Unicom - Medos

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JORNAL EXPERIMENTAL EXPERIMENTAL DO DO CURSO CURSO DE DE COMUNICAÇÃO COMUNICAÇÃO SOCIAL SOCIAL DA DA UNISC UNISC -- SANTA SANTA CRUZ CRUZ DO DO SUL SUL VOLUME VOLUME 29 29 Nº4 Nº4 OUTUBRO/2015 OUTUBRO/2015 JORNAL


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O medo na História Todos os povos, em todos os tempos, sentiram medos coletivos, que marcaram suas existências na passagem do tempo. Confira um pouco dos medos mais marcantes da história

InÍcio da cultura (100.000 a.C.) medo da noite, do escuro, da chuva e de tudo que representa o “desconhecido”;

imagem: portal de extensão

Civilizações pré-culturais imagem: DeviantArt

medo de ser devorado por feras;

Egito (3100 a.C.) medo de ser enterrado longe de sua terra e do julgamento dos deuses após a morte;

imagem: blogspot - Roberto Menezes

No início, tudo era medo. Medo de um semestre novo; medo da responsabilidade de fazer um Unicom tão bom quanto os anteriores, porém com algum diferencial; medo de algo não dar certo ou de dar tudo errado. Depois, veio o alívio. Alívio porque a turma era bacana, porque as ideias foram surgindo, porque o jornal parecia encaminhado. Em seguida, tudo virou medo de novo. No entanto, foi a gente que definiu que seria assim. Essa escolha aconteceu entre a terceira ou quarta aula, no dia em que sentenciamos que exploraríamos dessa vez, junto com nossas fotos no jornal do curso, um tema tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante do ser humano. Decidimos que abordaríamos o medo como condição humana, aquele que faz sofrer, que bloqueia, que impulsiona. E conseguimos. Aqui estou eu, escrevendo esse editorial, com medo de chegar atrasada na aula. Assim como tudo na vida, ao longo desses – sei lá, dois meses? – nossos medos e conhecimentos apareceram, sumiram, se transformaram. Surgiu o medo da fonte não responder e a pauta não rolar, o medo de não dar tempo para diagramar, o medo... o medo... o medo... Enfim, o Unicom ficou pronto e a equipe também, para a próxima edição e para a vida, principalmente. Aqui vai um recado para mim e meus colegas: que não tenhamos medo do futuro; se chegamos até aqui é porque estamos conscientes da nossa decisão e sabemos como fazer jornalismo. Outro recado, agora para as próximas turmas de Produção em Mídia Impressa: Não tenham medo de fazer um Unicom melhor que esse. Afinal, “aqui é o lugar para experimentar” (Soster, Demétrio). Ah, só mais um último recado. Aos nossos leitores: não tenham medo de amar esse jornal tanto quanto a gente ama. Não tenham medo de odiar esse jornal tanto quanto a gente chegou a odiar um dia. Não tenham medo de escolher uma reportagem favorita e aquela que lhes pareceu a pior. Folheiem e leiam, sem medo. Heloísa Corrêa

imagem: kyle Bastian / Rodolfo Guerreiro

Do início ao fim

Gregos (2000 a.C)

medo dos seus deuses, sempre retratados como tendo humores muito humanos.

Romanos(800 a.C) mesmo medo dos gregos e mesmos deuses, mas com nomes diferentes. Para os romanos, Zeus era Júpiter, Cronos era Saturno, Posseidon era Netuno, Hades era Plutão e Ares era Marte;

Hebreus (1300 a.C.) medo do julgamento final e de não obedecer ao criador e as suas leis expressas nos Dez Mandamentos;

medo violência e das grandes guerras assim como do holocausto nuclear.

imagem: ultradownloads

Foto: Fábio Goulart

Século XX (1900 – 1999)

UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 - Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - CEP 96815-900

Curso de Comunicação Social - Jornalismo Bloco 16 Sala 1612 Telefone: 3717-7383 Coordenador do Curso: Hélio Etges

Impressão Grafocem Tiragem 500 exemplares Ilustrações Pedro Andrade Silva Diagramação Évelyn Bartz

Blog: blogdounicom.blogspot.com Fanpage: facebook.com/unicomjornal

Século XXI (a partir de 2000)

Este jornal foi produzido na disciplina de Produção em Mídia impressa, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster.

Volume 29 - nº4 - Outubro/2015 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

imagem: Nplan Marketing

Renascimento (1500 - 1700) medo de monstros marinhos e da existência de um precipício no horizonte, pois acreditavam que o planeta fosse quadrado.

Pesquisa: Luana Ciecelski Colaboração: Prof. Roberto Radünz Infográfico: Évelyn Bartz

medo: o século da ansiedade. Grande quantidade de informações chega às pessoas de forma que elas sempre estão sabendo de tudo e temendo tudo, sejam ameaças ao corpo e a propriedade, seja intimidações à ordem social (emprego, renda) ou relacionadas ao lugar das pessoas no mundo (identidade, étnica, religiosa).


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5 Quando o medo não é controlado, pode provocar sintomas que interferem na saúde física e mental do ser humano, levando ao desenvolvimento de patologias. O acompanhamento de profissionais e força de vontade são atitudes fundamentais para superá-lo.

relatos de uma mente insegura

“Sim. Eu mesma percebia que aquilo não era normal. Eu sabia que aquilo tinha que parar, mas sempre tinha um sentimento de ‘cuidado’. Quanto mais eu escondia, mais ia se agravando e se expandindo em outras áreas da minha vida”. Essa foi a resposta, quando questionada se sentia vergonha ou medo de que as pessoas do seu convívio soubessem da existência de um transtorno psiquiátrico. E, dessa forma, naturalmente, ela não quis ser identificada.

Flávia, como vamos chamá-la de modo fictício nesta reportagem, começou a sofrer com os sintomas do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) aos 21 anos, em 2008. Os primeiros sinais, caracterizados por ideias recorrentes acompanhadas de desconforto emocional e de comportamentos ritualizados involuntários, se manifestaram de maneira quase natural em sua rotina. Seus medos e preocupações estavam relacionados, basicamente, a esquecer eletrodomésticos ligados e equipamentos elétricos, como fogão, chapinha e ferro de passar roupa. Essas sensações de incertezas fizeram com que Flávia saísse às pressas de seu trabalho, num certo dia, e retornasse para casa apenas para conferir se os aparelhos estavam realmente desligados. Essa situação provocou,

além de atraso no emprego, um intenso cansaço físico e emocional. Com o passar dos dias, os sintomas foram se agravando de tal maneira que, sair de casa e se preparar para dormir, deixaram de ser hábitos comuns e tranquilos, para se tornarem tarefas desgastantes e repetidas. Flávia só conseguia completar determinadas atividades após uma hora de idas e vindas, com o objetivo de confirmar se a porta havia sido trancada. “Eu raciocinava que estava tudo certo, mas, dentro de mim, sentia um aperto que dizia ‘não, volta lá’. Sentia enjoo, meu corpo suava, meu coração acelerava e eu ficava indo e voltando, conferindo tudo. Era um tormento sem fim”. Flávia morava em um prédio com 14 andares e isso contribuía para que sua preocupação fosse ainda maior.

Seu medo de ser responsável por provocar um incêndio, onde fosse ferir a si mesma e a outras pessoas, fazia com que ela dormisse na sala. A certeza de estar em frente à porta de entrada do apartamento a fazia se sentir mais segura. Enquanto isso, outras situações se agravavam em sua rotina de transtornos e obsessões. A aflição e o medo excessivos foram suficientes para que Flávia passasse a se machucar, ainda que de forma sutil. Ela contou que a noite apertava a chave contra sua própria mão com o intuito de, ao deitar, sentir a sensibilidade daquela área e, então, confirmar que a porta estava mesmo trancada. Esse foi o momento decisivo para perceber que precisava procurar ajuda de profissionais da área psiquiátrica. Ao aceitar que precisava de tra-

tamento, ela resolveu contar sobre os sintomas à sua mãe. Para Flávia, foi difícil revelar os transtornos que vivia, e confessou tê-los escondido de seus amigos e familiares por mais de dois anos. “Eu percebia que estava entrando numa depressão. Não tinha mais vontade de continuar vivendo daquele jeito, era insustentável. Depois de relatar as situações para a psiquiatra, ela simplesmente olhou e disse ‘não conta isso para ninguém, as pessoas vão rir de ti’’’, conta. A especialista sugeriu que Flávia fizesse uso de uma determinada medicação, e, para isso, garantiu que iria estudar a que melhor se adequasse ao caso. No entanto, nem a especialista e nem a ideia de fazer uso de remédios passavam à ela a segurança que necessitava. Aconselhada por sua mãe

e um amigo a não utilizar os medicamentos por acreditarem que, futuramente, pudessem viciar, ela decidiu por um novo método: iniciar, ela mesma, a mudança em sua própria vida. “Minha surpresa é que o TOC, em maior ou menor grau, era vivido por muitas pessoas próximas a mim. Meu amigo, que morava sozinho, fazia marcação no calendário para saber que tinha desligado o ferro de passar roupa. Isso me fez sentir melhor”.

Uma nova terapia Conforme a psicóloga Sueli Sant’Anna, são frequentes os casos em que pacientes, sendo eles crianças ou adultos, precisam lidar com o medo proveniente de alguma situação. Segundo a especialista, até os anos 80, pensava-se que o TOC era um quadro

psiquiátrico relativamente raro. Após esse período, passou-se a estudar um método eficiente para reduzir esses sintomas: a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC). Este tipo de tratamento enfatiza a importância dos processos cognitivos na compreensão de diversos transtornos mentais. A terapia é estruturada para ter uma duração curta, tornando o paciente autônomo para o exercício das habilidades adquiridas no processo clínico. Além disso, estudos apontam que pessoas que sofrem com TOC tendem a, durante o tratamento, reconhecer que os impulsos e obsessões são produzidos pela sua própria mente, sendo admitidos como excessivos e irracionais. Hoje, formada em Comunicação Social e pósgraduada em Comunicação Estratégica, Flávia conta que

os sintomas do transtorno psiquiátrico foram amenizando na medida em que foi alterando alguns hábitos necessários em sua vida. Segundo ela, a mudança que mais causou impacto foi a saída de seu trabalho. Assim, a tensão que lidava diariamente foi diminuindo. No entanto, a possibilidade de se notar uma repercussão positiva no TOC veio a um prazo maior. Meses depois, ela percebeu que alguns resquícios ainda restavam, como o hábito de conferir uma ou duas vezes a porta de casa. Aos poucos, os sintomas foram se aproximando da normalidade e ela foi reconhecendo que aquele medo que sentia ao sair de casa já não estava mais lá.

Priscila Kellermann priscilakellermann@hotmail.com


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7 Ficar só faz com que a pessoa perca o norte, mas não há possibilidade de estarmos cercados de gente o tempo todo. Veja como cada pessoa pode aprender a conhecer os seus limites e tentar encarar a solidão como algo não tão ruim.

Assim como o ser humano, os medos crescem ou se transformam. No entanto, existem aqueles que sobrevivem a uma vida toda e se adaptam às circunstâncias. No Unicom, as diferenças e semelhanças dos medos de crianças, adolescentes, adultos e idosos.

Não é preciso estar só para temer a solidão

Quando o medo encontra razões para persistir

Para muitas pessoas que sofrem com o medo da solidão, o simples ato de estar com pessoas queridas preenche o vazio que domina o corpo e a mente. Esta fobia pode ser considerada uma doença, porém poucos possuem a coragem de admitir tal carência. O ser humano, de uma maneira geral, por sua natureza, não nasceu para ficar sozinho, de modo que a interação com outros semelhantes é quase que indispensável para a sua realização. Com a advogada Etiene Marques, de 31 anos, não é diferente. Para ela, ficar sozinho é ser incompleto, o que a deixa assustada. “A falta do companheirismo, da troca, do carinho, do cuidado e a sensação de que vou me isolar no meu mundo, empobrecendo o espírito e endurecendo a alma caso me faltem as pessoas que me são tão queridas”, diz . Segundo a psicóloga Janaina Cadona Ceron, a isolofobia, ou aversão de ficar só, pode ser tratada com consultas terapêuticas e acompanhamento médico. “A confusão de muitos pacientes em relação a esta dependência com a depressão se torna comum, pois a pessoa acredita estar com uma certa carência e desenvolve um problema mental quando não diagnosticado

Ao longo da vida, é natural que os sentimentos e os pensamentos mudem. Com o passar dos anos, e a experiência e maturidade que eles nos dão, os anseios também se transformam. Porém, em alguns casos, traumas podem resultar no prolongamento de sentimentos negativos. Eles podem durar anos, senão a vida toda. Com um olhar de quem busca lá no fundo da memória as explicações por sentir medo da solidão, Romilda Grasel faz parte de uma das várias gerações que temem ficar só. Aos 92 anos, ela conta que este medo a acompanha há décadas e por razões diferentes. Nascida no interior de Santa Cruz do Sul, na época em que a localidade de Rio Pequeno ainda pertencia ao município e não a Sinimbu, Romilda se mudou para a cidade já adulta e com as três filhas crescidas. No Bairro Faxinal Menino Deus, escre-

o verdadeiro causador desta fobia”, explica. Para a advogada Etiene Marques, é preciso preservar os círculos de amizade que mantem ao longo dos anos. “Amigos são preciosidades que não deixam a solidão se instalar por pior que seja o momento e isso é indispensável na minha vida”, salienta. Ela confessa que, antes de ter o seu filho, seus momentos de solidão eram mais recorrentes, mas, hoje, ela tem a companhia dele quase que integralmente e está aproveitando esse tempo ao máximo. “Me sentia sozinha no período em que estive separada e o meu filho ia dormir no pai. As noites eram longas, e o pensamento ia longe, sendo que nada amenizava aquele vazio”, conta. Segundo ela, esse foi um período complicado. “A ausência de um ser tão amado tinha o poder de transformar a minha vida, fazendo da solidão uma parceira indesejada”, revela.

