte este problema, mas nunca deixaremos de cogitar nas razões, já não digo porque se implantou uma povoação neste local – visto de Bissau Velho e Amura devem ter sido a natural evolução da “testa de ponte” estabelecida na Ilha dos Papéis – mas porque se estimulou ou permitiu o crescimento desta urbe em local tão desfavorecido. (…) A cidade não tem ainda nem rede de distribuição de água, nem esgotos, nem ruas pavimentadas ou mesmo limpas. Tudo é precário. (…) Se são demasiadamente largas as ruas da parte moderna da cidade, em contrapartida as da cidade velha – Bissau Velho – são, na sua maioria, muito estreitas e rodeadas de edifícios pobres, sem ar nem luz, onde se acumulam famílias numerosas que vivem em degradante promiscuidade. Há maus cheiros a exalarem-se destes ambientes miseráveis, onde infelizmente, habita muita gente; mesmo funcionários de relativa categoria. Se houvesse possibilidade de enfrentar a demolição quase integral deste bairro – conservando-se apenForal que estasas as ruas de comércio mais importante, que são também belece perímetro as mais aceitáveis – muito ganharia a higiene pública e até a e área urbana de moral com a eliminação de certos edifícios sinistros – manBissau chas de prostituição e construções que patenteiam vestígios dos mercados de escravos do passado (…). em “Relatório sobre o Inquérito à cidade de Bissau e outros centros populacionais da Colónia da Guiné”, 1944, IPAD/MU
1941
1944
1944
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em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1948
em “Relatório sobre o Inquérito à cidade de Bissau e outros centros populacionais da Colónia da Guiné”, 1944, IPAD/MU
Criação do Corpo de Polícia de Segurança Pública, decreto nº33.826, de 1 Agosto directamente dependente do Governador da Colónia
1944
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Governador Sarmento Rodrigues (1945/50) manda fazer levantamento topográfico ao Gabinete de Urbanização Colonial que inclui mapas de Bissau Velho. O croquis com número 42 identifica PE (propriedade do estado?), em que a fracção D, descrita como de pedra e cal, com telha, está ocupada no 1º piso com Administração do Concelho e Polícia, com nome de rua Dr. António de Oliveira Salazar
1945
em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1946, IPAD/MU
em “Levantamento Topográfico de Bissau”, GUC, Brigadas Topográficas na Guiné em 1945/46, IPAD/MU
Finalizado palácio do Governo
1945
Segundo o Anuário da Guiné de 1946: Imposto de palhota e respectivo adicional 11.554.880$00, num total de receitas de 34.907.756$00. As principais despesas são Serviços Militares 4.005.939$84, Serviço de Saúde 2.743.395$11, Obras Públicas 1.411.509$45, Marinha e Obras navais 1.208136$72. - A Escola Central de Bissau tem 363 matriculados, dos quais chegaram ao fim do ano 236 e foram aprovados 45 (12%), no total das 4 classes. Dos matriculados 321 eram africanos da Guiné - Existia um total de 102 Caixas de apartados (a da Polícia era a 102). em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1946, IPAD/MU
1945
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Comemorações do 5º centenário da chegada dos exploradores portugueses à Guiné, iniciadas a 1 de Janeiro no Forte Amura com içar da bandeira das Descobertas, salva de 21 tiros, mensagem do Governador e missa campal que “reuniu uma grande multidão onde se confundiam fraternalmente colonos e nativos, altas individualidades e gente humilde” Obras a assinalar: “reconstrução do Baluarte da Puana da Fortaleza, incluindo construção de campo de ténis em cimento(…), monumento aos Heróis da Ocupação (…), feito primeiro fornecimento de calçado e talheres aos soldados indígenas; (…) fornecimento completo de armamento e transportes ao Corpo da Polícia em Bissau e instalada provisoriamente e iniciada a construção definitiva da tabanca da Polícia em Bissau” em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1946, IPAD/MU
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Foto do porto, cedida por Miguel Nunes
em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1946, IPAD/MU
em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1946, IPAD/MU
Criação de esquadra de polícia no núcleo colonial Criado o Boletim Cultural Reunião em Bissau da II Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais
1946
Começa a funcionar com regularidade a Estação Emissora de Bissau
1946
em “Urbanização na Guiné-Bissau Morfologia e Estutura Urbana da sua Capital”, Baducaran Domingos Augusto da Silva, 2010
Construída a Cadeia Comarcã, vários prédios no hospital, prolongado o cais de Pindjiguiti com 36 metros, construída a Mãe d´Água, entre outros
Alargado o cais do porto de Pindjiguiti
1946
1947
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em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1948, IPAD/MU
Adjudicada a construção do estádio de Bissau, orçamentada em 300 contos (inaugurado em 1948)
Segundo o Anuário da Guiné, de 48, o Corpo de Polícia de Segurança Pública, comandado pelo major de Infantaria António Joaquim Correia, é constituído por “2 oficiais, 9 chefes, sub-chefes e agentes, 112 cabos e guardas, sendo estes últimos compostos exclusivamente por indígenas”. Foram registadas em Bissau no ano de 1947, “as seguintes ocorrências: capturas 742, transgressões 67; queixas 276; casos diversos 85. A naturalidade dos responsáveis foi a seguinte: portugueses (europeus) 2; libaneses 1; naturais da Guiné 675; de outras colónias 26; de colónias francesas 31; de colónias inglesas 7”
Município de Bissau passa a categoria de Câmara Municipal (6.2.1948), “visto a cidade satisfazer as condições exigidas para tal e ser a terceira e mais antiga colónia do Império”
Aprovado pelo Governador Sarmento Rodrigues o novo Plano Geral de Urbanização da Cidade (15 de Junho de 1948)
Iniciados trabalhos de construção da ponte cais de Bissau (obra orçada em 23.500 contos) Dotação à Congregação Missionária 843.000$00 em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1946, IPAD/MU
em “Anuário da Guiné Portuguesa”, 1948, IPAD/MU
1947
1947
1948
1948
1948
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Governador António Augusto Peixoto Correia
Postal, autor desconhecido
Construção da sede da Associação Comercial, Industrial e Agrícola (hoje sede do PAIGC), arq. Jorge Chaves
Projecto de esplanada para a marginal do porto de Pindjiguiti, de Arq. Luis Possolo, 1959, 1960, IPAD/MU
Construído um 3º campo de ténis no estádio de Bissau (65.000$00)
1949
1949-52
Bissau com 20.000 habitantes (num total de 47.251 no Concelho de Bissau, dos quais 3.858 “civilizados”)
Identificado local de implantação e elaborados planos de construção do Liceu Honório Barreto
citado em “Relatório dos Serviços realizados na provincia da Guiné”, Arq. Eurico Pinto Lopes, 1958, IPAD/MU
descrição em “Relatório dos Serviços realizados na provincia da Guiné”, Arq. Eurico Pinto Lopes, 1958, IPAD/MU
1950
1958
Projecto de Esplanada na marginal do porto de Pindjiguiti (arq. Possolo)
1959-62
1959
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Massacre de estivadores da Casa Gouveia no porto de Pindjiguiti (3 de Agosto). Estivadores presos levados para a 1ª esquadra em “Documentação Fotográfica - Bissau-Guiné”, Maria Emília Caria, 1966, IPAD/MU
Do relatório da reunião do PAI, de 19/9/1959: “Tendo passado em revista a experiência de três anos de luta clandestina e após análise da situação política do país (...) constatou; à luz da experiência de Pindjiguiti, que, considerando a natureza do colonialismo português, a luta por todos os meios, incluindo a luta armada, é a única via que pode conduzir à libertação do país (...)”
Levantamento topográfico para novo plano de urbanização, com zona do Forte de Amura em detalhe, incluindo o edificio da 1ª esquadra com o número 68 em GUC, ref. 2.122, 1960, IPAD/MU
tradução do texto publicado por Basil Davindson “Révolution en Afrique - la libération de la Guinée Portugaise”, Seuil, 1969
1959
1959
Construção do Liceu Honório Barreto
em GUC, ref. 2.122, 1960, IPAD/MU
1960
1960-63
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Depoimento de Estevão António Vaz à Comissão Negocial das NU sobre as condições de detenção pela PIDE na 1ª esquadra: “(…) A PIDE possui prisões em todos os pontos da colónia onde tenha um posto. Essas cadeias são as piores que se podem imaginar. Em Bissau possuem duas cadeias, sendo uma conhecida por cadeia subterrânea situada junto ao rio Geba e onde não chega a luz do sol. Os presos aí encarcerados vivem numa tréva perpétua. Citamos os casos de Estevão António Tavares (10 dias) e de Quintino Sebastião Nosolini (40 dias). As celas são molhadas todas as manhãs e noites com o objectivo de aumentar a humidade e provocar aos seus ocupantes uma morte lenta (…)”
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em Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares
em Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares
em Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares em Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares
1961
Manuscrito de Cabral sobre aumento da repressão
1962
Jornal Libertação, do PAIGC, nº 33, Agosto, a assinalar massacre de Pindjiguiti
1963
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Discurso de Amílcar Cabral: “Devemos lembrar que não chega produzir, ter a barriga cheia, fazer boa política e fazer a guerra. Se o homem, a mulher, um ser humano, faz tudo isso, sem ele próprio avançar como ser inteligente, como primeiro ser da natureza; sem ele próprio sentir que cada dia aumentam na sua cabeça os conhecimentos do meio, como do mundo em geral, quer dizer sem ele avançar no plano cultural, tudo aquilo que faz - produzir, fazer boa política, combater - não dá resultado nenhum.” intervenção em reunião de quadros do PAICG, Novembro de 1969
em “Nô Pincha”, manual de formação, sem data
1969
TER UM PAI APELIDADO DE TERRORISTA E PERSEGUIDO PELA PIDE Na família o meu pai era apelidado de terrorista. Eu miúdo ouvia isso de primos e colegas da minha idade sem entender o que era, mas parecia mau, pois sempre que a palavra era referida levava uma repreensão. Fazia quatro anos que o meu pai tinha enviado a família de Bula para Bissau por supostamente ter melhor ambiente escolar. Na realidade a nossa casa em Bula estava numa zona de ataques permanente mas nunca foi atacada. Nós corríamos para debaixo da cama mas o meu pai circulava sem parecer ter medo. Era uma das poucas casas da rua principal que não tinha “abrigo”, uma divisão de paredes reforçadas para recolher a família durante os ataques, sempre ao fim do dia ou a meio da noite. Meu pai descobri, depois foi preso pela PIDE porque fornecia arroz e víveres à unidade da guerrilha comandada pelo Comandante Gazela.
