Exceção 04

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Publicação do Curso de Comunicação Social da UNISC - Santa Cruz do Sul Ano 4 - número 4 Distribuição gratuita

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Expediente UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP: 96815-900 Curso de Comunicação Social Bloco 15 - Sala 1506 Fone: 3717-7383 Coordenadora do curso: Ângela Felippi Publicidade: Agência A4 Impressão: Graphoset Tiragem: 500 exemplares Ano 4 - Junho de 2009 Foto Expediente: Cláudia Joana Dalberto

ATENÇÃO! Esta foto foi manipulada. Adivinhe em que ponto. (Resposta na penúltima página)

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2009

1- Demétrio de Azeredo Soster (editor-chefe)

2 - Emanuelle Dal-Ri (sub-edição e reportagem)

3 - Patrícia Azevedo (reportagem)

4 - Marinês Klittel (reportagem)

5 - Ana Flávia Hantt (opinião e reportagem)

6 - Letícia Schmidt (reportagem)

7 - Vanessa Kannenberg (reportagem)

8 - Ana Paula de Andrade (diagramação e edição de imagens)

9 - Fernanda Zieppe (reportagem)

10 - Thiago Stürmer (sub-edição e reportagem)

11 - Gabriela Brands (opinião)

12 - Larissa Griguc (edição de imagens)

13 - Rozana Ellwanger (edição, opinião e reportagem)

14 - Wesley Soares (produção e reportagem)

15 - Urgel Souza (reportagem)

16 - Pedro Garcia (reportagem)

17 - Aline Silva (produção e reportagem)

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S O jornalismo de revista havia morrido? Alguns de nós, especialistas ou não, haveremos de nos perguntar, para além da surpresa que o novo sempre representa quando sabemos dele, por que, afinal, alunos de jornalismo ainda criam revistas em sala de aula. A indagação tem razão de ser: seria muito mais fácil, dinâmico e barato, por exemplo, simplesmente veicular matérias em sites cujo suporte é a internet, do que em papel, caro e invariavelmente preso a lógicas espaço-temporais lentas, sobretudo de difícil resolução. Neste sentido, criar revistas seria uma espécie de paradoxo evolutivo, com tudo o que isso possa significar; realizá-las, um desperdício. Ocorre que estes mesmos olhares não consideram, ou sabem, que aquelas velhas e apressadas profecias que, não muito longe, preconizavam o final dos suportes e narrativas convencionais com o advento da web deram com os burros n'água, literalmente. Ou seja, erraram, e feio, ao sugerir que o jornalismo em forma de revista estava com seus dias contados em tempos de profunda imersão tecnológica. O “erraram, e feio” fica por conta de, paradoxalmente, a linguagem utilizada em revistas não apenas manter-se viva como influenciar o jornalismo feito em jornais impressos, rádios, televisões e, porque não dizer, na internet. Por linguagem entendemos não só as palavras escritas, mas também as fotos e a diagramação, para ficarmos em três. Tomando a premissa como verdadeira, chegamos à conclusão que exercitar jornalismo de revista, para além do exercício de construção de textos elaborados e fotografias idem, desde o âmbito universitário é mais que uma obrigação: trata-se de uma necessidade vital aos jovens aprendizes. Em especial quando, e este é o caso da Exceção, a proposta recai sobre o que é diferente, novo, inusitado; não apenas em termos de conteúdo editorial, mas também gráfico-imagético. Toda a vez que isso ocorre, o jornalismo demonstra vitalidade desde o âmbito universitário, o que é bom para todos. É o que se espera desta primeira edição de sua revista Exceção neste 2009. Uma boa leitura a todos.

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SUMARIO Memórias do crack

Quando os ouvidos vêem

O pescador que não gosta de peixes

Separados até na morte

Memórias de um vendedor de sonhos

A música que verte do chão

08 11 12 16 20 22 26 28 30 34 36 40 42 46

O encantador de búfalos

Uma vida em sete dias

O homem dos relógios gigantes

Vida de chapa não é mole

Loucos por bocha

Meu bicho de estimação não é um cachorro

Miséria não se esquece

Quatrilho: a história de uma amor proibido

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opinião

Idealismo... eu quero para viver! Rozana Ellwanger

Idealista talvez seja o melhor adjetivo para definir esta “nova safra” de jornalistas. Temos tanta fé em mudar o mundo que nos esquecemos de que a vida real não é tão simples assim. Ao ingressar no mercado de trabalho, percebemos que se conseguimos mudar a vida de pelo menos uma pessoa já é uma grande conquista. Afinal, não é nada fácil ser o super-homem que exige o Estatuto dos Jornalistas. Mudar o mundo é improvável, mas isso não nos impede de tentar. Foi isso que fizeram nossos precursores, nos idos de 1970: tentaram mudar, senão o mundo, pelo menos o Brasil. De 1964 até 1985 o país viveu a sua mais feroz ditadura. A imprensa foi calada pela censura. A repressão fez vítimas fatais e deixou marcas eternas nas que sobreviveram. Acusados de “subversão” simplesmente “sumiam”, levados pelas mãos dos militares que comandavam a nação. E, entre as profissões consideradas pelos comandantes como mais perigosas para a segurança nacional, estava o jornalismo. Nos 21 anos de regime militar centenas de pessoas desapareceram e outras tantas morreram, entre elas muitos jornalistas. O caso de Vladimir Herzog, jornalista “suicidado” nas câmaras de tortura do Exército em 1975, foi apenas um. Na época, quem tentasse mudar o Brasil corria sérios riscos. Criticar o governo, então, nem pensar. Quem o fizesse estava automaticamente na

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mira dos militares, que abusaram da censura para amordaçar a imprensa. É neste cenário de medo, perseguições e mortes que surgiram aqueles que podem ser seguidos como modelos no exercício do jornalismo. Muitos jornalistas se calaram diante das pressões do governo, mas houve também uma parcela que rejeitou a idéia de viver em um país sem liberdade de expressão. Apesar de toda a violência e das perseguições, alguns ousaram lutar. Mas eles não empunharam armas; usaram do meio que dispunham para denunciar as arbitrariedades do regime: a palavra. Driblaram a censura, fundaram jornais de oposição e, principalmente, mostraram à população que algo estava errado. Medo, não tenho dúvidas de que eles sentiam. Mas deixavam o sentimento de lado, abandonado como já haviam feito com os tipos móveis, em prol daquilo que todo o ser humano busca: liberdade. Estes sim foram idealistas. Jornalistas que não se curvaram diante do arbítrio e lutaram para mudar senão o mundo, pelo menos o seu país. E conseguiram. Fizeram o povo enxergar que a ditadura deveria acabar e enfim, depois de 21 anos, ela acabou. Estes jornalistas sim devem ser nossos exemplos. Afinal, se eles lutaram e viram o Brasil mudar, podemos mudar algo também. Mesmo que não consigamos mudar o mundo, se seguirmos sendo idealistas podemos mudar pelo menos a vida de alguém.

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Ana Flávia Hantt De gotinha em gotinha, a querida Pandora foi se curando. Já era a serelepe de sempre. Logo vi, em certa manhã, quando a amada Pandora caiu doente. Não movia um músculo sequer. Não pulou em cima da cama assim que ouviu o meu despertador tocar. Não ganiu insistentemente com aquela cara redonda e os dentes a mostra para dizer que chegava de sono e era hora de brincar. Apenas o que mexia naquele corpo peludo eram as pálpebras, as únicas que ainda tinham força para esboçar um movimento. Tem algo errado com essa cachorra, pensei. "Benzinho, amor, lindinha. Acorda." Olhar de canto para mim. Ela apenas fechou as pálpebras. Então eu comecei a me assustar. Quem conhece a Pandora, sabe do que eu estou falando. Ela é um doce de cachorra, uma rotweiller linda. Mas devido ao seu temperamento um tanto destrambelhado e hiperativo, ganhou alguns apelidos carinhosos. O mais doce deles a Pandorinha ganhou da minha dinda: demônio. Pois bem. O que uma pessoa com instinto maternal por uma cachorra de três anos de idade faz nesse momento? Liga desesperada para o veterinário, claro. O Doutor Raposa veio, examinou a Pandorinha e disse que precisava leva-la para maiores exames. A tardinha chegou e fui imediatamente visitar minha cachorra. Lá estava ela, deitada bem no fundo da sua jaulinha. Admirei-me quando o veterinário

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disse que o problema de Pandora era depressão. Ele, no entanto, me explicou que ela devia ter ficado ressentida pelo fato de ter sido castrada.

opinião

Pandorinha voltou a sorrir Resumo da história: passei a frequentar terapias de grupo com a minha doce cachorrinha. Sim. Vocês também conseguem imaginar a cena? Euzinha, ao lado de uma rotweiller, sentada em roda junto a outras pessoas com seus cães. Conversávamos e fazíamos exercícios em dupla. Detalhe que o exercício em dupla aqui quer dizer, eu e Pandora, depois eu e Fred, eu e Bob, eu e Mel, eu e Pretinha... pelos nomes, nem preciso dizer em qual espécie se enquadravam os meus parceiros de trabalho, certo? Aliado a isso, cinco vezes ao dia eu precisava pingar na língua da Pandora dez gotinhas de remédio homeopático. Aquilo lhe aliviaria as angústias, ensinou o Doutor Raposa. Dois meses depois, cinco vidros de remédio, cerca de 16 encontros para terapias em grupo, e a Pandorinha voltou a sorrir! Ok, ok... cães não sorriem, eu sei. Mas a minha pequena voltou a ser como sempre. Os carteiros e entregadores em geral voltaram a ter tiques nervosos, os gatos voltaram a não cruzar na minha rua, os pardais e bem-te-vis passaram a ficar apenas em cima das árvores... Em outras palavras, tudo voltou à calmaria de sempre. Tudo graças as terapias e as gotinhas homeopáticas.

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FOTOS: mÁRCIA mELZ

O ENCANTADOR DE BÚFALOS

Antonio Trierweiler é veterinário especializado em bubalinos. Mas

muito mais do que simples animalões de

o que o torna diferente é o fato de amansar e atrair os animais por

Ana Flávia Hantt

meio do som de música gospel

A música os transforma. Mas não é qualquer melodia. Os bubalinos reagem a

tocada no violino

uma música em especial: a música gospel No interior do município de General

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cerca de uma tonelada cada.

Amazing

Grace.

Quando

tocada

por

Câmara, depois de andar por estradinhas

Trierweiler, os animais começam um trote

de chão serpenteantes e um tanto quanto

silencioso pelas pastagens. Os búfalos são

esburacadas, chega-se a uma fazenda onde

atraídos pelo som, mesmo estando a 200,

se cria búfalos para reprodução, trabalho

300 metros de distância.

no campo e corte. Nada anormal para

Mais do que ter um gosto refinado

uma região que possui inclusive uma festa

por música clássica, os búfalos do veterinário

para homenagear o animal. No entanto,

se tornam carentes ao ouvi-la. Querem

na morada de tijolos à vista do veterinário

carinho, atenção. Querem ser alisados e

Antonio Trierweiler, os búfalos se tornam

mimados. Animais que possuem força

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para serem comparados a tratores e uma

participavam da competição. Assim, acabou

cara preta nem sempre amistosa tornam-se

amansando os animais.

dóceis animaizinhos de estimação. E tudo, garante Trierweiler, devido à música.

Trierweiler iniciou a criação de búfalos em 1980, sendo que o gosto

Esta reação foi notada pelo vete-

pela espécie deve-se às suas qualidades

rinário de 46 anos em 2003. Integrante das

intrínsecas, como longevidade, rusticidade

orquestras de Lajeado e da Universidade de

e fertilidade. A docilidade é outro fator

Santa Cruz do Sul, ensaiava no alpendre

que atraiu o veterinário. Atualmente, dos

de sua casa, quando dois animais que

77 animais que possui, alguns são tão

estavam sendo preparados para a Expointer

amorosos que passaram a praticamente

reagiram à melodia. “Toquei várias músicas

integrar a família do veterinário.

e nesse ínterim eles apenas olhavam na

O búfalo Índio, um touro de 990

minha direção e continuavam a pastar. Foi

quilos e seis anos de idade, é, literalmente,

então que comecei a tocar Amazing Grace

o cachorrinho da família. Animal de

e para minha surpresa eles vieram ao meu

estimação de Carlinhos, de cinco anos,

encontro.” Como profissional especializado

filho do veterinário, é tri-grande campeão

em bubalinos, resolveu fazer experiências:

da sua raça e nunca foi vendido por ser

tocou em épocas e horários diferentes. Os

o preferido do menino. Desde um ano de

animais? Sempre reagiam à canção.

idade, Carlinhos monta em seu lombo e passeia pelo quintal da casa.

