Unicom 01-2008

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opinião

02 editorial

As cidades que poucas pessoas vêem Quando esta edição do Unicom foi concebida, após longas e nem sempre pacíficas discussões, ainda no início do semestre, havia muitas dúvidas e poucas certezas. Mas, sobretudo, uma vontade muito grande de se fazer um jornal-laboratório bonito, de conteúdo relevante, cujas páginas refletissem, de uma forma ou de outra, o nível de maturidade que nossos alunos atingiram neste estágio evolutivo de sua formação. Um jornal que não apenas desse continuidade ao processo de (re) construção conceitual do Unicom que iniciamos, alunos e professores, há cerca de dois anos, mas que, sobretudo, inovasse. A saída encontrada, para além do aprimoramento do projeto gráfico, – um processo que não se encerra na última edição, porque em constante transformação –, foi investir em um conteúdo pouco usual quando o assunto é jornal-laboratório, porque escorado em uma perspectiva conceitual, pouco afeita ao jornalismo dito informativo. A angulação, mais que resolver um problema, trouxe novas e instigantes indagações, além de reduzir substancialmente o já magro repertório de respostas possíveis. A principal questão foi justamente a mais difícil de se resolver: o que, afinal, poderíamos fazer para tornar este um jornal conceitualmente interessante?

opinião

Seguindo passos de um gigante

A cidade de cada um

Cláudio Froemming

Josiléri Linke Cidade

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anta Cruz do Sul e São Paulo possuem muitas coisas iguais ou pelo menos parecidas. Não acredita? Então analise! Além dos nomes começando com a letra “S”, as duas cidades receberam nomes que remetem à religiosidade. São Paulo é a maior cidade do País, Santa Cruz é a maior do Vale do Rio Pardo. São Paulo é uma cidade concorrida, mas com muitas oportunidades de trabalho e lazer e cultura. Já a capital do fumo também é um pólo regional, que apresenta muitos diferenciais em relação aos municípios vizinhos, tanto na parte profissional, quanto na questão do lazer. São Paulo tem a maior variedade gastronômica do mundo, com um leque gigantesco de opções para quem pretende conhecer ou apreciar pratos diferentes e exóticos. Santa Cruz não oferece tantas possibilidades, mas proporcionalmente ao seu número de habitantes, é bem rica na questão gastronômica, tanto é que as opções vão desde um ótimo churrasco, até pratos da culinária chinesa e japonesa. Guardadas as devidas proporções, podemos comparar o trânsito das duas cidades, pois o de São Paulo literalmente parou, o fluxo é muito lento e as vagas para estacionar quase não existem. Santa Cruz anda na mesma direção, pois as ruas estão cada vez mais

concorridas e o estacionamento no centro da cidade, começa a ficar muito escasso. São Paulo é uma cidade grande com perspectiva de mais crescimento ainda. Já a Santinha é uma cidade de porte médio, mas com muitas condições de crescimento, pois além de um pólo industrial riquíssimo, grandes empresas estão de olho na cidade, como é o caso da Toyota. Apesar dos problemas que a metrópole de São Paulo apresenta, como a violência, é uma capital que impressiona seus moradores e visitantes, pois é extremamente rica em sua grande maioria. Possui prédios e construções imponentes, pontes, túneis e rodovias que surpreendem com sua engenharia e ousadia, bem como um fluxo estonteante de veículos e pessoas. Já a cidade da Oktoberfest também é considerada rica, mesmo tendo algumas vilas pobres nos seus arredores. Possui empreendimentos ousados como o autódromo internacional, a Unisc, a fábrica da Souza Cruz, entre outros. Além disso, tem um grande movimento no centro da cidade. Ao que tudo indica, Santa Cruz pode vir a ser uma São Paulo daqui a uns 400 anos, pois possui potencial para isso. Já São Paulo pode vir a sentir saudade de quando era uma cidade como Santa Cruz.

A resposta, uma vez mais, nasceu do conjunto; do lugar de discussão que usualmente estabelecemos – alunos e professor – sempre que um novo Unicom se inicia. Este espaço nos sugeriu que olhássemos não uma cidade chamada Santa Cruz do Sul; mas as cidades que se constroem todos os dias por meio dos olhos que as vêem e que, por uma coincidência qualquer, também se chamam Santa Cruz. Cidades invisíveis, como as de Ítalo Calvino, em quem nos inspiramos; sobretudo cidades de rostos desconhecidos, cidades de Eliane Brum.

Curso de Comunicação Social Jornalismo. Bloco 15 - sala 1506. Fone: 3717-7383 Coordenadora do curso: Ângela Felippi

Demétrio de Azeredo Soster

Editor

Guilherme Mazui

Sub-edição

Letícia Mendes Sancler Ebert

Produção

Daiane Balardin Luciana Mandler Marisa Lorenzoni

Cada um tem sua importância, no lugar que ocupa e da maneira que se apresenta

sa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar [...]” (pág. 115). Histórias pequenas, dramas anônimos, de gente comum, normalmente, não nos chamam a atenção. Porém, é isso que compõe um lugar. Os sonhos e os medos. A cidade já está construída, desmembrá-la é um exercício de observação.

Josué Dalla Lasta

Uma boa leitura a todos.

UNISC Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP: 96815-900

Calvino narra uma conversa em que Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra, para o imperador Kublai Khan, que indaga qual é a pedra que sustenta a ponte. Polo explica que não é uma pedra apenas, mas o arco que estas formam. O imperador reflete e acha desnecessário falar das pedras se só o arco o interessa. Ao que o viajante responde: “Sem pedras o arco não existe!” (pág. 79) Assim acontecem com todos os elementos que formam uma cidade. Cada um tem sua importância, no lugar que ocupa e da maneira que se apresenta. Às vezes esquecemos de dar atenção para pequenas coisas que acontecem em baixo dos nossos olhos e que sustentam o nosso dia-a-dia. Não reconhecemos o que está ao nosso redor e procuramos ao longe o que está diante da gente. Como se fôssemos deuses, olhamos o mundo de cima para baixo. Por que não mudamos a direção do nosso olhar? Por que não enxergamos as coisas, ao invés de apenas olharmos? Eliane Brum credita aos pequenos gestos e ao olhar uma forma de resgatar, reconhecer e salvar o mundo. O caminho mais fácil para isso é começar pela nossa cidade. Quando deixamos de lado a correria diária e paramos para analisar aquilo que normalmente não nos chama atenção é que percebemos as vozes, os traços, o andar e tudo que compõe uma cidade, uma rua, um lugar. Quais os esportes e os esportistas, quais as profissões e os profissionais, as lojas e os lojistas. Como diria Ítalo Calvino em seu livro, “a cidade de quem pas-

O réquiem dos desconhecidos

São estas cidades que agora chegam em suas mãos, caro leitor; cara leitora.

Editor-chefe

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eculiaridades, símbolos, afinidades, contrastes... Do que você lembra quando pensa numa cidade? Do que se cultiva, do que se fabrica, se cultua, se pratica? Cada lugar tem uma marca, mas a maneira como o identificamos é própria. Criamos conceitos sobre as cidades. Todos verdadeiros, embora diferentes. Ítalo Calvino, ao escrever “As cidades invisíveis” (Companhia das Letras, 1990), diz que aquele que viaja para conhecer ao longe e não conhece o que o cerca, também não saberá apreciar as minúcias do que encontrar. Santa Cruz do Sul, por exemplo, pode ser identificada de várias formas. Terra da Oktoberfest, Capital do Fumo, das tradições gaúchas, do autódromo... Depende do ponto de vista do observador – e também do observado, daquilo que o acolhe, das suas pretensões e expectativas. Os mais velhos identificam a cidade pelo crescimento, os mais novos pelas diversões. As mulheres associam à moda e aos costumes, os homens à localização e às oportunidades de trabalho. Talvez seja por essa razão que Eliane Brum resolveu admirar “A vida que ninguém vê” (Arquipélago Editorial, 2006). Como seria uma cidade construída por nós? Quem seriam seus moradores? O que iria conter e o que esconderia? De certa forma é isso que Calvino nos ensina: a construir cidades, que ao final das contas é somente uma, mas que contém tantos aspectos quanto dezenas delas. Para essa edificação, talvez devêssemos fazer como a escritora e imaginar o que se passa dentro de casas, cujas janelas estão iluminadas quando passamos pela rua à noite. As coisas são do tamanho que imaginamos, podemos pensar num rato ou num elefante. Cada um de nós tem uma maneira de ver, observar e experimentar. Vemos diferente se baixamos a cabeça, do que se a levantamos.

