Fórum 340

Page 1

Suplemento do Jornal Unesp Janeiro/Fevereiro 2018

2

PÁGINA

2018 e os Humanos Direitos Paulo Henrique Martinez

Entrevista com Clodoaldo Meneguello Cardoso

3

Democracia Participativa, já!

Carlos Fernando Galvão

PÁGINA

4

Realidade dos Direitos Humanos

Renan Antônio da Silva

PÁGINA

Shutterstock

FÓRUM

DIREITOS HUMANOS SEM LIMITAÇÕES No ano em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 50 anos, parece haver um amplo reconhecimento entre os brasileiros da importância dessa conquista. No entanto, apesar dos avanços nas últimas décadas, sua implantação no país ainda tem um longo caminho a percorrer. Afinal, é

possível falar de uma vigência plena dos direitos humanos numa nação marcada por enormes disparidades sociais? Da mesma forma, diversas minorias, que vão de índios e quilombolas a homossexuais e transexuais, estão longe de ter seus direitos amplamente assegurados. No Brasil, ainda

é muito forte entre setores privilegiados a convicção de que seus interesses devem prevalecer sobre os direitos do conjunto da sociedade. Esses e vários outros aspectos são abordados nas reflexões desta edição dedicada a um tema que exige urgentes e profundos debates.


2

Fórum

Janeiro/Fevereiro 2018

2018 E OS HUMANOS DIREITOS

UM ANO DE DESAFIOS PARA OS DIREITOS HUMANOS Shutterstock

Paulo Henrique Martinez

CLODOALDO MENEGUELLO CARDOSO Por Oscar D’Ambrosio

C

oordenador do Observatório de Educação em Direitos Humanos da Unesp, Clodoaldo Meneguello Cardoso é professor aposentado da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), da Unesp, Câmpus de Bauru. Atualmente desenvolve, enquanto professor voluntário, atividades de pesquisa e extensão, como presidente da Comissão de Ética da Unesp e coeditor da RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. É autor, entre outros, do livro Tolerância e seus limites, lançado pela Editora Unesp. Contato: <clocar@ faac.unesp.br>.

E

m alguns dias entraremos em novo ano. Há poucos dias, em 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 69 anos. Aprovado pela Organização das Nações Unidas, em 1948, o documento esperava fechar cicatrizes morais e existenciais causadas pela II Guerra Mundial e pelos horrores do nazismo e do fascismo, na Europa e fora dela. A condição humana é exaltada e sua valorização promovida mundo afora. A violação de seus princípios assombra governantes dos países signatários, as gerações que viveram os dramas do século XX e as novas gerações. O Brasil é destaque internacional também na sistemática violação aos direitos inscritos naquela Declaração Universal. Trabalho escravo, tomada de terras dos povos indígenas, agressões contra mulheres, crianças, jovens e idosos, aumento da população carcerária, degradação do meio ambiente ... e a lista segue, longa e triste. A promoção dos direitos humanos tem gerado inúmeras ações institucionais, pedagógicas e culturais. Escolas e universidades realizam atividades nessa direção. Cursos, debates, seminários, publicações. A Ordem dos Advogados do Brasil instala comissões, organiza estudos, elabora propostas. O Plano Nacional de Direitos Humanos atesta que o Brasil encontra-se em dia com a busca dos objetivos da Declaração. Ações governamentais e mercantis, seguidamente, negam e, não raro, anulam esses admiráveis esforços. Em nossa vida cotidiana todos nós conhecemos indivíduos, empresas, administradores públicos e instituições que negam à condição humana o significado político, ético e cultural instaurador da democracia, da justiça social e da paz. A negação dos direitos humanos tem

Escravidão se mantém no universo simbólico da política e da mídia custos sociais elevados para o conjunto da sociedade e não apenas para aqueles que se sentem ultrajados com os princípios gerais da cidadania. As tensões sociais são nutridas pela violência física e simbólica, a exclusão social, a pobreza e a discriminação. Atitudes de rejeição aos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos ganham forma e sentido na expressão “humanos direitos”. Uma sórdida contraposição aos “direitos humanos”. O infame trocadilho está enraizado no solo histórico da vida brasileira. A espoliação colonial e a escravidão não desapareceram do universo simbólico e das práticas sociais de nossos dirigentes políticos, econômicos e dos meios de comunicação. A afirmação “humanos direitos” é fórmula publicitária, piada de mau gosto. É a tradução da indisposição cultural de alguns grupos sociais em habitar uma sociedade democrática e aberta para o futuro, para a diferença, a felicidade e a paz em nosso dia a dia. Que em 2018 o aniversário dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos encontre mais próximos dos ideais nela consagrados.