“Não devemos temer a solidão” Conforme a psicóloga Janaina Cadona Ceron, várias circunstâncias podem conduzir as pessoas a sentirem solidão, tais como uma separação conjugal, troca de residência ou cidade, falecimento de alguém muito presente

no dia a dia. “Estes fatores, no entanto, não são ‘escolhas’, mas, sim, situações impostas pelo ambiente e podem levar ao sentimento de solidão dependendo das características psicológicas de cada pessoa”, explica. Janaina destaca que uma das consequências da solidão para muitas pessoas é a depressão. “As pessoas devem perceber quando o estar só causa sofrimento, que é uma das características negativas da solidão. Então o jeito é tentar ficar perto das pessoas que se ama e buscar sempre a serenidade para pelo menos tentar amenizar a sensação de solidão”, pondera. De acordo com a profissional, o medo da solidão é inerente ao ser humano. As pessoas são seres sociais e, assim sendo, buscam estar acompanhadas. “Não devemos temer a solidão, pois em vários momentos de nossas vidas estaremos sós e isso nem sempre significa algo negativo”, completa. Para ela, este tempo pode ser utilizado, em muitas ocasiões, para o autoconhecimento, criação e atividades de relaxamento.

Marieli Rosa marielirosa@hotmail.com

veu parte da sua história ao lado do marido, Jorge. Foi lá também onde mais sentiu medo. Primeiro, temia o futuro, já que não tinha formação. Sem estudos e sem emprego, tinha medo de ficar parada, de não ter o que fazer. “Ninguém ia querer me contratar com o estudo que eu tinha. Aí comecei a fazer pão para vender, depois trabalhei com faxinas”, contou. Com o medo superado, surgiu outro. O da solidão. No início, temia estar sozinha por causa de ladrões. O bairro onde residia era conhecido pela violência e pela proximidade com o Presídio Regional. “Não gostava de ficar sozinha em casa. Quando o Jorge saía, temia que entrasse alguém e eu não pudesse fazer nada”, recordou. A morte de Jorge, há 14 anos, fez esse medo aumentar ainda mais. Romilda precisou contar com a ajuda de cuidadoras. Entre-

tanto, em algum momento elas precisavam ir embora e a idosa ficava sozinha. Certa noite, a empregada saiu para uma festa e Romilda viveu momentos de pânico. “Escutei barulho no telhado da casa. Não consegui dormir mais”. No dia seguinte, as marcas de sangue no chão do pátio evidenciaram a passagem de algum invasor por lá. As pegadas foram provocadas por cacos de vidro colocados em cima do muro para evitar a entrada de ladrões. “Até hoje não sei quem foi que entrou lá. Mas naquela noite senti muito medo”, contou a aposentada. A outra razão por sentir medo da solidão permanece até hoje. A idade trouxe limitações físicas e os tombos ficaram mais frequentes, mesmo contando com o auxílio de uma bengala. As idas ao quintal, que Romilda tanto gostava, passaram a ser mais difíceis de

realizar. Em uma das tentativas sofreu uma queda grave, que lesionou sua coluna e provocou ferimentos na cabeça. Mas ninguém estava ali para ajudá-la. Nem a cuidadora, nem os vizinhos. O desespero tomou conta da idosa e ela ficou horas esperando por alguém. “Eu gritei ‘ninguém me escuta, ninguém me escuta’, mas não adiantou”. O acidente tornou-se um trauma para Romilda. “Sangrei muito aquele dia e, desde então, temo passar mal ou sofrer uma queda e acabar pior”, explicou. Para Romilda, o medo da solidão foi justificado pelos sofrimentos que já passou. E é por isso que ele assombra os pensamentos dela por tanto tempo.

Maria Helena Lersch mariahlersch@yahoo.com.br

Em cada idade, um pavor diferente Quem pensa que o medo da solidão surge apenas na fase adulta se engana. O pequeno Vitor Dreher, de 5 anos, já teme estar só. Talvez ainda não compreenda a solidão como uma profunda sensação de vazio, mas já sabe que estar na companhia de alguém é mais confortável e seguro. Conversei com pessoas de diversas idades, dos 5 aos 92 anos. Assim como para Vitor e Romilda, o medo da solidão foi apontado por pelo menos uma pessoa de cada faixa etária entrevistada. Confira abaixo outros medos citados pelos colaboradores:

• Dos 5 aos 8 anos: temporais e cachorro • Dos 14 aos 16 anos: altura, ter câncer, passar fome ou sede, não ser reconhecido profissionalmente, não passar no vestibular, microondas e de portas automáticas • Dos 25 aos 30 anos: perder familiares e não conseguir realizar sonhos • Dos 45 aos 52 anos: perder os filhos, violência, temporais, cachorro, sapo, ser enterrado vivo e bêbados • Dos 82 aos 92 anos: da morte e temporais.


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9 O medo é um dos motivos que faz muitas mulheres seguirem um relacionamento abusivo e se calarem perante a violência doméstica. Conheça a história de Joana que viveu e se feriu em uma relação abusiva por quase duas décadas.

Ciclo da violência doméstica

Não era amor, era abuso

“Mulher minha não usa essa roupa”, “batom vermelho é coisa de vagabunda”, “se você me deixar eu me mato”. Você já deve ter ouvido pelo menos uma dessas frases alguma vez na sua vida, seja do seu namorado, do namorado da sua amiga, do seu brother para a namorada dele ou até mesmo você pode ter dito. As atitudes possessivas e controladoras e a chantagem emocional são alguns indicativos de que você está em um relacionamento abusivo. O recorte feito nesta matéria é de relações abusivas entre homens e mulheres, mas existem também em relações homo e transafetivas. Segundo Gabriela Felten da

Maia, psicóloga no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), a relação abusiva “é uma expressão de relação de gênero desigual porque majoritariamente são as mulheres que apanham, que sofrem e que são assassinadas. Isso não é à toa”. Joana* conheceu Cláudio* em 2000. Na época ela estava separada do primeiro marido, com o qual teve uma filha, hoje com 18 anos. Era vizinha de porta da mãe de Cláudio e, sempre que conversavam, a mãe tocava no assunto do filho solteiro. No natal daquele ano, Cláudio, que viajava muito a trabalho, retornou à casa da mãe

Se acumulam os insultos, crises de ciúmes, agressões e ameaças. A vítima tenta acalmá-lo, evita a discussão e, com medo, torna-se obediente ao agressor.

Fase da agressão

Fase da tensão Fase da lua de mel

e conheceu Joana. Os dois se apaixonaram e mantiveram um relacionamento escondido por dois anos, até que em 2002 conversaram e decidiram morar juntos. Dessa união nasceram dois meninos, hoje com 14 e 4 anos. Em 2006, Cláudio sofreu um grave acidente de moto que o deixou com o rosto desfigurado e meses sem caminhar. Joana dividiu sua atenção entre o filho pequeno e o marido que precisou reaprender a andar. Após o acidente, começou a notar mudanças no comportamento do companheiro. Usuário de drogas desde a adolescência, Cláudio voltou a fazer uso de entorpecentes

– entre eles álcool e cocaína – e se mostrou agressivo, revoltado com a esposa, segundo ela, por motivo nenhum. “Ele me ajudou muito na vida e eu ajudei ele também. Se ele não usasse droga ele seria um ótimo pai e um ótimo marido, mas isso não justifica”, conta ela. Foi internado em clínicas de reabilitação diversas vezes, mas ao cumprir o tempo de internação acabava retornando ao vício e, consequentemente, a violentar Joana. Em casa, os gritos com humilhações, agressões físicas, ameaças de morte e desconfianças se tornaram constantes. Houve vezes em que chegou alterado em casa e levantou

Tipos de violência doméstica • Violência psicológica: são os xingamentos, ameaças, intimidações, chantagens e humilhações feitas pelo parceiro. Exemplos: Desconsiderar a opinião, diminuir a autoestima, impedir que ela trabalhe/estude. • Violência física: qualquer ato que fere a integridade física da mulher, como bater, torturar, mutilar, morder, puxar os cabelos, usar faca ou arma de fogo. • Violência sexual: obrigar a mulher a presenciar, manter ou participar de uma relação sexual contra a sua vontade. Exemplos: Forçar relações ou práticas sexuais, obrigá-la a ter relações com outras pessoas, impedir que a mulher previna a gravidez ou forçá-la a realizar o aborto. • Violência patrimonial: controlar ou reter o dinheiro da mulher, destruir objetos e documentos pessoais da vítima. • Violência moral: humilhá-la publicamente, expor a vida íntima do casal, causar difamações ou inventar histórias falsas sobre a vítima.

o cobertor da cama, onde a mulher dormia, para procurar os amantes que só existiam na sua imaginação; em outras Joana deixou a casa de dia e à noite, segurando os filhos nos braços – com medo de que o companheiro a matasse. Foram dezesseis anos convivendo com a violência doméstica. “Ele me batia na frente da mãe dele, e ela não me defendia. - Eu não posso fazer nada, ele é meu filho, ela me dizia”. Mudaram-se de cidade na esperança de que algo melhoraria, mas não adiantou. Cláudio continuou frequentando as “bocas de fumo”. Passou a usar crack e a trocar pequenos pertences por drogas. Bem, não tão pequenos assim. Antes da última internação, em julho deste ano, “vendeu” seu carro a um traficante por R$ 250,00 para alimentar o vício. Seu irmão, preocupado, decidiu enviá-lo para a região metropolitana de Porto Alegre, para mais uma vez receber tratamento. No último surto sob efeito de drogas, em julho, Joana viu Cláudio ameaçar ela e o filho pequeno de morte e jurou

Aumentam as agressões verbais e físicas, além do descontrole do parceiro. A mulher sente medo e ansiedade.

para ele – e para si mesma – que não viveria mais desse jeito. Após levarem o companheiro para a clínica mudou-se de casa sem dar seu endereço a ninguém e hoje só pensa em viver tranquila e cuidar dos filhos. “Eu não quero mais. Ajudar ele como amigo sim, porque ele é pai dos meus filhos, mas como marido eu não quero mais. Eu nunca vou esquecer o que ele me fez”.

“No fundo ela gosta de apanhar” É o que muitos pensam quando uma mulher permanece em um relacionamento abusivo, mas existem outros fatores por trás. Joana, por exemplo, teve medo de que o parceiro pudesse se vingar. Desta forma, ela calava-se. Contava com ajuda de amigos e vizinhos que viam a situação, mas a aconselhavam: “Não faça nada pois será pior”. O medo de romper o relacionamento com o abusador e este revidar é muito recorrente entre as mulheres envolvidas nesses casos. Segundo a pesquisa realizada em 2013 pelo Data Popular

Após tudo isso o agressor se diz arrependido, mostra-se carinhoso, promete nunca mais repetir as agressões e faz de tudo para ter a vítima de volta. O ciclo costuma se repetir, com mais intensidade e menor intervalo entre as fases. medo, torna-se obediente ao agressor.

e o Instituto Patrícia Galvão, 85% dos 1.501 entrevistados concordam que a mulher que denuncia seu marido/ namorado/companheiro agressor corre mais risco de ser assassinada por ele. É comum vermos casos de relacionamento abusivo expostos, na maioria das vezes, quando a violência física torna-se tentativa de assassinato ou a consumação dele. Mas, além desta, existem, segundo a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), outras formas de violência. Nos casos de violência contra a mulher, o CREAS de Santa Cruz do Sul oferece atendimento psicossocial para enfrentamento e fortalecimento da mulher que sofreu agressão. “A questão é produzir uma nova forma de encarar essas violências, que a pessoa possa ressignificar esse processo de tal forma que ela consiga fazer esses enfrentamentos quando necessário”, explica Gabriela. A psicóloga completa ainda que para trabalhar a violência contra as mulheres o profissional deve ter a sua escuta treinada. “Elas não vão chegar dizendo, elas vão trazer pelas

queixas de saúde. Falta ou excesso de sono, falta de ânimo, choro intenso, que vão ser tratados como se fossem esses os problemas e não se vai perceber que existe mais coisa aí”. Além do CREAS, existe em Santa Cruz do Sul o Conselho Municipal de Direitos das Mulheres de Santa Cruz do Sul, que trabalha com o objetivo de formular e propor políticas públicas e ações para garantia dos direitos da mulher. Segundo a presidente do Conselho, Susana Teresinha Gaab, a violência doméstica é uma questão cultural. Susana conta que é necessário abordar esses assuntos com os jovens pelo fato de que nessa idade eles estão começando a se relacionar e é preciso desconstruir esse pensamento de posse. *Os nomes usados nessa reportagem são fictícios para a preservação da identidade da vítima.