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Reportagem

Cláudio Froemming Daiane Balardin Débora Nunes Fernanada Almeida Guilherme Mazui Letícia Mendes Luciana Mandler Marisa Lorenzoni Rodrigo Nascimento Roseane Bianca Rozana Ellwanger Sancler Ebert

Ilustrações Revisão

Débora Nunes Greice Guilhermano Roseane Bianca Rozana Ellwanger

Diagramação

Gelson Pereira Rodrigo Nascimento

Capa

Lázaro Paz Fanfa

Giusepe Fontanari Mariana Pellegrini

Logotipo

Samuel Heidemann

Impressão Graphoset

Tiragem

500 exemplares

Blog http://blogdounicom.blogspot.com

expediente Este jornal foi produzido de forma interdisciplinar. O conteúdo editorial ficou a cargo da turma de Produção em Mídia Impressa (professor Demétrio de Azeredo Soster). Os anúncios da edição foram criados pelas turmas de Redação em Publicidade e Propaganda II (professor Fábio Hansen).

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essuscitar pessoas não é tarefa fácil. Conta a história que até hoje apenas um homem conseguiu tal façanha. Ele próprio saiu de entre os vivos, esteve por entre os mortos, e voltou em meros três dias. Também trouxe à vida um até então anônimo chamado Lázaro. Virou herói. Seus pares mais próximos também. Até hoje seus seguidores continuam seu legado. Mas a própria história faz com que a maioria esmagadora deles caia no esquecimento, como baixas de guerra. Assim como soldados, não têm nome. Têm número. E é incrível a habilidade com que o tempo executa tal tarefa.

A maioria das pessoas gosta de imaginar que a glória das nações provém de heróis que surgiram em momentos cruciais da história e conduziram seus países em direção à liberdade, ao poder e à prosperidade. Pelo menos é assim que o assunto é tratado na maioria dos compêndios. A discussão é antiga, segundo o pesquisador carioca Pedro Mundin. Uma corrente afirma que são os heróis que fazem a história, outra corrente afirma que a história é que faz os heróis. Segundo os primeiros, se Napoleão Bonaparte fosse alguns centímetros mais alto, não teria necessidade de compensar seu complexo de inferioridade. Então ao invés de imperador, teria sido um pacato oficial de pro-

víncia. A outra turma afirma que na verdade pouco importa quem houvesse tomado o poder na França daquela época. Esta pessoa teria sido forçada, pelas circunstâncias, a fazer mais ou menos o mesmo que Napoleão fez. A história tradicionalmente é contada segundo a visão dos vencedores. Ou melhor, dos líderes vencedores. Mas só lidera aquele que tem adeptos. E a imensa legião de seguidores destas figuras está condenada ao esquecimento. Tudo porque alguns poucos homens apareceram tanto, que sufocaram uma multidão que terminou por aparecer tão pouco. A própria história se envergonhará de tudo isto. Um dia.


reportagem

reportagem

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A um pé da cidade

Tio Nasça está sempre bem

Daiane Balardin le se chama Astor José Soder, o Zépe. Vive a um pé de Santa Cruz do Sul. A Santa Cruz do seu Zépe é a noite. Em alemão Nacht. Enquanto a maioria dos seres humanos tem na noite o período de descanso, ele vê a cidade dormir acordado. Uma tarde própria de início de outono, de veranico; cheiro de terra molhada. Zépe aguardava ansioso a hora da entrevista. A esposa, Mariana, surtia fumo nos fundos da casa. Com uma ajudante ela classificava as folhas depois de terem saído do forno. O cheiro do pão caseiro e do leite fresco caracterizavam a oitava casa amarela da Linha João Alves. A conversa foi simples. Os olhos azuis e inquietos

Guilherme Mazui ara o senhor negro, de óculos, cabelos e barba brancos, Santa Cruz é um campo de futebol. Neste caso o do Esporte Clube Avenida. Há 30 anos, o roupeiro enxerga a cidade crescer a partir do Estádio dos Eucaliptos. Mais do que um funcionário, ele é uma referência. Tanto que, quem chega ao local, dificilmente escapa do seu aperto de mão. Além de simpático, chama a atenção por lembrar um personagem que freqüentou a infância de muita gente: o Tio

O fumicultor Zépe, 41 anos, morador da Linha João Alves, vê Santa Cruz do Sul adormecer e acordar através do visor de um capacete

» No interior Na vida de Zépe, o fumo fica apenas como fonte de renda. Na adolescência, a experiência com o cigarro era somente nas festas para fazer fumaça com os amigos. Na Santa Cruz do fumo, o trabalho, judiado no campo, ofusca o orgulho de ser um fumicultor. Mas não deixa de realizá-lo por ser um trabalho digno e garantir o sustento

Eu vejo como uma cidade grande, porém com poucos habitantes. Para mim, existem ainda muitos locais para serem explorados.

Mitieli Majewski 18 anos, instrutora de xadrez 10 anos em Santa Cruz

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Logo ali, a um pé de Santa Cruz, mora o tio Ivo, tio do Zépe. Dono de valiosos conselhos, pois sempre orientou o sobrinho quando a questão era dinheiro. A dica era: se ganhar R$ 10, gaste apenas R$ 5 ou R$ 6, mas nunca R$ 12 ou R$ 15. Ainda na cidade, outra admiração. A Praça Getúlio Vargas. O chafariz. A Catedral de São João Batista. A calmaria do interior se confronta com o agito da cidade. A amplitude do campo se defronta com as calçadas estreitas. Cadê os estacionamentos? O trânsito, para Zépe, precisa de uma mudança. Mas a Santa Cruz de Zépe não é só de lembranças. É das bandinhas da Oktoberfest. É da alegria do povo. É do cheiro do fumo. É quando a noite o aproxima da cidade. A cidade, que ele vê todos os dias, encoberta por nuvens escuras. Às vezes sombria. Às vezes estrelada. De diversas nuanças. A noite geradora de diversos olhares.

COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

José Nascimento 60 anos, aposentado Sempre morou em Santa Cruz

da família. Para o futuro dos filhos, o sonho é outro: estudo. Para eles terem uma vida mais saudável e não precisarem “correr atrás da máquina”. Zépe é um homem simples. No interior é conhecido por ser “bonzinho” demais. Mas ele mesmo define-se como um legítimo escorpiano, às vezes explosivo. Os escorpianos têm outras características marcantes também: gostam de trabalhar em equipe e em tarefas comunitárias. Assim é a rotina de Zépe, que divide seu tempo entre o fumo, a família e o lazer. Faz parte da diretoria da Linha João Alves. Uma Linha boa de viver. De pessoas boas. Pais e irmãos fazem parte da vizinhança. Nos finais de semana, o divertimento é o futebol. Jogador do time de veteranos da localidade vizinha, ele tem um desejo: unir os dois times de Santa Cruz. Tornar o Avenida e o Santa Cruz um time só, com um complexo maior e bem mais fortalecido.

lado é mais complicado. Já na hora de voltar para casa o cenário é outro. Cidade e campo se igualam no sossego. No pensamento os planos para mais um dia de trabalho. O barulho da moto chama atenção dos cachorros. Zépe vê Santa Cruz acordar aos poucos.

Uma cidade com uma expectativa muito boa de crescimento, com muitos pontos turísticos e locais para passear. Flávio Henrique Schedler 29 anos, instrutor de auto-escola Sempre morou em Santa Cruz

Márcia Melz

Já foi uma cidade maravilhosa. Hoje está muito violenta, um pouco disso se deve ao alto índice de desemprego, que também assusta Santa Cruz.

No trabalho de formiguinha, separando jaleco, lustrando chuteira, roupeiro do Avenida vê há 30 anos a cidade a partir do Estádio dos Eucaliptos. Sempre com o pé direito

Márcia Melz

COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

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de Zépe se perdiam na imensidão de um vistoso sofá azul, que fazia parte da decoração da sala, junto com os vários retratos dos filhos, Gustavo e Luana. Há três anos Zépe troca o dia pela noite. Seu trabalho, em uma fumageira, é no terceiro turno. Entre 21h e 5h, Zépe fica mais perto da cidade. A Santa Cruz que ele vê iluminada pela lua. Que ele vê pelo visor do capacete. A cidade em silêncio. As máquinas funcionando. O seu trabalho exige atenção: Zépe é encarregado de supervisionar os funcionários do estoque. Ao sair do interior, barulho de carros, de músicas e de pessoas acompanham Zépe até a fumageira. Para ele o outro

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Fábio Luz Pedroso 25 anos, militar Nasceu em Santa Cruz

Barnabé, do Sítio do Pica-PauAmarelo. Pois o Tio Barnabé do Avenida tem nome: Sedomar Reis do Nascimento, 70 anos, o Tio Nasça ou Tio Nascimento. Ao estender a mão, ele comprova que está sempre bem. – Tudo bem? – Sim e com o senhor? – Sempre bem! As palavras são cumpridas

Santa Cruz é uma cidade viva, com uma juventude muito especial, que tem a capacidade de fazer de uma rua ou um posto de combustível, um local de encontro e confraternização.

