Galeria ACERT Nov. e Dez. 2018
Esta exposição é uma homenagem ao Fernando Taborda. É também um primeiro retrato documental do percurso artístico e pessoal do ator e do homem. O foco principal da apresentação do Fernando Taborda nesta exposição é o teatro, em especial, as produções em que participou na Bonifrates. A partir delas procura-se dar a conhecer outras facetas da sua atividade artística e pessoal, desde o cinema à vida associativa e sindical, das experiências de juventude à guerra colonial, das recordações de família às memórias de amigos…
Um banco chamado Taborda Há atores que nos caem no goto. Melhor dizendo, há pessoas que desempenham tão bem a função do ator que passam a fazer parte de nós. É esse o caso do nosso Fernando Taborda. Por isso festejamos a forma como ele inundou de talento o palco e a vida, associando-nos à paixão que a sua Bonifrates tem por ele. Ele continua presente nas memórias em tudo a que se entregou. Deixou em cada espetador a grandeza delicada de quem faz, de cada gesto e palavra, um bilro tabordiano. No palco, em “Eu não sou Rappaport”, o Taborda habitou o palco da ACERT. Aquele banco de jardim parecia querer desprender-se do tablado e ganhar um lugar humano no jardim do Novo Ciclo ACERT para que pudéssemos, cada dia, conversar com o Midge Taborda. Conversar com ele sobre as utopias, as alegrias, as dores e a sua paixão pelo teatro e pela vida. Por
coincidência ou não, ao escrevermos isto para ti, e quando procurávamos o teu banco no jardim, não é que ele se tinha pisgado para o espaço de um “Artesão de histórias num palco de Palavras”. Não é casualidade, mas a narrativa a reclamar a presença do personagem. Muitas vezes, ao transmitirmos ao Taborda o nosso desejo de partilhar com ele o palco, o seu ar de menino de voz funda, desculpava-se amavelmente pela sua cabeça já não arrecadar o texto devidamente. Pois bem, caro Taborda, aqui te estamos provando que persiste a tu memória afetiva para além de todos os personagens a quem conferiste teu talento. Até sempre, Taborda! Tua, acert
Fernando Taborda: um bancário anarquista, vendedor de histórias, no país dos matraquilhos.
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Há cerca de dez anos, no banco frente ao café onde me costumava cruzar ao fim da tarde com o Fernando Taborda a passear o cão, acertámos que “um dia” faríamos uma “péssima”, designação paródica corrente entre nós. Uma ‘péssima’ escrita por Shakespeare: Os Dois Cavalheiros de Verona. Entre nós repartiríamos os papéis de Launce e Speed; entraria também um cão, a fiel Yuki que nos olhava conivente e que, na peça, se chamaria Crab. Dois ‘clowns’ que explorariam as potencialidades do gesto, a musicalidade da frase, a dança do corpo como na Commedia dell’arte! E a cada novo encontro renovávamos a promessa. Um dia apareci-lhe com a peça fotocopiada. Um rápido passar de olhos no texto e de imediato a exclamação: “Já não sou capaz de meter ‘isto’ na cabeça... E como é que contraceno com o cão? Ainda fazemos uma barracada por causa de mim... Não, não!”. Pensei que íamos mesmo conseguir pois sempre assim tinha sido sempre que surgia um novo projecto... Esta era a sua forma de exorcizar medos: ‘exagerar’ o horizonte das suas próprias expectativas como forma de reforçar as defesas perante a angústia da cria-
ção... E a inicial “negação” era apenas a antecâmara necessária para ‘filtrar’ poeticamente um texto, uma personagem: ser “intérprete”; actor.
