INFOGRÁFICO
EDITORIAL
Um jornal de matérias desiguais Mesmo que você, caro leitor, cara leitora, recém esteja na segunda página do jornal, já deve ter desconfiado que esta edição do Unicom – a segunda do semestre – é diferente da anterior principalmente pelo conteúdo. Se, antes, dirigimos nossos esforços em torno de “hábitos” os mais diversos, dessa vez não há uma preocupação temática exclusiva.
Como o Unicom se multiplica O primeiro semestre de 2010 chega ao fim com uma nova e importante regra instituída, no que toca a produção jornalística experimental da Unisc: convergir. Em sintonia com movimentos verifi-
cados em nível mundial, o Unicom vem há dois anos apostando em ultrapassar os limites do tradicional suporte impresso e estender o seu conteúdo para outros espaços. Deixamos de ser apenas uma fon-
te de leitura e nos transformamos também em objeto para se assistir, ouvir, clicar e interagir. Entenda o processo que faz do Unicom um veículo jornalístico absolutamente multimidiático:
Ou seja, todas as matérias da edição são diferentes. Ou desiguais. Se isso agora é assim; se, dessa vez, cada reportagem tem um tema específico, é porque já exercitamos, na edição anterior, o trabalho em equipe por meio de um produto que exigiu atenção de todos em relação ao mesmo propósito. É chegada, portanto, a hora de utilizarmos esta habilidade; esta capacidade de trabalhar em grupo e em torno de um mesmo propósito, mas de forma individual, ainda que voltados a um objetivo maior, neste caso o Unicom.
UNICOM 2010
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Mais que exercitar capacidades, ainda que também o façamos, estamos, com isso, buscando desenvolver, desde a instância formação, a compreensão que, particularmente quando o assunto é jornalismo, bem poucas coisas são feitas individualmente.
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Também porque entendemos que, quando o assunto é fazer jornal, a compreensão de que a essência do trabalho é a equipe, mesmo quando estamos sozinhos em uma pauta, é fundamental para o bom desenvolvimento do processo como um todo.
EXPEDIENTE UNISC– Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul – RS CEP 96815-900 Curso de Comunicação Social - Jornalismo Bloco 15 – Sala 1506 Telefone: 51 3717-7383 Coordenadora do curso: Fabiana Piccinin
Editor-chefe Demétrio Soster Editora Marília Nascimento Projeto gráfico Vanessa Kannenberg Editor de arte Henrique Scherer Editor multimídia Pedro Piccoli Garcia
Reportagem Andréia Bueno Fernando Doebber João Cléber Caramez Luana Backes Marília Nascimento Patrícia Parreira Pedro Piccoli Garcia Renan Silva Rosibel Fagundes
Ilustração Amanda Mendonça Giuzepe Fontanari Mariana Pellegrini Impressão Graphoset Tiragem 500 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Este Jornal foi produzido na disciplina de Produção em Mídia Impressa, ministrada pelo professor Demétrio Soster. Colaboração dos alunos da disciplina de Jornalismo Impresso II.
Siga-nos em: @JornalUnicom
BLOG Para saber mais sobre o processo do jornal e conferir conteúdo exclusivo: blogdounicom.blogspot.com
Onde não há balas de goma DA ESTRADA À TELONA
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Os rolos de filmes viajam de cidade em cidade cortados em partes e dentro de latas redondas
Nada pode ser menos romântico que o processo de preparação de filmes para serem projetados nas telonas de cinema: antes de chegarem lá, passam por mãos e máquinas PEDRO GARCIA REPORTAGEM E FOTOGRAFIA
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A máquina é ligada: o filme roda da torre para o projetor, é jogado na tela, e volta à torre
BASTIDORES
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O extremo acessível do rolo (abertura do filme) é instalado no projetor
risco de uma cabeçada é eminente. Saído das latas, o rolo cortado em partes deve ser recomposto em uma torre para que o filme rode do início ao fim na tela. As torres são máquinas altas, com duas grandes espirais de aço chamadas rolões. Na de baixo, a menor, o rolo é instalado para depois deslizar por meio de uma bobina para o de cima. O fim de um rolo é cuidadosamente unido ao começo de outro com uma fita adesiva, e assim o filme vai se completando na espiral maior. Essa montagem começa pela última parte, de maneira que ao final o extremo acessível do rolo na máquina seja a abertura do filme. Antes de passar para o projetor, ainda são anexados os trailers, isso quando estes vêm em latas menores separadas. Projetores são geringonças pesadas e caras – chegam a custar 350 mil reais. Apontam sempre para uma janelinha, através da qual a imagem atravessará a sala e se difundirá na telona. Um detalhe interessante é que os filmes saem da torre e chegam ao projetor invertidos, de cabeça para baixo. É a lente da máquina que irá distorcer a imagem durante a projeção. Na parede, um relógio repousa perto de uma folha onde estão apontados os horários das sessões. Pontualmente, apaga-se as luzes, aciona-se um botão e começa a peregrinação: as cenas trilham do topo da torre para a lente do projetor e retornam para a espiral inferior. No meio do caminho, voam para a tela e assim se configura o ritual espetacular praticado em todo o mundo há mais de cem anos. O operador atento verifica o enquadramento de vez em quando. Quando o último espectador deixa a sala, o rolo é rebobinado e a próxima sessão é aguardada. Não há pipoca nem balas de goma por ali, muito menos refrigerante. Tudo é muito concreto no quarto de onde brotam os sonhos.
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Com fitas adesivas, as partes são unidas, da última para a primeira, na chamada torre
O que um filme pode ter de inspirador, o seu processo de projeção em tela de cinema tem de enfadonho. Raramente a curiosidade de um espectador volta-se para a forma como os filmes se cristalizam em largas dimensões diante dos olhos. É um trabalho braçal, mecânico, que em nada lembra a poesia visual que desprende-se das telas – mas sem o qual, essa jamais existiria. A reportagem acompanhou uma tarde de trabalho nos bastidores do Cine Santa Cruz, um complexo de pequeno porte em um shopping center. Era sexta-feira, dia da semana em que a programação sofre alterações: títulos novos chegam, alguns deixam o circuito e outros ficam, mas saltam de uma sala para outra. Dois funcionários dividem-se na montagem e rodagem dos filmes. Antes de ganharem as telas, os grandes romances, as eletrizantes aventuras e as encantadoras fantasias são comprimidas em latas redondas. A grande maioria dos cinemas ainda projeta filmes em película, embora a tendência a médio prazo seja a digitalização generalizada. Os rolos, que de tão compridos parecem ser capazes de embrulhar arranha-céus, viajam enlatados entre cidades em caminhões ou ônibus, às vezes com identificação disfarçada para despistar a pirataria. O comprimento varia conforme a duração do filme, assim como o número de partes em que será dividido para o transporte – não há lata grande o suficiente para um longa-metragem. A preparação do filme para ser rodado leva cerca de meia hora. Tudo acontece em um compartimento isolado. No caso do Cine Santa Cruz, para se chegar lá é preciso passar por uma porta discreta entre as guloseimas da bomboneira, e uma escada em caracol. Os projetores ficam em uma espécie de sótão, nada recomendado para claustrofóbicos ou quem seja alto demais – o
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Quem disse que freira tem que parecer freira? Elas não seguem os padrões tachados pela sociedade para religiosas. Assumiram um jeito diferente que conquista os jovens com quem trabalham todos os dias MARíLIA NASCIMENTO REPORTAGEM
quem está perto. Sem contar o sorriso sempre presente. Hoje, o colégio está funcionando a pleno vapor, e ela é a coordenadora da tesouraria. Depois de quatro anos na cidade, em 2009, Irmã Saionara ganhou a companhia da amiga, a Irmã Sônia. A chegada da futura diretora ao colégio e à cidade, não passou tão despercebida quanto no caso da amiga. Imagine uma religiosa que chega à uma cidade pequena e com certos modelos impostos como corretos e únicos, usando mega hair, aparelho nos dentes, e freqüentando a academia todos os dias às 6h30min. Obviamente causou comentários e estranheza, mas nem por isso foi mal tratada ou recriminada. Apenas teve que conquistar o mundo a sua volta, e assim o fez, adquiriu a confiança e o carisma de todos que a rodeiam. Hoje, a diretora Irmã Sônia, fala com um brilho no olhar do pouco tempo que está à frente da instituição, de um jeito que só quem gosta do que faz pode falar. A formação acadêmica comprova isto. Graduada em Letras pela Unifra de Santa Maria, fez especialização em Gestão de Administração, Mestrado em Educação pela Unisinos, e agora está escrevendo artigos para iniciar o Doutorado. Ainda não
definiu o tema, mas enfatiza que será na área da Educação e também ligado à Administração “É o que eu gosto.” Na comunidade da Congregação em Rio Pardo moram cinco Irmãs, todas desempenham atividades relacionadas ao colégio. E algumas já estão ali há mais de 50 anos. As mais novas na idade e na convivência são as duas jovens, amigas de longa data, mas que nunca haviam trabalhado juntas. Hoje elas convertem a união, disposição e vontade que têm de sobra para fazer cada vez mais, e a cada dia ver que fizeram o bem para o próximo. Seja em atividades do colégio, ou em atividades extras. Se Irmã Sônia já está iniciando o processo para ser doutora, Irmã Saionara ainda é uma estudante da graduação. Todas as noites pega o ônibus e tem como destino a Universidade de Santa Cruz do Sul, onde cursa Ciências Contábeis. É neste período, o da vida acadêmica, a maior incidência de espantos, nem todos que a rodeiam na Universidade sabem que ela é religiosa, e quando descobrem ficam, muitas vezes, boquiabertos. Ela conta isso e se diverte: “Eu sou uma pessoa comum, não preciso e nem quero tratamento especial.“ Com a Irmã Sônia
MODERNIDADE
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LUCIANA BASTOS FOTOGRAFIA
Amigas de longa data, nascidas no mesmo dia, 26 de julho, e hoje trabalhando na mesma instituição. Em poucas palavras, estas são a Irmã Sônia e a Irmã Saionara, religiosas da Congregação do Imaculado Coração de Maria. Na aparência, elas são diferentes dos estereótipos que associamos às freiras: não usam o hábito e nem saias compridas. Usam roupas normais. São pessoas comuns que apenas escolheram o caminho da vida religiosa. Atualmente fazem parte da comunidade da Congregação em Rio Pardo, município da região central do estado, com pouco mais de 37 mil habitantes. Quem chegou primeiro à pequena cidade foi a Irmã Saionara, em 2005. Na época ela já trabalhava na área da contabilidade, e chegou ao Colégio Nossa Senhora Auxiliadora em um período complicado. A escola estava com problemas, corria o risco de fechar as portas. Com disposição e vontade de fazer acontecer, a Irmã contou com a ajuda de uma equipe, e novamente a escola estava no caminho certo, e ocupando o espaço que o nome e a tradição lhe reservam. Tudo isso é contado com orgulho, e um brilho nos olhos de alguém que tem como maior objetivo fazer o bem para
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Na foto acima, a Irmã Sônia com o mega hair, em 2009. Já na foto à esquerda, é ela atualmente, em seu escritório no Colégio Auxiliadora .
