Suplemento do Jornal Unesp Abril 2018
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De repente o barulho das palavras emudeceu Adriana Ferreira Serafim de Oliveira
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Giseles e Marielles Marília Aparecida Muylaert
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A nossa guerra do dia a dia
Luiz Carlos Cagliari
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Entrevista com Nelson Pedro-Silva
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FÓRUM
UMA GUERRA NÃO DECLARADA O assassinato da vereadora Mariele Franco (PSOL) e do seu motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro, no dia 14 de março, representa mais um exemplo da violência que afeta a vida do país. Segundo uma pesquisa da entidade Small Arms Survey, o Brasil registrou em 2016 o
maior número de mortes violentas no mundo, com estatísticas que superam as de nações em guerra! O país exibe números vergonhosos em homicídios de negros, mulheres e população LGBT, entre outras estatísticas. Os participantes deste caderno analisam aspectos dessa
situação, destacando as várias dimensões da violência no cotidiano dos brasileiros, como as divisões político-ideológicas, a intolerância, a falta de diálogo e uma perigosa aceitação desse fenômeno como um traço indissociável da cultura nacional na atualidade.
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Fórum
Abril 2018
DE REPENTE O BARULHO DAS PALAVRAS EMUDECEU
É URGENTE ESTABELECER UM PACTO SOCIAL NO PAÍS NELSON PEDRO-SILVA Por Oscar D’Ambrosio Reprodução
Adriana Ferreira Serafim de Oliveira
A
manhã do dia 14 de março de 2018 trouxe-me muitas alegrias ao obter aprovação na qualificação da pesquisa de doutoramento em relação às políticas públicas de enfrentamento da violência contra as mulheres, porque se acredita que elas tenham dado voz às mulheres que sofrem violência no cotidiano. A noite da mesma data calou as palavras de uma mulher que emprestava voz aos clamores de maltratados pela desigualdade social, às mulheres invisíveis e aos rejeitados pela sociedade do “status quo”. As mortes da socióloga e vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco e de seu motorista Anderson ocorrem em um momento em que as instituições brasileiras estão sendo “passadas a limpo” em investigações sobre crimes de corrupção praticados contra a sociedade brasileira por servidores públicos que por dever de ofício deveriam representar os anseios do povo brasileiro. Acrescenta-se à ocasião a intervenção na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, que constantemente perde seus cidadãos vitimados por disparos de potentes armas de fogo que dilaceram famílias e avultam as sensações de insegurança e impunidade. O fenômeno violência integrou-se no tecido social como se parte dele fosse. As pessoas não conseguem conceber em seu imaginário uma sociedade desassociada de tiroteios incessantes, mortes trágicas e insistentes sirenes. Esse é o barulho da violência, do desrespeito aos direitos fundamentais, do silêncio daqueles que se motivavam diariamente para sacar da invisibilidade milhares de brasileiros esquecidos durante séculos... lembrados como massa de manobra em campanhas eleitorais para darem seu voto às promessas vãs. A questão não é de ideologias, é de tratar dos direitos de seres humanos, é de perceber que não cabe numa democracia o calar de homens e mulheres, que isso não pode ser rele-
Marielle cumpriu o papel que escolheu para sua existência gado ao conforto do “mais um estatístico” para adentrar novamente na rotina e agradecer por não ser a “bola da vez”. De repente o barulho das palavras de Marielle Franco emudeceu, nasceu em muitas mulheres, encontrou apoio em muitos homens e iluminou milhares de pessoas que o “status quo” fazia questão de manter no escuro. É premente que os cidadãos brasileiros despertem para a constatação de que a violência não é parte integrante das sociedades. Que o maltratar de mulheres, homens e crianças, seja pelo Estado ou por outros seres humanos, não está de acordo com os princípios de uma nação democrática, de livres pensadores detentores do direito de expressão garantido por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que está disposto na Constituição Federal de 1988. Marielle Franco terminou sua viagem cumprindo o papel social que escolheu para sua existência, o que lhe dava significado e significava as vidas de milhares de pessoas relegadas às periferias sociais, relegadas às sobras, facilmente justificadas apenas pela desigualdade social. Nós continuamos viajando e qual papel escolheremos?
Adriana Ferreira Serafim de Oliveira é doutoranda em Educação na Unesp em Rio Claro, mestre em Direitos Fundamentais, advogada e professora. Este artigo está disponível no Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/2vJp22>.