Paulo Henrique Martinez é professor do Departamento de História da Unesp de Assis. Este artigo está disponível no Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/1MKE8x>.

Caderno Fórum: Quais seriam os grandes desafios dos direitos humanos para 2018 em escala internacional? Clodoaldo Meneguello Cardoso: Além da barbárie nos países em guerra, este ano ainda será marcado pela situação desumana dos refugiados na Europa e em Bangladesh – esses, expatriados de Mianmar por perseguições étnicas e religiosas. O deslocamento forçado de grandes populações seja pela guerra, pela miséria, pelas causas climáticas ou culturais vem impondo à humanidade o desafio de repensar os direitos humanos a partir da convivência na diversidade, em que o sentido profundo de inclusão altere a noção clássica e metafísica de unidade e identidade nacional de um grupo ou nação. CF: E especificamente no Brasil? Meneguello Cardoso: Não há direitos humanos sem democracia e justiça social. No Brasil – com uma democracia de baixa densidade e de desigualdades sociais abissais –, a cultura de violação dos direitos humanos escancara-se cotidianamente. Os direitos humanos sociais básicos são negados a boa parte da população, seja pela falta de infraestrutura, seja pela política orquestrada pelos interesses das elites, ou ainda pelo desvio criminoso do dinheiro público em todas as suas formas. No plano político, a situação vem se agravando com as reformas recentes e em curso, que visam prioritariamente o equilíbrio das contas públicas, pela via neoliberal, sem – em contrapartida – promover ações efetivas para diminuir as desigualdades sociais. Além disso, a forte onda de mentalidade conservadora alimenta uma cultura da violência nas formas de racismo, homofobia, autoritarismo e exclusão. E quem são as maiores vítimas? As populações mais vulneráveis: os sem-teto, os sem-terra, as famílias das periferias urbanas, populações em situação de rua e a população carcerária; e neles: o jovem, negro e pobre. Esse quadro sombrio certamente será iluminado em 2018, pela força de resistência dos movimentos sociais organizados que veem nas eleições de outubro a possibilidade de retomada do caminho para uma democracia social participativa.


Janeiro/Fevereiro 2018

Fórum

3

Deseducação causada pela mídia só será neutralizada com sociedade de pensamento mais crítico CF: Como se dá, na sua perspectiva, a relação entre os direitos humanos e as mídias sociais? Meneguello Cardoso: A grande mídia, sob o poder das elites, sempre teve uma relação contraditória com os direitos humanos, em especial a mídia televisiva. Se é por meio dela que chegam à grande população as informações sobre certos direitos básicos da população, é também por ela que os direitos humanos sofrem propositalmente distorções conceituais, em assuntos que interessam manter o status quo, como o direito à integridade física e de propriedade, à segurança e à ordem pública. Daí a distorção preconceituosa: “direitos humanos para os humanos direitos e não para defender bandidos”. Esse processo de deseducação pela mídia somente será neutralizado com uma sociedade de pensamento mais autônomo e crítico. Com as mídias sociais ocorre situação semelhante, porém em relações bem mais complexas. Já sabemos que as redes sociais amplificam enormemente a realidade, daí porque não são boas fontes de informação. Todavia, a comunicação on-line é campo propício e fácil para expressão de sentimentos. Essa falta de fronteira nítida entre o mundo privado e o espaço público acaba facilitando a disseminação de intrigas, preconceitos e, por que não falar?..., de violências e violações de direitos humanos. Com certeza o ano eleitoral de 2018, confirmará esta tese.

A íntegra desta entrevista está disponível no Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/gSju1K>.

Carlos Fernando Galvão Shutterstock

Divulgação

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, JÁ!