OPINIÃO
Geração tanto faz ANDRÉIA BUENO não é diferente. Quem passa por ela na rua não dirá que é religiosa. Por essas situações e pela maneira como agem, como falam, como tratam quem está ao redor, e pela maneira como se vestem, que elas fogem do modelo que a sociedade tem como padrão. Assumem um ar menos sério, mais próximo da realidade com a qual convivem. Todos os dias lidam com muitos alunos, de diferentes idades. E provam para quem quiser ver que fizeram esta escolha perpétua por conta própria, e com amor.
A ESCOLhA Em meados dos anos 80, a jovem Sônia Oliveira mudou-se com a família para o Paraguai, pelas promessas de terras mais baratas e férteis. Vários grupos familiares debandaram para o país vizinho nesta época, por isso também foram enviados religiosos brasileiros para a comunidade que havia se criado. As Irmãs da Congregação do Imaculado Coração de Maria foram para lá desenvolver trabalhos comunitários, e foi esta atividade que chamou a atenção da adolescente de 15 anos e a encantou. A menina não mais
voltou à sua cidade natal – Toledo, no Paraná. Quando retornou ao Brasil, foi direto para Canoas, onde fica a casa de formação da Congregação. Algum tempo depois, este também se tornou o objetivo da jovem gaúcha de Santa Maria, Saionara Ribeiro, que está na Congregação há mais de dez anos. Ela conta que a possibilidade de poder ajudar o próximo e acolher quem necessita a fez seguir este caminho. “É poder humanizar o sofrimento e os desafios das pessoas.” As coincidências entre as religiosas vão além do dia do aniversário. No início, a aceitação da família não foi fácil. Irmã Sônia é a oitava de doze irmãos, e Irmã Saionara a caçula de cinco. Hoje as duas afirmam que as famílias são unidas, apesar da distância e dos caminhos diferentes que cada irmão seguiu. Quando ingressaram na vida religiosa e fizeram os três votos perpétuos, de castidade, pobreza e obediência, elas se tornaram partes de várias famílias. Afinal diariamente elas têm contato com inúmeros grupos familiares, seja hoje em Rio Pardo ou nas diversas cidades que já trabalharam. Juntas, as religiosas já passaram por mais de dez cidades em todas as regiões do Rio Grande do Sul.
Nunca fui muito adepta dos rótulos. Sempre detestei aqueles que se acham dignos de definir algo ou alguém. Não gosto pelo simples motivo de que, para mim, quando definimos certa coisa, estamos automaticamente pondo limites à isso, e inevitavelmente fazendo com que tudo o que se relacione à “coisa” em questão se torne exatamente igual. Mas as pessoas gostam mesmo é de dar “nome aos bois”. Definir gerações então, parece algo divertido. Vamos a um exemplo? Anos 80 é a geração do rock, da discoteca. Preciso confessar que ao ler a definição imagino uma galera de coturnos, roupas pretas, uma turma dançante, agitada, animada, com guitarras nas costas e cigarros nas mãos, uma turma que passa a festa e música o dia todo. O cenário imaginado pode não ser exatamente este, mas o sentido das definições insinuam isso. O óbvio é que não era só isso, não era bem assim. Em meio ao movimento citado, existiam objetivos sendo buscados, expressões sendo declaradas, paradigmas sendo quebrados em uma sociedade em constante construção, com jovens em busca de uma identidade. Nos dias de hoje, a coisa não vai muito além disso. Vivemos uma era em que a tecnologia domina todo e qualquer mercado de trabalho. A cada dia que passa, somos impulsionados a saber mais, a saber de tudo, bombardeados por informações de todos os lados e transmitidas de todos os jeitos. Precisamos ser bons alunos e não desviar o foco dos objetivos para o futuro, buscando assim excelência na vida profissional. Mas é preciso ter tempo para a família, prezar o diálogo e corresponder aos sonhos dos nossos pais. Isso tudo sem deixar de sonhar. É só saber o que se quer que a força do pensamento nos leva até lá. Aos 20 ou 21 anos de idade, não tente se declarar insatisfeito ou sem saber exatamente o que quer para o futuro. Veja só: estão agora nos definindo como uma geração “tanto faz”, uma geração whatever.
Como se não bastasse, hoje me encontro na tal geração que não quer nada com nada, que tanto faz e tanto fez, sou parte da geração whatever e isso me provoca um pesar sem tamanho. É injusto.
Galera, mostrem sua cara, declarem suas opiniões, lutem pelos seus espaços, antes que sejamos de vez considerados parte de uma geração que até nome estrangeiro leva, e que eu (me desculpem os mais velhos) discordo total e completamente.
CRÔNICA
Não concordo quando dizem que para nós tanto faz, ao contrário, nunca fomos tão esclarecidos quanto aos nossos gostos e vontades. Eu, aos 22 anos, sei bem o que eu quero e o que eu não quero para minha vida, e o mesmo percebo nos que me cercam. Que uns são mais decididos e persistentes que outros eu não posso negar, mas até definir esta como uma juventude indiferente, é demais.
bit.ly/unideka
Há menos de quatro anos, me encaixavam na tal geração canguru (aquela que não sai da proteção da mãe, sabe?), e isso já me deixava muito indignada, afinal, não me achava “imatura” por decidir morar com meus pais e assim garantir melhores condições de estudos. Me achava, sim, consciente!
