A Viagem do Elefante por Viseu Dão Lafões em Livro

Page 1


Título

A Viagem do Elefante por Viseu Dão Lafões Um relato que cruza 14 localidades com a digressão do espectáculo do Trigo Limpo teatro Acert

Autoria e Produção

Associação Cultural e Recreativa de Tondela (ACERT)

Textos

Ricardo Viel e Sara Figueiredo Costa

Fotografias

Carlos Teles e Ricardo Chaves

Design e ilustração

Zétavares

Coordenação da Edição

Miguel Torres

Produção Gráfica Esferagráfica Isbn 978-989-20-5220-5 Depósito Legal 384783/14 Tiragem

1.500 exemplares,

1.ª Edição

Dezembro de 2014

Impressão

Rainho & Neves, Lda.

Edição

Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões Rua Dr. Ricardo Mota, 16; 3460-613 Tondela

Direitos reservados © Cim Viseu Dão Lafões, Acert, Carlos Teles, Ricardo Chaves, Ricardo Viel, Sara Figueiredo Costa e Zétavares Agradecimentos à edição Aos interlocutores locais junto de cada autarquia. Ao António Manuel Guerra, Carlos AA Silva, João Luís Oliva, José Carlos Almeida, Nuno Martinho, Paula Torres, Paulo Torres Bento, Pilar del Rio, Sérgio Letria, Sara Figueiredo Costa, Stageland e Transportes Fernando Pinheiro. E a todos os que contribuíram para a presente edição. Promotor


Ao territ贸rio, os lugares aonde sempre chegamos quando nos esperam.



JOSÉ MORGADO RIBEIRO

Num tempo em que o imaterial está em voga é com profunda satisfação que a Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões edita um álbum gráfico relativo a um projeto tão emblemático, e marcante para o território Viseu Dão Lafões, como foi A Viagem do Elefante, nessa adaptação fantástica que a Acert fez do livro do nosso Nobel da Literatura José Saramago. Em boa hora o Conselho Intermunicipal, percebendo a importância da cultura no desenvolvimento do nosso território, decidiu apoiar a realização de A Viagem do Elefante, um espetáculo de teatro de rua que, envolvendo as diversas comunidades que constituem a nossa região, permitiu revisitar a jornada do elefante Salomão, celebrando um território singular como é Viseu Dão Lafões e as suas gentes. Mas, não menos importante, foi a decisão de proceder à produção e edição de um álbum gráfico do espetáculo, no qual se relata esta experiência de criação artística pelas gentes dos municípios de Viseu Dão Lafões, guardando, para memória futura, uma viagem de promoção e reforço de uma identidade cultural regional, bem como para a valorização dos espaços culturais e urbanos dos municípios envolvidos. De facto, hoje, mais do que nunca, o sector cultural e das indústrias criativas tem um espaço e importância acrescida nos territórios. Por um lado, de um modo inovador, recriam e reinventam as histórias dos povos, lendas e tradições, perpetuando a sua história. Por outro lado, tem um forte impacto na promoção de valores de partilha e solidariedade humana, valorizando as pessoas e a sua identidade, dando-lhes a conhecer a autenticidade do seu território. E foi isso que aconteceu no território Viseu Dão Lafões entre 24 de maio e 27 de setembro. Momentos de partilha humana entre atores, com elevado brio profissional, e gentes simples, mas com uma generosidade e alegria em participar. As nossas ruas, praças e edifícios foram palco de grandes atuações, de grandes atores. As populações vestiram- se de gala para aplaudir Reis e

Rainhas, Mestres e Contra Mestres, Curas e Bruxas. E, na sua plenitude, o elefante Salomão, tornou-se “Cidadão de Viseu Dão Lafões.” Prestou a sua homenagem às gentes da Beira e exerceu o seu papel de cidadania, contribuindo, decisivamente, para a coesão territorial, social e cultural deste território. Este projeto é um bom exemplo deixado pela CIM Viseu Dão Lafões de verdadeira solidariedade e de forte coesão territorial. Contudo, queremos ir muito mais longe e dar continuidade ao trabalho que tem sido desenvolvido na Região Viseu Dão Lafões, de mobilização dos (fortes) agentes culturais da região e de valorização da cultura no âmbito do “Portugal 2020.” Pensar numa estratégia de promoção e afirmação do território baseado nas artes, e na diversidade de projetos artísticos existentes, e como esses projetos se articulam em processos coletivos de trabalho, pode ser um elemento altamente diferenciador de um território que privilegia os seus recursos imateriais como ferramentas essenciais de desenvolvimento. Contudo, importa, agora, propor uma abordagem às atividades culturais que, valorizando a cultura de per si, valorize, também, as suas ligações com outras atividades e recursos do território. Pretende-se, pois, trabalhar a forma como a cultura e as atividades culturais, através da projeção de uma imagem qualificada e específica/identitária de um território, podem gerar um contexto particularmente favorável ao surgimento e/ou crescimento de atividades económicas com capacidade de aceder a espaços de valorização, nacionais e internacionais e, simultaneamente, contribuir para o aumento da qualidade de vida na região (como bem sugere a Estratégia Europa 2020). À Comissão Diretiva do Programa Mais Centro, na pessoa da Senhora Presidente, Professora Doutora Ana Abrunhosa, o nosso sincero agradecimento. A todos os colaboradores da Acert, o nosso bem haja.