1970
Foi apanhado e levado para a primeira esquadra onde foi submetido a interrogatórios e depois encarcerado. Ficou preso quase um ano e quando finalmente o libertaram estava envelhecido, bebia muito e teve imensas dificuldades em restabelecer a produção de aguardente em Bula. As tropas portuguesas tinham dinamitado todas as instalações de Placo, a 3 km de Bula, como represália. A partir desse momento começaram os problemas financeiros. O meu pai continuou sobre o olhar da PIDE e teve várias vezes de se apresentar para interrogatórios, suponho que também na primeira esquadra e nas delegações da própria PIDE em Bissau. As suas relações mudaram e passou a ser um homem verdadeiramente do povo, almoçando todos os dias com o seu melhor amigo, o seu condutor João Mendes, um manjaco distinto que morreu depois dele nos anos 80. O meu pai nunca se recompôs do ponto de vista de saúde e apesar da amizade indefectível de muitos dirigentes do PAIGC que velavam para que os chineses do Hospital de Canchungo, na terra que o viu nas-
cer, lhe dessem o melhor tratamento, faleceu com apenas 53 anos. A minha curiosidade sobre o nacionalismo guineense levou-me muitas vezes a inquirir o meu pai sobre o seu envolvimento. Com a modéstia e descrição que lhe era conhecida, ele minimizou sempre o seu contributo, louvado em contraste pelos seus inúmeros visitantes e admiradores. Falava fluentemente balanta, fula, mancanhe e manjaco. Era conhecido como “mandjako branku”. Carlos Lopes, depoimento recolhido por Tony Tcheka
Bissau com 47.000 habitantes, sendo 40.000 nativos em “Relatório da Comissão Eventual de Serviço do Arq. Moreira Veloso na Guiné”, 1971, IPAD/MU
1971
A BOLA DE BORRACHA REFORÇADA E OS PONTAPÉS NO RABO Primeira Esquadra. Assim era conhecida. Mas para os meninos de Bissau Velho, Tchada, Sanzala, os bairros contíguos, era simplesmente kalabus. Uma vez fomos para lá levados por um dos famosos polícias da época, o 11, que a exemplo de outros colegas não brincava em serviço. Exibia uma destreza apurada em lidar com o cassetete sempre pronto a açoitar. Eramos um grupo de umas dez ou doze crianças, entre os 10 e 12 anos, talvez mais, todos da zona compreendida entre a Tchada e a Sanzala (bairro dos musikerus) ao desafio (forma como designavámos as partidas de futebol disputadas em plena rua, na zona do poilão do Mário Lima, (Rua Engenheiro Quinhones) quando fomos surpreendidos pelo polícia conhecido por 11 que cheio de manha e de astúcia se aproximou do local sem ser avistado por nenhum
1971-72
de nós. Em anteriores ocasiões mal algum polícia chegasse à esquina do Grande Hotel, na avenida Mouzinho de Albuquerque hoje Pansau Na Isna, era logo denunciado por um dos suplentes que tinha por missão avisar do aproximar de alguma viatura ou da presença indesejada dos incomodativos guardas. Num ápice tirou-nos a bola de “borracha reforçada”, com carimbo e tudo, comprada na Casa Tomé graças a uma subscrição (peditório) que circulou durante umas largas semanas pelas lojas e cafés da praça. O 11 sentenciou: se quiserem recuperar a bola, venham comigo porque vou entregá-la na 1ª Esquadra… Caímos no isco e lá fomos com a despreocupação própria da idade. Ouvido o 11, o Chefe, um branco com uma proeminente barriga que lhe estorvava os movimentos, e duas bolas bem avermelhadas estampadas na face bem marcada pelo tempo, sacou uma navalha de bolso e com ela esquartejou a nossa “bola de borracha reforçada”, pedaço a pedaço, enquanto dizia “sacaninhas, sacaninhas de merda…” Com a barriga quase toda
deitada sobre a secretária identificou o mais velho e o mais novo do grupo… com dois braços em forma de cristo, aplicou-lhes, em simultâneo, uns valentes puxões de orelha. Já de pé mas bem apoiado à secretária pontapeou-o com toda força… a seguir foi o mais novo do grupo a provar as mãos duras do sub-chefe. E depois lá fomos mandados embora mas todos com um chuto de despedida no rabo. Nunca percebemos a lógica daquela escolha… Logo aqueles dois??? Porquê o que aparentava ser mais velho e o kodé do grupo? É claro que à saída da esquadra, já lá fora muitos foram os que provaram o cassetete do 11 e colegas sempre prontos a aquecer a bunda de quem lá chegasse.
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Depoimento recolhido por Tony Tcheka
Mapa de Bissau, em Arquivo Mário de Andrade, Fundação Mário Soares
Preparação de novo plano director da cidade
1971-72
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TER UM TIO NA 1 ª ESQUADRA E SOFRER NA PELE
Foto da época, autor desconhecido, cedida por CS
Declaração de Independência pelo PAIGC: “Reunida na Região Libertada do Boé a 24 de Setembro de 1973, exprimindo a vontade soberana do povo, a Assembleia Nacional Popular proclama solenemente o Estado da Guiné-Bissau. O Estado da Guiné-Bissau é um Estado soberano, republicano, democrático, anti-colonialista e anti-imperialista e tem como primeiros objectivos a libertação total do povo (…)”
1973
Amnistia Internacional, no Relatório sobre a Tortura diz “receber desde 1961 alegações de tortura da Guiné –Bissau. As técnicas de tortura têm sido sobretudo físicas (…). Embora seja referido que a tortura ocorre sobretudo durante os interrogatórios, é evidentemente usada nas prisões e campos muito depois dos estágios iniciais de detenção. As autoridades acusadas eram normalmente agentes da PIDE/DGS, mas foram implicados também alguns militares” Relatório sobre a Tortura, AI, 1973
1973
O que me recordo é que algumas vezes tive de ir à esquadra levar recados da minha tia ou outras vezes porque o meu tio que era lá polícia me mandava chamar para o ajudar a resolver alguns problemas porque ele passava quase o dia todo lá… era mais, muito mais, mandava-me à feira na hora que devia ir à escola, comprar coisas que ele precisava ou para ir pedir coisas a um parente que o ajudava com dinheiro porque ele pelo que dizia recebia pouco e o chefe tuga não lhe deixava sair do posto. Ele tinha muito mau feitio. Batia-nos muito lá em casa porque vinha alterado do trabalho e já bebido… Batia-nos sem razão tanto eu como os próprios. Batia quase sempre com o cinturão da polícia. Lembro de o ver chegar à casa com manchas de sangue na roupa e dava ordens à mulher para “lavar limpo pus”. Estes gajos não têm juízo por isso têm de apanhar “findi kadera” mesmo
1973
aqueles senhores de praça quando eram levados pelos chefes da PIDE, segundo ela contava depois de tomar canecas de cana, também, levavam e bem porque uns roubam e outros estão de cabeça feita com os gajos do mato… O que mais me marcou desse kalabus foi uma vez que fiquei junto à janela e ouvi gritos fortes de alguém que devia estar lá dentro a pedir para pararem… saí a correr e fui para casa com medo. Nessa noite o meu tio acordou-me com o cinturão a marcar-me o corpo e queria saber se tinha visto alguma coisa e ameaçou-me caso falasse do que se passava na esquadra. Mas é primeira vez que falo nisto… Foi terrível… ele depois teve um problema lá e foi afastado. Mais tarde foi para outra esquadra nova, julgo que na zona de Brá, mas aí nunca foi e também uma irmã que trabalhava no hospital arranjou-me matrícula na escola dos padres. Foi a minha sorte consegui estudar. depoimento recolhido por Tony Tcheka
Novo plano director, elaborado pela Câmara Municipal, mas nunca oficializado, com identificação da 1ª esquadra
1976
UMA NOITE NO SUBTERRÂNEO DA EX-PRIMEIRA ESQUADRA A conversão da antiga 1ª esquadra policial do Bissau Velho num espaço para promoção de atividades da sociedade civil, foi uma feliz iniciativa, adequada às novas realidades do país. Se até um passado recente o edifício abrigava uma masmorra húmida e sombria, há dois anos vem sendo um sítio aberto e atrativo, onde se estimula a informação, o debate de ideias e o saber, e se exaltam a liberdade e a defesa do ser humano, exercícios indispensáveis à perpetuação destes direitos. O meu regozijo pela Casa dos Direitos também tem a ver com um episódio de triste memória que aí vivi há mais de três décadas e que espero não ver repetido. É precisamente aqui é que tive a minha primeira e única experiência de prisão. Paradoxalmente, foi num dos primeiros anos da independência, em 1975 ou 76, quando a velha ordem
1976
colonial dava lugar ao poder do partido/Estado, que vindo das matas, procurava consolidar-se nos centros urbanos. As rusgas e os controlos de identidade noturnos eram moeda corrente. Ai de quem era apanhado às altas horas da noite sem o seu B.I. Na altura, na flor da idade e a dar os primeiros passos na profissão de jornalista, nunca me preocupava em sair com os documentos. Até o dia em que, depois de um fatigante turno da paginação – que o pessoal da redação do então trissemanário «Nô Pintcha» tinha de acompanhar e que sempre se prolongava pela noite adentro – no regresso à casa, na companhia de meia dezena de tipógrafos, fomos surpreendidos por uma patrulha, e para nossa desgraça, ninguém trazia documentos de identificação. Conduziram-nos todos para a 1ª Esquadra, onde passámos o resto da noite, no escuro, à espera da libertação ao nascer do dia. Nem um menor, irmão de um colega do grupo, que chegara nesse dia da ilha de Bolama, escapou à breve detenção. Por ter chamado a atenção dos polícias de que a criança
ainda não tinha idade para possuir o B.I e nem para ser mantido em detenção, estive a ponto de passar mais um tempo suplementar na esquadra, para aprender a não discutir com a autoridade. Valeu-me a solidariedade dos meus colegas de trabalho, que se recusaram a abandonar o posto policial enquanto eu aí estivesse. Só quando os primeiros raios de sol penetraram no local é que nos demos conta das celas próximas e dos respetivos ocupantes, companheiros silenciosos e anónimos do nosso breve infortúnio. Fernando Jorge Pereira, depoimento recolhido por Tony Tcheka
PRESO SEM RAZÃO E ENTREGUE AOS MOSQUITOS Em 1978, em Bissau, fui acusado por alguém (nunca soube quem tinha sido o autor da suposta denúncia) que tinha sido visto na companhia com uma pessoa que tinha problemas com a autoridade e que estava a ser vigiado. Verdade seja dita também nem me informaram do nome desse dito cidadão que estava sob vigilância… Eu por princípio não me imiscuo nos problemas dos outros. Enquanto jornalista, sim cumpria com a minha profissão e aí sim tinha de falar com todos… aliás nessa altura se a memória não me atraiçoa até me encontrei com o meu colega Fernando, creio que também com problemas… Outros problemas ou talvez idênticos… foi há muito tempo mas não gosto nem de pensar nisso. Não havia razão. Estive lá detido 48 horas, e no final desse tempo recebi ordem de soltura sem saber as verdadeiras
1978
razões da minha detenção. Além dos gritos no interrogatório não fui espancado. Percebi que quando souberam que eu era jornalista recuaram. Disse-lhes claramente que como jornalista falava com muita gente e não podia perguntar a cada um se era vigiado ou se tinha problemas com as autoridades. A cela onde estive detido não tinha condições nenhumas, cheirava a podre… estava empestada de humidade… os mosquitos eram os meus companheiros… esses sim torturam-me toda a noite não me deixando pregar o olho. Comida? Fome sim, comida nem cheiro. E ali ao lado ficava a fortaleza da amura a testemunhar tudo… José Tchales, depoimento recolhido por Tony Tcheka
Golpe de Estado de 14 de Novembro. De acordo com as informações disponíveis, nos anos seguintes a prisão da 1ª esquadra é utilizada praticamente só para presos de delito comum. Nesses anos as prisões ou centros de detenção civis mais utilizados para presos de opinião ou acusados de “conspiração” ou outras de natureza política são a 2ª Esquadra e respectivo “submarino” e a prisão de Brá.