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Uma vida conectada no mundo real Uma dona de casa viciada em internet e fotografia. Aos 50 anos, a santa-cruzense possui histórias surpreendentes, e vive o presente em conexão com o passado
REDE
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RENAN SILVA REPORTAGEM E FOTOGRAFIA
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Todas as noites, Rosy coloca o pequeno Iohan para dormir antes da novela das oito. A dona de casa tem 50 anos. Sua rotina noturna é simples: assistir ao folhetim, cuidar dos afazeres domésticos e sentar-se em frente ao computador. Ela se diz uma viciada em internet, mas não acha isso ruim. Seu nome real é Rosmary Moreira Waechter, mas ela gosta de ser chamada de Rosy. Seu vício começou há cerca de 12 anos, e desde então fica, pelo menos, até às 3 horas da manhã conectada. Fã de fotografia, adora fazer montagens e manipulações, e usa a rede para pesquisar sobre o assunto. Além disso, recebe muitos e-mails diariamente (no mínimo 50), e passa muito tempo respondendo-os. Não costuma ler nada em papel também. “Até a Gazeta do Sul, a gente assina mas eu prefiro ler pela internet. Acho menos cansativo.” As facilidades da internet também proporcionaram à Rosy uma das melhores experiências de sua vida, como ela mesma relata. “Tinha um concurso no programa da Ana Maria Braga, e eu mandei uma receita. Quem fazia essa receita era minha vó, de uma torta de batata doce com nozes. Não lembro quantas mil receitas estavam concorrendo, e eu tirei o primeiro lugar.” Na
época, Rosy ganhou um prêmio de dez mil reais e uma viagem com acompanhante para os estúdios da Rede Globo, em São Paulo, onde tomou café com a Ana Maria e participou das gravações de duas edições do Programa do Jô, a quem ela chama de velho gordo e rabugento. “O Bira, o Tomate e o Derico são muito simpáticos, mas o Jô é um velho chato que só fala palavrão.” Em São Paulo, ficou hospedada em um hotel cinco estrelas. Mas essa não é a única curiosidade sobre Rosmary. Ela conta ainda que quase casou pela internet. “Faz uns sete anos que terminamos. Nos conhecemos no ‘Alma Gêmeas’ - nem sei se o site ainda existe – e ele era uma pessoa bem parecida comigo.” Após a troca de e-mails, o namoro começou. Recursos como MSN e webcam ainda estavam engatinhando. Mesmo assim, namoraram via internet e telefone por um ano e dois meses. “Teve uma noite em que ficamos da meia-noite até às 8 (horas) da manhã direto no telefone.” Após esse período, ele começou a pressionála. “Ele queria me conhecer, queria vir me ver.” Mas Rosy não queria. Sentada à mesa, olhar distante, como se estivesse revivendo aquele momento em seus pensamentos, confessou que
tinha medo. Medo de que o encanto do relacionamento pela internet fosse quebrado. Ele ameaçou terminar o namoro, e ela aceitou conhecê-lo. A relação durou cerca de 5 anos. O paulista, descendente de japoneses, vinha visitá-la com frequência. E ela também costumava ir a São Paulo passar alguns dias. “Mas eu não gosto daquela cidade. Muito violenta, muito feia.” Além disso, Rosy retrata o medo que sentia a cada visita ao namorado. “Ele tem dois filhos. Um é ‘meio gênio’, e passou na USP, em Odontologia, em primeiro lugar. O outro, drogado, não aceitava nossa relação.” Ela conta que a todo instante a casa era invadida por traficantes. Eles levavam o que quisessem como forma de pagamento. “Na última vez em que fui, fiquei em um hotel, com medo.” Mas não foi essa a razão do término do relacionamento virtual. Mesmo tendo dois filhos, o namorado queria mais um. Rosmary submeteu-se ao tratamento, mas não conseguiu engravidar. Foi então que optou pela adoção. Ele se ofendeu com a ideia e a mandou escolher entre o relacionamento e o filho adotivo. O pequeno Iohan é o resultado de sua decisão. Emocionada, reconhece: “Tudo isso a internet me proporcionou”.
O 11 de Setembro que você não viu
ANDREIA BUENO REPORTAGEM
foto para colocar no mural da exposição, em homenagem ao irmão. Segundo Diana, tudo o que ele conseguiu foi chegar até a porta. Barrado pelo choro e pela emoção, apenas entregou o retrato ao porteiro.
ANTES
CASOS COMUNS
DURANTE
DEPOIS
EMOÇÃO
Casos como destas duas famílias são comuns entre os que vivem nos arredores de Nova Iorque. Mais comovente que escutar estas narrativas é saber o que ocorreu naquele dia por meio dos destroços, fotos, vídeos e ligações de trabalhadores que, de dentro do prédio, ligaram por socorro ao corpo de bombeiros (as ligações podem ser ouvidas no memorial pois foram grampeadas e salvas como arquivo de memória). Esse material faz parte de uma exposição que permite, ao visitante, apertar um botão e ouvir uma mensagem que foi deixada na caixa postal do celular de uma mulher chamada Jules por um dos passageiros dos aviões sequestrados. Uma mensagem de adeus. O local paralisa, sequestra os pensamentos, faz notar mais do que nunca que não importa a raça, a cor, a religião: somos seres que precisamos uns do outros, do amor do próximo. E se ainda, ao final desta matéria, tu não sentiste nada, termino reescrevendo aqui o que aquele homem declarou à sua mulher minutos antes de seu avião ter sido jogado contra uma das torres gêmeas (e eu espero que ele não tenha deixado para declarar aquilo somente naquele momento!): “Hey, Jules, aqui é o Brian. Ah, escuta... Eu estou no avião que foi sequestrado... Se as coisas não forem bem, e elas não me parecem muito boas, eu quero que você saiba que eu absolutamente te amo. Eu quero que você se saia bem, tenha bons momentos, o mesmo para os meus pais. Eu te vejo quando você chegar aqui. Eu quero que você saiba que eu te amo totalmente. Tchau, bebê, espero que eu vá te ligar!”
bit.ly/uniset
A três meses de o maior atentado terrorista contra os Estados Unidos da América completar nove anos, o povo norte-americano ainda chora suas perdas e se refere ao 11 de setembro de 2001 com tristeza no olhar e uma voz engasgada pela emoção. Naquela manhã, Sharon Maddern, americana que mora em Connecticut (estado que faz divisa com Nova Iorque), mãe de Derek, 12 anos, e Trevor, 11, sentiu o medo correr em suas veias desde o momento em que viu as imagens na televisão até quando finalmente conseguiu abraçar os dois filhos, que foram levados para casa minutos após a queda da primeira torre. Medo que persiste até hoje. “Você não faz ideia de como ficou a nossa vida após o atentado; Derek e Trevor não queriam mais dormir em seus quartos, todo barulho forte vindo da rua era motivo para que eles se escondessem e chorassem; tive que buscar tratamento psicológico para os dois”, relata. Enquanto para a família Maddern o final foi feliz, pois não perderam nenhum parente no atentado, para os Mc’laugh tudo foi muito diferente. John trabalhava em um edifício que ficava a uma quadra das torres gêmeas. Seu irmão mais novo trabalhava dentro do complexo do World Trade Center. “Eu me lembro de um barulho de motor de avião zumbindo nos meus ouvidos, quando olhei pela janela, tudo que avistei foi um avião enorme entrando em uma das torres”, conta John. “Ao chegar na calçada em frente ao prédio onde eu trabalhava, policiais seguravam todas as pessoas, impedindo qualquer um de chegar mais perto do local do que, até então, para nós era um acidente.” John puxa a respiração, levanta do sofá e caminha em direção à cozinha. De lá, resmunga: “Meu irmão foi um dos mortos naquele dia.” A nanny (babá) da casa da família Mc’laugh, a brasileira Diana Burigo, lembra que John conseguiu ir até o memorial do 11 de Setembro com a filha Meg (sete anos) somente no ano passado. Levou uma
FOTOS/INTERNET
Passados quase nove anos do maior atentado terrorista da era moderna, o medo e a insegurança ainda estão vivos na memória dos norte-americanos
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Um romance embalado pelos nós da internet O primeiro beijo de Diego Moura e Veridiana Aires foi ao nascer do sol, em março de 2008, aos pés da cruz no Largo do Redentor, em São Lourenço do Sul JOÃO CLÉBER CARAMEZ REPORTAGEM E FOTOGRAFIA
AMOR
bit.ly/unilove
hENRIQUE SChERER ILUSTRAÇÃO
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Em maio de 2007, Veridiana, bancária de 25 anos, adicionou o Diego, farmacêutico de 26 anos, no site de relacionamentos Orkut. Naquela época, era uma estudante de engenharia agrícola, da UFPEL (Universidade Federal de Pelotas). Ao lado da amiga Suelen, pesquisava comunidades relacionadas ao nativismo. Era viciada em internet. A foto do rapaz chamou sua atenção e pelo perfil, pôde perceber que ele gostava de nativismo. A guria era uma grande fã do cantor Jairo “Lambari” Fernandes. Deixou um recado que dizia assim: “Entrei por engano, mas gostaria de saber se tu tens a música Vai Coração, porque estou à procura.” Diego respondeu que tinha o vídeo. Ela gostou muito, achou o máximo. Os endereços de MSN (programa de mensagens instantâneas) foram tro-
cados. Logo em seguida, conversaram por muito tempo. O rapaz achou Veridiana “muito inteligente, uma guria de conteúdo. Sabia conversar sobre nativismo com consistência.” Mas era da distante Capão do Leão. Para ele, o negócio era só amizade mesmo. Foi uma semana de conversas sobre tudo. Dois meses antes, tinha rompido seu noivado e estava solteiro. Por coincidência, ela também tinha terminado um relacionamento há pouco tempo. Apesar do nativismo não combinar muito com tecnologia, os dois passaram a conviver juntos. O computador é parceiro do gaúcho. Logo depois, as conversas cessaram. Inclusive, voltaram para seus parceiros antigos. Diego reatou o seu noivado e Veridiana ficou noiva durante a Semana Farroupilha, em cima de um cavalo. Neste momento, os dois eram completamente estranhos um para o outro. Não tinham mais os laços que tiveram antes. Ela ficou solteira em novembro. Na sequência, em uma conversa com a amiga Clarissa, recebeu o convite para ir ao Reponte da Canção (festival de música nativista), no final de março. Para combinar os preparativos da viagem, Veridiana acessou o MSN. “E de repente, como se fosse um estalo, vi a frase do Diego: ‘São Lourenço me espera’.” Do outro lado, depois de romper novamente seu noivado, era um homem solteiro rumo ao festival. “Como a maioria faz, dei-
xei aquela frase como uma deixa para as gurias”, brinca ele. Pelo MSN, Veridiana puxou assunto, em razão da frase, e pediu a ele algumas dicas sobre a cidade. Diego conta que “já tinha uns casos arrumados por lá, nem dei bola pra ela.” Ainda falaram sobre se encontrar, mas na verdade, ela também já tinha um “esquema” para o festival. Tinha o costume de marcar os encontros pela internet. Diferente do Diego, que só a utilizava depois do contato pessoal. Já em São Lourenço do Sul, o encontro dele não deu certo. No final da noite de sexta-feira, estava na copa do festival. Nesse momento, mirou a morena. “Tinha muitas outras ali naquele lugar, mas quem me chamou atenção foi aquela”, relembra. Ele ficou em lugar estratégico, para que ela o visse. E viu. Depois de comentar algo com as amigas, veio para conversar. Ficaram muito tempo de bate-papo e para ele, “amizade já não tinha mais.” Diego pensou naquele momento que “primeiro devo conquistar as amigas, para reforçar minha boa impressão.” Não teve erro. Esse foi o seu grande trunfo.
