D E H S O E R R I Z O O D N A TES C I T SE NARRATIVAS JUVENIS SOBRE VIDAS REINVENTADAS
Esticadores de Horizontes © copyright Agência de Informação Frei Tito para América Latina e Caribe - ADITAL Presidente | Manfredo Araújo de Oliveira Diretor Executivo | Ermanno Allegri Organização e projeto original | Adriana Santiago Textos | Ethel de Paula e Benedito Teixeira Edição | Ethel de Paula Projeto gráfico e diagramação | Alx Santos Imagem de capa | Francisco Galba Nogueira Fotografias | Coletivo 202B e Marcelo Barbalho Revisão | Diana Melo
Catalogação na Fonte Bibliotecária: Perpétua Socorro tavares Guimarães Agência de Informação Frei Tito para América Latina e Caribe - ADITAL Esticadores de horizontes : narrativas juvenis sobre vidas reinventadas / Organização de Adriana Santiago; textos de Ethel de Paula e Benedito Teixeira.Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2017. 228 p. :il. ISBN: 978-85-420-1002-0 1. Juventude 2. Narrativas juvenis
I. Santiago, Adriana IV. Título
II. Paula, Ethel de
III. Teixeira, Benedito CDD: 700
D E H S O E R R I Z O O D NTES A C I T SE NARRATIVAS JUVENIS SOBRE VIDAS REINVENTADAS Adriana Santiago (org.)
Ethel de Paula Benedito Teixeira
Fortaleza - 2017
BERNARDO É QUASE ÁRVORE Bernardo é quase árvore. Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe. E vêm pousar em seu ombro. Seu olho renova as tardes. Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho: 1 abridor de amanhecer 1 prego que farfalha 1 encolhedor de rios 1 esticador de horizontes. (Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.) Bernardo desregula a natureza: Seu olho aumenta o poente. (Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?) Manoel de Barros. “Livro das Ignoranças”, p. 297. In Poesia Completa, São Paulo, Ed. Leya, 2013
violência olências D E H S O E R R IDE T O D S E S E R O DE SUMÁRIO
D E H S O E R D O E S E D R O A D A C C I I T T S S E E D E H S O E R R I ZONTES SE TICADO projeto et 08 ES D ulturaa10
E
O Projeto
CULTURA | O voo dançante da pena
O sonho não acabou.......................................................................................................16 A potência da criação....................................................................................................21 Arte e cultura como direitos.........................................................................................28
S E R O D A IC
JUSTIÇA JUVENIL | O rock não errou
HORIZONTES esporte sp rt
j v nill a 32 j juvenil
Quando a justiça ancora no morro.............................................................................38 TDH - incidência política e formação em rede............................................................43 Para além dos muros da escola......................................................................................46
ESPORTE | Aloha, Titanzinho!
e
Superman vai à praia....................................................................................................56 Os Ferinhas.....................................................................................................................60 Fera radical....................................................................................................................62 Um salto para a democracia.........................................................................................68
TERRITÓRIO | A utopia possível dos bons jardineiros
50
t rr t r 70 territóri
O rejuvenescimento da paz...........................................................................................76 CDVHS - a ágora do bom jardim...................................................................................81 Avanços na organização popular................................................................................85
educação ç 88
D E H S O E RIZONTES R O D A C rtrtrabalh rabal abal 104 EDUCAÇÃO | A educação de si e do outro
#Ocupaescola - há um líder em você............................................................................94 Juventudes - política multifacetada e sem hierarquia...........................................102
trabalho | A lógica revolucionária do pirambu digital
A humanização da tecnologia...................................................................................110
sumário assumário IDTZEHHOOIOCRRNAT ORES DE H
OE RHOIZRIOZONNTTEES S
124diversidad d d ddiversidade | O jovem corpo utópico
A medusa e o marciano.............................................................................................130 A resistência da asa branca......................................................................................136 Privação histórica de direitos.................................................................................142
direitos
146humanodireitos humanos | Existir para resistir
Indestrutíveis, venceremos.....................................................................................150 As reviravoltas da vida............................................................................................154 O dia a dia do enfrentamento às violências sexuais.............................................158
vviolênc nncias c violências | Juventude capturada 160violên iiolên olênnc ência
Entre mães e filhas....................................................................................................166 Pelas asas de Maat......................................................................................................171 Pela paz nas prisões....................................................................................................176
ES
180 ritualidad ritualidad l espiritualidade | Lagamar de terra e céu
D E S E R O D CRI
D E H S O E R R I Z O ONTES D A C I T SE pendê dênc dê ênc ên 198 pendên A multiplicação da fé...............................................................................................188 Por uma revolução cristã.........................................................................................192 Teologia da libertação jovem..................................................................................194
dependência | Um salve para D2
O redesenho da própria vida.....................................................................................204 A potência da cufa....................................................................................................212 Drogas: um desafio político....................................................................................216
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estututo
D E H S E R O D A SE TIC
estatuto da juventude | O marco legal da juventude
trabalho cultura estatuto humanos O PROJETO
violênci lências
spiritualidade
educacao
dependência educação esporte
lências diversidade
ucação STICADORES DEviolências H O R I Z O NTES E esperitualidade
justiça território de trabalho esporte cultura juvenil O Projeto direitos humanos
diversida
dependência
Horizontais, venceremos! Esticadores de Horizontes é uma pérola pinçada do autodeclarado “idioleto manoelês archaico”, escrito e falado em versos pelo poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916-2014). E não à toa, nomeia esta série de 12 reportagens produzidas pela Agência de Informação Frei Tito de Alencar para América Latina e Caribe (Adital), todas elas girando em torno de ações inclusivas desenvolvidas por organizações não governamentais junto às juventudes de Fortaleza. As reportagens investigam como jovens atendidos por ONGs adquiriram autonomia para dar forma aos seus desejos de emancipação, seja através do trabalho ou de processos formativos com aplicabilidade na chamada vida produtiva. Jovens que, diante das oportunidades criadas para reverter ou dirimir situações de vulnerabilidade social, tornaram-se esticadores de seus próprios horizontes, criando, eles mesmos, asas para voar cada vez mais longe. Voemos com eles. A cada página, nossos “esticadores de horizontes” narram as alternativas encontradas para ampliar e moldar suas perspectivas de vida e visões de mundo. São voos rasantes e em zigue-zague, empreendidos graças às suas próprias astúcias, habilidades e conhecimentos, a partir da capacidade que cada um tem de reinventar a si mesmo e dar vazão a outros modos de existir e resistir. Não se trata de alçá-los a heróis, mas de apresentar exemplos reais e com resultados visíveis de projetos sociais, culturais e/ou educativos sólidos e longevos, que poderiam ser replicados como modelos no País. Apontar caminhos, luzes, possibilidades, soluções - ou parte delas. Assim, é por meio das vozes das juventudes vindas da periferia que conhecemos mais de perto projetos desenvolvidos pela sociedade civil organizada com esparsos e suados recursos financeiros. De modo sequencial, cola-se a tais narrativas uma série de problematizações correlatas, abrindo passagem para a repercussão delas através da escuta crítica dos nossos “escutadores de horizontes”, especialistas, gestores e demais agentes defensores dos direitos humanos e dos direitos das juventudes, sempre deitando o foco sobre o vivido e os agenciamentos capazes de gerar transformações sociais, convertendo fragilidades em potencialidades. As reportagens aqui publicadas se dividem em eixos, de acordo com as linhas de atuação de cada ONG visitada: cultura, justiça juvenil, esporte, direitos humanos, diversidade, território, educação, trabalho, violências, dependência e espiritualidade. Em conjunto, funcionam como dispositivos concretos para uma ampla reflexão crítica que também é ativadora de sentidos e propositiva, voltando o foco para experiências exitosas e quebras de paradigmas que podem e devem servir de inspiração e referência para políticas públicas e outras iniciativas não governamentais que intentem valorizar e proteger a juventude brasileira. Em tempo: a iniciativa para contribuir com o debate ético e estético em torno de demandas prementes das juventudes só foi possível graças ao patrocínio do SESI - Conselho Nacional e ao investimento de recursos próprios da Adital. Todo o conteúdo publicado também está disponível no site www.esticadoresdehorizontes.com. Boa leitura!
ESTICADORES DE HORIZONTES CULTURA
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O Voo dancante da Pena
Katiana Pena [imagem - 202B]
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O VOO DANÇANTE DA PENA
E eis que a poética do brincar abriu caminho para outros possíveis. Foi entre cambalhotas que Katiana avistou ao longe o que lhe parecia um “objeto não identificado” pousado bem no meio da paisagem de piçarra, lama e casebres que jamais fizeram jus ao nome do bairro de origem: estava diante do circo-escola do Bom Jardim, projeto tutelado pelo Governo do Estado e voltado à inclusão social e arte-educação, com foco na linguagem circense. “Entrei assustada e percebi que tudo o que eu fazia quando encostava o pratinho de verdura no meio da rua tava ali: a contorção, os saltos, as piruetas. Aí a ‘tia’ de lá me explicou o que era e eu voltei pra casa correndo pra pedir à mãe que me matriculasse no circo. Apanhei porque não vendi nada naquele dia, mas acabou que ela deixou eu fazer a matrícula. E foi como contorcionista que ganhei o meu primeiro cachê”, conta, satisfeita. ESTICADORES DE HORIZONTES
CULTURA
A arte de equilibrar pratos, Katiana Pena conheceu aos cinco anos de idade, ao revés. Levava um em cada mão, fartos da verdura que a mãe comprava para que ela revendesse pelas ruas do bairro Bom Jardim, na periferia de Fortaleza. Complemento indispensável ao minguado orçamento familiar. Hoje, aos 33, a bailarina profissional ri-se ao recordar que nem sempre cumpria o objetivo. É que o corpo miúdo já ousava outras “coreografias”. E não havia como resistir ao ímpeto criança de interromper o trajeto e entregar-se às horinhas de descuido, aquelas onde imperativo era encostar a mercadoria numa beirada de calçada qualquer e gastar boa parte do dia vendo o mundo de ponta-cabeça, entre bundas-canastras e “estrelinhas”.
Você não tem roupa, é muito longe, isso não dá dinheiro Para Katiana, o circo foi a cama elástica para voos mais altos. Lá dentro, soube da existência da Edisca (Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Crianças e Adolescentes), ONG criada em 1991 por três irmãos bailarinos: Dora, Claudia e Gilano Andrade. Privilegiando o ensino da dança, o trio corria os bairros da periferia da cidade, divulgando o projeto social que apostava em processos formativos continuados e com centralidade na arte. “Lembro que iam sair dois ônibus do Bom Jardim e eu, claro, queria ir. Devia ter uns 7anos. Mas aí a mãe botou dificuldade: ‘você não tem roupa, é muito longe, isso não dá dinheiro...’ E dizia mais: ‘Katiana, você vai, mas, se não passar, leva uma pisa tão grande que tu vai ver...’”, arremeda. Engolindo em seco, a contorcionista precoce pediu short emprestado, tênis e liga para o coque, partindo com a turminha do bairro para o desconhecido. Intrépida trupe. “Lembro que no caminho tinham muitas igrejas. E quando passava na frente delas, eu rezava, com medo de apanhar também, né? Mas quando vi os primeiros passos de balé, aquilo me atravessou.
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Foi um choque. E não queria mais outra coisa. Passei na audição e entrei logo pro ensaio do Jangurussu, o primeiro balé da Edisca. O sucesso desse espetáculo foi estrondoso, mas mal sabia a plateia endinheirada que naquela época era tudo tão difícil que a gente tomava água na fábrica de gelo vizinha, porque na escola não tinha. Era todo mundo azul de fome, muita gente desmaiava na sala de aula. E a luta da Dora para contornar essa situação era imensa... Mas não foi em vão. Só sei que entrei em 1992 e fiquei 16 anos na Edisca, saindo de lá completamente transformada e pronta para enfrentar qualquer desafio que a vida me traga, além, é claro, de ter me tornado o que sempre quis: bailarina”, recorda a hoje proprietária do Studio de Dança Katiana Pena, no bairro Bom Jardim.
Acho que só entendi a real importância do projeto quando saí
Depois disso, eu nunca serei uma simples bailarina ou professora de dança. É isso e mais um pouco: dançando e fazendo dançar, eu quero que as pessoas entendam que cada um é capaz de transformar sua própria vida e o coletivo também”, acredita. Lenta e sinuosa, a dança que Katiana sugere, à moda Edisca, é a de quem se deixou guiar por renovados valores éticos e estéticos. Uma dança que convida o ser humano a participar e se implicar com a organização do mundo. Uma dança para os que concebem a vida como risco e experimentação contínua, primando por movimentos de expansão e de beleza compartilhada. Dançar por novas formas de ser e de estar, afirmando a vida, é também ter coragem para muitas vezes dizer “não”, em nome de um recomeço. Katiana teve. Ao sair da Edisca, recebeu uma proposta para ser professora de dança do Centro Cultural Bom Jardim, equipamento concebido e gerido pelo Governo do Estado. Topou. Foram nove anos de carteira assinada, alguma estabilidade financeira e muita peleja para exercer o ofício como acreditava. “Não era só chegar e dar aula.
Um ciclo que se completa. Na Edisca, a ex-aluna que foi dar suas primeiras aulas de dança remuneradas, justo no local onde aprendera a dançar, saiu de lá não só dominando a técnica como instigada a dar forma ao desejo que, também ali, cresceu junto com ela: construir a própria escola para repassar a quem vive à margem o que havia aprendido.“Acho que só entendi a real importância do projeto quando saí. Fiquei um tempo sem chão, pensando que não ia ter mais aquele almoço, aquela consulta médica, aquela biblioteca, aquela psicóloga de plantão, aqueles espetáculos incríveis. Mas depois entendi o mais valioso: a capacidade já conquistada para construir, eu mesma, um jeito próprio de viver, de sobreviver e também de conviver.Tudo o que vivi e ouvi na Edisca está em mim, impactando positivamente aonde eu for.
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Studio de Dança Katiana Pena [imagem 202B] O VOO DANÇANTE DA-PENA
A então diretora de Cidadania Cultural do IACC, Luisa Cela, disse em entrevista que, ao completar uma década, o desafio do Centro Cultural do Bom Jardim (CCBJ) é não só reestruturar seu espaço físico, mas se reencontrar como equipamento público inserido em uma área de grande vulnerabilidade social. “É uma questão de repensá-lo a partir das questões sociais que são colocadas nesse território, e o CCBJ, nos últimos dois, três anos, passou por um processo de enfraquecimento sim, também por não atentar para os problemas de seu entorno”, admitiu. “A ordem agora é que o CCBJ não se restrinja a oferecer formação e programação em artes, mas também se preocupe com as necessidades básicas de seus alunos e de suas famílias”.
CULTURA
Ensinei até a fazer cocó, dei banho nas meninas, tirei piolho e vi o collant de muitas delas ficar tão pequeno que já não passava da cintura. E, quando a gente solicitava, não havia recurso financeiro para repor ou melhorar nada. Então, eu não entendia como o governo gastava milhões em um show na Praia de Iracema e ali faltava tanta coisa. Não quis mais pactuar com isso e pedi demissão, mesmo sofrendo”, sublinha. Para ela, erguer um equipamento cultural em um bairro como o Bom Jardim requer bem mais do que infraestrutura, sob pena de vir a tornar-se um “elefante branco”, algo grandioso, porém superficial no que se refere à transformação de todo um contexto de vulnerabilidade socioeconômica. “Num total de 300 crianças, divididas em quatro turmas, tinha gente com histórico de violência absurdo. Tinha dias em que não tinha como dar aula e a gente sentava pra conversar sobre a mais recente chacina ou ajuste de contas com familiares e amigos em comum. Não dei conta. Entendi que não bastava um centro cultural amplo, bonito, com professor lá dentro pra dar aula, sem olhar pros lados. O buraco era muito mais embaixo”, critica a professora. Com a legitimidade de quem nasceu, cresceu e permaneceu no Bom Jardim, Katiana ousou fazer diferente, mesmo a conta-gotas ou correndo o risco de não alcançar o número de pessoas que ela gostaria, dada a própria fragilidade socioeconômica. “Quando desisti do Centro Cultural, passei um mês pensando... E resolvi, por fim, subir um andar na minha casa e construir um estúdio de dança. Com o dinheiro da rescisão de contrato também comprei um carro e comecei a fazer frete. Pedi dinheiro emprestado ao meu irmão e comecei a obra. Depois botei uma mesa na calçada e fui fazer inscrição. Boa parte das minhas alunas do centro cultural veio. E aquilo me estimulou a correr atrás de parcerias com comerciantes do bairro”, conta.
Da fraqueza se fez a força. “Aqui, quero fazer uma dança diferente, mais próxima da realidade das pessoas do bairro. Quero fazer uma aula na pracinha e no campo de várzea. Já estou dando aula de zumba nos estacionamentos de três supermercados vizinhos. Quero sair dos espaços convencionais e valorizar os espaços públicos, promovendo essa mudança de perspectiva e um maior acesso. Por isso, o nome do grupo de dança avançado é Corpo Mu-Dança. E é com ele que venho criando espetáculos para apresentar em outros palcos da cidade, ganhando cachês. Algumas já são professoras no estúdio, ganhando uma ajuda de custo simbólica. Também sou convidada a fazer coreografias para escolas, dou assessorias e, assim, vamos fazendo nosso caixa, que ainda está no vermelho, mas vai melhorar”, acredita.
ESTICADORES DE HORIZONTES
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Passados 23 anos de criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a então presidenta Dilma Rousseff sancionou, em 2013, o Estatuto da Juventude. Este marco legal dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Contempla uma faixa etária específica, que vai de 15 a 29 anos. Entre outros eixos, garante justamente o direito à cultura e o direito ao território. Davi Barros, titular da Coordenadoria Especial de Juventude, órgão do Governo do Estado do Ceará, vê como um dos avanços do Estatuto da Juventude sair do viés meramente tutelar para garantir a emancipação, a independência; dotar os jovens de condições para não somente se tornarem os provedores econômicos de suas famílias, mas também agentes da transformação política e cultural do País. E reitera: “Uma parcela privilegiada da juventude brasileira não precisa que o Estado colabore para o seu desenvolvimento integral, pois tem acesso à universidade, aos bens culturais, à educação regular. O Estatuto existe para defender essa juventude que é vítima da pobreza, da discriminação, de toda sorte de desigualdade e violação de direitos”.
Pliés à parte, a vontade de Katiana é política Pliés à parte, a vontade de Katiana é política. “Quero que todos esses jovens professores de dança sobrevivam do Studio, que possam pagar o transporte, os estudos, comer daqui. Acho que é um dever meu com meus amigos, com minha família, com pessoas que estão aqui sem oportunidades e também com aquelas que tiveram que ir embora. O mesmo pas de deux que tem na França, tem aqui. Então, elas podem ir ou não, mas devem ter o direito de decidir se querem fazer a vida delas no Bom Jardim. Na inauguração do Studio, consegui apoio pra colocar o palco na rua, fechar os cruzamentos e apresentamos um espetáculo baseado na vida de Camille Claudel. Todo mundo botou a cadeira na calçada e vi muita gente chorando... o povo do Bom Jardim não sai no fim de semana, porque não tem nem o do transporte. O bairro é violento, todo demarcado por gangues rivais, então o direito de ir e vir é prejudicado. Então, imagina o impacto dessa apresentação sobre as pessoas... Parece quase nada, mas pra gente é muito forte e importante”, afirma, contundente, a professora mais popular do Bom Jardim.
Importante porque cada Corpo Mu-Dança quer justamente isso: despertar sensações, partilhar o sensível, instaurar um novo regime de convivência capaz de construir sujeitos mais éticos, políticos, emocionais e vitais. Dançar não apenas para sobreviver, mas para dar malemolência às próprias vidas e ativar sentidos adormecidos e domesticados. Um voo fora da curva, tão necessário quanto possível para existir - e dançar - de outras maneiras. [texto - Ethel de Paula]
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O VOO DANÇANTE DA PENA
CULTURA Maria Antônia Pena, Mikaely Maia, Letícia Kelly Maia e Ana Larisse Guedes, alunas do Studio de Dança [imagens - 202B]
Tainar Mendes, bailarina do Corpo Mu-Dança [imagem - 202B]
Bom Jardim [imagens - 202B]
ESTICADORES DE HORIZONTES
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O sonho não acabou Nenhum ruído de comunicação. Nenhum mal-entendido sequer. Ao desembarcar em Nova Iorque para apresentar um dos espetáculos que compõem o repertório da Edisca, a bailarina cearense Renata Saldanha soltou o verbo com desenvoltura, exibindo, altiva, toda a sua fluência em inglês. O domínio da língua não é resultado de uma exemplar educação formal na infância ou na adolescência. Ao contrário. Nas precárias escolas pelas quais passou, no Barroso, bairro de origem, nem mesmo o idioma-mãe ela conseguia fixar a contento. Até que, aos 8 anos, chegou à Edisca, uma escola sem fins lucrativos que, tendo a dança como porta de entrada, tomou para si o desafio de gerar em crianças e adolescentes de baixa renda muito mais do que o já complexo conhecimento técnico em balé clássico ou contemporâneo. Um lugar para dançar, sim. Mas também empenhado em dirimir históricas desigualdades sociais, batendo de frente com defasagens de aprendizado tão alarmantes quanto. Assim é que, para Renata e outras tantas educandas e educandos da Edisca, aprender uma língua estrangeira deixou de ser uma ação distante e dissociada do ensino da dança para se tornar uma experiência complementar relevante no contexto mais amplo e múltiplo de uma educação dita integral. Assessora de Gabinete da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult), Rane Félix destaca justamente o importante papel que a arte e a cultura podem exercer na formação cidadã da juventude. “Quando se discute, através da arte, os direitos sociais, discute-se política. Não existe um processo cultural alienado do processo político. É necessário problematizar, através da arte, esse ‘buraco’, essa ausência de direitos sociais, esse vazio, esse não-direito, e questionar isso. Nós, enquanto poder público, ao financiar, ao propor editais [de fomento às artes], temos que colocar essa discussão da política através da arte”, reflete. Saldanha no espetáculo Religare (2015) 18Renata [imagem - Mila Petrillo - divulgação Edisca]
O SONHO NÃO ACABOU
ESTICADORES DE HORIZONTES
Renata Saldanha [imagem - 202B]
Aos 24 anos, Renata já viveu - e não deixou escapar - cada etapa e cada dobra do processo educativo interdimensional desenvolvido na Edisca. Hoje, como professora de dança contratada pela própria instituição, graduanda em Educação Física pela FIC-Estácio e professora de ginástica rítmica do Colégio Sete de Setembro, replica o que aprendeu aonde vai, valorizando, cada vez mais, todo o aparato que, para ela, tornou eficaz o aprendizado e o legado de toda uma vida. Educanda tornada educadora, Renata também é forte candidata à sucessão da própria coordenação da instituição, encabeçada há 25 anos pela bailarina Dora Andrade. Um reconhecimento transmutado em responsabilidade, que a fez ir fundo na gênese do projeto e suas perguntas desafiadoras: como ensinar dança a crianças e adolescentes da periferia da cidade, sem garantir-lhes, pelo menos, uma boa refeição ao dia? Como tornar potentes e vitais corpos frágeis, vulneráveis, adoentados ou desnutridos? Como cuidar e promover o autocuidado de quem cedo experimenta desequilíbrios, desavenças e violências no ambiente doméstico ou no lugar de origem?
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O sonho de Renata, que é maior do que o Barroso, bem maior do que Fortaleza e muito maior do que Manhattan, cresce sem medidas e atinge proporções imensuráveis quando sonhado por muitos ao mesmo tempo
CULTURA
Aprender a falar inglês, ao mesmo tempo em que é preciso levar a sério a gradual imersão no programa de fortalecimento do ensino formal, são pré-requisitos básicos não só para o ingresso, como para a permanência na Edisca, o que faz com que as sucessivas turmas, sem exceção, tenham aulas sistemáticas de língua portuguesa e matemática. Persistir na formação artística em dança, algo que pode durar entre cinco e oito anos, ao mesmo tempo em que aqueles e aquelas com melhor rendimento escolar podem ter a chance de estudar como bolsistas nos mais respeitados colégios particulares ou cursinhos pré-vestibulares de Fortaleza.
“Na Edisca, temos alimentação, atendimento médico, psicológico e odontológico. Recebemos fardamento e vale-transporte. Sem falar na relação muito próxima que a escola tem com nossas famílias, que têm que ser cúmplices no nosso desenvolvimento. Há, inclusive, um trabalho interno de formação profissionalizante para as mães. Basta isso pra gente entender que é uma escola diferente daquelas que nós, meninas da periferia, conhecemos. Minha mãe, por exemplo, voltou a estudar depois que eu vim pra Edisca. Entrou pra faculdade de Pedagogia já bem tarde. Isso porque me viu entrar na faculdade de Educação Física. Ela, como eu, entendeu que era possível, que a gente é capaz de ser muito mais do que imagina, que não é preciso se contentar com tão pouco. Acho que é isso que a Edisca ensina a quem chega aqui: que o sonho não acabou porque você nasceu pobre. Ao contrário. Ele é maior ainda e nós temos toda a capacidade de realizar e ainda fazer com que esse sonho contagie outras pessoas em desvantagem social”, assevera a bailarina, que planeja ser professora universitária e, assim, alcançar um rendimento mensal que, nas suas contas, chegará a, pelo menos, R$ 10 mil.
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O sonho de Renata, que é maior do que o Barroso, bem maior do que Fortaleza e muito maior do que Manhattan, cresce sem medidas e atinge proporções imensuráveis quando sonhado por muitos ao mesmo tempo. Darliane Sabino da Silva também foi aprovada na audição da Edisca, aos 8 anos. Hoje, com 20, mareja os olhos quando refaz a árvore genealógica e se percebe com uma perspectiva diferente daquela que foi a mesma da mãe, da avó e da bisavó, todas ex-empregadas domésticas. Lançando mão do FIES [Fundo de Financiamento Estudantil], ela cursa a faculdade de Enfermagem na Estácio-FIC e, assim, já se sente preparada para sobreviver da profissão, ao mesmo tempo em que planeja ajudar a mãe a cuidar da avó com Mal de Alzheimer. Isso sem parar de dançar e ensinar. “Dou aulas de flexibilidade e força em duas academias particulares: Teresa Passos e Rossana Pucci. E, mais do que tudo, amo dar aula de baby class numa creche-escola. Meu dinheiro é todo pra botar dentro de casa, mas me orgulho de, hoje, até poder ajudar a pagar a faculdade da minha irmã, que tá no último ano de Direito”, diz, exibindo seu sorriso de dentes bem cuidados. Moradora do conjunto habitacional Alvorada, onde vive numa casa doada pelo governo e, hoje, mantida exclusivamente por mulheres, Darliane não tem dúvida de que a passagem pela Edisca é um divisor de águas turvas na vida. “Lembro quando, na última fase de audição, teve o teste escrito, e eu tive que entregar em branco, porque tinha 8 anos e não sabia ler nem escrever. Eu já estava na escola pública, mas me alfabetizei na Edisca. Até as horas eu aprendi a ler aqui. E, quando entrei, claro, ainda achava que ia ser empregada doméstica, porque era o que eu tinha à minha volta.Você não conseguia visualizar outra coisa, nenhum dos meus amigos do bairro conseguia. A mentalidade era: diploma pra quê? Tem que trabalhar pra ter pelo menos um salariozinho. Hoje, eu penso em ter uma academia de dança, conciliando com o trabalho como enfermeira. Quero passar adiante pra quem não pode pagar o que aprendi. Um dia, o pobre vai olhar e ver que consegue entrar na faculdade, que tem um futuro palpável à frente dele”, sublinha. “Quando eu trabalhei no Cuca Che Guevara [Centro Urbano de Cultura, Ciência, Arte e Esporte] da Prefeitura de Fortaleza, tivemos um edital, o ‘Ação Jovem’, que fomentava as iniciativas próprias das juventudes, e era muito livre, contemplando desde uma lan house até ações culturais. Era, na verdade, um incentivo ao empreendedorismo, em parceria com a Secretaria do Trabalho. Essa iniciativa me chamou a atenção por ser uma via direta [entre o jovem e o poder público]. E pensamos em promover algo assim, em nível estadual, a fim de que o jovem seja o próprio protagonista”, explicou Klístenes Braga, assessor de Afirmação, Cidadania e Diversidade Cultural da Secretaria de Cultura do Estado (Secult). Darliane Sabino [imagem - Mila Petrillo]
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O SONHO NÃO ACABOU
CULTURA
Quando você é minimamente bem cuidado, pode ser qualquer coisa. Antes, pobre só conseguia ser pobre. Agora, o pobre, se tiver acesso à educação de qualidade, deixa de ser pobre
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Para a bailarina e quase enfermeira, até a ideia de pobreza, hoje, soa diferente, é relativa. “A maior riqueza que a gente tem é a vida, eu acho. No curso de enfermagem, eu entendi melhor isso porque, quando você tá ali, na UTI, não importa se é a pessoa mais rica do mundo, ali não existe classe social, todo mundo se iguala quando tá doente e precisando de cuidado. E, nesse ponto, a Edisca e a enfermagem me ensinaram o mesmo: a cuidar das pessoas. Quando você é minimamente bem cuidado, pode ser qualquer coisa. Antes, pobre só conseguia ser pobre. Agora, o pobre, se tiver acesso à educação de qualidade, deixa de ser pobre! Graças à Edisca e às minhas boas notas, claro, eu ganhei bolsa de estudo até o cursinho. Passei de primeira no Vestibular e, agora, quero fazer especialização pra me tornar instrumentista, que é quem ajuda nas cirurgias. Isso também por que só trabalha seis horas por dia, então dá pra eu conciliar com a dança”, ri-se, orgulhosa de si.
Aos 21 anos, Maria Raqueli é outra cria da Edisca que, hoje, cursa Educação Física na FIC-Estácio, mas quer ir mais longe: ser médica. Sonhar esse sonho parecia impossível quando, ainda bebê de colo, chegou a Fortaleza com os pais e uma rede de dormir, fugindo da seca e da fome, em Sobral. Acabou se instalando no bairro Bom Jardim e foi lá que, meninota, viu passar pelas ruas enlameadas da vizinhança uma típica bailarina em formação, metida em saia de tule e exibindo seu coque perfeito no alto da cabeça. “Achei aquilo a coisa mais linda e consegui ficar amiga da bailarina, que era a Katiana Pena. Foi ela quem me trouxe para a Edisca. Eu tinha 12 anos quando consegui entrar, porque era toda dura. Hoje, minha mãe trabalha aqui, ajudando no refeitório. E eu já sou professora de dança do colégio Christus, com carteira assinada. Isso é uma vitória pra mim, porque não gostava nem de estudar, antes de vir pra Edisca. Foi aqui que peguei gosto e, agora, posso colher os frutos. Acho que de tanto ver o sonho uma da outra, a gente foi conseguindo entender como é preciso esforço pra conseguir realizar cada um deles”, anima-se. Maria Raqueli [imagem - Mila Petrillo]
ESTICADORES DE HORIZONTES
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Para Raqueli, educação é o seu bem mais precioso. Ela foi a primeira de uma família “gigante” a ingressar numa faculdade. Mais: seu salário como professora de dança já pagou até dívida do tráfico de drogas contraída pelo irmão mais velho, que abandonou os estudos e, hoje, vive em conflito com a lei, ainda que em liberdade. “Ameaça de morte na porta de casa é uma coisa que acontece muito no Bom Jardim, que é carente de tudo e não oferece nenhuma alternativa de sobrevivência para a juventude. Acho que tive sorte, sou uma privilegiada, então, exatamente por isso, também tenho planos de levar o que aprendi pra minha comunidade. E isso vai acontecer assim que eu me formar e me equilibrar financeiramente. Aqui, ninguém desiste e nem vira as costas para quem precisa de ajuda. Ajudar e ser ajudado é um lema da Edisca”, frisa. [texto - Ethel de Paula]
Espetáculo Duas Estações da Edisca [imagem - Mila Petrillo - divulgação Edisca]
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O sonho não acabou O- VOO A potência DANÇANTE da criação DA PENA
CULTURA
A Potência da Criação Dançar para ativar forças criativas que dignifiquem e embelezem a vida. Na Edisca – Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescente –, é rompida toda a naturalização da impotência. O corpo que dança também tem o poder de reinventar a própria existência, de afirmar novos valores, de apontar para modos mais ousados e livres de ser e de estar no mundo. É o que acredita a bailarina Dora Andrade, diretora da instituição que, justo em 2016, completou 25 anos de trabalho ininterrupto junto a crianças e jovens da periferia de Fortaleza. O tempo não lhe cansou a beleza do gesto. Muito menos o discurso amoroso. Ao contrário. Por ela, a Edisca que hoje atende diretamente cerca de 300 educandos deveria operar com o máximo de sua capacidade: 500 pessoas, incluindo familiares. Dada a insuficiência de recursos e apoios financeiros, a utopia é vivida à prestação. Mas segue vigorosa, inventando outros possíveis. Em entrevista à Adital, Dora Andrade fala sobre o convívio íntimo entre ética e estética na Edisca, reflete sobre movimentos que geram ondas de transformação imensuráveis e apresenta os pilares de uma educação interdimensional descoberta na prática, em meio à partilha do sensível. ADITAL – São 25 anos de trabalho ininterrupto com crianças e jovens que vêm das periferias da Fortaleza. Que tipo de avaliação crítica e qualitativa é possível fazer ao longo do tempo? DORA ANDRADE – Sabe quando você joga uma pedra na água e ela cria varias ondas? Uso essa imagem para pensar no impacto da Edisca. A primeira onda é o que acontece diretamente na vida dos educandos, o conhecimento adquirido, a conquista de uma autoestima perdida e de uma força vital para buscar autonomia. Mas o que acontece na vida deles gera uma outra onda, na família, no bairro, no entorno mais próximo. E, se a gente tivesse meios de fazer uma pesquisa para avaliar uma terceira onda de transformação positiva na vida dessas pessoas, que é justamente quando elas concluem esse processo educativo e se despedem da instituição, seria muito revelador em termos de real alcance. E isso faria com que o projeto crescesse muito mais em importância.