1980
Transferência dos detidos de delito comum para a prisão de Brá, com encerramento da 1ª esquadra e respectiva prisão. Instalações ocupadas nos anos seguintes por serviços do Estado relacionados com o Ambiente
Reabertura da prisão nas instalações da antiga 1ª esquadra, após destruição das instalações da prisão de Brá, durante o conflito armado de 1998/99
Compromisso do Governo de Unidade Nacional com a reforma do sistema de justiça, que inclui o melhoramento das condições prisionais Amnistia Internacional apela aos Doadores que, na Conferência a realizar em Genebra no final do conflito, que promovam e forneçam recursos para a reabilitação e reforma do sistema de justiça
Relatório da Amnistia Internacional: “Pelo menos oito outros militares foram detidos como suspeitos de conspiração. Foram presos entre 8 e 24 de Fevereiro de 2001 (…). Os detidos foram mantidos incomunicáveis por pelo menos duas semanas no Serviço de Informação do Estado, no Ministério do Interior. Foram transferidos para a Primeira Esquadra no início de Março de 2001, onde foram mantidos incomunicáveis por pelo menos mais duas semanas em celas subterrâneas sem luz nem ventilação. Depois de vários apelos da LGDH em 12 de Junho de 2001 foram transferidos para a Segunda Esquadra (…).” “Violações de direitos humanos desde o final do conflito em maio de 1999”, AI, 2001
Conflito político-militar, iniciado a 7 de Junho de 1998
1986 - 99
1998-99
1999
1999
2001
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Fotos de Claire Lauthier
Comandante da 1ª esquadra escreve ao Bispo de Bissau, solicitando que autorize que qualquer uma das Paróquias de Bissau ceda apoio em medicamentos, informando que a instalação prisional se encontra superlotada e que alguns dos reclusos “não têm saúde em condições e sem meios financeiros para aquisição de medicamentos”.
2002
Delegacia de Ministério Público manda prender preventivamente na 1ª esquadra C.E., acusada de crime de desobediência
2006
Supervisão dos Serviços Prisionais informa o Director Geral de Administração da Justiça sobre requisição feita pelo Comandante da antiga 1ª Esquadra para a necessidade de melhoramentos, pois apesar de pequenas obras realizadas pela Cruz Vermelha Internacional, sobre necessidade de camas, mosquiteiros, entre outros, para pessoal de segurança. Supervisor aproveita para informar que “a cobertura já precisava antes do início da época das chuvas da mudança de algumas chapas de zinco, o que coloca o edifício no estado de degradação”.
2006
2006
Aprovação de “Projecto de reabilitação das prisões”
2008
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Zona de cozinha no exterior, foto do relatório do Fórum de Concertação
Relatório de missão de cooperação bilateral Luso-Guineense visita a Cadeia da 1ª esquadra e considera que embora exista projecto de requalificação daquelas instalações, “dificilmente poderá atingir os objectivos (…), designadamente a criação de uma infraestrutura física segura com capacidade para alojar reclusos de acordo com os padrões internacionais vigentes (…)”
2008
“Semana de Dignidade e Justiça para os Detidos”: “(…) Primeira Esquadra: Por fim, a visita culminou no Centro prisional da Primeira Esquadra o qual acolhe a maior parte dos presos já em cumprimento da pena efectiva ou prisão preventiva. Comporta duas zonas prisionais em situações extremamente degradantes e desumanas tanto para os prisioneiros bem como para os próprios guardas, em estado avançado de ruína, sem fornecimento de luz e água. Sendo a primeira zona ocupada pelos reclusos de delitos julgados menos graves, contém divisões sem portas com paredes húmidas, os reclusos dormem em colchões desapropriados que se confundem com os próprios pavimentos. Na parte subterrânea da instalação, há uma cobertura quase inexistente. Quando chove, as celas ficam repletas de água ou melhor todas inundadas. Ficando os detidos, doentes de paludismo, cólera, pneumonia, anemia e inchaço devido às condições sanitárias e de insalubridade. Os gabinetes dos guardas prisionais não têm condições mínimas de trabalho, aliás são iguais às celas. O número de prisioneiros excede a capacidade que o espaço pode abrigar. No plano estatístico, o centro prisional da Primeira Esquadra tinha, até o dia 07 de Outubro, 72 presos, sendo 3 mulheres na mesma cela com os homens e 8 estrangeiros. A alimentação é fornecida pelo Ministério da Justiça, na maioria das vezes não é razoável e adequada. Não existe assistência médica e medicamentosa nos centros prisionais garantidas pelo Governo. Os reclusos não têm perspectiva de ressocialização, reinserção social e profissional, estão pura e simplesmente isolados dos restantes membros da sociedade, assim pode dar origem a riscos de reincidência por falta de assistência social (…)”.
EMGFA participa ao PGR sobre cidadão que utiliza órgãos de comunicação social para “lançar ataques à Instituição Militar e às suas Chefias”, pelo que pede ao Ministério Público “a tomada de providências necessárias para se pôr cobro a esta situação”. Dado o adiantado da hora foi ordenado que “o participado seja conduzido à 1ª esquadra para aguardar audição”. Comandante da 1ª Esquadra e do respectivo Centro Prisional faz informação ao Juiz do Tribunal Regional de Bissau em que refere “… No Centro dado o estado degradante em que se encontra, às vezes detido poderá estar doente”, referindo depois a insuficiência de Agentes de Serviço para proceder à guarda dos detidos conduzidos ao hospital.
Número de presos na 1ª esquadra: 12 nas celas subterrâneas (“Reclusos de baixo”) e 26 no piso térreo (“Reclusos de cima”), num total de 38.
Fórum de Concertação sobre a Situação Humanitária nas Prisões, Unidade de Direitos Humanos da UNOGBIS, Outubro 2008
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Fotos de aula de alfabetização, AIDA
Guia Médica de apresentação no Hospital Simão Mendes do cidadão Faustino Fuduto Embali. Opinião médica refere: “Paciente avaliado, cuja a contusão corporal múltipla nas costas, no tórax e nas pernas. A parte óssea cabe à ortopedia (…)”
Comandante do Centro Prisional da Antiga Primeira Esquadra faz informação ao Juiz de Bissau sobre estado de doença e necessidade de tratamento urgente de um detido, “por questão de Humanismo, (…) por que um ser humano a sofrer naquele estado sem que haja um tratamento médico”
Início de aulas de alfabetização dos detidos na 1ª esquadra, autorizada à ONG AIDA, com monitores guineenses, que a Direcção Geral de Administração da Justiça credencia para esse efeito
Fotos de Paulo Nuno Vicente
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2009
2010
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Foto da grelha de fecho do piso subterrâneo, impedindo a passagem de luz. DR
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Fevereiro : Consórcio de ONGs guineenses e portuguesas solicita ao 1º Ministro da Guiné-Bissau, com o apoio do Ministro da Educação do país, o encerramento da 1ª esquadra e respectiva prisão e a sua disponibilização para a criação em Bissau de uma Casa dos Direitos, espaço público dedicado ao trabalho em rede, de promoção dos direitos humanos no país e também para sede nacional da Liga Guineense de Direitos Humanos
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Despacho do 1º Ministro sobre proposta do Ministro da Justiça para a concessão do espaço para a criação da Casa dos Direitos 31 de Maio: encerramento da 1ª esquadra e prisão e transferência dos presos para a prisão renovada de Bafatá (os condenados) e para a de Mansoa (os que aguardavam julgamento)
2011
2011
Junho: transferência simbólica das instalações para o consórcio da Casa dos Direitos
2011
Fotos ACEP
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Plantas do projecto de obras, Arquitectos Reunidos
Setembro: início das obras de reabilitação por um gabinete de arquitectos guineenses. Transformação do espaço, com sala de exposições e reuniões públicas da Casa dos Direitos, sede da Liga Guineense de Direitos Humanos (no rés do chão), centro de recursos e coordenação da Casa dos Direitos (no espaço das antigas celas de subterrâneo).