Caroline Fagundes carolinefpieczarka@gmail.com


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11 Sentir medo é ruim, mas sentir medo sozinha é pior. Passar pela insegurança das ruas é algo que precisa ser enfrentado por muitas mulheres e nem sempre surge a esperança de uma companhia. Mulheres se unem e juntas tornam-se mais fortes.

quando as mulheres se unem contra a insegurança Quem é mulher e já andou sozinha em uma rua escura sabe o frio na barriga que dá quando ouve passos vindos de trás. Impossível saber qual o caráter daquele que está nos seguindo. Pode ser apenas uma pessoa comum, um homem bom voltando do trabalho ou até uma mulher. Mas também, pode se tratar de uma pessoa perigosa que está de olho em você há bastante tempo. Além disso, há aqueles que quando passam por nós, mulheres, soltam piadinhas ou frases grosseiras. Alguns chegam a passar a mão. A solução pode estar na companhia. Quando duas mulheres andam juntas na rua, as chances de serem atacadas diminuem. A ‘sororidade’ – quando as mulheres se tratam como irmãs – facilita a vida de quem tem medo de andar só. Se Laura* estivesse acompanhada, talvez não destacasse sua vulnerabilidade e não tivessem levado sua

inocência tão facilmente. A estudante de 20 anos, moradora do interior de Venâncio Aires, lembra com detalhes dos momentos de horror que passou na adolescência, quando foi vítima de violência sexual por dois criminosos. O medo daquela sextafeira, 13 de julho de 2008, ficou impregnado na pele da jovem. Não se trata de medo de gato preto, bruxa ou lobisomem, como legam as superstições. O medo é de gente, gente do mal. “Era de tarde, inverno, frio. Fui à casa dos meus padrinhos que são meus vizinhos. Ia passear na casa deles e convidá-los para a Festa de São João da minha escola que seria na próxima sexta-feira, dia 20”, relatou a jovem. Após chegar ao local, percebeu que não havia ninguém em casa e resolveu esperar. Sentou-se em um muro da frente. Enquanto isso, passaram dois homens caminhando na estrada.

Como ficou com medo, saiu correndo e tentou se esconder. Procurou abrigo no porão da casa dos padrinhos. Porém, foi vista por aqueles homens, que foram atrás dela. Eles a encontraram. Lá dentro, a estupraram. Laura passou por momentos horríveis e, inclusive, foi ameaçada com uma faca e uma arma. “A arma estava sem bala e até pensei que fosse de brinquedo, mas quando vi a faca, pensei que ia morrer”, contou a garota. Depois de tudo, largaram ela no porão e disseram que se fugisse, a pegariam novamente. Após a violência sexual, ela voltou para o muro e aguardou a volta dos padrinhos. Quando chegaram, a levaram para a casa dos pais, onde teve que enfrentar a vergonha de contar em detalhes as brutalidades que sofreu. Laura foi para o hospital, onde foram feitos os exames necessários. Em seguida, foi feito registro

policial. Na segunda-feira, os acusados foram presos.O medo que Laura sentiu a acompanha até hoje. Logo após o acontecimento, não conseguia nem dormir sem trancar a porta do quarto. Diz que ainda sente muito medo de andar desacompanhada na rua ou ficar sozinha em casa: “é muito difícil lidar com isso até hoje, ainda não superei, tenho muito medo”.

Vai sozinha? Não, nós vamos juntas Foi pensando em amenizar o medo de tantas mulheres que transitam sozinhas na rua à noite, que uma jornalista de Porto Alegre criou o movimento Vamos Juntas?. Uma simples página no Facebook, de autoria de Babi Souza, tornou-se, em pouco tempo, a solução para muitas mulheres pelo Brasil a fora. O objetivo é fazer com que elas se encontrem e realizem seus trajetos juntas, pois as-

sim, diminuem as chances de sofrer alguma violência nas ruas. O ato chamado de sororidade tem movimentado o país e salvado muitas das que o praticam. Todos os dias, Babi recebe inúmeras histórias de mulheres que por meio do movimento acabaram se ajudando. Uma das situações relatadas é de Thabata Machado, de Santo André, São Paulo, que contou o seguinte: “Peguei o ônibus errado voltando da faculdade de noite, era umas 23h. Perguntei pro motorista como fazia para pegar o certo e ele me indicou parar do outro lado de um viaduto. Desci do ônibus e estava andando sozinha. Vi que tinha um homem me seguindo. Apressei o passo e ele também. Comecei a correr e ele também. Não havia nenhum estabelecimento aberto. Atravessei a rua correndo e uma mulher que estava vindo do sentido contrário agarrou meu braço

e piscou pra mim. O homem passou do nosso lado nos encarando, mas nada fez. Ela me levou até um bar que conhecia e de lá consegui ligar pro meu pai me buscar. Ela me salvou! ”. O movimento vem ganhando cada vez mais força e, inclusive, está sendo criado um aplicativo para celular. No App, será possível encontrar companheiras para as caminhadas noturnas. E talvez seja disso que precisamos: mais amor ao próximo. E enquanto que alguns homens não percebem isso, as mulheres que continuem se ajudando e se unindo por mais segurança; em nome da sororidade. *O nome usado nessa reportagem é fictício para a preservação da identidade da vítima.

Veridiana Röhsler veridianarohsler@gmail.com


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13 Você vai descobrir como uma policial militar da Patrulha Maria da Penha e uma pedagoga especialista em trânsito são capazes de dar mais segurança e confiança a moradores de Santa Cruz do Sul, tornando a rotina deles mais fácil e tranquila.

Elas são especialistas em espantar medos

desde janeiro de 2014 ela faz parte, junto com o também soldado Rafael Koch Denardi, 28 anos, da Patrulha Maria da Penha. Ao contrário dos demais PMs, o trabalho deles não é patrulhar as ruas para evitar o crime. Com estrutura diferenciada que inclui até viatura de uso exclusivo, Karoline e o colega têm a missão de fiscalizar o cumprimento das decisões judiciais que protegem mulheres vítimas de violência doméstica. Em pouco mais de um ano e meio, já são 430 no-

mes a serem monitorados pelo serviço da Brigada Militar, que transita entre a atividade policial e a atividade social. Destes, 360 são ativos, ou seja, recebem visitas ou contatos regulares da dupla. A maioria das vítimas vive na chamada Zona Sul de Santa Cruz, onde ficam os bairros mais vulneráveis. “Somos preparados para lidar com dois tipos de medo. Primeiro, o medo de denunciar o agressor, de registrar ocorrência contra ele. Segundo, o medo de represália, de voltar

a ser vítima de violência”, resume Karoline, que quando está de farda usa “soldado Dias” como nome de guerra. As duas barreiras são vencidas com muito diálogo, embora a aproximação da polícia também ajude. “Estabelecemos uma relação de confiança com as mulheres, o que as deixa à vontade. Elas sabem que poderão contar conosco”, afirma. A policial acredita que o primeiro medo é sempre mais difícil de ser derrubado. Principalmente porque,

foto: Igor Müller

foto: Igor Müller

Karoline Dias da Silva tem 24 anos e é formada em Administração. Semia Marques Arruda, pedagoga, tem 35. As duas são forasteiras que escolheram Santa Cruz do Sul para fazer a vida. Karoline veio de Cachoeira do Sul e Semia de Campina Grande, na Paraíba. Em comum elas têm a prática de espantar medos - dos outros. É o que lhes garante aquela sensação de dever cumprido. No caso de Karoline, espantar medos é quase uma obrigação. Policial Militar (PM) há três anos,

na maioria dos casos, o afastamento determinado pela Justiça envolve mais do que a relação entre marido e mulher. Significa o afastamento de pais e filhos. Há também os casos de dependência financeira, o que agrava ainda mais o problema. “É sempre uma situação difícil, às vezes até procuro me colocar no lugar das vítimas. Por isso damos o máximo de atenção e tentamos encorajá-las a quebrar o ciclo de violência”, relata Karoline. Feita a denúncia e expedida a ordem judicial de proteção, é hora de ajudar as mulheres a vencerem o segundo medo. Para isso, vale até ficar de sobreaviso. Nos casos mais graves ou com maior risco, Karoline e o colega tentam reduzir o período entre uma visita e outra e até deixam os números pessoais de telefone com as vítimas. Segundo a soldado, a iniciativa garante atendimento mais rápido em relação ao 190, central que recebe todos os chamados da BM. E a tática da confiança funciona. Segundo a policial, saber que pode contar com uma equipe especializada acaba diminuindo o medo das mulheres. “É uma satisfação enorme quando, visita

após visita, constatamos que elas voltaram a ter uma vida mais tranquila, sem medo”, relata Karoline.

SAI A INSEGURANÇA, VEM A LIBERDADE Além de espantar medos, a paraibana Semia normalmente entrega, de bônus, uma certa sensação de liberdade. Especialista em trânsito, ela já fez de tudo em um centro de formação de condutores (CFC): foi de instrutora a diretora geral. Hoje trabalha em projetos da área em uma empresa de tecnologia de Vera Cruz. Nas horas vagas ajuda motoristas já habilitados - a maioria mulheres - a vencerem o medo de dirigir. Na verdade são aulas. Aulas de confiança. Este é outro ponto que aproxima a pedagoga da administradora e policial: ambas usam a confiança para espantar o medo alheio. Ainda com sotaque nordestino - apesar de viver há quase uma década em Santa Cruz -, Semia conta, sorrindo, que é adepta ao que chama de tratamento de choque. E dá certo, pois até hoje apenas uma aluna não fez uso da carteira de motorista depois da última aula. “Nor-

malmente elas me procuram porque têm medo de dirigir. Sabem, são habilitadas, mas têm medo. E o que mais temem é o julgamento alheio em caso de alguma falha”, lamenta a especialista no assunto. O segredo é desafiar as alunas, sempre passando confiança. Semia sequer manobra o carro no lugar delas. “Não assumo a direção. Confio no meu trabalho e na capacidade das alunas. Procuro encorajá-las”, diz a instrutora, que afirma vibrar sempre que uma recebe “alta”, como ela define. “É uma grande vitória. Elas ganham liberdade, não precisam mais depender de táxi, de carona ou da ajuda da família para ir e vir. É uma habilidade a mais e um medo a menos na vida”. Cada aula dura 50 minutos e normalmente são duas no mesmo dia. Normalmente em uma semana, no máximo, a cidade ganha uma nova motorista - embora para o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) ela já exista.

Igor Müller igorhmuller@gmail.com


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Medo da polícia? Ferimentos nos olhos. Lesões na boca. Cortes no rosto. Machucados pelo corpo. Um ano e meio depois de participar de uma festa no centro de Passo do Sobrado (RS), município onde vive, um jovem recorda os sinais deixados pela violência policial. Jonny Port, de 23 anos, integra as estatísticas do estudo encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho pelo Datafolha. De acordo com o levantamento, 62% dos brasileiros têm medo de sofrer agressões da Polícia Militar. Ao se preparar para uma noite que deveria ser só alegria e diversão ao lado da esposa e a filha pequena, Jonny sequer imaginava que horas depois seria mais uma vítima do uso excessivo da força policial. O pedreiro ficou quatro dias internado em um hospital público após ter sido agredido a chutes, pauladas, socos e pontapés. Hoje, ele carrega as marcas e o trauma deixado pelos ataques de dois policiais militares do Pelotão de Operações Especiais (POE) de Santa Cruz do Sul (RS). Já sem forças, quanto mais suplicava para que parassem, os militares mais lhe desferiam golpes. “Chegaram me batendo. Saí do banheiro e quando vi estava apanhan-

do da Brigada, não cometi nenhum crime”, desabafou Port. O capitão Marconatto, do 2º Comando Regional da Brigada Militar no Vale do Rio Pardo (RS), garantiu que um processo de sindicância foi instaurado para averiguar o caso, os dois soldados prestaram depoimentos, mas não foi constatado que houve abuso na conduta dos agentes. Um inquérito policial foi aberto e aguarda sentença da Justiça Militar do Rio Grande do Sul, responsável pela análise dos depoimentos e a conclusão do processo. Os suspeitos da agressão seguem trabalhando normalmente. Traumatizado e com medo, Jonny Port espera por justiça. A soma assustadora é de 11.197 homicídios cometidos pelas tropas militares nos últimos 5 anos, segundo a 9ª edição do Anuário Brasileiro da Segurança Pública. Só em 2014, 6 pessoas foram mortas por dia. As estatísticas anunciam que o Brasil carrega, também, o título do país que mais mata policiais. No ano passado, cerca de 398 PMs sofreram mortes violentas. Os números foram condenados recentemente pelo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU). A Dinamarca recomendou, na reunião do Conselho

de Direitos Humanos, que o Brasil desmilitarizasse as polícias. A mudança na Constituição, por meio de uma Emenda Constitucional, circulou na pauta do Congresso Nacional em Brasília (DF), mas não foi discutida.