PRESIDENTE DO CONSELHO INTERMUNICIPAL DA CIM VISEU DÃO LAFÕES —5—


— ‘A VIAGEM DO ELEFANTE’ POR VISEU DÃO LAFÕES —


T E R R I TÓ R I O E C U LT U R A SÃO FAC E S DA M E S M A M O E DA ANA ABRUNHOSA* Quando há 30 anos José Saramago escreveu o livro Viagem a Portugal deu a oportunidade aos seus leitores de serem “levados a conhecer o autêntico rosto duma terra inesgotável, por caminhos humanos e naturais cuja beleza e força surpreendem.” Muitos foram os lugares da Região Centro que foram calcorreados pelo livro. Lugares no Portugal profundo visto de uma forma profunda. Com A Viagem do Elefante Saramago transporta-nos e guia-nos, novamente, por terras do Centro. O elefante Salomão, no caminho para Viena, partindo da cerca de Belém em Lisboa, passa por Constância, terra de Camões, Castelo Novo, Belmonte, Sortelha, Cidadelhe e Figueira de Castelo Rodrigo, marcos da viagem que agora foi feita ainda mais cultura, através do projecto teatral comunitário onde a partilha humana se transformou em espectáculo. Só tendo visto se percebe o alcance do que aqui está escrito, já que estas palavras não têm o cinzel de Saramago para as moldar e, dessa forma, poder dispensar o seu visionamento. Território e cultura são faces da mesma moeda. Cruzamento de coisas que a história não apaga. E não se entrecruzam de forma superficial. Tal como Saramago soube captar profundamente o profundo de Portugal e do seu território interior, também o espectáculo A Viagem do Elefante teve essa ambição. A nós, entes públicos e outros agentes, cabe-nos a missão de ajudar a aprofundar esse entrecruzamento entre cultura e território, entre memória e identidades, entre pessoas e suas raízes, entre o que somos e aquilo que queremos ser. O Elefante Salomão percorreu, de Maio a Setembro, os 14 municípios que constituem a Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões, integrado no Plano Estratégico da Rede Urbana para a Competitividade e Inovação Viseu Dão Lafões. E se território e cultura são faces da mesma moeda, assumindo a cultura uma importância crescente no desenvolvimento dos territórios, o facto do espectáculo ter percorrido os 14 concelhos da Comunidade Intermunicipal é algo que merece ser assinalado. O facto do espectáculo ter integrado, enquanto iniciativa prevista no

programa de acção, o Plano Estratégico da Rede Urbana para a Competitividade e Inovação Viseu Dão Lafões, remete-nos para uma problemática para a qual a Região e o seu Programa Operacional têm dispensado grande atenção. Procurou-se abrir um novo ciclo de intervenção urbana que contribuísse significativamente para tornar as cidades da região territórios de inovação e competitividade, de cidadania e coesão social, de qualidade de ambiente e de vida, a que se associa um bom planeamento e governo. A Política de Cidades que o Mais Centro promoveu no âmbito do Qren é um sinal inequívoco da importância que colocamos nesta problemática. Não as cidades tomadas cada uma de per si, mas antes o que com o conjunto delas se pode fazer para promover a coesão dos territórios, torná-los mais competitivos e inovadores, onde dê gosto viver pela qualidade de vida e ambiente que têm e possibilitam. Contrariando a pouca tradição de organização formal da sociedade portuguesa, este tipo de políticas que concentram a sua ambição no trabalho em rede, desta feita em torno da cultura, é algo que nos tem de deixar a todos orgulhosos. A prioridade dada na implementação de projectos que consubstanciam e reforçam uma lógica de rede, apesar da natureza imaterial à qual está associada uma grande complexidade na sua execução, merece o nosso aplauso e estímulo para que prossigam. Mas se isto é presente e passado, o que nos reserva o futuro? A estratégia associada ao Portugal 2020 e ao Programa Operacional Centro 2020, prevê que se venha a apoiar a concretização de estratégias de desenvolvimento urbano integrado, através da regeneração e revitalização dos centros urbanos. O reforço da rede urbana passará por: apoio à mobilidade urbana sustentável e à descarbonização; promoção da qualidade ambiental, urbanística e paisagística; promoção da inclusão social em territórios urbanos desfavorecidos. São grandes os desafios que todos temos pela frente. Mas tal como o elefante Salomão, estamos disponíveis e prontos para fazer essa viagem…

* PRESIDENTE DA COMISSÃO DE COORDENAÇÃO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL DO CENTRO

—7—


— ‘A VIAGEM DO ELEFANTE’ POR VISEU DÃO LAFÕES —


PILAR DEL RIO

Temos de concordar que os reis sabiam o que faziam quando inventaram a diplomacia com animais exóticos. Dizem que a girafa, que o vice-rei do Egipto, Mehmet Ali Pasha, ofereceu ao rei Carlos x, que percorreu França e chegou a Paris em 1827, inspirou Eiffel quando, anos mais tarde, teve de escolher um símbolo para fazer a sua magnífica torre. A memória popular que a girafa deixou acabou por cristalizar no monumento que define hoje a capital da França e a própria França. E o nosso Salomão? Que memória ficou daquela viagem que o levou a Viena depois de ter percorrido parte de Portugal? Sabêmo-lo agora – e da melhor maneira – pois contamos com a visão literária de José Saramago e com o impulso do Trigo Limpo teatro Acert. Um padre e uns aldeões. Um rio de águas cristalinas. Uns trabalhadores rudes e honestos. Um capitão culto, que lê e viaja com uma edição de Amadis de Gaula amorosamente protegida. Um alcaide que percebe de pombos-correio. Um cornaca que conhece lendas e debilidades. Um homem perdido no nevoeiro. Uns barritos de elefante, um mapa, uns sonhos: quem disse que isto não é o Portugal real, e que bem poderia ser o símbolo de uma maneira de estar no mundo? Salomão não é apenas um bicho, é uma ponte que aproximou seres humanos e conseguiu revelar sonhos que os homens e as mulheres daquele tempo nem sequer sabiam que tinham. O elefante veio de longe com essa missão, mostrar que o inesperado é possível e que o mundo é grande mas cabe nos nossos corações se decidimos oferecer o melhor que temos. Então, anos mais tarde, o Trigo Limpo teatro Acert retomou o testemunho que alguns pensavam irremediavelmente perdido e demonstrou, de forma luminosa, que se pode conviver com a literatura na rua e representar uma obra que é também a história das pessoas mais próximas.