2011
Fotos Casa dos Direitos
28 de Fevereiro: abertura da Casa dos Direitos, com a participação de muitos guineenses, autoridades do Estado e representantes da Cooperação internacional. Conferência inaugural dedicada ao tema dos direitos das mulheres na Guiné-Bissau; abertura da Exposição internacional de fotografias “Mulheres da Guiné-Bissau”, realizada com colaboração de 27 fotógrafos de 18 países; apresentação do livro “Desafios – Direitos das Mulheres na Guiné-Bissau”, primeira edição da Casa dos Direitos, realizada com a colaboração de jornalista do jornal português “Público”, que aí fez o seu projecto do Ano Europeu do Voluntariado; visionamento dos filmes de histórias de vida de mulheres guineenses, realizados pela TVKlélé, uma televisão comunitária
2012
Inauguração da Casa dos Direitos, fotos da Casa
“E, ESSES JOVENS CHEIOS DE SONHOS SÓ QUEREM AVANÇAR, NUM LUGAR ONDE O MEDO JÁ NÃO EXISTE”
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Em Fevereiro de 2014, tive o grande privilégio de voltar à Guine Bissau para animar um ateliê de Ilustração com um grupo de jovens, desta vez na Casa dos Direitos, com o apoio da mesma. O objectivo era contar em imagens alguns episódios da história da Casa quando esta era ainda a Primeira Esquadra e prisão de Bissau, durante o tempo colonial e a seguir à Independência. Duvido que a prisão tenha sido alguma vez um sonho para quem a desenhou ou para quem a construiu. Desde a sua primeira função, o tempo passou e felizmente o prédio tornou-se outra coisa: “um espaço de luta pela paz e pelos direitos, por cima do passado de uma prisão (...) E que aí continua, porque há espaços preciosos, que ficam para que a memória nos desafie a continuar”, como escreveu a Fátima Proença na sua carta de despedida ao nosso amigo Pepito. O meu ritual de cada dia era quase sempre igual: sair do hotel a pé, passar ao lado da muralha da Fortaleza de São José da Amura e chegar à Casa dos Direitos onde havia sempre alguns jovens à minha espera. Com a cabeça cheia de leituras sobre o assunto, não passava ao lado da Amura sem tentar imaginar como foram as lutas entre os Papéis e as tropas portuguesas quando estas puseram o pé pela primeira vez nesse lugar. Nos dias de hoje, a sua função actual é completamente obsoleta e o espaço deveria ser utilizado pela população. Além de ser tema para uma banda desenhada, a Fortaleza poderia abrigar uma escola de Belas Artes para todos os talentosos artistas que, na Guiné-Bissau, só precisam dum treino mais profissional para se afirmarem, quer a nível nacional quer internacional. Para voltar à intimidade do nosso estúdio, descíamos as escadas, quase em apneia posso dizer, tão azul é a cor que cobre as paredes da Casa, como
uma reminiscência do oceano presente do outro lado do edifício, ou um eco das histórias do senhor Sadjo Coromuth, que nos contou que às vezes os suspeitos, depois de torturados eram metidos por um canal abaixo “para ir dar ao mar através da corrente de água”. Para todos nós; Lionel, Taufik, Armindo, Roberto, Kevin, Nando, M’bemba, Dito, Antonio, Alvaro, Francisco, Ivarildo, Rui e o Pombo, meu assistente em 2010 para o projecto “Vozes de Nós”, com crianças e jovens em risco de exclusão, o prédio nunca foi um “clube de feiticeiros”, mas sim um oásis para a nossa criatividade. Os quartos, o pátio já não tinham a cara do inferno, mas sim de um lugar fresco onde podíamos escapar por umas horas à fúria do sol e desenhar em toda tranquilidade. Para alguns dos rapazes, foi também a oportunidade para abrir-se ao mundo, utilizando a internet. Cada desenho feito referia-se a imagens do passado, baseado nas entrevistas a alguns dos que passaram pela prisão, mas ao mesmo tempo aproximava esses jovens dedicados a um futuro cada vez mais certo e seguro. Nos rostos deles vi muita curiosidade em saber das histórias da prisão, mas nunca vi um pingo de medo. Tal como referiu a Fátima Proença, o lugar ficou como “um espaço precioso para que a memória nos desafie a continuar”. E, esses jovens cheios de sonhos só querem avançar, num lugar onde o medo já não existe. Ah, se eu fosse um velho general, com os olhos semicerrados, pronto para mais uma vez dar uma cotovelada nos meus vizinhos, para estar certo que eles não vão perturbar-me na minha cadeira de baloiço, talvez eu tivesse alguma satisfação em passar um tempinho com todos esses jovens desenhadores. Se eu fosse aquele velho crocodilo, eu também
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ficaria surpreendido pelo olhar novo do guarda, do preso, do familiar e de todos aqueles que voltaram ao lugar do seu infortúnio e que foram surpreendidos com a alteração feita. Todas as actividades que acontecem na Casa dos Direitos mostram a todos que nada é definitivo, e que o que era o símbolo amargo da repressão pode agora produzir frutas doces. Não é só a pintura azul e todos os desenhos realizados por esses jovens que mudaram o lugar, são as pessoas que o ocuparam e que, finalmente, deram-lhe uma alma. Elas olham para o mundo com curiosidade e interesse, e não com vontade de morder. Ah, se eu fosse um velho general, provavelmente, deveria fazer um esforço, um último esforço e concordar que, sim, não podemos apagar o passado, mas também não precisamos de ficar presos nele. Felizmente, não sou aquele velho general, sou um simples ilustrador que teve a sorte, mais uma vez, de conhecer uns jovens guineenses e de reconhecer o seu talento. E por isso, agradeço! E mais: durante a minha estadia, a Casa dos Direitos organizou, pela primeira vez na Guiné-Bissau, uma exposição com algumas ilustrações minhas do livro de reportagens “Ilhas de Fogo” com texto do Pedro Rosa Mendes, um projecto da iniciativa da ACEP. A Guiné-Bissau foi o primeiro país africano que conheci e, devo confessar, foi aquele que mais mexeu comigo. Pela paz, justiça e direitos humanos Obrigado Alain Corbel
“NESSA INSISTÊNCIA DE DIZER PARA NOS ENTREGAREM A NOSSA TERRA, DEU NO QUE DEU” Domingos José da Silva Queremos saber o seu nome, quem o trouxe até aqui e que informação pode nos dar. ds: O meu documento é antigo. Quem tratou foi o meu irmão mais velho. O meu nome é Domingos, sem apelido assim como o do meu pai que é Zeca. Nem o nome dele e o da minha mãe têm apelido e assim ando com os meus documentos. Havia um homem, um antigo polícia aqui na casa, ele é que tem a minha filha. Como ela já acabou o liceu e está à procura de bolsa de estudo, sou obrigado a ir fazer um outro bilhete de identidade e já o tenho, com os apelidos e tudo, mas não ando
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AMÍLCAR FALOU COM ESSE ‘HOMI GARANDI’ QUE LIMPOU AQUELE LUGAR E PASSAMOS A FAZER AS REUNIÕES ALI 50
com ele, tenho-o guardado. Quando o antigo expirar vou começar a andar com ele. No novo bilhete de identidade qual é o seu apelido? ds: Domingos José da Silva. Queremos que nos conte a sua história, o Domingos é trabalhador no porto? ds: Eu sou trabalhador do porto desde 1948. Até 1957, estivemos ligados com o Amílcar Cabral. Houve um barco da [Casa] Gouveia que veio e trouxe tratores para uma empresa na Granja. Nesse tempo Bissau não tinha ponte: um barco pequeno é que fazia a descarga, nós os marinheiros é que tirávamos com corda as cargas pesadas. Aquele barco trouxe 6 tratores e carros de mão e Amílcar Cabral foi para receber os 6 tratores e foi para Casa Gouveia ver um barco que poderia tirar todos os 6 tratores de uma só vez do porto. Quando o Amílcar Cabral chegou mandou confirmar o número que tinha chegado e chamar os marinheiros que poderiam descarregar os materiais sem danos - mandou chamar 30 marinheiros, 15 foram para o porão e os 15 no porto. Ele ficou parado e a olhar para nós enquanto trabalhávamos. Com cordas tirámos todos os tratores. Quando acabámos, mandou dizer que nenhum de nós se fosse embora, veio tirou dinheiro e pagou cada um de nós. Assim começou a ligação connosco e começámos a primeira reunião na Granja, mas como havia pessoas que vinham dos lados de Antula, ao passarem e viam-nos aí,
perguntavam-se o que estaríamos ali a fazer ou se passámos a trabalhar naqueles lados, logo o Amílcar desconfiado, pediu que ninguém soubesse o que fazíamos ali. Entrou em contacto com um homem ‘garandi’ que estava em Bandim onde se fez a Cicer, que era um mato de ‘cabaceira’, falou com esse ‘homi garandi’ que limpou aquele lugar e passamos a fazer as reuniões ali, onde o tio Lino fez a sua casa era uma zona de cerimónia de ‘fanado di pepel’. Como vieram a descobrir o que fazíamos lá, já não tínhamos meios, Amílcar Cabral não tinha meios, acabámos por nos mudarmos para ‘djiu di galinha’, ninguém sabia o que lá íamos fazer, apenas nós os marinheiros é que sabíamos, não contámos a ninguém nem mesmo os brancos da Gouveia sabiam, como nesta terra há muitos intriguistas alguém podia dizer ou contar que tínhamos ligação com Amílcar Cabral. Porquê da nossa ligação com Amílcar Cabral? Fomos para o mato de Npakake, fica em Cantchungo, não sei um de vós conhece, é um local onde as pessoas apanham trombose vão se tratar, foi aí que começou o problema de 3 de Agosto que veio a dar no que deu e vim para a prisão. Quando veio para a prisão, o que fez que o fez ser preso? ds: Naquele dia, faltava um quarto de hora para às 4 da tarde quando vimos polícias a correrem com armas para nós. Se estivéssemos dentro do quintal da [Casa] Gouveia aí é que morreriam todos os marinheiros. Havia um homem que estava em cima de uma árvore que viu o
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Carreira a ligar à polícia para virem matar os marinheiros por causa do cão dele que morreu, este problema do 3 de Agosto começou por causa da morte de um cão e isso é que muitos não sabem. Fomos para aquele mato e a comida que tínhamos acabou. No dia seguinte, sábado, decidimos que iriamos para Cantchungo comprar peixe. Apanhávamos ‘cacri’ para comer tanto ao almoço como ao jantar, então escolhemos 6 marinheiros. Saímos às 4h da tarde e só chegamos às 6h no porto de Cantchungo. Não havia casas perto do porto só um poilão. Puxámos o bote até que o pudéssemos deixar seguro. Escondemos os remos no cemitério e cobrimos com areia e com uns paus pequenos fizemos um sinal para saber onde os escondemos e cada um saiu à procura de sítio ou casa onde nos pudessem deixar tomar banho. Naquele tempo Carreira é que era o administrador de Cantchungo. Nessa altura o único entre nós que estava vestido de jardineira era o Ntonolo. Quando chegámos, vimos o administrador sentado com a sua esposa e perguntou ao Ntonolo o que nós fazíamos ali, disse que precisávamos de um sítio para dormir. Ele tinha um cão que estava fechado. Só saía para comer e o cão quando o largavam corria para a feira de Cantchungo e estragava as coisas das pessoas. Nós não sabíamos e quando nos viu ficou agitado, mas Ntonolo contou-lhes quem eramos nós. Carreira libertou o cão que era muito grande como uma vaca. Esse cão mordeu um balanta de nome de Salino e fugiu. Então Ntonolo disse para ninguém se assustar porque a sua mordedura pode