A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam. Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês

S

e examinarmos os números oficiais das últimas eleições na cidade do Rio de Janeiro, em 2016, constataremos que apenas 28% dos eleitores votaram em um dos 51 vereadores efetivamente eleitos; os demais 72% dos eleitores votaram em vereadores que não foram eleitos. Ainda assim, todos os eleitos estão aptos, pelas regras representativas vigentes, a votar projetos que afetam, direta e indiretamente, a cidadania, mesmo os que não foram eleitos pelo voto popular, mas que lá estão por conta, por exemplo, das coligações proporcionais. A situação eleitoral acima é uma das principais distorções da nossa (dita) democracia liberal que necessita, urgentemente, de mudanças drásticas. Será, contudo, que os maiores beneficiados por essa situação, os políticos e seus apoiadores nos meios econômicos, vão fazer uma reforma política decente que altere esse quadro e, por assim dizer, “democratize” a nossa democracia? É, eu também acredito em duendezinhos verdes! Podem, esses vereadores (ou deputados estaduais ou deputados federais ou senadores ou prefeitos ou governadores ou presidentes e seus respectivos secretários e ministros), que não tiveram seu voto direto, representá-lo? Podem votar por você, os destinos de sua vida e de seus filhos? A resposta óbvia e estritamente legal é sim, podem. Mas os aspectos legais não podem ser os únicos parâmetros a partir dos quais essa questão da representatividade política deve ser analisada; há, no mínimo, o parâmetro da participação popular ou, em termos como é mais conhecida, a chamada Democracia Participativa, que vai além da democracia direta, diga-se de passagem. Analisemos, rapidamente, essas modalidades democráticas. Alguns dizem que democracia (governo do povo) não precisa de qualificativo. Precisa sim. A Constituição Federal, embora não contemple o instrumento jurídico do “recall”, onde a população tem reconhecido seu direito de revalidar o mandato de um político que não lhe está agradando, contem-

Cidadão será agente de política pública surgida de debates pla a democracia direta, através da realização de referendos (onde a população é chamada a ratificar ou a retificar uma decisão congressual, por exemplo) e de plebiscitos (quando há uma convocação a um projeto de lei, para que a população diga se o deseja realizado ou não). Contudo, nenhuma dessas possibilidades resolve os problemas que a democracia (apenas) representativa tem nos trazido. Para além da democracia tão somente representativa, há que instituirmos, não como substituta, mas como complemento e contraparte, por assim dizer, mecanismos para que surjam, na prática, propostas e práticas que instituam e mesmo institucionalizem, uma Democracia Participativa. Nessa modalidade democrática, podemos assim defini-la, todos os cidadãos que, real e efetivamente, desejem, poderão participar não apenas dos debates públicos sobre os desígnios da vida nacional, estadual e municipal, como poderão ser agentes ativos das políticas públicas que realizarão as ideias que surgirem desses debates. Não há uma só proposta de Democracia Participativa, mas ela surgirá, sem dúvida, porque a mera representação parlamentar está falida e exposta a olho nu. Quer conhecer uma dessas propostas de Democracia Participativa? Chama-se Gestão Cidadã. Entre em contato. Novas flores haverão de florescer no pântano em que estamos e suaves aromas nos guiarão por caminhos mais agradáveis do que os que temos trilhado. Acredite nisso. Nossa liberdade de viver não pode ser manietada por interesses escusos, já nos alertou Espinoza.

Carlos Fernando Galvão Geógrafo, doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em Geografia Humana. E-mail: <cfgalvao@terra.com.br>. A íntegra deste artigo está disponível no "Debate Acadêmico" do Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/Lfmofo>.


