Suplemento do Jornal Unesp Outubro 2017
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A política além da ideologia: ódio e preconceito João Paulo Vani
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A extrema direita nazista
Wellington Anselmo Martins
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Entrevista com Alexandre da Silva Simões
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Os números impressionantes da violência no Brasil Sérgio Mauro
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FÓRUM
O RISCO DA INTOLERÂNCIA País tradicionalmente caracterizado por altos níveis de violência, o Brasil tem registrado um aumento expressivo da intolerância. O fenômeno, que se mostra com mais intensidade nas redes sociais, expõe preconceitos e radicalismos, que se voltam contra crenças políticas e religiosas, opções
sexuais e comportamentais, produções artístico-culturais ou até mesmo contra as iniciativas de negros e setores mais pobres da população de lutar pela conquista de espaços na sociedade. Em muitos casos, essas expressões intolerantes ganham um contorno nazifacista, negando
a possibilidade de diálogo e o respeito à liberdade e defendendo o uso da força. Nesta edição, os analistas buscam esclarecer as origens dessa radicalização e apontam o que vem sendo feito e o que ainda pode ser promovido para que essa tendência não leve a uma temível escalada de conflitos.
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Fórum
Outubro 2017
A POLÍTICA ALÉM DA IDEOLOGIA: ÓDIO E PRECONCEITO
UNESP ADOTA INICIATIVAS CONTRA A EXCLUSÃO ALEXANDRE DA SILVA SIMÕES Por Oscar D’Ambrosio Shutterstock
João Paulo Vani
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á exatos 75 anos, em 22 de agosto de 1942, o Brasil de Getúlio Vargas, o mesmo que havia proibido a entrada de judeus no país, entrava oficialmente na Segunda Guerra Mundial para combater as forças nazistas e fascistas de Adolf Hitler e Benito Mussolini. Hoje, passado tanto tempo, as redes sociais dão voz àqueles que propõem discussões cujo script é a dualidade das torcidas de futebol, não é segredo, com experts que brotam de todos os lugares e que, com seus achismos muitas vezes catastróficos, espalham ódio e preconceito e incentivam a violência nos canais que fartamente chegam aos computadores e smartphones do cidadão comum. Ao refletir sobre essa data, olhando para os últimos episódios dessa trama globalizada que envolve terrorismo, racismo, xenofobia e antissemitismo, destaco a marcha dos neonazistas e supremacistas brancos na pequena Charlottesville, nos Estados Unidos, que resultou em três vítimas e mais de 30 feridos. E, em uma visão canalha e reducionista, brasileiros tentam se aproveitar do frágil momento político que o país atravessa para classificar Hitler e seu movimento nazista como um movimento de esquerda e capitalizar em favor de nossa novíssima ultradireita. O assunto não é raso ou de simples compreensão, e passa por questões históricas como a Revolução Francesa, a Revolução Industrial, o que nos leva a considerar correntes que possuem base ideológica como o iluminismo, o jacobinismo, o socialismo, o positivismo, o marxismo, o fascismo, o nazismo, o comunismo, o sindicalismo revolucionário... Há também de se considerar que a matriz da dualidade esquerda-direita remonta ao contexto pré-Revolução Francesa e as posições na Assembleia Nacional daquele país: à direita, clero e nobreza; à esquerda, burguesia, camponeses e trabalhadores urbanos. Nos dias atuais a situação é bem diferente. [...] Hitler e o nazismo alemão não eram de esquerda. Nem Mussolini e o fascismo italiano. Nem o nacionalismo espanhol de Franco. Aqui, a questão não é ideológica e sim político-militar. Os líderes da Europa no contexto da Segunda Guerra lutavam contra a União Soviética e seu regime comunista, mas a adoção do regime totalitário em suas nações os colocou em uma posição bastante próxima àquele regime, de esquerda, que su-
Nazismo e comunismo foram responsáveis por crueldades primia as liberdades individuais. Se, de um lado, as atrocidades do Holocausto jamais poderão ser esquecidas, de outro, os líderes comunistas como Lênin, Stálin e Trotsky, na União Soviética, e Pol Pot no Camboja, foram igualmente sanguinários, responsáveis por milhões de mortes [...]. Nas Américas, podemos destacar as atrocidades de Fidel Castro e Augusto Pinochet, líderes totalitaristas que, ainda que estivessem de lados opostos no espectro político-ideológico, foram ditadores igualmente cruéis. É necessário que, antes de tomar o nome do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, fundamentalmente antimarxista, como referência para discorrer sobre uma ideia da amplitude das crueldades perpetradas por nazistas e fascistas, somente para que dessa referência se possa desacreditar um determinado partido ou obter alguma vitória na guerra dos posts, o indivíduo busque compreender o quão completo é o espectro político, que conheça o Diagrama de Nolan, que entenda o quão sanguinário também foi o comunismo, e mais, que, ao assumir tal postura, tenha consciência de não estar sendo apenas mesquinho e leviano, mas de estar revelando publicamente sua ignorância e falta de conhecimento histórico, sobretudo o fato de que nem sempre existe lógica ou coerência no ambiente político: para vencer o nazismo, as forças aliadas reuniram, dentre tantos outros, a comunista União Soviética, baluarte da esquerda; os Estados Unidos, potência capitalista e ideal de muitos governos de direita; e o Brasil, com suas fronteiras fechadas aos judeus.