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matar, o cão voltou a atacar o “mandajco de djol”, uma terceira vez foi para atacar Ntonolo, como ele é uma pessoa que tem força, continuou a dizer às pessoas para não correrem e golpeou o cão com o soco que o fez sangrar e o cão morreu. Carreira levantou-se de onde estava sentado com a esposa e entrou para dentro de casa. Nós fomos embora ver onde poderíamos dormir. Nessa época havia um senhor que estava no armazém da Casa Gouveia de Cantchungo, fomos até lá pedir um
espaço para dormir e o senhor disse-nos que o armazém estava cheio de ‘mancarra’ e que não havia espaço e nós dissemos-lhe que nem que fosse no chão poderíamos estender sacos e dormir. Levámos as duas pessoas feridas para o hospital, telefonámos para Bissau e nos disseram que iam mandar 2 marinheiros para substituir os outros dois que foram mordidos pelo cão. Havia um condutor de nome Djalifai, mandinga, que estava nos lados de Farim, às 10H da noite viu-nos em Cantchungo, ele tinha trazido os dois marinhos que iriam substituir os dois feridos. Ficámos aí até ao amanhecer e depois voltámos para o cemitério para ver se os remos que deixámos ainda lá estavam e nisto vimos que estavam a enterrar o cão em casa do cipaio e o Ntonolo apenas disse que continuássemos a andar e que ninguém dissesse nada. Vimos os remos onde estavam e ao voltarmos o Carreira chamou o Ntonolo e disse-lhe: “este cão que mataram vais vos custar caro em Bissau”. Logo o Baticã Ferreira, régulo de Cantchungo, disse a Ntonolo “Se chegarem a Bissau podem se queixar do Carreira pois há um administrador acima dele”. Chegámos a Bissau e Ntonolo nada fez ou disse e mais ou menos 10 dias depois Carreira veio para Bissau como administrador da Casa Gouveia. Relembrámos ao Ntonolo do que o régulo tinha dito, pois Carreira tinha vindo para se vingar do seu cão. E o que foi que ele fez? A primeira coisa foi nos deixar de dar dinheiro de “mafé”, pedimos-lhe que nos desse dinheiro, mas recusou e nós também decidimos, como ele não nos dava dinheiro do “mafé” e nós não queríamos comer
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arroz branco sem molho, decidimos que nenhuma lancha sairia para viagem. Desligámos tudo, pedíamos dinheiro e ele nada, então o que ele já planeava era matar-nos na Casa Gouveia no próprio quintal da Gouveia. Tínhamos um capitão que era mesmo homem, nós dizemos que somos homens, mas esse capitão era realmente um homem. Foi ele que nos disse para sairmos todos e fomos para aquele espaço onde fizemos aquela que mão que chamamos “mon di timba”. Lá era um armazém ultramarino, éramos muitos e Carreira veio e perguntou-nos o que nós queríamos e nós respondemos: queremos a nossa terra, já não queremos dinheiro, sempre que perguntava respondíamos o mesmo: “Queremos a nossa terra!” “Querem a vossa terra, então vão ver”. Telefonou para a polícia e logo depois vimos a polícia a correr com armas na nossa direção e disse à polícia que assim que chegassem ao porto de Pindjiguiti que disparasse em qualquer alguém que visse, e começou essa confusão quando era um quarto para às 4 da tarde. Os estivadores que estavam dentro todos foram mortos. Quando preparávamos os cadáveres para o cemitério mandou pegar num tanque de gasolina para queimar os cadáveres. Logo alguém foi contar às nossas “mindjeres garandis”. Elas amarraram pano preto e vestiram camisa branca a chorarem e a pedirem que os corpos dos filhos lhes fossem dados em vez de serem queimados. O homem com quem falaram não sabia que tinham queimado os corpos. Foi com as mulheres ao porto. Nós que conseguimos escapar, ao sairmos do local fomos logo apanhados e trazidos para
aqui para a prisão. O que me fez não permanecer muito tempo aqui foi porque apanhei um tiro na mão. Aqui na prisão? ds: Fiz sete dias, havia um branco que estava cá, ele é que estava de serviço e estava a sentir o cheiro da minha mão, tinha a mão muito inchada. Sentindo este cheiro, era num domingo, chamou um polícia que estava aqui de nome de Farah, e perguntou a este que cheiro era aquele, o Farah respondeu que lá tinham um marinheiro que estava com uma
ferida, mandou tirar-me e assim que viu correu e mandou o Fara levar-me para o hospital. Fui levado para o hospital para o Banco de Socorro, levei 7 pontos e a ordem que o Farah tinha era que depois de ser curado que me levasse de volta para a prisão, mas como o Farah teve pena de mim, saímos do Banco de Socorros e fomos diretamente para Benfica. Está a ver aquele caminho que dá para a Embaixada de Portugal que se chamava gã-mané, que vai dar ao Alto Crim? Naquele tempo os policiais por volta das 9h da noite, agrediam e obrigavam
muitas pessoas a se recolherem, quem ficasse até mais tarde na rua e fosse visto pela polícia era preso, e nós naquele tempo fugíamos por aquele caminho do Alto Crim e saíamos no Benfica, ficávamos lá até por volta das 8h da noite. Às 9h certinhas a polícia já começava a agredir as pessoas para recolherem e irem dormir. Como Farah tinha sentido pena de mim disse-me: “conheces este caminho?”, eram por volta das 6 e tal eu disse-lhe: “sim conheço o caminho”, ele perguntou-me “conheces mesmo? Pois eu disse que quando te tratasse no hospital voltaríamos para a prisão, mas vou-te deixar ir para casa, porque disseram-te que tinhas que voltar daqui a dois dias para fazeres os curativos, vou-te deixar ir para casa, vou dizer ao meu chefe de que fugiste” e fui. Naquele tempo, havia um homem branco que tinha casado com a minha irmã mais velha, moravam na estrada que vai dar à chapa, tinham lá uma casa, fui para lá, e dois ou três dias depois fiz aquele mesmo caminho para ir para o hospital. Farah tinha-me dito se eu fosse visto, seria culpa minha. Quando chegou à prisão perguntaram-lhe por mim, ele disse que se descuidou no Banco de Socorros e eu aproveitei para fugir. Mas durante o tempo que esteve preso, como é que passaram aqui? ds: Aqui? Naquele tempo não havia tanque, serrava-se barril, cada barril levava 4 sacos, cada um tirava um saco e deitava-se no cimento com o saco molhado.
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EU ESTAVA NA GOUVEIA A AJUDAR OUTRAS PESSOAS E FOI ASSIM QUE APANHEI TIRO
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Era obrigatório? ds: Era, não podíamos negar, tínhamos que dormir com o saco molhado até ao amanhecer. Estava aqui uma fonte e essa fonte tinha tampa e uma vala, quem está no porto pode ver essa vala, quando a fonte enchia desaguava para essa vala. Naquele tempo espancavam as pessoas até desmaiarem e quando viam que não podiam ir para o hospital, como a fonte tinha tampa pegavam nessa pessoa e largavam nessa fonte. A pessoa morria? ds: Sim, a pessoa já não tinha salvação e a família fica sem saber de nada (lamentação). Mas aquela fonte quando punham as pessoas iam para… ds: Enchia-se de água e entrava até aqui e quando desaguava levava a sujidade toda para o rio, quando é assim já só se via ossos. Quanto tempo fez na prisão? ds: Fizemos 45 dias, mas eu saí e deixei os meus colegas. No tempo em que esteve aqui, qual foi o momento que mais o marcou e de que se ainda lembra? ds: A forma como passámos, porque contámos aos brancos que queríamos a nossa terra, como já não nos davam dinheiro, queríamos a nossa terra, que nos entregassem apenas a nossa terra, não iríamos para lado
nenhum ou viagem, que nos entregassem apenas a nossa terra, nessa insistência de dizer para nos entregarem a nossa terra, deu no que deu. E hoje como se sente? ds: Estou bem porque fiquei na minha terra, em vez de sofrer o castigo que os brancos faziam sofrer o meu pai, agora mesmo que nos estejamos a castigar não é mau, porque a terra é nossa. Vocês eram marinheiros da Gouveia? ds: Nós éramos marinheiros da Gouveia, Ultramarina, Casa do Sol, Barbosa, Companhia Francesa. A vossa companhia é que mais apanhou no porto? ds: Sim, éramos a maioria. Havia um branco que trabalhava na administração do porto chamado Romeu, tinha uma casa aqui em “Canbanco”, aquela casa é que era a administração do porto e a casa à frente era da capitania, a polícia não disparou sobre ele, porque ele era branco, mas se fosse preto tinha-o feito. Muitas pessoas tinham morrido e muitas tinham caído na água, eu estava na Gouveia a ajudar outras pessoas e foi assim que apanhei tiro. Explicou-nos da sua história na prisão que agora chama-se Casa dos Direitos. ds: Foi isso que me contaram em casa um rapaz chamado João, não sei quem lhes indicou aqui, disseram que foram até a casa do Nbana e este lhes indicou aqui.
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UMA VEZ NA RÁDIO PERGUNTARAM-ME SE EU TINHA ESCRITO, EU RESPONDI QUE NEM O MEU NOME SEI ESCREVER Nbana é o seu colega? ds: Sim, Nbana é o meu colega, estivemos todos no barulho de Pindjiguiti mas o que eu experienciei não vou esquecer, uma vez na rádio perguntaram-me se eu tinha escrito, eu respondi que nem o meu nome sei escrever, o que eu passei não sei escrever. Se o Ntonolo tivesse ouvido o que régulo Baticã disse em Cantchungo! Sabem que os mandjacos chamam a rabo, desculpem-me, “ntambe”, puseram-no esse nome (risos).
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Os polícias que dispararam eram brancos? ds: Não, eram filhos da Guiné. Os filhos da Guiné é que mais mataram? ds: Sim. Mas sob ordem dos brancos? ds: Sob ordem dos brancos, mas os brancos já diziam que nós éramos filhos de Amílcar Cabral. Quando vinha ficávamos todos contentes, queriam saber o que Amílcar Cabral falava connosco e por isso não contávamos e quem contasse já sabíamos como fazer com a pessoa. Lembra-se de que ano saiu para entrar na luta? ds: Não, eu não fui para a luta, em 1962 é que ia sair para a tropa portuguesa, fui para Bafatá, deram-nos um pão grande e um bom copo de leite (risos) mandei contar à minha mãe que me disse para
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ficar descansado que eu não iria para a tropa, por eu ser muito magro e fui servir. Naquele tempo se não ia à tropa pagavam taxa? ds: Sim, tínhamos que pagar taxa, naquele tempo quem não tivesse 4ª classe não podia sequer tirar o bilhete de identidade, só quem tinha é que podia e quando se ia casar, só depois com a guerra é que todos podiam fazer o bilhete, mas naquele tempo sem a quarta classe não se podia tirar o bilhete. Vamos findar este momento como Domingos José da Silva, nasceu em 35, trabalhou no porto em 48 até 57 na altura não havia ponte e tinha dificuldade em transportar materiais… ds: Sempre que precisarem de mim podem-me contactar.