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Segundo Davi Barros, titular da Coordenação Especial da Juventude no Estado, a cobertura da mídia teria sido um dos fatores para o distanciamento entre o poder público e as organizações da sociedade civil. “Eu iniciei minha militância em uma ONG, e observamos, já naquela época, que havia uma certa criminalização dessas parcerias, no sentido dos recursos públicos não chegarem às suas finalidades. Essa imagem foi pautada, inclusive, pela cobertura da mídia, inibindo um caminho, na minha opinião, muito positivo, que é a união do poder público com a sociedade civil. Minha opinião, como gestor, é que essas parcerias devem voltar, de uma forma mais articulada entre si”.
ADITAL – Sabemos da crise financeira e de apoio vivida pelo Terceiro Setor. Quais as principais perdas na Edisca? DORA - Reduzimos as linguagens. Hoje, quais são as nossas áreas de atuação? Uma, que considero basilar, é nutrição. A outra diz respeito à área social e vem dar condição, por exemplo, para que meninas e meninos venham e voltem da periferia para a Edisca com dignidade, com vale-transporte e uniforme; a questão da nutrição é basilar porque, infelizmente, a gente ainda tem muito problema com a segurança alimentar, muito mais do que se imagina. Porque esse povo passa fome, muita fome. Olhe, pra muitas dessas meninas, a única refeição do dia é a que elas têm aqui. Muito difícil. A área da saúde aqui já foi muito mais completa, do ponto de vista da assistência direta: pediatra, psicóloga, enfermeira. E ainda parcerias com maternidade-escola, com universidades... Houve uma mudança no primeiro momento por restrição orçamentária, mas que, depois, se mostrou até melhor, porque hoje ensinamos como as famílias acessarem os seus direitos, estamos trabalhando a educação para a saúde, o cuidado, o autocuidado, mapeando onde pais e mães podem ter acesso ao que precisam. Então, orientamos para que acessem. Ou seja, tudo ficou muito mais educativo, preventivo, o que é bom porque emancipa, não tutela. Hoje temos, então, a psicóloga e uma enfermeira de plantão na Edisca, mas que também trabalham muito com o autocuidado. Por exemplo, a pediculose. Ninguém pode achar que é normal você viver coberta de piolho e pano branco, ter verminose, 18 cáries só de um lado da boca. Então, graças a uma parceria, eu não tenho uma criança dentro da Edisca com uma única cárie. E isso não é uma coisa fácil não. Porque, às vezes, a pessoa não tem nem escova de dente em casa, entende? O buraco é sempre mais embaixo. ADITAL – Para além do ensino da dança, há investimento numa educação integral, não é isso? DORA – É o nosso Programa de Fortalecimento à Escola Formal. Não é só reforço escolar, seria uma redução incabível ver dessa forma. Isso nos veio por conta dos altos índices de analfabetismo das meninas que fazem, anualmente, audição aqui. Hoje é algo assustador. Ao cúmulo de chegar menina com 12, 13 anos sem saber ler nem escrever. Isso é um crime. Então, tem duas disciplinas que não podemos deixar de ter: português e matemática.
Dora Andrade [imagem - Mila Petrillo]
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A POTÊNCIA DA CRIAÇÃO
CULTURA Balé Religare da Edisca [imagem - Mila Petrillo - divulgação Edisca]
Não vamos substituir a escola, não é nossa intenção e nem temos pernas pra isso. Mas a primeira lacuna a romper é: não ter ninguém analfabeto aqui dentro - e o mais próximo da idade correta. E temos parcerias com escolas privadas de alta qualidade: Canarinho, Santa Cecília, Farias Brito, Espaço Aberto e também com o Ibeu, onde estudam línguas. É um programa robusto, mas sempre implica em grandes seleções, porque nos dão 30 bolsas. São poucas diante do número de educandos que temos. Portanto, são os mais vocacionados e esforçados que vão acessar aquela oportunidade. Tem ainda uma entrevista com a família pra ver se ela compreende o tamanho da oportunidade que está sendo dada. Tem que haver essa compreensão, para poder liberar a menina dos trabalhos domésticos pelo menos por duas horas, entende? E pra que a mãe concorde que vai ter que fazer mais uma faxina pra garantir o transporte etc. Como disse, nada é fácil, porque falta tudo. ADITAL – Como se dá o trabalho paralelo junto às famílias?
A gente passa cinco anos sem ter um caso de gravidez precoce na Edisca. É pouco? Vai na comunidade e vê com que idade as meninas estão engravidando? ESTICADORES DE HORIZONTES
DORA – Com relação ao programa de saúde bucal, por exemplo. No início, as mães não queriam deixar as filhas irem ao dentista. Se o posto fosse perto da casa delas, tudo bem, mas, caso contrário, se recusavam. Porque achavam que não tinham a menor importância, porque casaram sem dente e não fez diferença nenhuma pra elas, enfim... Foi quando eu chamei cada uma e pedi para que elas tirassem então a chapa na minha frente. Só assim elas entenderam o constrangimento de não ter dente. Explicar pra elas que extração de dente é mutilação, que os meninos não precisam ficar banguela com 22 anos. Tudo isso é chão, algo lento e processual. Então, você não tem ideia da travessia até chegar ao indicador de nenhuma cárie na Edisca. A gente passa cinco anos sem ter um caso de gravidez precoce na Edisca. É pouco? Vai na comunidade e vê com que idade as meninas estão engravidando? E com que idade as mulheres têm três filhos? Então, as conquistas da Edisca deviam ser avaliadas de uma forma mais sensível e por alguém que compreenda o contexto. Porque se você considerar um dado isolado, pode parecer pouco, mas se fizer uma análise comparativa, compreende que é quase um milagre na Terra...
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ADITAL – Queria que você falasse um pouco da pedagogia da Edisca, no que diz respeito à formação em dança.
Dora Andrade e bailarinos do corpo de baile [imagem - Mila Petrillo - divulgação Edisca]
DORA – A nossa área artística é a central. A Edisca busca a formação integral do humano com centralidade na arte. Mas acho que, infelizmente, foi a área que mais perdeu ao longo dos anos. Porque entre faltar um alimento na mesa pra essas meninas e encerrar o grupo de teatro, eu encerrei o teatro. Entre reduzir o programa de português e matemática e acabar com o canto coral, eu acabei com o coral.
Eram possibilidades de vivência artística muito maiores. Porque quem não se desenvolvesse na dança podia se descobrir de outra forma. Mas qual a pedagogia da Edisca? Bom, antes de tudo, é preciso lembrar que ela foi feita por um grupo de bailarinos e não por um grupo de acadêmicos. A gente tinha uma prática. E, quando um teórico muito iluminado observou essa nossa prática, falou: “o que vocês fazem é educação interdimensional. Uma pedagogia inspirada na Paidea grega, uma educação antiga e muito rica”. Esse educador brilhante, já falecido, chama-se Antônio Carlos Gomes da Costa. Ele foi conselheiro da Edisca e um dos redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente. No Ocidente, a escola formal é voltada pro “logos”, pro conhecimento, pro raciocínio lógico e tem um alvo. Mas será que a formação de uma pessoa é só isso? Acredito que não. Antônio Carlos escreveu, então, sobre essa pedagogia, à luz da prática da Edisca e de quatro dimensões que ele via aqui: a gente trabalha com “logos” sim, até porque em todo processo criativo a inteligência está sendo convocada a trabalhar; mas a gente trabalha também com “eros”, a dimensão da corporeidade, da paixão, do prazer, da força, da energia que faz as pessoas se moverem e construírem coisas. Isso ele via de forma quase tangível nos espetáculos. Ele via também o “pathos”, a capacidade das pessoas de se relacionarem com as outras, de aprender a se relacionar de forma equilibrada, fazer valer suas opiniões, respeitando a dos outros; e uma última dimensão ligada à transcendência, a um lado não físico das coisas, o mistério, o divino. E o que a gente fez e faz é tentar fortalecer o nosso fazer institucional a partir dessas dimensões.
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E, quando um teórico muito iluminado observou essa nossa prática, falou: “o que vocês fazem é educação interdimensional. Uma pedagogia Inspirada na Paidea grega, uma educação antiga e muito rica”
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Há alguns anos eu não tinha ninguém daqui dentro de faculdade. Isso é algo novo. Tá todo mundo estudando e entrando pra faculdade, mas também tá todo mundo trabalhando e ganhando o pão de cada dia como professor de dança, sobretudo enquanto decolam nas suas profissões
DORA – Sim. Percebo uma fibra ética muito forte tecendo tudo isso. Essas meninas e meninos são pessoas que saem daqui querendo devolver o que aprenderam. E com um sólido senso de responsabilidade sobre si e sobre o coletivo. Eles sabem que as suas interferências sobre o mundo é que vão mudar as coisas. É uma fibra diferenciada. Uma coragem. São marrudos. E respeito muito isso. O que a Edisca faz é disponibilizar pra pessoas com essa fibra oportunidades reais. Mas as coisas não acontecem overnight. O problema é que nenhum processo educativo se dá num período curto.Você precisa de anos para educar alguém verdadeiramente. Hoje, a média de permanência na Edisca é de 5 anos. E agora vamos tentar criar uma metodologia interna de formação em dança que caiba dentro de 5 anos. Porque os tempos mudaram, a velocidade é outra. A gente precisa encontrar o caminho de uma formação consequente para que tenham o máximo de bagagem para levar daqui. E vamos chamar profissionais pra discutir isso com profundidade. Há alguns anos, eu não tinha ninguém daqui dentro de faculdade. Isso é algo novo. Tá todo mundo estudando e entrando pra faculdade, mas também tá todo mundo trabalhando e ganhando o pão de cada dia como professor de dança, sobretudo enquanto decolam nas suas profissões. Ou seja, elas e eles estão sobrevivendo com dança. Mas a missão da Edisca não era formar bailarino profissional nem professor de dança. Então, se é um fato, temos que rever a metodologia e conseguir formar mais e melhor. Porque isso está viabilizando o sustento de muitas casas, a manutenção desses meninos dentro da universidade e viabilizando sonhos...
ADITAL – Qual a importância da formação artística nesse processo de formação integral do ser humano? DORA - Qualquer pessoa sabe que ter no seu processo formativo uma vivência em qualquer linguagem da arte faz uma profunda diferença. Trabalhamos com a repetição, a busca da perfeição do movimento... Tudo isso gera uma atitude de esmero e de implicação com o que se faz, independente do que venham a fazer. Costumo dizer que se uma egressa da Edisca for ser uma caixa de supermercado, ela vai ser uma caixa de supermercado diferenciada. ESTICADORES DE HORIZONTES
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ADITAL – Percebe-se também na Edisca uma outra dimensão que a gente poderia relacionar com o “ethos”, que diz respeito a uma atitude política perante a vida, não?
Costumo dizer que se uma egressa da Edisca for ser uma caixa de supermercado, ela vai ser uma caixa de supermercado diferenciada. 27
Com a escassez de recursos, nos últimos anos, a gente tem cobrado bilheteria e investido na própria Edisca, porque estamos passando por extremas dificuldades Corpo de baile [imagem - Fernando Braga - divulgação Edisca]
ADITAL – A Edisca também ensina a ajudar? DORA – Penso que sim. O Movimento Salva Vidas, por exemplo, que aconteceu duas vezes nas enchentes de Fortaleza. Recebemos doações de alimentos, roupas, redes, medicamentos. Os meninos e as meninas eram convocados pra separar cesta básica, roupa, o que não seria usado... E íamos levar nas favelas. No ‘balezão’, que é um espetáculo anual inteiramente construído pelos educandos, a entrada era uma lata de leite e eles decidiam para onde ia essa doação, depois de visitarem as instituições. A experiência de ajudar o outro é muito viva aqui. Há uma preocupação com a família primeiro, com o colega de sala, com a própria escola e com a comunidade. Essas vivências todas ajudam a fortalecer essa fibra ética, a combater a indiferença em relação ao outro, além de fazê-los se sentirem capazes, mesmo jovens ou pobres, de ajudar quem mais precisa. Com a escassez de recursos, nos últimos anos, a gente tem cobrado bilheteria e investido na própria Edisca, porque estamos passando por extremas dificuldades. De qualquer forma, eles estão ajudando a manter essa escola viva, a ampliar a longevidade, a manter programas aqui dentro.
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A POTÊNCIA DA CRIAÇÃO
Mesmo reconhecendo fragilidades, Santos observa: “A gente pode não perceber isso claramente, mas a Secretaria da Cultura do Estado tem conseguido manter uma continuidade nos projetos por conta do Sistema Estadual de Cultura, que é instituído por lei. Com a sua regulamentação, a Secretaria é obrigada a executar determinadas ações, sob pena de responsabilidade fiscal. Então, anualmente, nós somos obrigados a lançar, com recursos do FEC [Fundo Estadual de Cultura], o edital do Carnaval, da Paixão [Semana Santa], do Ceará Junino, Cinema e Vídeo, e o Natal de Luz. Eu fico imaginando se não fosse esse marco legal... Talvez já houvesse mudado um bocado. Nosso objetivo agora é qualificar”. ESTICADORES DE HORIZONTES
Adital – Como você avalia a atuação do poder público quando falamos em arte-educação nas escolas públicas ou processos formativos pontuais que têm a arte como linguagem central?
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“Nós temos essa fragilidade nas políticas públicas no Brasil, a falta de continuidade. Desde a redemocratização, nós estamos tentando construir essas políticas”, afirma o secretário de Cultura do Estado do Ceará, Fabiano dos Santos. “Um exemplo exitoso é o Bolsa Família, que se transformou em política de Estado. Precisamos de marcos legais que garantam essas conquistas, embora sabendo que só isso não é o suficiente. E, no campo da cultura, não temos estudos mais concretos que mostrem os impactos positivos das políticas públicas, embora saibamos que não há como mensurar isto no absoluto, pois essas conquistas estão presentes no campo da subjetividade. E isto dificulta as ações de continuidade”, reflete.
Dora – Com raras exceções, penso que a arte continua sendo trabalhada nesses espaços governamentais como a cereja do bolo, é uma pontinha, não está valorizada de uma forma generosa dentro do processo formativo. Em lugar nenhum, não só nas escolas. É imprescindível que haja em sala de aula um educador com domínio de linguagem, com formação adequada. Quantos arte-educadores temos no Ceará hoje? Onde estão eles? Vejo professores com uma tremenda boa vontade, mas que não têm formação adequada para realizar um processo formativo rico e consequente, capaz de desabrochar outros potenciais. Como dar uma aula de dança numa sala que não tenha uma barra, um som, um espelho para autocorreção? Falta tudo: estrutura física, educador qualificado, mas sobretudo falta a compreensão geral da importância da vivência artística dentro de um processo formativo de um ser humano, porque, se houvesse, provavelmente a coisa não estaria tão abandonada, não seria feita tão improvisadamente. E tem a questão do tempo. Não dá pra formar nada em seis meses. Nove anos, como é de praxe internacionalmente, é muito tempo. Então, vamos ver se encontramos uma terceira margem nesse rio e conseguimos formar bons educadores em arte e em dança em cinco anos. É o que vamos buscar aqui na Edisca. [texto - Ethel de Paula]
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Arte e Cultura como Direitos
A socióloga Isaurora Cláudia Martins de Freitas é doutora pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-doutorado em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; professora adjunta da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Culturas Juvenis (GEPECJU – UVA). Isaurora Martins se dedica a refletir sobre a atuação do Terceiro Setor em ações envolvendo arte e cultura voltadas para as juventudes. Tanto em sua pesquisa de mestrado como na de doutorado, a pesquisadora se deteve sobre o trabalho da Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Crianças e Adolescentes (Edisca), um dos projetos sociais mais conhecidos e exitosos da capital cearense. A sociológa analisa anseios e perspectivas em relação à inclusão das juventudes em situação de vulnerabilidade por meio da arte e da cultura.
Há ainda a quebra da ideia de que o acesso a bens simbólicos (sobretudo artísticos) deva ser privilégio das elites, não só no que se refere à fruição, mas também à criação estética
Isaurora Martins [imagem - 202B]
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Em sua pesquisa de mestrado, Isaurora analisou como a dimensão da educação vinha sendo trabalhada por meio da dança, tentando perceber o que esse modo de educar provocava em termos de mudança de comportamento. O modelo da Edisca, à época, chamava-se “construção da cidadania”. “Como resultados gerais, percebi, analisando o caso da Edisca, que os projetos de arte-educação voltados à cidadania têm conseguido operar algumas rupturas importantes. Por exemplo, a relação pobre/trabalho ganha outras nuances, ao se vislumbrar, para os filhos das camadas menos favorecidas da população, uma inserção no mercado de trabalho, que não seja através de subempregos. Há ainda a quebra da ideia de que o acesso a bens simbólicos (sobretudo artísticos) deva ser privilégio das elites, não só no que se refere à fruição, mas também à criação estética. Citaria ainda a importância da incorporação da autoestima e da dimensão estética como referentes de cidadania.”
arte e cultura como direitos
todos eles testemunharam quão positivas foram as ações pedagógicas da Edisca no encaminhamento dos seus percursos presentes e futuros
Autor referencial para a pesquisadora, João Francisco Duarte Jr. ressalta a arte como possibilidade de permitir aos indivíduos “o despertar para o que pode ser construído, para um projeto de futuro, para uma utopia”. Neste sentido, a criação artística possuiria uma eminente função política, extrapolando a simples dimensão estética. “Eu acredito nisso e acho que o contato dos jovens, sobretudo os menos favorecidos, com a criação artística, além de permitir a expressão de sentimentos e anseios, permite imaginar outros mundos e formas de vida, para além da realidade na qual estão imersos, possibilitando a vontade de mudar algo em si próprios e no mundo”, destacou.
Em sua pesquisa de doutorado, Isaurora analisou as trajetórias dos jovens após deixarem a Edisca. “Observamos que alguns seguiram carreira artística, enquanto outros se inseriram em atividades que nada têm a ver com a dança. No entanto, em seus depoimentos, todos eles testemunharam quão positivas foram as ações pedagógicas da Edisca no encaminhamento dos seus percursos presentes e futuros”. Para a pesquisadora, há aí um sentido político que atravessa tanto a educação quanto a arte que precisa ser refletido. “Se observarmos a estrutura curricular das nossas escolas, vamos perceber que há uma hierarquização das disciplinas, de forma a privilegiar aquelas ligadas às ciências e à técnica, enquanto disciplinas como ‘Artes’ ficam relegadas a uma posição de inferioridade. Erroneamente, a arte vai se opor a um tipo de educação racional, inaugurada na modernidade, que privilegia a aprendizagem instrumental, voltada, sobretudo, para o trabalho e para o fazer científico. Através dessa lógica, reforça-se uma estrutura social desigual, que, entre outras coisas, nega a grande parte dos indivíduos o direito de educar sua sensibilidade”.
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a criação artística possuiria uma eminente função política, extrapolando a simples dimensão estética
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“O ganho efetivo que a educação viabilizada através da arte proporciona é exatamente o elemento utópico que citei anteriormente. Tal elemento, que a Edisca entende como ‘autoestima’ e ‘capacidade de sonhar’, e que é apenas uma das facetas do habitus que lá é adquirido, é fundamental como matriz para a transformação de si e do mundo. Isto porque a utopia, o sonho, atuam, muitas vezes, como planificação do que está por vir.”
A violência é uma forma de expressão, assim como a arte
Para Isaurora, a incidência de violência pode ser amenizada por meio da arte. “A violência é uma forma de expressão, assim como a arte. Os jovens que passam a fazer parte desses grupos [gangues] buscam alguma forma de reconhecimento, de inserção e de aceitação por parte de seus pares, e a violência que protagonizam muitas vezes é uma resposta aos diversos tipos de violência aos quais estão submetidos em seus cotidianos. Expressarem-se de outras formas pode sim ser um caminho para diminuir a violência. Um exemplo é o movimento Hip Hop”, ilustrou.
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Apesar de louváveis, acredita Isaurora, somente as ações promovidas por ONGs, como a Edisca, não são capazes de frearem a chaga da violência. O quadro pede uma mudança estrutural na sociedade, “de modo a fazer com que as desigualdades sociais sejam reduzidas, permitindo que jovens de todas as camadas sociais tenham as mesmas oportunidades. Sem isso, não há solução definitiva para nenhum dos problemas sociais que afetam os jovens”. Para que essas políticas públicas tenham resultado, afirma que é preciso rever conceitos. Por exemplo: “Não existem receitas prontas. Não acredito nessa coisa de repasse de metodologias de um projeto para outro, pois cada público, cada comunidade, têm suas especificidades, e o que deu certo com uma pode não servir para a outra”. Importante também seria ouvir a juventude, suas ideias, críticas e demandas prioritárias. “A ausência desse processo de escuta torna-se um dos fatores do fracasso e esvaziamento de muitas ações, pois quando as coisas vêm de cima para baixo, fica mais difícil haver uma coincidência entre o que se propõe e os anseios do público”, pontuou.
Jovens têm que ter acesso à arte, à cultura, ao esporte, ao lazer, à educação, etc., porque são direitos deles Segundo Isaurora, o acesso à arte e à cultura não pode ser visto apenas como uma política pública social, mas como um direito das juventudes. “É preciso mudar o discurso de que jovens pobres precisam ter acesso à arte e à cultura porque estão em situação de ‘vulnerabilidade’. Dizer isso é afirmar que estão fadados à marginalidade e que a arte e a cultura vão previnir que assumam comportamentos indesejados. Jovens têm que ter acesso à arte, à cultura, ao esporte, ao lazer, à educação, etc., porque são direitos deles”.
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O poder público está fazendo a sua parte? Isaurora relembra que houve importantes avanços no campo legal em relação à proteção das juventudes, entretanto, a efetivação desses direitos esbarra na falta de orçamento. “No que se refere à política nacional de juventude, tivemos muitos avanços, na última década, e a promulgação do Estatuto da Juventude foi a culminância disso tudo. Mas não adianta criar leis e Secretarias de Juventude, coordenadorias, em nível estadual e municipal, se a dotação orçamentária não lhes permite atuar de forma a garantir os direitos previstos”.
as ONGs oferecem uma maior possibilidade de continuidade das ações e não se perdem com a troca de gestão. Mas também devido ao know how que possuem e à própria natureza coletiva Em relação às parcerias entre o poder público e as ONGs, Isaurora acredita que “são, sim, importantes, e podem potencializar as ações e projetos de arte, educação e/ou cultura voltados para a juventude. Isso porque as ONGs oferecem uma maior possibilidade de continuidade das ações e não se perdem com a troca de gestão. Mas também devido ao know how que possuem e à própria natureza coletiva delas. “Temos bons exemplos de projetos desenvolvidos por ONGs que são apoiadas ou têm parcerias com o poder público, e que fazem trabalhos muito bons. É o caso da Edisca, ao longo de nada menos do que 25 anos”, ressaltou. Para além da parceria com as ONGs, Isaurora salienta que é importante “não esquecer as parcerias que devem existir entre as diversas secretarias e órgãos que compõem os governos”. Por fim, a professora alerta para o fato de que somente criticar a ausência do setor público é um caminho muito cômodo. “Cabe a nós, sociedade, garantir que o Estatuto da Juventude se efetive no dia a dia de nossos jovens, através de “pressão e fiscalização por parte da sociedade civil, mais especificamente dos coletivos de jovens. Sem isso, nada de efetivo e duradouro é possível de ser construído também”. [texto - Benedito Teixeira] arte e cultura como direitos
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CULTURA Katiana Pena, ex-aluna da Edisca, no espetáculo Mobilis (2003) [imagem - Mila Petrillo- divulgação Edisca]
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Vogal 39 e professor Pedro Aerton [imagem - 202B]
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Dos areais ao topo dos arranha-céus, o recado foi dado em alto e bom som, no melhor estilo rock´n roll. Ao plugar os instrumentos e subir o trio elétrico que atravessaria toda a Praia de Iracema e a avenida Beira Mar, naquele oportuno “Dia D de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes”, a banda Vogal 39 pôs seus acordes dissonantes a serviço dos direitos humanos e contra situações de risco, abuso e impunidade agravadas pela precariedade do sistema público de proteção vigente. o rock não errou
também agir. “A violência era, sem dúvida, o maior problema vivido dentro da escola na época em que a Tdh se aproximou para desenvolver junto ao Programa Mais Educação, do Governo Federal, projetos ligados aos direitos humanos e à prevenção e resolução de conflitos envolvendo crianças e adolescentes. Havia muita briga entre os alunos, sobretudo no recreio, por motivos banais. A situação ficou incontrolável quando percebemos o uso de drogas na própria escola que, àquela altura, já estava com má fama. Assim é que, ao longo de um ano e meio, a Tdh criou espaços de diálogo para que professores e estudantes pudessem atuar como mediadores de conflitos, despertando em nós a compreensão de uma cultura de paz e de um modelo de justiça juvenil de caráter preventivo e restaurativo, não só punitivo. Assim é que todo esse conhecimento vazou da sala de aula para fora, incidindo sobre iniciativas independentes dos alunos, a exemplo da banda Vogal 39 que, como professor de música, vi nascer e amadurecer a partir dos encontros e eventos formativos”, credita o educador, e também músico, Pedro Aerton, 33, o Pepeu Moura.
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Corria o ano de 2013 e cada um dos jovens músicos egressos da Escola Municipal de Educação Infantil e Fundamental José Ramos Torres de Melo, no Mucuripe, projetava no ar, em eletrizantes decibéis, o que já se havia incorporado aos seus repertórios pessoais: ecos e ressonâncias de um processo formativo anterior desenvolvido no próprio ambiente escolar pela ONG Terre des Hommes (Tdh), através de cursos e oficinas voltados ao protagonismo juvenil, à justiça juvenil restaurativa e à cultura de paz. SENSIBILIZAÇÃO PARA FAZER PENSAR. Mas
ANTES E DEPOIS DA TDH. Quando a Vogal 39 surgiu, em 2011, evocando no próprio nome o bê-á-bá musical que o professor tenazmente incutiu nos alunos (39 alude ao número de vogais presentes nos nomes de cada integrante), as questões políticas ou sociais definitivamente não faziam parte das afinidades eletivas do grupo.
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Pedro Aerton [imagem - 202B]
A Célula de Mediação Social da Secretaria Municipal de Educação (SME) é a responsável por atender à comunidade escolar no que se refere à mediação de conflitos entre crianças e adolescentes remanescentes do sistema público de ensino. Integrante da célula, a pedagoga Joelma Gomes defende que a instauração de um diálogo permanente pautado na cultura de paz entre professores e alunos não deveria ser uma ação pontual, mas tornar-se política de Estado, para além da politica de governos transitórios. “Todos nós, professores, podemos ter a postura de mediador, mesmo que a gente não execute a técnica. Essa postura é ser sensível, não estigmatizar, apostar na capacidade de transformação do outro. Se você for buscar resolver uma situação difícil ‘batendo de frente’, se você for com imposição, acaba-se agravando a situação”, reflete.
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Segundo Joelma Gomes, da SME, antes de punir, transferindo ou expulsando os alunos demasiado “problemáticos” - atitude mais comum adotada pelos gestores escolares -, busca-se, em um processo de mediação de conflitos, entender os motivos e sugerir que os próprios envolvidos encontrem um caminho de conciliação, levando as partes envolvidas a refletirem. “As perguntas servem pra gente tentar descobrir o que chamamos de ‘conflito real’, pois até então tudo que foi ali falado se refere ao ‘conflito aparente’, àquilo que está na superfície. Uma simples conversa talvez seja suficiente, mas evitamos o aconselhamento porque tira o papel emancipatório do indivíduo. Qual a responsabilização dele nesse momento? É isso que queremos transformar na cabeça dos nossos jovens, que a punição é algo que vem de fora para dentro e a responsabilização é algo que vem de dentro”.
“Hoje, eu percebo uma necessidade muito grande na preparação dos professores para que estes tenham ferramentas de atuação preventiva contra a violência nas escolas, que começa com pequenas briguinhas. A mediação enquanto técnica só surge depois da ocorrência de algum conflito, mas a construção de uma cultura de paz deve acontecer antes. Por exemplo, eu tenho uma sala com 30 alunos, e conheço cada um. Naquele dia, eu vejo que meu aluno José está dando mais problemas do que de costume; então, eu o chamo, pergunto como ele está... Este é o início do aspecto preventivo da mediação”, advertiu Joelma Gomes, da SME.
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“No começo, as nossas composições só falavam em garotas. Era como se a vida fosse só garotas. Mas, depois de passar pelas oficinas de mediação de conflitos, enxergamos melhor as dificuldades dos adolescentes, os problemas coletivos. Acho que abriram nossos olhos e fizeram a gente olhar para o outro. E o outro não é muito diferente de você. Ali, nas rodas de conversa, quem havia cometido algum delito não era visto só como infrator ou culpado, não existia bandido e mocinho, mas pessoas com direitos e deveres.Todo mundo falava de si e era levado a assumir responsabilidade pelos seus atos. Assim, muitos conflitos e brigas se resolviam ali, na paz, na base do diálogo. Então a gente ouvia as histórias de vida das pessoas, pensava nas nossas e isso entrou na nossa música”, observa o guitarrista e vocalista da banda, Miguel Santos, 14.
A música ajudou a gente a promover a cultura de paz que a Tdh plantou como semente E eis que a musicalidade do pensamento também gerou protagonismo juvenil e empoderamento. Jovens que passaram a se debater contra clichês e modismos ousaram o exercício de ter voz própria, olhar para o próprio quintal, conquistar respeito afirmando singularidades. “A gente entendeu que não precisa copiar receitas de sucesso. Tocar sertanejo ou forró porque tá na moda. Falar de carrão ou de garotas. Aqui na escola, e fora dela, a Vogal 39 ficou conhecida porque é uma banda de pop rock que fala que as pessoas podem ser o que elas quiserem, que as diferenças precisam ser respeitadas, que a criança precisa brincar e não trabalhar. E isso fez a gente ser muito respeitado, virar exemplo, o que também ajudou na hora de mediar conflitos, aproximar aqueles que brigavam no recreio. A música ajudou a gente a promover a cultura de paz que a Tdh plantou como semente. Mas, pra isso, tem que ter atitude, né? Porque a sociedade e o sistema querem que a gente se ache incapaz de mudar as coisas, de brigar, de falar, de pensar. A música e o rock, ao contrário, encorajam a gente a gritar, a denunciar o que tá errado, a inventar saídas, a imaginar algo novo”, reflete o baixista Edmilson Carlos, 16. o rock não errou
Porque a violência é também cercada de preconceito e a sociedade só julga e se fecha Segundo Joelma Gomes, da SME, desde 2013 não se registram casos graves de violência nas escolas municipais de Fortaleza. “O que temos como suspeita recorrente, mas que nunca conseguimos flagrar, é o uso de drogas, álcool, nas dependências da escola. Problemas de tráfico de drogas, porte de armas, mortes, nós temos sim, no entorno. Dentro das escolas, não é comum”.