O caminho de Salomão tornou-se um lugar tão real como os lugares de Don Quixote de la Mancha ou o caminho que conduz os peregrinos até Santiago, esse que se alcança quando se segue a boa estrela. As cidades unidas pelo elefante terão a textura do literário que todas as geografias desejam para si e que algumas conseguem, aquelas que têm a sorte de ser visitadas por um paquiderme que emociona e surpreende com a sua leveza e incrível ternura. Os homens e as mulheres que viajaram com Salomão no Verão de 2014 têm a virtude de ter interligado Tondela, Aguiar da Beira, Canas de Senhorim, Castro Daire, Carregal do Sal, Mangualde, Oliveira de Frades,Penalva do Castelo, Santa Comba Dão, São Pedro do Sul, Sátão, Vila Nova de Paiva, Viseu e Vouzela, com o rasto da magia. Não vão ser precisos muitos anos para que alguém venha e erga uma nova torre Eiffel comemorativa da façanha de Salomão, porque já temos as suas pegadas nas praças e na memória colectiva. José Saramago escreveu A Viagem do Elefante porque a façanha de Salomão tinha de ser contada, e contar é a forma que os escritores têm de erigir monumentos. Depois, os homens e mulheres do Trigo Limpo teatro Acert com Luis Pastor e os voluntários de cada lugar coroaram a obra e deixaram que nela tomassem lugar todos os que gozámos a passagem de Salomão e a sua capacidade de provocar emoções. Talvez tenhamos de rectificar o que dissemos antes, talvez os reis não tivessem consciência do que faziam quando utilizavam animais para fazer a diplomacia, mas nós, séculos depois, sabêmo-lo, por isso nos acolhemos à sombra do elefante nestas terras portuguesas assim como em Paris se visita a girafa de ferro. Para ver mais longe e sentir a humanidade de outra maneira. Talvez palma com palma, coração com coração.

PRESIDENTA DA FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO —9—


— ‘A VIAGEM DO ELEFANTE’ POR VISEU DÃO LAFÕES —


A V I AG E M CO M O E L E FA N T E ACERT - ASSOCIAÇÃO CULTURAL E RECREATIVA DE TONDELA

A leitura do conto A Viagem do Elefante, por alguns elementos do Trigo Limpo teatro Acert, em 2008, foi uma descoberta. Uma descoberta que nos alimentou os sonhos por muito tempo. — Como vamos ser capazes de contar aquela magnífica história que nos deixou Saramago, e que parece escrita para nós… – conversávamos. Durante os anos seguintes, difíceis, fomos fazendo outros projectos, mas mantendo sempre a companhia de um elefante imaginário que, a cada dia que passava, mais presente se tornava. — Algum dia terá de ser! Os anos foram passando, as dificuldades de trabalho na área cultural foram-se agravando e o nosso projecto, como sempre fez ao longo dos seus 38 anos de história, foi resistindo. Em final de 2012, sentados à mesa (de reuniões), olhando para as dificuldades que tínhamos vivido e para as que se avizinhavam, voltámos a conversar: — Pouca gente partilhou connosco ideias, como as da importância da resistência, como José Saramago. É o momento de darmos esse sinal de inconformismo. — É agora! Ouviu-se em uníssono! Este relato supostamente imaginário (que tem muito mais de real do que se imagina) podia resumir o que sentimos perante o desafio de levar à cena A Viagem do Elefante. O sonho era enorme, a vontade incomensurável, o desafio estimulante. O que nos faltava? Os parceiros indicados para o fazer. A Fundação José Saramago – Ficámos verdadeiramente emocionados quando, no primeiro contacto, percebemos que do outro lado tínhamos alguém que nos confiava esta tarefa gigantesca de trazer Saramago para junto das comunidades do interior. A confiança que demonstraram ter em nós foi inacreditável. A forma como fomos acarinhados por todos, foi o primeiro e decisivo sinal de que era possível! Luis Pastor / Flor de Jara — Companheiro já de outras lutas, visitante regular do Novo Ciclo Acert, era um sonho tê-lo connosco a trabalhar num projecto como este. Ele, que já tinha musicado parte da obra poética de Saramago, era o parceiro ideal. O Luis não se revelou um parceiro, o Luis é da Acert. Nico Nubiola — Quando pensamos em cenografia de rua, no Trigo

Limpo, a referência a Nico Nubiola é obrigatória. O Nico é a pessoa que melhor é capaz de transformar escultoricamente os sonhos que com ele partilhamos em cada projecto. Digamos que o Nico nos materializa os sonhos. Construído o sonho, era necessário partilhá-lo. Mas o que queríamos partilhar não era a circulação de uma escultura de um elefante asiático pelo interior do país. Partilhar era juntar a nós pessoas para contar essa magnifica história em cada local. Era chegar a cada local e mobilizar a comunidade para connosco ser protagonista desta história. Era sermos, todos, Saramago. DIGRESSÃO DE 2013 Depois de materializado o sonho, e de ensaiado num “laboratório” (sem ratinhos mas com pessoas), era necessário circular. Nada fazia mais sentido que começar esta viagem por percorrer o percurso que aquela incrível caravana percorreu no conto de Saramago. Aqui entraram as restantes parcerias fundamentais para que tal se realizasse: a Associação Territórios do Côa é a promotora do “Caminho de Salomão” rota turística que vai de Lisboa a Figueira de Castelo Rodrigo e tem por objectivo promover estes territórios a partir do conto. Com o seu apoio realizaram-se apresentações em Figueira de Castelo Rodrigo, Pinhel e Sortelha (Sabugal). Nada, aliás, fazia para nós mais sentido do que estrear este espectáculo em Figueira, local onde José Saramago, exactamente um ano antes da sua morte, terminou pessoalmente esse fantástico percurso pela rota do seu conto; o Turismo Centro de Portugal, que tal como nós se apaixonou pelo projecto e que com o seu envolvimento o ajudou a viabilizar; as Câmaras Municipais de Castelo Branco, Lisboa, São João da Pesqueira (em parceria com o Museu do Douro), Rivas Vacia Madrid (Espanha); a empresa Stageland, que foi o nosso parceiro técnico para a realização e circulação desta aventura; a Direcção Geral das Artes, que sendo o principal financiador público da Acert tem, ao longo dos últimos anos, viabilizado os nossos sonhos. A Câmara Municipal e o Concelho de Tondela, são a “nossa casa,” mais do que um local de apresentação do espectáculo. Foram 9 locais de apresentação, 11 espectáculos, milhares de espectadores (19.000) e centenas de participantes (430). Um sonho construído por muita gente, e com muita gente dentro. — 11 —