“HÁ-DE CHEGAR UM DIA EM QUE VAMOS PODER LIVREMENTE EXPRESSAR A NOSSA VONTADE, A NOSSA OPINIÃO” Luís Nancassa Como é que o senhor chegou aqui? ln: Primeiro eu gostaria de dizer que me chamo Luís Nancassa, sou professor do ensino secundário, casado, pai de 4 filhos, actualmente, para além do professorado, exerço o cargo de presidente do Sindicato Nacional de Professores (SINAPROF), sou membro fundador desse sindicato. Este sítio na altura era um cárcere, ou seja uma prisão. Lembro-me que
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era no mês de Março de 1976 numa tarde em que um jovem da família que veio de Bula passar as férias com a família que vivia no bairro de Luanda em Bissau. Nessa altura eu morava com o meu irmão no bairro de Santa Luzia onde está agora o edifício da SNV. Era uma casa que pertencia à família Domingos Baticã. Esse jovem que veio de Bula não sabia como localizar a família que morava em Luanda. Passou pela minha rua e solicitou que o acompanhássemos até à casa dessa família e foi o que fizemos. Acompanhámo-lo, e no regresso, já a escurecer, era noite mesmo, precisamente onde está aquela casa de madeira que dizem que é a casa do Nino, que para quem sai de Luanda fica à direita, quase ao lado do edifício do falecido Agostinho Lopes, encontramos com a polícia que numa viatura que se dirigia ao bairro de Luanda, focaram a luz máxima. Por não conseguir ver coloquei a mão na testa para poder ver bem onde colocar os pés. No entanto, o carro veio diretamente sobre mim. Pararam e um que estava ao lado do condutor disse-me: “Seu mercenário de merda porque é que estás a esconder o rosto?”, desculpem-me a expressão, e eu disse-lhe “Mercenário eu? O que eu tenho para o senhor me chamar de mercenário, estou armado? Participei em alguma sublevação? Que mal fiz? Vocês usam termos que não conhecem o significado”. Ele indagou-me da seguinte maneira: “Você chama-me de incompetente e afirma que utilizei o termo mercenário e que não sei o significado”. Disse-lhe: “Sim senhor. Eu não fiz nada de mal, não participei em nenhum ataque, não fiz mal algum a este país para o senhor estar a tratar-me por mercenário”. Ele res-
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ponde: “Ah você não tem medo da polícia?” E eu disse-lhe: “Por que é que hei-de ter medo da polícia se não fiz nada para que a polícia me persiga?” “Então como disseste que não tens medo da polícia vamos levar-te para a polícia”. Levaram-me desta forma para a polícia, obrigaram-me a entrar no carro e eu entrei e levaram-me para a brigada da polícia onde funciona agora a polícia judiciária de Bandim. Eram por volta das 8h30 e deixaram-me lá sentado até à meia-noite. Mais tarde, a equipa que saiu para fazer a ronda da cidade chamou-me e meteu-me num jipe. Levaram-me até ao alto Bandim, pararam o carro, mandaram-me sair e puseram-se à minha volta. Um deles disse: “Tu não vais fugir? Trouxemos-te aqui para fugires e não vais fugir?” Eu disse: “Não, não vou fugir, não fiz nenhum mal para fugir, não cometi nenhum crime para fugir, se quiser me matar mate, porque matando-me aqui podem argumentar o que quiserem porque o morto já não fala, não estará para justificar, morrendo eu amanhã não vou dizer trouxeram-me aqui e fuzilaram-me, podem matar-me, mas eu não vou fugir porque não cometi nenhum crime”. Então todos ficaram calados, num silêncio absoluto, não controlei o tempo, mas posso dizer que devem ter passado 10 minutos sem ninguém falar com ninguém. Depois mandaram-me entrar no carro, entrei e trouxeram-me diretamente para aqui [esquadra], entregaram-me a um tal de Augusto, cujo apelido já não me recordo. Puseram-me no gabinete lá em cima, passado algum tempo, perguntou-me: “Porque é que te trouxeram aqui? O que foi que fizeste?” Eu contei toda a história e ele disse: “Se é assim eu vou
ligar para a 2ª esquadra e se for mesmo verdade o que estás a dizer vou-te libertar.” Depois perguntou: “Tu és da tal etnia?” Eu disse-lhe: “Não, não sou dessa etnia. A minha etnia é a mancanha”. Então calou-se (risos). Passaram-se quatro, cinco minutos até que chamou o carcereiro pelo nome, parece-me, Nbande. Disse-lhe: “Nbande, leva este para a cela”. Ele veio, pegou-me pela aquela porta e a outra, e levou-me para a cela Sul. Fiquei lá durante 3 dias sem poder sair. Ao quarto dia tiraram-me de lá e passaram-me para esta cela grande. Fiquei lá durante 15 dias. No décimo sexto dia soltaram-me, sem me ouvirem, sem me conduzirem à justiça para saberem que mal eu tinha feito que justificasse eu ficar preso durante 15 dias. Foi o que aconteceu. Continuamos a ter esperança numa Guiné de justiça, numa Guiné onde todos nós tenhamos a oportunidade de viver tranquilamente e na liberdade. Ou seja, o seu é um caso de julgamento policial arbitrário. ln: Para mim é um caso arbitrário completamente. Podiam ter matado ou batido, porque no momento em que me convidaram a fugir, se eu não tivesse refletido e tentasse fugir iriam-me abater. Iriam dizer “tentou fugir e por isso abatemo-lo”, mas felizmente refleti e tive a coragem de lhes dizer de que eu não iria fugir porque não cometi nenhum crime. Estavam lá cerca de sete polícias, houve um que até lhes disse: “não façamos isto com este menino, ele ainda é jovem”. Na altura eu estudava a décima classe que na altura era o primeiro ano do curso complementar. Tinha mais ou
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TRÊS DIAS NA CELA SUL, QUE COM A ENCHENTE DO MAR FICA COMO QUEM ESTÁ DEBAIXO DO CHUVEIRO A TOMAR BANHO menos 20 anos. Houve um que lhes disse: “não temos razão para trazer este menino aqui a ponto de tentar magoá-lo psicologicamente, obrigá-lo a fugir e depois…” Como foram os dias na prisão? ln: Foram três dias na cela sul, que com a enchente do mar fica como quem está debaixo do chuveiro a tomar banho. Nessa cela nunca faltava água, quando me meteram lá, entrei e a água estava à altura do meu peito. Durante os 3 dias estive sempre molhado, cheio de água, sempre, com a roupa molhada, tudo. Era um espaço exíguo que não dava para deitar e nem para sentar, a pessoa tem de ficar de pé. Depois de 3 dias tiraram-me de lá e passaram-me para esta sala. Só saí na manhã do dia 16, precisamente naquele dia em que eu saí foi no dia que chamaram pessoas para mandar para a ilha de Caraxe. Como eram as condições da prisão? ln: Este espaço era uma sala só, como está assim, dormiam ali muitos prisioneiros. A roupa com que vim para a prisão foi com essa que fiquei até se secar, não tinha como trocar e eu fiquei uma semana sem a minha família saber onde eu estava, não sabiam o meu paradeiro, não me podiam mandar comida. A comida que me davam aqui eu não podia comer, porque eram as sobras da comida que eles comiam lá, só depois é que davam aos prisioneiros através daquela lata de leite condensado. Era através dela que mediam a quantidade da comida para os
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EU FIQUEI UMA SEMANA SEM A MINHA FAMÍLIA SABER ONDE EU ESTAVA, NÃO SABIAM O MEU PARADEIRO 72
prisioneiros. Mediam e davam a cada um. O que vivi aqui contribuiu grandemente para a minha maturação como homem. Fiquei quase uma semana sem comer. Eram restos da comida dos polícias que misturavam com restos de peixe, esqueleto de peixe, ossos, tudo e davam naquela latinha de leite condensado. Eu não conseguia comer. Não tinham cama aqui? ln: Não havia camas, as pessoas dormiam no chão, aqueles que tinham oportunidade dormiam sobre cartões, papelões e quem não tivesse dormia no chão. E essa porta, assim é que estava? ln: Sim, creio que não mudou, aquela também não mudou e vocês podem ver, só pintaram a porta, ali só tinha uma torneira que só tinha espaço para a pessoa pôr a mão e apanhar água, só com a mão é que se podia apanhar água, não podia utilizar copo nem nada e era ali debaixo da torneira que os prisioneiros defecavam, faziam as necessidades e essa água que levava as fezes, portanto não tinha outra alternativa. Tudo isso foi em 1976, já na independência? ln: Sim, foi 2 anos depois da independência. O PAIGC proclamou a independência em 24 de Setembro de 1973.A 10 de Setembro de 1974 a independência foi reconhecida pelo governo português e foi a partir daí que se deu a trégua. Bom, se deu a trégua depois do 25 de Abril, mas
podemos dizer que o país ganhou a sua plena liberdade a partir do reconhecimento pelo governo português do estado da Guiné-Bissau em 74. Naquela altura as pessoas deviam estar eufóricas, as pessoas deviam estar felizes, a polícia muito flexível com as pessoas, mas no entanto parece que isto é mais do que o golpe de 80? ln: Mesmo em 74 apesar do país estar livre do jugo colonial, quanto a mim não havia aquela liberdade no verdadeiro sentido da palavra, de a
pessoa poder manifestar livremente o que sentia. A manifestação tinha que ser a favor do partido do Estado, porque antes da queda do artigo 4 que aclamava o PAIGC como o partido do Estado, quem se manifestasse livremente era tido como quem estivesse contra o partido PAIGC e contra o Estado da Guiné-Bissau. A manifestação tinha que ser a favor do PAIGC para ser considerada uma manifestação livre. Quem apresentasse uma ideia contrária era tido como um reaccionário, mas a minha prisão não se deveu a nenhum desses factos. Eu não estava em nenhuma manifestação, nem fiz mal nenhum, pura e simplesmente, para poder ver onde pisava os meus pés tinha que proteger os meus olhos da luz do carro, para poder andar, porque o carro vinha ao meu encontro e o condutor focou aquela luz máxima, como eu não conseguia ver, tinha que me proteger e o proteger-me não tem nada a ver com a reação ao ponto de me chamarem de reaccionário. É uma história de loucos, absurdo. ln: Pois, essa palavra me custou a prisão de 15 dias. Quem eram os outros prisioneiros que estavam lá, eles tinham feito o quê? Eram ladrões, criminosos, soldados? ln: Falei com muitos, mas lembro-me principalmente de um “homi garandi” muçulmano que, depois de me terem transferido para esta cela passou a tratar-me como sendo seu filho. Dava-me conselhos,
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animava-me, porque de facto eu era dos mais jovens que se encontrava aqui. De resto, os que estavam, nem me passou pela cabeça tentar saber por que razão vieram para aqui, se cometeram crime, se roubaram, não me passou pela cabeça, foi uma experiência muito dura para mim naquela altura.
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Os seus familiares quando souberam o que fizeram? ln: Eles nem sabiam onde eu estava encarcerado, só foram informados de que eu tinha sido preso e durante uma semana não me conseguiram localizar. Só depois com a intervenção de uma pessoa é que eles conseguiram saber que eu estava encarcerado aqui, porque, segundo a informação do meu irmão mais velho procuraram por todos os lugares e não havia ninguém que lhes pudesse dar a informação de onde eu estava, em que situação ou unidade prisional eu me encontrava, ninguém sabia. Depois do meu irmão descobrir onde eu estava é que passaram a mandar o pequeno-almoço, almoço e não deixavam jantar, permitiam que viesse apenas o pequeno-almoço e o almoço, jantar não. Mandaram-me roupa para me trocar e cobertores para eu usar, não deixavam também vir o colchão, a pessoa tinha que dormir no chão. Os familiares vinham cá em baixo ou ficavam lá em cima? ln: Em baixo ninguém vinha, ninguém entrava aqui. Uma coisa que me chamou atenção é que havia grades, então a luz lá dentro, como era a luz? Qual é o tipo de luz que vocês tinham?