na prática. O roupeiro sabe que lamber feridas não resolve problemas. Aprendeu a lição na infância de fome, trabalho e desejos. Criou-se sem o pai, em uma casa com sete irmãos e seis primos. Antes de ser o Tio Nasça, Sedomar carregou lenha, entregou Correio do Povo, foi sapateiro, almoxarife, cantor de rádio e contínuo do Banrisul. “Fiz de tudo nessa vida, só não roubei”, sorri. E não é fácil expor esse sorriso diariamente. Por isso, a oração ao sair de casa e a superstição de entrar sempre com o pé direito no gramado. Tio Nasça repete o gesto desde 1978, quando assumiu o vestiário verde. O roupeiro é mais velho que o próprio Avenida. Nasceu em 8 de março de 1938, “no dia delas.” O Periquito é de janeiro de 1944. Portanto, o senhor sentou nas antigas arquibancadas de madeira, rodeadas pelos eucaliptos que batizaram o estádio. Ele deixou Santa Cruz em 1952, rumo a Novo Hamburgo. Por lá, deleitou-se nos sambas e na noite, onde encontrou dois matrimônios e outros dois romances não oficiais. Nas reviravoltas amorosas vieram seis filhos. Herança genética. Seu Claro, pai de Sedomar, teve sete, o último aos 73 anos. No retorno a Santa Cruz,

uma cidade tão bela quanto antes. E com os mesmos problemas. Tio Nasça considera gravíssima a escassez de horários de ônibus. Apertador de mão e sorridente, tentou ser vereador. Queria corrigir essa e outras mazelas. Não deu. Hoje, indigna-se ao falar de política, mas sem perder o tom paternal. » Operário padrão Apesar de não se considerar um operário padrão, Sedomar age para ser um. É um cidadão preocupado com o futuro. Quer deixar o exemplo. O futebol serve como metáfora para a lição. A toca do roupeiro fica no fundo do vestiário, depois dos chuveiros e do mictório. Parece uma solitária. Dali, ele se comunica com o elenco através da janelinha no meio da porta. Pelo vão, cada jogador recebe e entrega seu material de treino. Quem não entende nada de futebol considera essa missão secundária. Naquela cela, Tio

Otimista sempre Para viver nas oscilações de um time de futebol é preciso um coração de aço. Tio Nasça pôde testar o seu em duas oportunidades. Em 30 anos no Avenida, viu o seu Avenida disputar apenas duas vezes a Série A do Gauchão. Uma verdadeira bateria de provas cardíacas. Com a mesma velocidade que ascendeu, o clube despencou. Obteve o acesso em 1999, caiu em 2000, quando subiu de novo. Em 2001, desceu pela ribanceira outra vez. Para os tombos, a solução é levantar. E recordar os bons momentos. O esquadrão de 1999 além de subir, venceu o Grêmio de Ronaldinho Gaúcho, nos Eucaliptos. A escalação, declamada pelo Tio Nasça, era a seguinte: Carlos; Rodrigo, Aládio, Márcio e Adilson; Pedrinho, Daia, Marquinhos e Hall; Aurélio e Clei.

Santa Cruz é uma cidade boa de morar, um município que tem gana de vencer. Victor Cezar Zinn 26 anos, empresário Nasceu em Santa Cruz

Nasça organiza 75 pares de chuteiras, 125 pares de calções, 150 jalecos, mais de 150 pares de meias, 120 camisetas, ataduras e toalhas. Ele sabe o que faz. Reconhece a qualidade das chuteiras pelo brilho do couro. Antigamente, elas brilhavam mais. Esse senhor é tão importante quanto o camisa 9, que faz gol, decide o campeonato, leva a glória da vitória. O sucesso no futebol – e na vida – passa pelo reconhecimento. Todos são fundamentais. O aprendizado depende do diálogo. O roupeiro gosta de deixar os outros falarem. Só há uma coisa que o faz perder a elegância: dizer que ele é um negro de alma branca. – E que cor tem a alma? - retruca. - É branca? A minha é da mesma cor das outras. Para o Tio Nasça, Santa Cruz é uma cidade que precisa aprender a ouvir mais. Talvez nesse dia entenda que a alma não tem cor.

Acho Santa Cruz uma cidade boa de se viver, pois a cidade é pequena, calma, acolhedora, e receptiva. Vanessa de Moraes 20 anos, estudante de administração 10 anos em Santa Cruz


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reportagem

reportagem

A Santa Cruz de quem a faz gigante

Onde os paralelepípedos brilham

Alvá Assmann, o taxista que, ano após ano, de corrida em corrida, viu sua cidade crescer milhares de quilômetros

Sancler Ebert

Descendo o acesso Grasel em 1979, a jovem Takako deparou-se com uma cidade que lhe lembrava uma grande panela de bordas verdes, cheia de uma intensa luz

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Santa Cruz de Takako Kanomata Schütz é movida por paixões. Uma cidade mágica onde os paralelepípedos brilham e a catedral é feita de luz. Uma cidade que lhe acolheu em seus braços quando ela deixou o outro lado do mundo por amor. Quando ela abriu mão do sucesso numa TV do Japão e da segurança ao lado dos pais para morar numa cidadela que sequer aparecia no mapa. Uma cidade que lhe recompensou ao torná-la mãe, esposa, cozinheira, empresária, professora, jardineira e babá dos gatos. Se não fosse seu espírito aventureiro, posto à prova já na primeira viagem, ao Havaí,

o empréstimo exigia uma atitude. Precisava arrumar mais “algum”. Aí veio a idéia: pedir ao mesmo político uma licença para táxi. E a coisa aconteceu. Durante a semana seu Alvá trabalhava no Daer e aos sábados e domingos ganhava uns trocados conduzindo seus passageiros pelas ruas de Santa Cruz. O que era para ser apenas um bico ganhou tamanha proporção que em pouco tempo passou a ser a única profissão do seu Alvá. A primeira Santa Cruz do seu Alvá era afastada e pequena. Ficava num lugar ermo, de pouco movimen-

to. A cidade acabava por ali. Ficava nas imediações onde hoje se encontra a conhecida rótula do 2001. Para sua alegria, aos poucos ela foi crescendo e há 35 anos mudou-se para a esquina da Rua Marechal Floriano com a Rua Ramiro Barcelos, bem pertinho da Catedral. » Evolução Vendo a cidade crescer, seu Alvá pôde acompanhar as muitas mudanças que nela aconteceram, nas suas paisagens, suas ruas, no seu trânsito. Uma delas foi o substancial aumento no número de veículos que circulam por ela. No início eram 10 mil; hoje, são 60 mil. Esse aumento, bem como a chegada do transporte coletivo, fez com que o ritmo diminuísse, porém sem nunca parar. Segundo seus cálculos, nos bons tempos a sua cidade crescia de 5 a 6 mil quilômetros por mês, hoje não passa de 2.500. Mas

seu Alvá não é avesso a essas transformações, pelo contrário, acompanha tudo sempre com bom humor e disposição. O seu Alvá adora dirigir. É como um vício, um prazer. Na cidade que cresce de quilômetro em quilômetro, não perde a oportunidade de conhecer muita gente e de conversar sobre os mais variados assuntos. E é com orgulho que fala o quanto seus passageiros, vindos de outras cidades, comentam sobre as belezas deste lugar. Para eles, o que mais chama a atenção é o verde; a arborização da cidade e suas ruas tão largas, características que ele mesmo aprendeu a admirar. Parece que nada tira o gosto que Alvá tem pela profissão. Nem mesmo a distância da pa-

cata e pequena cidade que um dia foi Santa Cruz. Sinal dos tempos, a violência também chegou na Santa Cruz de mais de 1 milhão de quilômetros do seu Alvá. Depois de 30 anos rodando e rodando pelas ruas que viu nascer, veio a experiência mais dura: um assalto. Levaram o carro do seu Alvá. Um Ômega com bancos de couro todo equipado, que só foi encontrado tempos depois completamente depenado. Depois deste, mais dois assaltos, mas mesmo assim a cidade do seu Alvá não pára, afinal, ele não é movido a gasolina, ele é movido a paixão. Acompanhando o crescimento da cidade criaram-se os cinco filhos de Alvá. Os três meninos, talvez influenciados pelo pai, também se tornaram motoristas. O mais velho segue os seus passos, tem um táxi. O do meio é viajante e o caçula faz transporte de escolares. Um dia, mais precisamente no final de 1970, saiu de cena um mecânico. Ele deu lugar ao taxista que ganhou as ruas de Santa Cruz: o seu Alvá. Ele já está aposentado, mas quem segura esse senhor que quer continuar crescendo junto com sua Santa Cruz? Quantos quilômetros terá a cidade de Alvá quando este momento chegar?