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Músicos pela igualdade de direitos, pela confluência de forças capaz de estimular potencialidades e gerar sinergias. É, sobretudo, na canção Lema de Vida, composta sob encomenda para o Seminário Brasileiro de Justiça Juvenil, promovido pela Tdh em 2014, onde a banda Vogal 39 se pergunta, e nos indaga, sobre infâncias perdidas e juventudes desassistidas, reclamando atenção e cuidado diferenciado. “Gravamos essa música e nosso primeiro single com o apoio da Tdh. Isso porque a letra é totalmente inspirada no trabalho da ONG, nas práticas restaurativas, aquelas que buscam transformar o jovem infrator em uma pessoa de responsabilidade, tentando trazer ele de volta ao convívio familiar e à sociedade, sem discriminação. Não é fácil abrir os olhos de quem cometeu um ato que prejudicou alguém e a ele próprio. Nem fazer com que ele acredite que existem outros caminhos. Tive um irmão no tráfico. Foi uma luta pra minha mãe. Acho que atinge todo mundo dentro de casa. Por isso, é tão importante o diálogo, ter alguém que escute e estenda a mão. Eu fiz um pouco esse papel em casa. E hoje ele tá bem, trabalhando”, conta Edmilson.
Moradores do Grande Mucuripe, os jovens integrantes da banda Vogal 39 conhecem de perto o que está por trás de pesquisas recentemente divulgadas pelo Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência da Assembleia Legislativa do Estado, onde Fortaleza figura como a capital brasileira com o maior índice de homicídios na adolescência, enquanto o Ceará aparece como o terceiro Estado brasileiro em número de adolescentes assassinados. Desde a infância, sabem bem quem são esses meninos e meninas que matam, inclusive entre si, e são mortos. Mas já não acham natural morrer ou matar tão jovem. “Se a juventude da periferia não tiver incentivo, dentro ou fora de casa, ela se perde. Porque a violência é também cercada de preconceito e a sociedade só julga e se fecha. A polícia, que era para proteger, também não protege. Então, a gente se sente privilegiado porque, apesar de pobres, não precisamos trabalhar desde a infância e temos uma família onde a maioria dos adultos trabalha e a gente que estuda. Além disso, já temos a música como alternativa de profissão no futuro. Isso livra a gente de um beco sem saída que parece destino, mas não é”, destaca o violonista e caçula da banda, Paulo Douglas, 14. Miguel Santos [imagem - 202B]
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Foi ele quem conseguiu que a gente continuasse a ensaiar na escola. E é aqui que pudemos ter acesso aos instrumentos que não tínhamos como comprar
Paulo Douglas (guitarra) e Rodrigo Silva (bateria) [imagem - 202B]
O que não é aceito como sina ou fatalidade gera resistência, ainda que minoritária. Para o baterista da banda Vogal 39, Rodrigo Silva, a escola e a arte-educação fizeram a diferença para todos eles. “Somos ex-alunos da escola municipal Torres de Melo, só o Douglas é que ainda está na oitava série. Mas o Pedro é professor da escola e nosso grande incentivador. Foi ele quem conseguiu que a gente continuasse a ensaiar na escola. E é aqui que pudemos ter acesso aos instrumentos que não tínhamos como comprar. Com ele, aprendemos a tocar, graças ao programa Mais Educação. Então, sem esse apoio desse professor - que é roqueiro como a gente, sabe de onde viemos e quais são as nossas dificuldades e defeitos - a gente poderia ser mais um jovem infrator. Acho que o Pedro e a banda Vogal 39 são exemplos de como a música pode educar até mais do que as outras matérias obrigatórias”, assegura o aprendiz.
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O professor-sensação da Escola Municipal José Ramos Torres de Melo também entendeu cedo o poder transformador da música. No mesmo bairro Vicente Pinzón de seus alunos, viu o pai, alcoólatra, falecer depois de dois AVCs, assim como a namorada, após lhe dar um filho. Tinha 15 anos, era o caçula de cinco irmãos. Passou a beber e a fumar compulsivamente. Teve depressão. E, em meio ao caos, aprendeu a tocar violão sozinho, enquanto a casa era mantida pelas irmãs mais velhas, todas costureiras. Largou os estudos por dois anos. A família o rock não errou
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não apoiava o músico em formação. Assim mesmo, conseguiu uma bolsa de estudos no Conservatório Alberto Nepomuceno, em Fortaleza. Lá, não só se especializou em música, mas também vislumbrou brechas para trabalhar como professor de iniciação musical em diversos projetos socioeducativos. Passou por vários até chegar ao Mais Educação, programa federal de ampliação da jornada escolar com aulas de artes e esportes, e contagiar os jovens com sua paixão de adolescência tornada meio de sobrevivência. Para o professor, sobreviver fazendo o que gosta é existir e resistir no sentido mais pleno das palavras. Hoje, além de professor de música, toca em bares e já criou diversas bandas de pop rock. Sua aposta é numa “atitude rock´n roll” diante da vida. “Pra não baixar a cabeça e aceitar passivamente as dificuldades que se apresentam à nossa frente, é preciso ser um rebelde com causa. Falo muito com os meninos que a música não é só diversão e sim uma maneira de pensar e de transformar a realidade. Na minha adolescência, eu não tinha condições de comprar um violão, pegava emprestado. Hoje posso presentear meus alunos com um instrumento, como já aconteceu. Faço isso porque acredito no potencial das pessoas e é investindo nelas que a gente forma cidadãos éticos e promissores. Cheguei aqui, na esteira do Mais Educação, pra passar dois meses e estou há seis anos. A Vogal 39 é o primeiro grupo musical nascido dentro de uma escola em todo o Distrito de Educação II. Tenho muito orgulho disso, mas queria que casos assim fossem regra e não exceção. Como formar artistas com uma carga horária tão restrita? Como dar aulas de arte meramente expositivas, sem prática? Até quando as aulas de arte vão ser encaradas como passatempo e não como formas inventivas, participativas e até mesmo revolucionárias de conhecimento?”, provoca. [texto - Ethel de Paula] Grafite nos muros da escola [imagem - 202B]
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Quando a Justiça ancora no morro Alcançar o Mirante é um convite a imaginar: do alto do Morro Santa Teresinha, no Grande Mucuripe, Fortaleza se apresenta como uma grande embarcação, ora frágil e à deriva, chacoalhando ao sabor dos ventos, ora heroicamente aprumada, reaquecendo suas caldeiras, decidida a zarpar. Âncora é o nome de um movimento organizado por sete jovens do bairro Vicente Pinzón que, nas noites de quarta-feira, reúnem dezenas de pessoas no anfiteatro de sua praça principal, a mesma de onde, nas alturas, imagina-se a cidade ondulante. Ali, sob um céu de estrelas, compartilham com quem vier música, teatro e “esperança”. Líder exponencial do grupo, o jovem pastor Rafael Viana, 21, explica: “a inspiração veio da própria Bíblia - Hebreus, capítulo 6, versículo 19 - onde lemos que a nossa esperança tem que ser como uma âncora, capaz de deixar o navio firme e seguro. A âncora, para nós, é Jesus. Ele é a nossa esperança em meio a todo esse caos, é quem dá estabilidade e segurança para as nossas travessias”.
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Assim tem sido. Com o Livro Sagrado na ponta da língua, o pastor Rafael e os demais integrantes do coletivo evangélico ligado à Igreja Presbiteriana Gerizim animam rodas de conversa em tom de saraus, tratando sobre assuntos diversos que orbitam entre os planos terreno e espiritual. Justiça é um deles. E não à toa. O primeiro emprego formal de Rafael foi como assistente técnico-administrativo da ONG Terre des Hommes, experiência que lhe rendeu uma iniciação paralela em algumas das teorias e práticas ligadas aos direitos humanos, com ênfase no modelo da Justiça Juvenil Restaurativa. “Você não sai da Tdh do mesmo jeito que entra. A mediação de conflitos dentro das escolas e com familiares, que eu acompanhei indiretamente, além das muitas leituras e cursos online que a instituição disponibiliza, até hoje são fundamentais pro meu trabalho comunitário. Antes, eu tinha um pensamento a respeito de um adolescente que comete um ato infracional: só queria o cumprimento da pena, era a minha única ideia de justiça. Hoje, penso diferente. Ele é responsável pelo que fez, tem que ser responsabilizado, mas o processo não se resume a isso. A gente passa a se perguntar: o que levou aquele adolescente a cometer um crime? O que acontece com ele depois de cumprir a medida? Como reaproximar o infrator da sociedade? Como reparar o dano causado à vítima?”, defende. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Antes, eu tinha um pensamento a respeito de um adolescente que comete um ato infracional: só queria o cumprimento da pena, era a minha única ideia de justiça. Hoje, penso diferente
Rafael Viana [imagem - 202B]
A Secretaria Municipal de Segurança Cidadã (Sesec) vem atuando com a mediação de conflitos não apenas no ambiente escolar, mas também nas comunidades. Entretanto, a equipe ainda é pequena para dar conta de Fortaleza. O índice de resolutividade dos conflitos mediados chega a 80%, segundo Tatiane Castro, coordenadora de Mediação de Conflitos da Sesec. Ela explica que o trabalho se inicia com uma escuta ativa, para saber se o caso necessita de mediação ou de instalação de círculos de diálogos mais amplos. “Esses diálogos envolvem a comunidade, amigos... Inclusive, o efeito é maior quando envolve gente de fora. Muitas vezes, o problema é apenas a falta de diálogo – é preciso externar raivas, rancores guardados. Os envolvidos passam a refletir, a se permitir ter emoções; por isso a figura do mediador é imprescindível”.
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Ainda não somos uma ONG, não temos sede nem CNPJ, mas o plano é chegar lá Complexa e polêmica, a discussão vai dar em uma justiça que não só pune, mas também previne e restaura, afirmando a construção coletiva de uma cultura de paz. Essa é uma das causas que o coletivo Âncora tomou para si, justamente porque Rafael saiu da Tdh decidido a trabalhar em prol da valorização da juventude. “Ainda não somos uma ONG, não temos sede nem CNPJ, mas o plano é chegar lá. Fazer com que a Âncora seja o lugar onde o adolescente vai encontrar aulas de artes, de informática, cursos profissionalizantes, enfim, atividades que ocupem o dia dele e tirem o foco das drogas e da violência, principais problemas do nosso bairro. Penso que uma ação de prevenção desse tipo é tão ou mais importante do que, simplesmente, obrigar o jovem infrator, de 15 em 15 dias, a dar uma satisfação pro juiz no fórum. Entendo isso como uma convenção. Mas é para vigiar, controlar e não para apontar alternativas ou saídas. As duas coisas têm que caminhar juntas”, opina Rafael.
Então, é isso que a gente quer despertar: justiça, mas também misericórdia, o reatar de laços fraternos que deem sentido à vida do jovem 42
Estudante de Teologia e Psicologia, o jovem pastor também vê como desafio o enfrentamento de tabus e preconceitos junto à própria comunidade. Contra ambos, investe na ‘Palavra’, aquela que pinça da Bíblia para relê-la com olhos de hoje. “Em um dos encontros, lemos e discutimos aquela passagem da mulher adúltera que, pela lei, tinha que ser morta, apedrejada, simplesmente porque adulterou. Levaram para Jesus. E perguntaram: e agora, a gente mata? E ele disse: quem de vocês não tiver pecado pode matar. Quer dizer, a gente traz essa história pro nosso contexto, pra nossa cultura, nossa realidade. Poxa, e o uso da misericórdia? Será que a Justiça realmente tinha aquele sentido de levar a matar? Será que não tinha um outro lado a ser visto e considerado? Será que uma justiça que é certa pra mim é também certa pra você? Pra gente, é o lado espiritual que está atrofiado e que preenche a vida, mais do que o material. Então, é isso que a gente quer despertar: justiça, mas também misericórdia, o reatar de laços fraternos que deem sentido à vida do jovem”, sublinha.
Grafite no Morro Santa Terezinha [imagem - 202B]
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O que deu sentido à vida do estudante Alysson Sousa, 18, não veio a funcionar com o primogênito da família. “Foi meu irmão quem me trouxe para a Igreja pela primeira vez. Mas, aí, ele teve umas amizades ruins na escola, começou a praticar delitos, usar drogas e deixou de vir. Hoje, tá com 17 anos e já cumpriu uma ou foi duas medidas privativas. Ele foi acompanhado pela Tdh em alguns momentos. Houve um diálogo bom com ele, que já vem melhorando aos poucos. Mas a Justiça deveria ajudar a pessoa depois do delito, profissionalizar, formar, não simplesmente jogar de volta em casa, porque aí ela vai voltar. Lá em casa houve já muita intriga entre meus pais por causa do meu irmão. Até que eles se separaram e eu acabei indo morar com a família de um amigo, o Gabriel. Agora eu vivo mais em paz. Mas, de vez em quando, ainda vou lá falar com eles todos, tento levar esse aconselhamento. Foi o que aprendi na mediação de conflitos, quando a Tdh passou pela minha escola: ouvir a pessoa, dar atenção e buscar novas oportunidades. Acho que isso é o mais importante”, destaca o jovem evangélico, também integrante do coletivo Âncora. Segundo Joelma Gomes, da Célula de Medição Social da Secretaria Municipal de Educação, a negligência familiar é um dos problemas domésticos que se refletem nos conflitos observados nas escolas municipais de Fortaleza. Segundo ela, é muito comum meninos já serem “donos de suas vidas”. “Nesses casos, já que não podemos contar com a família, trabalhamos somente com o jovem. Mas, se for possível, tentamos também educar os próprios pais”. ESTICADORES DE HORIZONTES
Que justiça é essa? Foi a família de Gabriel Andrade, 18, quem adotou Alysson. Fez isso porque cansou de ver os três filhos perderem amigos de infância para o tráfico de drogas. Na igreja, para além da proteção e da solidariedade, os amigos agora irmanados buscaram desenvolver senso crítico e astúcias para lidar com as falhas de um sistema de justiça juvenil que, também, pode ser excludente e gerador de estigmas. “Não existe o mesmo senso de justiça para todos, porque a própria polícia não age igualmente com todos. A questão da abordagem, por exemplo, é pela aparência. Um dia, fui abordado com amigos no calçadão da Beira-mar. Era aniversário de um amigo que comprou uma pizza, chamou a gente pra comer e passear por lá. A gente tava normal, cinco jovens andando juntos e os policiais chegaram e deram uma revista em nós encostados na parede. Um deles deu um tapa nas minhas costas e disse: “não quero mais te ver aqui, vagabundo”. Nós ficamos muito chateados com aquilo e voltamos pra casa, acabou a diversão. Com o filho de papaizinho seria diferente. Quando raramente ele vai preso, os pais vão lá na delegacia, dão um dinheiro e acabou. Que justiça é essa?”, questiona.
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Foi o que aprendi na mediação de conflitos: ouvir a pessoa, dar atenção e buscar novas oportunidades
O limite que separa a repressão pela repressão e o diálogo é tênue e também um dos pontos mais críticos quando se fala na implantação da mediação social nas escolas. Joelma Gomes, da SME, assinala que há uma atenção junto ao trabalho feito pela Polícia Militar e pela Guarda Municipal, para que ambas se familiarizem com a escuta, o diálogo, a reflexão e a responsabilização, antes de se valer da punição. No âmbito das escolas, assegura, a polícia só atua com a autorização da direção e em se tratando de casos mais graves.
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Há muitos paradigmas e comportamentos que precisam ser revistos e transformados para que a justiça se humanize
Contrárias às sanções eminentemente punitivas e fechadas em si, as práticas restaurativas e medidas que levam em consideração particularidades sociais, culturais e históricas dos grupos sociais, defendidas pela Tdh, são lições que Rafael e o coletivo Âncora lutam para replicar na comunidade. “Não se trabalha com isso sem amor. O acompanhamento que a Tdh faz é de perto. Os educadores vão nas escolas, vão nos bairros, ouvem as pessoas, mediam conflitos, previnem e evitam situações de violência na base do diálogo e do corpo a corpo. Não é de fachada, não é de gabinete. Penso que as instituições públicas têm muito o que aprender com as ONGs e com processos formativos como o da Tdh, que também contemplam autoridades, gestores, jovens, educadores, familiares, vítimas, enfim. Há muitos paradigmas e comportamentos que precisam ser revistos e transformados para que a justiça se humanize”, reflete Rafael. [texto - Ethel de Paula]
Panorâmica do Morro Santa Terezinha [imagem - 202B]
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Desjudicializar, responsabilizar, restaurar Vigiar e punir. Eis as palavras de ordem de um modelo de justiça historicamente sedimentado e até hoje predominante no Brasil, mesmo quando se trata especificamente de adolescentes em conflito com a lei. Desjudicializar, responsabilizar, restaurar. Eis a troca semântica e a mudança de paradigmas proposta como alternativa para a afirmação e desenvolvimento processual da chamada Justiça Juvenil Restaurativa. Uma linha de ação judicial de caráter preventivo que busca promover espaços de diálogo em que autor, vítima, suas famílias e comunidades de apoio possam expressar necessidades e mediar conflitos de forma autônoma, construindo ações de responsabilização, reparação de danos, restauração de sentimentos e relacionamentos. Na linha de frente da inovadora construção de um sistema de Justiça particularmente voltado à faixa etária entre 14 e 18 anos, está a Terre des Hommes Lausanne, fundada em 1960, na Suíça.Tdh é uma organização não governamental sem fins lucrativos que, há mais de 30 anos, também atua no Brasil em prol dos direitos humanos, reforçando, sobretudo, os sistemas públicos de proteção às crianças e aos adolescentes. O Ceará é um dos cinco estados brasileiros onde a instituição atua. E, após análises situacionais que levam em conta riscos e situações de violência agravados pela desigualdade social, dois bairros em Fortaleza foram escolhidos para serem diretamente atendidos: Bom Jardim e o Grande Mucuripe.
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Trabalho de base com amplo contágio, realizado a partir de dois eixos: o preventivo, em nível comunitário, envolvendo atores estratégicos como escolas, parentes e associações comunitárias, com os quais se estabelece um plano de ação pactuado para uma atuação em rede; e o de fortalecimento do sistema de justiça, em que uma macro articulação entre os setores público e privado gera programas de formação, e/ou eventos de sensibilização junto a parceiros, visando o fortalecimento de suas competências, o empoderamento de todos para a garantia dos direitos humanos fundamentais e a promoção das práticas restaurativas.
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A promotora Elizabeth Maria Almeida de Oliveira, do Núcleo de Defesa da Educação do Ministério Público do Ceará (MPCE), está na linha de frente do processo de mediação de conflitos junto às escolas públicas do Ceará. “Não adianta nós ficarmos baixando recomendações com base na lei. Queremos tirar do papel a mediação escolar como ferramenta pacificadora e, para isso, precisamos sensibilizar as pessoas. Por isso, estou indo às escolas. Nessas reuniões, eu começo dizendo: ‘há um ponto em comum: todos nós almejamos a paz e, para que a alcancemos, temos que ser um instrumento dela’”, reflete.
Na prática, nada mais do que um corpo a corpo atento e estratégico junto à comunidade escolar, em que docentes e discentes são formados para mediar conflitos in loco, enquanto que, numa outra ponta, processos formativos vêm habilitar os profissionais do Direito interessados em aderir e adotar as chamadas práticas restaurativas. “Há pelo menos quatro anos temos implementado cursos de formação e sensibilização na Escola Superior do Ministério Público, atingindo juízes, promotores, defensores, técnicos. Isso já faz parte da agenda permanente do MP. Então, penso que já criamos uma massa crítica no Estado, incluindo profissionais que atuam no interior e que, assim, passam a conhecer mais profundamente a Justiça Juvenil Restaurativa e podem tornar possíveis os seus princípios, evitando, ao máximo, a judicialização”, observa o delegado da Tdh Brasil, Anselmo de Lima.
Evitar a judicialização é o desafio-mor da Tdh, em ambas as frentes de atuação. Um esforço conjunto para que o adolescente infrator, cujo delito foi de pequena monta, não seja privado de liberdade. “O promotor ou defensor que conhece a temática da Justiça Juvenil Restaurativa, ao invés de aplicar uma punição taxativa para resolver um conflito sem gravidade, estabelece um acordo de responsabilização, evitando, assim, que o jovem acumule processos criminais no sistema de justiça”, exemplifica Anselmo. A mesma ideia vale para o trabalho de formiguinha junto às instituições de ensino formal. “Antes de simplesmente chamar a polícia, há que se tentar dialogar e responsabilizar. Não a punição, mas a responsabilização.
Nádia de Paula [imagem - 202B]
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Anselmo de Lima [imagem - divulgação TdH]
É um processo de sensibilização. Gerar a autonomia para a gestão e resolução de impasses diversos, como brigas, porte de drogas ou armas, danos ao patrimônio. Normalmente, o que a escola faz? Aplica suspensão, transferência para outros espaços, chama a família. É a disciplina punitiva. Aí vem a Tdh orientar e capacitar para que as pessoas possam se juntar, sentar, conversar sobre o conflito e resolver com o apoio dos mediadores ou facilitadores dos círculos restaurativos, que podem ser os professores, mas também os próprios alunos interessados”, complementa a articuladora comunitária Nádia de Paula. Tdh: incidência política e formação em rede
Sobre a legislação vigente, a promotora Elizabeth Maria Almeida de Oliveira, do Núcleo de Defesa da Educação do Ministério Público do Ceará (MPCE), pontua:. “Hoje, nós temos a Lei nº 13.185 [Programa de Combate à Intimidação Sistemática – o bullying]; temos o Sinase [Lei nº 12.594, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo]. Há ainda a Lei de Mediação [nº 13.140, de junho de 2015], que vem sendo revigorada, discutida. O próprio novo Código de Processo Civil [Lei nº 13.105, de março de 2015] mostra essa força da mediação, ou seja, estamos passando por um momento de afastamento desse sentimento bélico que nós carregamos”, acredita.
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Calcada numa cultura de paz, a justiça inclusiva, que resO Ministério Público do Ceará enviou às Secretaura, protege contra violências diversas, abusos e explotarias de Educação de Fortaleza e do Estado uma ração, é feita de avanços e entraves. “Não nos arvoramos Notificação Recomendatória. Trata-se de uma a apresentar soluções definitivas para a problemática do sugestão do órgão aos gestores estaduais e muadolescente em conflito com a lei. Até porque a Justiça nicipais para que “promovam a revisão dos seus ainda é muito resistente, embora tenhamos conseguiprojetos político-pedagógicos, incluindo, como do romper barreiras, como por exemplo, através da medida prioritária na resolução de conflitos escoresolução recente do Conselho Nacional do Minislares, as Práticas Restaurativas, notadamente a tério Público, que institui as práticas restaurativas Mediação”. Embora não seja obrigatória, a Recomo um instrumento de desjudicialização, em vista comendação diz sobre uma mudança de paradigdos resultados que têm surgido não só no Brasil, ma no poder judicial brasileiro, historicamente como em outros países. Isso é interessante, um impacto caracterizado pela visão persecutória e punitiva de reconhecido. O Conselho Nacional de Justiça também aplicação do Direito. assinou um protocolo reunindo as principais instituições que atuam nesse domínio. Então, já existe um forte movimento, mas para isso é necessário mais formação, informação, conhecimento e, claro, vontade política. No MP já existem núcleos de mediação comunitária para replicar essas práticas. A Secretaria de Educação do Estado criou uma célula de mediação. Isso não existia, mas também nada nos garante que tenha continuidade nas próximas gestões”, observa Anselmo. Para ele, a falta de uma política de Estado - e não de governos que assuma a Justiça Juvenil Restaurativa como regra, garantindo sua continuidade, ainda é o maior dos calcanhares de Aquiles, assim como a frouxidão de um pacto necessário entre os setores público e privado para dirimir desigualdades sociais geradoras de violência. “Estamos tentando articular uma parceria com o setor privado, via Fiec, para ver como podemos incorporar esses garotos como jovens aprendizes. Mas a negociação é lenta e delicada, sempre”, frisa. Nádia acrescenta: “o público que a gente trabalha não se encaixaria, por exemplo, na seleção de cursos profissionalizantes, já que a maioria dos jovens que estão no sistema de justiça abandonou a escola. E os cursos profissionalizantes, em geral, exigem uma escolaridade. E, aí, o que fazer com os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas? Então, para quebrar algumas visões do senso comum, é preciso sensibilização e uma articulação ampla, contínua, que contemple o amplo espectro de jovens em idade produtiva. É um público que precisa ser olhado com cuidado, que pode gerar um impulso positivo numa economia. Ou não”. [texto - Ethel de Paula]
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A professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, no Ceará, Sinara Mota Neves de Almeida, coordena o projeto de pesquisa “A avaliação da mediação de conflitos escolares como estratégia de prevenção da violência na escola” em duas instituições públicas municipais, nas cidades de Acarape e Redenção. Pedagoga e doutora em Educação Brasileira, também desenvolve pesquisas junto ao Programa Eccos (Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos e Cooperação Sul-Sul) e atua como coordenadora adjunta do Pacto Nacional de Fortalecimento pelo Ensino Médio no Ceará, através da Unilab.
Sinara Almeida [imagem - 202B]
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“Antes da implantação da mediação de conflitos escolares, era possível observar que a gestão de conflitos centrava-se no modelo ‘o diretor resolve tudo’ e ‘o professor sabe tudo’. Por isso, as decisões sobre questões administrativas, de relacionamentos e disciplinares eram inquestionáveis, e muitos dos conflitos ficavam, na realidade, sem solução. A dependência da decisão do diretor possibilitava um quadro de tensão ainda maior, pois, na maioria das vezes, não proporcionava aos envolvidos uma tomada de consciência e responsabilidade sobre os problemas”, observa Sinara.
Para além dos muros da escola
O status de um aluno é medido, na escola, pelo grau de parentesco que possa ter com os traficantes de drogas
o ‘palavrão’ desautoriza o professor e contribui para outras ações de violência escolar
Provocações e humilhações referentes às inaptidões físicas dos colegas foram, segundo Sinara, as agressões mais usuais observadas na pesquisa. Portanto, as características físicas – raça, gênero, massa corporal – são alvos de provocação, daí os apelidos depreciativos. De forma ilustrativa, Sinara recupera a declaração de uma aluna: “A diretora falou que eu ameacei, mas não ameacei a menina. Ela pensa que pode ficar me chamando de ‘cabelo de bombril’. É ela quem tem cabelo esticado à força! Ela que me aguarde! Eu não tenho medo do irmão dela, não! O meu primo também é de gangue. Foi até preso!”. “Observa-se, no caso, as frequentes ameaças de alunos para com seus colegas, invocando o nome de irmãos e outros parentes, ligados, geralmente, ao tráfico de drogas, temidos pelo grupo. O status de um aluno é medido, na escola, pelo grau de parentesco que possa ter com os traficantes de drogas”, ressalta Sinara.
Para ela, a pesquisa abordou não só a violência física verificada nas escolas visitadas, mas também a psicológica. “Observamos que a maioria dos conflitos tem início na hora dos intervalos e recreio. Diversos foram os comportamentos agressivos observados: i) agressões verbais: xingar, ameaçar; ii) agressões físicas: bater, empurrar, segurar pela camisa, morder, ‘enforcar’, chutar; e iii) agressões psicológicas: humilhar, provocar e apelidar. Em conversa com os alunos, percebeu-se que, na maioria das opiniões, os palavrões não são considerados como violência verbal. As expressões chulas fazem parte do seu dia a dia e são exprimidas com naturalidade diante de uma irritação ou conversas informais. Já os professores, contudo, são unânimes em considerarem o ‘palavrão’ como um desrespeito, embora não seja uma violência maior: desautoriza o professor e contribui para outras ações de violência escolar”, destaca.
A pesquisa revelou ainda um mea culpa de pais ou responsáveis por alunos problemáticos. Tome-se, por exemplo, o relato de uma mãe, colhido por Sinara: “Os casos que eu conheço é mãe que não acompanha os filhos, gosta de dar vexame na rua, então, a criança vai vendo tudo aquilo e vai absorvendo, acha normal e vai fazendo”. Assim, o comportamento agressivo de muitos alunos, com efeito, segundo a professora, pode estar relacionado à convivência com seus familiares, inclusive muitos são vitimados em seus próprios lares. Os pais/responsáveis destacaram na pesquisa a reprodução da violência familiar no ambiente da escola, reconhecendo-a como um complicador para o trabalho dos educadores. Foco na fragilidade da estrutura familiar. Como sugestão, Sinara considera que deve haver um maior fortalecimento da articulação entre a instituição e a família.
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Assim, a transferência de responsabilidade da resolução dos conflitos das autoridades instituídas (escola, professores, direção), para os próprios envolvidos, na percepção da pesquisadora, é o maior ganho subjetivo que a técnica da Mediação representa para o processo educacional. “O protagonismo dos alunos, visado pelos programas de mediação, implica na redução de poder por parte da direção da instituição escolar, ou seja, há alteração na forma do exercício dessa autoridade, mais qualitativa do que quantitativa. Dessa forma, os educandos, através do ‘empoderamento’ resultante da mediação, aprendem a escutar, apresentar argumentos, avaliar soluções e alternativas. Estimular os estudantes a resolverem as desavenças adequadamente desenvolve a responsabilidade, além de ser um método mais efetivo na sua prevenção de conflitos. “A percepção dos alunos a respeito da mediação não deve ficar limitada aos muros da escola,mas se estender para o próprio cotidiano. O segredo é extrapolar os limites da instituição”, assinala a pesquisadora.
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Antes, não podíamos nem reclamar, mandavam logo a gente para a direção. Agora, temos colegas que falam por nós. A gente não tem medo de reclamar
Mudanças de cultura exigem mudanças nos valores e de visão de mundo, o que não é simples nem rápido
Apesar dos desafios colocados, a aplicação da técnica da Mediação nessas escolas apresentou resultados muito favoráveis nos estudos da professora da Unilab.“Os alunos relataram que a escola mudou significativamente com a mediação”. E destacou o relato de um aluno: “Antes, não podíamos nem reclamar, mandavam logo a gente pra direção. Agora, temos colegas que falam por nós. A gente não tem medo de reclamar. É muito importante ver os alunos participando do recreio e se preocupando com a violência”. No que diz respeito ao relato dos professores, foi unânime a compreensão de que a estratégia da mediação representa uma importante ferramenta para o trabalho sobre as questões da violência.
No entanto, as Ciências Sociais e Humanas enfrentam grandes dificuldades de que suas propostas resultem em repercussões imediatas no comportamento das pessoas. Mudanças de cultura exigem mudanças nos valores e de visão de mundo, o que não é simples nem rápido. Na medida em que muitos concordem com a importância da autonomia, da cooperação, da responsabilidade e da harmonia nos diversos ambientes como condições que garantem uma melhor aprendizagem, sem dúvida a mediação poderá ser vista como uma excelente alternativa aos conflitos e poderá constituir-se numa boa forma de aproximar as pessoas”, salienta a pesquisadora.
“Os pais/responsáveis relataram que o ambiente escolar parece outro”, afirma Sinara, que também reproduz o diálogo com uma mãe: “Acho lindo quando os meninos estão fazendo mediação. Eu só via era menino aqui indo embora porque fez isso, fez aquilo. O que resolve? Os meninos têm que ficar e aprender é aqui. A rua não tem nada pra ensinar, e aqui, meu Deus, nós precisamos é de paz”. Para Sinara, a necessidade das famílias participarem mais das atividades da escola deve substituir a ideia de que os pais só devem ser chamados quando o aluno dá problema, o que parece estar ultrapassada.
A partir da pesquisa, também é possível historicizar o processo de mediação de conflitos. No Brasil, a mediação teve início somente na década de 1990, funcionando em instituições privadas, na categoria de capacitação de mediadores e ‘agilização’ de processos, facilitando o trabalho do judiciário.”
Apesar dos resultados favoráveis observados em pesquisas, segundo Sinara, ainda não há um esforço para implantar o processo de Mediação Escolar como política de Estado no Brasil. A professora comenta que se trata de uma mudança de paradigma, de uma sociedade hoje pautada pela imposição passar a valorizar bem mais o diálogo, o que demanda tempo. “Grandes avanços tecnológicos são rapidamente incorporados pelas organizações e pelas pessoas.