DIGRESSÃO POR VISEU DÃO LAFÕES - 2014 Salomão, o primeiro cidadão de Viseu Dão Lafões. Ao sonho de 2013, outro sonho se somava agora. Um sonho antigo da Acert, diga-se. Afirmar a cultura como factor essencial do desenvolvimento do território. Salomão parecia-nos o actor chave para essa demonstração. O desafio foi lançado à Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões, que imediatamente o percebeu e abraçou. A Comunidade Intermunicipal teve a ousadia de assumir, dentro dos seus eixos estratégicos, a cultura como elemento essencial da estratégia de desenvolvimento do território e esta era uma primeira oportunidade de convencer, mesmo os mais incrédulos, da bondade deste argumento. Apoiada na Rede Urbana para a Competitividade e Inovação, e com a parceria do Mais Centro, levou a cabo uma iniciativa marcante a nível regional, nacional e internacional. Era também uma oportunidade para o Trigo Limpo teatro Acert, através da circulação de um objecto artístico, desenvolver o conceito de comunidade no território. Foram mobilizados os municípios e o Teatro Viriato (promotor em Viseu) e, por sua vez, estes mobilizaram as suas comunidades, e a aventura foi demasiado grande para ser contada nestas linhas introdutórias. Assim surge o último sonho deste entrelaçar permanente duns sonhos nos noutros, a edição deste livro. Por esta altura o leitor pergunta-se: — Estes tipos não fazem nada senão sonhar? Para este último sonho (último antes do próximo), era necessário juntar novos construtores. Assim se juntaram o Carlos Teles e o Ricardo Chaves, captadores de imagens reais dos sonhos (outras vez os sonhos), e que durante toda a digressão de 2014 captaram imagens do espectáculo, das pessoas, dos territórios; em suma, foram fazendo um diário visual deste processo. Depois foi necessário encontrar alguém que, à nossa cabeceira, conseguisse passar à escrita todo este processo. E esta não era somente sobre o espectáculo e as suas vivências em cada comunidade, mas era também sobre as comunidades, as suas histórias, as suas memórias, os seus presentes e futuros. A ambição era, sim, produzir um álbum da nossa circulação pelo território, guiados por um elefante e pelos seus tratadores, mas aproveitando para mostrar muito do que existe e merece ser conhecido ou visitado. Entram então nesta história a Sara Figueiredo Costa e o Ricardo Viel, que connosco percorreram todo o território e foram (d)escrevendo o que a seguir se lerá. Se o Carlos Teles e o Ricardo Chaves já eram “acertinos” dos sete costados, e portanto uns de nós, devem ser valorizados pelo magnífico trabalho que aqui se apresenta. A Sara Figueiredo Costa e o Ricardo Viel foram dois novos elementos que entraram na equipa da Acert; e daqui não saem mais. A forma como estas quatro pessoas trabalharam

em equipa para a produção deste trabalho fica à vista com a passagem pelas páginas que se seguem. Mas as páginas não surgem sozinhas, foi necessária a magia gráfica do Zétavares para coser todas estas emoções visíveis entre imagens e textos. Este relato escrito/visual da digressão por Viseu Dão Lafões em 2014 não pretende ser um relato sobre o espectáculo; pretende, isso sim, ser um apelo à visita a um território de uma riqueza incrível, pela geografia, património, gastronomia, etc. Mas a grande riqueza deste território, como fica aliás bem expresso neste relato, é o seu doc. Não, não estamos a referir aqui os extraordinários vinhos do Dão, mas doc enquanto Denominação de Origem Cidadã. As pessoas, as comunidades, as suas estruturas associativas, a forma como se é recebido em Viseu Dão Lafões é única. Em 2014 foram 14 espectáculos, 14 comunidades envolvidas, 70 dias e 630 horas de formação, 8.722 horas de trabalho, 712 participantes locais, o mais velho com 85 anos de idade, mais de 16.400 espectadores, mais de 1.200 fotografias publicadas nas redes sociais, mais de 1.250.000 de visualizações no facebook do projecto. Foram consumidas mais de 1.400 refeições, 430 dormidas e percorridos 15.212 kms na região. Foi sobretudo uma experiência única, em que fica demonstrado o poder das parcerias locais e regionais. Muito actores se envolveram neste processo para o tornar possível, mas é também hoje possível dizer que Viseu Dão Lafões é mais região do que antes. A partilha de recursos entre municípios e outros parceiros é a melhor demonstração deste argumento. Este trabalho, mais do que relatar uma experiência, pretende chamar a atenção para essa região que ousou usar um objecto artístico como afirmação de pertença a um território comum, mas muito diverso, e que tem na afirmação dessa diversidade a sua fundamental característica de perspectivar o futuro. Que a leitura destes textos vos apele à visita. Sigam os passos deste elefante que, como diz Sara Figueiredo Costa num dos textos mais à frente, “de um certo modo, Salomão ganhou direito de cidadania em toda esta região, unindo-lhe os pontos com os seus passos pesados e partilhando saberes de uma terra com gentes de outra, ao mesmo tempo que ajudava a confirmar aquilo que parece ser comum a todas elas: a hospitalidade e o coração aberto contra todos os isolamentos geográficos.” Por fim, respondendo à pergunta feita um pouco mais acima, se não fazemos mais nada senão sonhar: — Não, não fazemos. Sonhamos muito e aos nossos sonhos, outros sonhadores se vão juntando numa fúria de pensar (concretizar) melhor o nosso futuro colectivo. Tondela, Dezembro de 2014