O PRIMEIRO BEIJO Foram muitas conversas e algumas cervejas. Estavam todos entre amigos. Veridiana sofria o assédio de muitos no Bar da Cruz. Mas o escolhido foi o Diego. Era quase hora do sol nascer e, com a vista para a Lagoa dos Patos, nasceu o primeiro beijo. “Eu achava ele muito lindo, sempre tinha outras mulheres na volta. Nunca pensei que iria querer algo comigo.” O restante do fi-
nal de semana foi fantástico. Para ela, foi “uma aventura, não queria um envolvimento. Mas não aconteceu dessa forma como imaginei.” Voltaram para suas vidas. Diego em Santa Cruz do Sul e Veridiana, em Pelotas. O MSN foi a forma de matar as saudades. “As minhas atividades consumiam meu tempo e por isso nunca tive tempo de visitá-la”, define Diego. Estão guardados até hoje os depoimentos no Orkut. Foram 30 dias até o próximo encontro, na cidade dele. Para eles, “foi outro final de semana mágico.” A família dele já conheceu a moça. A segurança foi maior. Depois, apenas com o feriado de Tiradentes, Diego teve folga do trabalho para ir a Pelotas. Ele também conheceu a família dela que, por sinal, gostou muito do rapaz. Assim, a relação se solidificou. E foram intercalando as visitas. As passagens são caras. Segundo eles, “cada encontro era uma coisa diferente, como se fosse o último. Isso alimentava nossa relação.”
A GRAVIDEZ
nuarmos juntos todos os dias.” Para todos os envolvidos, serviu de lição. Diego diz que “saiu de consciência tranquila porque fez tudo o que pôde.” Os festivais serviram de reconforto, pois estavam ao lado dos amigos e ao fazer o que gostavam, ganhavam força para superar a perda. Eles dizem que “a Anita é a força espiritual. Depois que a tivemos em nossas vidas, muitas coisas boas nos aconteceram.” No Reponte deste ano, a emoção tomou conta dos dois quando Lisandro Amaral, aos pés da cruz, cantou De alma, campo e silêncio, a música que embalou o romance dos dois. Essa foi uma das tantas letras que o Diego mandou para a Veridiana no MSN. Se ficarão juntos por um longo tempo, nem eles sabem. Vivem o dia de hoje como se fosse o último dia que estarão juntos. Da mesma forma que faziam nos primeiros encontros.
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Foi no feriado de Corpus Christi que ela foi vê-lo. Ainda voltaram a se ver em Encruzilhada do Sul, terra natal de Diego, e na Vigília do Canto Gaúcho (festival de música nativista) em Cachoeira do Sul. Após este encontro, descobriu que estava grávida. O MSN serviu para que o teste de gravidez fosse mostrado e que ele soubesse da novidade. “Foi um momento difícil para mim, mas como tinha um trabalho, deixei-a tranquila. Garanti que a situação seria resolvida.” Foi a Capão do
Leão para falar com os pais dela. Não apoiaram por acreditarem que foi um ato impensado e por se tratar de uma família conservadora. Queriam que os dois se casassem. “Eu estava mais preocupado com o bebê, essa era a prioridade. O casamento não era o importante no momento”, conta Diego. Quem sempre esteve do lado de Veridiana foi sua tia Ceila. Após problemas na gravidez, e sem o apoio da família, Veridiana decidiu aceitar a proposta do namorado e foi morar em Santa Cruz do Sul. Teria o apoio médico necessário. Foi a tia Ceila quem o trouxe ela. Nesse meio tempo, Diego era o presidente da Manoca do Canto Gaúcho (festival de música nativista) e estava cheio de atribuições. O nativismo sempre fez parte da relação. A casa em que a família dele morava precisou ser adaptada para receber uma gestante. Nesta etapa, a situação financeira foi um fator complicado. Providenciou uma casa para que os dois fossem morar sozinhos. Estão lá até hoje. As pazes com a família vieram quando ela foi visitá-los com seis meses de gravidez. O nome escolhido para a criança foi Anita. Nasceu em Encruzilhada do Sul, um pouco além do prazo. Com 21 dias, após complicações em função de uma meningite, ela morreu. Exatamente no mesmo dia e hora do primeiro beijo, um ano antes, na cruz do Largo do Redentor. Para eles, “ela é um anjo da guarda que nos dá energia para conti-
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Quando terremotos assustam mais que bombas Cosmopolita desde os primeiros passos, a fisioterapeuta Letícia Pokorny preferiu a causa humanitária como projeto de vida, ao invés do conforto das tecnologias dos modernos consultórios. Mesmo sabendo que isso representava privações e perigos à sua vida. Ingressou na ONG Médicos Sem Fronteiras em 2006 e foi indicada para ser voluntária na Handicap International, pela qual foi em missão à capital do Haiti, Porto Príncipe
PING PONG
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FERNANDO DOEBBER REPORTAGEM
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O que lhe motivou seguir no rumo da ajuda humanitária? u estudei saúde pública na Espanha, onde fiquei três anos morando em Barcelona. Lá eu tive muita aula de antropologia, com muitos professores que relatavam experiências de estudos na África. A partir daí, comecei a me interessar por esse lado, pois eu gosto de viajar para conhecer culturas diferentes.
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Como repercute na sua família a sua atuação frente a ONGs humanitárias? gora eles já se acostumaram. Mas, no início, minha mãe se assustava um pouco. No ano passado, estive no Paquistão e acho que foi o maior baque para ela porque começaram todos aqueles atentados a bomba que agora estão se repetindo. Isso deixou ela apavorada. Até mesmo porque senti um atentado a bomba próximo do nosso escritório. Depois, houve um atentado que atingiu nosso escritório. Ainda bem que eu não estava no local. Foi às 6 horas e havia dois colegas lá, mas graças a Deus ninguém saiu ferido. Foi só um susto. Minha família está acostumada agora. Quando falei a eles que ia para o Haiti, disseram-me que agora estava tudo bem e que, depois do Paquistão, eu poderia ir para qualquer lugar (risos).
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Você já teve experiência com terremotos. Como é? ive esta experiência em dois momentos: no Paquistão e na Indonésia. Mas o mais forte foi no Paquistão, onde estava acontecendo uma série de terremotos. O que eu passei foi por um de magnitude 6.4. Estava dormindo e acordei, mas não sabia o que fazer, se saía para a rua ou ficava deitada. Foi muito forte. Estava com mais medo dos terremotos do que dos atentados a bomba.
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Qual é a sensação de ficar de frente com o perigo, como no Paquistão por exemplo? omo não estou acostumada com guerras, fiquei um pouco assustada em ver a repercussão, pois se vê muitas pessoas inocentes morrendo. É bastante estressante, na realidade.
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E vivenciando essas tragédias, você não perdeu a sensibilidade? cho que não dá para perder. Como humanitária, devemos lidar com isso, mas temos que tentar não transparecer muito nervosismo.
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Você é convocada para estas missões ou se dispõe? Como se dá esse processo? les convidam. Como eles têm o meu currículo e já me conhecem, me convidam. Tenho liberdade total, não tenho contrato com eles. Tudo é custeado pela ONG. Já fui convidada para ir ao Afeganistão duas vezes, mas eu disse que não (risos), principalmente depois da experiência do Paquistão. Eu não quero voltar tão cedo para um local onde existe não apenas a questão de guerra, mas também uma cultura muito diferente da nossa. Onde temos que acabar nos vestindo como eles e agir como eles, para não chocar e para não ser alvo.