» O Encontro Quando a volta estava próxima e a realidade vivida, aceita, uma festa de despedida surgiu para mudar para sempre a sua vida. Se ela não tivesse ido e conhecido o jovem Ricardo Schütz, talvez hoje estivesse em Igata, sua terra natal, caminhando pelas estradas, ven-

COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

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oje a Santa Cruz do seu Alvá tem mais de 1 milhão de quilômetros. As rodas do carro giram dia após dia, dirigidas por Alvá Assmann, 77 anos de vida e 38 de profissão. O motorista de táxi mais antigo da cidade descobriu que dirigir é muito mais do que um modo de ganhar a vida, é também um modo de viver a vida. Viver nessa imensidão foi por acaso. Certa feita, conseguiu um dinheiro emprestado com um amigo político, pois queria comprar um carro para a família. Não demorou muito e a dificuldade para quitar

ela não estaria a caminhar pela Marechal Floriano, sentindo os raios do sol perfurando a copa das árvores e iluminando o seu rosto. Foi o desejo de conhecer o mundo que lhe trouxe ao Brasil, que para ela, aos 19 anos, era um país próspero e simples. Chegou em Porto Alegre sabendo apenas três palavras: “Prazer, chamo-me Takako”. E foram essas as únicas que soube pronunciar em português durante os três primeiros meses. Antes de descobrir Santa Cruz, ela viveu na capital riograndense. Morava na casa de uma família abastada, num grande casarão com estilo europeu e rodeada de pessoas com traços galeses. Em todas as noites chorava em seu quarto, desejando voltar para casa, porque afinal ela não podia estar no Brasil. Onde é que estavam os negros e índios, as casas simples e a natureza selvagem naquela cidade feita de mármore e pedra, frio e solidão?

Márcia Melz

Marisa Lorenzoni

Marisa Lorenzoni

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Uma cidade divertida, alegre e muito hospitaleira. Ana Paula Lindes Prates 19 anos, atendente Morou 11 anos em Santa Cruz

do as lavouras de fumo e arroz, ensinando a arte da escrita japonesa às filhas, fazendo origamis para os netos. Se ela não tivesse ido, com certeza não estaria em Santa Cruz. Foram apenas dois dias, um sábado e um domingo, chuvosos e de intenso frio que ela passou na pequena cidade do interior. O amor que lhe trouxe até aqui, não foi capaz de fazê-la ficar. Ela deixou seu coração e partiu. Ainda havia muito mundo pela frente. Voltou para casa, tornou-se repórter e apresentadora de uma conceituada rede de televisão. Quando muito tempo já havia se passado, Santa Cruz bateu à sua porta, na figura de um homem barbudo, corajoso e sem emprego. Era seu amado, Ricardo, que atravessara o mundo para pedi-la em casamento e para ouvir do pai dela, o senhor Kanomata, um “nem pensar!”. Como todas as histórias de amor proibido, o sentimento prevaleceu. Sete dias após a chegada de seu príncipe, Takako tornou-se Kanomata Shütz. Ao invés de uma bela cerimônia, bolo de três andares e marcha nupcial, apenas assinaturas num cartório local. “Sinto muito, mas casei”, foram as palavras usadas para informar à família da grande decisão da sua vida. Pouco tempo depois, ela voltou à Santa Cruz. A cidade não era mais a mesma. As belas casas antigas que ela amava cada detalhe não existiam mais; estavam soterradas sob gigantescos prédios quadrados e sem vida.

Seguiram-se 23 anos de idas e vindas. Nasceram duas filhas e uma escola de idiomas. Santa Cruz tornou-se definitivamente seu lar, sua referência. A cidade onde ela colocou os pés e sentiu-se à vontade para chamar de terra natal. Takako acredita que cada pessoa faz o lugar onde mora, que cada um vê sua cidade por meio dos valores enraizados dentro de si. E a Santa Cruz que existe dentro dela é uma cidade onde as pedras das ruas brilham e tudo lembra o amor.

Como um local agradável de morar... E aqui não falta nada, mas a violência está aumentando e a tranquilidade acabando.

Aldemar Gass 68 anos, representante comercial 54 anos em Santa Cruz

Santa Cruz é o núcleo da região, a cidade que reúne pessoas de todos os vales. Toni Varreiro 35 anos, frentista 15 anos em Santa Cruz


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No tempo em que a infância cheirava a lareira Sentada no terraço de sua casa, a pequena Lya Luft via morros azuis e criaturas mágicas. Para ela as sensações e os momentos vividos naquele cenário vão ser sempre a sua cidade Letícia Mendes

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Marisa Lorenzoni

COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

Santa Cruz do Sul de Lya Luft tem cheiro de infância; de infância e de lareiras acesas em noites frias de inverno. Naquele tempo, a cidade e o mundo cabiam em sua casa. Uma casa que hoje não é mais sua, mas que por muito tempo foi mais que sua, foi parte dela. Um imenso mundo mágico habitado por fadas, bruxas, duendes escondidos em meio às hortênsias ou no topo dos salgueiros. Era dali; do misterioso jardim, que a pequenina sonhadora via morros, lindos morros azuis, onde certamente viviam os príncipes, os unicórnios, os anões e muitas outras criaturas mágicas. Para a pequena sentir o calor da lareira invadir a sala e o cheiro da madeira tornando-se brasa era uma sensação maravilhosa. Mas só não foi maravilhosa no dia em que a menina descobriu que anões habitam árvores. E que das árvores vinha a lenha para a lareira. A madeira queimando lhe causava uma angústia imensa. E se um anãozinho estivesse na lareira? Puft! A resina derretida provocava uma pequena explosão e o choro vinha quase como por impulso. Sua mãe não entendia, mas ela sabia. O anão amigo acabara de morrer assado. A Santa Cruz do Sul da pequena Lya também tinha sabores.

O sabor doce da torta General (que hoje ela nem sabe se existe ainda) preparada em dias de festa pelas tias, ou o gosto inconfundível da Streuskuchen preparada pela avó Emília, saboreada com um gostoso café em sua casa, tinham gosto de carinho e mistério. Misteriosa receita que a avó não revelava. Mas esse não foi o único mistério que inquietou a pequena. Os mistérios faziam parte da infância. Lya não entendia “Por que dois mais dois tinha de ser sempre quatro?”. E não entende até hoje. “Por que tinha que ser alemã?”. Ela era brasileira, ela é brasileira. “Igual a uma negra de Salvador que vende acarajé na rua”. Seus pensamentos inocentes não compreendiam e não queriam aceitar o preconceito. E até hoje não aceitam. O mundo era um mistério a ser revelado. A poeira descoberta embaixo do móvel era um tesouro para a pequena com pouco mais de dois anos. Mas os maiores tesouros eram os livros. E eles estavam por toda a parte. Até mesmo sua cama era embutida em uma prateleira de livros. Era neles que ela podia viajar, voar até os montes, encontrar Joana D’Arc, percorrer O Continente nas mãos de Erico Veríssimo. Naquele tempo de infância, em que as inquietações eram maiores do que as certezas a menina encontrava nos livros parte dessas respostas. As outras, buscava nos pais: “Por que as pessoas falam? Por que os outros entendem? O que é mu-

Não tenho nada de mau para falar da cidade, pois aqui sempre consegui emprego. Eva de Souza Mendes 54 anos, zeladora 15 anos em Santa Cruz

Edson Cunha 36 anos, caixa 10 anos em Santa Cruz

lher da vida? Por que dizemos ‘nós, os alemães’ e ‘eles, os brasileiros’?”. E às vezes também não encontrava respostas. » O Paraíso A menina apaixonada por livros encontrou na biblioteca do pai intelectual um imenso paraíso. Era ali que o pai lhe permitia vasculhar livros e mais livros. O pai, sempre presente e carinhoso. O pai amado e sempre lembrado. O pai, que era mais que pai. Era amigo, assim como os livros. Ele entendia que ela era mais que uma menina, ela era uma pessoa. Ele a ouvia porque a amava. Amava aquela alma rebelde. Sim, ela era rebelde. Mas de uma rebeldia benigna. Não queria ir para a escola, preferia o refúgio dos livros e o aconchego de sua casa. Não precisava aprender a medir distâncias com números, tão vazios, sem vida. Ela preferia ultrapassar distâncias, percorrer mundos desconhecidos, deixar-se levar pela imaginação. A matemática não era seu ponto forte. Assim como cumprir obrigações. Diziam que ela deveria ser uma boa dona-decasa, precisava aprender a bordar, cozinhar, passar, lavar, limpar, costurar. Eram tantos “tem que”, “tem que”, “tem que”... Ela não queria ser uma boa Frau. O bordado era horrível, todo puxado. E cozinhar? Ela não cozinha até hoje. Se era mimada? Era sim. Mas também de um mimo bom. Não era mal criada. Era amada. Mas o medo de mimá-la demais

Santa Cruz é uma cidade muito bonita, de progresso. Eu gosto de Santa Cruz. Eu não vejo nenhum defeito grave na cidade, para mim a cidade está boa.

fez seu pai tomar uma decisão. Aos dez anos Lya foi levada para um internato. Lá deveria aprender a se comportar, obedecer a regras e mais regras. Deveria ser uma boa menina, como as outras que adoravam o lugar. Mas ela era uma boa menina, a diferença era que seu lugar era outro: sua casa, seu mundo. Ela se esforçava, mas só conseguia pensar em fugir. Olhava os morros e imaginava quantos dias de caminhada seriam precisos para chegar a Santa Cruz. Sua natureza livre não compreendia aquele mundo de regras, em que só não eram censuradas as cartas enviadas aos pais. E ela reclamava, escrevia ao pai com insultos à diretora, a bruxa má que a prendia naquele calabouço. E em uma dessas quem leu a carta foi a própria bruxa. Chamada para explicar-se e para reescrever a carta, a menina cheia de raiva repreendeu a freira que havia violado suas escritas: – Vocês mentem, dizem que não abrem as nossas cartas. E eu quero enviar essa, assim mesmo!