N A E S T R A DA , CO M O E L E FA N T E Dois escribas e dois fotógrafos encontram-se num bar… Não é o início de uma daquelas anedotas intermináveis, mas serve para descrever o começo desta jornada: o bar era o do Novo Ciclo Acert, em Tondela, os escribas vinham de Lisboa e os fotógrafos eram da casa, Acertinos de ginjeira e prontos para acolherem dois forasteiros à beira de serem adoptados por uma equipa, um elefante e uma região. O desafio feito pela Acert era o de acompanhar a digressão de 2014 de A Viagem do Elefante, registando momentos, conhecendo e dando a conhecer as terras e as gentes que as habitam, procurando perceber a relação que um elefante e uma equipa teatral estabelecem com um território — e de que modo conseguem transformá-lo. Assim foi. Ao longo de quatro meses, viajámos por terras de Viseu Dão Lafões, integrámos a equipa do Trigo Limpo teatro Acert, acompanhámos ensaios, montagens, deslocações, visitámos tascas, museus e aldeias, fomos recebidos por gente generosa que nos mostrou o melhor de cada terra. Entre a grandeza de um elefante e a agitação que acompanhou a preparação de cada espectáculo, fomos trabalhando uns com os outros, escribas e fotógrafos. Parece pouco, dito assim, mas parte importante da realização deste livro passou por esse encontro, uma aprendizagem mútua, algumas discussões sempre amigáveis, a oportunidade de ir imaginando modos de textos e imagens serem gestos complementares de um mesmo olhar, sempre sem perder a respiração própria de cada um. No final, é seguro dizer que somos uma quadrilha, e não de malfeitores. Entre bolos regionais, caminhos de cabras e ensaios em colectividades de toda a espécie, encontrámo-nos como equipa. Não haverá melhor recompensa para uma jornada tão inesquecível.

CARLOS TELES, RICARDO CHAVES, RICARDO VIEL E SARA FIGUEIREDO COSTA

— 13 —


D I G R E SSÃO 2 0 1 4 VISEU · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 20 A 24 DE MAIO PENALVA DO CASTELO · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 3 A 7 DE JUNHO CANAS DE SENHORIM, NELAS · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 10 A 14 DE JUNHO OLIVEIRA DE FRADES · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 17 A 21 DE JUNHO VOUZELA · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 24 A 28 DE JUNHO CARAMULO, TONDELA · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 8 A 12 DE JULHO VILA NOVA DE PAIVA · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 22 A 26 DE JULHO SÁTÃO · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 12 A 16 DE AGOSTO SANTA COMBA DÃO · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 19 A 23 DE AGOSTO CASTRO DAIRE · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 26 A 30 DE AGOSTO CARREGAL DO SAL · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 2 A 6 DE SETEMBRO MANGUALDE · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 9 A 13 DE SETEMBRO SÃO PEDRO DO SUL · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 16 A 20 DE SETEMBRO AGUIAR DA BEIRA· · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 23 A 27 DE SETEMBRO

— ‘A VIAGEM DO ELEFANTE’ POR VISEU DÃO LAFÕES —


U M E L E FA N T E P O R T E R R AS D E V I S E U DÃO L A FÕ E S Em 2013, a Acert levou A Viagem do Elefante, espectáculo criado a partir do conto homónimo de José Saramago, pela rota do Vale do Côa. O espectáculo foi levado à cena em cidades e vilas por onde o elefante passou na história que Saramago conta no livro, e que entretanto criaram a Rota portuguesa do Caminho de Salomão, recriando a verdadeira viagem de um paquiderme real entre Lisboa e Viena no reinado de Dom João iii. Em 2014, um novo percurso foi cumprido por Salomão e pela equipa da Acert, desta vez em terras de Viseu Dão Lafões, sempre com a participação de gente de cada localidade, aumentando a família da Acert e a do próprio Salomão. Do alto dos seus quase seis metros, o elefante é um bicho que parece ter o condão de despertar afectos e memórias nos sítios por onde passa, tal como contam actores, técnicos e participantes da digressão anterior. O desafio lançado pela Acert à Comunidade Intermunicipal de Viseu Dão Lafões voltou a colocar na estrada uma equipa de mais de vinte pessoas, entre actores, técnicos e músicos, aos quais se juntaram mais de setecentos participantes das diversas localidades. Ao longo de quatro meses, entre Maio e Setembro, Salomão calcorreou caminhos, conheceu gente, foi acolhido em vilas e cidades que se engalanaram para o receber. Associações, colectividades, bandas de música, restaurantes, hotéis, cooperativas e toda a espécie de organizações alteraram as suas rotinas para garantir que os espectáculos se realizavam nas melhores condições. Regressado a Tondela, Salomão continua a ser o bicho de ferro e vime que Nico Nubiola idealizou com a equipa da Acert para dar corpo à narrativa de José Saramago, mas quem o veja no seu refúgio actual, o enorme armazém dos estaleiros da Câmara Municipal de Tondela, talvez lhe descubra um pouco mais de volume. O espaço que ocupa é o mesmo que sempre ocupou, mas como a Blimunda de Memorial do Convento, Salomão passou estes quatro meses recolhendo sonhos e vontades nas terras por onde passou. Se actores, técnicos, participantes e público deste espectáculo não voltarão a ser os mesmos depois da digressão por Viseu Dão Lafões, Salomão não podia ter chegado ao fim da viagem igual ao que era no início.