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HÁ DOIS PESOS E DUAS BALANÇAS, HÁ PESOS PARA PESAR AQUELES SEM PODER E PESOS PARA PESAR AQUELES QUE TÊM PODER 78
ln: Não tínhamos luz.Era escuridão total, só apanhávamos luz quando o sol apontava porque havia uma parede ao limiar daquele espaço. Ao longo da sua vida como professor e presidente da SINAPROF sentiu que pudesse haver outros momentos assim tipo absurdo, da parte da polícia, governo? ln: Essa não foi nem a primeira nem a última. Depois de fundarmos o sindicato também estive preso, no dia em que decretámos a greve mandaram-me prender, levaram-me para a polícia de segurança máxima em Brá, edifício que já não existe, é onde atualmente está a paragem. Depois na guerra de 7 de Junho por ter a minha opinião contrária na altura do falecido Ansumane, também me mandaram prender e quando a guerra na fronteira entre a tropa guineense e ditos rebeldes de Casamance, por manifestar também a minha opinião contra essa guerra, porque entendi e entendo que a Guiné-Bissau não devia intervir nessa guerra porque é algo que não diz respeito à Guiné-Bissau, os independentistas do Casamance lutam com o poder senegalês proclamando a independência de Casamance, não lutam contra a Guiné-Bissau, o país não podia cometer o pecado de se meter nessa guerra, manifestei a minha opinião e também fui preso, e foi assim a história. Há-de acabar, há-de chegar um dia em que vamos poder livremente expressar a nossa vontade, a nossa opinião e…
Há um problema de impunidade aqui na Guiné, as pessoas que fazem mal nunca são presos, são julgados? ln: A meu ver penso que na Guiné há dois pesos e duas balanças, há pesos para pesar aqueles sem poder e pesos para pesar aqueles que têm poder e que a meu ver, bom, eu não posso dizer que cometem crimes porque só podemos considerar a pessoa criminosa quando for julgado e condenada, mas concordo com a maioria das opiniões de que há impunidade na Guiné-Bissau, há crimes que mesmo conhecendo quem o comete esta pessoa não é minimamente abordada nem sequer julgada e punida, portanto considero e concordo de que há impunidade.
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“DA MESMA FORMA QUE UM SER HUMANO MUDA, A CASA TAMBÉM DEVE SER MUDADA” Sadjo Coromuth Como é que se chama e qual era o seu trabalho? sc: O meu nome é Sadjo Coromuth. Eu era polícia e nos últimos tempos fui mandado aqui como guarda prisional. Nós chegámos na prisão num momento de grande dificuldade tanto para os prisioneiros como para os guardas prisionais. Havia escassez de comida. A comida de cada um vinha de casa. Se não viesse, ficávamos sem comer. Isso foi em que anos, pode se lembrar? sc: Foi em 2006.
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NADA É SUFICIENTE NO MUNDO, MAS AQUELE DINHEIRO NÃO COBRIA O NÚMERO DE PRISIONEIROS QUE CÁ ESTAVAM 82
Em que ano é que começou a trabalhar como guarda? sc: É nesse mesmo ano que vos disse. Eu fui militar, antigo combatente, depois da independência ingressei no Ministério do Interior como polícia. Fiquei lá até ao momento em que precisaram de mim aqui na prisão como guarda prisional e deparei-me com as dificuldades que vos disse. Apareceu depois uma ONG, se não me engano espanhola, que fez esforço e pôs uma cozinha aqui. Passaram a dar arroz, óleo, pão, coisas para que se conseguisse cozinhar. Mas o dinheiro que davam para a feira, era um dinheiro que saía do tribunal para a compra de outros produtos necessários para se cozinhar. Esse dinheiro era suficiente? sc: Aquele dinheiro, bom... nada é suficiente no mundo, mas aquele dinheiro não cobria o número de prisioneiros que cá estavam. Não chegava e ficámos assim até ao dia em que os tiraram daqui e foram levados para a prisão de Mansoa e de Bafatá. Na altura havia pessoas que cá estavam que cometeram homicídios, outros que estavam envolvidos com problemas políticos, burla de dinheiro, outros por problemas familiares, diferentes tipos de casos. Segundo a história, diziam que a água saía por aqui sc: Exatamente, a água saía daqui. Naquele tempo da colónia portuguesa, os tugas estavam a torturar pessoas. Apanhavam as pessoas que estavam em movimentações clandestinas e em contacto com os revo-
lucionários que estavam no mato. Quando suspeitavam dessas pessoas prendiam-nas e torturavam-nas. Metiam-nas nesse canal abaixo para irem dar ao mar através da corrente de água. O nome dessa cela era sul? sc: Sim, mas chamávamo-la de isolamento. Era só essa cela que tinha esse nome de sul, ou havia outras celas com outros nomes? sc: Esta cela aqui chamávamos de pavilhão, que era a cela maior que tínhamos. Esta também era uma cela, onde vi que puseram secretárias. Lá ao fundo estava sempre escuro, houvesse noite ou dia, estava sempre escuro, escuridão absoluta. Está a ver aquela janela lá fora? Essa janela não existia. Só um bocadinho de ar que entrava por ali. Tirando isso estava completamente escuro. Lá é que era a cela de isolamento? Para lá só iam pessoas com mais anos de pena ou por crimes? sc: Iam as pessoas que tinham cometido mais crimes. Na altura da independência, aquele canal deixou de existir e parou de entrar a água. Só havia humidade mas não entrava água. Quando a maré enchia, fazia muito frio. A cela que estava a dizer era a mais difícil relativamente às outras. Dentro das celas era possível as pessoas movimentarem-se? sc: Sim podiam, as pessoas estavam à vontade.
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E os prisioneiros conseguiam dormir? sc: Só quem tivesse cartão ou papelão para estender no chão. Quem não tivesse, teria que saber como fazer. E o senhor, como guarda na altura, como era visto? Sendo guarda tinha que cumprir ordens, mas não sentia pena dos prisioneiros? Falava bem com eles no sentido de encorajá-los? sc: Ninguém sabe ou pode dizer que o fulano de tal é bom. E mesmo que o sejas há sempre quem entenda que não sejas. Deus é que julga tudo. Quando eu estava de serviço, os prisioneiros ficavam contentes, porque me preocupava com as suas refeições. Quando tinham que sair para apanhar ar, não esperava nem um segundo ou minuto para abrir as celas e tirá-los. Além disso, havia prisoneiros que eram agressivos e para se ser guarda prisional tem que se ser humanista, tem que ser atencioso e falar com eles. Muitas das vezes quando os tirava para comer deixava-os estar até por volta das cinco da tarde. Pela sua relação com os prisioneiros e o fato de por vezes os deixar sair, não houve caso de nenhum que tivesse tentado fugir? Ou ter tido um amigo prisioneiro e o ter deixado fugir? sc: Alguns fugiam mas fugiam para quê? Aquele varão de ferro que cá estava, depois da independência permaneceu durante muito tempo e com a água ganhou ferrugem, então alguns quebravam esse
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ferro entravam e subiam por aqui, naquele pilar, e pulavam por cima e desciam por outro lado. Isso aconteceu mais de 3 vezes. E das vezes que aconteceram as fugas não teve problemas? sc: Trouxe muitos problemas. Eu mesmo ia ao tribunal contar que houve fuga de x prisioneiros, então o tribunal mandava investigar para ver se realmente eu tinha facilitado a fuga ou se foi a habilidade do prisioneiro em fugir e a prisão não tinha condições e viam que a culpa era do país por as prisões não estarem em condições. Essa era nossa defesa, mas realmente era verdade: quando os tugas construíram estava muito bem, mas não se fez a devida manutenção e mantê-la como os tugas deixaram e isso dava facilidade aos prisioneiros. Trabalhar como guarda na altura era um grande orgulho para si? sc: Não há coisa mais difícil como ser guarda prisional. Todos os dias as nossas vidas estão em risco, havia muitos presos, todos com vontade de sair, então tentar acalmá-los ou sensibilizá-los a aguardarem a que a sua pena termine, não era fácil, uns tinha pena de 4, 5, e muitos anos aqui. Na altura tínhamos também presos por homicídio e maioria eram jovens. Conhece alguns dos jovens que estiveram aqui presos e que hoje em dia ocupam funções no governo ou em outros lugares? sc: Sim, Faustino Fuduto M’Bali, esteve preso na altura.
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Mais quem? sc: Esteve um advogado Pedro Nfanda, eram muitos, já não dá para lembrar. Luís Nancassa? sc: Não, eu entrei duas semanas depois de ele ter saído. Quantos anos é que esteve a fazer serviço de guarda? sc: Fiz 7 anos, saí quando ia fazer 8 anos. Quando ao prisioneiro era anunciado que a sua pena acabava e ia ser libertado, como via as suas expressões? sc: Ficavam muito contentes, riam-se. Nem se levassem uma bofetada reagiriam (risos). Pensavam que estavam na glória. Uma pessoa que comete um crime, nos primeiros 5 minutos pode estar furioso, mas depois arrepende-se do acto e sente peso, e dava para perceber que essa pessoa estando cá, já estava arrependida. No cumprimento da sua função, houve algum momento em que algum prisioneiro não se portou bem, ou cumpriu com algo e o senhor como guarda foi duro com ele ou agrediu-o? sc: Uma vez neste corredor, estava tudo calmo, era uma da tarde, não se vê nada lá fora, nada, mesmo que se passem mil anos, não se vê a rua, estava tudo vedado. Nesse dia, naquele varão de ferro que vos disse, um rapaz lá estava com mais 4 ou 5, o que fizeram? Pegaram nesse ferro
no corredor e tentaram pressionar para arrebentar a parede e poderem fugir. Duas pessoas já tinham passado, quando estavam a tentar ajudar os outros a sair. Os prisioneiros que estavam em cima é que nos chamaram a atenção, dizendo que havia pessoas que estavam a tentar fugir (risos). Apanhámo-los. Mas compreende-se que ao fazerem isso é porque estavam cansados de lá estar. Um prisioneiro que se condena por muitos anos, por exemplo 5 anos, e tem bom comportamento, isso influencia a que a pessoa saia em menos tempo? sc: Vê-se o arrependimento dos prisioneiros, há crimes que são diferentes e feitos acidentalmente, mas outros cometem voluntariamente, como pegar numa faca e matar que não é o mesmo de que por exemplo pegares numa pedra e atirares e acertar numa pessoa e essa pessoa morrer, são crimes diferentes e penas diferentes. Com o comportamento é a mesma coisa.Quando víamos que um prisioneiro tinha um bom comportamento tirávamos daqui e transferíamos para cima para estar mais a vontade, uns deixávamos ir até ao porto para comprar algumas coisas que alguns prisioneiros a quem a família dava dinheiro ir comprar o que quisesse. Mas indo assim, não fugia ou tentava fugir? sc: Não, já se tinha criado confiança. Mas houve um que não foi correto, um jovem, grande ladrão chamado Germano. Estava aqui,
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SÓ SE VIA ARREPENDIMENTO, UNS CHORAVAM QUANDO VIAM A FAMÍLIA E A FAMÍLIA TAMBÉM CHORAVA deixávamo-lo ir até à sua casa visitar a sua família, porque o seu crime era roubo. Um dia deixámos que ele fosse comprar algumas coisas que alguns tinham pedido. Ele juntou aquele dinheiro e foi-se embora e não voltou. Traiu a nossa confiança, mas depois foi apanhado e voltou para cá ficou um ano e tal. Voltou a fugir e quando foi apanhado foi-lhe cortado o pé porque esteve a roubar. Agora anda com muleta. Como era com as famílias que vinham visitar? Era-lhes permitido entrar ou ficavam na rua? sc: Entravam e ficavam no nosso gabinete, faziam pedidos. Havia dias de visitas, quando os familiares vinham eles saíam, nós ficávamos por perto e quando chegasse a hora dávamos sinal para entrarem. Acompanhava e ouvia as suas conversas com os familiares, como agiam? sc: Só se via arrependimento, uns choravam quando viam a família e a família também chorava. Chegou a morrer alguém aqui devido a torturas? sc: Não. Morreram 2 pessoas: uma na época da cólera. Tinha uma diarreia intensa, não resistiu e morreu. Um outro adoeceu, sentiu algo à noite. Nessa altura não tínhamos carro, não conseguimos fazer contacto, quando se foi fazer diligências para ir para o hospital ele morreu. Lembro-me que havia também a 2ª esquadra, a prisão na feira de Bandim, uma prisão na 7ª esquadra na zona de Guimetal, eram 4 prisões.