ENCANTADOR DE BÚFALOS

Esse é também o caso de Marajó, Antonio

um macho de seis anos amansado para

Trierweiler ganhou a denominação de

montaria, tração e para o arado. No seu

encantador de búfalos na Expointer. Munido

rebanho de cria, uma fêmea conhecida

com seu violino, saiu tocando a música pelo

como 47, ao ver o criador se aproximar, fica

parque de exposições na cidade de Esteio,

quieta, apenas esperando receber carinho.

tendo em seu encalço os dois búfalos que

“Quem conhece búfalos sabe que eles

No

mesmo

ano,

Os búfalos se aproximam e ouvem a música de Antonio

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REViSTA ExCEçãO

10 andam todo o tempo juntos. Ela chega a se separar do resto para me esperar”, mostra, ao mesmo tempo em que afaga o animal. A docilidade de alguns, inclusive, os salvou do abate. O búfalo 16, que integra o rebanho de engorda, não será vendido para corte por já ter conquistado a afeição de Antonio. Quando toca sua canção, o animal se aproxima do músico e não se afasta até ter satisfeito completamente a sua necessidade de atenção.

O SEGREDO Apesar de ser técnico de registro genealógico da Associação Brasileira de Criadores de Búfalos e músico desde

A canção tocada ao violino amança os animais, que permitem até serem montados

criança, Antonio Trierweiler não sabe por que a música Amazing Grace em particular

esquecem os maus tratos.

animais. “Não devemos ter raiva nem

surte efeito nos bubalinos. O músico

Da mesma forma, quem assiste

medo, pois a adrenalina provocada por

suspeita que seja a vibração das notas,

Antonio Trierweiler atraindo dezenas de

estes sentimentos é percebida pelo faro,

que, de alguma maneira, soa familiar aos

búfalos pelas pastagens de sua fazenda

provocando neles uma reação de hostilidade

animais. Com memória de fazer inveja

apenas com o som do violino não esquece.

por representarmos perigo a eles.” O

a qualquer humano, os búfalos, uma vez

E mesmo não sabendo como isso acontece,

segredo, então, é entrar nas pastagens

amansados ou adestrados, não esquecem

o veterinário sabe o suficiente para manter

com o coração aberto? “De coração aberto

o aprendizado, assim como também não

uma relação de amizade com os seus

e violino em punho.”

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Memórias do crack Rozana Ellwanger Do ponto de vista químico, o crack pode ser definido como uma mistura de cocaína em pasta não refinada com bicarbonato de sódio, muito viciante. Já alucinação é a percepção real de algo que não existe, além de uma das conseqüências do uso da droga. Explicações à parte, a droga é tão poderosa que, durante a recuperação, é comum dependentes químicos verem coisas que não existem. Ou melhor, que só existem para eles. As histórias relatadas nesta matéria ocorreram em uma clínica para drogados localizado em uma igreja de Venâncio Aires.

PORTAS QUE APARECEM... ILuSTRAçãO: AmAndA mEndOnçA

Reunidos, junto com o coordenador do programa de recuperação de viciados em crack, um grupo de adolescentes rezava e cantava. Todos estavam bem e nenhum deles havia tido crise de abstinência. Pelo menos não naquele dia. De repente, um deles se levanta e olha tranqüilamente para a parede, sem nenhum móvel no caminho. Para os outros era apenas uma parede branca. Mas para ele, ali havia uma porta e a possibilidade de sair daquele lugar. Ele então empreende uma corrida digna

FOGO SEM RASTROS

de velocista em direção a ela e... paff! Todos ouvem uma batida seca no cimento e vêem o garoto caindo de costas no chão.

O garoto de 17 anos jamais vai esquecer o que houve na noite de sexta-feira. Ele estava sentado com os outros jovens, conversando,

...E PRIVADAS QUE SOMEM

no dormitório quando, ficou tudo em silêncio e ele começou a

A luta contra o vício às vezes também é uma luta contra o tem-

sentir um calor infernal. Olhou para si e viu fumaça saindo de sua

po. Um certa noite, um rapaz estava conversando normalmente

camiseta. Na mesma hora arrancou a blusa. Ele então a esticou em

com os outros. Até que avistou a bateria da banda e caminhou

sua frente e viu claramente que ela pegava fogo. Faíscas voavam

calmamente em direção ao instrumento. Chegando lá, abriu o

em sua direção. Na mesma hora ele jogou a camiseta para longe,

zíper da calça e se preparou para “dar uma aliviada”. Foi quando

em cima da cama, e ela desintegrou-se em cinzas, deixando o col-

o coordenador parou ao seu lado e perguntou:

chão marcado pelo fogo. Tudo certo, ou melhor, tudo errado, não

- O que você tá fazendo!?

fosse o fato de que ninguém, - nem mesmo o pastor -, acreditava

- Eu vou fazer xixi.

em sua história. O único que tinha certeza disso era ele mesmo,

- Mas aqui?

apesar de suas roupas estarem intactas.

- Não tem problema. Depois eu puxo a cordinha.

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ILuSTRAçãO: AmAndA mEndOnçA

UMA VIDA EM SETE DIAS Pai de Laura, o divorciado Diego Paiva, 25 anos, vive com seus pais. Sua vida se resume basicamente aos estudos, ao escritório de contabilidade da empresa, aos amigos e à filha, de cinco anos. Laura, a filha do jovem divorciado, é o xodó da família de Diego.

Letícia Schmidt

Paiva também é louco por café e futebol

SEGUNDA- FEIRA 6h20min soa o despertador.

os colegas, mas nada muito demorado. Após o almoço é hora de

Levanto e começo a me arrumar

um bate-papo com os colegas. 12h55min: volto para o escritório e

para ir trabalhar. Mas antes

vou escovar os dentes. 13 horas: inicio as atividades normalmente.

de ir para o serviço, vou até

14h15min dou um tempo para um café. 15h30min: dou uma saída

a casa de minha ex-mulher

da empresa para ir buscar algumas notas fiscais. Chegando de

buscar minha filha Laura, de cinco anos. Casei-me muito cedo, aos 18

volta ao escritório, por volta das 16h45min, é hora de outro café, o último do dia. 17h10min: começo a me organizar para ir embora.

anos de idade. Foram sete anos de casamento maravilhoso.

17h40min: chego em casa e vou brincar um pouco com minha

Mas, como nada é para a vida toda, minha ex-mulher e eu

filha, já que agora é sempre complicado nos vermos por causa do

resolvemos nos divorciar. Como estamos em processo de

horário, que é incerto. 18 horas: levo minha filha para casa da mãe

separação, minha filha fica de um lado para o outro, sem

dela. Estes momentos em que entrego minha filha para a mãe dela

horário para nada. Após pegar minha filha, a levo para minha

são muito complicados para mim, pois sou extremamente apegado

casa, onde ela fica aos cuidados de minha mãe. Chegando à

a ela. Em seguida vou jogar futebol com uns amigos. Por volta das

empresa, por volta das 7h05min, vou direto tomar um café. Em

20 horas, quando chego em casa, vou tomar meu banho e saio

seguida, dirijo-me até minha sala e começo minhas atividades

para o shopping jantar. Às 21 horas retorno para casa, assisto um

no trabalho. Na metade da manhã surge uma reunião com

pouco de televisão e vou dormir.

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13 REViSTA ExCEçãO

TERÇA- FEIRA Soa o despertador às 6h20min. Levanto e começo a me arrumar. Pego meu carro e saio para o trabalho. 7h05min: chego na empresa e vou tomar café. Após isso, dirijo-me até minha sala e começo minhas atividades no trabalho. 8h30min: dou um tempo no trabalho e vou tomar um café na copa. 10h30min: dou mais um tempo para outro café. 11 horas: vou ao setor da fábrica documentar alguns equipamentos. 12h05min: saio para o almoço na empresa. 12h55min: volto para o escritório e vou escovar os dentes. Em seguida inicio as atividades de trabalho normalmente. 14h30min: dou um tempo para meu famoso café. 17 horas: tomo mais um café, o último do dia. 17h18min, fim do expediente. 19h10min assisto ao jogo do meu timão, Grêmio. 20h45min: minha mãe serve a janta, mas como não perco por nada deste mundo o jogo do meu time, janto na sala mesmo. Com o término do jogo, tomo meu banho e vou para meu quarto estudar, pois faço curso de inglês. Acabo dormindo com os livros na mão.

QUARTA- FEIRA 6h20min: levanto para ir trabalhar. Chegando à empresa vou tomar meu café. E ao entrar em minha sala de trabalho me deparo com muitos de papéis na minha mesa: nossa! O dia vai ser longo pelo visto!! E, para ajudar, uma reunião com duração de uma hora. Após isto, pelas 8h30min, dou um tempo e vou tomar um café na copa. 10h30min: volto para a copa para mais um café, meu grande e único vício. Com o término do expediente, vou direto jogar um futebol com os colegas da empresa. Em seguida, vamos tomar uma cervejinha e aproveitamos para bater um papo-furado. Depois vou para casa, janto com minha família e vou dormir.

QUINTA- FEIRA 6h20min: levanto para ir trabalhar. 7h10min: chego à empresa e vou tomar café. Ao entrar em minha sala, percebo que não há serviço para mim. Resumindo: passo o dia todo tomando café e conversando com os colegas para passar o tempo. 17h18min, fim do expediente. Após o serviço, pego minha filha Laura na casa da minha ex . Resolvo levar ela na pracinha do centro. A Laurinha volta com os joelhos esfolados de tanto brincar e cair na areia. Em seguida vou para casa dos meus tios, com minha mãe e meu pai, jantar. Após isso, vou à casa de um amigo meu para conversar um pouquinho. Confesso que é muito estranho voltar para a casa dos pais após cinco anos morando fora, pois é tudo diferente. Mas agradeço muito a eles, meus pais são muito bem centrados e de corações enormes. O mais legal de tudo é que voltei a receber os mimos de minha mãe!!

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LETÍCIA SCHmIdT

SEXTA - FEIRA Quinta, véspera de feriado, volto da casa de meu amigo às 4 horas da manhã. Mas, mesmo assim, levanto cedo, pelas 7 horas para buscar minha filha. Mas quando chego em casa com minha filhota não agüento de sono e vou deitar mais um pouquinho. Porém, de nada adiantou. Logo chegam em casa meus parentes e a folia começa. Mesmo assim, fico até 9h30min deitado na cama e, ao levantar, vou conversar com meus parentes. À tardinha, infelizmente levo minha filha para a casa da minha ex. Em seguida vou até o shopping jantar. Aproveito que estou pela rua e dou uma volta de carro sozinho mesmo. Acabo encontrando meu primo pelo Posto do Pflug, então aproveito e fico ali mesmo com ele e uns amigos conversando e tomando uma cerveja. Minutos depois vamos para o apartamento do meu primo jogar vídeo-game. Pela 00h30min volto para minha casa.

SÁBADO Acordo pelas 9 horas, tomo um café e vou para o posto lavar o carro. Logo após, levo minha mãe para fazer umas comprinhas no Centro. Chegamos em casa e faço uma média com meu pai: vou fazer um super churrasco. Na parte da tarde, fui buscar minha filha Laura. A levo para comer um sorvete pertinho de casa. Nossa! Quanta alegria dessa menina! Apesar de a Laura ter apenas cinco anos de idade, ela já consegue entender perfeitamente que os pais dela não conseguem viver mais juntos. Mas me sinto extremamente satisfeito com o crescimento dela: pois é saudável, alegre, muito inteligente e querida. Em seguida voltamos para casa, conecto meu Messenger e combino com o pessoal que está on-line de sair à noite para uma balada. Após isso, levo minha filha para a casa de minha ex-sogra e a deixo com ela. Mais tarde vou até a casa de um amigo meu para pegá-lo, pois fomos vamos para a balada. Chegando lá, encontramos umas colegas da empresa. Fizemos uma grande festa!

DOMINGO Acordo às 10 horas da manhã para levar minha filha de volta para a casa da mãe. Após isso, vou direto para meu irmão para almoçar. Mas logo após o almoço, volto para casa para dormir, acordando somente às 16 horas. Ao levantar conecto meu Messenger e ali fico durante duas horas conversando com o pessoal que está on-line. Lá pelas 19 horas vou até o mercado fazer umas comprinhas para minha mãe. Aproveito e já dou uma volta na Avenida Imigrantes para ver o movimento. Chegando em casa vou logo para a residência do meu vizinho e amigo para olharmos o jogo do Inter, ou melhor, secar o Inter. Mas nada adiantou, o massacre foi de 4 X 0 do Inter sobre o Canoas. Retorno para casa, janto e logo vou dormir.