4

Fórum

Janeiro/Fevereiro 2018

REALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS Shutterstock

Renan Antônio da Silva

O

Brasil chega ao século XXI com realidades sociais que são vistas como meras abstrações. As ficções jurídicas são tidas como verdades sólidas e reais. Enquanto isso, ao passo que se luta por um equilíbrio social, com relações menos conflituosas, encontramos um cenário caótico na cidade de São Paulo, a mais rica da América do Sul, uma das maiores do planeta. Na mesma região sul da cidade, encontramos o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) variando entre 0,944 – Moema, comparável à Noruega (primeiro país no ranking global) e 0,651 – Engenheiro Marsilac, similar ao Iraque (121.° colocado); dados esses aferidos em 2010. Porém, de Moema a Marsilac, são cerca de 50 km de distância; da Noruega ao Gabão são pouco mais de 6.800 km. Nesse contexto abissal, encontramos ainda a dificuldade em se compreender que pessoas são amparadas pelos Direitos Humanos, que atribuem humanidade aos direitos, ao invés de serem direitos para seres humanos. Essa aparente ironia expõe uma realidade muito díspar na qual alguns pouquíssimos são tidos e tratados como sujeitos de direitos, que possuem e usam os direitos que asseguram o desenvolvimento e qualidade humanas, e a casta das multidões: alheios, esquecidos e alienados dos mesmos direitos. Tais serão os que receberão a mera percepção de serem personagens de direitos: são figurantes nas relações sociais e no sistema econômico e dinâmica atuais, o ter estará à frente do ser, resultando em multidões de sub-humanos. Mas falamos até esse ponto daqueles que a própria Constituição Federal (1988) trata como sendo humanos. Segundo seu artigo 5.°, inciso I diz com clareza: “homens e mulheres são iguais [...]”. Há os que defendem que o documento legal foi elaborado na ampla concepção de que ao se referir aos homens e mulheres, englobar-se-iam todas as pessoas. Não obstante, o documento que, em teoria, serviu como uma inspiração para a mesma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, fala sem-

Pensamento social brasileiro está adaptado à violência pre em seres humanos e pessoa, jamais sobre homem ou mulher. O que não foi captado pelos constituintes em 1988 é atualmente uma causa de severas disputas, violências físicas, simbólicas e morte de pessoas que não estão enquadradas. Na verdade, a pluriculturalidade brasileira é tão extensa quanto seu território e, no embate entre os interesses da indústria da cultura, das culturas de massa e da cultura popular, cabendo-nos questionar por que motivos o Brasil segue tão apensado aos padrões arcaicos, que tiveram seu tempo e contexto, mas que não encontram mais espaço na sociedade pós-moderna. Aliás, precisamos buscar uma definição do que é cultura ou do que são as culturas que definem a identidade do povo brasileiro e de suas inúmeras populações. Considerando o que é exposto pela teoria psicanalítica de Jung, o que poderíamos esperar de pessoas que exaltam pessoas historicamente conhecidas pelas suas práticas de abusos e violência contra pessoas durante os anos de colônia que o Brasil viveu? Na verdade, o pensamento social brasileiro está adaptado à violência, assim como estamos adaptados ao respirar, alimentar e hidratar do dia a dia. Essas necessidades inerentes ao ser humano se entrelaçam hoje com as perturbadoras taxas de violência criminosa. Os arquétipos a que Jung fez referência são basicamente as estruturas inatas que servirão de matrizes na expressão e desenvolvimento da psique humana. Mesmo sendo sistemas dinâmicos e autônomos, em alguns casos, são considerados como sistemas separados da personalidade. Assim, embora não se possa perceber precisamente a origem

de certos comportamentos, pode-se perceber pelo comportamento a existência dos arquétipos. Ou seja, um país que é fundado sobre um sistema de dominação violento, transmitirá, ainda que inconscientemente, esse tipo de comportamento às suas gerações. Portanto, não é algo incomum que pessoas não ajustadas à linearidade ou homogenia sejam estrategicamente extirpadas do corpo social. Não fazem parte daquele sistema por não estarem ajustadas ao senso comum. Dado o fato de que há uma relação quase simbiótica do Direito e todas as suas áreas com a filosofia kantiana, não é algo incomum que mesmo os Direitos Humanos sejam seletivos quanto a que humanos eles podem atender. As questões morais se sobrepõem às relevantes proposições éticas e a consequência disso é termos, ao invés do Imperativo Categórico de Kant, o atual imperativo categorizante, que classifica e separa as pessoas segundo padrões normativos específicos e excludentes. Como são pessoas que não se enquadram na possibilidade do lobby político e econômico, sofrem as constantes violações de direitos, se é que algum dia tiveram acesso a tais. A ideologia da violência, sempre presente, desde a infância com suas imposições condicionantes, cerceia a liberdade, extermina a fraternidade e exalta que só há igualdade para os iguais, porque onde há diferentes não é possível admitir os não iguais. Consolida-se, portanto, a nossa sustentação de que os chamados Direitos Humanos atenderão apenas os que estiverem conformados às concepções sociais do que é considerado plausível ou não.

Renan Antônio da Silva é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp/Araraquara. E-mail: <lepp@rc.unesp.br>. A íntegra deste artigo está disponível no Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/KTAhLh>.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.