Santa Cruz está progredindo lentamente. O que tem que melhorar são os empregos para os jovens. Eles exigem experiência mas dão oportunidades aos jovens.

Sidinei Andrade 20 anos, aux. serviços gerais Sempre morou em Santa Cruz

E a menina se libertou E o pai a libertou. Mas ainda hoje o trauma do exílio incompreendido persiste; as lembranças daqueles que foram alguns dos piores momentos de sua vida. A volta para Santa Cruz foi um presente. A menina deitada no colo do pai ouvia o “toc toc” do trem e sentia a melhor sensação do mundo. Ela estava voltando para casa. Enfim, a menina reencontrava o seu paraíso. E era o mesmo “toc toc” das patas dos cavalos trotando pela rua que ela ouvia do seu quarto pela manhã. Aquele som era a certeza de que tudo estava normal. Seus pesadelos e insônias ficavam para trás. Era o início de mais um belo dia. Bela também foi sua juventude. Lya tinha muitos amigos, e foi mesmo feliz. O primeiro baile de 15 anos é uma das lembranças daqueles tempos. Tempos em que um vestido de tule verde bordado pela avó e pela mãe, e ir ao baile com o primeiro namorado, faziam uma garota feliz. Era tamanha a alegria que os olhos da pequena Lya deveriam estar tão brilhantes quanto os mesmos profundos olhos azuis que hoje são marejados e tomados de brilho pela recordação. É como se tudo estivesse mais vivo do que nunca. Tudo mudou. A menina romântica encontrou novos amores, novos amigos, perdas, ganhos, saudades. Tornou-se Lya Luft. Encontrou novas raízes. A

João Eri Costa 47 anos, microempresário Trabalha em Santa Cruz

canção “H”anschen klein, ging allein, in die weite Wetl hinein” agora é entoada em outro lugar para ninar as netas. Os livros ainda a rodeiam, agora na sua própria biblioteca. O jardim de sua casa não é seu, mas é tão imenso quanto aquele que um dia lhe pertenceu. A Lya Luft que hoje em suas obras discute as relações humanas e suas complexidades será sempre aquela mesma menina curiosa, sentada naquele terraço, contemplando a natureza, tentando entender o ser humano para um dia entender o mundo. Mas ela não entende até hoje e acredita que nunca vai entender. Já aquele antigo jardim não é mais o mesmo. A casa já não tem o mesmo cheiro de lareira, nem o som de família feliz, nem os passos do pai, nem o perfume da mãe, nem o som da chuva caindo nas folhas das árvores próximas da janela, porque já não existem árvores, nem quem as ouça. No tempo em que a cidade de Lya Luft tinha cheiro de lareira, houve uma coruja enorme e branca chamada Sebastião. Ela era intrigante e inquieta, fitava a menina com aqueles olhos enormes e a pequena passou a amá-la. Mas um dia o pássaro fugiu. A dor da traição fez Lya chorar, mas a ave havia deixado uma lição. A pequena sobrevoou o imenso jardim, passou reto pelos salgueiros, olhou-se refletida no laguinho, mas seguiu.

Santa Cruz é uma cidade boa e bonita, o que está faltando é um incentivo maior nas indústrias, que vai gerar mais empregos.

Ela também deveria voar. Ela já tinha asas. Maiores do que as da coruja ou do Anjo da Guarda do quadro na parede de seu quarto. Ela não era mais uma menina e precisava de novas respostas. Viu seus príncipes, anjos, duendes e guardou todos na memória. Uma memória repleta de lembranças de aconchego e beleza. Passou pelos mágicos morros azuis, que para ela serão eternamente azuis. A menina esperta havia entendido: para imortalizar sua cidade na infância ela precisava deixála. E ela voou.

Jorge Luís Noronha 41 anos, educador físico 30 anos em Santa Cruz

É uma cidade próspera e atraente. Como toda cidade em transição do pequeno para o médio porte, busca soluções para problemas, como trânsito, violência, etc.

Zenon Pinto da Rosa 24 anos, radialista 1 ano em Santa Cruz

Gosto muito da cidade. Oferece oportunidades de trabalho e estudo. Tem que retomar a limpeza nas ruas. Quando eu visitava a cidade em outros anos, as ruas eram mais limpas.


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Quando o point não era a Imigrante

Os relógios que falam de um lugar diferente

Rozana Ellwanger asfalto reluz na Imigrante. Os bares à beira da avenida ficam lotados de jovens em busca de bebida e diversão. Pela rua, guris e gurias disputam o espaço com os carros. Todos querem ver e ser vistos, encontrar e ser encontrados por alguém. Mas há 40 anos tudo era bem diferente. No lugar do asfalto, havia apenas o verde do capim e o marrom do lodo que tomava conta de toda a região. A Imigrante era apenas um banhado, mas a gurizada também aproveitava a noite de um jeito muito parecido com hoje. A única diferença é o local. Na década 1970, um dos maiores points da cidade era o

Cláudio Froemming m desconhecido morador de Santa Cruz do Sul, chamado Vanderlei Rodrigues da Silveira, pode até ser uma pessoa anônima, mas não na Estação Rodoviária, onde ele ganha a vida trabalhando como vendedor ambulante de relógios de pulso. Sempre alegre e otimista este vendedor de maquininhas do tempo, já transformou vários clientes em amigos, pois quem tem um tempinho para conversar com ele, percebe que a vida pode ser vivida de forma muito simples, sem pressa e principalmente, em Santa Cruz do Sul, lugar que ele tanto adora. Para Vanderlei, mesmo andando devagar, o tempo não pára, e por isso, seus relógios, têm que ser vendidos, pois é daí que vêm o sustento da esposa e quatro filhos. Morando em uma casinha alugada, em um bairro próximo do centro, não há pedras em seu caminho, nem obstáculos que o façam desgostar de alguma coisa. Tudo em Santa Cruz anda conforme suas expectativas, pois não corre o risco de ficar desempregado, nem de se sentir solitário, nem de ter que fazer o que não gosta. Mesmo não usando relógio no pulso, este nobre trabalhador, passa várias horas por dia com as mãos cheias deles, andando de um lado para o outro da rodoviária, tentando encontrar alguém, que ao contrário dele, queira colocar um no pulso, pois ele, só quer vender. Se pudesse voltar ao passado, o inusitado vendedor muda-

U delicadeza natural, fez com que ao longo de toda a vida conquistasse muitas amizades – e um amor, que resultou em noivado. “Mas não deu certo”, explica, sem nenhum sinal de arrependimento por nada que tenha feito. Pelo contrário. Em seu olhar há apenas tranqüilidade... e saudade. Saudade dos tempos em que a Santa Cruz era uma grande festa. Adão acompanha a vida na noite sob dois pontos de vista: o do ator, que se reúne nos finais de semana com os amigos para dançar, e o do espectador, que acompanha da cozinha tudo o que acontece no saguão da pizzaria onde hoje trabalha. Mas para ele, o mais importante não é nem um, nem outro. O que mais lhe preocupa é a família.

Apesar de nunca ter tido filhos e morar a muitos quilômetros de distância dos parentes, ele foi acolhido por uma família do coração, os Bacatini, com quem mora há quase 40 anos. Foi por eles que o cozinheiro deixou o emprego no restaurante Centenário e foi trabalhar no Tapuia. E é por eles que não pretende deixar Santa Cruz tão cedo. Seus planos são continuar trabalhando enquanto viver o casal Bacatini, para cuidar deles na velhice. Para um futuro muito distante, ele cogita a hipótese de parar de trabalhar e se mudar para Paverama, onde tem parentes. Mas apenas porque o custo de vida aqui é muito alto. Não fosse por isso, “não trocaria Santa Cruz por outra cidade”.