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quando os ouvidos VêEM A tecnologia evoluiu e se tornou uma aliada para que as FOTOS: LETÍCIA SCHmIdT

pessoas com deficiência visual possam se comunicar com mais facilidade. Graças a ela surgiram as falas Sapi. Conheça agora Fernanda, Gabriel, Raquel e Felipe Cristian não se intimida com o avanço das tecnologias

Aline Silva As pessoas nascem com cinco sen-

Os leitores de tela fazem a leitura

tidos fundamentais. Tato, paladar, audição,

de tudo o que aparece no visor por meio

olfato e visão. Aqueles que já não contam

de sintetizadores de voz. Ao contrário do

mais com os olhos para ver, fazem de seus

que se possa imaginar, as vozes são huma-

ouvidos e mãos exímios ajudantes para a

nas. No entanto, são sintetizadas por pro-

convivência diária, principalmente com a

gramas específicos, como o Soundfourge.

tecnologia. Outros utilizam-se das máqui-

O leitor de tela faz a interpretação do que

nas para expandir seus horizontes. Foi

está escrito e o sintetizador fala. A qualida-

assim que surgiu a Fernanda, o Gabriel, a

de de um sintetizador de voz é determina-

Raquel e o Felipe.

da pela semelhança com a voz humana e

Apesar dos nomes próprios, não es-

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sua capacidade de compreensão.

tamos falando de pessoas. Muito menos

Felipe Garcia é um jovem de 17

auxiliares que se sentarão próximos à tela

anos, deficiente visual desde o nascimento

do computador. Eles na verdade existem

e há pouco mais de um ano tem utilizado

somente no mundo virtual: são todos vozes

os leitores de tela. Ensinado por um amigo,

sintetizadas, que facilitam a utilização do

hoje ele auxilia pessoas que queiram utili-

computador por pessoas com deficiência.

zar esses programas. Na internet, ele faz o

Os nomes servem apenas para aproximar

download das chamadas vozes e as forne-

ainda mais o homem e a máquina.

ce a quem se interessar. “No grupo de pes-

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REViSTA ExCEçãO

falas sapi e dosvox

17

Sapi é uma sigla em inglês que quer dizer Speech Application Programming Interface. Trata-se de uma API (Application Programming Interface) desenvolvida pela Microsoft que permite a utilização do reconhecimento de voz. Ou seja, as vozes sintetizadas, projetadas para que os programas consigam comunicar de uma maneira fácil, acessível por meio de diversas linguagens de programação com o software que reconhece a voz ou que converte o texto para voz. Já o Dosvox é um sistema para microcomputadores brasileiro, elaborado pelo Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Permite que pessoas cegas utilizem um microcomputador comum para desempenhar uma série de tarefas, adquirindo assim um nível alto de independência no estudo e no trabalho.

ILuSTRAçãO: bRunO SEIdEL

soas cegas que participo, sempre bus-co

ter de pedir auxílio para ninguém. O único

trazer coisas novas e informações sobre as

inconveniente, garante, é se alguém utiliza

falas Sapi (vozes sintetizadas)” (veja box).

seu computador. "Aconteceu esses dias,

Ele garante ser um deficiente visual ante-

pensei que o micro tinha estragado, quan-

nado, que gosta de divulgar e ajudar mais

do na verdade tinham tirado o áudio. Isso

pessoas a conhecerem esses programas.

é sacanagem para quem se baseia na voz

Felipe acredita que sem os recursos atuais

para trabalhar". Cristian é um exemplo de

seria tudo mais difícil. “Se não existisse o

como a tecnologia pode ajudar na adapta-

computador com estes recursos auditivos

ção para uma nova condição de vida. Mes-

na vida do cego, seria tudo mais compli-

mo tendo perdido a visão ele se adaptou e

cado, como era no passado. Hoje, com a

hoje consegue realizar diversas atividades

internet e com os leitores mais avançados,

que, sem as evoluções tecnológicas, seriam

podemos acessar páginas e programas

praticamente impossíveis.

mais facilmente”.

As vozes sintetizadas e os leitores

Cristian Evandro Sehnem é defi-

de tela cumprem hoje um papel de des-

ciente visual e usuário de um desses pro-

taque no mundo virtual. O que os olhos

gramas. Todos os dias recebe milhares de

não vêem, os ouvidos compreendem com

e-mails, participa de grupos de discussões,

a ajuda da máquina e seus usuários assim

navega tranqüilamente pela internet sem

são inseridos no mundo tecnológico.

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Quer saber mais? Acesse http://arquivossonoros.blogspot.com/ e http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/

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a possibilidade de seguir “Perdi a visão aos 20 anos de idade, quando cursava o quinto semestre de Ciência da Computação na Unisc. Inicialmente busquei os conhecimentos da linguagem Braile, pois tinha a idéia de que pessoas com deficiência visual usavam apenas esse recurso. Mas não conseguia ler e escrever muito bem em Braile, pois tinha o sentido do tato já limitado pela idade adulta, e também a paciência para ficar catando letra por letra era pouca, já que tinha a experiência do ler com os olhos. No ano seguinte, em 1997, fiz um curso de informática pelo Senai, com o Sistema Operacional Dosvox, criado pela UFRJ para pessoas com deficiência visual. Como eu já conhecia o computador, tive uma certa facilidade para reaprender a usá-lo, mesmo que a voz fosse, naquela época, complicada. Era uma voz chiada, muito mais robotizada, mais quadrada ainda que as que temos hoje . E ainda fazia a leitura por sílabas, o que nem sempre dava para

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entender. Naquela época, para se ter uma idéia, o programa vinha em disquetes, dez no total, junto com um pequeno equipamento que era acoplado ao computador, que não vinha com multimídia. Mas um tempo depois, se não estou enganado no ano 2000, já trabalhando na Unisc, consegui comprar um computador, e então tudo mudou. É outra coisa ter um computador em casa. Instalei o Dosvox, mas também o Virtual Vision, software leitor de tela. O Virtual Vision possuía uma síntese de voz muito melhor, mais clara, compreensível, e permitia o uso do Windows, o que foi um avanço. Enquanto o Dosvox tinha toda uma estrutura própria, o Virtual Vision trabalhava com base no Windows. A partir de então o Braile passou a ser utilizado apenas para identificar objetos, documentos, pastas, CDs e assim por diante, porque nos estudos, trabalho e mesmo lazer o computador com leitor de tela tornou-se inquestionável. Hoje defendo o uso de computadores por pessoas com deficiência visual. Não consigo imaginar um estudante apenas com reglete e punção (instrumentos para a escrita Braile), por entender que no computador os recursos são maiores, mais rápidos e atuais. Enquanto um livro em Braile demora meses para ser publicado, uma informação no computador, ligado à internet, dá a notícia minutos após ter acontecido, mesmo que no outro lado do mundo. Também não se pode esquecer que esses softwares leitores de tela não são utilizáveis apenas no computador. Há uma série de equipamentos que também contam com esse formato de adaptação, como celulares, máquinas de lavar roupas, termômetros... enfim, através da audição a pessoa com deficiência visual tem novas possibilidades e pode usufruir de muitas vantagens. Por isso, hoje, não me imagino sem esses recursos. Se estudo e trabalho é porque tenho um importante e ágil instrumento para minhas atividades.”

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O HOMEM dos RELÓGios

GIGANTES Em meio a sinos, ponteiros e engrenagens gigantes, Dauri Klein reina absoluto. Ele se dedica a uma profissão peculiar e cada vez mais rara: mecânico de relógios públicos

Thiago Stürmer

O som do sino reverbera por vários

O início de Klein no ofício, claro,

quarteirões, mas seu efeito é discreto entre

foi com um relógio estragado. Em 1998

os moradores já acostumados. Dentro da

já faziam dez anos que os ponteiros do

torre da igreja, porém, é quase impossível

templo da comunidade luterana de sua

fi car indiferente às badaladas. Ali, onde

cidade, Marques de Souza, no Vale de

a rusticidade das paredes de tijolo à vista

Taquari, marcavam o mesmo horário. Klein,

contrasta com a valorização da arquitetura

proprietário da única relojoaria de Marques

no lado de fora, o estrondo das toneladas

de Souza, foi chamado para resolver o

de bronze sendo zurzidas pelo martelo

problema. “Eu achava que não conseguiria

continua soando na cabeça por alguns

arrumar. Nunca havia visto um relógio com

segundos depois do silêncio dos sinos.

peças tão grandes, não tinha nenhuma

Quem vê de perto pela primeira

noção. Sorte que eles insistiram”, conta

vez se assusta. Dauri Dilso Klein nem nota.

Klein, de 54 anos, com sua fala pausada e

A torre da igreja é seu escritório de trabalho.

correta de professor. O relojoeiro foi daquelas crianças

É ali que fica a máquina dos relógios,

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onde Dauri reina entre engrenagens e

mais

interessadas

em

desmontar

os

ferramentas. O técnico relojoeiro é uma

brinquedos e entender seu funcionamento

das únicas pessoas do Estado especializada

do que propriamente brincar. Nos fundos

na manutenção de relógios públicos – ou a

de sua casa, instalou um oficina para

única, como ele defende.

desenvolver sua imaginação. De lá saíram

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THIAGO STÜRmER

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Nos últimos meses sua reputação chegou à região sudeste e ele freqüentemente recebe ligações de lá. Nas primeiras vezes Morador do Vale do Taquari já consertou relógios nos três estados da região Sul

que passou meses fora de casa para consertar um relógio chegou a cogitar o abandono do ofício. Agora, não consegue

desde as peças de relógio danificadas pelo

América Latina registrada para a função,

mais recusar pedidos. “Me sinto como um

tempo até o sistema de som que ele tem

que funcionou até o fim dos anos 1990

médico que pode salvar a vida de alguém e

instalado na parede de seu banheiro. Técni-

em Estrela, também no Vale do Taquari.

não faz”, exagera.

co em eletrônica pelo Instituto Universal

A Schwertner produziu 14 diferentes mo-

Um dos maiores orgulhos de Klein

Brasileiro, Klein desenvolveu também um

delos de relógios. Conforme Klein, todo

é a restauração do relógio de Vila Theresa,

sistema que desliga as batidas do relógio

equipamento instalado nas torres das igre-

em Bagé, na fronteira do Rio Grande do

sem interferência no funcionamento dos

jas do Estado é da marca, foi construído

Sul. O modelo importado da Alemanha em

ponteiros. O mecanismo foi criado para

artesanalmente ou trazido da Europa.

1908 funcionava a corda e foi transformado

não perturbar os moradores do Centro de

Por acaso, foi um dos filhos

em automático, depois de 50 anos parado.

Alegrete, onde fica a igreja Nossa Senho-

do fundador da empresa o responsável

O trabalho durou três meses. Agora, o local

ra da Conceição Aparecida, local onde o

pela propagação do nome de Klein como

será transformado em centro turístico, com

relógio estava há 35 anos parado antes de

consertador de relógios públicos. Com

recursos privados e através das leis Rouanet

ser consertado.

mais de 90 anos, Theobaldo Schwertner

e de Incentivo à Cultura. “Aquilo estava

Mas Klein não é procurado apenas

ainda era procurado para arrumar os

abandonado, agora foi transformado em

por ser o único a se dedicar ao conserto

equipamentos produzidos pelas empresa.

um lugar lindo”, orgulha-se.

dos relógios. Mesmo que houvesse vários

“Estou velho, não faço mais e não sei quem

Klein sabe que, quanto mais

profissionais, sua dedicação o destacaria. “A

o faça”, respondia, até um fim de semana

avança o tempo, mais importância ganham

cada seis meses, eu ligo para as comunida-

de 2003, quando foi a Marques de Souza

os relógios públicos como relíquia histórica.

des para perguntar como está o relógio,

e viu o relógio construído por seu pai no

Ele está com 54 anos; logo pretende se

insisto para que façam a manutenção”,

inicio do século funcionando novamente.

aposentar e não há ninguém para substituí-

diz. “Mesmo que o relógio foi construído

Daí em diante, seu discurso com os ex-

lo. Seu sonho é poder fazer uma espécie

há cem anos, se bem cuidado, daqui a

clientes mudou: “Estou velho, não faço

de escola profissionalizante onde possa

mais cem ainda vai estar funcionando”.

mais, mas sei quem pode fazer”.

ensinar seu ofício a jovens. A função, ele

O técnico também tem na memória nú-

Dílson Klein já fez voltarem a

diz, é fácil: o aspirante precisa apenas ser

meros e dados sobre a antiga fábrica de

funcionar mais de 50 relógios no Rio Grande

disciplinado e curioso - qualidades que

relógios públicos Schwertner, única na

do Sul, no Paraná e em Santa Catarina.

Dauri Dilso Klein tem de sobra.

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FOTOS: WESLEY SOARES

O PESCADOR QUE NÃO GOSTA DE PEIXES Boas histórias todo pescador tem. Mas a humildade representada por

Wesley Soares

um olhar tímido, capaz de ocultar uma alma irrequieta, faz de seu Adão

Há 50 anos deslizando sobre o

era pescador. Bisavô, avô, pai, eu e agora

mais que apenas um pescador: um

rio Jacuí, seu Adão poderia ser apenas

meus filhos”. Ressaltar que é, de fato e de

homem que faz do rio sua vida.

mais um pescador capaz de apontar de

direito, um pescador, talvez lhe deixe mais

olhos fechados as diferenças entre traíras,

altivo do que, por exemplo, ter perdido as

muçuns, carpas, piavas, jundiás, dourados

contas de quantas pessoas já salvou nas

ou qualquer outra espécie de peixe dentre

profundas águas do Jacuí.