VISEU, 20 A 24 DE MAIO DE 2014

16


VISEU No centro de Tondela, à sombra de um toldo, um elefante asiático com as dimensões que se esperam de um paquiderme aguarda o início da viagem. O seu nome é Salomão e o facto de ter sido construído em ferro e vime pela equipa da Acert não lhe retira a imponência animal nem acalma o burburinho que a sua presença desperta. Os alunos das escolas do concelho visitam-no na sede da Acert como quem visita um animal de verdade, afagando-lhe a tromba e contando-lhe histórias, mas Salomão não ficará aqui por muito tempo. Na primeira paragem da digressão de A Viagem do Elefante, espectáculo criado e levado à cena pela Acert a partir da obra homónima de José Saramago, o animal já é aguardado com ansiedade pelos que se inscreveram para participarem neste espectáculo e pelo público. Viseu, a poucos quilómetros de Tondela, será o marco inicial desta viagem, com um espectáculo inserido no festival Viseu A, promovido pelo Teatro Viriato. É preciso, portanto, que o elefante se faça ao caminho. Salomão devia ter iniciado a sua caminhada para Viseu na terça-feira, mas a meteorologia estragou os planos da viagem. Com a chuva a cair sem abertas, o elefante terá de esperar por quinta-feira à tarde para sair de Tondela. Entre dois aguaceiros e a ameaça constante das nuvens que vêm da Serra do Caramulo, os membros da Acert iniciam o processo de desmontar a parte superior de Salomão, reduzindo-o a um imenso esqueleto que terá de viajar num daqueles veículos longos, tão longos que parecem uma rua e fazem desconfiar da sua capacidade de avançar por estrada. Na zorra, nome que a equipa utiliza para se referir ao dito veículo, está tudo a postos para carregar

o elefante, logo depois dos estrados, dos ferros e de outros materiais que hão-de compor um palco no chão de pedra de Viseu. Pompeu José, que será um dos velhos da aldeia e o magnificente Arquiduque Maximiliano da Áustria, faz agora as vezes de cornaca improvisado, dando indicações para que a carga seja colocada na zorra da melhor maneira, evitando qualquer mazela em Salomão. Com a ajuda de todos, actores, técnicos e outros membros da Acert, o elefante instala-se, enfim, e ruma a Viseu, com a promessa de ficar a descansar num armazém protegido da chuva até poder ser instalado no seu lugar de destino.

VISEU RECEBE SALOMÃO Sexta-feira, pela manhã, o centro da cidade está suspenso pela chegada de Salomão. Apesar de reduzido ao seu esqueleto, a imponência do animal não desapareceu e a caminhada lenta pelas ruas do centro até ao Adro da Sé (1) é acompanhada de perto pela população local. Instalado no ponto de partida do percurso que fará durante o espectáculo, o elefante terá no senhor Victor Guedes, sacristão da Sé de Viseu, um dos seus mais fiéis guardadores. Natural da Figueira da Foz e a viver em Viseu há 18 anos, o senhor Victor confessou que gostaria de ter sido padre, coisa que a mãe não permitiu, acabando por pertencer à igreja de um outro modo, como sacristão e vigilante da Sé. E como é que um homem da Igreja vê a chegada de um espectáculo feito a partir do texto de José Saramago, escritor pouco dado às lides eclesiásticas, mesmo à frente da Sé? “Muito bem. Devo dizer que, de um certo modo, ajudei a que este espectáculo aqui chegasse. Quando mudou o cónego responsável pelo Cabido da Sé falou-se na hipótese de alguns espectáculos decorrerem aqui no largo, mas havia algum receio por causa das mentalidades e das pessoas que frequentam a igreja. Depois de algumas conversas com a Sandra Correia, do Teatro Viriato, fiz força para que isto pudesse aqui acontecer. É muito importante que coisas destas tenham espaço, porque envolvem a cidade, as pessoas da terra e a cultura.” Deixamos o senhor Victor com a equipa técnica, para que nada falhe nas marcações e nos momentos em que determinada porta tem de se abrir para que o Arquiduque aceda ao telhado da Sé, ou para que o Rei alcance a Varanda dos Cónegos. Em frente à Igreja da Misericórdia, começam a surgir alguns dos participantes do espec-

( ) No Adro da Sé, em Viseu, ficam situados a Sé Catedral de Viseu, o Museu Grão Vasco e a Igreja da Misericórdia; Gps: 40°39’36”N 07°54’41”W

17


PAUSA

táculo, pouco antes de se reunirem com os actores no Pavilhão Multiusos onde decorrem os ensaios. Observam Salomão de perto, tirando-lhe as medidas, e talvez comecem a imaginar como será contracenar com um bicho de tais dimensões. Desde o início da semana que três dezenas de participantes ensaiam com a equipa de encenação da Acert. Aprendem movimentos, falas e marcações para o espectáculo que há-de encher o Adro da Sé no sábado à noite. Alguns já conhecem o ofício, porque participaram, há um ano, no mesmo espectáculo, levado à cena em Tondela, mas a maioria é estreante nas lides do palco. Sandra Santos e Ilda Teixeira ensaiam com os dois grupos, o primeiro manuseando enormes bambus com uma perícia que surpreende, o segundo ensaiando coros e movimentos de leque. João Silva e Pompeu José juntam-se aos trabalhos, coordenando os cavaleiros portugueses que hão-de acompanhar Salomão, os cavaleiros austríacos que quererão disputá-lo e o grupo que receberá o elefante e dele se despedirá numa das passagens mais comoventes da peça, compondo as cenas que decorrem numa aldeia. No sábado à noite, cumprirão a função para a qual se voluntariaram como se sempre tivessem estado em cima de um palco. VISEU, 20 A 24 DE MAIO DE 2014