Quem é ele? Adão Freitas Rodrigues nasceu em 23 de agosto de 1939, no interior de Taquari. Chegou em Santa Cruz em 1962, convidado para cozinhar no restaurante Centenário. Desde então trabalhou em points gastronômicos como Quiosque e Posto Tapuia. Descobriu sua vocação para a cozinha graças a uma cheia do rio Taquari, que impediu sua travessia rumo a Porto Alegre. A tia, com o hotel lotado de viajantes ilhados, o convidou para ajudar na cozinha. Quando não está no trabalho nem nos bailes, Adão cuida dos afazeres da casa.

COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

» Tranqüilidade Nos 45 anos que mora em Santa Cruz, o taquariense admite que nunca sofreu qualquer forma de preconceito. Pelo contrário, sempre fez amizade por onde passou. Inclusive nas cozinhas e copas de bailes cidade a fora, onde fazia questão de ir para conversar com as cozinheiras. Depois disso, a festa começava, com muita dança, companhias diferentes e algumas caipirinhas. Aos 68 anos de vida, o cozinheiro ainda conserva a pele bronzeada e os braços musculosos da juventude, aparência que certamente chama atenção nos bailes da terceira idade que freqüenta hoje. A boa pinta, aliada à sua simpatia e

Márcia Melz

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da e enviada para a Inglaterra, para satisfazer o desejo de uma santacruzense que há anos mora no outro continente. Quando as mesas do Tapuia começavam a ficar vazias, o cozinheiro se preparava para a parte mais esperada da noite: a festa. No fim de semana, o caminho de Adão era da cozinha da lanchonete para a Kombi, o táxi, ou o ônibus. Tanto fazia, contanto que houvesse um modo de ir para o baile com os amigos. A Santa Cruz do cozinheiro é assim: à noite, o cheiro da fritura dá lugar à fumaça das boates, ao cheiro de álcool, de cerveja. Para ele, ambos são uma satisfação. Adão se realiza primeiro fazendo os outros felizes, depois, tentando ser feliz.

Posto Tapuia. À medida que a noite caía, os jovens iam tomando conta das mesas estrategicamente distribuídas, disputando espaço com os carros que chegavam para abastecer. Por cima do balcão, Adão Freitas Rodrigues observava tudo, atento a cada passo da gurizada. Enquanto na rua a música e a cerveja gelada animavam a noite, dentro da cozinha Adão se preocupava em caprichar no bauru ao prato e no sanduíche aberto, suas especialidades. Tanto que há pouco tempo uma amiga antiga, dos tempos do Tapuia, lhe fez um pedido muito especial: preparar dois filés à parmeggiana para uma viagem. A comida foi congela-

Vanderlei Rodrigues da Silveira, 39 anos, ganha a vida vendendo relógios na rodoviária de Santa Cruz do Sul, há muito tempo e com muita alegria

ria uma coisa em sua vida, teria saído antes de Rio Pardo, onde morava, há 17 anos atrás, pois foi na capital do fumo, que ele encontrou seu lugar no mundo, no tempo e no espaço. Para ele não tem nada de ruim na cidade da Oktoberfest, com exceção dos assaltos, o qual ainda não foi vítima, mas que acha que um dia, poderá vir a ser.

Viver, morar e trabalhar em Santa Cruz é a felicidade em toda sua plenitude. Pelo menos é o que sente e transmite este batalhador santa-cruzense, que se relaciona muito bem com a sua cidade, de forma tranqüila, bem humorada, sem pressa e sempre usando o tempo e os relógios a seu favor.

» As Vendas Como se fosse o ponteiro de um relógio, fica marcando seu território na rodoviária, em círculos, de forma assídua, freqüente, marcante e ostensiva, para que não passe despercebido pelos passageiros, e isso, sem se cansar e nem se importar com o tempo. Como Vanderlei se considera realizado com a vida que leva, não se importa com os “não”, que recebe durante as vendas. Para ele, o que importa, é quantos “sim”, receberá por um dia de trabalho. Vender relógios na rodoviária de Santa Cruz foi uma ótima idéia deste vendedor ambulante, pois é justamente neste local, que todos estão de olho nas horas, com exceção de quem está sem relógio, o qual passa a ser imediatamente, um forte candidato à cliente do Vanderlei. Como quase todos são escravos das horas, tornase imprescindível usar um relógio diariamente, coisa que alguns não se dão conta, com exceção do Vanderlei, que vive com dezenas deles o dia inteiro, mesmo não precisando cumprir horário algum.

Cláudio Froemming

Na década de 1970 o Posto Tapuia era o ponto de encontro da cidade. Quando o movimento diminuía, era a vez do cozinheiro ir pra festa

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Santa Cruz é uma cidade muito bonita e limpa, mas o povo daqui é bastante preconceituoso e desconfiado. Carla Hammes 24 anos, estudante 7 anos em Santa Cruz

Carine Haas 20 anos, doméstica 3 anos em Santa Cruz

A cidade é linda, boa de se morar, mas as pessoas são muito fechadas em Santa Cruz, fazendo com que as pessoas de fora demorem para conquistar seu espaço.

Gilmar Schroder 44 anos, vigilante 40 em Santa Cruz

É uma cidade que está expandindo, mas falta planejamento. Acho que deveria ter mais emprego e um meio de habitação mais acessível para as pessoas, pois o aluguel é muito caro aqui.


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A doce Santa Cruz de Dona Valme

Uma bolsa de cartas e uma cidade

Roseane Bianca

Débora Nunes

ara Dona Valme, Santa Cruz tem cheiro, forma e gosto de cuca. Cuca que aprendeu a fazer aos cinco anos de idade, quando deixou sua cidade natal, Agudo. Primeiro por necessidade, mas com o tempo a obrigação virou prazer. Enquanto os pais trabalhavam na roça, ela cuidava da casa e assumia a cozinha. A Santa Cruz de Dona Valme tinha panelas, pratos e talheres pela manhã. Livros, cadernos, lápis pela tarde. Ela seguiu na adolescência assim, ora estudante, ora doméstica, e a comida deu um tempero a mais ao aprendizado. A necessidade de ajudar nas tarefas domésticas foi o fermento que fez crescer a paixão de Dona Valme pela cozinha. Quando concluiu os estudos, começou a trabalhar em um escritório de contabilidade. Por dois anos, a Santa Cruz de Dona Valme foi sem graça, sem gosto. Pouco açúcar e muitos papéis. Não por muito tempo. Logo começou a trabalhar em um engenho de arroz, onde recebeu propostas para morar em cidades grandes, como Porto Alegre e São Paulo. Mas lá não teria o mesmo gosto que aqui, afinal, os ingredientes são diferentes. Com farinha, leite, ovo, açúcar e margarina, Dona Valme faz a sua Santa Cruz. E esta receita vem dando certo desde a sua infância, quando cozinhava em casa, até hoje, quando faz em média cem cucas por semana na padaria onde trabalha há cerca de cinco anos. Mas o começo não

ma bolsa com histórias inusitadas, a vida da cidade pode estar lá dentro. Sexta- feira, uma e meia da tarde, 10 quilos de cartas para serem entregues em uma hora. Percorrendo parte da Rua Ten. Cel. Brito em exatamente cinquenta minutos, as correspondências foram entregues. Cartas de amor, de cobrança, sedex, tudo isso dentro de uma bolsa com alguns quilos para serem entregues. Um senhor de 58 anos, tranqüilo, de passos rápidos e muito trabalho a fazer. Nei Berté caminha em média 4 quilômetros por dia entregando correspondências, os homens podem carregar até 10 quilos e as mulheres até 8 quilos. Quando falam em Santa Cruz, Nei lembra da festa do alemão, a Oktoberfest. Nei Berté, 58 anos, trabalha há 28 anos no correiro da Cidade, gosta do que faz e se acha bem conhecido pelos moradores de Santa Cruz. “A gente é bem visto na cidade pelo que faz” explica ele. Por ser tão conhecido poderia até se candidatar a político, mas o carteiro explica que não gosta de política. Nei é filho de descendentes italianos mas como mora em cidade de alemão, acha as pessoas de Santa Cruz do Sul bem educadas, que recebem bem as pessoas que não são daqui, “são pessoas bem amigas”, ressalta ele. A única coisa que Nei acha ruim é para atravessar as ruas. Nesta uma hora de entrega das correspondências ele teve que colocar o pé na rua e seguir em frente se não os carros não dei-

Morar em Santa Cruz é morar em uma cuca. Gostosa, prática e agrada a todos

Há 28 anos ele carrega quilos de histórias pelas ruas de Santa Cruz do Sul e vê a cidade como uma terra hospitaleira

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COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

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foi assim. Em vez de panelas, eram vassouras. Dona Valme começou a trabalhar na padaria como faxineira. Aos poucos, Santa Cruz foi perdendo o cheiro de alvejante e ganhando o cheiro tentador das cucas. Cheiro esse que é o suficiente para satisfazer seu desejo de comer.