G
raduado em Psicologia, mestre em Educação (Psicologia da Educação) e doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Nelson Pedro-Silva é professor da Unesp em Assis. Atua em áreas como ética, desenvolvimento moral e psicologia da moralidade humana. Ele alerta para o avanço da cultura da violência e acentua a necessidade de um pacto para conter a atual tendência de desagregação social. Caderno Fórum: Como o senhor avalia o mundo contemporâneo? Nelson Pedro-Silva: Freud já afirmava que sem pacto, não se teria seres civilizados. Antes disso, Hobbes, entre outros, ao dissertar sobre o Estado absoluto, disse que, se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. Edgard de Assis Carvalho, ao comentar as posições políticas do psicanalista Hélio Pelegrino, assim resumiu o seu pensamento acerca do mundo contemporâneo: um mundo sem amor, desoxigenante, terminal, incapaz de garantir a sociabilidade mínima. Nesse cenário dilacerador é que explodem a violência generalizada, a impotência social, o descalabro institucional, a reprodução ampliada da cultura do narcisismo que, de um lado, aposta na desestruturação da sociabilidade e, de outro, investe no curto-circuito da autopreservação e da autoconservação desmesurada. CF: E onde entra a violência nisso tudo? Pedro-Silva: Segundo o psicanalista Jurandir Freire Costa e o historiador Cristopher Lasch, essa mentalidade é produto da cultura da violência. Ela, ao apontar a impotência e a impossibilidade de mudança do sombrio quadro social instituído, ativa mecanismos narcisistas de proteção do EU, levando ao estabelecimento de modelos interacionais pautados na superficialidade e brevidade. Nesse sentido, o filósofo Bauman os define como líquidos, e o epistemólogo e psicólogo Jean Piaget, heterônomos. Em resumo, um pacto é essencial para se superar qualquer problema e em qualquer relação. Por quê? Conforme o filósofo e educador Mario Sergio Cortella, é por meio do pacto que se cria uma comunidade, isto é, um conjunto de pessoas com objetivos partilhados, mecanismos de autoprevenção e estrutura de proteção recíproca. CF: Nesse contexto, quais podem ser as consequências de uma guerra civil no Rio de Janeiro? Pedro-Silva: Acredito que uma guerra produz benefícios. No caso do Rio, trata-se da vitória da sua população e da União contra grupos criminosos e paramilitares. A beligerância pode nos levar a alguns aspectos, como compreender o modo de funcionamento de cidadãos que,
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GISELES E MARIELLES Divulgação
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Marília Aparecida Muylaert
Nossa Constituição é desrespeitada ou inobservada praticamente privados dos serviços estatais, mostram-se leais aos membros do crime organizado e às milícias; possibilitar o entendimento da cegueira branca (alienação) que tomou conta da sociedade, a ponto de se pedir a volta da ditadura militar; e entender o fato de a morte ter se tornado espetáculo. CF: Haveria outros benefícios? Pedro-Silva: Existem diversos outros tópicos, como constatar o quanto somos lobos de nós mesmos; analisar a cultura produzida nos guetos, produto do ar mórbido de um povo ferido na sua capacidade de autodeterminação; compreender a sociedade do espetáculo que Debord problematizou; concluir que, atualmente, tudo que é sólido desmancha no ar, apontado por Marx & Engels e problematizado por Bauman; separar a imprensa de máquinas de propaganda; tomar consciência acerca da transformação dos cidadãos de morros e comunidades em vermes ou animais que precisam ser castrados porque são compreendidos como responsáveis por esse status quo; lutar contra o microfascismo diário que, por meio de novas tecnologias, tem transformado o relativismo cultural e o politicamente correto em instrumentos de produção do silêncio, da vigilância, do controle e de promoção de ações judiciárias. CF: Qual seria a conclusão desse processo? Pedro-Silva: Acordarmo-nos desse estado que nos transformou em zumbis e elevou ao grau máximo o ditado popular do não tem mais jeito. O problema é que o nosso principal documento, que traduz um pacto de convivência na sociedade brasileira, é cotidianamente desrespeitado ou inobservado. Refiro-me à Constituição Federativa do Brasil, que, tudo indica, já se tornou letra morta. Leia também o artigo: <https://goo.gl/aY8hDm>.