João Paulo Vani é presidente da Academia Brasileira de Escritores, mestre em Teoria Literária e doutorando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Unesp de São José do Rio Preto. A íntegra deste artigo está disponível no Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/rf9noj>.
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iretor do Instituto de Ciência e Tecnologia, Câmpus da Unesp de Sorocaba, Alexandre da Silva Simões trabalhou no desenvolvimento de diversos robôs, especialmente nos projetos “CP01” (primeiro torso de robô humanoide brasileiro) e “Jardim Robótico” (obra pioneira da arte-tecnologia robótica no Brasil). Foi vencedor do prêmio Rumos Itaú Cultural 2009 de arte cibernética, desenvolvendo o primeiro robô humanoide brasileiro para fins artísticos. Foi general chair do mundial da RoboCup 2014. É membro do Conselho de Administração da Incubadora Tecnológica de Empresas de Sorocaba (Intes), da Agência de Desenvolvimento e Inovação de Sorocaba (Inova) e do Conselho Municipal de Educação (CME) de Sorocaba. Caderno Fórum: Como uma universidade como a Unesp, comprometida com a educação pela diversidade, pode se posicionar perante um mundo em que a intolerância se manifesta de diversas maneiras? Alexandre da Silva Simões: Em tempos de ascensão de ideais nazifascistas, discriminatórios e opressores no Brasil e no mundo, temos que nos perguntar: qual a parcela de contribuição que podemos dar para fazer florescer ideais que unam a nossa sociedade, e não a fragmentem? A resposta só pode estar em uma direção: mais igualdade, inclusão e humanidade. O ódio pode ter encontrado um canal de expressão mais acentuado em Charlottesville, mas ele é a expressão de um pensamento que está muito mais perto de nós do que podemos considerar em um primeiro momento. Ele está presente quando se sugere que direitos humanos deveriam ser válidos somente para certos humanos – tal como foi defendido na última semana em um triste episódio no câmpus da Unifesp na Baixada Santista –, ou quando se sugere, mesmo subliminarmente, que negros, pobres, mulheres ou outros grupos quaisquer não deveriam ocupar certos espaços. CF: Como isso pode ser transportado para a questão do acesso à universidade no Brasil? Simões: O país deixou muito a desejar em termos da promoção da igualdade nos últimos anos. Até bem pouco tempo, o público típico da universidade eram os alunos brancos oriundos das melhores escolas privadas do país. De forma a reverter essa desigualdade, diversas universidades – dentre elas a Unesp – adotaram uma agressiva política que inclui a reserva de parte de suas vagas aos melhores alunos das escolas públicas. Na Unesp o percentual de reserva, que se iniciou com 15% em 2014, chegará a 50% em 2018. CF: Como o senhor avalia essa questão? Simões: Depois de mais de uma década atuando como professor em uma universidade pública de referência no país sem ter nem um único aluno negro e com um número ínfimo de alunos de baixa renda – e eles só
Outubro 2017
Fórum
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A EXTREMA DIREITA NAZISTA
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Wellington Anselmo Martins
Câmpus de Sorocaba ensina português a grupos de haitianos chegaram a minha sala depois da implantação da política de reserva de vagas –, tenho que reconhecer a importância dessa iniciativa em várias dimensões. Essa iniciativa traz para a luz um paradigma social injusto, ela oportuniza a existência de referências nas quais outros de mesma realidade podem se espelhar, ela canaliza a energia de transformação dos jovens incluídos para suas realidades locais. Sobretudo, essa ação cria oportunidades para que os jovens tenham contato com outras realidades, pensamentos e grupos e para que sejam disseminadores do ideal da igualdade na nossa sociedade. CF: Como pode ocorrer a inclusão nesse processo? Simões: Não é à toa que inclusão e exclusão são antônimos. A inclusão é a peça-chave. Uma sociedade civilizada não pode ser condescendente com situações onde a cor da pele, a procedência geográfica, as condições sociais, as preferências sexuais ou políticas ou a quantidade de bens possam ser determinantes para outorgarmos ou não direitos a pessoas ou grupos. CF: O que a Unesp vem fazendo nesse sentido? Simões: É com grande satisfação que a Unesp anuncia que passou a receber, no Câmpus de Sorocaba, desde agosto, grupos de haitianos que aqui aprenderão língua portuguesa. A ação está sendo possível graças a uma parceria entre o Projeto EJA (Educação de Jovens Adultos) da Unesp e a Coordenadoria de Igualdade Racial da Secretaria de Igualdade e Assistência Social da Prefeitura de Sorocaba.