A meio da tarde, impõe-se um intervalo no ritmo acelerado com que se prepara o Adro da Sé para o espectáculo. É assim que chegamos à Casa Bóquinhas,(2) uma taberna recatada na Rua Escura por onde os anos parecem não ter passado e onde o acolhimento é tão generoso que nos sentimos visitas em casa de família. Atrás do balcão, o Senhor Raul e a Dona Elisa servem bebidas e petiscos. Não há presunções gourmet, nem vontade de transformar uma velha taberna num falso lugar genuíno como agora há tantos. As moelas são moelas, o bacalhau vende-se à posta e o chouriço cozido em vinho, que não se chegou a provar porque era preciso retomar os trabalhos, não se disfarçam sob a capa de nomes moderninhos. Aqui não é preciso fingir uma suposta tradição porque cada canto desta casa é a própria tradição. As minis bebidas directamente da garrafa (ainda que o Senhor Raul tenha feito sempre questão de perguntar se “a senhora queria um copo”), os favaios despejados da garrafinha com carica ou as sandes de presunto tenro e sem conservantes para além dos naturais, são o lado degustativo da verdadeira vocação da Casa Bóquinhas, que é a de juntar gente, à volta de uma das mesas corridas ou de pé frente ao balcão, e deixar correr as conversas. Os dois anfitriões colaboram na missão, com o equilíbrio de quem já faz isto há muitos anos, ouvindo quando é para ouvir, participando sempre que a oportunidade se impõe. “Talvez a gente consiga dar um salto lá acima no sábado, para vermos o elefante,” diz o Senhor Raul, mesmo sabendo que é difícil fechar a porta de um estabelecimento que todas as noites se enche de gente. É assim que actores, equipa técnica e jornalista ficam a conhecer os licores caseiros feitos pela Dona Elisa e oferecidos num brinde que celebra o facto de estarmos aqui, neste presente que nunca temos como adquirido, mas que assinala também o aniversário de Pompeu José e os 40 anos de casamento da dupla que faz da Casa Bóquinhas um dos lugares mais acolhedores de Viseu.

ENTRE A IGREJA E O MUSEU O Adro da Sé é um enorme espaço quadrangular cujas pedras reflectem uma luz amena sempre que o fim da tarde chega com sol. Em frente, a Catedral, uma estratigrafia de estilos arquitectónicos que começam no século viii, com um templo paleo-cristão que lhe serviu de fundação, prosseguindo no século xiii e atravessando tempos e regimes com firmeza pétrea. De uma das duas torres se conta que terá saltado um certo João Torto, lá por meados do século xvi, equipado com um zingarelho que continha asas e engrenagens onde se guardava o sonho

(1) Casa Boquinhas, Rua Escura, Viseu - Gps: 40°39’36”N 7°54’36”W 18


ingénuo de voar como os pássaros. Como Ícaro, acabou por estatelar-se, não porque o sol lhe tenha derretido as asas, mas porque o invento não podia cumprir o fim a que se destinava — faltavam ainda alguns séculos para que o ser humano alcançasse as nuvens sentado confortavelmente dentro de uma máquina voadora, mas João Torto não tinha como sabê-lo. À direita, a Varanda dos Cónegos e o edifício que a complementa, que serão a casa do padre e os aposentos reais logo que o espectáculo comece. À esquerda, instalado no antigo Paço dos Três Escalões, o Museu Grão Vasco, ex-libris cultural da cidade e guardião de uma colecção onde se destacam as obras de Vasco Fernandes, que dá nome ao museu, e várias peças de arte sacra. Enquanto as luzes e o som para A Viagem do Elefante vão sendo montados, numa confusão de cabos que em breve desaparecerá naquele passe de mágica que só os técnicos sabem executar, o silêncio impera nas salas do Museu, por onde deambulam alguns visitantes. Numa das salas onde se expõe a arte sacra, um enorme Cristo articulado destaca-se na parede. O rosto de madeira tem as marcas esperadas do sofrimento, mas o corpo de marioneta causa estranheza, como se a solenidade iconográfica de um Cristo não coubesse no gesto teatral revelado pelas articulações dos seus membros. A legenda esclarece a origem da peça: construído no século xiii, este era o Cristo que se utilizava nas representações do Auto do Descimento da 19

Atrás do balcão, o Senhor Raul e a Dona Elisa servem bebidas e petiscos. Não há presunções gourmet, nem vontade de transformar uma velha taberna num falso lugar genuíno como agora há tantos. As moelas são moelas, o bacalhau vende-se à posta e o chouriço cozido em vinho, que não se chegou a provar porque era preciso retomar os trabalhos, não se disfarçam sob a capa de nomes moderninhos.