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a mediação já era praticada em tempos bíblicos por líderes religiosos e políticos para resolver diferenças civis e religiosas A incorporação pela burguesia da técnica da Mediação, citada pela pesquisadora, refere-se à utilização da Arbitragem como forma de resolução de conflitos nos negócios, serviço oferecido por bancas de advogados especializadas, tanto no Brasil como no mundo. Para evitar uma possível demora do poder judicial, as partes em negociação elegem um árbitro imparcial para resolver conflitos que possam vir a surgir. Para além dos muros da escola
é preciso impulsionar a criação de espaços de mediação, onde as práticas dialógicas possam beneficiar os alunos, professores e pais/responsáveis Segundo Sinara, no Brasil, são escassas ainda as experiências em mediação escolar. Contudo, trata-se de um meio hábil para prevenir violências nas escolas. Para ela, é preciso impulsionar a criação de espaços de mediação, onde as práticas dialógicas possam beneficiar os alunos, professores e pais/ responsáveis. “Somente com a participação desses diversos atores a mediação escolar poderá realizar todo o potencial de transformação da sociedade para uma cultura de paz”. [texto - Benedito Teixeira] ESTICADORES DE HORIZONTES
justiça juvenil
justiça juveni
“Na escola, a mediação estabeleceu-se primeiramente nos Estados Unidos, na década de 1970, durante uma grave crise escolar marcada pela violência, quando professores e alunos passaram a ser treinados em técnicas de mediação. Na América do Sul, a Argentina logo despertou para o êxito da mediação na manutenção da paz nas escolas. No Ceará, a mediação tem alcançado destaque na esfera pública com os Núcleos de Mediação Comunitária – NMC, programa vinculado ao Ministério Público do Estado do Ceará, que implementou a mediação comunitária gratuita em comunidades periféricas” observa.
Casario no Morro Santa Terezinha [imagem - 202B]
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Larissa dos Santos [imagem - 202B]
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Aloha, Titanzinho!
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Aloha, Titanzinho! Quem chega ao bairro Serviluz, no extremo oeste de Fortaleza, pela Praia do Titanzinho, deita os olhos cansados de asfalto e concreto sobre um imaginário travesseiro de água e sal, infinito em sua liquidez e extensão verdejante. Ali, na vila pesqueira de 22 mil habitantes, convivendo entre casas populares de porta e janela, vive uma “gente anfíbia”, terrena e aquática a um só tempo, intimamente aparentada com o oceano. Moradores que, nascidos e criados sob o movimento das marés, dormem com o ronco do mar e sonham com ondas macias. Os sonhos ondulantes da surfista Larissa dos Santos, 17, nativa do lugar, têm desaguado na realidade espraiada. Ela é a atual revelação do Titã, o mais profícuo e festejado celeiro do surf local, nicho que já forjou campeões mundiais e brasileiros como Tita Tavares, Fabinho Silva, Pablo Paulino, André Silva, Duda Carneiro e outros tantos.
ESPORTE
esporte
Tetracampeã Pró-Júnior pela Associação Brasileira de Surf Profissional (ABRASP) e atleta prodígio, pela quarta vez selecionada para competir fora do País entre “monstros” da elite mundial, Larissa é filha de Flávio Sukita, 42, veterano remanescente de uma das primeiras turmas de jovens surfistas que saiu instigada a competir mundo afora depois de passar pela Escola Beneficente de Surf do Titanzinho. O dado não é mero acessório. Quem experimentou o peculiar processo formativo da ONG criada e dirigida há 21 anos por João Carlos Sobrinho, o Fera, carrega consigo um modo único de gerar e compartilhar conhecimentos, em que valores éticos e pactos de amizade são tão importantes quanto o domínio da técnica do “catá do surf ”, marca registrada do mestre que, intuitivamente, elaborou e provou toda a eficácia de uma didática capaz de fazer qualquer um aprender a surfar apenas com a imaginação. “Mágica” de alto poder encantatório que atraiu e vem atraindo para o Titanzinho tanto os que podem pagar por aulas particulares de surf como o “povo anfíbio” da comunidade, cuja formação é gratuita e contínua, independente de sexo, cor, credo ou idade. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Tudo isso vai ensinando na base da conversa, do amor, da diversão. Sem ele - e tudo o que meu pai aprendeu na escolinha e passou pra mim - eu não seria surfista nem estaria preocupada, como hoje, em me preparar para trazer alegria e orgulho pro Titanzinho. Porque quando a gente compete, todo o bairro compete junto, e quando a gente ganha também”, sublinha Larissa.
saí do surf para ser pai de família com carteira assinada
Larissa dos Santos [imagem - 202B]
quando a gente compete, todo o bairro compete junto, e quando a gente ganha também Cúmplice da invenção do amigo, Sukita tomou para si o desafio de contagiar as duas filhas com o vírus do chamado “surf imaginário”, aquele em que o pensamento pega onda sem precisar sair do lugar. “Tudo o que eu sei aprendi com meu pai. Ele é meu professor e meu técnico desde os meus 8 anos. Mas, mesmo sabendo me ensinar, ele fez questão que eu passasse pela escolinha do Fera. E lá, não só aperfeiçoei as manobras, aprendendo a surfar em qualquer situação, até mesmo parada, quanto pude praticar outros esportes, além de estudar inglês. Com o Fera, também aprendi muito sobre disciplina, respeito, humildade, compreensão. E ele sempre disse que é importante a gente ser vencedor na água, mas também fora dela.
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O elogio rasgado ao coletivo é de quem revolveu intrincadas histórias familiares e cedo se deu conta da radicalidade da manobra necessária para furar a onda da desigualdade social, a fim de revitalizar desejos de autonomia e superação entre personalidades muitas vezes frágeis e vulneráveis, ainda em formação. O pai que o diga. Como filho mais velho de oito irmãos, Sukita se viu obrigado, ainda criança, a largar os estudos para trabalhar duro como vendedor ambulante e vigia de carros na avenida Beira Mar. Tudo para não reproduzir o modo controverso de sobrevivência improvisado pela mãe solteira, que à época, vivia as agruras de sustentar toda a prole sozinha, sem recursos: “ela guardava armas e drogas em casa, trabalhava para o tráfico. Ou seja, eu tinha tudo pra me tornar malzinho, né? A vizinhança falava que a gente não ia dar pra nada, não ia prestar. Mas o surf me ensinou a querer ser alguém, mesmo sem ter tido condição de me tornar um grande atleta, porque já comecei a treinar tarde, com 17 anos, ainda surfando de tábua. Assim mesmo, me esforcei, tinha estímulo na escolinha do Fera. Ganhei títulos e saí do surf para ser pai de família com carteira assinada. Hoje tô colhendo os frutos e tenho a possibilidade de ver minha filha se destacando no surf amador e profissional”. Aloha, Titanzinho!
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Sei que o surf pode me dar muito mais, pra mim e pras escolinhas do bairro, que já são muitas Águas passadas. E que, se depender dela, tendem a não voltar. Além do patrocínio máster, Larissa estuda balé e inglês gratuitamente em escolas particulares do bairro, que também vibram com suas performances. Ainda conta com apoios extras, vindos de outros estados, que garantem à atleta equipamentos como pranchas, roupas e acessórios. “Sei que o surf pode me dar muito mais, pra mim e pras escolinhas do bairro, que já são muitas. Em Fortaleza, nós ainda temos dificuldades pra conseguir apoiadores, apesar do Titanzinho ser referência para o Brasil em surf amador e profis-
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Filha de peixe, Larissa personifica e amplia o sonho paterno. Graças ao recém-conquistado patrocínio da marca Brazilian Storm, que apoia projetos sociais ligados ao surf e ao meio ambiente, Sukita pôde deixar o emprego de serviços gerais em um restaurante para acompanhar a filha em campeonatos pelo Brasil e mundo afora. Com as viagens custeadas por fora, sobra-lhe um salário mínimo de gratificação pela função de professor e técnico da própria cria. “Engraçado, agora, é que eu é quem pago o meu pai. Isso é irado, porque ele pode me orientar de perto em cada bateria. Passei um perrengue danado quando fui pro Panamá sem ele. Mas como a gente sempre teve dificuldade financeira em casa - minha mãe é diarista e minha irmã mais velha deixou de surfar por um tempo para estagiar no banco -, tinha que ir competir de qualquer jeito. A família juntando dinheiro o maior tempão e eu lá contando moedas, me virando pra conseguir um bom resultado, mesmo sozinha, sem entender nem a língua que falavam”, relembra a campeã.
Flávio Sukita , o caçula Flávio Lucas e Larissa dos Santos [imagem - 202B]
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Quem passou pela escolinha do Fera viu como o surf mudou a fama do bairro e fez a gente já não ter mais vergonha, e sim orgulho de dizer que morava na Praia do Titanzinho sional. Mas, em outros estados, surfistas que disputam a divisão de acesso ao Mundial com bons apoios ganham mais de R$ 10 mil por mês. É só treinar duro diariamente e não deixar de levar a sério os estudos. Essa, aliás, é uma das maiores exigências do meu pai e do Fera, que nunca separam uma coisa da outra”, diz a estudante de escola pública que atualmente cursa o 3º ano do Ensino Médio, enquanto planeja prestar vestibular para Educação Física. No Serviluz, onde nem Sukita nem Fera puderam concluir os estudos, apesar do cultivo de outros saberes, 80% dos moradores tem apenas o ensino fundamental. “O esporte foi a minha escola na vida e o surf me fez voltar a sonhar com um futuro. Antes de conhecer o Fera e a escolinha, eu era de farra, bebia mesmo. Mas, com o estímulo dele, coisa que nunca encontrei em casa, abri minha mente. E isso me salvou, eu acho. E salvou as minhas filhas. Porque ali, também a gente viu não só a oportunidade de melhorar a nossa vida, como descobriu o outro lado do Serviluz, aquele que não é o da violência ou o da pobreza, o da briga de gangue pelo tráfico e o das mercadorias roubadas. Quem passou pela escolinha do Fera viu como o surf mudou a fama do bairro e fez a gente já não ter mais vergonha, e sim orgulho de dizer que morava na Praia do Titanzinho, o cartão-postal mais bonito da cidade. E ali, entre quase todos, quem não deu pra surfista foi ser trabalhador cidadão”, destaca Sukita.
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Às voltas com a vida líquida do lugar, que tende a ser livre e solar, mas é encrespada e subterrânea a um só tempo, Larissa também atesta: “acho que, ao passar pela Escolinha do Fera, muitas crianças se salvaram com o surf. Mas acontece que devia aparecer um Fera a cada onda que quebra na Praia do Titanzinho para salvar todas”. A metáfora é um lamento. Larissa não esquece o amigo Tiago Dias, que aos 22 anos também figurava entre os melhores surfistas do Titanzinho. Morreu vítima de exatos 22 tiros à queima-roupa, simplesmente porque, imagina-se, estava no lugar errado com a pessoa errada na justa hora do controverso acerto de contas. Desde 2013, o argentino Hugo Gonzalez, professor e coordenador do Programa Esporte Educacional, Inclusão e Qualidade de Vida para Crianças e Adolescentes, do Instituto de Educação Física e Esportes (Iefes), da Universidade Federal do Ceará (UFC), atende crianças e adolescentes moradores do entorno do Campus do Pici, periferia oeste de Fortaleza. “Procuramos promover uma prática regular de esportes entre os participantes, dentro de uma abordagem educacional que prioriza valores como a cooperação, empatia, respeito, disciplina... São ensinamentos muito importantes que incidirão na vida desses jovens, independente de seguirem ou não o esporte como profissão”. Um paradoxo: mantê-los dedicados ao Esporte, para o professor, é o maior desafio. Isso porque jovens de periferia enfrentam violências diversas no dia a dia, estão expostos ao consumo de drogas e sofrem com a falta de oportunidades e famílias muitas vezes desestruturadas. Assim, é preciso atrair a família para perto e abrir o leque de ações. “Ensinamos educação bucal com a turma da Odontologia, conversamos sobre alimentação, sexualidade, DSTs [Doenças Sexualmente Transmissíveis]. São orientações correlatas e complementares importantes em um contexto de desigualdade social”. Aloha, Titanzinho!
“Hoje, tudo parece ter se acalmado por aqui. Mas já perdemos muitos inocentes, gente da minha idade e com o mesmo sonho. Essa é a parte triste de um lugar tão bonito e bom de se viver. Ainda assim, se eu sair do Titanzinho, quero voltar e ajudar o Fera a espalhar escolinhas como essa pelo mundo”, afirma. Comprar uma nova e ampla casa no bairro também está nos planos de Larissa. Isso porque é no Titanzinho que ela pretende deixar expostos todos os troféus conquistados a cada “cutback”, “rasgada”, “tubo”, “aéreo” ou “batida chutando a rabeta”, suas diletas e mais radicais manobras. Sonhos perfeitamente factíveis, totalmente ao alcance de um corpo ágil e aerodinâmico que se deixa esculpir para vencer, deslizando sobre as ondas. [texto -
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Ethel de Paula]
Praia do Titanzinho | Fortaleza-CE [imagem - 202B]
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ESTICADORES DE HORIZONTES CULTURA Duda Carneiro no Titanzinho | Fortaleza-CE [imagem -202B]
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Superman vai à praia
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Superman vai a praia O relógio biológico do Titanzinho desperta cedo, ensolarando os ânimos. Na praia, mal amanhece e a mesma imagem telúrica explode em alvoroço: é como se uma invisível rede de arrasto alcançasse cada reentrância e cavidade das habitações térreas e compactas da vila pesqueira, trazendo para o lado de fora o encrespado cardume humano que, munido de pranchas, irá vencer mais uma vez aquela sucessão infinita de ondas balançantes. Entre surfistas de todas as idades, os mestres chamam a atenção dos que iniciam e assistem, boquiabertos, ao balé alado de cada manobra. São professores nascidos e criados dentro d´água, ao sabor da brisa costeira, surfando antes mesmo de dar os primeiros passos. Duda Carneiro, 34, é um deles. Começou a surfar de “taubinha”, ainda meninote, e justo numa época em que os edifícios da avenida Beira Mar passavam por reformas e se viam cercados de madeirite por todos os lados, matéria-prima do brinquedo mais acessível e disputado do pedaço. “Ora, a gente ia lá, de bando, e pegava tudo o que podia carregar na cabeça. Os vigias ficavam doido, saíam correndo atrás, mas aí já era”, ri-se o campeão brasileiro que é ídolo no bairro e, ainda hoje, por puro deleite, continua a praticar o surf de tábua, típico do Titanzinho.Veterano e dono de uma escola de surf que leva o seu nome, Duda faz questão de reverenciar e dar créditos à pioneira do bairro: a Escola Beneficente de Surf do Titanzinho, criada e mantida em atividade há 21 anos pelo mestre e líder comunitário João Carlos Sobrinho, o Fera. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Vi o primeiro tijolo da escolinha do Fera ser fincado na areia. Sou cria com muito orgulho da primeira turma de lá “Vi o primeiro tijolo da escolinha do Fera ser fincado na areia. Sou cria com muito orgulho da primeira turma de lá. Tinha 10 anos quando conheci e me aproximei dele, o cara que mais me deu força por aqui e acreditou que eu podia ser campeão. E fui. Menino ainda, comecei a correr os campeonatos, observado de perto por ele, que era nosso professor e técnico. Vieram os títulos: categoria de base, iniciante, mirim, depois estadual, nordestino, brasileiro. Foi quando, em 2001, ganhei um carro zero como premiação. E, logo depois, uma moto. Pronto! A partir daí, a mãe passou a acreditar que surf poderia ter futuro e não era, como ela cansou de falar, coisa de vagabundo e maconheiro”, regozija-se o filho que, adolescente, já não deixava por menos, teimando em cortar inadvertidamente a base de todas as bacias de plástico da casa, a fim de improvisar quilhas para suas pranchas. De perrengue e improviso, Duda Carneiro entende mais. Já passou sede e fome em campeonatos distantes de Fortaleza; dormiu embaixo de palanque ao relento; andou quilômetros de uma praia a outra, sob sol a pino, por não ter nem o do ônibus; perdeu as contas dos favores que pediu a amigos mais remediados. Com todas as dificuldades, diz que faria tudo de novo. Simplesmente porque nada se compara ao sabor das vitórias que ele e a equipe de surfistas cearenses treinada na escolinha do Fera trouxeram para o Titanzinho. “O Fera, como técnico, era o cara da estratégia. Ele lutou muito por nós e a gente confiava muito nele.
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Duda Carneiro [imagem - 202B]
Então, o cara ficava ali na praia só instruindo, apontando pra onde a onda vinha, o tempo inteiro atento. E sempre o que ele dizia pra gente fazer, dava certo. Lembro quando a equipe disputou um campeonato brasileiro no Icaraí. O Ceará foi campeão em todas as categorias. Ora, vencer no seu estado e ainda em cima de Rio, Santa Catarina, São Paulo, isso foi histórico pra nós. E tudo porque o Fera criou e repassou pra equipe o ‘catá do surf ’, uma aula teórica que você tem na areia, com simulações de manobras e movimentos, de aéreo, virada na parede e virada na base. Eu uso muito o ‘catá do surf ’ com meus alunos. E isso, hoje, é o forte do Titanzinho”, destaca. Superman vai à praia
Com a ajuda de amigos, voltou a competir no ano passado e hoje comanda de perto uma escola de surf que tem 40 alunos particulares, entre engenheiros, advogados e empresários. Todos pagam mensalidades e, com parte dos rendimentos, Duda apoia pessoalmente cinco talentos brutos locais, que se iniciam no esporte pelo mar do Titanzinho.
Para ele, um filho de mãe costureira e pai pescador, falecido em alto-mar, conseguir tirar sustento e prazer do surf é privilégio
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Se o ‘catá do surf ’ faz escola, emprestando ao Titanzinho uma didática própria, a natureza vem se encarregando do resto. Segundo Duda, quem surfa entre o Titan, Havaizinho, Portão e Meio encontra naqueles mares toda uma diversidade de situações propícia a treinos adaptados. “Quando o campeonato era em Paracuru, a gente treinava num trecho de praia; quando era no Iguape outro. Justamente porque aqui podemos encontrar ondas variadas, mais parecidas com as que vamos enfrentar nos lugares de cada prova ou bateria”, gaba-se. Surfando nas onze, o surfista profissional que já correu o Super Surf, em meio à primeira divisão de elite do Brasil, deslanchou junto com os primeiros títulos e os primeiros bons patrocínios. Assim, pôde voar longe. E acabou fisgado pelo Rio de Janeiro, onde morou por oito anos, entre competições e aulas particulares.
Não quer outra vida. Para ele, um filho de mãe costureira e pai pescador, falecido em alto-mar, conseguir tirar sustento e prazer do surf é privilégio. Assim, não há qualquer esforço ou estresse para forjar a céu aberto o mais livre, leve e solto dos expedientes, que tem iníDuda apoia pessoalmente cinco cio diariamente às cinco e meia da manhã e segue até às 18 horas, na Praia do Titanzinho. Como não podetalentos brutos locais, que se iniciam ria deixar de ser, há uma aluna xodó na escola de surf no esporte pelo mar do Titanzinho Duda Carneiro:Vitória, 10 anos, é a herdeira de um legado de paixão. O pai, que voltou a cursar o Supletivo depois de ter largado os estudos ainda adolescente, “Cheguei num nível em que eu precisava correr campeonato mundial, fui assalariado pela Pena e outras quer que ela se forme e, desde já, investe boa parte do que ganha na educação integral da filha. Acontece marcas cariocas, mas teve uma hora em que já não que, em três meses de aula, a cria já anunciou em alto queriam financiar os nordestinos. Foi quando começou a ficar tudo muito difícil e me afastei do surf para e bom som sua intenção em ser surfista profissional. trabalhar instalando ar-condicionado, veja só... Mas eis Aconteceu na esteira de uma epifania. Até então, Superman, para Vitória, era só mais um inatingível herói que, de repente, eu estava instalando ar-condicionado até em casa de ator da Globo. E foi assim que me des- de história em quadrinhos. No mar, Duda demonstrou que não. E a manobra homônima, radical, arrojadíssicobriram surfista de novo e me convidaram pra fazer figuração em algumas novelas. Fiz, e isso foi engraçado, ma, deixou a pequena em estado de graça: nada menos porque passei a ganhar dinheiro com surf de novo, mas do que um “aéreo rodando”, ou uma rotação em 360 graus, em que o surfista, suspenso no ar, ergue a prandessa forma”, gargalha. De volta a Fortaleza, Duda não demorou a reencontrar o caminho de volta para a cha com as mãos, para, de modo continuum, colocá-la de volta sobre a onda, macio, macio. [texto - Ethel de Paula] vocação de origem.
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Calebe da Silva Sobrinho [imagem - 202B]
Os Ferinhas Filho de Fera, ferinha é. Davi da Silva Sobrinho, 18, e Calebe da Silva Sobrinho, 16, crescem e aparecem sobre as águas da Praia do Titanzinho à imagem e semelhança do pai, João Carlos Sobrinho, o Fera. Na Escola Beneficente de Surf do Titanzinho, eles são professores aptos a atender os que chegam de outros bairros dispostos a pagar por aulas particulares, como também, e principalmente, os nativos da comunidade, que há 21 anos são abraçados gratuitamente, sem restrições. Um abraço que não se restringe ao esporte. “Minha casa está sempre cheia de crianças e jovens, todos comendo juntos, conversando, brincando. Não lembro de ter tido outro ambiente familiar que não fosse esse. Mais do que o surf, acho que a molecada encontra aqui atenção, diálogo, carinho, estímulo, coisas que muitas vezes não se encontra na própria família. Meu pai é como um pai para a galera do Titanzinho. Ele é o cara, ‘véio’! E tenho muito orgulho disso”, derrama-se o varão, que começou a aprender a surfar com 3 anos de idade.
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Para Davi, quem ensina com amor ensina melhor. “A galera chega pra ser ajudado, essa é a verdade. E a paixão pelo surf vai se dando naturalmente. Já vi meu pai ensinando moleque de 12 anos - que não queria ir pra escola - a ler. Isso fez com que também muita criança carente e sem orientação acabasse voltando a estudar. Até que se tornou regra: pra permanecer na escolinha de surf tem que estar estudando paralelamente na rede formal de ensino, o que também vale para nós, diga-se de passagem”, sublinha o campeão cearense pró-júnior e aluno do 3º ano do Ensino Médio, que sonha e batalha para entrar o quanto antes no circuito mundial de surf. Desejo que pede esforço ou, na língua deles, “muita ralação”. Às sete da matina, os “ferinhas” já estão na praia, dando aulas particulares para, em seguida, emendar nos treinos pesados, com intervalo para refeições e escola, sem mais.Vida boa que também é reta. E levada a sério, ainda que, ali, seja imperativo divertir-se. Calebe, o caçula, associa trabalho e diversão com amizade. Para ele, é isso que move a Escola Beneficente de Surf do Titanzinho, onde voluntários também dão aulas de judô, ginástica, línguas, ioga, leitura e o que mais puderem oferecer. “Aqui rola muita doação. De pranchas, roupas, comida até, mas também de vontades, de sentimentos, de conhecimentos e habilidades. Os Ferinhas
A luta fraterna é também pelo meio ambiente, que é de todos. Fera e os filhos encamparam um trabalho de formiguinha junto à comunidade do Titanzinho para tornar e manter a praia limpa. E, assim, aquela faixa litorânea já é outra depois disso. “Se as areias estão visivelmente mais limpas e as pessoas já não jogam lixo na praia como antes, podemos, sim, considerar isso uma grande vitória. Mas nossa luta vai além e é quase uma contradição em si. Isso porque, nós, moradores, sem querer, continuamos lançando nossos esgotos no mar. Tudo por causa do desserviço da Cagece que, ao invés de dar ao cidadão as condições para proteger o meio ambiente e as águas, faz o contrário, ou seja, dificulta, impede. Como? Ora, pagamos todos os meses R$ 40,00 por um saneamento básico que não existe e que nunca chega, apesar de nossas cobranças constantes. Não há como entender esse tiro no pé, já que toda a cidade e o ecossistema perdem com isso. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Tudo o que possa ocupar o tempo das crianças e dos jovens com qualidade é bem-vindo. E meu pai vai organizando a cena, adaptando o espaço, pedindo a um e a outro os materiais necessários, acolhendo quem chega 24 horas por dia”, atesta.
O Titanzinho poderia ser o mais bonito e visitado cartão-postal de Fortaleza, gerando renda para o Estado através do turismo ecológico, cada vez mais forte no mundo. Mas não é, infelizmente. E isso nos revolta”, critica Fera, o líder comunitário do Titanzinho que também vem furando ondas pela cidadania. [texto - Ethel de Paula]
Davi da Silva Sobrinho [imagem - 202B]
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FERA Radical O Fera [imagem - 202B]
Surfista, evangélico, comunista. De chinelos, bermuda e sem camisa, João Carlos Sobrinho, 46, o Fera, é o mestre-guardião da terra e do mar do bairro Vicente Pinzón, lugar que um dia tomou para si como a sua África, mas uma África potencialmente solar. Há 21 anos, ele está à frente da Escola Beneficente de Surf do Titanzinho, ONG que, em sua linha de frente, aposta no esporte como ferramenta para dirimir desigualdades e buscar alternativas de vida digna para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade ou desvantagem social. Mas o que Fera e seus colaboradores vêm formando naquela zona costeira, costuma-se dizer, são surfistas-cidadãos, atletas que aprendem a voar sobre as ondas e olhar para o mundo com esperança e vontade de esculpi-lo melhor, na aparência e na essência. Pai de quatro filhos, Fera, o líder comunitário mais popular do pedaço, acolhe outros tantos, indiretos, mas igualmente tratados: hoje, a Escola Beneficente de Surf do Titanzinho tem 300 pessoas inscritas e 30 alunos contínuos que entram e saem 24 horas da casa de muro baixo e fachada envidraçada cujas portas nunca são trancadas. Entre uma e outra manobra, eles acumulam conhecimentos: judô, ginástica, inglês, capoeira. E não só. Ali, toda sorte de fazeres e saberes que chegam na esteira do trabalho voluntário de amigos e parceiros são bem-vindos. Aliás, amigo, mais até do que mar, é a palavrinha mágica intrínseca ao projeto social que já vem sendo replicado no próprio território por gente que passou por lá. Mérito de quem, ali, encontrou lugar para colocar seu desejo. “Acho que não existe técnica para a promoção da cidadania, existe dominar o assunto. Como eu tive grande necessidade de ser aceito por ser pobre, preto, de favela, sofrendo segregação e discriminação, aprendi que para instigar os outros a serem cidadãos, a gente tem que ser exemplo. Procuro ser exemplo, ter as palavrinhas mágicas na boca, conhecer direitos e deveres, falar o português direitinho, ler muito. E dar exemplo de homem, trabalhador, respeitador, amigo. Sem exemplo não há como falar de dignidade, de futuro promissor, de capacidade de tornar a vida bela”, ensina o educador.
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– Para começar, por que Fera?
- Eu costumava chamar os outros de fera. Porque acredito que todos que fecundaram óvulos são feras. Quando alguém já é campeão ao nascer, já nasce fera. Então todo mundo é fera. E tem um detalhe: foi a união que fez a força pra que você viesse a existir. Muitos forçaram uma entrada, até aquela entrada ficar frágil o suficiente para que um entrasse: aquele que entrou é um campeão, porque venceu a maratona pela existência, então esse cara é forte, é fera, mas ele depende dos outros. Somos fortes porque temos outros pra ajudar, ninguém é fera porque é autossuficiente. Por isso, somos seres gregários.
JOÃO CARLOS SOBRINHO (FERA)
– Queria saber como foi a sua infância e o encontro com o surf.
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FERA - Nasci no Campo do América, mas com 3 anos fui pra Praia do Futuro, fui criado lá. Daí começa a relação com a praia, dunas, sempre tive esse contato com o mar. Infância muito feliz. Numa época em que a Praia do Futuro era selvagem, dunas virgens, pouco movimento, aspecto de interior. Pra você ter ideia, tinha onça pertinho de onde morávamos, no Caça e Pesca.Vim morar aqui no final de 1979. Eu tinha 11 anos de idade. Tô com 46. Assim que eu cheguei, me apaixonei quando vi uma pessoa deslizando no mar em cima de uma tábua. Eu deslizava na tábua também, mas nas dunas. E, quando vi pessoas surfando, foi amor à primeira vista. Comecei a fazer minhas pranchas de madeirite e a surfar em cima de tábua. Era a década de 80, tudo difícil, prancha difícil, convivência com o esporte altamente difícil, porque havia um preconceito de que todo surfista era marginal, maconheiro. E minha mãe era uma pessoa muito religiosa, muito cuidadosa. Ela tinha muito medo que nós nos envolvêssemos em coisas erradas. Então, fui muito perseguido dentro de casa quando eu quis me envolver com o surf.
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nos criou assim dentro do princípio da solidariedade, da ideia de comunismo mesmo – Como vivia essa família? Como era o ambiente doméstico?
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FERA – Meu pai, Antônio Francisco, era marchante, vendedor de peixe, de búzios, de caranguejos, as mercadorias ultramarinas. Minha mãe, Genésia, sempre foi dona de casa. Éramos três filhos homens. Mas minha mãe teve outros filhos em outro relacionamento. E, ao todo, somos nove irmãos. Minha mãe é evangélica, assim como nós todos. Ela nos criou dentro do comunismo. Não o comunismo de armas. Mas aquele que é ensinado pela igreja cristã, que é o de repartir o que se tem. Então, minha mãe juntava roupas nas casas dos ricos e, mesmo pobre, não retinha, pegava aquilo e repartia. A lembrança que eu tenho é a gente indo pro interior, num lugar que sofria com uma seca, carregando saco de roupa na cabeça pra distribuir pras pessoas que estavam precisando. Ela nos criou assim: visitando presídios, hospitais, doentes. Ou seja, nos criou assim dentro do princípio da solidariedade, da ideia de comunismo mesmo, daquilo que é comum a todos, né? Dar o pouco que tem a quem não tem nada. Marx devia ter estudado com ela, sentado pra escutar os conselhos da mamãe (risos). Pra ele entender o que é comunismo. Hoje ela tá com mais de 70, mora aqui perto e, se você chegar lá, vai encontrar um quarto cheio de roupas pra dar pros pobres. Por isso, aqui em casa, você encontra os meninos me chamando o dia todo, aperreando por uma coisa ou outra. Lá em casa era do mesmo jeito, cheia de gente. Irmã Genésia pra cá, Irmã Genésia pra lá. Cuidava dos doentes, dos desabrigados, dos famintos. E isso acabou vindo pra mim. O único dos filhos que faz esse trabalho sou eu. Os outros não quiseram perder cabelo... (risos).
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– E como começa esse trabalho do surfista-comunista-evangélico?
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- Eu sempre quis ser missionário na África. Quis dar continuidade ao trabalho da minha mãe e cuidar de pessoas carentes. Aí deixei um pouco o surf e fui fazer seminário. Lá, resolvi por minha conta fazer um “estágio” no sertão central, na seca. E passei por diversos testes: de fome, de sede, sol causticante, chegamos a tomar lama, a comer bichos... Tava me preparando pra ir pra África. Tinha mais ou menos 18 anos. Aí passei um bom tempo nisso, nesse preparo. Aí um dia descubro que a minha África era o Serviluz, o meu bairro. Isso quando eu vi uma cena muito terrível. Um amigo, que surfava com a gente quando criança, foi morto por outros amigos meus só porque estavam envolvidos em gangues rivais.Vi a distância uma multidão e um sangue vivo correndo entre as pernas das pessoas. E vi uma criança magricela, barriguda, feia, estendida no chão. Aquilo ficou na minha cabeça. A partir dali fui procurar um meio de tirar as crianças disso e procurei a ferramenta que eu tinha: o surf. Então, criei a Escola Beneficente de Surf do Titanzinho, no dia 5 de fevereiro de 1995, com o objetivo de resgatar a cidadania, tirar as pessoas da ociosidade, visando dar a elas um futuro promissor, uma expectativa de vida. Era uma época em que saíamos pra buscar trabalho e as pessoas, quando viam nosso endereço, colocavam nossa carteira de lado. Um amigo meu cursava Serviço Social e o trocador quis tomar dele a carteira sem acreditar que no Serviluz havia gente com curso superior. A gente sofria com a segregação, a discriminação e não havia muita expectativa. Os cursos eram de garçom, arrumadeira, serviçal. Pra cá, nenhuma expectativa de fazer uma faculdade. Um local com esgoto a céu aberto e muita necessidade. Uma África mesmo. FERA
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Eu sempre quis ser missionário na África... ...Aí um dia descubro que a minha África era o Serviluz, o meu bairro 66
Fera Radical
ADITAL
– E veio a Escola, como um outra alternativa...