Mais informações: <https://goo.gl/D2m4YD>.
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recisamos compreender que a direita não se resume a uma coisa só. Nem a esquerda se resume a uma única bandeira. É mais complexo que isso. A esquerda não é apenas o comunismo. Tal como a direita não é apenas o capitalismo. É possível ser de esquerda sem ser comunista: pode-se ser anarquista ou apenas socialista. Ou, mesmo, pode-se não aceitar nem comunismo, nem anarquismo, nem socialismo, mas ainda assim ser de centro-esquerda: fazendo oposição aos valores da direita, ou seja, defendendo o interesse coletivo antes do interesse individual (seja na esfera moral/jurídica ou econômica). É possível ser de direita sem ser nazista: pode-se ser liberal. Ou, mesmo, pode-se não aceitar nem o nazismo e nem o liberalismo, mas ainda assim ser de centro-direita: fazendo oposição aos valores da esquerda, ou seja, defendendo o interesse privado e particular antes do interesse social (seja na esfera moral/jurídica ou econômica). Enfim, esquerda e direita são discursos complexos. E a melhor forma para diferenciá-los didaticamente é pelos princípios: 1) a direita é tradicionalmente mais individualista (seja nos conservadores morais, seja nos liberais econômicos, seja nos fascistas brasileiros de 1970 ou nos nazistas alemães de 1940: a direita sempre admite uma hierarquia social: alguém é superior a alguém, quer pela moral, pelo dinheiro, pelo intelecto, pela cor da pele, pelo poder bélico, pela heterossexualidade, pela nacionalidade, pela religião, etc. A direita quer ser sempre mais ou menos aristocrática);
2) a esquerda é tradicionalmente mais coletivista (seja nos socialistas reformistas, seja nos revolucionários mundiais comunistas, seja nos anarquistas cristãos ou mesmo nos bolivarianos latino-americanos: a defesa da igualdade para todos é sempre o leitmotiv da esquerda: mesmo entre pessoas de moral diferente (imorais ou bandidos), condições econômicas diferentes (pobres e miseráveis), nível educacional diferente (analfabetos ou pessoas com necessidades especiais), etnias diferentes (negros, índios ou orientais), força armada diferente (mesmo os desarmados ou fracos), orientação sexual diferente (mesmo os homossexuais), país ou região diferentes (mesmo os nordestinos ou africanos), fé diferente (mesmo os ateus, budistas ou religiões afro), etc. A esquerda quer ser sempre mais ou menos democrática). Ou seja, as ideologias de esquerda e direita podem ser panoramicamente diferenciadas assim. Mas é ainda mais complexo e teríamos que analisar ainda mais variáveis. E o nazismo, especificamente, em meio a esse quadro, era de extrema-direita. Mesmo sendo antiliberal, o nazismo era aristocrático, nacionalista, racista e homofóbico. Era uma ideologia extremista, nascida de um elitismo ariano, excludente de minorias e, como é óbvio: era absolutamente contra a esquerda comunista/igualitarista.
Esquerda enfatiza coletivo; direita é mais individualista
Wellington Anselmo Martins é mestre em Comunicação (Unesp) e graduado em Filosofia (USC). Este artigo está disponível no Portal Unesp, no endereço : <https://goo.gl/myqop5>.