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os milhares, talvez até milhões, que já

Em sua vida, nada foi tão presente

pescou. Não que isso seja desprezível, muito

quanto as solitárias noites frias em que

pelo contrário, é quase uma obrigação

encarou um gélido rio atrás do sustento

perante tamanha experiência. E seu Adão

de sua família. Seu Adão pescou, e pescou

orgulha-se disso. Bate na mesa, seus olhos

muito. Ainda é do tempo em que se pegava

brilham e saltam-lhe as veias do pescoço,

dourado de 15 quilos. Com seis anos já

enquanto discursa: “Eu e meus irmãos

desafiava os perigos do Jacuí acompanhando

somos os únicos ‘pescadores de raiz’ que

seu velho pai em dura empreitada. Mas este

ainda existem em Rio Pardo. Meu bisavô

senhor de 55 anos e 20 netos, de aparência

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cansada e sorriso acabrunhado, não é do

Por vezes sente-se fisgado e impotente, tal

cerveja está proibida. Mas não tem como,

tipo que tem apenas bons e alegres causos

qual os peixes quando se prendem à redes

cada vez que como carne, sou obrigado a

de pescador na ponta língua. Sua história

ou anzóis. As marcas do tempo expostas

tomar uma cervejinha. E já que como muita

pode ser comparada, ironicamente, a dos

em um rosto que aparenta bem mais do

carne...”. O pescador Adão tem que comer

peixes: “Se me afastarem do rio, eu morro,

que os 55 anos que tem evidenciam as

peixe, mas apesar de viver da pesca, só

assim como esses bichinhos que eu pesco”.

dificuldades de uma trajetória cheia de

come carne vermelha: “Não gosto de peixe.

Mas sua vida vai muito além de quilôme-

percalços. É isso que faz do seu Adão um

Quando como é porque sou obrigado”.

tros de redes armadas e recorridas quase

homem diferente. Um homem que intriga

Em um corpo caracterizado pelas

que diariamente.

pela frieza com que relata a morte de

marcas do tempo, a expressão cansada

Ainda que se destaque o fato de ter

sete irmãos: “Éramos em 16. Quase todos

do rosto chama a atenção. Como ele

tido 15 irmãos, ter se casado pela primeira

foram pescadores, nos criamos nessa lida.

próprio diz, cada ruga tem um significado.

vez aos 18 anos, divorciado-se da segunda

Hoje estamos em nove. Todos os outros

Uma é por conta da visão, que perde

mulher após 20 anos de casamento e ter

morreram”. Um homem que, como todo

gradativamente em função da diabetes.

salvado mais de uma dezena de pessoas do

bom filho da terra, nunca desistiu. Porém,

Outras tantas devem ser postas na conta

fundo do rio Jacuí, isso não é tudo do seu

diferentemente de tantos outros, nunca se

dos filhos e netos. Outras, porque não, das

Adão. Ele é um homem que, com a teimosia

valeu do tradicional “jeitinho brasileiro”

inúmeras mulheres que já teve depois do

dos velhos sábios que desconhecem seus

para conseguir as coisas.

segundo casamento. Todavia, a maior das

próprios limites, embrenha-se rio abaixo

Em seus olhos, há uma mescla de

rugas de seu rosto, a única que é capaz

com apenas 50% da visão para, durante

malandragem e consternação, de ousadia e

de fazer o coração sangrar até hoje, é a

cinco dias, pescar novos sonhos, esquecer

aflição, de esperança e de angústia. Neste

provocada pela perda da primeira esposa,

dos problemas que ficam em terra firme

coração duro, há uma vontade diferente

após nove anos de casamento. Ela faleceu

e, se tudo correr bem, voltar com algum

de viver. Se a médica receitar uma dieta

precocemente aos 25 anos, com problemas

para controlar a diabete, não será seguida.

cardíacos. E quando se lembra dela, é um

Se cortar a cerveja, perda de tempo. “A

dos raros momentos que se percebe em seu

peixe que garanta mais algumas semanas de tranqüilidade para sua família. Mas então, o que falar de Adão Antonio Moreira? Um revolucionário? Um inovador? Não, nada disso. Apenas um homem fora de seu tempo. Às vezes muito atrás, quase um selvagem que consegue viver uma vida inteira às margens do rio Jacuí sem nenhum conforto e tirando seu sustento apenas da pesca, assim como fizeram os índios antes da colonização portuguesa na terra brasilis. Outras vezes, parece estar muito à frente de uma geração nascida na metade do século passado. Lembra um menino que se diverte ao contar que a cada final de semana está “casado” com uma mulher diferente. Já esteve na grande metrópole São Paulo. Em Santa Catarina, passou por Florianópolis e Bombinhas. Do litoral gaúcho, é capaz de citar, na ordem, todas as praias.

Nada o deixa mais feliz que expôr seus "troféus" nas sossegadas margens do rio Jacuí

Mas a vida não é tão simples assim.

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rosto um amor inabalável pelo tempo, um sentimento que perdurará pela eternidade. A simplicidade é, sem dúvida, sua principal virtude. Histórias inacreditáveis com certeza povoam sua mente, como todo bom pescador. Mas se lhe pedem para contar um bom “causo” do Jacuí, ele é enfático: “Não meu filho, aqui a gente faz quase sempre a mesma coisa. É sempre a mesma rotina”. Quando um cliente próximo ouve a explicação do pescador que não gosta de peixes, não se contém: “E aquele cara que tu salvou aquela vez, seu Adão?”. “Ah é... Mas isso acontece seguido, não tem nem conta... Uma vez

Adão se tranforma quando sobe em seu barco: "aqui eu sou mestre"

um rapaz tentou atravessar o rio nadando e se afogou. Ele era muito grande, gordo

quantidades pescadas, com as rotineiras

Evangélico convicto há 30 anos,

mesmo. Eu vi e pensei: e agora, como eu

enchentes que assolam os vizinhos do Jacuí

o pescador credita suas bênçãos todas a

vou tirar esse desgraçado daí? Tinha um

e com a concorrência desleal do trairão,

Jesus. Mais um ato de humildade: excluir-

caíque de timbaúva (espécie de madeira).

um peixe trazido ilegalmente do Uruguai,

se dos seus próprios méritos durante a

Peguei este caíque, levei até onde ele estava

que pesa mais que o dobro do encontrado

trabalhosa vida. No entanto, toma muito

e virei por baixo dele. Voltei à tona com o

na região, seu Adão confessa, um pouco

cuidado para não ofender nenhuma outra

infeliz dentro do caíque. Puxei o caíque

a contragosto, com voz baixa para que

religião. Seu Adão conta que há 30 anos era

pra terra, ele já estava desacordado e com

ninguém descubra, que ainda se pode viver

católico, mas resolveu abandonar a religião.

a barriga enorme, cheia d’água. Salvei o

da pesca. Mantém uma renda em torno de

Dono de uma fé única, interpreta a bíblia

homem com um 'caicão'. Agora ele mora

R$ 2 mil por mês, valor que dobra no mês

sob o ponto de vista que lhe interessa. “A

em Tramandaí e até hoje me liga: ‘E seu

da Semana Santa. Mas quando o assunto

Bíblia explica que os rios secarão e os peixes

Adão, se não fosse tu eu não estava nem

é dinheiro, ele logo desconversa: “Você vê,

morrerão. E isso tudo está acontecendo. O

no osso hoje!’”.

tenho mais de uma dezena de netos que

católico pula essa parte. O católico conta só

vivem com este meu sustento. Hoje em dia

a parte boa da bíblia”.

Mesmo com a fiscalização cada vez mais intensa, com a visível queda nas

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não se vive folgado mais”.

Cada peixe pescado representa o

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sorriso de um neto e, logo, a realização de seu Adão. Ainda assim, há épocas em que o rio e os peixes também precisam de descanso. E nessas épocas, fora da temporada da pesca, seu Adão normalmente gerencia uma rede de sorvetes dentro e fora do Estado. E é assim que Adão vai vivendo, conforme a vida e a natureza lhe possibilitam. Quando a enchente transborda e tapa sua casa-bar, o que normalmente ocorre em maio, ele

A VIDA SOBRE O RIO

pega sua “gente” e as poucas coisas que têm, atira em cima de uma barca, e fica flutuando sobre um rio que avança à beira

Além

de

todos

os

obstáculos

do asfalto. Seu bar fica todo debaixo da

enfrentados pelos pescadores e donos de

água. E a barca é a sua casa durante meses.

bar que moram ou trabalham na Praia dos

Sua casa, seu bar, seu canto.

Ingazeiros, em Rio Pardo, uma vez por ano

Da janela da cozinha improvisada,

eles são obrigados a debandarem de suas

em cima da barca, atira sua linha em um

casas para barcas ou construções flutuantes,

Jacuí cinco metros acima do nível normal.

tamanho é a altura que o rio Jacuí alcança

Chama os clientes e anuncia: “Vou pegar

em épocas chuvosas. No último ano as

clientes que vêm de todos os lugares visitar

um lambari fresquinho para vocês”. E

águas subiram em torno de oito metros na

Rio Pardo. Tornou-se, além de restaurante,

assim acontece. Puxa a linha com um

localidade dos Ingazeiros.

ponto turístico.

lambari direto do rio para a frigideira. E

Seu Adão tem como vizinho um dos

No entanto, os demais vizinhos

isso faz sucesso. O bar lota e Adão Antonio

mais famosos restaurantes de Rio Pardo.

do Jacuí, que não contam com toda essa

Moreira, um ilustre desconhecido que

Um lugar para aproximadamente 150

“mobilidade”, improvisam como podem.

ocupa não mais do que 200 m², dos mais de

pessoas, que foi projetado sobre tonéis,

Ao contrário do seu Adão, que se muda

800 quilômetros que possui o Jacuí, segue

o que faz com que toda sua estrutura

para uma barca, a maioria dos ribeiri-

escrevendo, com o romantismo de uma das

flutue nas épocas em que o Jacuí sobe.

nhos de Rio Pardo, que possuem somente

mais nobres profissões e a perspicácia de

Empreendimento de alto custo, é uma das

estabelecimentos comerciais, apenas fe-

quem precisa reinventá-la a cada dia, uma

únicas construções à beira do Jacuí que

cham seus bares e esperam que a água

história digna de um mestre, especialista

conta com este recurso. E este diferencial

baixe para novamente limpar, pintar e voltar

em vencer obstáculos.

exótico faz dele um atrativo a mais para

a vender seu peixe.

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VIDA de CHapa NÃo É MOLE Eles estão lá. Quase ninguém os vê, mas estão. São os chapas, que vivem de ajudar os outros. Pessoas que trabalham e prezam pelo respeito, sempre na esperança de uma vida melhor.

importante, aliás. É com base na confiança que o chapa pode até mesmo formar uma clientela. “Se você não trabalhar direito, o caminhoneiro não te pega mais”, descreve Ceceu. No meio da manhã, de repente um caminhão pára. Dele, logo salta o motorista para contratar os serviços de chapa. O preço é acertado antes, com o caminhoneiro, e varia de acordo com o peso da carga. Após um rápido diálogo, negociação de valores, Ceceu, um homem determinado e com espírito de equipe, conseguiu serviço para ele e o colega Paulo Rogério, que seguiram para o caminhão, onde iniciariam seus trabalhos naquela manhã. "Você deu sorte!", diz Ceceu, ao se despedir com um aperto de mão e um sorriso. “Volte mais tarde ou amanhã." No dia seguinte, estavam satisfeitos, pois o dia anterior foi de serviço.

Marinês Klittel

Mesmo com dinheiro no bolso, eles acham que o trabalho não vale a pena. "Se eu

É manhã ensolarada de quinta-

Vidor Alceu da Silva, de 50 anos, Paulo da

gosto de ser chapa, moça? Tenho de gostar,

feira e, se a sorte favorecer a todos, será

Silva de 46 anos, Paulo Rogério, 37 anos, e

não tenho outra coisa para fazer.” O

um dia inteiro descarregando e carregando

Erivaldo Francisco, 45 anos.

movimento é fraco e o tédio toma conta em

caminhões. A placa modesta mostra que

Na luta pela sobrevivência, o chapa

muitos dias. As condições de trabalho são

estão em atividade. Os olhos não desgrudam

oferece, na beira das estradas e avenidas,

completamente precárias: sem teto, sem

do asfalto fervendo. Os dedos indicador

os seus serviços aos motoristas que chegam

banco, sem banheiro. Reclamam da falta

e médio, unidos, acenam para quem vai

do interior ou de outros estados. É um bico

de incentivo da Prefeitura. “Os candidatos

no acento do caminhão. As carrocerias

para aqueles que estão fora do mercado,

nos procuram em tempo de eleição e

passam cheias de ilusões perdidas. É mais

seja pela idade, por falta de qualificação

prometem pelo menos construir uma aba,

um caminhão que se manda estrada

profissional ou por outros motivos. “Aqui já

igual a uma parada de ônibus, mas passa a

abaixo. Essa é a vida de chapa, aqueles

foi bom. Havia época que a gente chegava

eleição e nada muda”, lamentam Ceceu e

trabalhadores que ficam à espera de

e tinha dois ou três caminhões esperando

Paulo da Silva.

um caminhão para ganhar a vida como

a gente pra trabalhar. Hoje, se alguém me

ajudante, descarregando e carregando

oferecesse carteira assinada, eu sairia daqui

São

cargas. Saem de casa cedo e o destino é

na hora”, comenta Alceu, mais conhecido

bandidos, viciados ou ladrões. Pessoas os

a esquina das ruas Tenente Coronel Brito

pelos colegas como Ceceu, o rei da turma.

procuram para saber onde tem droga para

com a 28 de Setembro, em Santa Cruz

Como toda profissão, a de cha-

vender. Outras querem contratá-los para

do Sul. Correm o risco de voltar de bolsos

pa também tem os seus macetes. Com

trabalhos “de bandidagem”. Ceceu conta

vazios. Não é escolha. Encaram a profissão

a concorrência aumentando a cada dia,

que, certa vez, foram procurados para

porque precisam ganhar o pão de cada dia.

chegar cedo, logo de manhãzinha, é um

matar uma pessoa, em um caso de traição

Esta é a historia de pessoas comuns como

deles. E a confiança é o outro; o mais

entre um casal. Num tom de espanto,

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Chapa também sofre preconceito. confundidos

com

maconheiros,

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mARInêS kLITTEL

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Paulo Rogério, Ceceu e Erivaldo exercem diariamente a paciência e a calma na profissão perguntaram ao contratante: “Tu sabe o que nós fizemos aqui? Nós trabalhamos e não matamos”.

beber nos dias quentes”, diz Ceceu. A valorização e a confiança que dona Ione demonstra aos chapas quan-

As coisas não são fáceis no dia-

do avisa que vai sair de casa e pede que

a-dia destas pessoas. “Motoristas param e

cuidem do seu lar é o que eles queriam

pensam que somos fornecedores de droga

que a sociedade tivesse por eles. “São

e que temos um ponto de prostituição.