FERA – Isso. Aí passei a tentar criar alguma expectativa através do esporte. Criamos a escola com cinco alunos. E daí, então, a Associação dos Moradores nos deu uma sala e nasceu esse trabalho. Ao longo de 21 anos já formamos grandes surfistas-cidadãos. Daqui saiu um bicampeão mundial sub 20, Pablo Paulino, e outros vários atletas vencedores. Não só atletas, mas pessoas que têm conseguido seu lugar ao sol, não somente por causa da oportunidade, mas por conta da nossa filosofia de vida de fazer alguma coisa que seja útil. Não ficar na rua, não ficar de bobeira. Ir estudar, ler, colocar a imaginação pra funcionar. No começo, foi um parto. Senti muitas dores. Tive que abdicar de muitas coisas. Entrei até em depressão. Minha esposa não acreditava, meus amigos achavam que eu tava louco, doido. Porque deixei o meu emprego na Plataforma por isso. Quer dizer, ia deixar de ser um trabalhador, um pintor gráfico, pra ser um vagabundo, envolvido com surf, que não serve pra nada, surf é pra muito louco. Minha mãe também ficou contra mim. Meus filhos, de certa forma, passaram um certo perrengue. Mas eu não conseguia mais viver uma vida normal, ser mero escravo do sistema. E eu contava com a ajuda de Deus. ADITAL
– E como surge a didática mesmo da Escola de
Surf? - Meus amigos surfistas diziam: “tu tem que ir pro Rio ou São Paulo fazer estágio”. Porque aqui não tinha nenhuma escola e diziam que eu precisava de muito dinheiro. FERA
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Aí comecei a entrar nas locas, nas grutas das pedras do paredão, e comecei a escrever uma didática. Aí foi que os caras disseram que eu tava louco mesmo. Mas foi assim que criei, sem saber, os movimentos do “surf imaginário”. Comecei a trabalhar com a neurociência, um trabalho de psicomotricidade pro surf. Comecei a criar algo que não existia na época. E nem eu sabia o que era psicomotricidade, que a neurociência explicava aquilo. Sei que criei uma técnica que se chama “catá do surf ”. Algo que também vem da arte marcial, que é surfando no imaginário, em que você trabalha a sua mente e o seu corpo, como em um Tai Chi Chuan. Comecei a imaginar isso. E logo me veio a imagem do Marcos Conde, que é e era um dos melhores técnicos do mundo na época, brasileiro, morava no Rio. Coloquei o rosto dele na parede e botei na cabeça que ia ser igual ao Marcos Conde. Comecei a mentalizar que eu ia vencer, que eu ia conseguir. Nesse tempo, minha esposa já tinha me botado no olho da rua. Mas consegui logo um lugar pra ficar, um trabalho e um patrocínio da Maresia. Minha tese é a seguinte: mesmo em um local que tenha neve, chuva, que não tenha praia, você pode surfar. Teu cérebro é capaz de surfar em qualquer lugar. Faço campeonato de surf em rio, em lago, em açude, em sala de aula. Não preciso só de água e de onda pra surfar. Eu preciso de imaginação pra surfar. E assim, o surf ficou acessível a toda e qualquer pessoa.
ESPORTE
No começo, foi um parto. Senti muitas dores. Tive que abdicar de muitas coisas. Entrei até em depressão
– Mas de onde veio tanta fé no poder da imaginação?
ADITAL
FERA - Acredito que isso tudo foi uma iluminação divina. Pra contribuir com o meu entorno, com essa comunidade. Um presente de Deus. E um presente a gente tem que repassar, quando ele é grande. Eu nunca fui um bom surfista, um grande. Até porque tinha que trabalhar no fim de semana. Fui uma criança trabalhadora. Eu era garçom, cumim, vendedor ambulante.
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Sempre tive que manter a casa. Agora, graças à internet, eu consigo vender deitado na minha rede.Vendo aula de surf. Aqui e ali, faço ainda minhas pinturas. E vou buscar apoios. Graças a Deus, nunca ficamos dependentes de órgãos governamentais. Eles começam ajudando, mas não dão continuidade. Por causa dos gestores, cada um tem uma cabeça, um orçamento. Então, ora tem projeto do governo, ora não. O que vale mesmo é o apoio de um amigo, de uma marca, ou seja, os meios alternativos pra manter esse trabalho. É um letreiro que eu faço, uma pintura, todo o dinheiro vem pra cá. E, assim, temos conseguido manter. Hoje eu tenho, aqui, um projeto do Governo Federal e um apoio da Prefeitura. Com isso, ganho mil reais por mês. Mas tenho meus alunos particulares. E os voluntários, além de doações. Hoje temos judô, karatê, ginástica aeróbica, caminhada, roda de discussão, cineclube, inglês, formação cristã, capoeira, skate, surf e ainda vamos dar aulas de alfabetização pra meninos que não sabem ler. Quando esse País pagar um professor da mesma forma que paga um médico ou um juiz, aí todo mundo vai ser fera. – E como esse trabalho é recebido pela comunidade como um todo, incluindo os responsáveis por altos índices de criminalidade e homicídios no Titanzinho?
ADITAL
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O argentino Hugo González é professor e coordenador do Programa Esporte Educacional, Inclusão e Qualidade de Vida para Crianças e Adolescentes, do Instituto de Educação Física e Esportes (Iefes), da Universidade Federal do Ceará (UFC). Para ele, a prática de esportes é um direito de todo cidadão e também não deveria depender do que chama de “politicagem”. “Os projetos, aqui no Brasil, têm caráter político, ou seja, muda o prefeito, muda o governador, muda tudo. As ações são para curtíssimo prazo, um, dois, no máximo quatro anos. Não dá pra fazer nada em quatro anos. O país melhorou esses últimos anos, mas pelo menos em relação ao esporte, não vejo boas perspectivas. Para termos sucesso, o esporte não pode estar ligado à política”, frisa.
O Programa Esporte e Lazer na Cidade (Pelc), iniciativa do Governo Federal, com execução do governo estadual, investe em práticas esportivas e culturais em Fortaleza e interior do Estado, a exemplo do pequeno auxílio financeiro mensal concedido à Escolinha de Surf do Titanzinho. Atualmente, a Sesporte trabalha em quatro ações com foco na inclusão social pelo esporte: o próprio Programa Esporte e Lazer da Cidade (Pelc), Bolsa Esporte, Vilas Olímpicas e Copa Ceará Pacífico. A “Copa Ceará Pacífico”, realizada em 2016, envolveu jovens de 13 a 16 anos. O evento integra o Pacto por um Ceará Pacífico, programa que abrange projetos e ações voltadas para a prevenção da violência e redução da criminalidade a partir de políticas públicas interinstitucionais de prevenção social e segurança pública. Márcio Lopes, atual secretário municipal de Esportes de Fortaleza, destaca a aposta governamental nas Areninhas, projeto de urbanização de campos de futebol em áreas de baixo IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] da capital cearense. “As Areninhas foram pensadas para ficar próximas às casas dos moradores, pois além de utilizá-las, morando perto, as pessoas passam a cuidar e preservar o local. Devemos inaugurar a sétima areninha em 2016 e ainda não temos um caso sequer de depredação”, comemora o secretário. A perspectiva é de instalar 21 arenas em comunidades e bairros periféricos de Fortaleza. Para dar vida aos equipamentos, a Prefeitura uniu as areninhas ao projeto Atleta Cidadão, que disponibiliza material esportivo básico, professores e monitores de Educação Física para acompanharem as crianças, jovens e adultos que frequentam as escolinhas de esportes, iniciativas que já aconteciam nos bairros, antes das Areninhas. Fera Radical
ESPORTE
Praia do Titanzinho [imagem - 202B]
– Olhe, os pescadores sabem que eu cuido das tartarugas. Os pais sabem que eu cuido dos filhos deles. A classe média sabe que eu evito o surgimento de mais bandidos. Os visitantes sabem que eu os protejo. Bandidos e traficantes sabem que eu não tenho nada a ver com a vida deles, que vão prestar contas é com Deus, então eu e eles somos amigos e eles são seres humanos que precisam de oportunidade. Portanto, se quiserem casa de recuperação, eu vou atrás, se quiserem emprego, eu vou atrás. É respeito total. E um detalhe importante: mexeu aqui com a gente, com a escolinha de surf, mexeu com Deus e o Diabo, tá ferrado, essa é a realidade. Quem entra aqui, ninguém mexe. Não podem fazer nada contra nós. Ao contrário. Sou visto como conselheiro e mediador. Eles me chamam pra conversar com quem tá marcado pra morrer, com quem tá no tráfico, enfim, faço esse trabalho de apaziguar os ânimos, amenizar as coisas. Consegui isso com o tempo. Chego em todos os lugares, passo no mesmo beco entre duas gangues e sou respeitado. “Valeu, Fera! Valeu, Fera!”. E agora, indiscutivelmente, esse bairro tá mais calmo. Propuseram, entre eles mesmos, um acordo de paz que tem sido cumprido. Não há mais mortes como antigamente. Mas, infelizmente, isso foi conseguido através da justiça dos próprios bandidos – e não dos governos, como deveria ser. FERA
ADITAL
– O surf vem sendo capaz de vencer essa guerra?
– De uma certa forma, tem vencido várias batalhas. Aqui na Escola, você pode ver, é porta de vidro, janela de vidro, não usamos armas, nunca fomos assaltados. Isso é só o poder de ajudar. A ajuda é que é revolucionária, o coração, pensar no outro. Mas se há, no momento, aqui entre nós, uma guerra que dá vontade às vezes de pegar em arma, é a luta por saneamento básico. Isso é inadmissível. São 22 mil pessoas neste bairro. Cerca de 5 mil casas. E 40 reais de esgoto. É um bocado de dinheiro pra botar detrito dentro do mar. E é uma luta muito desleal, essa contra o sistema, que era pra nos ajudar, cuidar do meio ambiente. E tudo isso é causado pelo próprio Governo do Estado. Ou seja, estamos, então, na contramão da fraternidade e do respeito pelo outro. [texto - Ethel de Paula] FERA
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Ana Amélia Neri Oliveira [imagem - 202B]
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para a o t l sa
DEMOCRACIA
Ana Amélia Neri Oliveira é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) - Campus Aracati [litoral leste do Estado do Ceará]. Mestra e doutoranda em Educação Física pela FEF-UnB (Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília), duas vezes ganhadora do Prêmio Brasil de Esporte e Lazer de Inclusão Social, suas reflexões giram em torno da relação entre esporte e inclusão social das juventudes em situação de vulnerabilidade econômica e social.
Ainda em 2007, na graduação, Ana Amélia realizou um estudo na Vila Olímpica do Conjunto Ceará, bairro localizado no extremo oeste da capital cearense, onde buscou analisar o esporte pela perspectiva social e educacional. Os resultados do estudo demonstraram que, no Conjunto Ceará, uma das unidades do projeto Vilas Olímpicas do Estado, prevalecia o ensino do esporte na perspectiva de rendimento, em detrimento de uma visão social e educacional. “Assim, me deparei com uma política de governo que apresentava, em seu desenho conceitual, o esporte como ferramenta de cidadania e inclusão, mas que, na prática, pautava-se nos preceitos do esporte de rendimento”, diz.
Ao longo do Mestrado, o foco recaiu sobre as políticas públicas de esporte e lazer aplicadas em cinco bairros do Município de Fortaleza, por meio do Programa Esporte na Comunidade (Penc). “Os resultados mostraram que o ‘acesso’ ao programa era limitado em relação à inserção dos adultos nas atividades, sobretudo das mulheres, bem como no que diz respeito à situação de instabilidade no funcionamento dos núcleos.É necessário criar mecanismos de ampliação do acesso de adultos, notadamente das mulheres, nas políticas de esporte. Ademais, é preciso sanar a problemática da escassez de recursos para a manutenção da estrutura física e para o fornecimento de material esportivo. Estas são questões basilares para a manutenção de uma política de esporte que prime pela continuidade, em detrimento de ações pontuais”, observa.
A professora assinala que não é contra o esporte de rendimento, aquele voltado a resultados extremos, cujo treinamento é direcionado a atletas profissionais. “Sou contra essa distribuição orçamentária de recursos públicos, que prioriza uma perspectiva de esporte que atende a interesses de determinados grupos, em detrimento da maioria constituída pela população brasileira”, explica.
No que diz respeito à consolidação do princípio “democratização”, um dos alvos do estudo de Ana Amélia, “foi observada a existência de canais de diálogo importantes com as comunidades, que, muito embora assumissem uma configuração diminuta e limitada no tocante ao atendimento das demandas das comunidades atendidas, sinalizavam para a possibilidade de construção de um modelo alternativo de intervenção governamental”. Um Salto para a democracia
Eis a principal crítica: a insensibilidade do poder público em relação ao setor. “No Brasil, o esporte passou a ter mais visibilidade com a Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 217, § 3º, inciso IV, estabelece que o esporte é um direito social de todo cidadão. Todavia, o esporte não é prioridade na agenda política nacional, o que implica em investimentos quase sempre insuficientes frente à demanda. Tal fato contribui para o cenário de instabilidade das políticas de esporte”, observa Ana Amélia. A falta de continuidade das políticas públicas também cai na berlinda. “Uma das razões para a descrença da sociedade quanto às políticas públicas de esporte consiste na situação de instabilidade da permanência dos projetos nas comunidades em um cenário de mudança administrativa, visto que tais ações costumeiramente estão atreladas ao governo; portanto, não se constituem como política de Estado. Logo, não existem prerrogativas no plano jurídico-formal que obriguem o próximo governo a dar continuidade à ação do governo anterior”. Apesar do cenário apresentado, a pesquisadora reconhece os avanços que teriam ocorrido no poder público brasileiro, nos últimos anos. Na esfera federal, foram realizadas as Conferências Nacionais de Esporte (2004, 2006 e 2010), as quais, ainda que alvo de críticas, constituíram-se como lócus de discussão e de deliberação dos rumos das políticas para o setor, com contribuição de diferentes segmentos da sociedade. “Neste sentido, compreendo que o exercício da democracia participativa poderia ser uma via de reorientação das ações dos governos. Os atores sociais atendidos pelos projetos de esporte precisam empoderar-se como coletivos, em associações ESTICADORES DE HORIZONTES
ou em outras formas de organização, para exigirem do Estado a garantia de um direito que é constitucional”, destaca. Assim, o caminho para a concretização de políticas públicas eficientes passaria por uma participação cada vez maior da população. “O governo deve buscar diálogo com as comunidades, posto que o poder público precisa conhecer as demandas da população na perspectiva de uma gestão participativa. Essa é a importância da atuação dos atores sociais como protagonistas do fazer esportivo, que não se limita à prática esportiva, mas podem e devem deliberar sobre questões estruturais e orçamentárias no cotidiano dos projetos”, pontua. Para a pesquisadora, a realização dos megaeventos esportivos no Brasil – Copa do Mundo Fifa 2014 e as Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016 – seria uma amostra do descompasso entre o planejado nas altas esferas governamentais e os anseios da população contribuinte: altos investimentos para eventos temporários de um lado, carência de recursos para programas esportivos, incluindo os de inclusão social das juventudes em todo o Brasil de outro. “A realização desses dois eventos esportivos no país impacta diretamente nos investimentos voltados ao esporte de cunho social. Ou seja, priorizamos investimentos no esporte de alto rendimento e na preparação do país para receber eventos de tamanha envergadura, esquecendo das ações que agregam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social”, sublinha.
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Na pesquisa, a professora identificou limites para a consolidação do princípio “participação política”. “Primeiro, o modo como o governo se estrutura, tendo como escopo a ineficiência dos seus órgãos e a burocratização, no que diz respeito à construção e manutenção de equipamentos de esporte e lazer, assim como à viabilização e liberação de recursos orçamentários. Segundo, a carência das comunidades quanto às próprias práticas participativas que, de certa forma, impedem o avanço do debate em torno da soberania popular das comunidades”.
O esporte como uma ferramenta de inclusão social sim. Entretanto, para a professora, sozinho o esporte não é capaz de garantiar a tão sonhada emancipação junto à juventude em situação de vulnerabilidade social. “O esporte como prática social e humana é aquilo que fazemos dele. Ou seja, numa perspectiva educacional, o esporte pode sim ser um meio de formação para a cidadania e o empoderamento. Porém, é necessário perceber que tais políticas isoladas não determinam uma mudança significativa na vida de uma população historicamente excluída. Com isso, quero dizer que participar de uma prática esportiva em um projeto sociogovernamental ou não governamental não é suficiente para a inclusão em uma perspectiva de garantia de direitos sociais. É preciso ir além”, conclui Ana Amélia. [texto - Benedito Teixeira]
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A
SE TICADORES DE HORIZONTES território
UTOPIA possível dos bons jardineiros
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A Utopia possível dos bons jardineiros
A luta pela construção coletiva de um lugar utópico e possível, o “grande bom jardim” cultivador de virtudes, plantado ao revés da flagrante segregação do espaço urbano e do escoamento da miséria para as periferias da cidade, passa pelo Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), ONG criada em 1994, com foco amplamente voltado à promoção dos direitos humanos no Grande Bom Jardim. Foi lá, ainda em 2010, entre rodas de conversa, processos formativos, diagnósticos socioparticipativos e audiências públicas populares, que o hoje sociólogo Caio Feitosa, 27, morador da Granja Lisboa, viu-se precocemente instigado a pensar sobre uma Fortaleza apartada e seus abismos sociais. “A distinção radical entre o espaço da produção e o espaço do consumo é uma marca de nossa vida urbana. De um lado, temos a cidade dos trabalhadores, esquecida e maltratada pelos administradores públicos. Do outro, a cidade dos consumidores, objeto de investimentos sociais permanentes, embora nem sempre seu retorno venha a ser de uso público, o que revela modos de apropriação privada desses serviços e o alijamento das periferias frente às modernizações do seu centro”, critica. ESTICADORES DE HORIZONTES
Caio Feitosa [imagem - 202B]
Coordenador especial de Direitos Humanos do Governo do Estado do Ceará, Demitri Cruz critica a cidade apartada e seus territórios de exclusão, onde também são forjados estigmas e preconceitos. Para ele, a conduta repressiva adotada em shopping centers diante dos “rolezinhos”, encontros marcados pela internet entre jovens da periferia, diz muito sobre o cenário de segregação econômica que infringe em cheio o direito à cidade. “Na dinâmica de lazer dos jovens, eles são reprimidos em seus territórios, por causa da falta de opções e violência, e vão em busca de atrações externas. Este é um problema, você não tem essa criação de identidade nos bairros. E, quando tem, acaba sendo formada pelo tráfico. Ou pela gangue. Quando você cria espaços de lazer, oferta programação, constrói formas de identidade dos jovens em seus próprios bairros, na minha opinião, minimiza a violência, interrompe esse ciclo estrutural. O shopping é de todos, mas ao mesmo tempo não é de ninguém, é um símbolo dessa desterritorialização da juventude”, avalia.
TERRITÓRIO
Uma sucessão de curvas tensionadas. É de dentro para fora que se percorre em profundidade o atlas de círculos concêntricos do Grande Bom Jardim, bairro da periferia de Fortaleza, forjado como uma espiral para conter em si cinco territórios circunvizinhos: Siqueira, Canindezinho, Granja Lisboa, Granja Portugal e o próprio Bom Jardim. Olhando-se nos olhos continuamente, o cinturão de solos justapostos, que ora se regozijam abraçados às suas potencialidades, ora se debatem diante de tanta precariedade e exclusão, envelopa vidas ordinárias, abrindo passagem para desejos e enfrentamentos que interligam cerca de 211 mil habitantes, segundo o Censo de 2010. Uma horda de sobreviventes às voltas não só com a árdua conquista de direitos e oportunidades, como também com a desconstrução de uma imagem estigmatizada de efeito narcísico às avessas, espécie de armadilha pronta a capturar as identidades de quem mora ali, atrelando-as irremediavelmente a um legado de criminalidade e violência.
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Grafite nos muros do CDVHS [imagem - 202B]
No CDVHS, vislumbrou a maior das brechas ao seu alcance Remanescente ativo da “cidade dos trabalhadores”, Caio sonha intranquilo, desde a adolescência, com a necessária aproximação das muitas Fortalezas existentes numa só, mas que ainda se põem de costas uma para a outra, incomunicáveis entre si. Ao longo dos tempos e das mutações, compreender historicamente a disputa de poder atrelada ao processo de violação de direitos que levou bairros como o Grande Bom Jardim a um quadro agudo de pobreza, exclusão e criminalidade foi uma das primeiras iluminações que o filho de agricultores nascido em Iguatu veio ter na capital, enquanto se envolvia com agremiações estudantis, movimentos sociais e agenciamentos coletivos comprometidos com a mobilização comunitária e a superação das desigualdades. “Ao mesmo tempo em que, meninote, descobria assustado que a cidade era muito mais do que o Grande Bom Jardim, fui entendendo em paralelo que é possível criar resistência, brechas para transformar cenários desassistidos em lugares promissores e com vida digna”, lembra.
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No CDVHS, vislumbrou a maior das brechas ao seu alcance. Mas antes disso, ladrilhou o caminho: desenvolveu projetos pontuais junto à Associação de Prostitutas do Ceará (APROCE); compôs o grêmio da escola pública de origem, o CAIC Maria Alves Carioca; provocou a criação da primeira turma de teatro da Escola de Desenvolvimento Integral para Criança e Adolescente (Edisca), em que pôde se beneficiar com a concessão de bolsas de estudo em colégios particulares locais durante todo o ensino médio; e foi dar na linha de frente da construção processual do projeto JAP – Jovens Agentes de Paz, já no CVDHS. Engajado com a própria comunidade, viu de perto a teia da Rede de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (Rede DLIS) se estender por todo o território, atraindo uma gama cada vez maior de parcerias locais com viés comunitário e associativo. “Foi a partir da afirmação de um espaço aberto à participação popular e ao compartilhamento solidário de fazeres e saberes que passamos a compreender melhor nosso cotidiano. Assim, coletivamente, entendemos que, para dirimir a violência, por exemplo, seria preciso enfrentar a desigualdade, a miséria e a fraca oferta de atividades e ações que poderiam impulsionar a cidadania e a dignidade das crianças, adolescentes e jovens do Grande Bom Jardim”, observa. A Utopia possível dos bons jardineiros
Segundo Demitri Cruz, coordenador estadual da pasta dos Direitos Humanos, fortalecer o trabalho de articulação entre as secretarias estaduais, garantindo políticas mais eficazes e uma melhor estrutura de acolhimento para denúncias de violações, é estratégico. “Precisamos reforçar a estrutura que já temos. Por isso estamos transformando o Centro de Referência em Direitos Humanos do Ceará em uma Ouvidoria estadual para acompanhar as violações como um todo, abrangendo todas as coordenadorias. Você não tem como acompanhar todas as violações, mas você tem que garantir que, quando ocorra, a rede de proteção esteja funcionando”, aponta. ESTICADORES DE HORIZONTES
Dois terços da população do nosso bairro é jovem e 70% das crianças, adolescentes e jovens entre 5 e 24 anos ainda é analfabeta. Esses são fatores externos que incidem negativamente sobre os números ligados à violência, assim como a escassez absoluta de políticas públicas continuadas e afinadas às demandas reais e prioritárias do Grande Bom Jardim Para Caio, não é a cultura da banalização da violência, mas a cultura de paz que deve imperar nas periferias, não só produzindo engajamento e animando as lutas, como ajudando a construir o que ele chama de “sujeito social jovem”, aquele que deve ter direito à proteção estatal porque é importante e útil para a sociedade e também para o Estado. Desafio dos mais intrincados – e ainda inconcluso. Sobretudo quando se levam em conta dados censitários colhidos pelo IBGE em 2010. Entre os bairros que compõem o Grande Bom Jardim, de 2007 a 2014, nada menos do que 1.245 pessoas foram assassinadas na área, sendo que 822 eram jovens. “Dois terços da população do nosso bairro é jovem e 70% das crianças, adolescentes e jovens entre 5 e 24 anos ainda é analfabeta. Esses são fatores externos que incidem negativamente sobre os números ligados à violência, assim como a escassez absoluta de políticas públicas continuadas e afinadas às demandas reais e prioritárias do Grande Bom Jardim. Não queremos mais cadeia e repressão, queremos escolas, centros culturais, praças, campos de futebol, pistas de skate”, sustenta.
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Categórico, o sociólogo graduado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), cuja dissertação de mestrado teve como tema justamente um mergulho profundo na sinergia coletiva provocada pela Rede DLIS, proclama aos quatro ventos: para enfrentar a violência, ao invés de mais cadeia e repressão, as juventudes do Grande Bom Jardim querem educação de qualidade, esporte, lazer, arte, cultura e um bairro com boas condições de infraestrutura e equilíbrio ambiental, lugar que produza oportunidade e liberdade, capaz de potencializar iniciativas coletivas – e não gerar dificuldades e carências de toda a ordem. “Uma onda equivocada e conservadora tem combatido o problema da violência com mais violência, policiamento e encarceramento. Contrários a isso, nós jovens, moradores da periferia, queremos reafirmar que não somos os responsáveis pela violência e que nos indignamos diante da violência policial e todos os esforços de criminalização para justificar o extermínio de jovens negros e pobres em nome de uma “paz” que só interessa aos ricos e poderosos. Temos sofrido toda sorte de violações e negações desde a infância, violências que dizem muito sobre adolescentes e jovens que recorrem ao mundo do crime e gastam suas energias em práticas criminosas”, adverte.
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Enquanto o poder público não chega com necessárias lentes de aumento para acessar e entender os fluxos que correm nas veias subterrâneas das periferias, trabalhos como o do CDVHS e JAP fazem a diferença. “Na história da esquerda social brasileira, para além dos partidos políticos, são as organizações sociais que vão demandar ao Estado o reconhecimento de uma etapa geracional que deve ser protegida e pra quem deve se ofertar um conjunto de condições para o seu desenvolvimento. É preciso afirmar e colocar isso no marco das políticas, das legislações, essa dimensão da subjetividade. Tem uma parcela da juventude que não se reconhece como jovem ainda. Muitos tiveram que pular de uma etapa pra outra no processo de desenvolvimento com uma rapidez tamanha, visto que são adolescentes com obrigações de adultos. Então, o que é ser jovem? E como dar vazão coletiva à exigência de direitos para se ter, enfim, uma vida adulta com mais dignidade?”, questiona Caio. Pessoal e compartilhável, o desejo de transformar o que parece posto e acabado levou o ativista social para muito além do Bom Jardim. Em 2016, Caio Feitosa se tornou um dos associados do CDVHS, assumindo
junto a um colegiado gestor a área de desenvolvimento de projetos ligados aos direitos humanos. Antes, já vinha aprofundando relações pessoais e profissionais junto aos movimentos de direitos humanos da cidade e do Brasil. Como assessor parlamentar, trabalhou durante pouco mais de um ano no mandato do vereador João Alfredo, do PSOL, e hoje integra a equipe de assessores de direitos humanos do mandato do deputado estadual Renato Roseno, do mesmo partido. No CDVHS, também vem apostando com entusiasmo no poder transformador da recém-fundada Escola Popular de Educação em Direitos Humanos, que por meio de cursos de longa duração vem formando novas lideranças comunitárias da capital e do interior, na esteira de uma parceria da ONG com a UFC e a UniChristus. Filiado ao PSOL desde 2013, o jovem militante e líder comunitário não cogita exercer cargos políticos majoritários no momento, embora muitos no Grande Bom Jardim já depositem nele expectativas futuras quanto a isso. “Os movimentos sociais e a militância de esquerda são traços fundamentais na minha trajetória, inclusive pra minha atuação na Sociologia. Quero entender mais ainda que espaço político é esse.
Grande Bom Jardim [imagem - 202B]
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A Utopia possível dos bons jardineiros
O desconforto tem a ver com a instabilidade e a crise de financiamento enfrentadas no Brasil pelo Terceiro Setor. “Precisamos de meios de financiamentos que gerem autonomia política pras organizações não governamentais, de modo que possam atuar livremente junto ao Estado para cobrar, fiscalizar, monitorar as políticas públicas. A gente tinha oportunizado isso através da cooperação internacional que, infelizmente, vem se ausentando do País e deixando ONGs como o CDVHS em situação bem delicada. E o marco regulatório das organizações da sociedade civil ainda não deu conta disso: um financiamento autônomo e democrático. Mas vamos ter que encontrar outros modos de existência política, enfrentando a também crise de engajamento, que por aqui se acirra desde que o trabalho das CEBs vai mudando sua linha de
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atuação, entre o final dos anos 1990 e início dos 2000, sobretudo a partir da saída do arcebispo Dom Aloísio Lorscheider de Fortaleza. Porque quando a pobreza se internaliza, você não tem energia nem para cuidar da própria vida, muito menos pra dar o outro passo, que é o processo de se engajar politicamente para cuidar de uma vida comum”, conclui. [texto - Ethel de Paula] “O Centro de Referência em Direitos Humanos do Ceará existe desde novembro de 2013, uma estratégia da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do Governo Federal para instituir uma política voltada aos DH no Estado e nos municípios. O projeto envolve balcão de direitos, educação em DH e mediação de conflitos. Iniciamos uma transição, pois não havia como fazer esse acompanhamento no âmbito estadual, e acabou virando um equipamento com foco territorial, o que é mais adequado a uma política municipal. Estamos querendo que o Centro se torne uma referência estadual, atuando no monitoramento de denúncias, se transformando em uma ouvidoria, em articulação com o Disque 100. Queremos concluir essa transição em, no máximo, dois meses”, esclarece Demitri Cruz, gestor em âmbito estadual dos Direitos Humanos. Em tempo: em 2016, o Centro atendeu a 247 pessoas, destas, 23 eram jovens.
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Eu poderia estar em muitos lugares fazendo isso, ter uma vida partidária mais acesa. Mas não, quero estar presente nessas organizações. Nelas, foi onde dividi essas ideias com outras pessoas, onde aprendi sobre justiça, democracia, cidadania e como se constrói tudo isso no coletivo. Minha vida é essa agora, embora saiba que não é, nem de longe, um lugar de conforto”, sublinha.
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Nada no Grande Bom Jardim veio de mão beijada. Ao contrário. Do posto de saúde aos equipamentos públicos para esporte, cultura ou lazer, tudo é resultado de muita luta comunitária, passeatas, manifestações, plenárias, articulação política, notas de repúdio, acampamentos improvisados em frente aos órgãos públicos e outras estratégias de reverberação e cobrança das pautas populares. Foi assim com o Centro Cultural Bom Jardim; com a Praça da Juventude da Granja Portugal, inaugurada em 2014 e já sucateada, aguardando reparos que cabem à Prefeitura Municipal de Fortaleza; e com a Vila Olímpica do Canindezinho, o mais frustrante dos legados da Copa do Mundo para as comunidades locais, que teve suas portas cerradas em 2013, sem maiores justificativas ou qualquer diálogo por parte do Governo do Estado, permanecendo desativada até hoje, com o mato crescendo ao redor.