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Fórum
Outubro 2017
OS NÚMEROS IMPRESSIONANTES DA VIOLÊNCIA NO BRASIL Shutterstock
Sérgio Mauro
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s números impressionam: notícias recentes divulgadas pela mídia revelam que o Brasil poderá ultrapassar a marca histórica de 60 mil homicídios em 2017! Não se tratando apenas de meras conjecturas numéricas, friamente calculadas, estamos falando de uma verdadeira guerra interna que está às nossas portas, mesmo que, por sorte ou por possuir mais meios para nos defendermos de situações violentas, nunca tenhamos presenciado ou nos envolvido num conflito ou em episódios do gênero! Impossível elencar e analisar em um único artigo ou até mesmo em um volumoso tratado todos os fatores que levam o ser humano à agressividade contra os seus semelhantes (ou contra os animais). Se aceitarmos a hipótese de que inicialmente habitávamos as selvas e depois, num longo processo, fomos obrigados a viver em bandos com regras precisas de convivência, oralmente transmitidas e, em seguida, codificadas em leis que se tornaram o auge do que comumente chamamos de civilização, precisamos também admitir que o animal selvagem que está em nós se manifesta esporadicamente, todas as vezes que os nossos instintos são provocados ou estimulados de maneira inadequada. Tomando como provável a afirmação do parágrafo anterior, pode parecer impossível solucionar o problema da violência humana. No entanto, é bom não esquecer a lição de Ítalo Calvino, que nos convidava a não aceitar passivamente o inferno social em que vivemos, e sim buscar possíveis paraísos dentro dele. Para encontrar tais paraísos, devemos atenuar, minimizar e, em certos casos,
Devemos trabalhar pelo funcionamento das instituições controlar adequadamente os instintos que nos levam à agressividade. Mas de que modo podemos fazê-lo e com quais meios? Certamente, não há outro modo ou ao menos ainda não se descobriu um modo melhor que o apelo a instituições de controle social, normalmente aceitas pela sociedade. Há os que devem escrever as leis e há também os que devem mandar aplicá-las; há os que devem reprimir, quando necessário, e da maneira correta, os que se recusam a aceitar as regras. Periodicamente, as regras devem ser revistas, adaptando-as aos costumes dos tempos, mas sempre respeitando normas mínimas de convivência, baseadas em tolerância e respeito. Enfim, é necessário constituir sistemas que vigiem e controlem os responsáveis pela vigilância e pelo controle, a não ser que se acredite (ainda) que tais pessoas sejam diretamente escolhidas por Deus e, portanto, só a Ele devem prestar contas. No Brasil atual as instituições, as leis, os que vigiam, os que devem vigiar e os que devem reprimir ou controlar estão em crise ou estão quase completamente ausentes. Não é difícil, portanto, apostar num aumento constante da violência, pois os que não conseguem reprimir os instintos (porque não
receberam adequada formação para reprimi-los ou, ao menos, para atenuá-los, ou porque se encontram em ambientes familiares desestruturados ou fortemente sujeitos ao apelo das drogas e a outras formas de alienação incitadoras de violência), não encontrando assistência, amparo ou obstáculos, tendem a expressar-se de maneira socialmente inadequada, isto é, que não leva minimamente em consideração o direito à vida e à liberdade do outro, seu semelhante, sujeito às mesmas pressões cotidianas e incessantes. Eliminar a violência entre os seres humanos é uma tarefa impossível, pois, mesmo nas condições ideais de uma sociedade ideal, sem desníveis sociais e com instituições em perfeito funcionamento, o animal selvagem que em nós habita encontrará a ocasião propícia para despertar e cometer atos aparentemente inexplicáveis. Cabe, porém, retomando mais uma vez as lúcidas palavras de Calvino, não aceitar passivamente tal condição que nos foi imposta pela “Mamãe-Natureza” e arregaçar as mangas, trabalhando incessantemente para que as instituições funcionem, discutindo e revendo continuamente leis e normas, evitando radicalismos, polarizações maniqueístas, apelos sedutores e demagógicos a supremacias de qualquer natureza, ideológica, religiosa ou étnica, para evitar que cheguemos ao absurdo de uma guerra não declarada entre cidadãos de um mesmo país, com vítimas inocentes e frequentemente muito jovens.
Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.