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E como é esse choque cultural? omo temos que respeitar tudo, cultura, religião e política, e ficarmos neutros, temos que demonstrar que os entendemos. Nos vestimos como eles, entre outras coisas. Para sair na rua, tem que ser acompanhada de um homem sempre. Pois temos de fazer isso para não corrermos risco de vida, já que para eles é algo extremamente importante a submissão da mulher. Se acabamos ofendendo, fica ruim para a própria organi-
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CAMINhOS PERCORRIDOS - arquivo pessoal
zação. Podemos até mesmo ser expulsos do país.
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Como é o dia-a-dia num lugar que necessita de ajuda humanitária? a Nigéria, por exemplo, chegavam pessoas amputadas o tempo inteiro, com tiro,
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Qual o momento que mais lhe marcou até agora nas suas experiências? oi uma paciente na Nigéria, em 2008, que perdeu toda a pele da coxa num acidente e por estar há meses enferma, disse que não queria mais ficar internada, queria ir para casa. Ela tinha 17 anos e pesava, sei lá, 25kg, então foi para casa para morrer perto da família. Esta foi minha experiência mais frustrante, porque ficamos meses e meses tratando esta pessoa, pois queríamos que ela sobrevivesse. Realizamos cirurgias caras nela para tentar salvá-la. Essa foi a cena que mais me deixou deprimida.
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O que mais aprendeu nas suas viagens? ma coisa boa que eu aprendi com as minhas viagens foi escutar e conversar com as pessoas. Quando estamos na correria, não paramos para fazer isso. Não devemos parar apenas para escutar as queixas das pessoas, mas também para ouvir as coisas boas que elas têm para nos dizer. Nos lugares por onde passei, nos vemos obrigados a desabafar um com o outro porque estamos longe de nossas famílias. Outra coisa importante é que além de aprendermos a escutar, também aprendemos outras coisas com as pessoas que encontramos. São amizades gostosas que a gente faz e guarda de lembrança no coração. Sempre digo que a gente tem que amar as coisas que fazemos, se não for por amor e só pelo dinheiro, então não faça. Minha profissão, aqui no Brasil, é muito difícil, mas gosto dela e trabalho com amor. Meu trabalho me faz feliz.
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PING PONG
Qual o maior tabu cultural que você já enfrentou? oi na Nigéria onde eles acreditam que a pessoa tem que ser enterrada com o corpo completo e muitas vezes essa pessoa chegava com uma gangrena. O problema era tentar convencer o familiar ou o próprio paciente de que o melhor seria a amputação e ele não aceitar. Você sabe que ele vai morrer e é muito frustrante para o profis-
Neste sentido, se faz necessário o acompanhamento de um psicólogo para estas pessoas... em que ter sempre. Quando trabalhei na Indonésia, eu lidava com paraplégicos e amputados, e nenhuma ONG tinha psicólogo na época. Senti muito a falta de um. Já na Nigéria, não tínhamos psicólogos, mas haviam conselheiros que orientavam as pessoas. Agora, no Paquistão, a assistência psicossocial está sendo incluída nos projetos de ajuda humanitária.
perna quebrada, etc. A cena mais bizarra que eu vi foi de um rapaz que chegou só com o buraco do ouvido, pois haviam tirado a sua orelha com uma machete. São coisas bárbaras que a gente não consegue imaginar, mas que provavelmente também acontecem no Brasil.
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Você já sofreu algum preconceito por ser de outro país? ão. Muita gente achava que eu era do Paquistão ou do Irã, então não tinha muito problema com isso, usando a vestimenta. Mas caso não nos vestimos como eles, levamos muitas olhadas e aí acabamos nos sentindo incomodados. A melhor coisa para passar despercebidos por eles é tentando se passar por um deles.
sional da saúde saber que isso vai acontecer por uma questão religiosa e cultural. Para nós, a vida é mais importante. Porém, podemos apenas dar nossa opinião e se eles não aceitam, não podemos fazer nada além.
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O interior se diverte Shopping, pub, balada, nada disso, o interior tem uma forma peculiar de diversão. Cada região tem suas características mas, todos têm o mesmo objetivo, aproveitar ao máximo a festa LUANA BACKES REPORTAGEM E FOTOGRAFIA
DIVERSÃO
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MARIANA PELLEGRINI ILUSTRAÇÃO
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No interior, todos sabem, as pessoas trabalham duro e têm poucas opções de lazer. No Vale do Rio Pardo não é diferente. Durante a semana, as “vendas” são as mais frequentadas. É o caso da maioria dos homens, que possuem destino certo à tardinha. Jogam cartas e bebem cerveja, com direito a petiscos como salame e linguiça. As mulheres, por sua vez, ficam em casa e cuidam dos afazeres domésticos, como tirar leite, dar milho às galinhas, e preparar o jantar. No final de semana a rotina muda. As mulheres visitam suas vizinhas e familiares, e os homens, além do baralho, podem jogar bocha e sinuca. Durante a safra do fumo, quando os agricultores já receberam o pagamento do trabalho de todo o ano, é que as festividades ganham força. A festa que mais caracteriza a diversão no interior é a quermesse que, na maioria das vezes, é promovida por alguma entidade, seja ela religiosa ou não. A preparação acontece durante todo o ano e é a própria comunidade que faz tudo: o churrasco, as
saladas, os doces, além de escolher a banda e limpar o salão. O trabalho pesado começa com bastante antecedência, já que rifas e bandeirinhas devem ser feitas para incrementar o lucro da festa. No dia que antecede o evento, são preparadas as linguiças que serão consumidas. O grande dia tem início pela madrugada, quando as mulheres preparam a maionese. Após a celebração religiosa, os participantes se dirigem ao salão, onde compram suas fichas e aguardam o almoço. Ao meio-dia, cada um retira seu espeto e, na falta de mesa para todos, muitos saboreiam seu churrasco do lado de fora, com o espeto cravado no chão. Não existe preocupação nem com os restos de comida, já que sempre há um cachorro de algum vizinho para ajudar na limpeza. Uma prática bem peculiar é que, ao chegarem, as pessoas se direcionam às mesas para pegar para si os enfeites, e há aquelas que pegam vários - uma espécie de disputa. Muitas mudanças já podem ser notadas nos salões das comunidades.
As que já estão melhor estruturadas financeiramente oferecem pratos e talheres aos visitantes. A maioria já tem banheiro, dentro ou fora do salão. Ainda há aqueles de chão batido ou com o salão caindo aos pedaços, e muitas que alugam um local melhor para seu evento, como é o caso de Linha Branca. O Presidente da Comunidade Evangélica, Nilson Pranke, conta que todas as festas que ocorrem na localidade acontecem no pavilhão Evangélico, já que é o único na redondeza. Pranke também salienta que os eventos ajudam a fortalecer qualquer associação. “É com o dinheiro que arrecadamos naquele dia que podemos fazer melhorias no salão. Já compramos geladeira, fogão e freezer.” No interior existe uma espécie de lista de participantes. Cada comunidade presta atenção em quem são as pessoas e de qual lugar elas vêm, para que depois a visita possa ser retribuída. Os lucros são contabilizados no dia seguinte. A operação é chefiada pelo presidente e tesoureiros da comunidade. O sucesso é cer-
DICAS PARA UMA BOA FESTA Para garantir seu almoço é bom chegar cedo. Se a festa for um sucesso e você chegar tarde, todas as fichas já podem ter sido vendidas e terá que se contentar com um cachorro-quente. Se você for prestigiar uma quermesse, leve sua própria cadeira, além de pratos e talheres. Não tire ninguém para dançar antes de certificar-se que a pessoa está desacompanhada. No interior as pessoas levam essas situações muito a sério, o que pode terminar em briga. O respeito é fundamental. Alguns eventos, geralmente bailes, têm algumas exigências. Alguns não deixam entrar de boné, de chinelo ou de bermuda. Em alguns lugares usar acessórios na cabeça é desrespeitoso, e em outros é motivo de briga, já que um pode pegar o boné do outro e gerar tumulto. Se você for a um baile, antes de entrar no salão verifique que está levando tudo o que precisa, pois em alguns lugares as pessoas só podem sair (e voltar) depois de um certo horário geralmente, às 2h da manhã. Em terra de alemão você deve estar preparado para dançar muita bandinha. Se a colonização for outra, os ritmos são mais variados. A festança durar horas é fato, portanto vista o que tiver de mais confortável.
DIVERSÃO
Se bater aquela fome, não se preocupe. Pastel, cachorroquente, torta e cuca estarão a sua disposição - mediante um pequeno valor, é claro.
