L ANÇAMENTO AGENDA PERPÉTUA 52 HISTÓRIAS POR FERNANDO ALVES
JORNALISTA DA TSF
Quando Fátima Proença me fez o desafio de um texto para esta Agenda eu respondi-lhe que, há demasiado tempo, o meu mundo não vai além do que me fica das leituras ou do que vejo da janela virtual. Na verdade, das raras vezes em que, nestes últimos dez anos, me fiz ao caminho mais longo e fui ver o mundo, tive de receber lições detalhadas sobre o funcionamento dos novos gravadores e sobre os mais fiáveis processos de envio das reportagens. Não é curriculum que se apresente. Por isso lhe pedi que me permitisse ficar em dívida. O que venho aqui fazer, agora, não pretende pagar sequer os juros dessa dívida. É que, folheando esta ideia, este projecto, estas magníficas histórias de vida, me sinto, ainda mais irremediavelmente, devedor.
Esta agenda desarruma-nos harmoniosamente os dias, liberta-os da camisa de sete varas da semana, diz-nos que hoje é hoje, numera os dias e desse modo os enumera, não primeiro ou segundo, mas um e dois, e assim por diante, e os reparte por Janeiro e Fevereiro (bissexto ou não), até ao ano que vem e ao ano depois do ano que vem, e esse é um fio numeroso, abundante, como a folha perene na árvore que dá sombra ao andarilho.
Esta agenda elege o dia como medida dos nossos passos no mundo, propõe uma ideia de jornada, uma jorna ética de sol a sol que una o ontem ao amanhã porque o mundo que nos abre enrosca-se num fuso largo, ganha uma espessura que permanece até se fazer eco, ou urgência ou memória em nós.
Esta agenda estabelece para cada dia por igual um peso, define para cada dia por igual um compromisso. É isso que agenda quer dizer, também: compromisso. Ora esta agenda leva o plano à letra. Aqui não há domingo, não há feriado, esta agenda não nos dá descanso.
Sultana Khaya, uma das mais conhecidas activistas saharauis, que perdeu um olho devido à tortura a que foi submetida pela polícia marroquina, aquando das manifestações de há 3 anos na universidade de Marraquexe, dizia recentemente que o mundo parece estar adormecido. É isso que, de muitas maneiras, ora com uma afabilidade desesperada, ora em contida fúria, ora por via da mais serena arte do olhar, nos é dito aqui: é esta uma agenda de vigília e sobressalto.
Eis o que senti, ao manuseá-la, ao entregar-me a cada história: esta é uma agenda que me faz
agente, mais do que gente. Pede-me que aja. Pede o que em mim haja de melhor.
É como se, manuseando-a, eu estivesse já contando afinal que uma vez, em Cuba, escutei e gravei dois jovens trompetistas tocando contra o vento, contra o mar, no Malecon. Denis e Lordanis sopravam contra el aire, como se com o sopro gritassem. Como se pudessem parar o vento com o sopro, com a música das suas trompetes. Como se atirassem pedras com o sopro, como aquelas que Ramzi arremessou aos 8 anos na Intifada, muito antes de prender a atenção de Alexandra Lucas Coelho tocando viola de arco num campo de refugiados na Palestina. Imagino que tocam juntos, Ramzi e os trompetistas do Malecon…
E essa música corre em fundo na história que um dia, há quantos meses, daqui a alguns anos, talvez seja escrita. Porque talvez Nur, que terá agora 17 anos, não se tenha feito explodir, talvez tenha conseguido estudar e saído de Gaza, e talvez Ricardo Alexandre a reconheça pelo brilho do olhar, numa emissão futura da Al Jazeera. Porque talvez Mayra, a menina do bairro do Enterramento em Bissau, que aqui nos é revelada por Alain Corbel, tenha rompido o cerco e o destino de ser uma impossível Gata Borralheira da África que não deu certo. Porque talvez Omer venha a ser actriz, como é seu desejo, ou talvez Margarida Santos Lopes (que a conheceu em Telavive) tenha e dê notícia de que foi de novo presa por se recusar a servir um exército de ocupação. Porque talvez o sorriso de Fatimah, - como Nuno Ferreira Santos o captou na Bassorá onde Sofia Lorena anotou: as milícias não gostam que as mulheres se deixem fotografar – talvez o sorriso de Fatimah tenha ajudado a mudar a vida de muitas viúvas pobres do sul do Iraque xiita e conservador…