25 anos que ela olha por mim”, diz Ce-

Querem saber onde tem droga para vender

ceu, apontando o dedo para a casa de

e outros nos convidam para sair, fazer

dona Ione.

programa”, descrevem, indignados. Além

Moradores da periferia de Santa

de serem confundidos com ladrões. A polícia

Cruz do Sul, Ceceu, Paulo, Paulo Rogério

revista e pede para os acompanharem

e Erivaldo são alguns dos chapas desse

até a delegacia "para depois dizer que se

Brasil a fora, que querem apenas serem

confundiram e nos acharam parecidos com

reconhecidos pelo que fazem. Pessoas

quem eles estão procurando", reclama

que mostram superação diariamente, que

Paulo. Atitudes como estas os deixam

levam uma vida sofrida, trabalho incerto e

desprotegidos, inseguros e insatisfeitos

total falta de rotina. São pessoas comuns

com a sociedade.

que querem ser vistas como gente. Gente

Porém, engana-se quem pensa

que possui família e necessita comer, ves-

que eles só têm histórias tristes para contar.

tir e morar. Assim é o dia-a-dia de chapa,

Quando Ceceu fala da dona Ione, por

que costuma chegar em casa por volta

exemplo, o sorriso cativante de Paulo vai

das 17 horas, depois de um longo dia de

contagiando a todos. Uma ex-diretora de

trabalho. Na mochila carregam apetrechos

escola, a quem se referem com carinho e

e o sonho de um dia trabalhar com carteira

admiração. “É ela que gela a água para

assinada e salário fixo.

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por Que No CeNTro Em geral, os chapas oferecem seus serviços na entrada das cidades. Isso porque os motoristas, além da mãode-obra, muitas vezes estão atrás de um guia, que os leve direto para o seu destino, sem arriscar passar com os enormes caminhões por ruas estreitas ou com limite de peso. O ponto onde trabalham Ceceu, Paulo da Silva, Paulo Rogério e Erivaldo, no entanto, fica em uma área movimentada no Centro da cidade. A localização tem a ver com a época em que Santa Cruz era menor e tinha grandes empresas em sua periferia.

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SEPARADOS ATÉ NA MORTE Um cemitério localizado no interior de Não-Me-Toque lembra de um tempo em que brancos e negros eram sepultados em lugares diferentes. Lá, a cor da pele definia o lugar em que a pessoa seria enterrada

Fernanda Zieppe

“Ali é a ala dos negros”, diz uma

Mas ao passar pelo portão, cortejo de negro

época os negros já viviam no canto deles,

das moradoras mais antigas da localidade

seguia para um lado e de branco para outro.

não gostavam de se misturar”.

de Gramado, no interior de Não-Me-Toque,

Isso há pouco mais de meio século.

Equivale dizer que a pequena

apontando para um espaço separado dentro

A aposentada Maria*, 90 anos,

localidade de Gramado era dividida por

do pequeno e bem cuidado cemitério. A

todos vividos no vilarejo, considera normal

uma linha imaginária, separando casas

explicação demonstra que não era apenas

a separação racial até na hora da morte.

de brancos e de negros. A mesma linha

em vida que negros e brancos tinham seus

Mais antiga moradora de Gramado, ela

que talvez tenha sido a responsável

espaços bem defi nidos em um passado

conta que a separação começou há décadas

pelo fato de todos os descendentes de

recente no vilarejo de pouco mais de 150

e envolve um caso de suicídio. “Uma guria

escravos terem abandonado o vilarejo e

habitantes. Depois de mortos todos os

ficou grávida e o rapaz não quis casar. Ela se

rumado para a cidade, em busca de uma

moradores iam para o único cemitério do

matou e o padre proibiu que fosse enterrada

vida melhor. Foram atrás de emprego, a

lugar, pertencente à comunidade católica.

junto com os brancos”, explica. ”Naquela

maioria deixando para trás seus mortos

FOTO: FERnAndA ZIEppE

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moradores que ficaram, eram os próprios negros que se excluíam, evitando participar de encontros e festividades da comunidade religiosa daquela época. Maria* e a vizinha Sônia*, também

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Iguais, mas nem tanto

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e o preconceito que os cercava. Para os

moradora do local desde pequena, explicam que o conselho da comunidade, formado apenas por brancos, não deixava negros de fora das atividades. “Eu sempre ia visitá-los em suas casas. Mas os negros nunca faziam o mesmo. Não faziam questão”, conta Maria, com seu forte sotaque alemão. Márcia*, uma outra senhora da comunidade, até hoje se diz intrigada com a separação de raças, que segundo ela não ocorreu de forma intencional. “Os negros se sentiam excluídos, mas lembro que sempre se reuniam entre eles", comenta. Mesmo assim, ela avalia que a divisão de negros e brancos no cemitério nunca terá fi m. “Essa tradição vai continuar. Quem escolheu isso não fomos nós, então não podemos mudar”, sentenciou. Dentro do cemitério as vizinhas Maria e Sônia mostram o túmulo de negra Inácia de Quadros, última pessoa a ser enterrada

Para a socióloga Rosângela Wer-

considerado crime e os suicidas eram

lang, a separação dos brancos e dos negros

então criminosos e deveriam ficar ao lado

acontece pelo mesmo motivo pelo qual a

dos ladrões, assassinos, etc, que eram

sociedade, de maneira geral, divide-se em

enterrados fora dos cemitérios".

classes sociais. Em função da questão racial,

A questão dos negros, para a

do preconceito, há a separação, que nada

socióloga, é uma discussão central na an-

mais é do que a expressão de uma socieda-

tropologia e que envolve a diferença. "Isso

de dividida, preconceituosa e erguida em

foi feito também com os índios: foram

cima de alguns pilares que nos ditam o

acusados de não ter alma, inteligência,

ideal humano como branco, masculino e

não ter nada que lhes conferisse o esta-

europeu. "Os negros não tinham direitos

tuto de humanos”, diz. Por causa dessa

adquiridos e, por isso, ficavam separados:

crença, foram explorados e escravizados,

eram escravos, pertenciam a outra raça".

assim como os negros. “Se não pertencem

Rosângela ressalta ainda que antigamente a

ao reino humano posso fazer o que quiser

sociedade acreditava que o comportamento

com eles. Este pensamento dominou

dos suicidas não era adequado aos olhos

todo o período das descobertas imperiais,

de Deus. Para os cristãos tirar a vida é

legitimando um processo que foi, sem

um privilégio divino e não humano, por

dúvida, perverso".

isso a distinção. "O suicídio sempre foi

*Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes.

naquele lado. Ela morreu de infarto, no ano de 2003. Embora o cemitério seja dividido, ambos os lados eram bem cuidados.

QuesTÃo eCoNÔmiCa O professor de História da Universidade de Santa Cruz do Sul, Olgário Vogt, explica que não conhece nenhum caso de segregação por grupo étnico na região. Porém, a cerca de dez quilômetros de Venâncio Aires, em Linha Centro Brasil, existe um cemitério pertencente à comunidade católica e ao lado há um espaço chamado “cemitério dos negros”. A comunidade alega que a separação não é um fato de discriminação racial. Para enterrar seus mortos, os membros da comunidade precisavam ser associados à comunidade e pagar uma taxa anual. A população mais pobre acabava sendo enterrada ao lado.

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LOUCOS POR BOCHA

Em Arroio do Meio não é o futebol que atrai multidões. Lá, o esporte disputado com pelotas de resina representa mais do que um simples jogo e movimenta centenas de pessoas

Thiago Stürmer

A sede esportiva da sociedade

bar da sociedade, um grupo pelo menos

homens postados nas esquinas do Centro

duas vezes maior se reunia. É lá que ficam

aguardando a carona para um dos clubes

as canchas de bocha do Guarani.

do interior. E pode ser qualquer deles,

Guarani de Arroio Grande fica a cerca

Se a paixão nacional é o futebol,

porque todos têm canchas e participam do

de 10 quilômetros do Centro de Arroio

a bocha é, indiscutivelmente, o esporte

circuito da bocha. Domingo é dia de lazer:

do Meio, no Vale do Taquari. Em uma

predileto dos arroio-meienses. A cidade

joga-se mais bocha.

tarde quen-te de abril, o time de futebol

de 18 mil habitantes tem pelo menos

A maioria dos atletas é amadora,

do Guarani disputava lá um dos jogos da

50 quadras onde se pratica o esporte.

mas há os que ganham milhares de reais

primeira fase do campeonato municipal

Só a principal categoria do campeonato

para participar de um campeonato. Os

amador. E, apesar do brio característico

municipal envolve 26 clubes e quase 400

bochófilos que se destacam são divididos

dos jogadores do interior e da aparente

atletas de 12 a 86 anos. A função se inicia

em três categorias – ouro, prata e bronze.

superioridade do time da casa, não mais

na quarta-feira, quando a maioria das

E nenhuma equipe pode usar mais do que

do que 20 pessoas se interessavam pela

equipes tira a noite para treinar (leia-se jogar

um atleta áureo, a fim de que nenhum

partida. Já no galpão de madeira que fica

bocha, beber cerveja e comer churrasco).

grupo se sobressaia demais tecnicamente.

ao lado do gramado, espaço muito menor

Na sexta, transcorre o campeonato noturno

Além dos certames masculinos, jogam

do que as bordas do campo, próximo ao

entre bares. No sábado, é comum ver

times femininos, formados por casais,

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THIAGO STÜRmER

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ENTENDA O ESPORTE A partida de bocha é disputada sempre entre duas pessoas ou duas equipes. Consiste no lançamento das bolas de resina sintética (as bochas que dão nome ao esporte) a fim de situálas o mais perto possível da bola pequena que serve de alvo, o bolim, ou remover as bolas dos adversários. O esporte surgiu na Espanha, onde camponeses jogavam com bochas de pedra-sabão.

por jovens (politicamente correta, com

UM ESPORTE SÓCIO - POLÍTICO - ECONÔMICO

a cerveja substituída por refrigerante) e O atual presidente da Liga Arroio-

Além do vínculo com a política,

meiense de Bocha (Labo) é o funcionário

a bocha tem importância econômica em

Jorge e Dolores Rohr, ambos com

público Sérgio Cardoso. Na sede da liga, num

Arroio do Meio. Entre os donos de bares,

44 anos, são daqueles que não negam o

daqueles pesados gaveteiros de repartição

é consenso: quem não tiver uma cancha de

gosto dos arroio-meienses pela bocha.

pública, ele guarda as fichas de todos os

bocha não ganha dinheiro. “Se não fosse a

No ano passado, eles saíram invictos do

jogadores do município “Esse ano a gente

bocha, nenhuma sociedade sobreviveria”,

campeonato municipal para casais, e

quer fazer carteirinha de identificação, com

diz a presidente do clube Forquetense – e,

Dolores foi escolhida a melhor atleta do

foto e tudo.” Cardoso assumiu no lugar de

é claro, jogadora de bocha – Angela Kolzer.

torneio. “Desde pequena jogava bocha no

Sidnei Eckert, que deixou a presidência da

A julgar pelos números, Angela tem razão.

potreiro, com qualquer pedra arredondada

Labo após sete anos consecutivos. Largou

Na final do campeonato noturno do ano

que encontrava”, diz ela, empolgada. “Na

o cargo porque não conseguiria conciliar

passado, foram consumidas mais de cem

sexta-feira chego a ficar com dor de barriga

os compromissos da Labo com sua outra

caixas de cerveja. Fora os pastéis de carne,

de tanta expectativa para o jogo, e para ver

atividade: ele foi eleito prefeito de Arroio

petisco oficial do esporte, vendidos às

os amigos da bocha.”

do Meio no ano passado.

centenas pelos clubes nos fins de semana.

idosos (no verão, porque no frio atletas dessa categoria preferem ficar em casa).