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Um dia ‘apareceste’ para substituir um actor. Foi na Esopaida ou Vida de Esopo (1986). O verdadeiro actor nunca ‘rouba’; partilha. E foi isso que logo se viu. Ajudaste o Victor Torres no boneco travesti que compuseste do Rei Temístocles... Estavas connosco! ‘Chatinho’, ‘resmungão’ nos pormenores; inteiro e disponível no essencial. E sempre a comentar que “qualquer dia dá-me o badagaio”... Falo da galeria que te vi construir. Lembro O Escurial e o quanto gostavas de dizer: “Uma rainha, padre, encontra-se; mas um bobo...”. Percebias o que havia de ‘duplo’; como essa realidade bifronte pode conduzir à loucura; acabar decapitado por entre sombras e círios... É coisa ‘clássica’, como clássico foi ‘o fantástico doutor Jenseits der Berge’ de Os Homens e as suas Sombras de Sastre, terrível metáfora de um mundo orwelliano, Quarto Reich a que se responde com o discurso de Chaplin em o Grande Ditador... Louco, chaplinesco, civilizado Frankstein de
um homem novo... “silhuetas que se abraçam nas sombras dos nossos dormitórios”... Perante a dor – ou quando a realidade toca a dor – só a utopia como espaço de refúgio... Lá te vi no circo que inventámos para A Vida do Grande D. Quixote do Judeu: D.Quixote: Sabes onde estamos? Sancho:Sei muito bem D.Quixote-Aonde? Sancho - Estamos no Teatro do Bairro Alto. Entre o sonho e a realidade nunca percebi bem se eras Sancho ou Quixote; mas soubeste sempre por onde andavas com teu Senhor e Amo. Acompanhei-te a ver vídeos do Popov porque, dizias tu, era preciso ‘entrares no papel’ à Stanislavski!; o teu Stanislavski ‘sem mestre’ contra essas modernices de ‘teatros a rastejar’, ‘pobre’, ‘não aristotélico’... e rias-te muito porque sabias bem que nada era assim... Estiveste sempre no palco da ‘criadagem’; nesse ponto do mundo onde se sobrevive com a manha, a astúcia e o riso rabelaisiano; contra os tartufos, os frios calculistas como D. Juan que acreditam que “dois e dois são quatro e que quatro e quatro são oito”. Mas contra a ‘geometria’ de Don Juan, o Esganarelo de que tanto gostaste, não tinha estudos e bebia na observação do
‘espectáculo do Mundo’; elogiavas o Homem; a admirável máquina que é o Homem. O espectáculo terminava contigo autocaracterizando-te de palhaço... Tinhas ganho mais uma vez; mas continuavas na mesma: sem poder. Mesmo Pantaleão herdeiro dos ‘doutores’ da Commedia dell’Arte em As Profecias do Bandarra era enganado pelas profecias do sapateiro Tomé... Recordo-te. Também fora do nosso teatro. Na alegria com que julgavas que a banca seria do povo; no histrionismo dentro daquele palco burocrático que era o ghichet do banco do nosso “quotidiano não”; das ceias até altas horas; das histórias do teu longo serviço militar qual versão portuguesa das Aventuras do Valente Soldado Svejk... As discussões de curto amuo... Mas contigo recordarei sempre a máxima de Goethe sobre a criação artística: “Soprar não basta para tocar flauta; também é preciso mexer os dedos”. O ‘talento’, a entrega à ‘poesia’, de facto, só é possível através da técnica, que os latinos traduziram por ars; a arte, meu velho! A que pacifica a vida, por entre a inquietação…
José Oliveira Barata
Fernando Taborda e a sua ternura com as palavras É grande um ator que sabe dar às suas personagens a dimensão que as caracteriza no jogo dramatúrgico do texto, no equilíbrio com as outras personagens, no entrelaçamento com a ação e nos labirintos ocultos das suas expressões e dos conflitos internos que as habitam e as transformam em concentrações alquimistas de emoções, gestos e tempos dramáticos. Esta capacidade, ainda que podendo repousar num talento inato, requer do ator trabalho, sensibilidade, persistência, inquirição permanente da matéria com que se faz a vida e da vida com que se faz a representação. E sob este ponto de vista Fernando Taborda foi sempre exemplar: sabia completar os seus dotes com o exercício de uma disciplina, de um rigor, de um empenhamento continuamente renovado na descoberta dos gestos, das expressões, do ritmo, do timbre, da cadência certa para a representação adequada das figuras cénicas que lhe eram cometidas em cada montagem e em cada encenação. Eu diria que era fácil dirigir o Fernando: a uma intuição excecional sobre o estar em palco de cada personagem e ao sentido apurado dos tempos, dos espaços, das cenas e das contracenas,