REDUÇÃO Há mais de 30 anos os excessos praticados por policiais militares nas ruas são denunciados pela Anistia Internacional (AI). Intitulado de “Você matou meu filho!”, um relatório divulgado pela organização condena o uso desnecessário da força letal, responsável por milhares de mortes ao longo da última década. Das 5.132 vítimas de homicídios decorrente de intervenção policial entre o 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro (RJ), 99,5% eram homens, 79% negros e 75% jovens entre 15 e 29 anos. Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia, especializado em segurança pública, aponta que os moradores de favelas cariocas têm mais medo da Polícia do que dos bandidos. “A maioria das vítimas são jovens, negros, pobres e moradores de favelas. A prioridade dos governos tem sido a guerra e a guerra tem causado inúmeras mortes”, reve-

O pesadelo da segurança pública lou. Outra constatação do relatório diz que os moradores não denunciam os abusos por medo de represálias. O governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, assegurou, no Palácio Guanabara, que vai implantar ações para coibir os casos de violência envolvendo os policias militares cariocas. “Há muito para ser feito, mas, vamos continuar trabalhando para que a polícia cumpra com seu papel de prender criminosos e garantir a segurança da população”, disse Pezão em entrevista exclusiva ao Unicom. O Brasil é o país com maior número de assassinatos no mundo: 54 mil pessoas foram mortas em 2013. Por telefone, a secretária nacional de Segurança Pública, Regina Miki, disse que o governo pretende anunciar um Pacto Nacional de Redução de Homicídios. “O Pacto deverá reforçar as ações integradas do Ministério da Justiça. Temos trabalhado para valorizar, reequipar e capacitar as forças estaduais e federais de segurança pública”, contou.

Régis de Oliveira Jr regisojr@gmail.com

José Mariano Beltrame é o braço forte da segurança do Estado do Rio de Janeiro (RJ) há mais de oito anos. Gaúcho, natural de Santa Maria (RS), articulou uma audaciosa iniciativa contra o crime e o combate à violência. Beltrame é o idealizador do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na cidade carioca. Passados sete anos de implantação, o número de homicídios no Estado do Rio despencou para 25 a cada 100 mil habitantes, a menor taxa da história, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em entrevista exclusiva ao Unicom, Beltrame comentou as estatísticas do estudo encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo instituto de pesquisa Datafolha. Segundo o levantamento, 62% dos brasileiros têm medo da Polícia Militar. Por que os brasileiros têm medo da polícia militar?

Considerando os tempos de repressão e os momentos difíceis que vivemos no passado, de uma certa forma, a sociedade se afastou da polícia e a polícia se afastou da população. No Rio de Janeiro, algumas pessoas tinham que fazer determinadas coisas impostas pelo tráfico. É preciso evoluir muito e avançar no treinamento e na capacitação dos policias militares.

O modelo das Unidades de Polícia Pacificadora tornou-se referência mundial de segurança pública. Essas UPPs cumprem com seu papel?

As Unidades de Polícia Pacificadora cumprem com seu papel, porque seu papel é um só. A ideia é garantir a liberdade de ir e vir, nada mais. Não é acabar com o tráfico e outras coisas. Por exemplo, Prefeitos e Governadores passados que não implantavam uma creche na Mangueira, porque o tráfico não deixava. Agora, nos lugares pacificados, os governos podem pagar sua dívida com a população.

Moradores do Complexo da Maré denunciaram abusos das forças de pacificação no ano passado. A Secretaria de Segurança Pública do Rio apurou esses relatos? Foi constato alguma irregularidade nas abordagens dos policias?

Em 2014 a Maré não estava em processo de pacificação com a polícia militar do Rio de Janeiro, as forças que estavam ali eram do Exército. O Batalhão de Choque que estava cobrindo a Avenida Brasil, começou a ser atacado por alguns elementos com pedras, chamaram o BOPE, que teve um sargento alvejado ainda dentro da van. Houve cinco mortos que estão em fase final de apuração, sim. Não deixamos nada embaixo do tapete. Punir aqui não é o problema, pois já estamos com mais de dois mil policiares nas ruas. No momento em que chegarmos à conclusão desse fato pela Delegacia de Homicídios e pelo Ministério Público, o que for apurado nesses processos vai ser feito, não tenha dúvidas disso. foto: Exército Brasileiro

Original: clipartlogo - edição: Évelyn Bartz

O temor policial é registrado em números: 62% da população diz ter medo da polícia, ou seja, seis em cada dez brasileiros. Dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública revelam o desastre de um sistema de policiamento violento e ineficiente.


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17 O medo era essencial para a manutenção da ditadura. Fazia parte de uma arma de propaganda tão intensa quanto aquela da Oceânia de George Orwell no livro 1984. Não havia compromisso com a verdade e a perseguição ocorria diariamente.

O TEMOR DE UMA ÉPOCA

NÚMEROS DE VÍTIMAS DA DITADURA NO BRASIL DE 1964 A 1985 434 pessoas mortas e desaparecidas 210 desaparecidas

Fonte: Comissão Nacional da Verdade – Relatório divulgado em dezembro de 2014

Na virada de março para abril de 1964, quando o Brasil sofria o golpe civil-militar, Santa Cruz do Sul, que hoje chega a quase 120 mil habitantes, não contabilizava mais de 22 mil pessoas no seu território. Poucos sabiam da existência do golpe e, o pouco que sabiam, veio de forma descontínua e descontextualizada pelas rádios e jornais. Ali se iniciava um período que deixaria de herança 434 vítimas entre mortas e desaparecidas no Brasil, segundo dados da Comissão Nacional da Verdade divulgados em dezembro de 2014. Para além dos números oficiais, muitas vidas foram afetadas direta ou indiretamente pelo golpe nos 21 anos subsequentes a este instante histórico, até em cidadelas como Santa Cruz do Sul. Foram tempos difíceis, prezado(a) leitor(a). A perseguição, a repressão e o terror fizeram parte do cotidiano de muita gente. Luiz

Augusto Costa a Campis tinha menos de 10 anos na época de implantação do regime e era incapaz, em tenra idade, de entender a complexidade das relações humanas e políticas. Contudo, não era necessário compreendê-la, pois, naqueles dias se iniciava um regime baseado, exclusivamente, no dever cego à nação, o que não necessariamente seja a obrigação moral à população do país, mas ao grupo que o controlava. Aquele menino, que mais tarde se tornou sociólogo e professor universitário, recorda até hoje um episódio emblemático da propaganda de terror: “Lembro-me como se fosse ontem. Estava jogando bola com meus amigos na rua e apareceu um milico. Ele nos disse para ir para casa, pois o Brasil havia entrado em guerra contra a União Soviética.” Obviamente, ele era incapaz de entender o que isso significava na época. Entretanto, o instante resgatado

na sua memória apresenta a força da máquina alarmista de pânico contínuo daqueles dias, que não poupava nem as crianças. Neste tempo, ou tu eras patriota, isto é, seguias sem questionar o regime, ou tu eras considerado ilegal, serias perseguido e sofrerias pressões nas mãos dos militares.Um caso que nos ajuda a entender isso ocorreu em Rio Pardo e tem início quase dois anos antes do golpe. Em julho de 1962, após se destacar num concurso público, Gilberto Calderaro começou a trabalhar no Banco do Brasil na unidade da cidade. Em setembro, o jovem participou, juntamente com os colegas, de uma greve da categoria. A paralisação durou pouco, mas o seu nome ficou registrado. Logo no primeiro mês do governo militar, no dia 30 de abril de 1964 – véspera do dia do trabalhador, o servidor do banco foi preso pelos militares no seu local de trabalho. Qual era a base para a

detenção? Segundo Calderaro uma conjectura. Os militares supunham que ele teria sido um dos líderes locais daquela greve dos profissionais da classe. “Achavam que eu era comunista. Mas eu era apenas um servidor com dois meses de trabalho e pouca influência sobre os colegas”, declara. O funcionário do banco foi levado para “passear em caminhão aberto pela cidade”, na expressão dos milicos, e assim sofrer humilhação pública. Depois vieram intensos interrogatórios e seções de tortura psicológica, nas quais os militares diziam que havia fortes denúncias contra ele (o que nunca foi comprovado). Ao fim, Gilberto foi absolvido por falta de provas e foi realocado para uma sucursal em Ibicaraí, na Bahia. “Não dá para descrever a revolta íntima que, num momento desses, a pessoa é capaz de sentir”, relata. Em 1968 – o fatídico ano do Ato Institucional nº5, a

repressão sobre Calderaro continuou. Após adoecer na Bahia, ele voltou à região e participou de um movimento estudantil que ajudou a trazer para Santa Cruz do Sul o primeiro curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais, que viria a se tornar o curso de Direito. Quando houve a eleição para a presidência do Diretório Acadêmico, o estudante já fichado pelo regime foi eleito. Os militares intervieram. O acadêmico foi chamado ao gabinete do diretor da faculdade. Lá lhe aguardava um representante do governo que prontamente o questionou se ele não era funcionário do Banco do Brasil. “Eu disse que sim e que entrei no banco pela porta da frente, por concurso público. Ele respondeu: vai querer perder o seu emprego? Eu disse que não via relação nenhuma do meu emprego com o diretório e, se eles quisessem, que ficassem com o meu emprego.” No entanto, por pressões

militares o aluno assinou a renúncia e a eleição foi anulada. A perseguição continuaria. Quando chegou a tão esperada formatura, em 1972, Gilberto foi eleito o orador da turma. Tão logo soube, o comandante local do exército exigiu que o jovem levasse o discurso a ser proferido em público previamente ao quartel para que o texto fosse examinado. “Disse que o discurso seria feito de improviso. O comandante não aceitou”, afirma. Os militares novamente interferiram e foi feita uma nova escolha do orador. Secretamente, os colegas solicitaram a Calderaro que indicasse o substituto e assim aconteceu. Até o fim da ditadura, em 1985, o advogado e sua família tiveram suas vidas vigiadas e seus telefones grampeados. Hoje ele ainda recorda: “As pessoas não podiam se reunir. Se reuniam três ou quatro pessoas, já era motivo para que a repressão viesse a

agir”. O período da ditadura deixou cicatrizes imensuráveis. Muitos que conviveram com o pavor constante durante boa parte de sua vida ainda mantém uma inquietação no seu cotidiano. “Às vezes ainda tenho receio de curtir algum post no Facebook. Me pergunto, será que não estou sendo vigiada?”, reflete Maria Luiza Schuster, diretora de um museu em Santa Cruz do Sul. O medo de uma época perpassa gerações. O receio da volta a um tempo sem perspectivas de liberdade, causa calafrios em quem conviveu com essa realidade. É bom lembrar Orwell: “Quem controla o passado controla o futuro”. É salutar relembrar os medos de uma época para que eles fiquem apenas na história e não voltem jamais ao nosso cotidiano.

Thiago Carlotto thiagohcarlotto@gmail.com


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19 Após enfrentar a ocupação nazista da Segunda Guerra Mundial na Bélgica, Ludovicus Goolenaers e seus pais sobreviveram e enfrentaram o medo de cruzar o Oceano Atlântico. Vieram parar em Santa Cruz do Sul, onde reconstruíram suas vidas.

foto: Paola Severo

foto: arquivo pessoal

Percorrendo os caminhos da lembrança

Na madrugada de 28 de maio de 1940, a vila de Merksem, na Bélgica, foi acordada pelo som de tanques, caminhões, motos, e gritos de soldados alemães. A tática da guerra-relâmpago empreendida pelas Wehrmacht, as forças armadas alemãs, na Segunda Guerra Mundial pegou os moradores de surpresa e alterou rapidamente a rotina do lugar. A ação não encontrou resistência, uma vez que o Rei Leopoldo se rendeu e os governantes já haviam fugido para Londres. O jovem Ludovicus Antonius Goolenaers, então com apenas oito anos de idade, ainda não sabia o que aquela movimentação significava, mas mesmo assim sentiu medo. Hoje com 84 anos e vivendo em Santa Cruz do Sul, Ludovicus ainda lembra das primeiras mudanças que a guerra trouxe à sua vida. “O comando do exército alemão usou a escola como quartel general, então cancelaram as aulas”, conta. Seus pais, Jose-

fina e Petrus, eram filhos de colonos, mas trabalhavam como cobradores do bonde, na cidade que faz parte da província da Antuérpia. Com a suspensão das aulas, o jovem e único filho do casal tinha a obrigação de buscar os cupons de comida e trocá-los pelo alimento quando o racionamento começou. “Eu era pequeno, e caminhava longe e ficava muito tempo na fila para pegar os cupons. Na hora da troca sempre tentavam me lograr por que eu era pequeno, mas eu não deixava.” Os moradores de Merksem recebiam uma ração diária que incluía pão e cerca de 300 gramas de carne por dia. A comida e os combustíveis eram controlados pelo exército. Eventualmente, os soldados traziam caminhões de peixe e cada pessoa podia retirar um quilo. Com o dinheiro dos pais, Ludovicus ainda andava de bonde até a borda da cidade para buscar batatas e farinha compradas direta-

mente de outros comerciantes, porém de forma ilegal. O convívio com os soldados alemães era cordial, apesar da ocupação. “Os soldados rasos eram mandados, não nos causavam problemas, conversavam com as pessoas da vila e até tentavam ajudar” explica. “O problema eram os soldados da SS, eles não perdoavam”, relata, lembrando da rigidez dos soldados ao cumprir ordens e do medo que sentia ao ver os uniformes escuros dos oficiais de alta patente. Tropa de elite de Hitler, a Waffen Schutzstaffel era composta por membros que seguiam de forma rígida a ideologia nazista, e ficou conhecida pelos crimes de guerra e atrocidades tais como o genocídio cometido nos campos de concentração. A relativa tranquilidade da ocupação foi deixada de lado em 1941 com a escalada da guerra na Europa. Os moradores enfrentaram um racionamento mais rigoroso,

além de seguir um estrito toque de recolher, que começava às 18 horas. Neste período, Ludovicus Goolenaerts lembra que o medo passou a ser companhia constante. “O único meio de conseguir notícias era por meio do rádio, e alguns moradores conseguiam captar a BBC de Londres. Mas se os soldados da SS ficavam sabendo, eles entravam na casa, confiscavam o rádio e levavam as pessoas embora. Nenhuma delas voltava” relata, reforçando que isso aumentava o temor dos moradores. Por volta da mesma época os bombardeios aéreos passaram a ser recorrentes. Nestes momentos de pavor, a família se refugiava no porão do pequeno prédio de quatro andares onde morava, junto com as outras famílias. O senhor de hoje lembra do menino que ficava impaciente pelas longas horas de espera até o aviso de que poderiam deixar o local em segurança. “Eu tinha muito

medo do barulho, e de algo acontecer, mas mesmo assim era curioso e sempre queria subir para ver os aviões pela janela”, menciona, lembrando dos incêndios causados pelas explosões e de ver o clarão dos tiros pela janela. Em 1944 as Forças Aliadas entraram em combate direto com o exército alemão em Merksem, expulsando-o do território e terminando com quatro anos de ocupação. Deste momento, Ludovicus lembra sobretudo da alegria: “Todos comemoravam nas ruas, os moradores junto com os soldados americanos e canadenses”. Os soldados aliados ainda presenteavam os moradores, com cigarros e chocolates.