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FOTO dIVuLGAçãO

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O PELÉ DO BALIM André Backes está parado, sozinho, num canto da quadra. Abaixa-se, junta a bola de pedra e chacoalha as mãos, como se estivesse tirando a má energia do corpo. Concentrado, estica o braço à altura do nariz, dá quatro passos para frente e arremessa. A bola nem pica. Acerta em cheio o alvo: a esfera do adversário que estava próxima do balim e ameaçava os pontos de sua equipe. A

cena,

sucedida

de

gritos

e abraços, é o último movimento do campeonato mundial de bocha de 2007. No YouTube, onde pode ser assistida, há

nacional, aos 34 anos, André Backes é

agora não é mais assim. Quem analisar

o seguinte comentário de um internauta

um dos poucos profissionais do esporte

os melhores times vai ver que não tem

sobre o vídeo: “Falar do André Backes é ser

em atuação no Brasil. Entre campeonatos

nenhum jogador com mais de 40 anos”,

redundante em elogios. Ele é simplesmen-

e prêmios de reconhecimento por sua

diz André. “Aqui em São Paulo se eu digo

te o melhor”. Em fóruns e em comunida-

ajuda no desenvolvimento do esporte, seu

que sou jogador de bocha as pessoas me

des sobre bocha no Orkut, o nome André

currículo tem mais de duas páginas. André

olham de maneira estranha, desconhecem.

Backes é sempre o mais citado quando se

vive em São Paulo, onde treina no clube

Mas se o esporte tivesse mais divulgação

discute qual o melhor bochista do mundo

Pinheiros, mas a cidade onde nasceu e

tenho certeza que poderia ser popular.

na atualidade.

onde ainda vive sua família não poderia ser

Tanto quanto outras modalidades, que

outra: Arroio do Meio.

estão sempre na mídia.” Com certeza, a

Campeão e vice-campeão mundial, campeão pan-americano, campeão

“A bocha já foi estigmatizada

sul-americano e várias vezes campeão

como atividade de bêbado, de velho, mas

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queixa de André não existiria se ele ainda morasse em Arroio do Meio.

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uRGEL SOuZA

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MEMÓRIAS DE UM VENDEDOR DE SONHOS

A palavra sonho tem outro significado para seu Nabuco. O sonho sempre esteve presente na vida dele: seja o de doce de goiabada, o utópico das telas do cinema, utopias ou quimeras impostas pela vida

Urgel Souza

Foi o sonho de levar uma vida melhor que o tirou do campo e o trouxe para a cidade. No fi m da década de 1930, abandonou os serviços rurais e veio para a cidade, adotado por Malvina Silveira dos Passos. Joaquim Rodrigues da Silveira nasceu em 1923, na localidade da Serrinha do Pinheiro, a 40 km do centro de Encruzilhada do Sul. O apelido veio de um tio, que fazia menção a Nabubodonosor II, o Rei da Babilônia de 604 AC a 562 AC. O carisma sempre foi sua melhor ferramenta. Ainda menino, vendia doces e pastéis pa-ra a mãe adotiva. Mais tarde, passou a “propagandista” dos filmes do cinema. Vendeu deliciosos

sonhos

recheados.

Também

prestou serviço de abastecimento de caixas d'água e entregou convites para enterro. Assim,

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se

tornou

conhecido

Nabuco relembra os bons tempos em que vendia sonhos de goiabada

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35 na cidade. Talvez os mais novos não o

ele anunciava filmes em português e

calmo e sereno provava que aquilo não

conheçam. Mas os encruzilhadenses com

em outras línguas. Além do anúncio dos

passava de um convite para enterro. Cada

mais de 20 anos ainda lembram do vendedor

filmes, também aproveitava para dar avisos

folha era entregue pessoalmente ou nos

de sonhos, dizendo “olha sonho, olha

de utilidade pública. Na década de 1970,

domicílios. “Ele não deixava nenhum

sonho gostoso!”. O quitute era produzido

o Cine Teatro Vitória foi perdendo força,

nas ruas. Às vezes, a pessoa já havia sido

por Alzira Riegel Müller, sua irmã adotiva,

se extinguiu e, junto com ele, o sonho dos

enterrada e o Nabuco continuava en-

mas todos conheciam mesmo era como o

filmes que Nabuco tanto gostava.

tregando os convites”, diz Gladis Riegel

“sonho do seu Nabuco”. A massa macia; o

Certo dia, seu Nabuco conheceu

Silveira, comadre e irmã adotiva. O avanço

recheio com goiabada cremosa escorrendo

Teresinha Gonçalves, a “moça que tinha

tecnológico fez com que seu Nabuco

pelas bordas; o açúcar polvilhado. A

o samba no corpo”. Ela era do Circo Sul-

também se reciclasse. “É! Depois veio a

qualidade do produto era apenas um dos

Americano, que visitava a cidade. Foi mais

rádio e o serviço foi terminando, né”.

fatores que fazia com que Nabuco voltasse

uma paixão não correspondida, mas seu

Joaquim “Nabuco” Silveira vive

pra casa com a cesta vazia. Outro fator

Nabuco bem que tentou! Quando o circo

na mesma casa da juventude, localizada

decisivo nas vendas era a empatia junto

teve de deixar a cidade, ele não perdeu a

na esquina da rua Ramiro Barcelos com a

aos clientes. A alegria era a mesma, fosse

esperança de ficar com a moça do samba.

Conde de Porto Alegre. Foi lá onde forjou

o sonho vendido ou diante de um “Não,

Deu asas a mais um sonho e resolveu ir até

a maioria dos sonhos. Um imóvel com mais

muito obrigado!”. Seu Nabuco lembra que

Venâncio Aires junto com o circo. Por lá, ele

de 110 anos. A maioria dos móveis, piso e

vendia doces na festa do Centenário da

ajudou a carregar e remontar a estrutura do

aberturas ainda são originais. Assim como

cidade, em 1949. “O seu Carlos Alberto

espetáculo. Mas a moça do samba... Bom,

ele, que mantém a simpatia do guri que

Riegel (marido de Dona Malvina) me deu

daquela moça ficou só o samba:

veio da Serrinha do Pinheiro. Aposentado, não teve filhos - uma caxumba recolhida

ção dos filmes através de um megafone.

“Eu, entrando nesse samba, vou fazer muito reboliço O meu corpo tem talher, os meus olhos tem feitiço Não faz mal que tu apanhe, para não fazer mais isso Toma o amor dos outros e te desculpa com feitiço”

Dirigia-se às esquinas mais movimenta-

Na década de 80, seu Nabuco

e trabalhadores do centro da cidade com

das, empunhava seu aparelho e disparava:

entregava convites para enterro. Uma folha

lições de humildade; não somente encheu

“Aqui quem vos fala é o serviço de

de papel em preto e branco, de 20 cm x

caixas d’água, mas também abasteceu as

propaganda. Hoje na tela Cine Teatro

15 cm, ilustrada na parte superior com uma

casas de alegria e simpatia; não apenas

Vitória, mais um filme do Mazzaropi. Não

cruz e uma pena. Logo abaixo, o nome do

vendeu sonhos, mas distribuiu um pouco

percam. Grande espetáculo na tela Cine

falecido e o convite propriamente dito.

da sua sina de sonhador. Aos 85 anos e

Teatro Vitória! Grandioso filme. A partir

Para alguns, Nabuco era relacionado com a

com a lucidez intacta, continua mostrando

das 18h.”. Eram raras as vezes em que o

morte. Cada vez que se aproximava, trazia

que a morte pode ser apenas um convite e

sonho podia ser realizado diante da tela

um anúncio do fim da vida e podia estar

provou que o filme que melhor anunciou

grande. Mesmo sem ser alfabetizado

em pesadelos infantis. Mas o semblante

foi o da sua própria vida.

um terno branco e eu fui pra praça vender doces. Lá, estava o governador (da época), seu Valter Jobim”, relembra. No início da década de 1960, era o auge do cinema encruzilhadense. Seu Nabuco era o encarregado da divulga-

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interrompeu

seu

sonho

Questionado

sobre

sua

de

ser

pai.

popularidade,

ele foi categórico: “Eu não sei ler nem escrever, mas tenho educação de berço. Só isso”. Seu Nabuco não só vendeu doces, mas adoçou a vida dos moradores

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MEu BICHO dE EsTiMaÇÃo nÃo É uM CACHORRO

Ela gosta de colo, é dócil e está sempre no meio dos seus donos. Meg é assim. A preferida dos Breunig.

Vanessa Kannenberg Meg está sentada no tapete que recepciona quem chega à casa de Ingo Breunig. Estranhando o barulho do carro que ela nunca viu e a pessoa desconhecida que sai dele, Meg parece ficar incomodada. Levanta-se. Vai até o dono e fica à espreita, espremendo alguns ruídos de desagrado com a visita. Essa cena não teria nada de estranho se Meg fosse um cachorro. Mas ela não é. Meg é um cabrito. Em meados de fevereiro deste ano uma das cabras da raça Boer da fazenda dos Breunig, que fica em Boa Vista, distrito

virtude disso. Mééég, sugerindo a sua

de Santa Cruz do Sul, deu à luz trigêmeos.

especialidade: o bééé.

carinhoso, para Milena ele é. A neta do seu Ingo, com seus três

Entre os recém-nascidos, dois cabritos

Com o passar dos dias a necessidade

anos de idade, vai visitá-lo todos os finais

machos e manchados de preto, e uma

de cuidados especiais foi se extinguindo.

de semana. Na propriedade do avô sua

fêmea, a única com manchas marrons. A

Mesmo

continuou

brincadeira preferida é em meio aos cabritos.

menor de todos. Foi pelo seu tamanho e

recebendo um carinho diferenciado. Mamar

E em especial com a Meg. O carinho entre

pela aparente fragilidade que ela ganhou

na mamadeira, dormir no sofá da casa, ser

as duas é mútuo. Basta Milena chamar pelo

um mimo especial desde o minuto que veio

pega no colo, acariciada, amassada e até

seu nome que a cabrita vem saltitante ao

ao mundo. Mas ao contrário do tamanho,

esgoelada, eram verbos feitos somente

encontro da menina. É por isso que Meg

a goela da cabrita não era pequena. Berrar

com a Meg. Mesmo que esgoelar, no seu

deixa ser esgoelada, amassada, puxada

era com ela mesma. Seu nome veio em

sentido denotativo, não parece um verbo

pelo rabo, e ainda berra estarrecida.

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assim,

a

cabrita

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a preferida No auge dos seus dois meses, Meg é o animal de estimação preferido de toda a família Breunig. E olha que não é fácil atingir tal colocação, a concorrência é grande. Na fazenda de Meg moram mais outros 80 cabritos, 30 galinhas, 4 marrecos, 5 galinhas d’angola, 6 patos, 10 garnizés, 3 ovelhas, 7 gansos, 10 vacas e bois, 2 gatos, 3 cachorros e 4 perus. Mas o “xodó” da casa é a cabrita branca e marrom. O gosto inusitado por cabrito como bicho de estimação não é recente para os Breunig. Desde a década de 80, quando os filhos Claudete e Cleusa eram pequenos, os pais Ingo e Amália já criavam caprinos. Na época, Tedy e Tody foram os preferidos e recebiam a atenção que hoje a

Meg

recebe.

Claudete

lembra com carinho daquela Para Milena e sua cabrita Meg, esgoelar também é uma demonstração de carinho

época. “Eles eram o máximo. Companheiros para todas as horas. Muitas das lembranças da minha infância estão ligadas ao Tedy e ao Tody”.

o ComÉrCio

Se desde a infância dos filhos Ingo pegou alguns caprinos para tê-los apenas como animais de estimação, há cerca de um ano ele decidiu tirar lucro da criação. O primeiro motivo da mudança foi o problema de saúde enfrentado pelo fazendeiro que o forçou a desistir do cultivo de fumo. Assim, ele foi atrás de uma alternativa de trabalho menos desgastante e viu nos A partir disso Ingo passou a criar cabritos exclusivamente para abate e venda. E jura “de pés juntos” que não abre exceção. Mas ele abre sim. Meg nasceu quando sua espécie já era destinada ao comércio, mas teve seu destino desviado. Até porque Milena jamais perdoaria o avô se a Meg virasse churrasco de domingo. Afinal, quem ela iria esgoelar?

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FOTOS: VAnESSA kAnnEnbERG

cabritos um bom negócio.

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38 1.

POR QUE TER UM CABRITO DE ESTIMAÇÃO A idéia de ter um cabrito como animal de estimação pode não

ter passado na sua cabeça até hoje. Mas há uma série de razões para você ter um como companheiro. Por exemplo, ele é um bicho super fofo e querido.

2.

Como um cachorro, o cabrito responde aos chamados do

dono. Comparado a uma tartaruga ou a uma iguana, isso é uma vantagem e tanto.

3.

O cabrito é um animal extremamente dócil,

não morde, não é agressivo. E interage com adultos e crianças.

4.

Cabritos comem

alimentos disponíveis na natureza e ração. Se você conhece o mito de que caprinos comem tudo que vêem pela frente, isso pode ser facilmente revertido. Basta dar a eles um sal mineral específico.

5.

Cabritos não necessitam

de muito espaço. O lugar que ele ocupa em relação ao de uma vaca, por exemplo, é extremamente menor. Onde cabe uma vaca, cabem cerca de dez cabritos.