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to, já que até os ingredientes para a confecção dos bolos são doados. Quem pensa que as pessoas participam desses eventos porque não têm opção, está enganado. Muitos vêm da cidade para o interior por gostar do ambiente, além de poder reunir a família, e outros têm a oportunidade de ir para as baladas da cidade, mas preferem os eventos tradicionais. A empresária Dione Silveira, de 25 anos, mora em Pinhal Santo Antônio e frequenta os eventos no interior. “Aqui a festa é muito mais divertida, além dos homens serem mais educados.” Ela também conta que o que pode estragar uma boa festa são as pessoas que vão só para brigar e, geralmente, a única justificativa é o uso abusivo de bebida alcoólica. Hoje em dia empresas de segurança são contratadas, ao contrário de antigamente, quando pessoas da própria comunidade eram designadas para cuidar do bem estar dos participantes. Mas ainda hoje alguns convidados levam suas facas e, ao chegar, as deixam na copa, em sinal de respeito. Como muitos vêm de longe, o instrumento pode se fazer necessário no percurso. O interior está em desenvolvimento, mas mesmo assim a maioria ainda não possui automóvel. A saída pode ser o cavalo, ou a carona com o vizinho e até a carroça. Muitos fretam um caminhão que os levam ao evento, o que nem é permitido por lei, porém isso não é problema, já que dificilmente encontram-se policiais pela região. O aposentado Adão Lopes, de 74 anos, em visita à sua terra natal, fez questão de relembrar o passado. Viúvo, foi a cavalo à festa em Linha Marcondes, interior de Herveiras. Adão conta que os doze quilômetros que o separam da festa não foram problema. “Antigamente não tinha linha de ônibus por aqui, fazíamos tudo a cavalo ou a pé.”
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Uma cidade que adora flores Sem produção local suficiente para atender à demanda, lojas de Santa Cruz do Sul precisam recorrer a produtores paulistas
de pano de fundo para declarações apaixonadas. “Em uma oportunidade, nós entregamos mil e quinhentas rosas para uma mulher. Elas foram um presente especial pela passagem do aniversário de namoro”, relata. Em outro caso, um apaixonado que brigou com a amada tentou reatar com oitocentas rosas de presente. “O estranho é que ela não quis receber. Então tivemos que deixar no hall de entrada porque ela não aceitou”, recorda o florista. Na Floricultura Berger, os pedidos mais comuns envolvem datas especiais como Dia dos Namorados ou mesmo aniversário de namoro ou de casamento. “O pedido mais estranho é a entrega de hora em hora. Isso requer um cuidado especial. Geralmente o cliente define o tipo de flor que deseja e a gente entrega a cada hora um buquê diferente. É um presente que encanta quem recebe”, conta a responsável pela floricultura, Ângela Berger. Por causa do aumento da procura por flores no município, os produtores santa-cruzenses não conseguem mais atender à demanda nem à exigência do mercado consumidor. “Até existem algumas variedades por aqui. O problema é
que, quando se precisa em grandes quantidades, a produção local não consegue suprir. Então nos resta comprar as flores onde elas existem em grande oferta, que é em São Paulo”, explica Robson Viana. A presidente da rede Aflor, entidade que congrega seis floriculturas de Santa Cruz, confirma que faltam especialmente flores de corte no município. Elas são usadas em arranjos ou mesmo em buquês. Segundo Ângela Berger, o pólo produtor local é forte, mas atende somente espécies plantadas em vasos ou folhagens. “Quando se precisa em maior quantidade ou as flores para arranjos, nós temos que buscar fora do estado”, garante. Ao longo do ano, o ritmo de vendas oscila. É maior em épocas como Dia das Mães e dos Namorados. Fora isso, a procura é menor e se concentra em dias específicos que marcam aniversários de familiares e amigos ou mesmo datas de namoro ou casamento. A representante da Aflor revela que a procura tem crescido em determinados períodos. “No Dia da Mulher, por exemplo, não era comum se presentear com flores. Agora, a tradição cresce cada vez mais nesse período.”
GOSTOS
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ROSIBEL FAGUNDES REPORTAGEM E FOTOGRAFIA
Você provavelmente, em algum momento da sua vida, já presenteou alguém com uma flor ou planta. No mínimo, já admirou alguma espécie que encontrou por aí. Mas já parou para pensar de onde ela veio? Engana-se quem acha que ela foi cultivada em Santa Cruz do Sul. Nos últimos anos, as floriculturas tiveram que buscar o produto em outros estados. Boa parte vem do interior de São Paulo. O município é Holambra, uma mistura de Holanda com Brasil. A cidade hoje é destaque nacional na produção das mais diferentes qualidades de plantas. E é justamente de lá que vem o produto que abastece as floriculturas de Santa Cruz. Apesar da compra ocorrer em outro estado, o preço ao consumidor final não é diferente do que seria se a produção fosse local. “Como eles compram lá (Holambra) em grande quantidade, o preço acaba sendo mais em conta e o nosso cliente não percebe nenhuma elevação no que ele paga, apesar da planta apresentar muitas qualidades”, afirma Robson Viana, gerente da Weiss Blumenn. O responsável pela floricultura guarda na lembrança várias histórias em que as flores serviram
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Espelho: quem sou eu? RAISA MAChADO
...quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto, chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto o mau gosto é que Narciso acha feio o que não é espelho e a mente apavora o que não é mesmo velho nada do que não era antes quando não somos mutantes e foste um difícil começo, afasta o que não conheço, quem vem de outro sonho feliz...
ENSAIO
de voz nos meninos e crescimento dos seios nas meninas, é aqui que o prévio conhecimento de si entra em contato com outros “eu” e passa a buscar este reconhecimento no convívio em grupo. Para Gerárd Bernard Mailhiot, autor do livro Dinâmica e gênese de grupos, parte dessa aprendizagem é a percepção de si e do outro. Tem-se, assim, o “eu autêntico”- aquele que o ser humano pode ser se conseguir atualizar em si recursos e capacidades de superação; o “eu ideal” - o ser que gostaria de ser para atender as expectativas dos outros, e o “eu atual” - a pessoa que acredita ser ou parecer perante os outros. Passada esta fase, muitas pessoas caem na mesma conclusão: a de que ninguém é perfeito. Algumas sentem vontade de desistir do “eu”, fato que Kierkegaard vai chamar de “desespero-fraqueza”, é o “sofrimento passivo do eu, o oposto do desespero em que o eu se afirma. Mas, graças à pequena bagagem de reflexão sobre si, tenta, também aqui, diferente do espontâneo puro, defender o eu.” Em outras palavras, o ser humano nunca está completamente satisfeito com a própria imagem, porém vive nessa constante busca: é a dieta que começa na segunda (sem falta!), o novo corte que apareceu na TV ou, quem sabe, uma mudança radical para animar. Essa história toda não acaba aí. Reconhecer-se não é algo que termina. O ser humano continua a conhecerse todos os dias e, para tal, parte dessa construção, ainda, é a mímese – a imitação ou representação do outro, ação que o ser humano realiza inconscientemente ao copiar um trejeito do pai ou conscientemente ao comprar os óculos que a Lady Gaga usa no clipe da música Paparazzi – o que não representa problema algum, pelo contrário, essas ações se inserem na construção do “eu.” Cabe ressaltar que o processo é infinito. O ser humano vive para a construção do conhecimento e reconhecimento de si no mundo, em sociedade, em família, no trabalho. Por isso, o ato de olhar-se em qualquer superfície espelhada por aí é normal, é parte da eterna tentativa de enxergar para dentro de si no meio de um todo. Como diria a composição de Caetano Veloso:
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Por que as pessoas se olham no espelho? Sabe-se que homem é bicho vaidoso, a mulher também, não cabe retratar aqui as semelhanças de sexos opostos. E sim identificar o ser humano, o “eu” que pensa, ouve, vê e se vê. Quem não passou por uma janela procurando ver a si próprio na imagem que o vidro reflete? Ou entrou em um elevador com espelho e aproveitou para ajeitar o cabelo que o vento bagunçou ou o rímel da maquiagem que borrou? Ainda, não se sentiu aborrecido, inseguro ou desesperado ao entrar em um banheiro sem espelho? Pois este é o “desespero humano”, expressão que batizou obra do filósofo dinamarquês Soren Abey Kierkegaard. O “eu” cai em inconsciente tentação quando se apaixona pelas virtudes ou simples características de alguém enquanto possui as mesmas em si; o “eu” de tanto observar-se na frente do espelho enxerga as mínimas imperfeições e detalhes, embora provavelmente ninguém vá notar ou o “eu” de tanto olhar-se, acostuma-se com a imagem e passa, assim, a apreciá-la. Como Narciso, que depois de se debruçar sobre um rio e enxergar a própria imagem, mergulha para si. Kierkegaard divide estas ações da seguinte forma: “O desespero inconsciente de ter um eu, o desesperado que não quer e o desespero que quer ser ele próprio.” No entanto, esse papo de desespero também não é tão desesperador assim. Essas situações constituem parte do processo de desenvolvimento do indivíduo, para alguns mais natural, para outros em ritmo mais lento. Ainda bebê, com seis meses de existência, o ser humano vê o próprio reflexo no espelho sem entender que se trata de uma imagem. Somente com um ano e sete meses descobre que a imagem refletida é o “eu”. Assim, cada “gracinha” em frente ao espelho representa uma nova brincadeira, uma surpresa diante de si. É o autoconhecimento que, de início, se tinha em partes, como o pé, as mãos, o cabelo, agora, compreendese como um todo. É na escola e, mais precisamente, na puberdade e adolescência que ocorre uma adição a este processo: reconhecer-se. Excluindo os fatores biológicos como a mudança
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Nunca é tarde para aprender, e nem cedo para ensinar Aos 76 anos, dona Brunilda aceitou o desafio de aprender português, e sua bisneta cumpre o papel de professora, dentro de casa
VONTADE
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PATRíCIA PARREIRA REPORTAGEM E FOTOGRAFIA
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Mesmo com limitações há pessoas que buscam nos seus obstáculos, força para alcançar objetivos, que em algumas situações parecem ser impossíveis. Uma história que serve de lição de vida para toda a humanidade está na localidade de Vila Paraíso, em Paraíso do Sul, na região Central do Estado. Djeine Kauene Gressler, 10 anos, está cursando a 5ª série do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Duque de Caxias, e desde seu nascimento, tem limitações para enxergar. Sua mãe Letícia contraiu, ainda grávida, uma doença chamada citomegalovirus, que pode afetar diversas funções no organismo da criança. No caso dela, a visão foi prejudicada e até hoje, a menina somente identifica os objetos bem de perto. Djeine mudou-se de Santa Cruz do Sul para Paraíso do Sul há cinco anos, desde que a mãe enfermeira passou a trabalhar no Hospital da cidade. Sua bisavó, a quem já era muito apegada, acompanhou as duas, e dessa relação que se fortaleceu ainda mais, nasceu a ideia de Djene ensiná-la a ler, escrever e falar em português.