Márcia Melz

» Doce trabalho Cheiro que perfuma a cidade todas as tardes, de segundas a sextas-feiras, quando Dona Valme adianta as coberturas, e todos os sábados, das 7h às 19h, quando o movimento é intenso. São 12 horas dedicadas à Santa Cruz. E o tempo livre é dedicado às... cucas! Em casa, os ingredientes são os mesmos, mas a quantidade é menor, e a responsabilidade também. As cucas feitas na padaria são pedaços de Santa Cruz. A cidade vista por turis-

Para viver é ótima, mas para sobreviver em Santa cruz não é fácil. Emprego tem bastante, mas só para quem tem boa qualificação e ensino superior, pois os que não tem ficam de fora. Eloir Rodrigues da Silva 21 anos, auxiliar de produção 2 anos em Santa Cruz

Muito boa, eu adoro morar aqui, é ótimo. E gosto de brincar e passear no shopping, o problema é que ele é muito pequeno. Deveria ter mais um shoping e de dois andares.

Helena de Oliveira 10 anos, estudante Sempre morou em Santa Cruz

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tas dos mais variados lugares, que atribuem ao município os mais diversos sabores. Açúcar, côco, uva, requeijão. O gosto fica a critério do freguês. Ao mesmo tempo em que prepara Santa Cruz para quem vem de fora, Dona Valme sente o gosto e o cheiro da infância que viveu na Linha Pinheiral. Época em que subia num banquinho para alcançar o fogão e cozinhar para os pais e para o irmão mais novo. Uma fase difícil, e embora amarga, é lembrada como muita doçura. Foi esse o sabor que possibilitou à Dona Valme a oportunidade de estudar e hoje garante à cuqueira a felicidade e a realização profissional. Quem visita a cidade pode levá-la embalada em uma caixinha para viagem. A locomoção segura e higiênica é atestada por Dona Valme, que garante um prazo de mais ou menos três dias de conservação. Exceto a Santa Cruz enfeitada de frutas, que exige consumo em curto prazo. Abacaxi, laranja, maçã, são algumas delícias que dão um colorido e um sabor a mais às cucas. E o que colore e adoça a vida da cuqueira Valme é fazer o que gosta na cidade que ama.

É uma cidade bonita e tranqüila, o único problema é na saúde. Demora muito o atendimento para quem depende do SUS.

Josiane 22 anos, caixa Sempre morou em Santa Cruz

xam passar. Mesmo sendo de descendência italiana Nei acha muito mais fácil lidar com o alemão. Deve ser por isso que ele gosta muito da cidade em que vive. » Uma vida tranqüila O carteiro feliz da vida diz que não troca Santa Cruz por nada. Acha uma cidade tranqüila de morar. “Gosto daqui porque nasci aqui, é uma cidade desenvolvida, tem uma universidade, amanhã ou depois se os filhos quiserem estudar têm essa oportunidade. Geralmente quem vem de fora não vai embora e fica morando aqui porque gosta da cidade”, conclui Nei. O trabalho de carteiro também é bem visto pelos moradores da cidade. Ary Filter, porteiro de um prédio onde o carteiro deixa as correspondências, diz ser um trabalho bem feito, “os carteiros de Santa Cruz trabalham bem, são bem educados”, explica Ary. A comerciante Luciane dos Santos também gosta do trabalho, “eles tem que ser rápidos pois deve ter muita carta para entregar”, fala ela. Se não fosse carteiro Nei seria veterinário, gosta muito de bichos, só acha que em alguns bairros da cidade existem muitos cachorros, “daí fica complicado entregar correspondências, mas no Centro é tranqüilo”, conta ele. Nei já teve a oportunidade de trabalhar internamente no correiro, mas prefere continuar entregando correspondências, pois, segundo ele, faz muita amizade assim.

Débora Nunes

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Lembranças que usam hábitos

A farda que veste Linda

Do cheiro de vela à fumaça dos ônibus. Das relíquias guardadas no fundo do baú, para as estantes de um apartamento. Roupas não são mais as mesmas, hábitos que mudam, alma que se transforma

Para algumas pessoas, caso de Linda Muller, a cidade se traduz pelo uniforme de trabalho, e que se transforma em decorrência de uma gravidez, por exemplo

Fernanda Almeida o convento, às 22 horas, todos dormiam. Nesta hora, em Santa Cruz se iniciava a nova vida de Rosaura Batista Carneti. Por três anos, a jovem de 22 anos, ficou confinada no cenóbio (nome do convento), abdicando da liberdade em nome de um sonho de criança: ser freira. Apesar de ela sonhar em ser freira, a dura rotina como noviça fez com que ela saísse em busca de novos horizontes. Durante esses anos de santidade, os sonhos de Rosaura mudaram. Sua percepção de mundo não cabia mais no claustro. As manhãs escuras de orações dentro do convento e a vida regrada por promessas de cônjuge com Deus estavam enfraquecidas. Rosaura Batista Carneti sentia que aquele futuro estava longe das suas expectativas. A rotina no convento, a própria pregação, pareciam-lhe hipocrisias. Ela queria liberdade! Quando o encanto infantil que a prendia à vida doutrinária se desfez, eis que uma nova porta se abriu. Enquanto seus sonhos mudavam e os olhos se revestiam daquele brilho intenso de esperança, que somente a criatividade humana pode produzir, Rosaura concluiu sua ação a partir daquele instante: estudar na Universidade de Santa Cruz do Sul. Repensando em quais atitudes tomar em busca desse desejo, a jovem procurava uma nova janela, novos ideais. A visão por essa janela revelou a esperada liberdade. Um novo desejo, um novo futuro, nem melhor, nem pior, porém diferente.

Rodrigo Nascimento anta Cruz é uma farda de cor cinza. O que deixa ela melhor é o sorriso, a espontaneidade e a feminilidade de quem a usa e às vezes não pode ser mulher. A vida é dura para quem dá vida à farda. Homem, mulher: não existe gênero quando o assunto é trabalho. Pelo menos na condição de policial, não. Ela vê a cidade sob o aspecto da segurança. É seu dever manter a ordem e a harmonia, mesmo que, por muitas vezes, possa lhe custar alguns pontos. Pontos de agulha, que fecham os buracos, de uso e de bala também, porque faz parte do ofício enfrentar o crime, mesmo que muitas vezes o alvo seja a própria farda, ou quem a usa. Quem usa deixa a farda bonita, porque empresta o nome; coincidência do destino ou não, Linda, que se apaixonou ainda criança, pela farda, hoje veste e orgulha-se de ser bonita, a farda nela fica linda. Usa brincos, batom, maquiagem. Com doses moderadas de vaidade, ela embeleza o recorte da farda, que usa no compromisso social de zelar pela segurança de Santa Cruz. E reclama: “Antigamente o pessoal abanava pra gente. Hoje, joga pedras”. Consternada, fala da falta de respeito à profissão que escolhera, aos sete anos, e da qual tira o sustento para os filhos Vitor e Vitória. Vitor também se apaixonou pela farda da mãe. Ela, preocupada, diz não querer que ele seja policial. “Não quero que meu filho seja alvo de pedras”. Ele insiste, dessa vez querendo

Porém, sua chegada na cidade não foi muito acolhedora. Apesar de viver por três anos seguindo regras, quando afirmou sua liberdade negou as obediências. Viveu momentos de profundo aconchego familiar dentro do convento, entretanto sua recepção foi duramente fria e amedrontadora no seu primeiro lar. A cidade alemã era como a casa das freiras, a desconfiança dos santa-

Tudo de bonito que temos foram nossos antepassados que fizeram. A cidade já foi limpa, rica, próspera. Ainda é atraente, em pontos como a Unisc, mas precisa retomar o crescimento. Maria Leni Zimmer Amicone 61 anos, professora aposentada Sempre morou em Santa Cruz

cruzenses eram as marcações diárias das irmãs. Muita coincidência, acaso ou aparência? Mas Rosaura continuava tendo que enfrentar mais essa batalha, longe da família, cheia de medos e frustrações, mas munida de muita coragem e objetivos. De revolucionária do convento, virou estagiária da prefeitura, trabalhando no desenvolvimento social, luta por justiça e importa-se em levar alegria para as crianças carentes. Às 7 horas da manhã sua rotina começa novamente, mas desta vez é no bairro Faxinal, 40 minutos de caminhada e enfim chega ao seu destino, com os pés cansados, porém com o coração aliviado, finalmente

Como uma cidade bonita, calma, tranqüila, um lugar bem bom de se morar também. Catiussa Baierle 20 anos, comerciária 6 em Santa Cruz

Marinês Henckes Frey 19 anos, estudante 1 ano em Santa Cruz

seu futuro está se aproximando, seu desejo se torna realidade. Seu novo lar mudou de nome, hoje não se chama mais convento, muito menos pensão. Seu aconchego familiar chama-se edifício Juliech, seus vizinhos são agora a sua nova família. Seu novo sonho, chama-se educação física, sua nova batalha chama-se Unisc, seu objetivo chama-se futuro, essa é a palavracom a qual a jovem define Santa Cruz do Sul. Hoje, costuma tomar cerveja, sair com as amigas, fazer jantas e festas pela cidade. Mesmo assim, sempre quando passa na Rua Ramiro Barcelos, faz o sinal da cruz ao ver a Catedral.