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Quem não esquece as perdas recentes e volta a exigir o que considera direito é Suyanne Oliveira, 24, moradora do bairro e integrante do JAP – Jovens Agentes de Paz –, projeto idealizado há sete anos no âmbito do CDVHS. “Na Vila Olímpica do Canindezinho, eram quase 500 crianças, adolescentes e jovens atendidos regularmente, sem falar nos adultos e pessoas idosas. Nos finais de semana, esse número crescia significativamente, dada a total carência de espaços de esporte ou lazer no bairro. É revoltante o corte das parcas oportunidades de realização de direitos das populações pobres, para onde o Estado deveria voltar suas prioridades. Também revolta a forma como tudo foi consumado, através de um mero comunicado, sem nenhuma garantia ou respeito para com os profissionais envolvidos e as comunidades. Repudiamos esse disparate, que garante a plena execução e funcionamento dos equipamentos voltados para os grandes eventos em áreas da cidade que historicamente recebem mais investimentos e atenção do poder público, enquanto na periferia quase tudo é feito de forma precária, inacabada e descompromissada”, reclama a militante. O Coordenador Especial de Juventude do Governo do Estado, Davi Barros, vê no esporte um caminho profícuo para uma aproximação junto à juventude. Assim, ele destaca a importância do trabalho de escuta que a Coordenadoria vem conduzindo junto às torcidas organizadas no Ceará. “O trabalho junto às torcidas organizadas tem um potencial de mobilização incrível. Por exemplo, em um dia, eles conseguem reunir 1 mil jovens para debaterem a estratégia do jogo do fim de semana. Eu observo que esse potencial pode ser utilizado em outras frentes. Queremos alocar recursos e transformar as sedes dessas torcidas em centros de referência, oferecendo, além das reuniões, outros serviços para os jovens associados, potencializando as iniciativas que elas já oferecem”, explica Barros. O Rejuvenescimento da paz
Trata-se de um senso crítico e propositivo, com perspectiva de intervir concretamente no cotidiano, que nasce e se fortalece no ambiente escolar. São para adolescentes do ensino médio da rede estadual que todo um processo formativo em torno do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da cultura de paz é desenvolvido durante o ano letivo a partir do JAP, sempre nos contraturnos. Assim, quem passa pela formação que envolve rodas de diálogos temáticas, práticas de mediação de conflitos, círculos restaurativos, elaboração de editais e realização de audiências públicas populares no próprio Bom Jardim sai de lá não só preparado para atuar na comunidade como um agente de paz, como pode vir a se tornar multiplicador da gama de conteúdos apreendidos, retornando às salas de aulas como facilitador, a partir do ingresso voluntário do JAP. ESTICADORES DE HORIZONTES
Suyanne Oliveira [imagem - 202B]
Demitri Cruz, coordenador estadual de Direitos Humanos, aposta ainda em uma política de educação em Direitos Humanos por meio de uma parceria com a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc), mais uma iniciativa pública em fase de planejamento. “Ainda não está funcionando, mas o plano é, por meio dessa aliança com a Seduc, levar esse conhecimento para escolas de ensino médio e profissionalizante, EJAs [Educação de Jovens e Adultos], bem como outras instituições de ensino do Estado.”
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Suyanne enxerga além: ao ver o mesmo Governo do Estado erguer ao lado da Vila Olímpica esquecida um centro de recuperação para adolescentes em conflito com a lei, não demorou a destrinchar o significado do gesto. “Isto é uma evidência de como os governos em geral pensam equivocadamente a política para os jovens, sobretudo nas periferias de Fortaleza, escolhendo uma estratégia de privação de liberdade em detrimento de uma política de promoção de direitos para as juventudes”, atenta. A revisão crítica e permanente da legislação que acolhe e garante oficialmente os direitos das juventudes é o principal exercício político que os integrantes do JAP tomam para si. Conhecer os marcos legais para fortalecer o protagonismo juvenil, inventar outros modos de convivência e invenção no território, de engajamento, de retroalimentação dos processos de formação de novas lideranças.
Por último, foi a partir de uma mobilização provocada pelo JAP que a juventude organizada do Grande Bom Jardim conseguiu garantir verba junto ao Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC), organização social ligada à Secretaria da Cultura do Estado, para a reforma do Centro Cultural Bom Jardim. Demanda histórica, o equipamento foi inaugurado em dezembro de 2006, mas só recentemente criou-se um fórum deliberativo que dá voz à comunidade para decidir junto sobre o modo de funcionamento e as atividades concebidas para o local. Assim, não só a infraestrutura acabou por cair na berlinda. “Os cachês dos profissionais estão sendo revistos e a própria carga horária do programa formativo também.
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Vitor Oliveira [imagem - 202B]
Isso porque era inconcebível oferecer para nós apenas oficinas e minicursos, que a rigor não formam para o mercado de trabalho, enquanto que no Centro Dragão do Mar, outro equipamento gerido pelo IACC, localizado, é claro, em um bairro nobre, montou-se uma escola só para formação continuada, com cursos que contemplam as várias linguagens artísticas e que disponibilizam até monitores para acompanhar a produção final dos alunos”, provoca Suyanne.
Aconteceu na própria faculdade. Quando o professor perguntou de onde viemos e eu falei Bom Jardim, veio aquele “ixiiiiiii”, um eco na classe toda Ávidos por conhecimento e autonomia, os jovens do Grande Bom Jardim se organizam em torno de organizações comunitárias para cobrar direitos sim, mas não esperam acontecer.Vítor Oliveira, 20, morador da Granja Lisboa, é um estudante de publicidade que conseguiu acessar a universidade através do FIES e não se intimidou em ir até o desconhecido e suntuoso Centro Dragão do Mar, na Praia de Iracema, para concorrer à vaga que acabou conquistando em um curso de Dj ofertado durante as férias. “Fui
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para a seleção porque acredito que a oportunidade para o jovem de periferia deve estar em todo local, não só no seu bairro de origem. E foi isso que defendi na entrevista. Se a formação mais completa estava ali, é para lá que eu iria, mesmo sabendo que poderiam me olhar com preconceito. Aconteceu na própria faculdade. Quando o professor perguntou de onde viemos e eu falei Bom Jardim, veio aquele “ixiiiiiii”, um eco na classe toda. Mas encarei e venho mostrando que nós não somos feios, perigosos nem criminosos. E enquanto a maioria dos meus colegas quer trabalhar em multinacionais, eu quero me dedicar à mídia livre e ativista dos movimentos sociais, justamente para abraçar as diferenças e expor as desigualdades. O JAP ampliou essa minha visão: existem diversas juventudes. E, por ser diferente, não quer dizer que você seja menor”, opina. A coordenadora interdisciplinar do programa Cidadania em Rede, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de Fortaleza, Lúcia de Fátima, compõe a equipe que faz dos Centros de Cidadania e Direitos Humanos, os antigos Centros Sociais Urbanos – CSU, espaços voltados à oferta gratuita de atividades esportivas, culturais, de lazer e arte para as juventudes das periferias da cidade. Para ela, interligar as áreas centrais e nobres da cidade com as mais afastadas ainda é um desafio a ser encarado. “Vi casos de adolescentes que, mesmo sabendo que determinado espaço era gratuito, não se sentia público daquele equipamento. Isto envolve uma questão de dignidade e autoestima. Há esse estigma do pobre, negro, e eles acabam incorporando essa perspectiva da pobreza. ‘Eu não sou digno de estar no Dragão do Mar’[Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, na Praia de Iracema]. Então, quando você pega esses jovens e os leva para assistirem ao Festival de Teatro Infantil, é um trabalho de dignidade, de direito à ocupação da cidade. Não podemos esquecer que essa percepção de valorização e pertencimento deve estar no próprio bairro também”, defende.
O Rejuvenescimento da paz
“A mídia sempre replicou dados oficiais e, assim, muitas informações e versões deixavam de ser confrontadas ou checadas in loco. Acessamos os dados relacionados a homicídios no Ceará mensalmente lançados no site da Secretaria de Segurança Pública e percebemos que eram incompletos, superficiais, rasos. Muitas vezes, havia tão somente os nomes dos logradouros. Assim, resolvemos compor uma roda de memória nas seis escolas em que atualmente o JAP desenvolve formação. Fizemos um varal com fotos e informações. E de repente, a juventude foi dando vida àquelas existências, reconhecendo pessoas e informando mais sobre suas vidas ou famílias. Por fim, fizemos relatorias e estudos de caso, ao mesmo tempo em que decidimos chamar a atenção da cidade para essa experiência. Foi quando convidamos o Coletivo Nigéria para compormos um documentário cujo título é ‘Envolvidos’. Além disso, munido de referências colhidas em campo, o JAP foi revolver processos esquecidos nas gavetas das delegacias locais, buscando esclarecimentos junto à justiça.
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Olhar para si, reconhecer-se no outro. O JAP também desperta nas juventudes do Grande Bom Jardim uma militância em defesa do direito à memória individual e coletiva. Para Vítor, cada indivíduo é capaz de narrar e reescrever a sua própria história. Mas os meios de comunicação hegemônicos tendem a forjar estereótipos, inverdades e clichês em torno de determinados modos de ser e de estar na cidade. Assim, ele não tem dúvidas de que a pecha de violência e criminalidade colada ao Grande Bom Jardim deve ser incansavelmente desconstruída por quem vive no local, já que a maioria de seus habitantes não tem envolvimento com tráfico de drogas ou gangues, como supõe o senso comum. Suyanne concorda. E lembra quando o projeto Pela Vida da Juventude levou pesquisadores juvenis a fazer um diagnóstico participativo em torno das principais causas de óbito entre os jovens do bairro. A tarefa revelou o inesperado: histórias de vida interrompidas e silenciadas por trás de dados ditos oficiais da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Ceará.
Detalhes do muro do CDVHS [imagem - 202B]
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Mas muitos capítulos da nossa história ainda estão soterrados, justamente porque não interessa a certos poderes que venham à tona”, aposta Suyanne.
Mas, aqui no JAP, a gente aprende a peitar as dificuldades, a ter força de vontade para conquistar melhorias pro nosso bairro. E aprendemos a adquirir paz interior. Porque não há paz sem conflito Para Vítor, a atuação do JAP para além das escolas causa mesmo incômodo. Nas audiências públicas populares, a militância juvenil pergunta com embasamento, seja para o gestor convidado ou para a autoridade policial presente: “Onde foi parar a verba?”; “Quando ela enfim será liberada?”; “Cadê as linhas de ônibus prometidas para que os jovens do Bom Jardim, que integram a Regional V, possam minimamente acessar o tão distante Cuca Mondubim e seus cursos?”; “Por que a abordagem policial no bairro é desrespeitosa e diferenciada daquela aplicada nos bairros da elite?”. “A gente incomoda porque questiona e cobra mesmo. A gente reclama com vontade. E nos cercamos das mais diversas autoridades e estudiosos daquele assunto em pauta, como forma de pressão e para contestar certas práticas do lado de lá, como o treinamento de policiais em meros seis meses. Não há como preparar alguém para uma função tão complexa, que é cuidar e proteger, em tão pouco tempo”, defende.
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No Grande Bom Jardim, violência é assunto de jovem porque a experiência vivida lhe confere entendimento precoce. É o que Vítor atesta: “a gente, que é pobre, já sofre violações desde que nasce. A gente acorda sem saber como vai se locomover para ir atrás de um estágio, as crianças que vão pra escola não sabem se vão ter a merenda, muitas vezes o único alimento do dia. Então, essa é a face cotidiana da violência que a gente é obrigado a encarar. Cada um encara de um modo, é certo. Mas, aqui no JAP, a gente aprende a peitar as dificuldades, a ter força de vontade para conquistar melhorias pro nosso bairro. E aprendemos a adquirir paz interior. Porque não há paz sem conflito. Mas, para haver um equilíbrio, é preciso aprender sobre respeito, sobre a condução pacífica dos desentendimentos, sobre o valor e o poder do diálogo. Aprendemos sobre tudo isso no CDVHS e no JAP. E acho que, por isso, nos sentimos tão empoderados e ousados quando estamos juntos”. [texto - Ethel de Paula] Davi Barros, coordenador especial de Juventude do Governo do Ceará, acredita que abordar o jovem por uma perspectiva que não seja a criminalização é um caminho para contrabalançar a influência sedutora do tráfico nas regiões mais vulneráveis da cidade. Em fase de planejamento, o projeto “Territórios da Juventude”, em parceria com a sociedade civil organizada, o Governo do Estado pretende reformar e/ou requalificar os espaços existentes já nas comunidades, como terrenos baldios, escolas, vilas olímpicas, prédios públicos, entre outros territórios marcados pela violência. Em cada ação, segundo Barros, serão investidos cerca de R$ 300 mil. As comunidades/territórios que serão atendidas pela iniciativa serão: Bom Jardim, Vicente Pinzón, Praia de Iracema, Genibaú, Lagamar e Pirambu. O rejuvenescimento da paz | CDVHSO Rejuvenescimento - A ágora do Bom Jardim da paz
É a beleza impetuosa da paisagem humana do Grande Bom Jardim que move e nutre o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza – CDVHS, entidade não governamental nascida em 1994 no coração do bairro que carrega no nome um passado desbotado de fartas lagoas e fazendas a perder de vista, notadamente arborizadas. Em Fortaleza, sob as bênçãos da congregação de padres combonianos ligados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o CDVHS brotou do chão outrora verdejante para fazer valer, ali, o desejo original de que “em se plantando tudo dá”. Tem dado. Sobretudo no campo do sensível onde, reunindo a força vital e a inteligência coletiva de cinco bairros em um só – Bom Jardim, Siqueira, Canindezinho, Granja Portugal e Granja Lisboa -, a organização vem desenvolvendo um trabalho de gigante e de formiguinha a um só tempo, no que se refere à ampla promoção dos direitos humanos.
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a Ágora do Bom Jardim
Da defesa e afirmação do território ao cuidado com a memória, passando pela proteção do meio ambiente e animação de lutas políticas casadas à formação de lideranças comunitárias ativas e articuladoras, são diversas e complementares as linhas de ação em curso. Como um ancoradouro de onde saem e para onde convergem todas elas, há no escopo do CDVHS a aposta na Rede de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável (Rede DLIS), hoje formada por 30 associações comunitárias e grupos organizados oriundos de toda a área. “Trabalhar em rede é uma forma de chegarmos e articularmos os sujeitos sociais dos cinco bairros que compõem o Grande Bom Jardim. Um convite para que os participantes se engajem em ações concretas para combater uma onda histórica de violação dos direitos humanos, a partir de um diálogo expandido com a cidade e da apropriação processual de políticas públicas afins. É algo grandioso, somos cinco apenas na linha de frente, mas somos ousados.Vamos catando parcerias para cada projeto, ao mesmo tempo em que contamos com o patrocínio central da organização católica alemã Misereor”, apresenta Rogério Costa, 45, coordenador-geral do colegiado que rege o CDVHS. ESTICADORES DE HORIZONTES
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o JAP vem fortalecer a cultura da paz no território por meio de um processo formativo que se desdobra ao longo de três anos dentro do ambiente escolar Edivânia Marques [imagem - 202B]
Como um móbile, o CDVHS fragmenta e simultaneamente expande o próprio movimento. Atenta à questão da moradia adequada, a ONG apoia de perto as comunidades que estão dentro das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), ao mesmo tempo em que discute e fiscaliza a aplicação do Plano Diretor de Fortaleza na área. “Temos aqui o Rio Maranguapinho, que é o centro de nossa pauta ambiental e passa por vários trechos do Grande Bom Jardim, até desaguar no Rio Ceará. Daí por que esse recorte territorial tem características específicas e merece uma atenção diferenciada, sobretudo no contexto das comunidades mais vulneráveis. O rio dá uma identidade ao bairro e aponta para os ecossistemas associados, formados por lagoas, parque urbano, riachos, enfim... Começamos uma luta para que essa área fosse oficializada. E veio um decreto municipal que cria o parque urbano Lagoa da Viúva, 39 hectares divididos em quatro trechos, incluindo balneário e lagoas de beleza paisagística e propícias para a pesca”, informa Rogério. Outro eixo central de ação é aquele que se preocupa com a juventude do Grande Bom Jardim, sua proteção e empoderamento a um só tempo. Para tanto, foi criado o projeto JAP – Jovens Agentes de Paz, uma parceria do CDVHS com a Secretaria de Educação do Estado do Ceará e a ONG Terre des Hommes (Tdh).
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Coordenado pela assessora técnica e moradora do Grande Bom Jardim, Edivânia Marques, 27, o JAP vem fortalecer a cultura da paz no território por meio de um processo formativo que se desdobra ao longo de três anos dentro do ambiente escolar. Em 2016, são seis escolas estaduais envolvidas e parceiras, onde 204 estudantes do ensino médio, selecionados livremente, passam a ter contato com práticas e conteúdos ligados à medição de conflitos, protagonismo juvenil, políticas públicas para as juventudes, justiça juvenil e marcos legais afins. “A ideia é que, tocadas por essa formação, que começa no primeiro ano do ensino médio e segue até o terceiro e último, as juventudes, sensibilizadas e politizadas, deixem a escola interessadas em se tornar futuras lideranças políticas do Grande Bom Jardim. De imediato, os jovens interessados passam a ser multiplicadores dessa experiência, voltando às escolas como facilitadores e membros ativos do Grupo de Trabalho do JAP, ao mesmo tempo em que são atraídos para as diversas pautas do CDVHS e da Rede DLIS”, sintetiza Edivânia.
A gente busca se somar a essa luta pelo ensino de qualidade CDVHS: a Ágora do Bom Jardim
O programa Cidadania em Rede, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de Fortaleza, atua nos chamados territórios de risco. A ideia é fortalecer a presença do poder público municipal por intermédio de uma rede de proteção social, buscando dirimir os problemas correlatos ao tráfico de drogas e rivalidade entre gangues. São demandas atendidas pelo Programa: o consumo de álcool e drogas ilícitas, a exploração sexual, o trabalho infantil, a falta de acesso a serviços públicos. Mas os conflitos por território também entram em pauta cotidianamente. “Na Barra do Ceará, por exemplo, temos meninos do morro que não têm acesso à praia por conta dos conflitos de territórios entre as gangues, então levamos as atividades para cima do morro. Assim como, na via contrária, os meninos da Vila do Mar não podem ir ao morro”, conta Lúcia de Fátima, coordenadora interdisciplinar do Programa da Prefeitura de Fortaleza. Segundo ela, a secretaria municipal mantém uma equipe de apoio em cada território, atendendo oito horas por dia. São psicólogos, assessoria jurídica, assistente social, educador social, arte-educador, coordenador disciplinar e apoio administrativo. No total, cerca de 120 profissionais estão envolvidos no programa Cidadania em Rede, atuando em 10 territórios ocupados. Há ainda quatro unidades formativas, mantidas por meio de parcerias com organizações da sociedade civil organizada, totalizando 1.217 pessoas beneficiadas atualmente.
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No JAP, a diversidade impera: jovens anarquistas, punks, evangélicos, artistas, negros ou gays compartilham uma militância comum de defesa dos seus direitos que têm na educação a base de todas as reivindicações e reflexões críticas. “As escolas são palcos de saberes e de diversidades. E a educação é fundamental para a transformação de uma realidade social. Sobretudo quando diagnosticamos que, na escola, tem muita evasão, estruturas ainda precarizadas. A gente busca se somar a essa luta pelo ensino de qualidade”, contextualiza Edivânia. Assim, envolver professores, diretores e toda a comunidade escolar na formação do JAP é igualmente estratégico quando a ordem é, em última instância, dirimir os casos de violência e criminalidade entre os jovens do Grande Bom Jardim, através de rodas de diálogos, círculos restaurativos, noções de mediação de conflitos, cursos de direitos humanos, audiências públicas populares, diagnósticos comunitários participativos e outras atividades sugeridas pelos próprios estudantes que venham a afirmar o protagonismo juvenil.
Fachada do CDVHS [imagem - 202B]
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Trabalhando em rede, como entidade indutora e incubadora de conhecimentos e práticas, o CDVHS estimula aquilo que o coordenador de comunicação social da entidade, Adriano Almeida, 39, chama de “inventividade de um lugar” No CDVHS, o foco sobre a educação de qualidade, irmanada às potencialidades e fragilidades do território, também fez surgir a Escola Popular de Educação em Direitos Humanos, voltada a militantes dos movimentos sociais e lideranças comunitárias de todas as idades, da capital ou do interior. Gratuita e certificada por meio de uma parceria entre CDVHS, Universidade Federal do Ceará (UFC) e UniChristus, em 2016, essa formação volta-se particularmente ao Direito à Cidade. Isso depois de já haver formado, até o momento, 70 pessoas. Trabalhando em rede, como entidade indutora e incubadora de conhecimentos e práticas, o CDVHS estimula aquilo que o coordenador de comunicação social da entidade, Adriano Almeida, 39, chama de “inventividade de um lugar”. Para tanto, é preciso conhecer a fundo onde se pisa. Daí o investimento, em 2003, no Diagnóstico Participativo do Grande Bom Jardim. Um trabalho de estudo e pesquisa relacionado aos modos de vida próprios do bairro. A partir da formação de pesquisadores comunitários, fez-se o levantamento in loco, rua após rua, das condições sociais, infraestruturais, econômicas e culturais do território, investigando, em paralelo, traços comportamentais, como aqueles que apontam diretamente para a violência e a criminalidade.
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“Ao mesmo tempo em que produzimos índices que, muitas vezes, batiam de frente com números e percentuais ditos oficiais, os próprios moradores foram apontando propostas de enfrentamento para aquela realidade. Constituímos um grande Conselho Territorial. E em 2005, elaboramos a Politica de Desenvolvimento do Grande Bom Jardim, pensando em demandas e ações para os próximos 25 anos. Ano passado, dez anos depois disso, repetimos o ciclo, organizando 21 assembleias no território para atualizar essa política, que é o nosso leme. É nela que a gente se baseia pra exigir direitos e nos afirmarmos como sujeitos do processo”, destaca Adriano. Para ele, a percepção integralizadora comunitária do CDVHS consolida uma rede rizomática de saberes e fazeres nas periferias, capaz de intervir astuciosamente no campo da política.
Eis a grande expertise da articulação em rede: dialogar com todos. Aqui não há nenhum tipo de discriminação “Eis a grande expertise da articulação em rede: dialogar com todos. Aqui não há nenhum tipo de discriminação. Povos de terreiros, da umbanda, pastores protestantes, evangélicos e gente da igreja católica participam lado a lado das atividades, ativamente. Não é fácil conseguirmos essa proeza, sobretudo em tempos de exacerbação. Penso que, em nome de um interesse coletivo, a partir das diferenças, estamos aprendendo juntos a construir uma Ágora, o espaço público por excelência, onde diferentes matizes religiosas, políticas, partidárias ou não, se unem para agir pelo todo. A gente não está interessado em institucionalidades, mas no bem comum, por isso defendemos o respeito à pluralidade”, conclui Adriano. [texto - Ethel de Paula] CDVHS - A ágora do Bom Jardim | Avanços CDVHS:naa Ágora organização do Bompopular Jardim
Natália Ilka Morais [imagem - Cristhian Moravia]
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Natália Ilka Morais, socióloga, concluiu seu mestrado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) pesquisando juventudes e políticas públicas, além de contar com experiência de trabalho na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude da Prefeitura de Fortaleza, onde trabalhou por cinco anos. A socióloga participou ainda de pesquisas relacionadas ao tema na capital cearense: Retratos da Fortaleza Jovem (2006), Avaliação do Projovem Urbano de Fortaleza (2011) e Jovens e Violência: Diagnóstico Participativo no Município de Itaitinga [Região Metropolitana], em 2012. A especialista colaborou ainda com a elaboração da minuta do Plano Municipal de Juventude de Fortaleza, projeto de lei aprovado na Câmara Municipal de Vereadores, em 2011. Natália destaca sua experiência com a pesquisa “Retratos da Fortaleza Jovem”, realizada há exatos 10 anos: “Dos resultados da pesquisa, posso destacar que 32,6% da população jovem de Fortaleza vivia em famílias com rendimento de, no máximo, um salário mínimo. Os dados em relação aos aspectos culturais nos mostraram que 24,8% dos jovens nunca tinham ido ao cinema, 50,9% nunca tinham ido ao teatro e 40,6% nunca frequentaram uma biblioteca que não fosse a da escola. Dentre os principais motivos estão: falta de dinheiro (49,8%) e falta de oportunidade (13,5%). Apenas 3,6% alegaram falta de interesse.” Naquele momento, observa a pesquisadora, “evidenciou-se a necessidade do aumento de investimentos em políticas públicas específicas para esse segmento populacional, considerando as diversas dimensões da vida desses sujeitos em processo de desenvolvimento”. Na pesquisa que comandou, enfocando participantes do Projovem Urbano de Fortaleza, projeto federal executado pela Prefeitura, Natália encontrou outro resultado relevante no que se refere à qualidade da educação oferecida: havia uma relação direta entre a proximidade estabelecida entre educadores e alunos e o ensino. “Contudo, ainda há um descompasso entre as políticas públicas ofertadas, as demandas efetivas dos jovens, as expectativas geradas pelos projetos e programas sociais e as reais possibilidades de realização desses anseios”, assinala.
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A aplicação continuada de políticas públicas sociais, cuja eficiência e resultados são, muitas vezes, questionados, acaba, segundo ela, criando expertise para se melhorar sua eficiência. “Um exemplo disso é que o Projovem, em sua primeira versão, criada em 2005, não se preparou para que os alunos fossem, em sua maioria, mulheres. Muitas dessas jovens eram mães e não tinham com quem deixar seus filhos para estudar. Somente sete anos depois, com a nova versão do programa, destinaram-se recursos para a contratação de profissionais que cuidassem dessas crianças enquanto suas mães estivessem na aula”.
Em muitas comunidades, o Estado só chega na forma do seu braço armado, a polícia. Isso precisa ser mudado Apesar de considerar que o quadro social da juventude no Brasil avançou nos últimos anos, a situação real ainda é de dificuldade de acesso a bens e serviços básicos de cidadania. Natália reconhece que foram ampliados os direitos, mas não se falou o suficiente sobre a desigualdade social. “Não há como imaginar uma reversão de situações de violência e exclusão sem falar em distribuição de renda e ampliação do acesso a políticas públicas. Se, de um lado, defendemos a necessidade de políticas específicas para esse segmento populacional, a juventude, de outro, não se pode minimizar a importância de se pensar nos contextos sociais nos quais vivem, o que inclui a família e o território. Em muitas comunidades, o Estado só chega na forma do seu braço armado, a polícia. Isso precisa ser mudado”. Em relação aos desafios enfrentados pelas juventudes brasileiras, a socióloga demonstra que meninos e meninas trilham caminhos e dificuldades diferentes. “Segundo a pesquisa Retratos da Fortaleza Jovem, em 2006, na faixa de 15 a 19 anos, 20% dos homens não estavam estudando, enquanto este índice subia para 25% no caso das mulheres.
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Dos 20 aos 24 anos, enquanto apenas 15% dos jovens homens são casados ou vivem com companheiras, 29,7% das jovens mulheres são casadas. Na mesma faixa etária, cerca de 80% dos homens não têm filhos, enquanto apenas 55% das mulheres não têm. Destas, 14,6% tiveram seu primeiro filho enquanto ainda tinham entre 11 a 14 anos de idade. Casar-se mais cedo, ser responsável pela família e filhos, impõem limitações para a continuidade dessas jovens no percurso escolar e para sua inserção de forma não precarizada no mundo do trabalho”, assinalou.
Natália ressalta que o sentimento de baixa autoestima, resultado de uma cidade segregada entre bairros “nobres”e “periferia”... ...Abundam notícias sobre jovens de periferia, muitos deles negros, envolvidos em atividades ilícitas e prontamente taxados como culpados Em relação ao direito à cidade, Natália ressalta que o sentimento de baixa autoestima, resultado de uma cidade segregada entre bairros “nobres” e “periferia”, onde “rolezinhos” se tornam uma questão policial, interfere nos resultados profissionais alcançados pela juventude da periferia. “Os bairros aparecem frequentemente em programas televisivos taxados como lugares violentos, estigmatizando não apenas o espaço, mas também seus moradores. Preconceito que se materializa, por exemplo, no cerceamento do direito à cidade, como no caso de jovens que são barrados nas entradas de shopping centers, ou em entrevistas de emprego que negativizam jovens pelo local de moradia. Ao defender o discurso da meritocracia, não se reconhecem os diversos fatores limitantes para que esses jovens alcancem lugares sociais tidos como ‘naturais’ para os jovens filhos das classes possuidoras”, advertiu. Avanços na organização popular
Em pleno século XXI, a mentalidade da casa grande e da senzala ainda encontra eco na sociedade brasileira “Em pleno século XXI, a mentalidade da casa grande e da senzala ainda encontra eco na sociedade brasileira”, lamenta a socióloga. “A resistência que vemos às políticas de cotas raciais é apenas um exemplo da invisibilidade das consequências dos problemas sociais enfrentados pela juventude moradora da periferia. É preciso reconhecer que os direitos sociais conquistados por esse segmento é apenas o resgate de uma dívida histórica da sociedade e do Estado brasileiro”, pontuou. Para ela, no tocante ao caminho político para o qual o Brasil caminha, “não podemos esperar uma maior participação política desses grupos nas decisões sobre o país”. Entretanto, prefere guardar o pessimismo para dias melhores e arrisca um olhar positivo. “Um alento nesse cenário vem da própria juventude. ESTICADORES DE HORIZONTES
onde houver retrocesso, haverá resistência Assistimos a várias ocupações em escolas de São Paulo e na Assembleia Legislativa em combate à máfia da merenda, cobrando investigações e punições. No Ceará, várias escolas estão ocupadas por estudantes em apoio à greve dos professores por melhorias salariais. O que vemos são jovens se organizando em novas formas de se fazer política para lutar por seus direitos e conquistando grande apoio por parte de parcelas da sociedade. Em virtude dessas iniciativas, acredito que onde houver retrocesso, haverá resistência”.
apenas quando for oferecida dignidade à juventude em forma de igualdade de oportunidades será possível se falar em paz
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Segundo a pesquisadora, a segregação social vivida pela juventude da periferia é alimentada por uma determinada linguagem veiculada pelos meios de comunicação hegemônicos no Brasil, e possui um objetivo político. “Abundam notícias sobre jovens de periferia, muitos deles negros, envolvidos em atividades ilícitas e prontamente taxados como culpados. É notável como o tratamento é diferenciado quando esses mesmos atos ilícitos são praticados por filhos das classes média e alta, considerados prontamente apenas como suspeitos ou supostamente envolvidos. A forma como a juventude da periferia é tematizada, em geral, relacionada a algum problema social, contribui para a construção e permanência de um imaginário social que a criminaliza. A sociedade é permeada por relações de poder, e o preconceito e a criminalização servem a um tipo de dominação que mantém determinados setores como dominantes e outros como dominados”.