Dona Brunilda Olinda Seiboth tem 76 anos, é descendente de alemães e nunca frequentou a sala de aula. Seu passatempo é cuidar da horta, da casa e preparar deliciosos pratos. Escreveu seu nome pela primeira vez quando assinou a aposentadoria, e somente se comunicava por meio da língua alemã. Usando aparelho auditivo, Brunilda aceitou o desafio de aprender, e hoje recebe aulas diárias de português, matemática e leitura. Segundo Djeine, a ideia de ensinar sua bisavó surgiu naturalmente pela convivência de ambas, e mesmo mantendo o papel de professora, a estudante no futuro quer ser arquiteta. Nas horas vagas, além de estudar, Djeine já ensaia sua vida profissional, produzindo diversos desenhos. Cumprindo rigorosamente o horário de início da lição, dona Brunilda chega à sala de aula com sua pasta cor-de-rosa e cheia de vontade de aprender. A professora-bisneta segue a risca o roteiro da aula, que planejou cuidadosamente no dia anterior. Primeiramente, o lembrete do dia, que é escrito no quadro
negro, e transcrito pela aluna em seu caderno. Depois, é proposto um exercício de leitura: dona Brunilda assiste atenta à Djeine escrever as palavras no quadro, e depois as lê em voz alta. Nos olhos, no semblante e no sorriso da senhora, a euforia de acertar os desafios impostos pela neta. Desafios esses de conseguir ler palavras como: macaco, lua, casa e amor. Já no olhar de Djeine, a sensação de recompensa por uma dedicação pacienciosa que já dura mais de um ano e meio. Seguindo o roteiro da aula, após o exercício de leitura, é a vez de dona Brunilda escrever. Mesmo com a dificuldade de audição, primeiro ouve as palavras ditadas pela bisneta, e em seguida, uma por uma, as escreve no quadro. Quando as palavras não são compreendidas, a professora usa de gestos para exemplificar os termos desejados. As dificuldades na escrita e dicção de dona Brunilda são principalmente com as consoantes x, y, w e z. Na hora de escrever, saem letras maiúsculas misturadas com outras minúsculas, mas a aluna cumpre corretamente a atividade
OPINIÃO
Nos embalos de uma copa na África RENAN SILVA O som que embalou os campos africanos durante a Copa do Mundo vai muito além das já famosas vuvuzelas. A África do Sul tem, em comum com o resto do planeta, a paixão pela música. E nesse clima de amor pelo futebol e pela música, foi lançado o CD oficial da Copa da África. Listen Up é resultado da colaboração de vários artistas africanos com artistas internacionais. A grande estrela do álbum é Shakira, com a música Waka Waka, canção oficial da Copa 2010. Além da colombiana, outros astros de renome internacional participaram do álbum, como é o caso do cantor estadunidense R. Kelly, da japonesa Misia e da brasileira Claudia Leite.
Os conteúdos passados à bisavó são tirados dos cadernos da 1ª série de Djeine. A sala de aula é improvisada na casa da família, e as au-
Outra trilha que merece destaque é Ke Nako, de J Pre. A canção foi escolhida por Nelson Mandela como tema de sua campanha eleitoral, e nessa regravação ganhou força com a presença de Wyclef, Jazmine Sullivan e B Howard, três astros reconhecidos mundialmente. A obra propõe mesclas interessantes de estilos e olhares sobre a música. Por um mês, a África do Sul recebeu o mundo todo em sua casa. Como anfitriã, o clima foi de festa, e o álbum foi a trilha sonora que embalou o planeta. Assim, Listen Up representa tudo o aquilo que a Copa do Mundo significou para o país. Mais do que falar sobre a pobreza e a precariedade das condições de vida, a África do Sul quer ser lembrada pela alegria de seu povo. E é isso que está presente no álbum oficial da Fifa. A mistura de ritmos é questionável, certamente. A escolha de Shakira como grande estrela da produção pode ter um caráter puramente comercial. Mesmo assim, é inegável o mérito da obra. Gêneros diferentes unindo-se para formarem algo diferente. Mais do que as qualidades ou os defeitos de cada música, o grande diferencial desse álbum foi a proposta de unir estilos e cantores tão distantes, tanto geograficamente quanto musicalmente. E essa virtude não pode ser ignorada.
CRÍTICA
MÉTODOS DE ENSINO
las duram de trinta minutos a uma hora. Djeine já tentou aumentar a carga, mas dona Brunilda começou a confundir os conteúdos, então as aulas têm horários fixos, mas todos os dias impreterivelmente. As lições são passadas por meio de desenhos, jogos, gestos, momentos lúdicos e, claro, no quadro negro. O quadro auxilia a aluna a juntar as sílabas e a praticar o que aprendeu. Já os desenhos servem como ilustrações, os gestos são auxílios, pelo fato da dificuldade de audição da bisavó, e os momentos lúdicos ficam para ocasiões especiais. Um exemplo, conta Djeine, ocorreu no dia da árvore, quando ambas foram passear pelo pátio. Dona Brunilda desenhou árvores e aprendeu os significados do tema estudado. Djeine planeja, neste ano, encerrar o conteúdo da 1ª série, e a aprendizagem seguirá para outras fases. O que podemos aprender ao longo dessa história é que nunca é tarde para aprender, e nem cedo para ensinar, e que educar é, antes de tudo, uma arte de encontro e de comunicação destinada a provocar relações positivas com a vida, com as pessoas, com a história, com os espaços, com a leitura, com a escrita, com a escola, com as regras da sociedade, entre outros. Seja na infância, na adolescência ou na melhor idade, seja em contexto escolar ou extra-escolar, educar verdadeiramente é quando tocamos o outro, ao ponto de conseguirmos despertar nele a vontade de aprender, se dispondo a andar no caminho de esforço, de disciplina, de paciência, e de serenidade exigido pela aventura do conhecimento.
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proposta pela professora. Questões de matemática encerram a aula. Djeine propõe uma série de contas de soma, as quais a bisavó resolve em silêncio, com a ajuda apenas dos seus dedos da mão, que servem de apoio para os cálculos. Após o término, é feita a correção no quadro e em seguida o processo se repete com outros cálculos, dessa vez de subtração. Observando o cenário, a sala improvisada dentro da casa da família remete à uma aula curricular, como em qualquer escola. Na parede, um quadro negro e um painel feito de papel cartolina, com o alfabeto completo. A mesa da professora é decorada com um porta canetas e livros. A classe da aluna é moderna e fica próxima ao armário, onde se encontra todo o material usado durante as aulas: livros, cadernos, jogos didáticos e materiais esportivos. Segundo Djeine, a experiência de ensinar é fantástica. “O que aprendi até agora é que, para ensinar, é preciso ter muita paciência; é assim que faço, com muita calma, que tive que aprender a ter, busco ensinar minha bisavó a poder se comunicar melhor e aprender mais”, disse a estudante. No início, dona Brunilda achou estranha a ideia de aprender, nem fazia a lição de casa, mas agora quer ter aulas até nos finais de semana.