Cruz, encenadas durante a semana da Páscoa. Lá em baixo, em frente à Sé onde os músicos já ensaiam as canções que acompanham A Viagem do Elefante, o cornaca há-de proferir, sentado no cucuruto de Salomão, a frase que lhe valerá uma ameaça quando responde à acusação de estar a contar histórias da carochinha sobre o panteão do hinduísmo: “Como aquele que tendo morrido, ressuscitou ao terceiro dia…” O Cristo articulado do Museu Grão Vasco entra, então, neste espectáculo sem nunca se afastar da parede onde repousa. A história que se contaria no Auto do Descimento da Cruz cruza-se com a fala do cornaca, com a linhagem dos deuses hindus que este invoca para falar de um outro elefante, com a eterna necessidade que o ser humano tem de contar histórias, reais, imaginadas, simbólicas. Não é outra a vocação desta viagem, a de Salomão e a da companhia teatral que lhe dá vida.

alinham-se com cuidados de casa arrumada. Drogarias, mercearias, vendas de sementes e bolbos para a agricultura, tudo aprumado no desejo de revitalizar uma das artérias mais emblemáticas da cidade. Continuando a descida, com um desvio pela antiga Rua das Bocas para ver de perto as gárgulas que ninguém sabe de onde vieram e que rematam o telhado de uma casa agora em franca ruína, alcança-se a Rua D. Francisco Alexandre Lobo. Na montra da Confeitaria Amaral(4) exibem-se broas, bôlas e fogaças numa espécie de resistência gulosa à normalização do pão e à sua transformação em pedaços de farinha cozida e sem graça, com toda a espécie de aditivos que nunca fizeram parte de qualquer receita original. Aqui, pelo contrário, cada pão de azeite, broa ou bolo oferece ao olhar a certeza de uma massa batida por quem sabe do ofício. Paula Seabra, uma das trabalhadoras da casa que abriu as portas em 1955 para nunca mais apagar os fornos, gaba tudo o que está na montra, mas recomenda a fogaça de mel: “Isto dura uma semana sem perder a consistência nem o sabor.” Com o detalhe de quem conhece bem aquilo que vende, explica o processo de fabrico: “A fogaça de mel é feita com a mesma massa do pão de azeite, mas a meio da cozedura é tirada do forno, leva uns cortes em cima e é regada com mel fervido. Depois volta ao forno.” O resultado é uma massa consistente onde o salgado e o doce convivem e concorrem para a felicidade geral das papilas gustativas. Viriatos, castanhas de ovo ou pastéis de feijão também são tentadores, mas é a fogaça de mel que ruma a Lisboa na bagagem, prolongando por mais uns dias a viagem por Viseu. E não há desilusão: cinco dias depois, a massa está como no primeiro dia, tão boa que fica por descobrir se aguentaria uma semana.

UM ESPECTÁCULO À BEIRA DE NASCER

Abandonando o Adro da Sé por algumas horas, deixando cada membro da Acert entregue às suas tarefas de montagem e preparação, desço ao centro da cidade pelas ruas que conduzem à Câmara Municipal. Na Rua Direita,(3) que é toda curvas e contra-curvas, as lojas

Poucas horas antes do espectáculo, o Adro da Sé já tem o aspecto de um palco. Estacionado no canto onde iniciará a sua viagem desta noite, Salomão parece observar a azáfama de actores e técnicos com a mansidão preguiçosa dos justos. Talvez já conheça o seu fim e espere apenas que os homens e mulheres que com ele hão-de contracenar guardem a experiência para o resto das suas vidas. A mesma esperança têm os participantes do espectáculo que por aqui andam, esperando o momento de serem caracterizados e vestidos com os figurinos da peça. Elisa, que integrará o grupo das espanholas que recebem Salomão em festa, confessa que no primeiro dia de ensaios estava um pouco receosa: “Nunca tinha feito teatro e fiquei com algum medo, sem saber se estaria a fazer as coisas bem, mas depois passou tudo e agora estou a adorar.” No mesmo grupo, Célia e Liliana antecipam

( ) Rua Direita, Viseu; Gps: 40º39’31.4”N 7º54’38.8”W

( ) Confeitaria Amaral; Gps: 40°39’23.6”N 07°54’41.6”W

NAS RUAS DE VISEU

VISEU, 20 A 24 DE MAIO DE 2014

20


o fim do espectáculo com alguma tristeza, confessando que depois do fim vão sentir falta das suas personagens, e sobretudo de Salomão. “A parte que mexeu mais com toda a gente durante os ensaios foi a morte do elefante. A gente apega-se a ele e depois é uma tristeza,” diz Liliana, já com os olhos a adivinharem as lágrimas que depois se verão, quando as luzes do Adro da Sé se apagarem e Salomão fizer as suas despedidas de Viseu. Já sem público nem participantes no Adro da Sé, a equipa da Acert inicia a desmontagem do palco de rua. Peça por peça, Salomão regressa à sua condição de animal pela metade, de modo a regressar à zorra por entre os estrados e os ferros que só voltarão a ser usados dentro de duas semanas, em Penalva do Castelo. Por entre o barulho das marretas e o arrastar de estrados, não se vê qualquer diferença entre actores e técnicos: cada um tem o seu par de luvas de trabalho e todos contribuem para o regresso à normalidade do largo onde Salomão já não está. De madrugada, não restarão vestígios visíveis da passagem do paquiderme e da sua comitiva por Viseu, mas tudo indica que Salomão tão cedo não será esquecido pela cidade.

SARA FIGUEIREDO COSTA TEXTO RICARDO CHAVES FOTOGRAFIAS 21

Estacionado no canto onde iniciará a sua viagem, Salomão parece observar a azáfama de actores e técnicos com a mansidão preguiçosa dos justos.


Entre Maio e Setembro de 2014, a Acert levou A Viagem do Elefante num périplo por terras de Viseu Dão Lafões. O desafio de levar às praças e largos da região o espectáculo criado a partir da obra homónima de José Saramago, lançado pela Acert à Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões, voltou a colocar na estrada uma equipa de mais de vinte pessoas. Aos acto‑ res, técnicos e músicos juntaram‑se mais de setecentos participantes das diversas localidades e, ao fim de quatro meses, o elefante Salo‑ mão ganhou direito de cidadania em toda a região, unindo-lhe os pontos e alterando‑lhe indelevelmente a paisagem humana.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.