'o fascismo dos bons homens'

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18 +25 jan ‘14 /antes de abril

o fascismo dos bons homens Trigo Limpo Teatro ACERT a partir de ‘a máquina de fazer espanhóis’ de valter hugo mãe


o envelhecimento que fala português. impiedoso, comovente, poético, satírico… com desvarios amorosos.

“Quem fomos há-de sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas.”

A

s adaptações a partir de obras literárias de distintos escritores, de que resultaram muitos dos espetáculos do Trigo Limpo teatro ACERT, têm constituído uma das vertentes artísticas marcantes da sua história e traçaram ligações que perduram para além dos espetáculos criados. A opção pela adaptação teatral dessas obras literárias, longe de se reger por critérios de “popularidade” dos autores, fica a dever-se, fundamentalmente, a um instinto natural de encanto pela teatralidade com que cada obra literária favorece a exploração de novas abordagens cénicas. “a máquina de fazer espanhóis” de valter hugo mãe passou a fazer parte do surpreendente universo encantatório. A narrativa estimulou a inventiva.

A escrita revelou personagens, cujos diálogos surpreenderam pela contemporaneidade. O desafio de adaptar a obra impulsou imaginários sem desvirtuar a escrita e o imperioso suporte ficcional. Num exercício acrobático a dramaturgia foi caminhando autonomamente, ciente dos limites inultrapassáveis da escrita do autor do romance. As personagens saíram das páginas do livro e procuraram o palco, como nova morada. A encenação andarilhou nos ajustes que a dramaturgia ia exigindo para revelar cada uma das situações vivenciadas. As leituras teatrais apuravam as tensões teatrais para que os personagens emergissem. Na sucessão de cada etapa, os atores estabeleceram afinidades com os personagens com quem passaram a pernoitar apaixonadamente. Relação carnal, emotiva e sincera. Cada idoso do lar “Feliz Idade” deu consentimento a cada intérprete para ingressar, à sua maneira, nas suas vidas sem se importunarem pela diferença de idades, mas zelosos pela


autenticidade emocional das suas personalidades. “o fascismo dos bons homens” é um espetáculo conduzido por um romance que cruelmente comove, satiriza e, sobretudo, revela o envelhecimento de todos aqueles que, proveitosa e dignamente, não abdicam de nos fazer refletir sobre as suas lembranças que, no final de contas, se mantêm arreigadas no lar “Para Todas as Idades” que habita indiscriminadamente em cada um de nós.




Existir, por si só, é fazer parte disto?

‘a

máquina de fazer espanhóis’ de valter hugo mãe é, já por si, um retrato da nossa portugalidade. Na situação que vivemos atualmente o texto ganha ainda mais sentido e mais sentidos. E é uma ferramenta espetacular, um ponto de partida único e motivador para quem, como nós, adora contar histórias. O Trigo Limpo teatro Acert ao colocar em cena um espetáculo baseado neste texto pretende, não só, contar a história de António Silva, personagem central e narrador do romance, mas também a do lar “A Feliz Idade”, o nosso lar, o nosso Portugal de agora mas antigo, por vezes, muito antigo mesmo… Entre o trágico e o cómico, esta aventura de final de vida ganha, em palco, uma dimensão que nos remete novamente para o mundo do “faz de conta”, essa fantástica brincadeira que, em pequenos nos permite “reinar” e, já adultos, nos reaproxima da menoridade. Tudo isto atravessado de poesia. Personifi-

cada no Esteves. O Esteves sem metafísica, da Tabacaria de Fernando Pessoa que, a determinada altura, questiona os seus companheiros: - Que me dizem a isto? Digam-me se não é a violência na terceira idade. Isto é violência na terceira idade. O grupo de sete atores que constrói o espetáculo tem trinta e seis anos de média de idades o que nos lança um desafio acrescido de trabalho sobre a memória e a antevisão. A memória de um tempo passado, que a maioria de nós não viveu, e a antevisão de um outro tempo futuro, que normalmente se pretende distante e longínquo. O tempo presente, o da ação teatral, fica naturalmente limitado por esse duplo desafio, lembrando-nos hoje, a cada instante, o ontem e o amanhã… e provocando-nos uma mistura de sentimentos marcante para as personagens que interpretamos. A determinada altura o Américo, ao ralhar com os utentes do Lar, exclama: - Parecem putos… Não têm vergonha na


cara, estes homens desta idade, parecem putos…, - o que nos remete para um universo onde as idades e os comportamentos se confundem porque, como diz o povo, “de velho se torna a menino”. E é neste universo que nos vamos mover e onde, num jogo de “faz de conta”, vão “reinar” as palavras de valter hugo mãe dando vida ao triste e divertido Lar Feliz Idade.