De acordo com a pesquisadora, apenas quando for oferecida dignidade à juventude em forma de igualdade de oportunidades será possível se falar em paz. “Há que se pensar em avançar na conquista de direitos, e a única forma de lutar é através da organização popular. Quando atores sociais não estão comprometidos com a manutenção das ações públicas, conquistas podem ser perdidas nos momentos de mudança de gestores. A sociedade civil organizada e a população têm papel fundamental como propositoras de políticas e no controle social sobre essas ações. Apesar das críticas ao que alguns setores encaram como ‘gasto’, programas sociais como o Bolsa Família são investimentos que geram retorno real para a sociedade, comprovadamente”, defendeu. [texto - Benedito Teixeira]
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D E HORIZONTES S E R O D A C I SE T EDUCAÇÃO
Aline Sousa [imagem - 202B]
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A educação de si e do outro
EDUCAÇÃO
Inventar coletivamente uma “pedagogia” de si mesmo. Experimentar modos mais frouxos e livres de pensar. Compor arranjos de força e resistência capazes de tensionar poderes e saberes que confinam o indivíduo e o disciplinam, num processo de assujeitamento contrário à construção social de sujeitos autônomos, críticos e atuantes. O movimento de ocupação das escolas públicas de ensino médio que se espraiou por diferentes estados do País no primeiro semestre de 2016, incluindo o Ceará, não foi feito tão somente de pautas específicas que convergiram para a garantia do inalienável direito a uma educação pública de qualidade. Houve, na base mesma da ação política dos estudantes secundaristas, um claro e luminoso ímpeto de se construir práticas educativas outras, plurais, desviantes, participativas, informes, instauradoras de atitudes críticas e experiências de liberdade no cotidiano escolar. Movida pelo desejo de liberdade e pela arrojada ideia de política como livre uso do mundo que a estudante Aline Sousa, 16, foi uma das que acampou na Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, em Fortaleza, no último mês de maio de 2016. Ao decidir engrossar o coro juvenil pela valorização e contratação de mais professores, melhoria da infraestrutura das escolas, reforço e diversidade de conteúdos, manutenção da merenda escolar e defesa do passe livre, entre outras bandeiras de luta, ela teve apoio incondicional e entusiasmado da mãe, Adinari Moreira, 52, professora universitária e assistente social cuja militância ativa em movimentos sindicais e grevistas a filha acompanhou de perto, desde a mais tenra infância. Cúmplices na vida e no ativismo político, as duas também decidiram juntas sobre como e onde se educar. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Assim, trocar a escola particular, onde Aline cursou todo o ensino fundamental, por uma escola pública e gratuita, a partir do 1º ano do Ensino Médio, foi uma escolha de ordem muito mais política do que econômica, já que, para ambas, a construção de valores éticos e libertários está intimamente ligada aos grupos sociais com os quais se escolhe conviver.
sozinho, a gente não consegue nada, mas no coletivo temos força “Minha formação política começa em casa mesmo, com a minha mãe me inspirando, me mostrando que sozinho, a gente não consegue nada, mas no coletivo temos força. Tenho fotos com ela nas assembleias, nas greves, na rua, militando, tocando em banda de lata e até discursando. E o bom é que isso sempre se deu sem que ela me forçasse ou me induzisse a ser simpatizante de qualquer partido. Eu escolhi ser de esquerda, apartidária e sempre tive muita liberdade para fazer qualquer outra escolha na vida, inclusive quanto à minha orientação sexual, tanto que ela ‘super’ me apoiou quando decidi experimentar a bissexualidade. Ser livre foi e é a maior virtude que minha mãe cultiva em mim. E acho que durante a ocupação aprendo a exercitar essa liberdade coletivamente, a partir da convivência e da interação com as pessoas, já que as minhas ações, por menores que sejam, se refletem nas ações dos outros. Então, o desafio é entender junto de que forma fazer valer essa liberdade em espaços como o da escola, que já traz pra gente um pacote pronto de regras, ideias e padrões”, discursou a estudante. Aline Sousa [imagem - 202B]
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Na ocupação da Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, Aline integrou a comissão de limpeza e segurança: lavou panelas, o chão da cozinha, o fogão; A educação de si e do outro
A partir da exibição do filme Ilha das Flores, de Jorge Furtado, um ácido e divertido retrato da mecânica da sociedade de consumo em meio ao processo de geração de riqueza e desigualdades sociais, a professora de Ética do curso de graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE) pôde falar e ouvir sobre individualismo, luta de classes, desobediência coletiva, formas de empoderamento e, claro, rumores em torno das políticas públicas voltadas à educação desde quando a então presidenta Dilma Rousseff adotou como lema do Governo Federal o epíteto Pátria Educadora. Para ela, as oficinas têm funcionado como verdadeiras aulas de política e cidadania junto aos estudantes. E não há como deixar de se louvar o alto nível de debate político observado entre boa parte dos jovens das escolas públicas. ESTICADORES DE HORIZONTES
Professora universitária e assistente social Adinari Moreira, mãe e incentivadora da filha Aline [imagem - 202B]
Ana Rita Fonteles é coordenadora de Educação em Direitos Humanos do Programa Interinstitucional de Bolsas de Iniciação à Docência da Universidade Federal do Ceará (Pbid/UFC) e professora do curso de História. A atuação do Pbid junto às escolas de Ensino Médio já vem de antes do início das ocupações, mas a partir do movimento dos estudantes, temas considerados prioritários na pauta dos direitos humanos passaram a ser discutidos. “Um foi o ‘Escola sem partido’, projeto de lei que procura limitar a liberdade dos professores em sala de aula. Outro diz respeito à memória e verdade, luta que procura informar e chamar a atenção para o obscuro período da ditadura militar brasileira (19641985). A partir disso, começaram a surgir algumas demandas nunca despertadas, como por exemplo, a ideia de rebatizar escolas que receberam nomes de políticos ligados à ditadura militar. Caso da escola estadual Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, em Fortaleza, uma homenagem ao primeiro presidente imposto pela ditadura”, ilustrou.
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varreu as salas, enxugou os pratos, serviu refeições e organizou os colchonetes para quem se revezava em comissões diversas, pernoitando por ali. Como nunca dormia cedo, também foi escalada para passar parte das noites cuidando dos pertences da turma enquanto a maioria descansava após mais um dia de desabafos, reuniões, plenárias, negociações, atividades e oficinas diversas. Adinari, a mãe que integrou grêmios estudantis ao longo de toda a juventude e chegou a se filiar ao Partido dos Trabalhadores (PT), não só brilhou os olhos com a estreia da filha no mais radical movimento estudantil do momento como fez questão de colaborar com a troca voluntária de saberes e fazeres no ambiente escolar ora sem aulas, mas onde muito se tem aprendido sobre micropolíticas, relações de poder e modos diversos de relação consigo mesmo e com o Outro. Na própria escola da filha, assim como em outras até então ocupadas, ela promoveu sessões concorridas de cine-debate.
Porque agora não é mais só vir pra aula. Estamos aprendendo sobre como conviver com o outro, olhar para o outro, respeitar o espaço e o pensamento do outro. Penso que isso é aprender a cuidar uns dos outros “Penso que os conteúdos dos livros adotados pelo MEC são críticos e isso se reflete na maneira como a juventude das escolas públicas pensa e se posiciona ao defender, por exemplo, o sistema de cotas e questionar, em contrapartida, a falta de investimento nas universidades públicas, quando se põe na balança o montante investido em cursos a distância e no ensino privado. Apesar de todos eles se beneficiarem com bolsas de estudos através de Fies, Reuni, Prouni etc., entendem que essa política teria que ser pontual e não regra. E que a prioridade é o ensino público gratuito e universal para todos, além das escolas profissionalizantes.Vejo nisso uma maturidade política grande se consolidando. E precisamos reconhecer que essa conquista, ou essa cultura política, é resultante das lutas dos movimentos sociais, mas só pôde se dar em um governo progressista e de esquerda que, de alguma forma, deu sustentabilidade a ela ”, observa.
não seria tão rica se tivesse ficado no ensino privado. Aqui no Adauto há uma força política muito maior e, por incrível que pareça, a mentalidade é muito mais avançada também. Posso dizer que essa escola é quase cem por cento LGBT e todo mundo se respeita, a própria gestão escolar respeita os estudantes. E acho que esses laços vêm se fortalecendo ainda mais durante a ocupação. Porque agora não é mais só vir pra aula, sentar na mesa, ouvir o professor e trocar uma ou duas palavras com o colega do lado. Estamos aprendendo sobre como conviver com o outro, olhar para o outro, respeitar o espaço e o pensamento do outro. Penso que isso é aprender a cuidar uns dos outros. E a política poderia ser esse lugar do cuidado”, sublinha Aline.
Sobre cuidar de si e do outro, Aline também aprendeu em casa, particularmente com Adinari. Ao revés.Veio para os braços da mãe escolhida como tal com dois anos de idade. Era a quinta cria da primeira união do Governo que Aline e a mãe viram rachar em meio ao pai, Antônio Carlos. A mãe biológica, Irene, não tinha também discutido processo de impeachment impecondições financeiras para criá-la e foi Adinari quem trado contra a então presidenta Dilma Rousseff, que assumiu o papel sem desistir dele nem quando o seu acabou, de fato, afastada do cargo. “O Enem foi uma casamento também chegou ao fim. “Meu pai só morou conquista árdua, saímos de um modelo ‘decoreba’ para com a gente até os meus cinco anos de idade. Mas um outro que exige de nós o pensar, a criticidade, como, a essa altura, minha mãe já estava apaixonada por algum entendimento político. E acho que isso tá em mim e eu por ela, ele foi embora e a gente continuou risco no governo do presidente Michel Temer, que é juntas.Vejo meu pai muito pouco, ele não é muito de direita. Também não se via negro nem pobre nas presente. Minha mãe biológica mora no interior e há universidades antes do governo do PT. Então, esses pouco tempo briguei com ela pela internet. Minha poucos avanços nos modos de governar também são sorte foi ter caído no colo da mãe que eu reconheço, bandeiras de luta que a gente debateu, em que todos se amo e admiro. Ela é quem sustenta sozinha eu e meu posicionavam contrários ao golpe de Estado. Fico du- irmão, Davi, que tem 12 anos e é autista. Ou seja, uma plamente feliz de ter estado na escola pública naquele guerreira que sempre militou pelos filhos, antes de mais momento, justamente porque minha formação política nada. E eu sou uma privilegiada”, derrete-se a filha.
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A educação de si e do outro
Ocupação do Colégio Adauto Bezerra [imagem - 202B]
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A militância de uma pela outra deixa rastros por toda a casa do bairro Itaperi. Ali, na parede do quarto que serve de escritório e biblioteca, está o cartaz que Aline pinçou da memória como uma das primeiras imagens que a mãe lhe apresentou como lição de liberdade. “Lembro que havia um casal de mulheres se beijando, um casal de homens e um casal hetero. Ela me falou sobre como todas as formas de amor são bonitas e permitidas. Basta que se tenha o principal, que é justamente o afeto. Aquilo soou pra mim, desde ali, como algo muito natural e essa atitude dela me deixou totalmente à vontade para conversar tudo e perguntar tudo à minha mãe, sem qualquer receio. Com ela, meu exercício de liberdade é pleno, total, não tem nenhuma restrição. Somos cúmplices mesmo, principalmente quando discordamos ou pensamos diferente. E isso é também uma primeira lição de respeito às diferenças que tive”, recorda. Uma filha que ensina a mãe sobre não binarismo, espiritismo, ufologia, meditação, projeção astral, estilo indie de vestir. Uma mãe que acampou a noite toda com a filha nas dependências da escola só para conseguir vaga e matriculá-la, enfim, numa instituição modelo de ensino público. Uma filha bailarina que, graças ao apoio da mãe, já se decidiu pelo risco de viver das artes, quando adulta. Uma mãe com três libélulas tatuadas nas costas, cada uma com a cor predileta das crias, serena o bastante para explicar à filha de piercing no nariz os motivos pelos quais ela só deve também se tatuar aos 18 anos. Entre as duas, nenhuma moral única, arraigada a juízos e sentenças que modelam o pensar e o agir. A ordem, ali, é preparar o outro para que eduque a si mesmo. Assim, atividade docente e fraternidade se fundem em um mesmo ato de emancipação - e não de embrutecimento. Lição maior que Aline leva e traz de casa para a escola e da escola para casa, com sua graça quebradiça e saltitante de libélula. [texto - Ethel de Paula]
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#Ocupaescola HÁ UM LÍDER EM VOCÊ!
Ocupação do CAIC [imagem - Kiko Silva arquivo Diário do Nordeste]
Organizadas espontaneamente pelos alunos – a maioria adolescentes com pouca ou nenhuma vivência no movimento social organizado – as ocupações buscaram, se não interromper de todo, pelo menos chamar a atenção para um ciclo de retrocessos na educação pública do Estado
No Ceará, mais de 60 escolas foram ocupadas em 2016
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Vinte e cinco anos depois que os protestos “Fora Collor”, protagonizados em grande parte pelo movimento estudantil “cara pintada”, contribuíam para derrubar um presidente no Brasil e, atualmente, bem próximo daquele brasileiro junho de 2013, tempo das maiores manifestações de rua já ocorridas no País, o movimento de ocupação das escolas públicas estaduais no Ceará pelos estudantes secundaristas chegou para fazer história. Organizadas espontaneamente pelos alunos – a maioria adolescentes com pouca ou nenhuma vivência no movimento social organizado – as ocupações buscaram, se não interromper de todo, pelo menos chamar a atenção para um ciclo de retrocessos na educação pública do Estado. No Ceará, mais de 60 escolas foram ocupadas em 2016 por grupos de jovens secundaristas, boa parte vivenciando pela primeira vez a experiência de protestar por mais direitos. #Ocupaescola: há um líder dentro de você!
Sob os auspícios de uma propalada crise fiscal, cujas consequências parecem recair com mais força sobre determinados ombros do que outros, em 2016, o governador do Estado, Camilo Santana (Partido dos Trabalhadores – PT), eliminou benefícios e sinalizou com uma proposta de reajuste, rechaçada pelos servidores da educação, em especial os professores. A categoria respondeu iniciando uma greve por tempo indeterminado, paralisando as atividades nas escolas estaduais.
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São novas ideias, futuros coletivos populares e lideranças sociais e políticas que irromperam com o movimento
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A greve dos docentes foi o empurrão que faltava para o despertar político dos estudantes cearenses que, organizados em assembleias e tomados pelos exemplos vindos de cidades como São Paulo, decidiram tomar a dianteira de um movimento autônomo de ocupação de suas próprias escolas. Entre os objetivos, além de manifestar apoio à greve dos seus professores, vieram a exigência por uma merenda escolar de qualidade, para além da “bolacha cream cracker com refresco ou bat-gut”; melhorias físicas na infraestrutura escolar e o retorno de programas de apoio pedagógico, cortados recentemente pelo governador, como o programa “Professor Diretor de Turma” – que gratificava professores para acompanharem de perto as demandas dos alunos – e monitores para os laboratórios de informática. São novas ideias, futuros coletivos populares e lideranças sociais e políticas que irromperam com o movimento.
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Adauto Bezerra Em maio de 2016, a Escola Estadual de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, batizada com o nome de um dos baluartes do coronelismo no Ceará (espécie de caudilho, dono da região), era a quinta ocupada em Fortaleza. Juliana Lima, estudante do 3º ano do Ensino Médio, de apenas 16 anos, compunha a linha de frente dos estudantes em luta como representante do grêmio estudantil da escola e uma das líderes do movimento #OcupaAdauto. E nem mesmo a ansiedade com a aproximação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) parecia arrefecer o espírito de luta que ela dizia vir descobrindo em si mesma.
Fizemos meio que uma aula pública, uns 150 alunos vieram e explicamos o que é uma ocupação, para que serve, como organizar, tudo isso. Depois dessa aula, a gente viu que tínhamos força e decidimos ocupar. “A primeira a iniciar as ocupações no Ceará foi o Caic, no Bom Jardim [Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente Maria Alves Carioca, em 28 de abril de 2016]. A gente foi visitá-los logo no segundo dia. Pesquisamos sobre ocupação, olhamos o caso das ocupações de São Paulo, e decidimos fazer uma assembleia, aqui, no Adauto. Fizemos, na verdade, meio que uma aula pública, uns 150 alunos vieram e, naquele momento, explicamos o que é uma ocupação, para que serve, como organizar, tudo isso. Depois dessa aula, a gente viu que tínhamos força e decidimos ocupar. Levamos a faixa ‘Adauto ocupada’ ali para fora [da escola], fizemos um vídeo, tem tudo isso na nossa página no Facebook (Ocupa Adauto)”, detalhou.
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Dione Silva, diretora financeira do Instituto de Juventude Contemporânea do Ceará (IJC), ONG com 12 anos de atuação junto à juventude, conta que a instituição já fazia um trabalho de conscientização política nas escolas. “Com as ocupações, nós passamos a ter um papel muito mais de mobilizar outros parceiros, para levar oficinas, conseguir doações, já que eles são os protagonistas. Afinal, se a escola não for dos estudantes, de quem é?”, questiona. Para ela, já é muito bom ver que existe uma nova geração disposta a seguir a luta política por uma educação de qualidade. “A gente sabe que esse ambiente escolar que está aí é herança da ditadura e, mesmo assistindo a alguns retrocessos batendo em nossa porta, ter essa juventude lutando por suas escolas é alentador. Com certeza, vão surgir novas lideranças, essa nova geração está vindo com tudo e isso é muito importante”, acredita. A estudante deixou o conforto da sua casa no bairro José Walter (extremo sul da capital) e com o apoio do pai e da mãe, depois de muitas conversas, decidiu dormir e acordar na Ocupação lutando em prol de uma escola de qualidade. Luta estrutural e histórica, mas que ainda passa por um prato de comida. “A merenda que vem do governo é basicamente bolacha salgada e iogurte. Durante quatro dias, a gente só come isso, em apenas um dia vem algo diferente, como uma vitamina de goiaba. Teve um dia que foi o estopim, a bolacha foi contada, deu ‘tipo’ três para cada aluno! Aqui, no Adauto, a gente tem seis tempos de aulas, tanto de manhã como à tarde.Você acha que a gente vai segurar esse tempo todo com isso [a merenda em péssima qualidade e em pequena quantidade]? A maioria vem só com o dinheiro da passagem, contando com a merenda da escola, como é que vão aprender assim?”, questionou Juliana. #Ocupaescola: há um líder dentro de você!
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Trinta centavos por aluno. Este é o valor que o Governo do Estado investe na alimentação de cada estudante, com vistas a preparar futuras gerações de cearenses. Logo após o início das ocupações, o governador Camilo Santana teria anunciado uma verba extra de R$ 32 milhões para a reforma nas escolas e um acréscimo de R$ 6,4 milhões para melhorar a merenda dos alunos. Entretanto, o movimento de ocupação decidiu prosseguir em luta, pois, segundo calcula, não chega nem perto de ser suficiente. Parodiando o cantor e compositor Arnaldo Antunes, “a gente não quer só comida, mas também diversão e arte”, Juliana emenda: “Queremos essa escola para além da sala de aula, que ofereça arte, educação crítica. Acontece que o governo quer formar trabalhadores pra apertar parafuso, igual ao Charlie Chaplin”, comenta a estudante, fazendo uma ponte com o filme “Tempos Modernos”, do famoso comediante ainda nos idos do cinema mudo. Logo após o início das ocupações, o governador Camilo Santana teria anunciado uma verba extra de R$ 32 milhões para a reforma nas escolas e um acréscimo de R$ 6,4 milhões para melhorar a merenda dos alunos Outra reclamação da estudante é a falta de psicólogos, pedagogos e outros profissionais de apoio em sua escola, para além dos professores. Um desses papéis teve que ser assumido por uma professora exemplar que, por mais de uma vez, dedicou seu tempo a ouvir a jovem quando ela precisou. “Mas só aqui no Adauto temos 2.100 alunos, os professores, por mais que haja boa vontade, não dão conta. O que precisamos é de estrutura e quadro docente”, destacou. ESTICADORES DE HORIZONTES
Ocupação do Colégio Adauto Bezerra [imagens Fernanda Siebra - arquivo Diário do Nordeste]
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Na contramão do desejo de Juliana, a estrutura necessária demandada pelos alunos parece estar ficando cada vez mais distante. Em janeiro de 2016, o Governo do Estado publicou a Portaria nº 1169, com o objetivo de reduzir despesas. Foram demitidos centenas de professores temporários, eliminados incentivos a atividades de apoio pedagógico e os laboratórios de informática e ciências tiveram seus funcionamentos comprometidos, entre outras medidas. Após muita pressão, tanto da sociedade como do sindicato Apeoc (Associação dos Professores de Estabelecimentos Oficiais do Ceará), parte desses retrocessos foi interrompido, entretanto, o quadro de subfinanciamento da educação no Estado não foi alterado.
Antes da greve, estávamos com disciplinas sem professores. Se aqui, que é escola-modelo, estava assim, imagine na periferia
100Ocupação do Colégio César Cals [imagem - 202B]
Mara Carneiro é coordenadora da área de Direito à Educação do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-Ceará), ONG que concedeu suporte jurídico às ocupações dos estudantes. “A gente tem avaliado que esse momento dos secundaristas é muito próximo a nós, porque são duas pautas que trabalhamos, direito à educação de qualidade e participação juvenil. Nós temos o mesmo entendimento desses jovens: de que há uma violação de direitos pelo Estado. Há uma negligência por parte do Governo do Estado, porque não tem aplicado os recursos públicos adequadamente, de acordo com os marcos legais vigentes, e isso é um problema sério. Em 2015, o governo estadual executou em torno de 5% do orçamento para a merenda escolar na rede pública estadual, quando este índice deveria ser de mais de 25%. Além disso, o Governo Federal repassou para o Estado mais de 3 bilhões de reais para serem gastos na Educação em 2015, sendo que só foram aplicados 2 bilhões”, observou. “Nós passamos três anos aqui e acabamos nos envolvendo com os professores. Quando tinha os DT [Diretores de Turma, atividade de apoio pedagógico prejudicada pela portaria], eles perguntavam se o aluno tava com algum problema em casa, se a gente tinha alguma dúvida em específico, era um acompanhamento especial. Antes da greve, estávamos com disciplinas sem professores, por conta da demissão dos temporários. Se aqui na Adauto, que é escola-modelo, estava assim, imagine na periferia”, desabafou Juliana.
#Ocupaescola: há um líder dentro de você!
Raniele Cardoso, aluna do 3º ano da Escola de Ensino Fundamental e Médio Dr. César Cals, vem sentindo na pele o drama da diminuição de professores na rede pública estadual cearense. “Por exemplo, a gente não tem mais professor de matemática I e II, agora é o mesmo professor dando as cinco aulas por semana, porque o outro, que era temporário, foi demitido. Aí, fica cansativo, tanto para o professor como pra gente. Fica uma coisa meio parada e a gente quer quebrar essa coisa, queremos aulas mais dinâmicas”, propôs. A escola César Cals, situada no bairro Farias Brito, contíguo ao Centro da capital cearense, foi a 12º escola no Ceará a passar pelo processo de ocupação pelos alunos. Ex-aluna da escola César Cals, Rafaela Batista, 18 anos, hoje integrante do Levante Popular da Juventude e uma das líderes da ocupação, contou que os problemas enfrentados pelos alunos não se restringiam apenas à falta de professores. “Em 2015, começou esse problema dos livros didáticos não virem completos. Por exemplo, eu terminei meu terceiro ano sem receber os livros de Biologia.
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eu terminei meu terceiro ano sem receber os livros de Biologia. No segundo ano, o problema foi além, teve gente que não recebeu os de Física e Matemática
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César Cals
Rafaela Bezerra [imagem - 202B]
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No segundo ano, o problema foi além, teve gente que não recebeu os de Física e Matemática. Não temos mais o teto da quadra porque desabou, e a gente foi vendo que tinha muito mais problemas”, explicou a estudante que, apesar de morar longe da instituição, voltou à sua antiga escola para colaborar com o processo de ocupação. Ilan César, 18 anos, morador da região onde fica a escola, até 2015 ainda estudava na César Cals e, agora, retornou para lutar pelo que acredita. “Os professores trouxeram comida, outro pessoal trouxe colchonetes, cobertores, essas coisas. No início, a relação com a coordenação da escola foi meio conflituosa, mas a gente passou por uma negociação e, depois disso, conseguiu entrar em harmonia. Aí, então, o apoio, tanto da coordenação como dos professores, foi aumentando e, na medida em que as atividades foram ocorrendo, veio também o apoio de outros alunos, dos nossos pais. Quando eu estudava aqui, na César Cals, fiz parte do projeto Jovens de Futuro. No segundo ano, inclusive, fui a São Paulo representar o colégio em uma feira de ciências e isso agora acabou. É triste porque era um programa que tava dando resultado, tanto na parte de robótica quanto química, a gente tava ganhando premiações e tudo, mas o investimento acabou”, lamentou. O jovem integra o Levante Popular da Juventude, coletivo nacional de organização popular que encabeça várias lutas populares no Brasil. Sobre os frutos não tão perceptíveis que um processo como esse gera, ele disse: “Essa ocupação não vai servir apenas para as melhorias do colégio, mas vai abrir os olhos de muitas pessoas. É legal porque tem alguns alunos que já têm um espírito de luta e você vê que eles estão adquirindo experiência, que viria muito mais devagar se fosse apenas com
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a parte teórica da coisa. Teve um cineclube, na semana passada, em que um professor nos disse que a ocupação pode acabar, mas tem que continuar esse espírito, para os alunos terem cada vez mais voz”. Ermanno Allegri é sacerdote católico e diretor da Agência de Informação Frei Tito para América Latina (Adital). Para conhecer mais de perto e dar apoio ao movimento de ocupação dos estudantes visitou seis escolas ocupadas. Para ele, a construção madura de toda uma rede de solidariedade foi o que mais chamou atenção. “Ao ‘não pode isso, não pode aquilo’ típico dos diretores das escolas, eles exigiam: ‘falem direto conosco. Nós sabemos como dirimir dificuldades e encaminhar as demandas’. Já em relação à qualidade do ensino, ficou claro que querem ‘um que ensine para a vida’. Disseram: ‘somos preparados apenas para uma profissão, mas temos uma vida. É para isso que queremos que o esquema da escola mude, para que saiamos daqui com uma formação social mais humana´. Observei também o fato deles terem que se relacionar com alunos que não conheciam, o que é um grande exercício democrático. É como se aprendessem: ‘Bom, eu devo escutar quando o outro fala’. É fundamental apoiar esse movimento, pois é o início de uma militância. De lá, vão sair líderes que terão uma visão diferente”, acredita Allegri. Raniele é prova viva do que observou Ilan. A ocupação foi sua primeira experiência em um movimento social organizado.“Eu vejo que essa experiência faz muita diferença na vida pessoal mesmo. A gente começa a pensar no coletivo, começa a ter mais responsabilidade, aprende a lutar por uma causa. No início do ano, por exemplo, eu mal falava na minha sala. Hoje, eu estou aqui, na coordenação da ocupação, tenho que falar com pessoas, organizar coisas, é um processo muito grande de mudança”, sublinhou. E a expectativa é se fazer ouvir cada vez mais longe. #Ocupaescola: há um líder dentro de você!
Eu vejo que essa experiência faz muita diferença na vida pessoal mesmo “É importante que esse ponto de vista positivo apresentado pelos alunos chegue a um número maior de pessoas, de forma que a imagem do movimento repercuta junto à sociedade de forma positiva e não distorcida pela mídia ou quem quer que seja”, defendeu.
Ocupação do Colégio César Cals [imagem - 202B]
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A disputa de poder gerou ações astuciosas. “Daí a importância da nossa página do Facebook. Quando falam de ocupação, eles dizem que nós vamos quebrar tudo, ou vamos passar o dia inteiro aqui sentados, sem fazer nada. E lá a gente mostra o contrário, o pessoal cuidando, que temos uma estrutura, não é o pessoal dormindo no chão”, registrou. Ilan também chama atenção para a desinformação que pode envolver um processo como esse: “Há muito aquele senso comum, tipo a gente vai falar da ocupação, eles dizem que a gente vai quebrar tudo. Isso quando eles não dizem que tem coisa da Dilma [presidenta afastada Dilma Rousseff, do PT] no meio (risos)”. Como na Escola Adauto Bezerra, na César Cals, os alunos ocupantes tentam se organizar em comissões – central, da cozinha, da limpeza, da segurança – sempre revezando com o intuito de fazer valer a descentralização do movimento. A ordem é que o maior número de estudantes se aproprie da responsabilidade pelas ações. E que esse exercício sirva para a cobrança de outras pautas nunca antendidas, como o enquadramento da escola nas normas de acessibilidade e as urgentes reformas na infraestrutura, como na quadra, que está descoberta, sem falar na visível e arriscada precariedade dos banheiros e sistemas elétricos. [texto Benedito Teixeira]
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JUVENTUDES política multifacetada e sem hierarquia A professora e socióloga Maria Alda dos Santos é mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde atua como integrante do Laboratório das Juventudes (Lajus/UFC). Sobre o movimento de ocupação das escolas públicas estaduais no Ceará em 2016 e o protagonismo juvenil decorrido disso, Maria Alda vaticinou: “A expressão ‘protagonismo’ nos remete à ideia do ator social, que age com vistas à proposição de mudanças. Partindo da perspectiva dos jovens como tais atores, essas mudanças sociais podem ocorrer por meio da abertura ao diálogo e escuta com o Estado ou não, como no caso das ocupações”.
Maria Alda dos Santos [imagem 202B]
Para Maria Alda, o contexto de reivindicações que se espraiou pelas escolas brasileiras fez parte de um contexto mais amplo de autocompreensão desses jovens como sujeitos responsáveis pelas melhorias de que necessitam. “Esse movimento contestatório, a ocupação de suas escolas, é legítimo se compreendermos os jovens como sujeitos de direitos, tal como preconizado em leis, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Estatuto da Juventude, e não como problema social. Na condição de sujeitos de direitos e de cidadãos, portanto, é legítimo que os jovens reivindiquem do Estado melhores serviços de educação, cultura, saúde, etc. A ideia do protagonismo juvenil, nesse momento, assume um significado sociológico, político e, diria também, pedagógico”, afirmou. E, como movimento pedagógico, para além da obtenção da almejada e necessária pauta de reivindicações, mais importante, segundo Alda, seria observar o despertar desses jovens para um poder até então desconhecido dentro de si, seja individualmente, como cidadãos, ou coletivamente, como movimento estudantil. Essa “epifania” seria o que melhor caracterizou o movimento de ocupação das escolas, segundo a socióloga.
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Juventudes #Ocupaescola: : política multifacetada há um lídere sem dentro hierarquia de você!
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Em suma: esses jovens mostraram ao País um novo modo de fazer política, exigido pelas Jornadas de Junho. “Acredito que as reivindicações postas pelos professores e alunos repercutiram positivamente. Exemplo disto foi São Paulo, com a revogação do decreto que instituía o plano de reorganização escolar e o fechamento de escolas. De certo modo, gestou-se aí uma nova cultura política, que reconheceu esses jovens não somente como beneficiários de políticas sociais, mas como interlocutores válidos, com direito a voz e ao exercício da cidadania, algo propugnado pela própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)”, enfatizou.
“Os movimentos organizados pelos coletivos juvenis podem ser entendidos como uma forma de educação política, na qual os alunos envolvidos têm a possibilidade de experimentarem participação política a partir de decisões que repercutem diretamente em suas vidas. A educação não ocorre somente em espaços formais, como as salas de aula. Enquanto processo de socialização, ela se dá também em espaços não formais de educação, como esses coletivos, partidos políticos, organizações não governamentais, associações comunitárias, conselhos, igrejas, ou mesmo em escolas ocupadas”, assinalou a especialista.
Apesar da semente de esperança plantada, a especialista chamou atenção sobre a importância do papel da sociedade organizada. “Para que o movimento estudantil nas escolas ganhasse mais força foi necessário o envolvimento de diferentes sujeitos sociais: as famílias dos jovens, professores, gestores, a universidade, enfim, pessoas e profissionais que conhecem de perto a realidade dessas escolas e que acreditam que ela pode ser melhorada”, ilustrou.
Além do empoderamento juvenil, chamou a atenção da socióloga o caráter difuso e horizontal do movimento de ocupação dessas escolas, característica também observada nas manifestações de junho de 2013, no Brasil. “As ocupações, iniciadas em fins de 2015, assemelham-se, de certo modo, às chamadas Jornadas de Junho, de 2013, na qual mais de dois milhões de pessoas foram às ruas protestar contra a qualidade da vida urbana e a insuficiente oferta de serviços públicos, como transporte, saúde e educação. Os dois momentos assemelham-se no sentido de que são formas de manifestação que têm como cenário o contexto urbano, mas também seu caráter multifacetado, ou seja, a falta de uma hierarquia rígida. Não se trata necessariamente de um movimento político e ideológico liderado por um representante, como ocorria na década de 1960. Penso que os jovens estão dando seu recado de forma singular em relação às gerações que os antecederam”, destacou. ESTICADORES DE HORIZONTES
“É grave quando um aluno de escola pública, ou mesmo de universidade, volta cedo pra casa pela falta de professores ou de alimentação adequada. Isso traz consequências negativas para suas trajetórias escolares. Devemos reconhecer que, na sociedade brasileira, houve avanços significativos nos últimos 13 anos, com ampliação da oferta da educação básica, tecnológica e superior; a descentralização do ensino, com a criação de institutos e universidades federais em municípios do interior do país; além da criação de mecanismos de acesso e permanência das crianças, adolescentes e jovens pobres nos sistemas de ensino. Em âmbito estadual, no Ceará, é válido citar a criação das escolas de ensino profissionalizante, a partir de 2008”, destacou Maria Alda.
No entanto, ela adverte, ainda são muitos os desafios no que diz respeito à efetivação de uma educação pública de qualidade. “Devemos assumir uma postura de cobrança enquanto cidadãos. Afinal, os gastos com todo e qualquer serviço público são mantidos com o nosso dinheiro. O Estado não está fazendo nenhum favor, mas cumprindo uma obrigação”, concluiu. [texto - Benedito Teixeira]
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“Veremos que, dentre as características observadas no movimento dos estudantes secundaristas, estão a participação e intervenção ativas, em face a contextos socioculturais e históricos adversos; a autonomização, visando a um agir individual e/ou coletivo; a busca por cidadania, no sentido do reconhecimento dos direitos e deveres protegidos por lei; e o empoderamento, ou seja, ‘a criação de poder nos sem poder’, no sentido de ativar, desenvolver e dinamizar a potencialidade criativa do sujeito, conforme definições do educador Paulo Freire e do teólogo Leonardo Boff”, conceituou Alda.