É um lugar onde é difícil de se fazer amizades. Há poucas opções de lazer. Em comparação com outras cidades, Santa Cruz do Sul é ainda pequena, o que a faz boa para morar, tranqüila.

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COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

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Os primeiros dias, semanas e meses de Rosaura foram como no convento. As manhãs escuras de orações deram espaço às caminhadas matinais na Avenida do Imigrante, as promessas de celibato foram substituídas de cara por uma paixão adolescente. E, ao deixar os votos castos como cônjuge de Deus, Santa Cruz acolheu mais uma jovem que agora quer esquecer o passado.

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a farda do exército. Mais calma, diz que tudo bem. Mas não convence. O destino assusta Linda. Mesmo apaixonada pela farda, morre de medo que algo lhe aconteça. “Rezo sempre que um colega sai; quando eu saio, faço o sinal da cruz”. Católica, diz que os filhos também rezam pelo bem-estar dela quando está “na rua”. » Apaixonada “A cidade é linda” – Tão bonita e generosa que empresta o nome, que vira adjetivo. Assim como a farda, Santa Cruz é uma paixão na sua vida. Natural de Barracão, interior de Vacaria, não volta para as suas origens porque diz que Santa Cruz do Sul é a terra que escolheu para viver. Olhando o horizonte, como que lembrando o tempo de criança, quando a farda era um sonho, ela fala que é feliz, que gosta da vida na cidade, mesmo preocupada com “gente que não gosta de polícia”. Momentos engraçados foram proporcionados pela farda. Numa blitz, junto com outras fardas e paixões particulares pela profissão, Linda teve vontade de rir. “O menino ficou tão nervoso que pedia pra ir ao banheiro”. Sorri Linda, mostrando a beleza de uma linda mulher, ao contar que estava na dúvida se mandava o nervoso ao banheiro ou caía na gargalhada. A farda não deixa. Um dos requisitos para usá-la é ajustar-se a ela, e isso implica, entre outras coisas, não rir; pelo menos não em público. A farda não se dobra, não se transforma. Deve ser respeita-

Uma cidade cheia de verde e não só centro, como também nos bairros. É um lugar especial porque foi aqui que tive meus seis filhos e aqui que os vi crescer.

Marliese Cecilia Zinn 73 anos, aposentada Sempre morou em Santa Cruz

da. Porém se ajusta, quando a necessidade obriga. Ela está diferente, com as formas mais arredondadas do que antes. Mais solta, mais leve, com mais vida. Linda está grávida de seis meses. Em seu ventre, guardado pelo cinza da farda, Pedro Henrique se prepara para ser o mais novo santa-cruzense, filho da mãe Linda e da farda. A vida se renova, a farda apertada se alarga e a esperança cresce. Porém Linda não gosta, mas, regras são regras. Desde que soube que está grávida não pode ir para rua. Passa suas horas, turno de seis, por causa do pequeno Pedro, guardada dentro da unidade da polícia. Olhando a cidade, que para ela é linda. A farda de Linda não vê a hora de voltar para rua. “Vai ser só até o Pedro completar seis meses”. Por hora ela descansa, na ânsia de voltar para a rua, para cuidar da segurança de Santa Cruz do Sul.

José Amauri Rodrigues 58 anos, taxista Nasceu em Santa Cruz

Melhor impossível, para mim a cidade é perfeita. Apesar que muita gente não gosta, eu gosto.

Rodrigo Nascimento

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Como uma cidade normal, que tem coisas boas, como o centro onde gosto de passear com meu filho, olhando as vitrines, tomando sorvete e coisas ruins, como as muitas pessoas falsas que andam por aí.

Nelcinda Braga 45 anos, doméstica Sempre morou em Santa Cruz


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À noite tudo se transforma Bebel com olhar atento acompanha as modificações que acontecem ao longo da escuridão nas calçadas da cidade, tudo se passa bem a sua frente Luciana Mandler Santa Cruz de Bebel se transforma durante a noite. Bebel, não aquela da novela das oito que tinha amantes ricos e se dava bem, mas sim uma travesti que se monta para ganhar a vida. A calçada em que batalha carrega o silêncio e a solidão das madrugadas. Mas e por que não dizer também que é onde há diversão? Paradas repentinas de automóveis, na sua maioria com vidros cobertos por películas, dão o tom da noite. Para Bebel, o ar da cidade vazia dá lugar a carros que param em frente ao seu ponto ou a alguns metros à frente. Com casais, a procura do novo e do diferente. Homens com vontades e curiosidades, desejos e pedidos que só ela pode realizar. O Sol baixa e a correria começa. Vestida com roupas provocantes definindo as curvas de seu corpo e equilibrada no salto apenas como forma de disfarce, entra em cena a mulher fatal. Entre as 21h até as 6h, a dona da quadra é ela. Nessa transformação entra como cenário de Santa Cruz o mundo do sexo, das drogas, dos roubos e da perversidade que apenas na calada da noite podem ser observados. Bebel vê daquela esquina o mundo que poucos têm oportunidade de ver. A jovem se depara com muitas colegas de trabalho que além de venderem o corpo, acabam entrando no caminho das drogas, consumindo entorpecentes e o pior de tudo, roubando para conseguir se manter, pois às vezes o dinheiro do programa não basta para os gastos com figurinos, alimentação e até mesmo com aluguel.

COMO VOCÊ VÊ SANTA CRUZ?

A

Para Bebel, essas situações não fazem parte da sua vida, apenas de seu cotidiano. Ela tem plena consciência do que faz e ainda aconselha para que não cheguem a este ponto. Apesar dos imprevistos das madrugadas, enquanto ali permanece, consegue ter uma visão positiva das ruas da cidade. Não tendo tempo de pensar no passado, Bebel traça metas para alcançar dia após dia. Se enquanto fica à espera de cliente tem por perto alguma colega de calçada, as piadas e brincadeiras servem como passatempo.

A LINGUAGEM DA NOITE DE SANTA CRUZ Nas noites das travestis, a linguagem usada não é a mesma do dia-a-dia. Podemos encontrar muita semelhança na escrita e no significado do candomblé. O candomblé, por sua vez, nasceu da cultura afro, através dos escravos. Palavras que não encontramos no dicionário Aurélio surgem como metáforas adaptadas de acordo com o soar das madrugadas dessas transformistas. Mas não há motivos de espanto, pois essa mistura de gírias faz com que o diálogo aconteça. Ocó - Homem Mapoa - Mulher Penca - Velha Apeti - Peito Edi - Bunda Manta - Gordura

Acué - Dinheiro Axo - Camisinha Cheque - Cagado ou Cagou Racha - Vagina Olodum - Fedido Mana - Gay

Márcia Melz

» Esquina Na calçada escura onde apenas a luz do poste ilumina o rosto de Bebel, se passam situações inusitadas. Situações às vezes constrangedoras, como pessoas que não respeitam o trabalho que ela faz enquanto mulher, e que por ser na noite acaba sendo menosprezado. Mas Bebel não se abala, tem uma visão muito além dos preconceitos. Enquanto o tempo passa em seu ambiente de traba-

lho e a espera entre um cliente e outro a acompanha, a travesti mantém sempre o sorriso no rosto e a simpatia transparece em sua face. Entre um passo e outro na calçada, Bebel se depara com um sonho. Não é por estar nesta situação, que ela deixa de sonhar. Mas que sonho seria este? O sonho de fazer uma faculdade. Para muitos pode parecer um sonho mesquinho, mas para ela depende de muito esforço e determinação. Mas Bebel quer ir além, quem sabe depois de realizar este sonho, abandone essa profissão, mesmo gostando do serviço. O silêncio, que tanto acompanha Bebel pela madrugada escura e fria, faz com que somente ela, a transformista, perceba as vidas existentes nas esquinas da cidade.

Uma cidade que já foi muito melhor, com mais empregos. Hoje as pessoas são mais egoístas, estão indiferentes ao que acontece com as outras. E para piorar, os políticos só aparecem no tempo das eleições.

Ivani Mueller 56 anos, doméstica Sempre morou em Santa Cruz

Carina Müller 33 anos, comerciária 13 anos em Santa Cruz

Eu vejo uma cidade muito boa para se morar. Tranqüila, calma, limpa, organizada.

Sidnei Teixeira Machado 24 anos, vigilante 2 anos em Santa Cruz

Vejo uma cidade que oferece serviços, oportunidades de emprego, que dá uma boa expectativa de vida. Deveria ter uma atenção maior com a segurança. Ainda é segura, mas já foi mais.


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