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ois assassinatos. Ambas, mulheres. Uma era médica. Outra era vereadora. Ambas prestavam serviços à comunidade. Uma branca, outra preta. Ambas levaram tiros na cabeça. Uma teve seus bens roubados. A outra, sua voz, também. Ambas foram privadas de suas vidas. Uma foi assassinada por bandidos. A outra também. Ambas, vítimas. Uma foi notícia privada. A outra ficou estampada nos jornais do mundo. Ambas estão sob a terra, sós. Existem inúmeras diferenças entre os dois crimes. Nenhuma que justifique pesar maior por uma que por outra. Ambas são faces de uma mesma moeda perversa: o que nos tornamos no processo civilizatório para que ousemos fazer distinção entre dores lícitas, causas justas, injustiças justificáveis, defesa de direitos? Ambas deixam claro que o processo falhou. Ambas atestam as diferenças inconciliáveis a que nos conduzimos. Ambas são vítimas de nossa cegueira escolhida. As redes sociais destilam dores e ódios propalados a sete ventos e... colocamos um contra o outro. Aqui as semelhanças acabam e o que seria o chão comum torna-se movediço lodo de discriminação de todo tipo. O olhar para o futuro além da esquina está turvado pela dor, pela miséria humana, pela pobreza de caráter. Insuflamos o peito e os discursos para defender uma OU outra. Estamos longe de qualquer saída solidária e generosa, muito além de qualquer ética ou justiça. Nos tornamos nós os bandidos, os mesmos que puxaram os gatilhos. Estraçalhamos seus corpos entre a esquerda e a direita com um nó de afetos grotescos ao centro. Matamos mais um pouco e outra vez, covardemente, e continuamos nos afastando certos de nossas posições, bradando por justiça enquanto assumimos posições injustas. Esquartejamos o tecido social do qual todos fazemos parte, buscando as posições mais certas,
Condomínio ou favela, o que as vozes clamam é o direito à vida o olhar mais acurado, a análise mais intelectual ou política que dê conta da barbárie que produzimos. E, tanto faz se nos damos conta ou não da boçalidade de nossas reivindicações. A dor move o ódio e a busca de culpados, sempre do outro lado, sempre bem longe de nós, sempre no lugar de que não fazemos parte ou sequer nos aproximamos. Gisele e Marielle, profissionais, jovens e promissoras. Tinham família e sonhos. Escolheram profissões que cuidam da Vida, da sociedade, de nossa continuidade digna. Entender que uma era do cotidiano e a outra do palanque. Que uma era da Vida agora e outra da Vida amanhã. Nenhuma mais importante – se não vivemos hoje, não há amanhã para ser construído. Entender que os usos políticos e as causas obscuras das mortes não validam uma ou outra, e não invalidam também. Estamos sempre advogando em causa própria, seja para já ou amanhã, esse o fardo mais tramado e inconfessável de nossas intenções. Ganhar as manchetes do mundo ou notas de rodapé não revela o valor das Vidas. Não há mérito na morte de quem morre. Não há ética em assassinato. “Os bandidos passam bem”... Maioria ou minoria, classe, partidos, políticas injustas ou direitos garantidos. Linha Vermelha ou Estácio. Condomínio ou favela. O que as vozes clamam é o direito à Vida. Sim, com letra maiúscula e dignidade e alegria e luta e... “Todo mundo tem direito à Vida e todo mundo tem direito igual”.
Marília Aparecida Muylaert é professora do Departamento de Psicologia Clínica da Unesp de Assis. Este artigo está disponível no Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/wzV53B>.