O caminho para o Brasil O período de paz em Merksem foi seguido pelo reestabelecimento dos serviços básicos e pelo fim do racionamento de comida.

Muitos prédios foram danificados e destruídos pelos bombardeios, mas em alguns meses foram restaurados e reconstruídos. No entanto o período pós-guerra não trouxe a tranquilidade esperada. “Se falava muito que os Estados Unidos e a Rússia iam entrar em guerra na Europa, e meu pai tinha muito medo, por isso decidiu que íamos nos mudar para o Brasil.”. Tudo organizado com antecedência, a família veio parar no Porto de Santos após 22 dias no navio. Da travessia, Ludovicus lembra apenas dos dias infinitos de azul do céu e do mar, e da Torre de Babel formada pelas diferentes nacionalidades que viajavam a bordo. Na chegada, a família pegou um trem, e foi fazendo baldeações até chegar a Santa Cruz do Sul, indo depois para Sinimbu, onde se estabeleceram durante oito anos trabalhando no campo, na localidade de Pinhal Santo Antônio. No Bra-

sil a família teve novas oportunidades, e construiu uma nova vida. Em Santa Cruz do Sul, Goolenaerts trabalhou muitos anos como mecânico da Agência Ford. Em 1958 casou-se com a santa-cruzense Iracema Dummer, com quem teve uma filha, Ângela.Nos olhos cansados de um homem que deixou para trás seu país se formam lágrimas, e Ludovicus diz que gostaria de ter visitado a Bélgica novamente, levando a esposa já falecida, mas sempre lhe faltou dinheiro e oportunidade de voltar. O idioma flamengo está hoje quase esquecido, pois desde que o pai faleceu em 1987 nunca mais conversou com ninguém. As lembranças são o que resta de sua história nunca antes contada, de uma família que enfrentou seus medos e prosperou.

Paola Severo severo_paola@yahoo.com.br


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21 O medo de não poder sentir medo. Há profissões em que essa frase é regra. Um bombeiro e um militar legionário, que arriscam a própria vida para salvar a do próximo, contam como lutam diariamente contra o medo.

foto: arquivo pessoal

nos limita a utilizar 100% das nossas capacidades. Se aprendemos a controlar os nossos medos, somos capazes de enfrentar coisas inimagináveis”, relatou Silveira. O militar deixou o medo na sua cidade natal, Vale do Sol, e decolou em busca do seu maior sonho: fazer parte do mais alto escalão operacional da Legião Estrangeira. Ao chegar à França fez parte do processo para integrar o 2° Regimento Estrangeiro de Paraquedistas (REP), dito a elite da Legião. Em uma semana são mais de sete mil pessoas fazendo diversos testes. No fim dessa semana, 30 conquistam seu lugar na Legião. Em meio a muitos treinamentos, saltos de paraquedas, tiros, explosivos, guerras, combates em meios desérticos, aquáticos e montanhosos, o medo não pode ser cogitado. E

Muitas mudanças. Algumas dúvidas. O medo aflorou e foi a palavra da vez nesse semestre de 2015. Medo de tomar decisões importantes. Medo de não conseguir um emprego. Medo do primeiro dia no emprego novo. Medo do término de um relacionamento que já durava quatro anos. Medo do Projeto de Monografia. Em meio a isso, junto com o projeto e Produção em Jornalismo Online, iniciei a disciplina de Produção de Mídia Impressa, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster. Mais um medo: professor

novo (ao menos para mim). No terceiro dia de aula da disciplina, por meio de sugestões dos acadêmicos, eis que surge o tema do famoso Unicom: medo. A palavra rondou minha cabeça por mais alguns dias. Que pauta farei? Medo? Em uma conversa pelo Facebook com um conhecido que integra o Grupo de Comandos Paraquedistas (GCP) da Legião Estrangeira na França, surgiu uma ideia. Foi ele, que sem querer, auxiliou na construção da minha pauta. Conversamos sobre nossos medos e foi

quando ele me disse: “O meu maior medo aqui é de não poder sentir medo.” Achei a frase forte e inspiradora. Não hesitei em marcar uma entrevista com ele via Skype, já que ele estava a milhares de quilômetros de mim. O militar Clóvis Alex da Silveira, de 30 anos, há sete anos reside em Calvi, no Sul da França. Assim como ele, existem tantos profissionais em que o medo precisa ficar de lado. Outro exemplo disso é o bombeiro. Com a missão de proteger a vida, o patrimônio e o meio ambiente para o bem estar da sociedade,

Rafael Severo, de 33 anos, integra a equipe do Corpo de Bombeiros de Venâncio Aires. Ele diz que nunca sentiu medo a ponto de impossibilitá-lo de prestar um socorro. Tudo deve ser superado, de um jeito ou outro, para que se possa prestar um atendimento adequado. Talvez as histórias desses dois profissionais sirvam de inspiração àqueles que sentem medo e precisam encarar através da coragem e determinação. “O ser humano é uma máquina incrível, mas o medo se torna uma defesa passiva do nosso organismo que

foto: Giuliana Giovanaz

Coragem e determinação acima de tudo

será mesmo que enfrentam tudo sem sentir nada? Foi quase como uma confissão que Silveira me relatou que sentiu medo de uma sala negra nada confortável. Entrou numa terça a noite e ficou lá até sexta, onde os avaliadores ficaram reperguntando as mesmas coisas das entrevistas anteriores para ver a coerência de tudo. “Eu não consigo expressar muito bem em palavras esta sala, apenas sei que nunca mais quero pôr meus pés lá.” Ao ser questionado se foi treinado a não ter medo de nada, o militar respondeu que não existe um treinamento. “O que tentamos é fazer todo tipo de treinamento, se aproximar ao máximo da realidade. Então, o que se cria dentro de nós são alguns automatismos, para que, em questão de segundos, possamos decidir o

que será feito em uma situação de guerra.” Quando um legionário está numa missão, é exigida a totalidade de capacidade do corpo. Silveira diz que são nessas situações que se percebe que o corpo humano é uma máquina incrível. “Com a experiência você sabe como tudo vai passar, com barulho de tiro, explosões, um cheiro insuportável de pólvora. Mesmo parecendo ser o fim, ficamos tranquilos, tomamos decisões conscientes em fração de segundos, sem o direito de errar, pois, se errar pagamos com a vida. Quando falo de ter medo de sentir medo, vem desses momentos.” Na Legião existe medo sim, mas, são superados. Se o medo tenta aparecer, desertar não dá. Então, se enfrenta. Ração ruim, falta de banho, distância dos amigos e da família são coisas que enfrenta e que é adaptável quando se está em missão. É o preço que se paga para se engajar em uma área de combate. Os perigos são reais e eminentes diariamente por lá. No entanto, não existe ninguém inconsciente disso. “Tudo deve estar claro nas nossas cabeças. O corpo e a mente precisam estar sincronizados.”. Já Severo combate incêndio, conduz e opera as viaturas, realiza resgates, salvamento aquático e, acima de tudo, protege a vida, seja do humano, animais ou da natureza. Além de ter que controlar o seu

medo em diversas situações de perigo, o bombeiro ainda auxilia as vítimas, que muitas vezes estão em estado de choque. Há um treinamento para atuar dentro das técnicas necessárias de segurança, tanto pessoal como dos colegas, da cena onde se atua e das vítimas. Severo explicou que o processo é feito através de uma preparação, onde são simulados os diversos tipos de ocorrência que enfrentam. O fato de precisar controlar os seus medos não significa que ele possa fazer tudo. “Somos humanos e temos as mesmas fragilidades que qualquer pessoa. A nossa diferença é que condicionamos o nosso corpo a suportar um pouco mais que outras pessoas”, ressalta o bombeiro. Desta forma, ele aprendeu, por exemplo, que há risco de queimaduras em incêndios, que pode ferirse de várias maneiras ou até mesmo que há a possibilidade de algum contágio por doença através das vítimas. Descobriu que, em um afogamento, sua força e técnica são tão fundamentais quanto a boia que carrega. Apesar de enfrentar tantas situações de riscos, o bombeiro diz que, acima do medo, ele possui um lema: “salvar, salvar, sempre salvar!”

Priscila Oliveira priscillatais@gmail.com


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23 - Mãe, o que tem no céu? – Ah, meu amor, o céu é um lugar muito legal, sabia? Lá existem flores, animais e muita música! E, então, com um sorriso largo, o filho disse: - Ah, então vai ser legal!

OPINIÃO

outubro

foto: blog do câncer

Ao responder essa pergunta, Adriana Bartz já sabia que estava descrevendo o futuro lar de seu filho, Amiucar Marques, que, em 2008, tinha 12 anos. Segundo o Instituto Nacional de Câncer, a história de Amiucar somou-se a de mais 12 mil crianças e adolescentes no Brasil, que, em 2014, foram diagnosticadas com câncer infantil. Esse número corresponde a um grupo de várias doenças que têm em comum a proliferação descontrolada de células anormais em qualquer local do organismo. Os tumores mais frequentes na faixa etária entre 1 a 19 anos são: leucemia no sistema nervoso central e linfoma. A leucemia é como uma montanha russa que descompassa a

vida das famílias. Aqui, vocês conhecerão a historia de duas, das muitas mães que passaram por isso. E, acreditem: ela não faz parte de um parque de diversões. A segunda mãe, Rosemeri Cardoso, é comandada pela esperança e se fortalece na fé. A filha, Franciele Vieira Pinto, de 10 anos, faz tratamento desde os quatro e está na fila à espera de um transplante de medula óssea. Rose, como é chamada, sempre se mostra confiante e transborda alegria ao ver tantas pessoas apoiando a causa de Fran. Ela se tornou conhecida em Santa Cruz do Sul: somente neste ano mobilizou 800 amostras de sangue para encontrar um doador compatível, contudo não obteve sucesso. A bata-

lha ainda não terminou, mas a mãe segue forte, acreditando em Deus e com a certeza de que Fran vai conseguir um doador. No outro lado da cidade, a luta de Adriana provoca um engasgo na garganta. A fé foi deixada de lado e as lágrimas representam a saudade do filho. Foi um ano e sete meses de noites não dormidas na busca pela cura de Amiucar, que foi tirado de seus braços sem dó nem piedade. A vida não deu chances. Ela tentou de tudo: 4 mil tentativas para encontrar apenas um doador em Santa Cruz; nenhuma delas bem-sucedida. O irmão, na época com 8 anos, era 75% compatível. Faltavam 25%. Adriana, buscando novas alternativas, fez um trata-

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Respingos do medo de perder um filho mento às pressas para realizar uma inseminação artificial. O objetivo era gerar mais um irmão compatível para, enfim, salvar Amiucar. Mas não daria tempo. Os médicos não tinham coragem de dizer a verdade. Liberaram o menino para fazer o que tivesse vontade nos seus últimos momentos de vida. Então, voltaram para casa. No dia 15 de julho de 2008, o pesadelo voltou. As doses de quimioterapia não eram mais suficientes. No dia 26 de agosto, Amiucar conheceu o Céu, que há pouco tempo havia sido descrito pela mãe. Ao lembrar-se desse dia, Adriana chora. O antigo quarto de Amiucar passou a ter cheiro de saudade e descrença. A única razão de viver estava no outro filho. Por ele, secou as lágrimas e voltou à luta, realizando o último pedido de Amiucar: não ser esquecido. Para a mãe, existem duas recuperações necessárias: social e emocional. A primeira vem com o passar do tempo. Já a emocional, sempre será incompleta, por razão dos respingos do medo mais duro e sombrio que existe: o de perder o outro filho.