António Silva Haviam todas as coisas de ser de comer. Tudo. Carros e casas haviam de ser de comer. E no momento em que estivéssemos para morrer comíamos tudo e depositávamos no testamento o monte de merda que dali resultasse. Comíamos tudo, e deixávamos um grande monte de merda que, se quisessem vê-lo transformado novamente em casas e carros, teriam de usar para estrumar os campos e depois plantar e regar e tomar conta e depois colher até venderem laranjas das boas como antigamente se fazia no país inteiro. (…)


(…) Cristiano Silva Quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades. É uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de Salazar. António Silva Isso faz de nós bons homens? Cristiano Silva Claro que somos bons homens, ó senhor Silva, temos saudades, porque somos velhos. O fascismo dos bons homens. Pereira Como diz?

Cristiano Silva O fascismo dos bons homens. É o que para aí abunda. Já quase não faz mal a ninguém e não é para prejudicar. Mas é um sentimento que fica escondido, à boca fechada, porque sabemos que talvez não devesse existir, mas existe porque o passado, neste sentido, é mais forte do que nós. Quem fomos há-de sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas. (…)


H

oje em dia, surgem cada vez menos ocasiões onde a palavra “trabalho” assume a definição que, de facto, deveria sempre ter: um esforço tremendo para concretizar algo em que realmente se acredita. Assim foi o processo de concretização d´”o fascismo dos bons homens”.

sábias indicações do nosso capitão Pompeu José. E assim foi.

São também cada vez menos as oportunidades que surgem para, sem qualquer tipo de ruído, poder ter uma total concentração e empenho para que cada interveniente possa dar o seu melhor — sem inseguranças, travões ou imposições. Este é o verdadeiro trabalho criativo: o que resulta da liberdade, da confiança mútua e da amizade.

Resta-me agradecer este maravilhoso convite à ACERT, e desejar que “o fascismo dos bons homens” permaneça na vossa memória com o mesmo carinho com que ficou na nossa.

Escrever a partitura para este espectáculo foi um desafio emocionante - o espectro emocional do texto é de uma riqueza tal, que percebi desde logo que cada nota a mais (ou a menos) faria toda a diferença. Não seria possível escrever a música à distância. Só seria possível perceber o ritmo pretendido acompanhando os ensaios, os actores, e as

Foi, no entanto, uma tarefa que se foi revelando cada vez mais fácil - ao acompanhar os ensaios, percebi imediatamente que todos acreditávamos ferozmente que faríamos algo muito especial.

Filipe Melo, Direção Musical

filipemelojazz@gmail.com www.filipemelo.net




o fascismo dos bons homens a partir de a máquina de fazer espanhóis de valter hugo mãe adaptação e encenação: Pompeu José cenografia: Zétavares e Pompeu José composição e direção musical: Filipe Melo interpretação: António Rebelo, Hugo Gonzalez, João Silva, Pedro Sousa, Pompeu José, Raquel Costa e Sandra Santos músicos: Filipe Melo (piano), Miguel Cardoso (contrabaixo), Luís Henrique (clarinete) serralharia: Tondelinox fotografia: Carlos Teles e Carlos Fernandes figurinos: Coletivo desenho de luz: Luís Viegas e Paulo Neto técnicos: Luís Viegas, Paulo Neto e Filipe Jesus costureira: Sandra Rodrigues apoio adereços: Manuel Matos Silva secretariado e produção: Marta Costa, Rui Coimbra e Rui Vale agradecimentos: Cineteatro de Gouveia, Conservatório de Música de Coimbra, David Marques, Fresenius Kabi, Luzeiro, Musicentro, Teatro Regional da Serra de Montemuro e Teatro Viriato 102ª Produção do Trigo Limpo teatro ACERT Estreado a 18 de janeiro de 2014, no auditório 1 do Novo Ciclo ACERT, em Tondela

Trigo Limpo teatro ACERT Rua Dr. Ricardo Mota, s/n; 3460-613 Tondela +351 232 814 400 · www.acert.pt/trigolimpo ESTRUTURA FINANCIADA POR

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