ele aliava a constância do exercício, o olhar permanentemente crítico sobre si e sobre os outros como se fosse o primeiro espectador de si próprio, o profundo envolvimento e ao mesmo tempo o necessário distanciamento em cada partitura de passos, atitudes, gestos e posições, preocupado com a linha melódica da ação e com a harmonia da atuação. Mas desse distanciamento e da sua capacidade de observar o mundo, a vida e o teatro com um olhar sempre novo nascia também a admiração e a capacidade de se espantar com as mais pequenas coisas. Com todos os seus anos de vida e de experiência de palco, parece que havia uma criança a habitar permanentemente aquele olhar, aquele corpo, aquele rosto sempre marcado pela espera do futuro, das cores luminosas do dia e dos silêncios noturnos do tempo. O estudo e a composição do papel eram, para o Fernando Taborda, um imperativo estético, mas, ao mesmo tempo, um imperativo ético. E tanto em ética como em estética, a contenção era o seu traço principal. Era visível, no seu processo de preparação, o modo como cinzelava os movimentos, o tom de voz, as expressões faciais, eliminando o supérfluo, prescindindo
de exageros, evitando clichés, mas ao mesmo tempo modulando a sua energia, dilatando a sua presença, intensificando os efeitos do seu ser, do seu estar e do seu aparecer. Porque o Fernando amava o teatro e fazia do teatro um ato de amor. Cada representação era uma entrega e uma celebração. Uma celebração da vida e do tempo. Uma celebração do ser humano nas suas dores, nas suas paixões, nas suas alegrias e nos seus sonhos. O teatro era, para ele, a celebração da Humanidade. A celebração das suas lutas, das suas tragédias, das suas conquistas e dos seus fracassos. O teatro era o seu ser e a sua maneira de ser. Era o teatro que o alimentava e era o teatro que corria nas suas veias. Era o seu sangue e a sua existência. E era a sua forma de participar no drama do mundo e da história. O Taborda era um ator que representava com a naturalidade e a expressividade de quem dança em palco. Da tragédia para a comédia e da comédia para a tragédia. Com a mesma facilidade com que dava corpo a uma personagem de Molière ou ao Sancho de Dom Quixote, encarnava o bobo do Escurial ou o velho Midge de Eu não sou o Rappaport. Porque por detrás do riso, do espanto ou do
horror, havia sempre o magma de que é feita a vida e a vida de que são feitos os sonhos. E depois havia no Taborda um exemplar cuidado com os sons e com as palavras, com o seu sentido e com a sua fisicalidade, com a sua respiração e com a sua transparência, com o seu suor e com a sua luminosidade, com a sua dureza e com a sua leveza. Era um artesão das palavras. Trabalhava-as com delicadeza e ternura, mastigavaas com prazer e ternura, soprava-as com beleza e ternura, deixava-as voar com encanto e ternura. Tomava-lhes o peso, sentia-lhes o sabor, adivinhavalhes a textura e deixava-as habitar o palco na luz da sua ternura. A ternura do seu amor ao teatro. Que era a forma suprema da ternura do seu amor ao mundo e à vida. Paradela da Cortiça, dezembro de 2017 João Maria André
Exposição Fernando Taborda artesão de histórias, num palco de palavras Inauguração 14 de Novembro 21:00 no 24º Festival Internacional de Teatro ACERT Até 31 de dezembro de 2018 na Galeria ACERT Ficha Técnica Produção Cooperativa Bonifrates Fotografias Carlos Coelho João Carlos Ferreira Santos João Gordo Mário Rainha Campos Nuno Patinho Paulo Pratas Pedro Malacas Rui Centeno Sérgio Azenha Susana Paiva e outros que não foi possível identificar Produção executiva Carlos Coelho Carlos Madeira Cristina Janicas Eurídice Rocha Filipa Malva João Paulo Janicas Maria Manuela Almeida ACERT
Associação Cultural e Recreativa de Tondela Rua Dr. Ricardo Mota, 14; 3460-613 Tondela www.acert.pt
Agradecimentos A Escola da Noite Ateneu de Coimbra Carlos Fernandes Centro de Documentação 25 de Abril Equipa da Casa Municipal da Cultura Família de Fernando Taborda Margarida Mendes Silva Natália Rodrigues Sérgio Dias Branco Sílvia Leão Susana Paiva Teresa Vale Apoios Câmara Municipal de Coimbra Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra Associação de Artes Cinematográficas de Coimbra Persona Non Grata Pictures Sindicato dos Prof. Região Centro
Estrutura financiada por