Betina Nunes Sampaio betina_nunes@hotmail.com

Sempre considerei o meu aniversário como o dia mais feliz do ano. Era um dia totalmente meu. É engraçado, mas parecia que mais ninguém comemorava essa data, que o Sol do dia 20 nascia somente para me iluminar. Egoísmo, talvez. Inocência também. E então, o jornalismo mudou mais uma das minhas visões de vida: conheci a história de Amiucar Marques. Entre as primeiras semanas de setembro, fui entrevistar Adriana Bartz – a mãe de Amiucar – para sentir de pertinho um pouco da luta dessa mulher que, há 7 anos, perdeu o filho para o Câncer. Diante de tanta emoção, me perdi em suas palavras. No momento em que ela descrevia seu filho e se remetia às lembranças do menino - guardadas em uma caixa no fundo do quarto – eu viajei. Pensei em como a vida é dura e pesada para uma mãe que perdeu mais que um filho. Perdeu uma criança de 13 anos, que teria uma vida inteira pela frente. Infelizmente, Adriana não verá a formatura do filho ou qualquer outro momento feliz. No fim de nossa conversa, perguntei para Adriana quando o filho fazia aniversário. E ela respondeu: 20 de outubro. Parei por um momento e falei: eu também. Achei o fato tão simples, mas ao mesmo tempo tão imenso. Ora, se Amiucar nasceu em 1995, nascemos no mes-

mo dia, no mesmo hospital, com poucas horas de diferença. Provavelmente já nos cruzamos e nem sabíamos. Esquisito mesmo é pensar que eu também recebi a notícia de que tinha um Câncer. Foi o momento mais lento e inseguro da minha vida: tive medo de perder as pessoas que amava e de não sair da sala de cirurgia. Aliás, o cheiro daquele hospital ainda me persegue. Eu não lembrava mais o que queria ser quando crescer, ou se ainda queria. Só posso dizer que é a maior sensação de impotência da vida de um ser humano. “Ei, eu quero viver”. Mas eu não tinha controle sobre isso. Diferente de um livro, eu não posso controlar o meu próprio final. A boa notícia é que fui escolhida. Fui escolhida para passar por isso e continuar vivendo, amando, aprendendo e ensinando. A má notícia é que nem todos têm essa bênção. O destino de cada um é o quebra-cabeça mais difícil de ser entendido. Na verdade, destinos foram feitos para serem aceitos, apenas. E sobre o título desse texto? Ele tem um significado gigantesco para mim. Uma data que antes era sinônimo de luz, negrinhos e guaraná, agora me lembra uma batalha e provoca reflexão. Histórias cruzadas por uma data que me permitirá realizar o desejo de Amiucar para sempre: o de não ser esquecido.

Betina Nunes Sampaio betina_nunes@hotmail.com


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25 Acidentes, tragédias. Traumas. A pessoa exposta a uma experiência traumática tem medo. Medo de viver momentos que deseja esquecer. Aqui o caso de jovens que vivem com o receio de que o dia mais presente em suas lembranças aconteça de novo.

I E Z I T A

M U A R T Um medo com data de início. Um trauma que modifica vidas. Trauma. O termo grego possui, em si, um significado provável: ferida. Por vezes, incurável e insuperável. O dia 14 de novembro de 2014 era para ser uma sextafeira comum para Ana Júlia dos Santos, de 21 anos. E foi, até a noite chegar e um acidente nas proximidades do quilômetro 121 da RSC-287, em Vale do Sol, tirar a vida de três familiares da jovem: a mãe, o avô e a avó. Até então, seu único medo era de perder pessoas próximas. Depois da tragédia, dirigir na estrada tornou-se um desafio a ser enfrentado diariamente. Ir de um lugar a outro utilizando rodovias nunca foi uma atividade prazerosa para Ana Júlia, porém, devido às responsabilidades de seu dia-a-dia, era comum pegar a estrada. Com o acidente, esta realidade mudou. “Depois do acidente passei a ter muito medo de dirigir na estrada. Principalmente re-

ceio de alguém cortar minha frente, de não conseguir frear”, relata. Na colisão ocorrida naquela noite também estavam no carro o pai e a irmã mais nova de Ana Julia, que sobreviveram à tragédia – a jovem tem mais uma irmã que também não estava no acidente. O acompanhamento psicológico foi indispensável. Naquele momento, uma família havia se desestruturado e precisava se reerguer de alguma forma. A psicóloga Anelise Schmitz Athaide explica que isso acontece, porque a pessoa passou por uma extrema sensação de medo que gerou um trauma no seu emocional. Com isso, ela evita situações que possam gerar esta sensação novamente. Isso, em linguagem apropriada, é chamada de fuga ao medo, quando o indivíduo não consegue superar o trauma que sofreu. Exemplo disso são os sobreviventes da tragédia na Boate Kiss, de Santa Maria, em janeiro de 2013. Muitos dos

jovens que estavam no incêndio não conseguem mais sair de casa, frequentar baladas e locais fechados, em função do medo que ficaram de repetir o trauma. Patrícia Inês Schwantz compartilha do mesmo sentimento. A jovem de 24 anos deixou de manusear líquidos inflamáveis após ver a sua irmã se acidentar com álcool, ter parte de corpo queimado e ficar entre a vida e a morte por dois meses. Em 2003, quando tinha 12 anos, a irmã tinha 10. Nessa época, um acidente desencadeou um medo até hoje presente em seu dia a dia. Ela estava próxima quando sua irmã fazia fogo no fogão a lenha. Sem perceber que tinha uma brasa, espirrou o litro de álcool para dentro. Ao apertar, o fogo estourou diretamente na criança, queimando seu corpo na região do pescoço, peito, pernas e cabelos. Até então, Patrícia era uma pré-adolescente curiosa, o medo não fazia parte de seu cotidiano,

inclusive atividades desafiantes a instigavam. A partir daquele dia, a história virou. “Depois de ver a minha irmã, literalmente, pegando fogo, e quase perder a vida, tudo mudou”, relembra. O fato ocorreu na casa da família de Patrícia. Os pais, agricultores, trabalhavam na lavoura, enquanto ela e a irmã estavam em casa. Quando o acidente aconteceu, somente a jovem estava por perto para socorrê-la. Como era muito pequena, Patrícia ficou sem reação. “Minha irmã saiu correndo com fogo em todo o corpo. Foi um choque! A cena vem na minha cabeça até hoje”, conta. Patrícia tem um sentimento: culpa. Após o acidente, sua irmã passou a ter um complexo de inferioridade pelas marcas que o fogo causou no seu corpo. “Se eu estivesse no lugar dela, seria mais fácil para eu suportar o acontecido e não precisaria ver o sofrimento dela sem poder fazer nada”, desabafa.

DIAGNÓSTICO: O QUE É O TRAUMA Os estudos sobre vivências traumáticas surgiram em 1895, nos primórdios da psicanálise, por meio dos estudos de Freud sobre seus pacientes histéricos. Entretanto, até hoje são estudadas diariamente por profissionais da área da saúde. De uma maneira geral, o trauma é um tipo de dano emocional que ocorre no ser humano quando ele passa por algum acontecimento que causa resultado de grande impacto no seu estado psicológico. Ele age acarretando uma exacerbação de medo, que

pode desencadear estresse. “As pessoas que passam por algum tipo de trauma começam a vivenciar uma experiência de dor e sofrimento emocional ou físico, envolvendo mudanças físicas no cérebro e afetando o comportamento e o pensamento da pessoa, que fará de tudo para evitar reviver o evento que lhe traumatizou”, explica Anelise. O maior impacto dos traumas na vida das pessoas é a mudança em atividades diárias. Ana Júlia, por exemplo, conta que seu dia a dia mu-

dou após o acidente. Desde então, ela e suas irmãs tiveram que aprender a se virar sozinhas, já que seu pai está em tratamento de recuperação constante. “Até já tive situações em que tive que dirigir, porém, é só quando não tenho outra opção. Sempre peço para alguém me levar ou vou de ônibus, me sinto mais segura”, afirma. Patrícia também declara a dificuldade de realizar atividades simples de seu cotidiano. Até hoje não consegue presenciar alguém manuseando álcool, gasolina ou

qualquer outro produto inflamável para fazer fogo. Em sua casa, por exemplo, não utiliza álcool por medo de acontecer qualquer coisa semelhante ao ocorrido. Até o momento a jovem ainda não buscou orientação médica, porém, agora independente, isso é a sua próxima meta. “Sofro muito com as lembranças do momento em que ela pegou fogo, pedia por socorro e eu não podia fazer nada para ajudar. Preciso superar a culpa e a tristeza que sinto ao lembrar daquele dia”, finaliza.

desconfiança que pode afetá -lo no âmbito pessoal e profissional.Além das atividades serem executadas pelos profissionais de maneira correta e atenta, os pacientes também tem papel fundamental no resultado do tratamento. “Existem casos em que o paciente não faz o tratamento corretamente, boicotando-o, faltando às sessões. Isso faz com que não se tenha um resultado esperado com este paciente”, conta Anelise. O tratamento é realizado em conjunto, ou seja, para atingir seu objetivo, o paciente

também deve agir de forma correta, mudando alguns hábitos fundamentais para sua melhora. “Muitas vezes o tratamento psicológico também é realizado com encontros com um médico psiquiatra, que também fará o trabalho com as medicações necessárias. Se a pessoa não fizer o tratamento correto, dificilmente irá se recuperar do trauma”, pontua.

COMO SE RECUPERAR DE UMA LEMBRANÇA TRAUMÁTICA Para se recuperar, a pessoa exposta a um acontecimento traumático deve procurar tratamento especializado. Isto porque o trauma pode acarretar situações de depressão, comportamentos obsessivos compulsivos e outras fobias ou transtornos. Assim, a intensidade do tratamento é feita dependendo da gravidade do impacto causado no indivíduo. A psicóloga conta que geralmente o paciente é tratado com psicoterapia – através de conversas sobre o assunto, a chamada resiliência. Em alguns casos, quando

um psiquiatra acompanha o paciente, também podem ser receitados medicamentos para diminuir a ansiedade, combater a depressão e para ajudar a dormir melhor. O alerta fica para o tratamento sem requisição médica, pois o efeito pode ser reverso. “Não realizar um tratamento adequado para um trauma psicológico pode fazer com que o indivíduo tenha dificuldades nos relacionamentos interpessoais por toda a vida”, salienta. Isso pode trazer consequências como um nível exagerado de

Júlia Ipê juliaipe20@gmail.com


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27 A psicologia tem as suas explicações para o medo. Contudo, antes de existir essa ciência, as pessoas procuravam outras instituições para buscar ajuda: as religiões. Mas o que as religiões falam sobre o medo? Com o Unicom você vai saber.

Ah, meu deus! O medo para cada religião

Para todas as crenças e religiões existem dois tipos de medo: o bom e o ruim. O medo bom é causado pelo instinto de sobrevivência. É o medo que ajuda a preservar a vida, a proteger o corpo. O medo de certos animais, medo de altura, de fenômenos da natureza, entre outros exemplos. Enfim, são aqueles que nos fazem tomar precauções. No entanto, também existem medos ruins. E para esses, cada uma das religiões busca suas próprias definições e explicações. Alguns religiosos acreditam que eles estão intimamente ligados à consciência. É o caso dos católicos, dos evangélicos e dos espíritas. Para o primeiro e o segundo, a consciência pesa quando

o homem se desvia da ordem estabelecida por Deus e se deixa levar por vícios ou por fraquezas. Para o terceiro, este discernimento vem de vidas anteriores, dos atos cometidos pelo espírito ainda ignorante e que, ao nascer, as pessoas carregam consigo mesmo que não saibam. Nos três casos o medo surge porque o inconsciente sabe que está agindo - ou que agiu errado - e causou o mal. Desta forma, ele teme as consequências acreditando que serão ruins. O espiritismo também tem outras explicações para o medo. De acordo com as obras literárias de Joana de Ângelis, um dos espíritos que mais trata deste assunto, existem os medos causados

por fatores externos (exógenos) e internos (endógenos). A consciência é um dos elementos internos, assim como a falta de conhecimentos sobre a realidade da vida e as marcas deixadas no espírito por traumas de outras encarnações. Os fatores externos são culturais e relativos à educação que a pessoa recebe na fase da vida em que é mais sensível, a infância. Nesse sentido, outras duas religiões dialogam com o espiritismo: a umbanda, que também acredita na contribuição cultural para o surgimento de medos; e as doutrinas milenares, como o budismo e o hinduísmo, que explicam o medo como uma falta de conhecimentos. Porém, a umbanda tam-

bém alerta para a falta de autoconfiança no surgimento dos temores. Para outros religiosos, como o pastor Marcio Trentini, da Igreja Evangélica da Confissão Luterana (IECLB) de Santa Cruz do Sul, as próprias religiões foram causas diretas dos medos de muitas pessoas. E ainda hoje são porque deixaram muitas marcas na cultura. Ele explica que as interpretações erradas da Bíblia ao longo dos séculos com a propagação da ideia de que era preciso temer a Deus foi um grande erro. “Para mim, temer é antes de tudo respeitar”, afirma. No entanto, muitas pessoas aprenderam de outra forma e carregam consigo um temor muito grande, de um Deus

Dicas para combater o medo • Nataniel Piva, ou mestre Sambodh Naseeb, ensina a seguinte prática: “É importante viver o presente. Se você está com medo, feche os olhos, perceba os sons a sua volta, permaneça de corpo e alma no aqui e no agora e então pergunte-se ‘qual é o meu problema agora?’. Você vai se dar conta de que não tem nenhum. Isso acontece porque o medos também são fruto da ansiedade.” • De acordo com o pastor Marcio Trentini, na Bíblia, seja nas palavras de Jesus, nas palavras dos profetas ou dos discípulos, aparece 365 vezes a frase ‘Não tenha medo’. A partir disso, ele também dá uma dica às pessoas: “Para cada dia do ano, podemos dizer uma vez: não precisamos ter medo”.

vingativo que as colocará em um inferno para toda a eternidade depois da morte, se não forem perfeitas em vida. Apesar das opiniões diferentes sobre as origens do medo, o que todos os religiosos concordam é que esse medo ruim é paralisante e que, algumas vezes, escraviza o homem. Nessas situações, se tornam o que os psicólogos chamam de fobias. Em todos os casos não são descartados os trabalhos profissionais de um psicólogo, entretanto, a aproximação com Deus é apresentada como uma das opções de cura. “Os próprios médicos, muitas vezes, dizem que, quem tem uma religiosidade, em geral, tem uma recuperação mais rápida”, argumenta o pastor Márcio. Essa religiosidade ou o cultivo de práticas como a meditação e a oração, também podem ser a base para uma rotina e atitudes mais propícias à superação. Sérgio Reis, trabalhador da casa espírita Caminho da Luz de Santa Cruz, elucida que Joana de Ângelis orienta as pes-

soas a entender as questões da espiritualidade e ter uma vida de amor ao próximo, procurando sempre fazer o bem e elevar sua capacidade moral. A umbanda, por sua vez, também não descarta os trabalhos religiosos, desde que eles tenham o objetivo de recuperar a confiança da pessoa. Outra solução é a educação. Para Nataniel Piva, discípulo do mestre indiano Osho, é necessária a criação de disciplinas nas escolas e universidades que treinem as pessoas não só para a profissão, mas também para a vida. “Dedica-se anos ao estudo numa faculdade e depois temos o conhecimento, mas como levaremos esse conhecimento e aplicaremos ele? Além disso, como está a satisfação de viver? Como tu estás vivendo com os desafios que a vida te dá? Esses questionamentos são fruto de uma nova educação”, questiona.