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Mas depois de terem construído as prisões de Bafatá e Mansoa é que tiraram os prisioneiros todos daqui e transferiram para lá. Os que foram julgados foram para Bafatá e os que estavam sob prisão preventiva e não foram julgados foram para Mansoa e as coisas continuam assim.
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Isto agora não é uma prisão, é a Casa dos Direitos. Qual é o seu sentimento quanto a isso? sc: Quando cá cheguei para descer para aqui perdi-me. Parecia que estava num outro lugar, como se tivesse saído de casa e ido para outra. Está muito diferente. Entrei naquela cela de isolamento e apercebi-me que da mesma forma que um ser humano muda, a casa também deve ser mudada. Vejo muita diferença, nem sei como explicar. Já me tinham dito que isto tinha sido reparado, mas nunca cá tinha estado e quando cheguei, sinceramente, fiquei muito contente. Está muito bem. Naquele tempo estar aqui sentado, só o cheiro e o odor eram desagradáveis. Depois de ter trabalhado aqui, você guardou contactos com alguns prisioneiros, ficou amigo de alguns? sc: Muitos, não sei explicar. Muitos são meus amigos. Quando chegava aqui só me chamavam “Tio Sadjo”, porque eu sou religioso. Não gosto de ver ser humanos como eu a passar mal. A sociedade hoje está cada vez mais difícil para nós os jovens. O senhor como policial que é, que conselho pode nos deixar para não cairmos em situações que nos levem a sermos presos?
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É UM PESO, POSSO DIZER ISSO AQUI, ESTAMOS COMO ESTAMOS, O RESTO É DEUS QUE RESOLVE
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sc: Isso é muito importante porque a educação de base é essencial. A escola e o resto são complementares. Quando um pai não dá atenção ao filho, esse filho desvia-se. Estou muito contente pelo vosso trabalho. Espero que seja um trabalho rico para o país e para os jovens tirarem como lição. Como você foi combatente agora que estamos em 2014 o estado do país para si como é? sc: Digo-lhe que isso é pesado demais (risos), é um peso, posso dizer isso aqui, estamos como estamos, o resto é Deus que resolve.
“ERA COMO UM AUTÊNTICO CLUBE DE FEITICEIROS” Guelajo Sila Havia um senhor, ele era condutor, vinha de Gâmbia em 2011, tinha há menos de semana que conseguiu um emprego em Bissau em ocasiões das campanhas de castanhas de cajú, residia em Bissau. O conheci em pouco tempo antes de ter feito o acidente, ele de facto era boa pessoa, era atencioso e humilde. Acompanhei a história pelas informações dele e de algumas pessoas que viviam muito próximo do cenário, como a sua irmã que residia em Bissau na altura, agora não sei se ela está. Também com um dos funcionários da mesma empresa. Também como amigo e primo fui visitar-lhe algumas vezes nas celas, embora às vezes havia impedimentos por parte dos agentes da segurança local que alegavam as visitas deviam ser mediante a um calendário ali colocado.
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MANDARAM PARAR O CAMIÃO, MAS O CONDUTOR DESCONFIAVA DE TUDO ESTAR LIGADO AO SEU CASO DE ACIDENTE Foi assim: Em 2011 teve um acidente de carro em Bissau, na avenida principal. Era um camião de uma empresa de import & export de castanha de caju (que agora não existe). Depois do atropelamento, o condutor ficou muito aflito. Sem tentar fugir, desceu do camião segurou a vítima, pediu uma outra viatura que o socorresse para Hospital Nacional Simão Mendes. Quando lá chegaram, o condutor confirmou que este foi vítima do acidente e que ele foi o condutor que o atropelou, mas irá assumir o custo do tratamento. Assumiu tudo para garantir um bom tratamento à vítima e saiu. Na mesma noite foi voluntariamente informar as Brigadas de Polícia (antiga Cala-boca). Depois de ter explicado tudo, foi acompanhado por um dos responsáveis em serviço no mesmo dia para o local onde acontecera o acidente. O agente mandou voltar o camião enquanto o seguia por detrás numa viatura pequena até junto da brigada. Na tentativa de poder cumprir a ordem, andou uns poucos metros. Na sua frente encontrou um grupo de homens desconhecidos com armas brancas (paus, catanas, etc). Foram entre sete a oitos homens numa zona um pouco escura (como se sabe, a cidade Bissau na maioria das partes não tem iluminação). Atravessaram a estrada, mandaram parar o camião, mas o condutor desconfiava de tudo estar ligado ao seu caso de acidente.
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TINHA UMA IRMÃZINHA QUE O VISITAVA E LEVAVA COMIDA DE VEZ EM QUANDO. EU LEVAVA TAMBÉM ÀS VEZES CIGARROS 98
Tratou de tentar encostar o camião ao lado da estrada, mas de repente ouviu vozes de agressões de um lado ao outro. Alguns já estavam a subir atirando socos ao ajudante ao lado na cabine, o acto não convenceu ao condutor e decidiu fugir com camião, trancando as portas que os invasores tentavam sempre abrir. Na mesma ocasião caiu um deles e morreu de imediato. Depois foram ouvidos e o condutor foi conduzido para a cela da Segunda Esquadra. No dia seguinte, se não me engano, a primeira vítima faleceu no hospital. Isto aumentou a tensão dos familiares e a situação ficou ainda mais complicada (duas vítimas da mesma família). Fez muita pena. Mais tarde o processo foi remetido ao tribunal. A empresa que o empregava não colaborou, cada vez que o condutor ligava ao telemóvel do responsável este não se respondia. Durante o processo, o condutor foi transferido para a antiga cela (Ex-1ª Esquadra) que agora é denominada ‘‘A CASA DOS DIREITOS”. Ali ficou durante vários meses preso. Ele tinha uma irmãzinha que o visitava e levava comida de vez em quando. Eu levava também comida e às vezes cigarros que sempre me solicitava. Como eram os aspectos da prisão? Era como um autêntico “clube de feiticeiros”. Foi construída com um espírito de repressão muito forte na era colonial, tinha estruturas total-
mente diferentes das actuais celas da cidade. Além de situar-se numa zona muito discreta, debaixo do chão: ninguém podia ouvir algo se alguém gritava. Lembro-me muito bem que quando fui pela segunda vez para visitá-lo veio acompanhado de um agente fardado com uma pistola na cintura. Vieram até junto da porta e ali conversávamos por alguns minutinhos
O PIOR DE TUDO ERA O ANOITECER. NEM RUÍDOS MÍNIMOS QUE DÃO SENSAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE UM AMBIENTE AO REDOR apenas e com a camisa toda molhada, mas lá no fundo ouvia sempre barulhos, gritos e vozes assombrados de ecos muito fortes, como se estivéssemos num salão de Karaté. Pelas imaginações tudo ilustrava um ambiente misterioso de fortes torturas desumanas. Na terceira visita, eu não podia segurar as minhas lágrimas enquanto vi este a sair dum buraco lá de baixo subindo as escadas acompanhado dum agente fardado para vir falar comigo. Quando chegou junto de mim, lhe perguntei: “… mas, estavas a trabalhar ali dentro com tanto calor assim ?” “Ali é uma espécie de fossa debaixo do chão, com uma estrutura bem segura que não podes imaginar, não tem ventilação, já viu? … Assim vivemos aqui”– respondeu tristemente. Olhei tristemente p’ra lá ao fundo da cela… depois ao agente, fiquei sem palavras. Olhei pr’a ele… sem mínimo jeito de poder fazer algum milagre para o retirar dali. Lembro-me que ele era um homem bem forte e tinha altura, mas naquele momento o seu aspecto físico tinha mudado, estava tão magrinho, com as roupas molhadas de calor e lamentava falta de saúde. De facto, a sua situação era melhor na cela da segunda esquadra, porque lá a estrutura pelo menos dava pra alguém saber se o sol nascia. Mas aqui é totalmente diferente. O pior de tudo era o anoitecer. Nem ruídos mínimos que dão sensação da existência de um ambiente ao redor com presença de pessoas. Me contou que tinham para além das fortes torturas problemas muito sérios: desde falta de higiene local, de mau cheiro, de humidade, de bichos e aves nocturnas, temperaturas,
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faltas de banho, de comunicação, de espaço, de intimidações constantes, de situações de abusos entre os prisoneiros, etc. Cada vez que tinha qualquer necessidade era sempre escoltado por um agente armado. A sua situação melhorou “um pouco” quando um dia fui visitá-lo e encontrei um agente que o escoltou mas que era pessoa conhecida. Tratei de o apresentar e cumprimentaram-se. Este lamentou, garantindo que de algum jeito irá ajudar aquando do seu turno. Isto depois ajudou-o alivar um pouco. E comigo as visitas até podiam ser às noites com a influência do agente. Por fim, todo o cenário ficou gravado na minha mente, e recordo disto cada vez que passo por esta zona. Muito triste. Por isso, rezo cada dia para que as almas das duas vítimas do acidente descansem em paz. Ámen! E que os seus familiares e amigos tenham uma grande recompensa de Deus. Obrigado!
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AUTORES DAS ILUSTRAÇÕES E ENTREVISTAS 104
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Alvaro Victor Pires
António J. K. de Carvalho
Fransisco Mario Gomes Té
Ivarildo C. Camara
Armindo da Silva
Fernando Jorge B. Ferreira
Joao Dito Sambu
José Roberto Té
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Kevin Pereira Miranda Lima
Lionel Gomes
M’bemba Candé
Pombo D. Semedo Camara
Rui Adolfo Gomes Sá
Taufik Assad de Almeida
COLECÇÃO DESAFIOS
DESAFIOS
DIREITOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU
Janeiro 2012
DESAFIOS
DIREITOS DAS CRIANÇAS NA GUINÉ-BISSAU
Fevereiro 2013
DESAFIOS Maio 2014
UMA HISTÓRIA DE DIREITOS NA GUINÉ-BISSAU
CAMÕES - INSTITUTO DA COOPERAÇÃO E DA LÍNGUA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
ACEP ASSOCIAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS LGDH LIGA GUINEENSE DOS DIREITOS HUMANOS AD ACÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO AMIC ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA CRIANÇA CES/NEP CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS / NÚCLEO DE ESTUDOS PARA A PAZ CIDAC CENTRO DE INTERVENÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO AMÍLCAR CABRAL FEDERAÇÃO KAFO RA REDE AJUDA RENARC REDE NACIONAL DAS RÁDIOS COMUNITÁRIAS DA GUINÉ-BISSAU SENIM MIRA NASSEQUÊ TINIGUENA ESTA TERRA É NOSSA UICN UNIÃO INTERNACIONAL PARA A CONSERVAÇÃO DA NATUREZA