E talvez as mães-coragem de Tiananmen leiam ao microfone de Maria Joao Belchior os nomes que ainda há para aparecer. E Helena Oliveira receba a notícia de que Nojood desmontou na barra de um tribunal do Iemen uma história sem final feliz. História tão irmã daquela contada por Fernando Jorge, a história de Filomena tão rebelde e tão doce no sorriso que oferece à foto de Marta Jorge. E talvez Carlos Narciso surpreenda em Fido, o mwana-sodá, o olhar de quem tem agora um ideal. E porque talvez já não cheire a esquecimento, na terra vermelha de Bulenga onde os três mosqueteiros oferecem a Rita Colaço as melhores ervas para o chá. E porque talvez Luisa Meireles descubra o que é feito de Maria, aquele perfil de sombra que uma
vez Antonio Pedro Pereira captou, quando Maria não era o nome verdadeiro de Maria, a transmontana perdida em desamor numa remota aldeia do Kosovo. E talvez Ana Cristina Pereira nos conte que as mulheres do bairro de Aldoar deixaram de vender voltas de ouro no prego. E Ana Dias Cordeiro nos revele um Clichy-sous-Bois onde as paredes não tenham lepra e os prédios tenham elevador. E Mariana Palavra nos conte novas histórias de Ti Gera, o árbitro mais famoso do Haiti. E Lúcia Crespo confirme que os índios de Santa Maria da Feira ainda querem ser como o Aristides. E Dina, que é grande desde pequena, mande um aviso ao Paulo Moura: que sim, vai partir para o Sudão, à procura de outras coisas impossíveis. E Nima volte as mostrar as mãos a Sofia Branco e a Adriano Gomes: as mãos sem facas, terão sentido já o fino gume do futuro diferente... E assim, do mesmo modo, Joao Paulo Baltazar se aconchegará de novo à sombra de Olga, a Mulher-Árvore, para nos contar o que parece pouco mas não é, pois tem raiz e dá fruto. E Nora voltará a dançar para Lina de Lonet Delgado, o seu tango em Berlim, E Pedro Rosa Mendes juntará o sopro de outras vozes para levantar os véus que metem medo, os véus que escondem o medo.
Até ao ano que vem e ao ano depois do ano que vem, esta agenda ajuda a numerar os dias e os enumera. Este é o dia em que Alfonso Armada levou do Congo um tijolo maciço de modo a nunca se esquecer de um lugar que não é para crianças. Este foi o dia em que Abou chegou a Rosarno na Calábria, fugido da Costa do Marfim em guerra, para apanhar tangerinas, laranjas e azeitonas, a 25 euros a jorna, nas contas de Stefania Mascetti. Este o dia em que paramos diante do stop de Ana Grave. E anotamos na agenda, como Fernanda Almeida, os vários nomes do “homem garandi” que ergueu uma escola entre cajueiros. Vai Vitor com os olhos na ponta dos dedos, guiando Mariana Barbosa pela maior biblioteca de braille do país. Mais desassossegada é a vida de Nancy, e não obstante ela continua tricotando milagres chiquitos na favela de Caracas, está tão magra, enquanto confidencia a Miguel Carvalho a esperança depositada no ditador dos pobres. Ela é irmã, tem a mesma agenda, o mesmo compromisso, das mulheres que tecem futuro na casa do centro de Marraquexe onde Ana Filipa Oliveira as viu bordar. Há um burburinho agora no Largo Serpa Pinto, em Luanda. Vai o Turbo algemado, “não fui eu, não