Luana Ciecelski luanaciecelski@yahoo.com.br

• Espiritismo: medos causados por fatores internos e externos. Os internos são a consciência de culpa e as memórias traumáticas de outras vidas que ficam no inconsciente. Os externos estão relacionados à cultura e educação. A solução é a busca por psicólogos e terapias e estuda para desenvolver conhecer melhor a vida • Igreja Evangélica Luterana: interpretação errada da Bíblia, que fez as pessoas crerem em um Deus vingativo, pode ser a causa de vários medos. A solução está na busca por novas interpretações, pela compreensão e aproximação de Deus, que traz confiança. • Igreja Universal do Reino de Deus: o medo é psicológico e pode ser uma influência espiritual sobre uma fraqueza que a pessoa tenha. A melhor forma de combater é através da fé. • Igreja Católica: o medo vem da consciência que pesa e dos impactos, como perdas, traumas, frustrações. Pedir perdão, agir sempre em prol do bem e orar são atitudes que aproximam a pessoa de Deus e as deixam mais tranquilas. • Umbanda: escassez de autoconfiança abre as portas para o medo ruim assim como uma educação errada, A solução é buscar confiança novamente e se aproximar da religiosidade para entender mais sobre a vida. Trabalhos religiosos não são descartados. • Tradições Milenares (Budismo, Hinduísmo): o medo é o contrário de amor e de felicidade e é causado pela cultura voltada para a materialidade, fazendo o homem esquecer que é parte integrante do universo, do qual ele não possui controle. A solução são as terapias, meditação e a educação para a felicidade.


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29 A gerascofobia antecede outro medo: a tanatofobia. As duas coisas andam juntas amedrontando homens e mulheres que almejam conquistar e manter-se dentro dos padrões estéticos e culturais da sociedade.

Na frente do espelho, uma contagem regressiva

Dá para notar que não querer envelhecer não é nenhuma novidade. Essa sensação, quando em grandes proporções, faz com que surja mais um medo com nome: gerascofobia. Esse temor de chegar à velhice está presente na sociedade já há algum tempo; desde que os padrões de beleza passaram a ser ditados pelos jovens. O que mais se encontra por aí é antigo sonhando em voltar a ser novo e a juventude temendo a velhice. Talvez, uma pílula que excluísse o envelhecimento do mundo fosse o remédio mais vendido nas farmácias; mais aguardado que a cura do câncer (ok, não vamos exagerar). Contudo, isso

existiu apenas em produções de ficção científica. O que existe na vida real, são homens e mulheres buscando intervenções cirúrgicas ou cremes milagrosos para manter a aparência de juventude eterna. De repente, aquela olhada no espelho passou a incomodar uma personagem da saga em busca da beleza: Fabiana. Por algum motivo, ela não quis revelar a idade, mas que, pela aparência, não deve passar dos 30 anos. Em busca de uma aparência que seguisse a agradando, mesmo com o peso que a idade proporciona – e não por medo de ver que os anos estavam passando e o tempo levando o viço de

adolescente, segundo ela – buscou a cirurgia plástica. Foram dois os locais onde a ação da mão do cirurgião modificou o trabalho da natureza: nariz e seios. Apesar de encarar o envelhecimento como parte do desenvolvimento humano, Fabiana confessa, que depois das intervenções, sentiu-se “mais jovem, melhor”. Segundo ela, isso a deixou feliz e garante que não parará por aí. “Eu vou sempre cuidar do meu corpo e, por ser muito vaidosa, à medida em que a idade for chegando, vou investir em mim, pois é o melhor investimento”, garantiu. A gerascofobia faz com que o surgimento de marcas

da passagem do tempo seja assustador. As causas desse trauma variam de acordo com o indivíduo, mas podem ter relação direta com o relacionamento estabelecido com idosos e a dificuldade em seguir os padrões de beleza impostos pela sociedade. Isso faz pensar que o brasileiro deve estar vivendo uma síndrome de “O retrato de Dorian Gray”, romance de Oscar Wilde. Na história, Gray procura formas não convencionais de manter sua aparência eternamente, enquanto um retrato do protagonista envelhece. Para Fabiana, o envelhecimento representa uma fase natural da vida humana. Da mesma forma, a juventu-

de significa as escolhas que vão refletir na velhice. “Envelhecer é viver e não tenho medo de viver”, definiu. Em relação à idade máxima que gostaria de viver, a moça foi enfática: 85 anos. Contudo, com aparência de 70. Ah, e o espírito que tem agora.

Gerascofobia antecede a tanatofobia O que preocupa Fabiana na velhice, é outro medo. Ela refere-se àquela situação que nenhuma pessoa normal deste mundo vai deixar de enfrentar: a morte. A tanatofobia – esse é o nome do medo da morte – é precedida pelo medo de envelhecer já que a velhice é um prenún-

cio dela. Ao ver esse estágio da vida humana aproximando-se, é natural que ele seja negado, tentando evitar que o dia chegue, finalmente. A antropóloga Josiane Ulrich é dura. “Tanto a velhice, quanto a morte, são um fato”, concluiu Ela explica que o medo dessas duas situações – velhice e morte – depende do significado cultural atribuído a cada uma pela sociedade. No Brasil, especialmente, os padrões de beleza são fixos e supervalorizados. “No momento que se passar a ser velho, deixa de se encaixar nos padrões”, disse. Essa aversão ao título de velho se deve ao fato de, juntamente com a velhice, virem as do-

enças. E, consequentemente, a morte. Segundo Josiane, um medo leva ao outro. Na sociedade brasileira há um afastamento da questão morte. “Se vive como se nunca fossemos morrer”, ressaltou, observando que não se trata desse assunto com crianças. Para ela, isso está associado à supervalorização dos bens materiais, o que simboliza o poder do novo perante o velho. Assim, quando envelhecemos, morremos para a sociedade.

Heloisa Corrêa heloisaunicom@gmail.com


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31 Raphael Montes tem 25 anos e coleciona crimes. Autor de dois romances (o mais recente lançado em outros seis países), o carioca formado em Direito já é reconhecido como um dos grandes nomes da literatura policial e de terror no Brasil.

O medo do escuro – a escotofobia – assombra adultos e crianças. Ele assombra desde o nascimento, pode, ou não, sumir junto com o crescimento e muda a rotina de quem tem esse temor. Confira o relato de alguém que sofreu com esse medo e com a vergonha de senti-lo.

Ele gosta mesmo das histórias de arrepiar

foto: Bel Pedrosa/Divulgação.

Repare no guri da foto. Você diria que com esse jeito de certinho ele é chegado em uma barbárie? Pois o carioca Raphael Montes, 25 anos, não só gosta de crime e medo como faz disso sua diversão – e negócio também. Formado em Direito mas escritor por opção, o romancista tem fama de ser a grande revelação da literatura policial e de terror no Brasil, com livro lançado em mais de seis países, direitos vendidos para o cinema e convite para trabalhar na televisão. A história de Montes no mundo do crime começou em 2009, quando tinha 18 anos e emplacou o conto “A professora” na coletânea Assassinos S/A, lançada pela editora Multifoco. Naquele tempo Raphael Montes já vinha trabalhando, desde os 16 anos, no que seria seu romance de estreia. “Suicidas” saiu em 2010, quando ele tinha 19. O livro de 488 páginas foi

Quando as luzes se apagam, o medo se acende lançado pela Editora Saraiva. Montes foi finalista nos prêmios São Paulo de Literatura, Biblioteca Nacional e Benvirá de Literatura. A repercussão positiva de “Suicidas” fez o carioca apressar a produção do segundo livro, que seria escrito nos três anos seguintes e consagraria o nome de Raphael Montes (entrevista exclusiva abaixo). Acostumado a ler e escrever histórias sombrias, são os novos desafios profissionais que têm deixado o carioca com medo - ou com “um friozinho na barriga”, como ele diz. “Nunca fiz curso de nada, nem de escritor, nem de roteirista. Gosto de aprender na marra, com prazo me cobrando, chefe me cobrando. O negócio é aprender e dar a cara a tapa”, afirma.

Igor Müller igorhmuller@gmail.com

De onde vem tanta inspiração para escrever histórias de terror, a ponto de uma delas ser considerada best-seller?

Gosto disso desde os 12 anos, quando li “Um estudo em vermelho”. Sou inspirado por várias coisas, pelo que leio, pelo que vejo na rua e no cinema. Me identifico muito com o trabalho do Quentin Tarantino e dos irmãos Coen. Eles tratam dessa violência absurda e bizarra do ser humano. Gosto muito disso e acho que essa salada, esse caldeirão que a gente vive, ajuda bastante.

Como é ter tua imagem ligada a histórias de terror, medo e violência? Isso nunca te preocupou?

Acho ótimo! Tenho o trabalho e a preocupação de fazer histórias tensas, que prendam o leitor com bons ganchos, surpresas, reviravoltas. Então, essa força das histórias chocantes é proposital, faz parte do meu trabalho. Dá muito trabalho criar tudo isso. Particularmente, eu adoro estar vinculado a histórias de arrepiar. O público gosta muito, comenta e recomenda.

Tens medo de quê?

Meu maior medo, no momento, é a falta de tempo. Sinto falta de tempo para encontrar os amigos, as pessoas que gosto. Tenho medo de me deixar ser levado por esse turbilhão de coisas, convites, gente me chamando para projetos, e aí deixar de fazer bem feito, com cuidado e atenção tudo o que quero fazer de verdade. Manter o lado efetivamente artístico e ter tempo para a vida social. Perder isso é meu maior medo agora.

Escotofobia, um termo incomum para uma definição conhecida e temida por muitos. Essa palavra significa o “medo do escuro”, de quando tudo se apaga e se deixa de ver com os olhos. Onde o real desaparece e surgem os perigos da própria imaginação. São bichos papões, monstros debaixo da cama, vampiros, espíritos e lendas; tudo que possa assombrar os que temem a noite. Essa fobia quando vem à tona, nos remete a pensar em crianças. Sete delas, entre sete e oito anos, foram questionadas a respeito do medo do escuro. De forma unânime, o temor foi confirmado. Cinco contaram que pedem aos pais para que alguma luz fique ligada durante a noite; as outras duas, apesar do medo, dizem dormir no escuro. Ainda que crianças sejam a maioria, o medo de ficar totalmente no escuro não atinge somente elas. Vamos chamar de Renato, para preservar a sua identidade, o rapaz de 24 anos que sofreu muito preconceito durante a faculdade por sentir medo do escuro. Ele estu-

dava à noite. Todos os amigos e pessoas que utilizavam o mesmo ônibus para voltar pra casa sabiam que possuía carteira de habilitação. Mesmo assim, todos os dias ele era esperado por alguém da família para acompanhá-lo até sua residência. Sempre que entrava no coletivo, ouvia piadinhas que, no fundo, o magoavam. Renato tentava entrar na brincadeira quando o deboche começava. “E hoje cara, quem vai buscar o Renatinho na escolinha, sua mãe? E eu respondia: Não, a sua”, relembra. Mesmo assim não adiantava, ele sabia que precisava tomar alguma iniciativa para controlar o medo que se estendia em casa. A hora de dormir também não era fácil, mas pelo menos estava livre da zombaria do ônibus. A imaginação de Renato era muito fértil: via espíritos em um cabide com roupas, sentia alguém o observando, via reflexos onde não tinha, e assim ia noite adentro em claro – literalmente – sem dormir. Até os seus quinze anos, deixava as luzes acesas durante a noi-

te, depois passou a deixar a porta aberta, e a claridade que entrava do corredor já o deixava mais sossegado. Quando estava prestes a se formar, decidiu que minimizaria os efeitos causados pelo medo. Começou aos poucos indo sozinho pra casa, depois passou a dormir com as luzes completamente apagadas. Para quem tem medo do escuro é difícil apagar as luzes. “Me sentia vulnerável, é como se qualquer coisa pudesse me atacar, seria apenas uma simples presa”, contou. Renato apropriou-se de algumas estratégias, utilizadas até hoje, para afastar o medo. Para ele, ouvir música antes de dormir afasta os pensamentos ruins e atrai os bons. Ler também virou um hábito, que o relaxa e deixa sua mente livre e clara, apesar de todo o escuro da noite. Contudo, ainda olha debaixo da cama, só para descargo de consciência.