6.

Se você tem um poodle sabe

BODE: é o pai do cabrito. Ou seja, é o macho

o imenso trabalho que é podá-lo e dar

adulto dos caprinos. Ele já possui barbicha e chifres.

banho nele. Com um cabrito não há

CABRA: é a mãe do cabrito, a fêmea do

essa preocupação.

bode. CABRITO: é o filho do bode e da cabra. Ele

A FaMÍLia DO CABRITO

vai desenvolvendo com o tempo a barbicha e os chifres.

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FERnAndA ZIEppE

Quem disse que é preciso ouvir notas musicais para se poder dançar não conhece Kaká, uma menina que aprendeu a curtir a vibração do som mesmo sendo deficiente auditiva

A MÚSICA QUE

VERTE DO CHÃO

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não é obstáculo para ela, principalmente

não as distingue pela vibração. Ela sabe que

quando o assunto é balada.

a música representa muito para as pessoas

Dia 1º de abril, quarta-feira, 00h30min. Karoline Kist ingressa para uma

Patrícia Azevedo

porque conhece as letras e sabe que falam de felicidade, tristeza, amor, violência.

festa em Santa Cruz. A Quartaneja atrai

Em certo momento da festa, o

diferentes públicos pela variedade musical,

ritmo sertanejo começa a tocar. Casais

do eletrônico ao sertanejo. Diferentemente

começam a dançar colados e Karoline

das demais pessoas, Karoline vai para a festa

observa com atenção. Depois, pergunta

não para ouvir a música, e sim para passar

se estava tocando sertanejo. “Eu queria

momentos com seus amigos, conhecer

dançar com uma pessoa, mas não tem

gente nova e tomar alguma bebidinha.

ninguém, então danço sozinha”, afirma

Na verdade, ela não ouve a

ela. Para uma festa ser boa, ela não precisa

música, mas sente a vibração da casa. Seus

de música, só quer dançar, ter a presença

pés sentem o tremor do chão e suas mãos as

dos amigos, um pouco de bebida e muitas

das paredes quando tocadas. Ela descreve

risadas. “É o que vale!”.

a vibração como se fosse um coração

Quando questionada sobre a

batendo. “Sinto como se tivesse um motor

aproximação dos homens, ela mesma já

dentro do meu corpo”, compara.

avisa que não escuta. “Quando um cara

A noite de Kaká se inicia com um

‘chega’ em mim, eu alerto, e no começo

pedido à bartender: uma lata de cerveja. A

ele parece que não entende, porque ele

Imagine-se vivendo em um silêncio

moça do outro lado do balcão compreende

acha que eu não sou surda”. Káka, assim

quase absoluto, onde apenas um “tum”

de primeira o pedido. “Muitas vezes,

como a maioria dos deficientes auditivos,

entra no seu ouvido e nada mais. Difícil

uma pessoa que não me conhece não

desenvolveu a habilidade de leitura labial.

imaginar a vida sem trilha sonora? Isso

consegue me entender, mas depois que

Ela compreende tudo desde que seja falado

porque você foi contemplado com a

estiver mantendo contato, aí se acostuma

mais devagar e olhando para ela. “Teve um

audição, que lhe permitiu conhecer os

mesmo. Muitas vezes eu preciso de alguém

cara que ‘chegou’ em mim, sussurrando no

sons, a voz das pessoas e as músicas que

interpretando”, afirma ela.

meu ouvido e eu avisei que era surda. Ele

Depois de matar a sede, chegou a

ficou apavorado e foi embora”. O fato de

Há 26 anos, Karoline Kist, ou

hora de dançar. Camarote cheio e Karoline

não ouvir não a intimida. Ela se sente feliz

Kaka, como é conhecida pelos amigos, não

atenta aos movimentos alheios. Mas como

mesmo que, por pouquíssimas vezes, tenha

ouve vozes, músicas, nem sons. Nasceu

ela dança se não ouve a música? “Eu

sofrido certo preconceito.

com algo entre 5% e 15% de audição,

observo as pessoas. Vejo a pessoa dançando

Entre uma conversa e outra,

o que lhe permite apenas sentir o “tum”

e começo a dançar sem precisar ver depois,

encontra amigos e dança. Às 2h30min da

nos seus ouvidos. O “tum”, na verdade,

porque eu já sabia o ritmo”.

madrugada, a festa dela chega ao fim.

estão por toda parte.

é a vibração causada no tímpano pelo

Káka conhece os tipos musicais

movimento das ondas sonoras. Mas isso

pela forma como as pessoas dançam, mas

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Quem não conhece, não imagina que ela dançou a noite toda ao som do “tum”.

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42 REViSTA ExCEçãO

MISÉRIA nÃo sE EsquECE Marcel Demeulemeester, um aposentado belga residente em Santa Cruz do Sul, vê parte da história da sua vida se cruzar com as conturbações políticas do Congo

da que conheceu há mais de quatro décadas, quando viveu e trabalhou cercado por miséria e violentas disputas tribais. Aos 27 anos, deixou a Bélgica e aterrissou em Elizabethville. Com carreira

Pedro Garcia

consolidada no ramo de fumageiras em Antuérpia, sua missão era dirigir uma

FOTOS: pEdRO GARCIA

filial na capital do Katanga, província no

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Malaquitas são pedras de coloração

sul do Congo. Colônia da Bélgica desde

verde-negra compostas por carbonato de

o começo do século, o país que recebeu

cobre. Para os curandeiros de muitas tri-

Marcel e a esposa Rita em 1953, do qual

bos africanas, servem como instrumentos

testemunhariam a conturbada história

de cura de doenças. Já para o belga Marcel

nas décadas seguintes, encontrava-se em

Arthur Demeulemeester, que expõe uma

pleno desenvolvimento.

coleção delas na estante da sala de jantar,

Os

estrangeiros

viveriam

ali

são objetos de recordação de um dos

uma rotina de trabalho intenso, mas

períodos mais marcantes de sua vida.

também de muito conforto e regalias.

Com 83 anos, aposentado e

Ainda nos anos 50, nasceram os filhos

instalado confortavelmente em um ponto

Martine e Franz, pequenos congoleses-

distante do Centro de Santa Cruz do Sul,

belgas incapazes pela idade de entender

Marcel goza de tranqüilidade. A rotina que

a razão pela qual em 1959 o pai os levou

assiste de longe na cidade é muito diferente

de carro até Salisbury, capital da Rodésia

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43 (hoje Zimbábue) e retornou para o Congo deixando-os apenas com a mãe. A decisão de afastar a família não foi mais do que uma medida de proteção. Meses antes, uma revolta na capital Kinshasa deu início às discussões sobre a possibilidade de conceder a independência ao país e também a um período de tensão que se estenderia por muito tempo. Sob

O REGRESSO A UM NOVO LUGAR

pressão dos Estados Unidos e do povo congolês, a independência foi conquistada em junho do ano seguinte por meio de um

Ele e Rita aterrissaram no país

encareceu todo o processo. Mas o maior

acordo fi rmado em Bruxelas. O que é um

novamente em 1976, mas o Congo que

obstáculo enfrentado pela empresa era o

orgulho estampado na linha do tempo de

encontraram não parecia o mesmo. No

cumprimento de um decreto que forçou a

qualquer nação foi para o Congo o começo

país que já havia provado o seu poten-

entrega da direção a um nativo.

de uma série de derrotas.

cial de crescimento e inspirava esperan-

Embora o despreparo incomodas-

Passado menos de um mês, o

ças de um futuro promissor, o que viam

se, o principal problema estava em seu

Katanga também proclamou indepen-

ao retornar eram apenas sinais de uma

sangue tribal, que corre nas veias dos

dência. A instabilidade que tomou conta

triste decadência.

africanos com a mesma intensidade que

de todo o território fez com que grande

Durante os 13 anos em que esteve

assola suas terras. O diretor congolês não

parte dos europeus voltasse para casa.

longe, o casal passou pelo Rio de Janeiro

apenas contratou dezenas de funcionários

Entre os que permaneceram estava Marcel,

e depois voltou à Antuérpia. Enquanto

incapacitados

fiel ao seu compromisso com a fumageira.

isso, o Congo assistiu ao assassinato de

tribo como chegou a desviar produtos

A esposa e os filhos continuavam a mil

seu primeiro-ministro e à ascensão de

da empresa para ela. O efeito do projeto

quilômetros de distância. Ele só os encon-

um ditador que logo se tornaria um dos

de africanização fora tão devastador que

trava quando as coisas se acalmavam

mais famosos do planeta: Mobutu Sese

Mobutu voltou atrás em sua decisão e

e então podia trazê-los de volta. Mas

Seko Koko Ngbendu wa za Banga. As

Marcel pôde retornar ao comando.

nunca por muito tempo. “Era assim:

conseqüências de sua política chocaram os

Era o início de mais uma década

quando estava calmo, voltavam. Quando

estrangeiros que regressavam. As estradas

de vida no Congo, período permanente

recomeçava a bagunça, iam embora.”

do país estavam destruídas e a população,

em sua memória pelo desconforto de estar

Mesmo sem se envolver dire-

miserável. “Na época da colônia, se

em meio a um povo afogado na miséria.

tamente nos confl ti os, Marcel viu o ner-

podia viajar por todo o país sem nenhum

É verdade que as condições do casal

vosismo invadir o seu dia-a-dia. Assim como

problema. Quando voltamos, não dava

continuavam agradáveis. Dispunham de

assistiu às tropas da ONU invadirem sua casa

mais”, conta Marcel.

guardas, cozinheiros e motoristas em uma

que

pertenciam

à

sua

em certa ocasião e balearem um carro onde

Ele havia sido chamado para

estava em outra. As Nações Unidas foram

tentar recuperar a ordem da fumageira,

realidade congolesa.

ao país para tentar acalmar a situação e

vitimada pela política ditatorial instalada

A

pressionar o Katanga a se reintegrar, in-

no país. Mobutu havia criado uma nova

dificuldades financeiras eram percebidas em

tenções que geraram momentos nem

moeda, que se desvalorizava com a

situações corriqueiras – pessoas obrigadas

sempre pacífi cos. O Katanga voltou a ser

inflação galopante. Devido às condições

a comprar cigarros por unidade e não em

província do Congo em 1963. Nesse mesmo

das

passaram

maços - ou em episódios dos quais Marcel

ano, Marcel deixou o país.

a ser transportados de avião, o que

não esquece. Entre esses, a ocasião em que

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estradas,

os

produtos

casa grande, mas que não os isolava da falta

de

instrução

e

as

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REViSTA ExCEçãO

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Marcel viu tropas invadirem sua casa e acompanhou as mudanças ocorridas no Congo ao longo das décadas

o avião de uma linha aérea local pousou em

e queda de outro,

Kinshasa e um problema técnico o impedia

de redemocratização com as eleições de

de retornar ao Katanga. Os dias passavam

2006 – as primeiras em 40 anos. Mas as

e a empresa aérea seguia sem condições de

duas décadas ainda tão acessíveis em sua

corrigir a falha. O avião só pôde decolar após

memória, assim como as marcas no braço e

um técnico da fumageira ser chamado.

as malaquitas na estante, lhe dão a certeza

O retrato do país era dramático

nem as tentativas

de que viu o bastante.

mas nem tão difícil de se explicar. Agravado pela corrupção, o grande problema sempre esteve na ausência de investimento em

ISSO É ÁFRICA

necessidades básicas como educação e saúde. Se a primeira não afetou Marcel diretamente, a segunda deixou marcas

A exemplo do pai, Franz, o filho mais novo, seguiu carreira

que carrega até hoje em seu braço direito.

no setor de fumo. Não se recorda do Congo colonial em que

Em 82, teve gangrena, provavelmente em

nasceu, apenas do país miserável para onde ia nas férias da

função de larvas deixadas por um inseto na

faculdade. Guarda na lembrança o choque de encontrar um

manga de sua camisa.

povo em decadência. Ainda sente pena dos guardas que

Marcel só deixou definitivamente

jogavam damas com tampinhas de garrafa, do cozinheiro que

o Congo em 1986, quando voltou para

perdeu um pedaço da orelha em uma briga por cabeças de

a Antuérpia. Ainda regressaria algumas

camarão e do faxineiro que roubava as lâmpadas da casa para

vezes a trabalho até 1990, ano em que

vender no mercado negro.

lá esteve pela última vez. Não chegou a ver a deposição do ditador, a ascensão

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QUATRILHO FOTOS: ARquIVO pESSOAL dE mARÍLIA dAROS

A história de um amor proibido

Traição e sofrimento movem esse romance que se transformou no segundo filme brasileiro indicado ao Oscar, em 1995

X Maria e Trentin, os que ficaram

Emanuelle Dal Ri Se na atualidade a traição pode ser considerada um tempero amargo em relações amorosas, no passado ela era motivo suficiente Carolina e Dal Ri após a fuga

para condenar alguém à morte social. Fugir, como foi o caso de Giuseppe Dal Ri e Carolina Tessaro, era a única maneira de se viver um amor proibido pelos tabus morais vigentes à época. Afinal, quem foi esse casal que enfrentou as críticas e abandonou uma vida já forjada para se entregar a uma paixão na virada do século?