fui eu”. Os polícias dão-lhe estaladas e pontapés diante dos olhos de Eduardo Lobão. Há-de ouvirse um tiro, mas já Bety e os “pikinoti” dançam por um mundo melhor, na sala de ensaios da Scola Raiz de Polon, na Praia. A porta está sempre aberta, meninos e meninas, avisa-nos Rita Vaz da Silva. Pois há tempo para tudo, como lembra na página adiante, no dia seguinte, para o ano que vem, Joao Rosário, escutando o som grave e sincopado do didgeridu no Banco do Tempo. E já nos internamos na parte equatoriana da grande floresta levados por Ana Dias Cordeiro a Lago Agrio, onde Pablo Fajardo enfrenta os gigantes da indústria petrolífera, pedindo-lhes contas pela “Tchernobyl da Amazónia”. E pressentimos o olhar de Hameeda virado ao Darfur, no campo chadiano onde Vitor Angelo a fotografou, perdida num conflito de terra e água. Ela sabe, como Catarina, quanto vale uma torneira. Viramos devagar a folha deste dia em que Isabel Gorjão Santos entra numa casa no sul do Egipto e nessa casa uma mulher lhe revela um tesouro, como quem mostra um quadro de Picasso: a torneira que mudou a sua vida. Este é o dia de outra alegria maior, testemunhada por Paola Roleta e Isabel Ballena nos arredores de Maputo: a alegria de Fátima a quem acaba de ser dito que o filho não foi contaminado pelo HIV. Aproveita o dia, uma página adiante, e entra com Antonio Marujo na fábrica de feijão verde contra a sida, essa ideia feliz que germinou no Quénia. Tão feliz como o 112 a duas rodas, as bicicletas-ambulância que Paula Borges seguiu no interior de Moçambique. As belas bicicletas com atrelado que Jorge Silva pôs a voar, como a bicicleta do ET, porque toda a pressa é pouca quando é tanto o isolamento. É essa urgência, justamente, que alimenta a coragem de contar histórias. Ela vai contigo mesmo que tenhas de fugir pelas sombras do mundo. Ela foi com o gabonês Jean Jacques Jarel a quem um dia avisaram que corria perigo e agora está de olhos molhados diante de Vincenzo Sassu que o fotografa num estúdio de rádio em Paris. Todos estes rostos ganham o nosso respeito, saídos de histórias como esta, contada por Alexandra Prado Coelho: ela ensina-nos o respeito pelas imagens que não nos pertencem. Tão bela e perturbadora que parece inventada, a história do fotógrafo italiano que um dia encontrou, dentro de caixas de madeira no meio do deserto de Tindouf, milhares de fotografias, de marroquinos mortos em combate pelos soldados da Polisario. Guardando essas fotos, os sarauis contam a sua própria dor através da dor do inimigo. Guardar a dor, não perder a memória. É o que move Lidia Yusupova, a advogada de Grosny que Jose Milhases nos apresenta. A agenda dela é clara: é preciso continuar a procurar pessoas
desaparecidas na Tchetchenia. É uma luta quase sempre desigual, de David contra Golias. Como a luta de Silas, o activista liberiano que Sofia Branco entrevistou. Sem a sua persistência, Charles Taylor não teria sido julgado.
E porque talvez Aruna, o menino a quem Luis Castro pegou na mão numa tabanca da Guiné, tenha achado um tudo ainda maior em nada, o tanto onde cresce como um SOS o seu desejo de aprender a ler, escapando às redes do tráfico. E porque esse é o mesmo desejo dos meninos que Paulo Nuno Vicente viu em Buba, resgatados à crueldade dos falsos mestres corânicos que os obrigavam a apanhar lenha às cinco da manhã. E porque talvez, na terra de ninguém onde Adelino Gomes o encontrou, Zafaran tenha entretanto sentido um estranho desejo de uma outra vida e talvez esse estranho desejo tenha sido semeado no vento da terra de ninguém por uma – como ele a definiu - pergunta tão estranha. São as perguntas estranhas, nascidas da arte do olhar, que recolhem estas formidáveis histórias e as espalham pelos dias numerosos de uma agenda perpétua, quero dizer perene, que resiste à efémera cintilação de outras luzes. Eis o que esta agenda me diz: Qualquer dia, no mês que vem, daqui a uns anos, tenho de saber se sou capaz de me entender com os novos gravadores.
Lisboa, 16 de Novembro de 2010