Daniela Cezar danny_eloiza@hotmail.com


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33 A velha pergunta é feita de geração a geração. Afinal, o que esperar do futuro? O que está por vir é uma incógnita. Escolher a profissão, enfrentar os obstáculos, crescer entre as curvas que a vida dá e nunca perder o bom humor.

A conquista mais desejada entre os jovens é a independência. A hora em que deixamos o conforto e o carinho dos pais para dar início ao nosso próprio caminho. Cássia já enfrentou essa fase. Luísa está apenas no início da descoberta.

Cresci, e agora?

foto: Tais Moraes

A realidade de muitos jovens são horas de viagem por dia, para dar continuidade nos sonhos, já que em alguns casos a universidade fica em outra cidade. Por outro lado, a solução encontrada para evitar os vai-e-vens diários é abandonar o conforto e a comodidade da casa dos pais para conquistar a independência em outro lugar. É natural um dia sair de casa seja para construir uma família ou para conquistar autonomia, mas, quando esse momento chega cedo, muitos medos começam a surgir. Há quase quatro anos, a estudante Cássia Carniel, na época com 17 anos, passou por essa situação. Natural de Sobradinho, a jovem saiu de casa para cursar Relações Internacionais na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Hoje, com 21 anos, já superou os momentos mais difíceis com alegrias e conquistas.

No final deste ano, vai se formar e receber o tão sonhado diploma. De uma forma madura e tranquila, ela olha para trás e não se arrepende de ter deixado o carinho e o conforto da casa dos pais para seguir com a graduação. Os pais foram fundamentais para a decisão de Cássia. Eles não gostavam da ideia de a filha ter que enfrentar a estrada todos os dias. No início, ela conta que sentiu muito medo e ficou perdida em relação ao ambiente onde iria estudar e morar. “O primeiro dia em uma cidade e rotina nova é sempre muito estranho, mas minha mãe esteve comigo no início de tudo e isso me permitiu ficar mais tranquila, e me adaptar”, completou a estudante. A experiência de morar sozinha fez com que Cássia realizasse atividades não muito prazerosas para ela, como cozinhar

Você já pensou no que vai ser quando crescer? por exemplo. A jovem conta que nunca se deu muito bem com as panelas, mas se viu na obrigação porque não havia outro jeito. Diferentemente de casa, ela não tem ninguém para preparar suas refeições. Hoje a estudante limpa, lava, arruma e vai ao mercado. Porém, isso tudo foi muito novo para ela, já que na casa dos pais havia uma empregada para dar conta do serviço. Esses quase quatro anos longe de casa ajudaram a enfrentar os obstáculos e se acostumar com a ausência da família. Apesar de todo esse tempo, a jovem aprendeu a conviver com a saudade de uma maneira tranquila. A psicóloga Caroline Kipper de Lara explica que a fase de adaptação vivida por todos quando saem de casa é conhecida por “momento de luto”, no qual o ser humano passa por mudanças estruturais. Já o amadurecimento, depende de uma série de fatores, como por exemplo, o círculo familiar e a educação recebida desde a infância. Dessa forma, não há como saber o momento em que o jovem vai se sentir preparado para assumir maiores responsabilidades. Esse fator, segundo ela, é individual. Enquanto Cássia já sabe a sensação que é ser independente e se virar longe da casa dos pais, Luisa Naue,

de 19 anos, que ainda mora com a família, tem todo o caminho a ser percorrido. Para a estudante do quarto semestre de Ciências Biológicas, sair de casa significa mais tempo para se dedicar às tarefas da graduação, morar próximo à universidade e não depender de ônibus todos os dias. Natural de Cachoeira do Sul, ela enfrenta diariamente uma rotina agitada e estressante que, segundo ela, se resume em acordar às oito horas da manhã, ir para o estágio, assistir a aula no período noturno, em Santa Cruz do Sul, e chegar em casa por volta da meia noite. De acordo com Luisa, o maior medo que sente ao pensar em se mudar para outra cidade é abrir mão do convívio diário com os pais. Além disso, não gosta de perder o contato com algumas pessoas e não poder estar presente em momentos importantes para a família. Mas o medo não a fez mudar de ideia. A mudança não será em seguida, mas ela conta que já começou a pesquisar por lugares próximos à universidade. Para ela cozinhar, lavar a louça e arrumar a bagunça ainda são tarefas distantes.

Tais de Moraes tmoraes@mx2.unisc.br

Você. Você mesmo. Quando era criança, pensava no que seria quando se tornasse adulto? Quando seus colegas da escola ou os mais velhos lhe perguntavam: “O que você vai ser quando crescer?” A gente cresce e ao passar pelas metamorfoses da adolescência, chega a hora de pensar no futuro. Chega o momento de escolher uma resposta para aquela antiga pergunta sobre o que fazer da vida.Será que existe idade certa para fazer escolhas? A profissão que escolhemos seguir muitas vezes é diferente da que queríamos quando crianças. Ao menos foi o que aconteceu com o estudante de Publicidade e Propaganda, Luander Cassabone de Oliveira, de 23 anos. Como todo moleque, sempre pensou em diversas profissões, mas, aos 17 anos, quando começou a trabalhar em uma empresa da cidade natal, Encruzilhada do Sul, como auxiliar de abastecimento passou por vários setores, dentre eles, o de marketing. Então teve contato com a futura profissão. “Comecei elaborando campanhas para jornais e rádios para as três lojas localizadas em Encruzilhada, Rio Pardo e Pantano, assim como notícias e cobertura de eventos da Associação Comercial e Industrial de Encruzilhada do Sul (ACIES), desta forma

surgiu muitas dúvidas e assim consequentemente a paixão pela publicidade” comenta. Ao entrar na universidade, foi morar em Santa Cruz do Sul. Dividindo apartamento com alguns amigos, passou a frequentar festas na cidade. Em uma dessas noites, conheceu a estudante de Administração Paula Vitoria Lima Rieger, de 19 anos. Após alguns encontros na Unisc, tornaram-se um casal. Preocupados com o futuro, resolveram morar juntos. Depois da união, perceberam o alto custo de viver a dois. Afinal, pagar aluguel e manter uma

casa não é fácil. A incerteza sobre o dia de amanhã fez com que abrissem um negócio próprio. Uniram os conhecimentos adquiridos na Universidade em prol do investimento. Então, inauguraram uma loja especializada em roupas infantis. “Trabalhamos com o melhor ramo que possa existir, pois escolhemos trabalhar somente com o bebê, desde gestação até os três anos.”, afirmou Luander. Paula cuida da parte burocrática da empresa e Luander investe na publicidade, divulgando os produtos nas redes so-

ciais. “Tenho a oportunidade de colocar o que aprendo nas aulas em prática e tenho certeza que unimos o melhor de nós, nosso amor pela profissão, pelo o nosso negócio e por nós”, comenta Paula. O receio de crescer, se tornar adulto e casar passou. O que persiste é o dos próximos anos, da realização de novas metas e sonhos. “Medos todos nós temos, né? Mas, em época de crise, ter o próprio negócio é bem preocupante. Às vezes bate aquela angústia, pois não sabemos se amanhã vai vender, se no final do mês iremos ter dinheiro para quitar as dívidas.” diz o futuro publicitário. E você, já pensou no que fará amanhã, semana que vem, mês que vem, ou em dez anos? O medo faz parte da vida, mas é você quem escolhe se ele vai lhe impulsionar para frente e lhe ajudar a atingir seus objetivos ou, se ele vai fazer você parar frente a algum obstáculo. A escolha é sua. E, como bem disse uma vez Renato Russo, “Não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo, temos todo o tempo do mundo [...] Somos tão jovens, tão jovens”.

Pâmela Caporalli caporallipamela@gmail.com


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E nós, temos medo de quê?

Está escuro e, com exceção do som da televisão, a casa está em silêncio. De repente, um barulho. Com medo, agarra-se uma almofada, como se ela fosse capaz de te proteger. No entanto, percebe que o vento fechou a janela que deixara aberta, minutos antes.

Afinal, o que é medo?

Medo é um sentimento natural de qualquer ser vivo. É uma espécie de alarme biológico, como descreve o psiquiatra e professor de medicina Vinícius Alves de Moraes. Funciona assim: diante de um perigo, ele soa e nos pede para recuar. Portanto, é normal que a primeira reação, perante uma possível ameaça, seja o medo. Ao encontro com o que defende Moraes, a professora de psicologia Simone da Silva Machado compreende que a sensação faz parte de uma trajetória evolutiva. E é graças a ele que os Australopithecus evoluíram tanto e se tornaram Homo Sapiens Sapiens - seres racionais, com capacidade de se comunicar entre si, de amar e sentir diferentes sensações. Dentre elas, o medo. Normalmente, os medos provêm de fatores conhecidos, como do fogo, pois sabemos que se encostar nele podemos nos queimar. No en-

tanto, como salienta o professor de filosofia Sérgio Schaefer, a ameaça muitas vezes não vem bem definida, pois o indivíduo não consegue raciocinar de forma clara e segura, mas, sim, por “estímulos físicos percepcionados ou elementos mentais-psíquicos”. Por exemplo, alguém, de noite, sozinho em casa, ao escutar estalos no assoalho de madeira, pode concluir que um ladrão entrou em casa. “A percepção dos ruídos é clara, mas o resultado cognitivo é obscuro, pois o indivíduo não tem certeza de que é um ladrão. A falta de clareza traz insegurança e esta, o medo”. O medo, por si só, é saudável e geralmente não precisa de tratamentos. Conforme o psiquiatra Moraes, ele deixa de ser bom quando começa a trazer transtornos. “Quando ele passa a prejudicar as pessoas, deixa de ser um medo normal e passa a ser patológico, isto é, a fobia, que precisa

de tratamento”. A professora de psicologia acrescenta que esse sentimento, tão intenso e prejudicial, causa ansiedade fóbica. “Ele é percebido quando a pessoa começa a sofrer muito, sem precisar ter uma razão lógica para sentir aquele medo”. Diferente de uma pessoa que more em centros urbanos e tenha medo de galinha, por exemplo, uma pessoa que reside no interior e sofra do mesmo medo, terá que passar por um tratamento. “A que mora na cidade não precisaria de um tratamento, porque dificilmente teria contato com o animal vivo. Já a que mora no interior, por ter essa proximidade com o animal, teria que aprender a lidar com esse medo”. Isto porque, se não descobrir como lidar, esse medo pode gerar transtornos para essa pessoa. Desta forma, quando o medo evolui para fobia, ele

precisa ser investigado e diagnosticado. “É preciso descobrir os recursos para lidar com esse sentimento intenso”, enfatiza Simone. Schaefer observa que controlar o medo não é uma tarefa fácil. Medo da morte, por exemplo. Geralmente tentamos controlar o medo ou enfrentando-o ou fugindo dele. “No caso da morte, não podemos fugir dela; logo, é mais indicado aceitá-la”, diz e acrescenta que “aceitar o fato da morte - mesmo que isso seja difícil - é uma maneira de enfrentá-la e, assim, perder o medo de morrer”. Simone ainda salienta que o medo faz parte da vida. “O que temos que avaliar é o nosso limite. Saber definir quando esse sentimento se torna insuportável. Aí sim merece intervenção”.

Giuliane Giovanaz giu.giovanaz@gmail.com

Betina Sampaio Repórter

Caroline Fagundes Repórter - Multimídia

São tantos... Mas os principais: cobras e perder as pessoas que eu amo.

Agulhas e aranhas.

Daniela Cezar Repórter - Revisora

Demétrio Soster Editor Chefe

Évelyn Bartz Design gráfico

Tenho medo do que eu não posso ver...

Baratas voadoras.

Tenho medo da morte, de perder o controle e perder meus amores.

Giuliane Giovanaz Repórter - Sub-editora

Heloisa Corrêa Repórter - Editora

Igor Müller Repórter

De perder meu filho.

De todos os meus medos, o pior é o de perder os meus avós.

De que dê tudo errado.

Julia Ipê Repórter - Revisora

Luana Ciecelski Repórter - Revisora

Maria Helena Lersch Repórter - Revisora

Os meus medos? Fácil! Injeção e me acidentar de carro.

Tenho medo de assombrações e de águas onde não é possível enxergar o fundo.

De raios e cobras.

Marieli Rosa Repórter

Pâmela Caporalli Repórter - Fotografia

Pedro Andrade Silva Ilustrador

Meu maior medo é ficar longe das pessoas que eu amo!

Medo? Tenho vários! Mas o de perereca, sapo e de perder minha mãe são os maiores!

Tenho medo de E.T’s

Priscila Kellermann Repórter

Priscila Oliveira Repórter

Régis de Olivera Repórter

São dois: medo de gritos e de não corresponder às minhas expectativas em determinadas situações.

Tenho muito medo de ficar sozinha no escuro.

Medo do futuro e da solidão.

Tais de Moraes Repórter

Thiago Carlotto Repórter - Revisor

Além do pavor de cobras, meu maior medo é ficar sozinha e de perder quem eu amo.

Veridiana Röhsler Repórter - Chefe de reportagem

Medo de a vida perder a graça e não temer nada. O medo ajuda a dar sentido à vida.

Medo de decepcionar as pessoas que acreditam em mim.


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