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quando

história

é

Nicodemo

longa.

Começou

Domenico

Trentin

1875 e se estabeleceram no lote 54 da primeira légua do mesmo local.

chegou ao país com sua mãe viúva e os

Em algum momento indeterminado,

irmãos, procedentes de Torrebelvicino,

Nicodemo e Giuseppe se conheceram. Em

Vicenza, Itália. Trouxe no corpo a marca de

seguida, estavam associados nos negócios.

“squiotti” (tecelão), que esteve presente

O primeiro já era comerciante, mas queria

em toda a sua vida no apelido que recebeu:

diversificar e produzir sua própria farinha.

Mênego Storto. Se estabeleceram no lote 15

Giuseppe entendia de moinhos, pois era

do Travessão Cristal, localidade da terceira

especialista em moagem. Além de sócios,

légua da colônia Caxias. Ali conheceu

ficaram amigos. Como o tempo, Giuseppe

Carolina Tessaro, também italiana, de Valli

e Maria também foram morar na Tapera.

dei Signori, Vicenza. Em 23 de dezembro

Passaram a ocupar a mesma casa de

de 1894 os dois se casaram. Ele com 24

Nicodemo e Carolina, onde dividiam os

anos e ela com 19 anos. Tempos depois,

mesmos problemas e sonhos. A convivência

Nicodemo adquiriu terras na Tapera, hoje

era relativamente normal: os homens

colônia no lado leste de Gramado, em

tinham a lida do moinho, do armazém e da

sociedade com Antônio Tozzatto.

lavoura. As mulheres cuidavam da casa, dos

A localidade foi desbravada com

filhos e auxiliavam no trabalho da roça.

muita dificuldade, pois era de difícil acesso.

Entre 1901 e 1906, Giuseppe

Ele era um homem acostumado com o

e Carolina se envolveram em um rela-

trabalho árduo, mas Carolina não tinha a

cionamento proibido. Viveram anos de

mesma determinação que o isolamento

traição e de mentiras. A pressão era forte

exigia. Já no início da vida do casal, este

e então abandonaram tudo. Buscaram um

era um grande problema a ser resolvido.

novo caminho, bem longe da convivência

Nicodemo confiava que o tempo faria

ao lado dos companheiros traídos. Com-

a parte dele e que tudo daria certo. E

partilharam juntos a dura decisão que

a prosperidade passou a chegar muito

tomaram. Fugiram em 27 de abril de 1907.

rapidamente. Afinal, por aquela estrada

Deixaram os filhos, a casa, os cônjuges e

passavam mascates, tropeiros e viajantes.

passaram a ser alvo da sociedade, que não

Todos os dias era possível observar as

perdoava a traição.

tropas de muares com grande número de

Seis meses após o sumiço de

produtos na descida da Serra. Os artigos

Giuseppe e Carolina, Nicodemo e Maria,

eram vendidos no litoral e nas cidades mais

o casal abandonado, resolveram assumir

baixas. Nicodemo ficou conhecido e muito

uma relação conjugal. É claro que eles

bem quisto por todos. Sua casa comercial

também passaram a enfrentar muitas

era parada obrigatória.

adversidades, pois os princípios morais na

Giuseppe Dal Ri, apelidado de

época eram muito rigorosos neste sentido.

Beppe Crecini, viera de Tirol, Áustria. Era

Eles não poderiam se unir legalmente e

morador do lote 14 da primeira légua da

uma cerimônia sem a bênção de Deus (e

colônia de Caxias. Chegou ao Brasil em

do padre) era sacrilégio. Mas eles foram

6 de outubro de 1877. Os pais de Maria

fortes e enfrentaram as adversidades,

Baretta, Francisco Baretta e Emília Radaelli,

especialmente porque os filhos precisavam

chegaram ao Brasil em 30 de setembro de

de uma família organizada.

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47 REViSTA ExCEçãO

A

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48 a pesQuisa

junto aos Trentins (de Nicodemo Trentin

Ibarama. Era casado com Maria Baretta e

e Maria Baretta, o casal traído), e ele no

deixou dois filhos. “Naquela época eles

Centro-Serra, com a busca de Giuseppe Dal

ocultavam até mesmo o próprio nome”,

Ri e Carolina Tessaro.

revelou Lazzari. O italiano estava com 56

Entre os anos de 1995 e 1997,

anos quando morreu.

Marília pesquisou mais de 50 pessoas

Após muito tempo de pesquisa,

A história ficou esquecida por

da família, leu muitos livros e consultou

finalmente chegaram ao elo que liga

um grande período. Veio à tona somente

diversas instituições, tais como cúrias,

Sobradinho à história do livro e filme “O

quando uma pesquisadora da cidade de

cartórios, prefeituras e cemitérios. “Usei

Quatrilho”. Mário Augusto encontrou, em

Gramado, a historiadora Marília Daros,

muitos veículos de informação, mas não

Linha Brasileira, interior do município, uma

traçou uma linha genealógica que chegou

tive todo o aporte necessário. Foi como

sobrinha de Maria Baretta, personagem

até o químico industrial Mário Augusto

uma febre, pois as gravações do filme já

que no filme se chama Pierina e é vivida

Lazzari, cuja avó tinha o sobrenome de

estavam ocorrendo no Estado”, disse.

por Glória Pires. Rosa Baretta Cembrani,

Giuseppe Dal Ri. A pesquisadora estava

“Giuseppe fugiu, também, em virtude de

já falecida, contou brevemente alguns

se aprofundando no assunto tratado em

sua posição política, bastante perseguida

detalhes sobre a vida de Giuseppe Dal Ri,

um filme que estava para ser lançado, em

no período”, complementou.

na película chamado de Mássimo e vivido

1995: “O Quatrilho”, baseado no romance do escritor José Clemente Pozzenato.

Mário buscou amigos e familiares,

pelo ator Bruno Campos.

conseguiu encontrar a certidão de óbito

Ignorados pela família, sobretudo

A historiadora e o químico, juntos,

de José Dal Ri (Giuseppe Dal Ri) na cidade

pelo fato de ela ser considerada uma

começaram uma investigação exaustiva.

de Pinhal Grande. No documento consta

“putana” (esposa infiel) e também por ser

Ela com a parte que a coube, em Gramado,

que ele morreu no 2º Distrito de Jacuí, em

negligente com os trabalhos domésticos,

Capela da Linha Tapera em terras de Nicodemo

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A família progredindo na Tapera perto do moinho eles viveram isolados de tudo e de todos. Cansada e arrependida pela fuga, Carolina abadonou Giuseppe, um homem que se considerava moralista ao extremo. “Tanto que chegou a ferir gravemente um peão que ousou se meter com uma mulher. Ele amarrou o agricultor ao cavalo e saiu com ele pelas ruas. É como pregar moral de cuecas”, relatou Mário. Mesmo com várias fontes e vasto material para estudo, o químico admite que há diversos pontos de interrogação nessa história, como o paradeiro de Carolina Tessaro e se Guiseppe e ela tiveram filhos. “Sempre vivemos um tabu na família. Esse assunto era e é muito evitado. Poucos falam sobre os fugitivos. Parece que querem esquecer esse fato como se ele não tivesse ocorrido.”

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TroCa virou livro e filme Ambientado da região da Serra Gaúcha, o livro “O Quatrilho” é uma história sobre a troca de casais que se desenvolveu entre 1910 e 1930. O escritor José Clemente Pozzenato romanceou a história, atribuindo-lhe características típicas da literatura sul-riograndense, como o próprio vocabulário. O livro conta a saga de dois casais de imigrantes: Teresa e Ângelo, Pierina e Mássimo. Na luta pela sobrevivência, surge o que ninguém esperava: o amor entre Mássimo (casado com Teresa) e Pierina (casada com Ângelo). Apaixonados os dois fogem e partem para um novo destino. Pozzenato teve como informante, para a confecção da obra, o neto de Nicodemo, Ari Trentin. O livro foi tão bem aceito que foi para o cinema. “O Quatrilho” foi o segundo longametragem indicado ao Oscar como Melhor Filme Estrangeiro, em 1995. Com direção de Fábio Barreto, as gravações foram feitas em diversas cidades do estado. Conhecido em todo o Brasil, “O Quatrilho” é considerado um marco no cinema nacional. Ele ganhou, inclusive, vários prêmios internacionais. Como curiosidade, Quatrilho é o nome de um jogo de cartas em que os participantes precisam trair seus parceiros para serem vencedores.

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opinião

Meu jeito único de aprender a andar de bicicleta Gabriela Brands

Às vezes eu tenho insônia. E como todas as pessoas que sofrem desse mal, sempre tento arrumar um jeito de chamar o sono. Em uma dessas noites em que meus olhos teimavam em permanecer abertos, lembrei de um momento mágico da minha infância: a maneira como aprendi a andar de bicicleta. Não funcionou como sonífero, mas consegui me divertir sozinha na calada da noite. É incrível como, com o passar dos anos, a gente esquece das coisas. Eu já não me lembrava mais do perrengue que eu passei até conseguir dar as primeiras pedaladas. E é essa historia que eu vou contar aqui. Eu ganhei minha primeira bicicleta quando completei seis anos de idade. Uma Ceci rosa, daquelas de tamanho mediano e com cestinha. As fotos que registraram o momento mostram o quanto fiquei maravilhada com o novo brinquedo. Sem me dar conta de que logo ele me faria sofrer. Tá, sofrimento talvez seja um exagero, mas passei por inúmeras dificuldades.

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Para início de conversa, eu não alcançava o banco da bicicleta. A quele modelo era muito grande para uma criança do tamanho que eu tinha na época. Quem sabe, quando eu completasse sete anos as coisas não se tornariam mais fáceis?! Sim, se tornariam. Mas eu não esperaria tanto tempo. Resolvi tentar. E foram dias tentando, até achar o jeito certo. A primeira dificuldade foi vencida. Depois de conseguir subir na bicicleta era só sair andando... Não, não era. Eu não sabia andar na minha Ceci. Mas um dia eu iria conseguir. E aí é que está a exceção do meu jeito de aprender a andar de bicicleta. Eu não queria cair, a bicicleta era grande, então, o tombo também seria. Eu admito, tinha medo. Para aprender a pedalar, eu usei de um método talvez nunca visto antes. Encostava minha Ceci em uma parede ou muro e pedalava para trás. Por quanto tempo eu fiz isso, não recordo. Mas um dia eu me senti segura o suficiente para subir na bicicleta sem o apoio do muro e andar para frente. Não cai e nunca mais esqueci como se faz.

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Rozana Ellwanger

Todos os dias ele caminha, a passos lentos e mancos, os vários quilômetros que o separam do Centro de Venâncio Aires. A distância ao certo é difícil dizer. Quatro, talvez cinco quilômetros. Também é improvável descobrir onde ele mora, se em um barraco, com paredes de compensado, ou em uma casa bonita, com jardim florido. Mas venha de onde vier, vem sempre com seu amigo malhado ao lado. O cão poderia facilmente vencer os quilômetros até o Centro muito mais rápido, mas ele calmamente acompanha o dono, parando de tempos em tempos para bisbilhotar uma lixeira. Dá pra jurar que às vezes, de tão afeiçoados, o cão manca como o dono. Ele nem se preocupa em olhar para baixo para ver se o amigo continua ali.

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Sabe que o animal não o abandonaria. Seu olhar, ao invés de mirar o chão, fita o horizonte. Sempre. Com a botina gasta de tanto uso, amarrada por cadarços desiguais já rasgados, o senhor mantém a face erguida. Seja carregando o que catou nas lixeiras ou a comida recebida na lancheria, ele não deixa de olhar para a frente. Com este rosto erguido e a espinha ereta, quase todos os dias ele se senta na escada em frente ao prédio. No inverno, o casaco de lã gasto contrasta com a calça marrom que teima em acabar antes da canela. A cena pouco mudou ao longo dos meses: depois de longos minutos de espera, sentado em postura invejável, com as pernas cruzadas e uma altivez de lord, a garçonete trazia uma sacola com um gordo sanduíche. “O Tio Ênio mandou pro senhor. Bom apetite!”, dizia sempre com um sorriso no rosto. O homem agradecia com um meio sorriso, enrolava cuidadosamente o pacote e saía, na velocidade que suas pernas mancas permitiam. O que acontecia depois, não se sabe. Certo é que cada vez que falava do homem que ia todo dia buscar seu lanche, a garçonete engolia o choro, que quase transbordava pelos olhos. E depois agradecia por tudo o que tinha.

RESPOSTA: Os repórteres Aline Silva e Pedro Garcia foram integrados posteriormente à imagem. Como em tudo, sempre há as exceções.

A barba branca mal aparada - quiçá nunca aparada - denuncia a idade avançada. O cabelo supõe-se que tenha a mesma cor, mas é impossível saber, pois o boné enterrado até o meio da testa não permite ver sequer se ainda restam fios no topo de sua cabeça. O olhar, ao contrário de muitos homens da sua idade, não é cansado. Pelo contrário, carrega ainda o brilho da juventude, de alguém que ainda procura algo. Um sonho adiado, talvez. Ou simplesmente a próxima refeição.

opinião

Mais que um homem, um lord

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