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Abril 2018
A NOSSA GUERRA DO DIA A DIA 123RF
Luiz Carlos Cagliari
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ma notícia recorrente do Rio de Janeiro é o tiroteio diário entre facções de bandidos e destes com os policiais. Nessas ocasiões, quantas pessoas inocentes morrem! Em 7 de março de 2018, foi morto o vigésimo oitavo militar na cidade do Rio de Janeiro. Quando um grupo armado mata militares é porque se vive em guerra declarada. A morte do militar revela que há muita coisa em jogo abertamente ou de modo velado. As motivações de uma guerra podem ser muito variadas, mas quase sempre envolvem dinheiro. As formas das guerras também variam muito e, quase sempre, são motivadas pela ambição. Ambição e dinheiro são duas faces de uma mesma moeda. Dia 8 de março ficou sendo dia dedicado às mulheres, depois de longas batalhas sociais. Os maus-tratos às mulheres vão além do emprego. É dentro do lar que muitas são violentadas física e psicologicamente, e até mortas. No Brasil, sete mulheres são mortas por dia, vítimas de todo tipo de homem. Por isso, a guerra deve continuar até que as mulheres sejam tratadas com dignidade. As mulheres são os amores dos homens, mas nem todos reconhecem isso. As estradas do Brasil matam mais do que os locais de guerra declarada no mundo. As mortes nas estradas do Brasil: em 2014, foram 48.349 mortes (cerca de 4.029 mortes por mês, 132 por dia e 6 por hora, isto é, 1 morte nas estradas a cada 10 minutos). Carros deveriam ser considerados armas e estradas, campos de batalha. No jornal Folha de S.Paulo, dia 9 de março de 2018, a manchete é: “Roubos explodem em todas as regiões do país; governos culpam crise”. E quem criou a crise, a não ser a má administração pública, a corrupção e o descaso com o povo? Será que a democracia é mesmo um governo do povo para o povo no Brasil? Assaltos não são ações de guerra? Roubos não são pilhagens?
O infrator deveria pagar multas elevadas. Sem dinheiro, crime organizado enfraquece A insegurança e a tristeza do povo tornaram-se tão grandes que ninguém tem mais coragem de andar pelas ruas à noite. Há um toque de recolher silencioso, mas altamente significativo. O povo fica em casa, preso, enquanto o bandido vive livremente pela cidade. Isso não é uma situação de guerra? Num país como o Brasil, os conceitos de honestidade e de respeito já mudaram muito de sentido. A situação é mais clara em Brasília, onde os políticos e o Judiciário atuam de forma mais soberana. A quantidade de leis e de decretos visando a interesses particulares é enorme. Soma-se a isso a incompetência em fazer a coisa certa, criando um amontoado de leis e de normas que desorientam qualquer erudito e fazem com que muitos nunca saibam ao certo a que elas vêm. A impressão que se tem é que a administração pública, ou seja, os poderes da República, vive em constante situação de batalha. Eles sempre saem ganhando, e o povo, perdendo. Logo teremos eleições “democráticas”. Hora do calafrio: em quem votar? Quem vai salvar o país da corrupção, vai gerar empregos, dar saúde e educação como o povo merece? Quem vai acabar com a guerra, trazendo paz para a segurança pública? Os mesmos que sempre estiveram no poder? Novatos inexperientes? Quem tem cacife para resolver nossos problemas básicos? Essa angústia é um sofrimento típico de guerra.
A guerra se apoderou também das redes sociais. É um mundo virtual com fortes ligações com o mundo real. Esse mundo está cheio de difamações, de fake news, de ofensas. Os hackers são os novos bandidos. Há uma guerra espalhada pelo mundo, com ações instantâneas e com consequências diabólicas. Os novos bandidos não mostram a cara, não têm identidade nem país, mas são portadores de armas poderosas. Criam emboscadas sofisticadas para infernizar a vida moderna. Como o dinheiro, hoje, a Internet se revelou não apenas um bem, mas também um mal. Muitas pessoas evitam usar a Internet e o celular com medo de verem suas vidas destruídas moral e financeiramente. É uma guerra sem tiros, porém com forte poder destrutivo. A primeira coisa para acabar uma guerra é o não uso de armas. Uma lei que proibisse a qualquer cidadão andar armado seria um bom começo. O infrator deveria pagar multas elevadas. Tirando o dinheiro, o crime organizado enfraquece. Alguns bandidos podem achar que o crime não compensa, com medo de perderem seus bens. Com tantas preocupações, vivemos uma guerra altamente destrutiva. Viver pensando em estratégias de defesa, em lutar contra uma guerra de muitas frentes, visível e invisível, deixa os contemporâneos muito infelizes. A vida não era para ser assim. Acabo de ouvir na televisão o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista. Cada brasileiro morre um pouco com essas mortes. Luiz Carlos Cagliari é professor colaborador voluntário do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. Este artigo está disponível no Portal Unesp, no endereço: <https://goo.gl/ovx6Nj>.