Folha de sala "Cicatriz"

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A ESCRITA DE CICATRIZ

A proposta do Trigo Limpo visava produzir um texto a partir de certa tradição humorística lusófona, nomeadamente do universo satírico de autores como Millôr Fernandes e Santos Fernando. Foi com prazer que encetei o diálogo com estes dois livre-atiradores do humor inteligente para procurar o fio da meada e dar argumento a uma sátira do momento actual. A lógica ficou clara: deduzir do absurdo todas as consequências pertinentes. Mas qual — perguntava eu a estes dois clássicos do escárnio e do maldizer — poderá ser o absurdo agora mesmo? Embora eu, ao contrário daquele santo varão, sempre me equivoque e frequentemente tenha dúvidas, acho que a resposta é evidente: o absurdo é a dívida. Equivocado ou não, foi com esta premissa que tratei de resolver a equação do texto e dar resposta ao desafio colocado pelo Trigo Limpo. O resultado só o público pode julgar. Mas enquanto o público julga, é possível que algumas gargalhadas possam vir a pagar parte da dívida em que todos estamos comprometidos, pois, certamente, o riso é a única moeda que ainda nos resta nos bolsos. De resto, foi um luxo trabalhar de novo com o Trigo Limpo e a sua fantástica equipa humana. Com eles nunca é possível criar sem rede, como os acrobatas, pois há sempre lá em baixo aquela malha de afectos que segura a nossa alma. E isso, para um gajo com tendência a cair a qualquer momento, dá muito jeito. Carlos Santiago Autor do texto


FOTO DE RICARDO CHAVES速


AINDA BEM QUE PODEMOS CONTINUAR A BRINCAR COM COISAS SÉRIAS… A criação de um espectáculo teatral pressupõe o cruzamento de um conjunto de factores de que o teatro se alimenta. Esta produção comprova isso mesmo. Rejuvenesce a matriz de um grupo que, ao longo de 39 anos, ganhou maturidade na sua relação com outras significativas companhias teatrais, criadores de várias áreas artísticas, entusiastas, pessoas que investem saberes e vontades, artífices de empresas locais que ganharam predicados teatrais especializados.

QUE MAIS SE PODE QUERER? Um dramaturgo escrevendo no aconchego da progressão dos ensaios em namoros galaico-portugueses com encenação. A inspiração de autores humorísticos da nossa predileção. Um elenco de destemidos intérpretes com um espírito de exigência inventiva do tipo “se um diz mata, outro diz esfola”, reduzindo a encenação a guia de talentos. Uma cenografia de códigos feiticeiros com a marca distintiva de limpo trigueiro. Uma musical partitura vocal exaltante e operativamente cénica. Uma concepção de figurinos sem bitola pré-existente. Um desenho de luz e sonoplastia com patente consanguínea. Ilusionismo despretensioso. Um trabalho de equipa que faz do teatro_ a arte de conjugação de inquietações, saberes e interajudas. Assistência de ensaios cúmplice, aferindo intenções. Carpintaria, costura, sapataria, estufagem, adereços engenhosos e fotografia da mestria dos saberes locais, demonstrando que a produção artística pode revelar-se um factor de desenvolvimento da economia local, comprovando a utilidade da reconversão pela Câmara Municipal de Tondela, do antigo Cine-Tejá em Oficina de Artes Criativas.


ESTE ESPECTÁCULO REVELA DENTADAS FELINAS QUE NOS MORDISCAM INCESSANTEMENTE

FOTO DE CARLOS TELES®

Esta “CICATRIZ” é resultado da lesão que uma vontade determina sem se conhecer quando e como ficará curada. A cicatrização deixa sinais estéticos que, na maior parte das vezes, têm mais impacto para quem observa do que para quem está sarado. É este o nosso desejo. Cabe ao público certificá-lo. Se, como disse Mestre Charlie Chaplin, “o impossível é o possível que nunca foi tentado” e se só “chega quem caminha”, eis-nos perante uma cicatriz que expomos sem traumas, pelo prazer que nos deu a sará-la sem receita. Este espectáculo revela dentadas felinas que nos mordiscam incessantemente, consentindo que os espectadores se horrorizem ou trocem das nossas/suas feridas que, por tão vulgares, estão ao alcance de todos os que se enovelam nas bem-aventuranças do estado do bem-estar social.


CABE AO TEATRO REGENERAR CARTILAGENS PARA CICATRIZAÇÕES EFICAZES? Cabe ao teatro pagar juros indevidos pelos empréstimos que a cruel realidade lhe concede? Cabe ao teatro explorar o humor e o absurdo que têm por missão fazer do riso uma coisa séria? Cabe ao teatro simplificar o complicado, de forma a que o sorriso não se confine à gargalhada, mas ao sortilégio emotivo que aciona o pensamento? Serão o humor e a sátira essas coisas tão próximas do cliché e do estereótipo e tão distante da interpretação criteriosa e mágica que não resvalem para a gratuitidade? Não será o absurdo uma forma imaginosa de piscar o olho à realidade e nunca a aceitar matrimonialmente? Todas estas interrogações nos surgiram ao longo do processo criativo, não tendo obtido para elas respostas rigorosas. Ainda bem, pois que seria da arte se fosse uma ciência exacta?... Ainda bem que o riso não se pode aperfeiçoar por ser indomesticável e que continuamos a poder brincar com coisas sérias.

SARAVÁ, CARLOS SANTIAGO, MILLÔR FERNANDES E SANTOS FERNANDO A nossa gratidão a dois autores, cujas obras acalentaram o nosso inicial entusiasmo, permitindo o acasalamento com Carlos Santiago, nosso dramaturgo galego: Millôr Fernandes (Rio de Janeiro, 1923-2012) e Santos Fernando (Lisboa, 1927-1975), humorista português com uma vasta obra, infelizmente tão pouco conhecida dos leitores. Os seus livros, com ampla difusão no Brasil e esgotados em Portugal, exigem reedição pela importância que reveste no panorama da literatura portuguesa de humor e absurdo do século XX. José Rui Martins Encenador


FOTO DE RICARDO CHAVES®

UM AFECTO Há dois tipos de discurso. O pequeno e o grande. O pequeno é obrigado. O grande é muito obrigado. Raul Solnado


FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA Espetáculo do Trigo Limpo teatro ACERT texto: Carlos Santiago encenação: José Rui Martins assistência aos ensaios: Pompeu José e Sandra Santos interpretação: António Rebelo, João Silva, Pedro Sousa e Raquel Costa cenografia: Zétavares e Pompeu José desenho de luz e sonoplastia: Luís Viegas e Paulo Neto desenho sonoro: Luísa Vieira e Rui Lúcio figurinos: Adriana Ventura costureira: Adília Ventura carpintaria: Carmosserra / sapataria: Acácio Pereira – Super Rápido estofador: José Carlos Correia - Tondelestofos / consultoria de ilusionismo: José Pereira / engenhos de adereços: Manuel Matos Silva / desenho gráfico: Zétavaves / fotografia: Carlos Teles e Ricardo Chaves / produção: Marta Costa apoio à produção: António Gonçalves e Rui Coimbra Texto inspirado na obra humorística de Millôr Fernandes e Santos Fernando 104.ª Produção / Classificação: M/12 anos / Duração: 90 Min Estreia 13 de Fevereiro de 2015

TRIGO LIMPO TEATRO ACERT Rua Dr. Ricardo Mota, 18; 3460-613 Tondela www.acert.pt/trigolimpo ESTRUTURA FINANCIADA POR


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