A produção propõe a mistura de estilos. Já na primeira faixa, Sign of a Victory, parceria entre R. Kelly e Soweto Spiritual Singers, percebe-se a mistura entre o R&B de Kelly e um estilo mais harmonioso do grupo africano. Na canção Move On Up, de Angelique Kidjo e John Legend, o som marcante da percussão africana misturase ao jogo de metais que lembram ritmos como a lambada e o mambo em muitos aspectos. A música Spirit of Freedom, gravada por Judy Bailey e Uju, tem traços de música eletrônica misturados ao ritmo africano. Já a brasileira Claudia Leite faz parceria com a cantora Lira, com o tema As Mascaras (South Africa ‘10 to Brasil ‘14). A canção mistura pop, axé e música eletrônica e reflete o clima de festa que, tanto a Copa da África do Sul quanto a do Brasil em 2014 deverão ter em comum.
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Uma profissão que não existe O Brasil tem a melhor dublagem do mundo e um público cada vez mais curioso. Ainda assim, a lei não reconhece os profissionais e a qualidade às vezes deixa a desejar
profissionais de antigamente, que sequer topavam conceder entrevistas, quando por acaso eram lembrados por algum jornalista. A dublagem é uma das raras atividades cuja lista de pré-requisitos é curta e o salário é razoável. Para dublar não é preciso estudo, idiomas ou atualização. Os cursos até existem, mas em boa parte das vezes são dispensados. “Me diga outro trabalho que pague 70 reais a hora e não se precise ler uma Veja ou Istoé toda semana?”, provoca Daniella Piquet, dubladora há 24 anos – já deu voz à Brooke Shields, Winona Ryder, um ursinho carinhoso e uma penca de heroínas japonesas. Dubladores são autônomos e fazem suas próprias agendas, mas integram um esquema produtivo quase industrial. Aguardam o telefonema de uma empresa oferecendo horas de serviço para o dia seguinte, e aceitam caso já não tenham fechado com outra. Entram no estúdio sabendo apenas o horário de saída. Os personagens que ganharão suas vozes lhes são apresentados minutos antes da gravação. Assistem uma vez, ensaiam duas e gravam quantas forem necessárias – geralmente, uma única. O timing ensandecido não os livra de um penoso desafio, o de co-
piar com perfeição. “O trabalho do dublador é imediato: escuta e tenta fazer igual”, explica o calejado Nelson Machado, com quatro décadas de experiência e conhecido por interpretar o personagem Quico no seriado mexicano Chaves. Recentemente registradas no livro Versão Brasileira – o título remete aos carimbos sonoros aplicados aos filmes, que indicam o estúdio e a cidade onde a dublagem foi produzida, e tornaram familiares nomes de empresas como Herbert Richards, BKS, Álamo e Marshmallow. Dublar é, acima de tudo, duplicar (ou dobrar, como gostam de dizer os portugueses). O bom dublador, continua Nelson, não torna o personagem mais interessante ou divertido, apenas reproduz com fidelidade. “Se alguém diz ‘o fulano é um péssimo ator mas o dublador melhorou bastante’, então o dublador estragou o filme.” A tecnologia ajuda cada vez mais. Hoje, os dubladores ocupam os estúdios sozinhos, um por vez. Nada de dividir o microfone com um, dois ou dez colegas, como se fazia, conforme o número de personagens presentes nas cenas. Assim, até o constrangimento de dar voz à um personagem em meio a uma relação sexual deixou de ser
FOTOS: DIVULGAÇÃO
CINEMA E TV
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PEDRO GARCIA REPORTAGEM
A cena era improvável. Centenas de jovens dirigiam-se a uma escola em pleno final de semana. O local era São Paulo, na verdade um bairro de classe média alta, mas por ali encostavam ônibus lotados com placas de várias partes do País. Na programação do evento dedicado a amantes de desenhos animados, duas presenças despontavam como atrações principais. Quem olhasse de fora, não entenderia o alvoroço. Os nomes nada diziam, menos ainda seus semblantes. Estavam ali por suas vozes. Não faz muito tempo que o profissional de dublagem ganhou status de celebridade. De pouco mais de uma década para cá, fanáticos por animações orientais e séries antigas, espalhados por todos os cantos, organizaram-se em grandes comunidades na internet. Blogs especializados e fóruns de discussão temáticos multiplicaram-se pela rede, e os donos das vozes dos personagens mais queridos viraram objetos de culto. Em eventos como o da escola paulista, dubladores recebem tratamento de lorde. São ovacionados por plateias entusiasmadas, distribuem autógrafos, posam para fotografias e repetem bordões clássicos para câmeras de vídeo. Em nada se parecem com os
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um problema com a digitalização do processo. Na contramão, as leis. Primeiro, a lei de fato: a profissão de dublador sequer existe. Entre as dezenas de funções discriminadas pelo Ministério do Trabalho como próprias dos profissionais da arte estão a de comedor de fogo e a de faquir, mas não a de dublador. Quem deseja se dedicar à dublagem consegue no máximo o registro de ator. Isso porque aquele que interpreta uma ação dramática pode fazê-lo “sobre a voz de outrem.” Está certo que dublar é também interpretar. Não por acaso, para as primeiras dublagens realizadas no País, no final dos anos 30, foram convocados os astros das radionovelas. Eram os únicos treinados na representação apenas por meio da voz e sem tirar os pés do mesmo lugar – diferente do teatro e do cinema, onde se utiliza de todos os recursos corporais possíveis. Há quem se divida entre os palcos e os estúdios, mas a parcela mais expressiva é a de profissionais que passam quarenta horas por semana fazendo falar português galãs de Hollywood, canastrões mexicanos e guerreiros orientais de olhos estalados. Como chamá-los, senão dubladores?
Depois, a lei de mercado. Uma pesquisa recente mostrou que 56% do público de cinema brasileiro prefere dublagem à legenda – invalidando o discurso corriqueiro de que filme dublado é para analfabetos. Nos cinemas, porém, a dublagem segue reservada aos títulos de gênero, especialmente os infantis. A explicação é simples: legendar custa menos. Assombradas pela pirataria, as distribuidoras resistem em investir na dublagem, ou apelam para estúdios picaretas de fundo de garagem, que transformam filmes em experiências desagradáveis. “O mercado está repleto desses curiosos que tem apenas um computador em casa e fazem dublagem”, lamenta Daniella Piquet. “Tem muita dublagem mal feita por aí.” Mesmo assim, proliferou-se a máxima de que o Brasil faz a melhor dublagem do planeta. O palpite é arriscado, embora seja certo que estamos à frente de Estados Unidos e Europa, por questão de prática. “Esses países tem indústrias cinematográficas mais poderosas, então importam menos produtos estrangeiros e por isso dublam menos”, diz Nelson Machado. “É nossa obrigação sermos melhores: somos mais treinados.”
AS VOZES DE NELSON MAChADO
AS VOZES DE DANIELLA PIQUET
COMO SE DUBLA UM FILME?
O programador divide o roteiro já traduzido em trechos, que são chamados de anéis. Esse termo vem do tempo em que os filmes chegavam em películas de 16mm e costumava-se marcá-los e cortá-los em pedaços para dividir os trechos. Cada pedaço tinha suas pontas ligadas, formando um anel contínuo.
Os anéis são distribuídos entre os personagens e, portanto, entre os dubladores. O programador organiza a escala e os profissionais são contratados. É um serviço free lancer: os dubladores atendem a todas as empresas e recebem cachê por hora de trabalho.
PRODUÇÃO E FINALIZAÇÃO Paralelamente à programação, são ajustados e/ou completados os efeitos e trilhas sonoras, quando há necessidade. É a chamada checagem M&E (música e efeitos). Os dubladores só descobrem o que vão dublar alguns minutos antes de começar a gravação. No estúdio, ficam apenas o diretor, o dublador (um de cada vez) e o técnico. Geralmente, ensaiase apenas duas vezes antes de gravar, uma para marcar pausas e outra para verificar sincronismo e medida. Na etapa final, a mixagem, os diálogos são unidos às trilhas, é feita a equalização de volume, ajustes na sincronização e adicionados efeitos (se uma voz sai de um telefone no filme, por exemplo). Finalizado, o áudio é transcrito para uma fita ou DVD e entregue ao cliente.
CINEMA E TV
O filme (ou seriado, novela, desenho) chega à empresa digitalizado e passa pelas seguintes etapas:
PRIMEIROS PASSOS Com uma cópia do filme e outra do script no idioma original em mãos, o tradutor passa o texto para o português. Esse trabalho exige sensibilidade principalmente para que certas palavras ou expressões não percam o seu sentido. Uma gíria em inglês pode não dizer nada em português se traduzida literalmente.
bit.ly/unipis
Sempre foi um processo rápido, mas isso se potencializa com o avanço das tecnologias de edição, gravação e mixagem. As distribuidoras de filmes e emissoras de televisão contratam o serviço das empresas de dublagem, e recebem o áudio finalizado em cerca de dez dias – pode ser mais ou menos, conforme a quantidade de diálogos.
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ILUSTRAÇÃO PEPE FONTANARI