Joviniano Júnior [imagem 202B]
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A lógica revolucionária do Pirambu Digital
D E HORIZONTES S E R O D A C I T ES Pirambu é um bairro da periferia de Fortaleza que se redesenha na medida em que o olhar esquadrinha os arredores de suas indivisíveis casas de porta e janela. Nele, não há dentro ou fora. O sumo da vida se dá ali no meio, no alarido das ruas, no hábito mesmo de ventilar-se nas calçadas, no entrançado de gente entregue ao mormaço do chão seco, entre um frenético e infindo ir e vir. Quem passa ao largo, contornando a grande área litorânea de 586,1 km², com cerca de 400 mil habitantes, toma-lhe o pulso pela moldura original: uma praia branca de ondas altas e espumantes, superexposta ao sol, cujo espelho d´água se propaga em luz, banhando tal qual uma esponja leitosa cada muro baixo daquele território superpovoado. Eis o tecido ósseo do “peixe-roncador” - tradução do termo tupi-guarani que dá nome ao lugar -, sobre o qual se viu crescer, como escama protetora recém-incorporada à sua derme, a chamada Vila do Mar, um projeto de urbanização do litoral oeste trazido à tona em 2012.
TRABALHO
TRABALHO
É lá, com vista frontal para a orla verdejante, que o engenheiro de produção e técnico em Informática, Joviniano Júnior, 33, resolveu comprar sua primeira casa própria, mais uma de porta e janela, cujos contornos vinham sendo erguidos na imaginação desde o dia em que, há exatos dez anos, se viu instigado a abrir a janela virtual do Pirambu Digital, uma cooperativa formada por jovens do bairro que, como ele, tiveram a oportunidade de, ali mesmo, no território de origem, participar de uma seleção inédita para ingressar no curso técnico em Informática do então CEFET, hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). ESTICADORES DE HORIZONTES
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Corria o ano de 2004 e aquela seria uma arrojada estratégia de inclusão social e digital costurada pelo então diretor da instituição, professor-doutor Mauro Oliveira, que, a partir de uma parceria firmada com o Movimento Emaús, instituição de respeitada atuação beneficente no local, convenceu diretores da LG Eletronics Brasil a financiar a criação de um projeto piloto de formação técnica especialmente voltada a estudantes egressos de escolas públicas e moradores da então favela de maior densidade demográfica do Brasil.
o que ele criou, como educador vocacionado e apaixonado que é até hoje, foi uma espécie de sistema de cotas antecipado Jogada de mestre. Ao determinar que as inscrições para a seleção daquela nova turma não se dariam no CEFET, como de praxe, a fim de, ao contrário, serem realizadas no próprio Pirambu, bairro historicamente estigmatizado pela pobreza e marginalidade até então reinantes, candidatos de classe média e alta que a priori se interessariam por desenvolvimento de software e conectividade simplesmente não se inscreveram, sobrando a maior parte das vagas para o público-alvo prioritário. “Ora, como uma escola pública que é, o CEFET, hoje IFCE, não poderia direcionar ou restringir a seleção. Assim, a mudança do local das provas foi a mágica inventada pelo Mauro para que realmente os estudantes pobres pudessem acessar um ensino de qualidade, que de outra forma não conseguiriam, já que a maioria vem de escola pública, onde o ensino deixa muito a desejar em relação à escola privada. Ou seja, o que ele criou, como educador vocacionado e apaixonado que é até hoje, foi uma espécie de sistema de cotas antecipado e, graças a isso, com muito esforço, a maioria dos inscritos pôde, enfim, sair dali com um diploma e uma expertise reconhecida e disputada pelo mercado de trabalho”, recorda Joviniano.
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Xeque-mate que se converteu em outro. Concluída a formação, o grupo de jovens técnicos em Informática foi desafiado a voltar para o início do jogo. “Logo depois da festa de formatura, novamente o professor Mauro provocou: e por que não aplicar no próprio Pirambu a gama de conhecimentos adquiridos no CEFET, de forma que fosse possível gerar renda pra gente e ainda desenvolver projetos sociais de efeito multiplicador no bairro, devolvendo pra comunidade o que havíamos aprendido? Bom, a ideia era maravilhosa, mas não tínhamos a menor ideia de como realizar algo assim. Éramos muito imaturos e também sem capital algum. Mas de alguma forma ele convenceu alguns de nós - e a mim, especialmente. Foi quando decidimos abrir então uma cooperativa, com o intuito de tirar dali um sustento e também ajudar as pessoas do entorno. Começou ali a maior e mais gratificante aventura da minha vida”, riu-se. Por decisão de uma maioria quixotesca, em 2006 Joviniano se tornou o primeiro presidente da cooperativa apadrinhada pelo CEFET e que, logo de arranque, passou a ter sede fixa: um prédio na rua Nossa Senhora das Graças cedido pelo Movimento Emaús, onde até hoje funciona o Pirambu Digital. “Não havia um computador, uma cadeira sequer. Foi quando o Mauro começou a levar a gente debaixo do braço pra vários lugares, a fim de angariar recursos e fechar contratos junto a empresários e amigos. Tivemos uma doação inicial de dez computadores, lembro que o primeiro contrato foi com a Secrel, mas chegamos a ficar meses sem salário no início. Todo mundo formado e os outros professores do CEFET buzinando no ouvido que a gente deveria ir pro mercado, que aquilo era um delírio, que não ia dar em nada. Dos 44 iniciais, menos de 20 ficaram na cooperativa. Mas os que ficaram deram o sangue, queriam, mais do que ganhar, devolver ao Pirambu o benefício que receberam”, sustenta. A lógica revolucionária do Pirambu Digital
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Sua história é prova disso. Antes de pegar a bicicleta para se inscrever no processo seletivo que o CEFET levaria ao Pirambu, sem sequer saber ao certo o que era informática, Joviniano fez entrega de quentinhas de porta em porta, vendeu “quiboa” e dindim em campos de várzea e até improvisou uma chocadeira em casa com luz incandescente, sonhando em lucrar com ovos de codorna.Veio da mãe, que sustentou praticamente sozinha a família de três filhos, justo com aulas de reforço escolar junto a crianças do bairro, o gosto pelos estudos. Primeiro, numa escola particular da redondeza, onde foi tão bom aluno ao longo de todo o primário que acabou bolsista semi-integral. Depois, dada a crescente dificuldade financeira, ingressou em escola pública e lá finalizou o ensino médio. Assim mesmo, ao revés, segurou cada oportunidade, estudando por conta própria. Dos cursos do Senai para Menor Aprendiz saiu para o primeiro emprego de carteira assinada na Saga, impressionando como mecânico dos mais polivalentes. Também soube aproveitar cada noite em claro e fim de semana dedicado aos cursinhos gratuitos de pré-vestibular, de onde saiu para cursar Matemática na Universidade Estadual do Ceará (Uece) e, já em 2007, Engenharia de Produção, um dos mais disputados cursos de nível superior da Universidade Federal do Ceará (UFC).
TRABALHO
Já entre 2006 e 2007, o Pirambu Digital chegou a reunir em suas salas tornadas laboratórios algo em torno de 600 pessoas/dia. Isso graças a um faturamento que, à época, alcançaria a marca de R$ 300 mil, dados os contratos de prestação de serviços diversos na área de Tecnologia da Informação
Desejo que ganhou forma na esteira da mútua cooperação. Já entre 2006 e 2007, o Pirambu Digital chegou a reunir em suas salas tornadas laboratórios algo em torno de 600 pessoas-dia. Isso graças a um faturamento que, à época, alcançaria a marca de R$ 300 mil, dados os contratos de prestação de serviços diversos na área de Tecnologia da Informação (TI) que iam sendo fechados a fim de, não só gerar renda entre os cooperados, como permitir investimento próprio em mais e mais projetos sociais de caráter formativo no bairro, sempre com foco na inclusão digital. Formação em via de mão dupla: quem passava por um curso gratuito de iniciação à informática no Pirambu Digital pagaria o benefício com algum trabalho social. Definida a regra, multiplicaram-se os benefícios: aulas de música, capoeira, teatro, dança, línguas, reforço escolar. “Chegamos a ter psicóloga atendendo mães. Muita gente aprendeu a ler e a escrever ali. Isso, em um bairro pobre e com poucas oportunidades de estudo e trabalho como o Pirambu, onde, na época, uma grande maioria mal sabia o que era computador e internet, é muito”, assegura Joviniano.
Joviniano Júnior [imagem 202B]
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Panorâmica do Pirambu [imagem 202B]
Não satisfeito, vem cursando um mestrado profissionalizante em Engenharia Aeronáutica, fruto de parceria do ITA com a UFC e o Governo do Estado do Ceará Em 2008, passou adiante o bastão do Pirambu Digital, mas sem se desligar das decisões da diretoria da cooperativa que, àquela altura, já contava com infraestrutura, dinheiro em caixa e mais de 60 profissionais envolvidos, entre cooperados, estagiários e bolsistas. O acúmulo de desafios e experiências não demorou a gerar outras conquistas. Há quatro anos, Joviniano trabalha como especialista de planejamento logístico na empresa local Solar, a segunda maior fabricante do Sistema Coca-Cola no Brasil e uma das 15 maiores do mundo. Não satisfeito, vem cursando um mestrado profissionalizante em Engenharia Aeronáutica, fruto de parceria do ITA com a UFC e o Governo do Estado do Ceará.
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Ciente do valor de cada avanço, Joviniano credencia: o Pirambu Digital é a sua maior experiência profissional e pessoal. “Vejo como minha base, um filho, um embrião que ajudei a gestar e hoje é case nacional de sucesso. Por causa do Pirambu Digital viajei, fiz contatos preciosos e, principalmente, perdi o medo de estudar, ao mesmo tempo em que ampliei minha visão de mundo. Quando se é pobre e quase sem estudo, vestibular é algo distante porque você não sabe nem como se manter até lá. Além disso, acha pouco provável conseguir um emprego desafiador, criativo, promissor. Eu sempre quis fazer Engenharia, mas meus concorrentes eram dos colégios Farias Brito, Sete de Setembro... Então, tive que ter coragem para enfrentar inclusive o preconceito. Porque o primeiro tapa veio de lá. Quando passei na UFC, só eu e uma menina éramos negros, só eu era morador de periferia e essa graduação figurava, na época, como o segundo curso de PIB per capta mais alto da universidade. Em primeiro lugar vinha a Medicina, onde estudavam os filhos dos médicos. E em segundo, a Engenharia de Produção, dos filhos dos empresários, já que o curso é voltado pra gestão industrial. Então, imagina como me olhavam torto quando eu chegava todo suado de bicicleta vindo debaixo do sol quente lá do Pirambu e eles desciam de carrões com ar-condicionado”, rememora. A lógica revolucionária do Pirambu Digital
Para as aulas do mestrado, o aluno do ITA já pode chegar de moto ou carro, ambos comprados com o seu salário. Também já está devidamente realizado o sonho antigo de comprar a casa própria da mãe, no mesmo Pirambu onde ele comprou a sua. Empreender para ajudar pessoas em desvantagem socioeconômica é outro desafio que ainda lhe ronda o pensamento lógico. E, claro, é no bairro de origem que ele gostaria de poder investir, embora já tenha adquirido maturidade o bastante para intuir o quão delicada é essa equação. “Ninguém nunca gostou de ser o coitadinho no Pirambu Digital, mas as nossas tentativas de replicar a ideia nunca deram certo porque o mercado é voraz e não temos nenhuma política de fomento. Tem que ter incentivo governamental, incentivo fiscal. Ora, se há incentivos de toda ordem para grandes empresas funcionarem no Ceará, por que não investir em algo como um Pirambu Digital em cada bairro? O custo de uma iniciativa como essa não ultrapassa R$ 30 mil. O que é 30 mil pra uma empresa, pro governo? E as universidades? Quando vão, de fato, universalizar o conhecimento? No Brasil, estuda na universidade pública quem tem grana. O pobre tem que trabalhar pra pagar os estudos.Você passa em qualquer periferia e tá lá aquele jovem sem fazer nada. Aquele cara pode ser um gênio”, critica, visionário. [texto - Ethel de Paula]
TRABALHO
Militante dos direitos humanos, o advogado da Arquidiocese de Fortaleza, Airton Barreto, é remanescente do Movimento Emaús, uma iniciativa não governamental de ação coletiva solidária e militância por causas sociais que viu de perto o Pirambu Digital ganhar respeitabilidade e se tornar modelo no bairro, enquanto o poder público sequer chegava para apoiar aquilo que, comprovadamente, gerava inclusão social. “Não se respeita o que já existe, as ONGs que estão segurando a perna da mesa para ela não cair. Muitas vezes o poder público chega de forma tão gigantesca que a gente se encabula. Eu admiro os Cucas, deviam fazer até mais. Só que esses equipamentos não servem a quem mais precisa. O poder público precisa servir primeiro aos que mais sofrem. Quantos milhões gastaram no Cuca? Deviam antes perguntar: o que vocês precisam pra fazer melhor o que já fazem?”, ensina.
Panorâmica do Pirambu [imagem 202B]
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O Pirambu que já foi Campo do Urubu, um depositário de retirantes miseráveis tangidos do interior para a capital pela funesta seca de 1932, ainda bate as asas por entre as memórias de infância do analista de sistemas Marcos Devaner, 31. É a avó quem, até hoje, conta-lhe sobre o trabalho não assalariado da família em fazendas do Quixadá, arando a terra em troca de plantações de subsistência que, como todas as outras, acabaram arrasadas pela estiagem histórica, deflagrando, assim, uma fuga em massa para Fortaleza, lonjura onde os sem-eira-nem-beira só encontraram guarida justo naquele bairro paupérrimo, igualmente esquecido, com suas ruas ainda cobertas de areia. Que o passado vire pó. Debatendo-se contra qualquer herança maldita, a geração que nasce e cresce no Pirambu do novo milênio já tem melhores histórias e reminiscências para contar. Testemunha e protagonista de algumas delas, Marcos prefere lembrar o dia em que concordou em integrar a primeira equipe de cooperados do Pirambu Digital, a fim de cuidar detidamente do programa de iniciação em informática de jovens do bairro.
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Marcos Devaner [imagem 202B]
A humanização da tecnologia
em pleno 2006, o Pirambu tinha meio computador por quarteirão. Ou seja, era um a cada dois quarteirões. E, de internet, mal se ouvia falar Sinal dos tempos. O trabalho de sensibilização e a conquista da confiança de parceiros e apoiadores junto ao Pirambu Digital trouxeram a Fortalnet para o pedaço. E foi graças à cessão de uma antena fincada sobre a sede da cooperativa que a internet aos poucos pôde ser acessada e compartilhada entre vizinhos mais próximos. Nascia, assim, o Condomínio Digital que, para funcionar a contento, também dependia da doação de computadores obsoletos que passaram a ser reciclados pelos próprios técnicos recém-formados para, enfim, serem doados em comodato à comunidade. Pelo pacote completo, todos se rateavam entre si e pagavam uma módica mensalidade, enquanto o contágio das primeiras noções de informática se propagava no entorno de modo gradual e sem maiores ônus. ESTICADORES DE HORIZONTES
Coordenador do projeto e-Jovem, desenvolvido no âmbito da Secretaria estadual de Educação, tendo como modelo o Pirambu Digital, Júlio Cavalcante,33, admite que um dos pontos frágeis da iniciativa é o acesso ainda restrito à internet entre jovens do ensino público. “Muitos ainda não têm acesso à rede em casa, só vão ter nas escolas mesmo. É certo que há projetos do Governo para prover banda larga, mas ainda não é para todos. E nessa área, se você não tem acesso à internet e computador em casa para praticar, só aquela prática que se tem no curso não é suficiente. Dou o conteúdo, mas o aluno não absorve toda a matéria. Por isso que alguns pesquisadores dizem que a inclusão digital e a internet são muito boas, mas podem aumentar ainda mais as desigualdades sociais. Se eu tenho internet, tenho acesso ao mundo e ao conhecimento. Se não tenho, vou ficar mais para trás. Por isso, a gente tenta manter as escolas abertas, deixar os meninos praticando, ter o professor sempre perto, a equipe de tutores para ministrar aulões nos municípios, tirar duvidas... mas é uma dificuldade ainda”, sublinha.
Integrante do Movimento Emaús, no Pirambu, Erivânia Queiroz é testemunha não só ocular, mas também ativa, do êxito do Pirambu Digital enquanto empreendimento que prometia - e veio a cumprir - gerar renda, empregabilidade, qualificação profissional e educação no próprio território. “Progredir economicamente sem virar as costas para as suas origens, as suas identidades, as suas referências territoriais e afetivas me parece o mais valioso capital desse empreendimento. E é por isso que nós gostaríamos de ver o Pirambu Digital se espalhar por outros bairros da cidade. São demandas e iniciativas assim, fortemente ligadas à vida comunitária, ao cotidiano de quem mora no território, que funcionam e geram, de fato, transformação social. De outra forma é paliativo, superficial, não toca o âmago das necessidades locais”, observou.
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Escalado para tocar o projeto Agente Digital, pôde ver de perto o quanto a formação poderia se desdobrar em inclusão social, caso as condições fossem dadas minimamente. “Fizemos uma pesquisa informal antes de desenvolver qualquer ação e descobrimos que, em pleno 2006, o Pirambu tinha meio computador por quarteirão. Ou seja, era um a cada dois quarteirões. E, de internet, mal se ouvia falar. Então, ao mesmo tempo em que formávamos os agentes digitais que, por sua vez, deveriam formar outras pessoas da comunidade, em contrapartida, percebemos que o acesso às novas tecnologias no nosso território era um desafio agregado. E, assim, tivemos que começar do zero a inclusão digital”, recupera.
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para cada hora de leitura, ganhava-se uma hora de internet grátis, isso atrelado à entrega de um resumo do que se leu O toma-lá-dá-cá do Pirambu Digital foi além: na esteira do projeto Bila (Biblioteca Integrada à Lan house), ler virou moeda de troca. “Disponibilizamos computadores para a comunidade na própria sede da cooperativa e organizamos, também por meio de doações, uma biblioteca no local. Assim, para cada hora de leitura, ganhava-se uma hora de internet grátis, isso atrelado à entrega de um resumo do que se leu. Iniciativas como essa me marcaram muito porque desde criança eu gostava de estudar, embora minha família não tenha a cultura do estudo. Minha mãe, claro, sempre em dificuldade financeira, queria que eu tivesse um emprego de carteira assinada. Faculdade era luxo. Mas, depois que iniciei o curso técnico no CEFET e comecei a ensinar no Pirambu Digital, não quis outra vida. Achava bonito aquela educação dos professores, das pessoas que trabalhavam com a gente. E queria ser igual. Hoje, não sei se consegui, mas tenho orgulho de ser um dos poucos da minha família com curso superior e o único com pós-graduação”, regozija-se o analista de sistemas que pagou a própria formação em uma universidade particular e, atualmente, faz mestrado em Computação na Universidade Estadual do Ceará (UECE), além de lecionar na graduação do Curso de Sistema de Informação da Faculdade Lourenço Filho.
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Para Marcos, o desligamento do Pirambu Digital com vistas a mais estudo e outros trabalhos jamais representou uma quebra dos valores apreendidos por lá. Ao contrário. É justo com o amigo da primeira turma de formandos do CEFET-Pirambu, Bruno Queiroz, 30, que ele vem desenvolvendo há seis anos um projeto de acessibilidade financiado pela empresa Dell Brasil em parceria com a UECE. Nada menos do que uma plataforma de ensino à distância adaptada para pessoas com deficiência. “Desenvolvemos uma série de recursos que atende a deficientes físicos, surdos, pessoas com baixa visão, e agora também cegos. Um trabalho incrível. Dei aulas pra surdos à distância, algumas vezes também presencial e, como analista de negócios, sou responsável pelo produto e atuo paralelamente como tutor de uma turma especial que a Dell montou no Rio Grande do Sul, justamente para inserir no mercado de trabalho pessoas com deficiência”, comemora o mestrando que já agregou a experiência ao projeto de pesquisa final, justamente na linha de sistemas acessíveis. Ex-diretor comercial do Pirambu Digital, Bruno Queiroz, autor do projeto, chegou à Dell com uma boa ideia debaixo do braço e todo o know-how adquirido na cooperativa para bater à porta dos clientes com a cara e a coragem. “Na época, o Censo de 2010 apontava: o Brasil tinha 45 milhões de deficientes e, grande parte, estava fora do mercado de trabalho porque não tinha qualificação. A Dell tinha que contratar deficientes, por causa da Lei de Cotas, assim como outras empresas, então, era um problema de todo o mercado. Foi quando passamos a dar cursos de TI para pessoas com deficiência em todo o Brasil. Assim, a empresa resolveu seu problema de contratação e beneficiou a comunidade em si, provocando um impacto social. Hoje, somente em Fortaleza, temos 50 pessoas com deficiência aqui no time, funcionários da Dell. Elas testam toda a tecnologia que a gente desenvolve. A humanização da tecnologia
O insight do hoje também dono da empresa BSQ Inovação Tecnológica promete chegar mais longe, tanto assim que já ganhou a adesão do Governo do Estado, responsável pela formação em curso de 300 pessoas com deficiência triadas entre bairros da periferia de Fortaleza, a começar pelo Vicente Pinzón. “Fico feliz porque a base de tudo, minha escola, é o Pirambu Digital. Quando entrei na cooperativa, a ficha caiu: o que eu quero fazer da minha vida é criar tecnologias que causem impacto na vida das pessoas, que gerem transformação social. Isso, agora, com uma abrangência cada vez maior, no Brasil e até fora do Brasil. O Pirambu Digital definiu a minha carreira e meus valores. A gente poderia tá programando, sendo analista, mas eu sonhei e muita gente sonhou junto comigo que a gente era capaz de fazer mais do que isso: gerar conhecimento para ajudar as pessoas.
Bruno Queiroz [imagem 202B]
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eu sonhei e muita gente sonhou junto comigo que a gente era capaz de fazer mais do que isso: gerar conhecimento para ajudar as pessoas Francisco Gildenis [imagem 202B]
Sei o que tô fazendo nesse mundo e com quem quero fazer, isso é impagável”, sublinha Bruno, um dos poucos ex-alunos de classe média que ingressou no curso de Informática do CEFET-Pirambu sem medo de estudar, trabalhar ou conviver com os da periferia. Eis a potência da amizade, moeda corrente e das mais valiosas no Pirambu Digital desde sua criação, em 2006. Tanto assim que um conselho consultivo foi criado só para que ex-cooperados continuem por perto, pensando e atuando juntos, de acordo com a disponibilidade de tempo de cada um. O segundo diretor-presidente da cooperativa, Francisco Gildenis, 32, é um deles. Nostálgico, não gosta sequer de precisar quando saiu do negócio inaugural sonhado entre amigos. Para ele, a experiência ainda se propaga, na esteira mesmo dos laços de afeto e do networking cultivados desde aquele início. Foi por comprovada eficiência aliada a uma franca empatia, que a atual direção da lusitana Additive Tecnologia o contratou como diretor de operações e representante regional da multinacional no Ceará. Confiança gerada a cada encontro na Câmara de Comércio Brasil-Portugal, onde o mais entusiasta orador, então a serviço do projeto Pirambu Digital, “vendia seu peixe”como ninguém ali, alheio a paletós e gravatas ou pompas afins.
TRABALHO
E não são subalocadas. Porque o que vemos por aí normalmente são surdos formados em tecnologia, administração etc. sendo empacotadores em mercantil. Não é o nosso caso. As pessoas aqui geram conhecimento, tecnologia. A Dell acabou criando um modelo de produção de empregabilidade que respeita o potencial das pessoas com deficiência”, observa Bruno.
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Hoje, o filho do bombeiro hidráulico que estudou por toda a vida em escola pública e ainda faz questão de morar no Pirambu está por trás da principal fornecedora de TI para a Arena Castelão, em Fortaleza, assim como para a Arena Independência, em Minas Gerais, só para ficar nos mais recentes contratos fechados por ele, que vem sendo sondado pelos donos da multinacional para virar sócio do empreendimento. No bairro de origem, dirige moto, carro e anda a pé tranquilamente, enquanto no coração da Aldeota sente certo receio em deixar o veículo recém-adquirido no estacionamento privado próximo ao arranha-céu onde trabalha, por conta dos incontáveis assaltos oficialmente contabilizados. Dia desses, não teve como evitar certo sentimento de satisfação consigo próprio ao entrar em um restaurante francês, no mais caro metro quadrado de Fortaleza, justamente na companhia da namorada e de amigos franceses feitos durante o ano em que estagiou no país como cooperado do Pirambu Digital. “Era um desses lugares gourmets, caríssimos, com duas mesas apenas. Minha amiga francesa é que descobriu e queria experimentar. Fomos. Mas foi desconcertante conviver por aquelas poucas horas com o casal da mesa ao lado, visivelmente bem-nascido, abastado. Durante toda a noite, eles não trocaram uma só palavra. E olhavam perplexos pra gente, que se divertia em diversas línguas, sem parar de conversar. Essa é a conectividade que não se aprende na escola e que nenhuma empresa tem pra vender. Essa eu trago do Pirambu Digital e é com ela que quero empreender e viver”, suspirou. [texto - Ethel de Paula]
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Cotidiano do Pirambu [imagem 202B]
A humanização da tecnologia | A invencibilidade A humanização do Pirambu da tecnologia Digital
A
INVENCIBILIDADE
DO PIRAMBU DIGITAL Aos 26 anos, um ex-goleiro de handball comanda hoje o Pirambu Digital, cooperativa que, em 2016, completa nada menos do que uma década de vitórias sequenciais no ranking do mercado de Tecnologia da Informação (TI), gerando não só emprego e renda para jovens moradores da periferia de Fortaleza, como também projetos sociais voltados à inclusão digital. Fabrício Monte Mendes entrou para o time de cooperados do empreendimento coletivo mais ousado de que se tem notícia no Pirambu em 2008, ainda como voluntário. Nascido e criado no bairro historicamente desassistido e desprovido de ensino público de qualidade, queria ter acesso a cursos gratuitos de informática, tonar possível o sonho de uma graduação e, por conseguinte, garantir o próprio sustento, ao mesmo tempo em que viesse a multiplicar saberes e habilidades. ESTICADORES DE HORIZONTES
Jogou bem. Mesmo sem remuneração inicial, pôde fazer cursos à distância de iniciação e aperfeiçoamento em informática, custeados pelo Pirambu Digital; beneficiou-se com as bolsas de estudos que a Faculdade Lourenço Filho disponibilizou para a cooperativa, graduando-se em redes de computadores; e acabou contratado como prestador de serviços. Nesse ínterim, apaixonou-se pela gênese e os desdobramentos do projeto empreendedor que nasceu em berço acadêmico, acalentado pelo professor-doutor Mauro Oliveira, então diretor do antigo CEFET, hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). A astúcia do gestor, ele lembra, era uma só: trazer o “vestibular” do CEFET para dentro do Pirambu, de forma que a seleção para o curso técnico em Informática pudesse atrair os jovens moradores de baixa renda.
TRABALHO
Nascido e criado no bairro historicamente desassistido e desprovido de ensino público de qualidade, fabrício mendes queria ter acesso a cursos gratuitos de informática
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Assim foi feito. E em meio aos primeiros grupos de estudantes selecionados estava o atleta que trocaria definitivamente as quadras pelas janelas virtuais das redes de computadores. Fabrício não foi testemunha ocular do passo seguinte, mais um ponto fora da curva proposto pelo professor Mauro Oliveira: a própria criação do Pirambu Digital, utopia possível graças ao financiamento costurado via CEFET junto à LG Eletronics e ainda ao apoio incondicional do Movimento Emaús, que já desenvolvia projetos sociais no Pirambu e prontamente cedeu um de seus prédios para sediar a cooperativa.
Qual a ideia original que não podia se perder? Faturar a contento para ter condições de investir cada vez mais em projetos sociais voltados à comunidade Mas coube a ele, já como diretor-presidente eleito em 2013, evitar que todos os esforços e afetos até então investidos ali sucumbissem aos altos e baixos de uma economia em crise. “Qual a ideia original que não podia se perder? Faturar a contento para ter condições de investir cada vez mais em projetos sociais voltados à comunidade. E de onde vinham os recursos? Basicamente do Polo de Desenvolvimento de Softwares, o Podes, um de nossos quatro núcleos de atuação, carro-chefe da cooperativa. A gente fazia muito software personalizado pras pequenas e médias empresas. Ou seja, um sisteminha de cadastro de cliente, outro de controle de estoque e, assim, ia conseguindo manter uma margem boa, para pagar os programadores e, com o que sobrava, investir em projetos sociais. Qual o problema? A sazonalidade. Não havia cliente o ano inteiro. Daí que muitos cooperados saíram. E as perdas foram inevitáveis”, rememora.
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Fabrício Monte Mendes [imagem 202B]
Noves fora, quase nada. E uma rachadura extra, forjada pelo próprio mercado. “As empresas de TI contratavam a gente pra desenvolver softwares. E de lá mesmo vinham os convites pra que ficássemos, saindo do Pirambu Digital. Os melhores saíam e assim a roda começou a quebrar. Foi a primeira crise. E, com isso, veio a baixa de projetos sociais. Mas também uma espécie de revanche, um novo nicho: se queriam contratar os nossos cooperados, nós vamos transformar o problema numa oportunidade. Hoje é assim: mando um técnico de suporte e manutenção de computadores para o contratante e o recurso pago pelo serviço volta pro corpo dos cooperados, a fim de formar novos técnicos. A equação passou a funcionar também por conta de grandes contratos, como o do sistema de regulação do SUS de Minas Gerais, que por anos nos manteve. Atualmente, 25 técnicos do Pirambu Digital estão trabalhando terceirizados e assim acho que chegamos no nível de estabilidade desejado”, detalha o presidente. A invencibilidade do Pirambu Digital
o plano é trabalhar com helpdesk, espécie de call center especializado em atendimento na área de TI, compartilhando os custos com outras empresas
A julgar pelo faturamento recorde do ano passado, nada menos do que o primeiro milhão da história da cooperativa, a meta de otimização de serviços e recursos é perfeitamente factível. E já conta com novíssima estratégia traçada: segundo Fabrício, de 2016 em diante, o plano é trabalhar com helpdesk, espécie de call center especializado em atendimento na área de TI, compartilhando os custos com outras empresas. Prestes a finalizar uma pós-graduação em gestão empresarial pela Estácio-FIC, o ex-goleiro e atual presidente do Pirambu Digital tem tudo para ser o destaque do segundo tempo de um jogo que promete ser ganho de virada. [texto - Ethel de Paula]
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Marcosa, Fanor, Hapvida, Grupo Edson Queiroz, Fametro, Estrutec, Unidental. Na medida em que a lista de clientes do Pirambu Digital cresce, a tendência é que os projetos sociais cresçam junto, embora eles também tenham sofrido baixas vertiginosas. Atualmente, apenas dois estão em funcionamento: o curso de manutenção de computadores, que envolve dez alunos; e o curso de manutenção de informática básica para crianças, com outros dez alunos. Até o ano passado, o projeto Agente Digital, financiado com recursos captados via edital junto à Funcap, também concedeu bolsas no valor de R$ 100,00 para que pessoas da comunidade viessem a fazer cursos gratuitos na cooperativa. Para Fabrício, a ordem agora é fazer a formação e já encaminhar os técnicos recém-formados para os serviços gerados internamente, aumentando o corpo de cooperados ativos, uma minoria frente aos 260 nomes de todos os que já passaram por cargos, conselhos ou comissões.
Vila do Mar - Pirambu [imagem 202B]
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Uma inquietude juvenil com extremo poder de contágio. Conversar com o professor-doutor Mauro Oliveira, docente e membro do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Computação do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), é se deixar levar pela “mística” e “eletricidade” que, aos 62 anos, ele não só conserva, como permanece imprimindo sobre cada projeto educacional com o qual se envolve. Foi assim junto ao Pirambu Digital, quando, em 2006, animou a criação de uma cooperativa atípica naquele território de acentuada vulnerabilidade social, começando por desbancar convenções e regras vigentes no próprio ambiente acadêmico, a fim de trazer para o corpo discente da então Escola Técnica Federal do Ceará, hoje IFCE, alunos egressos do Pirambu, bairro da periferia de Fortaleza cercado de estigmas e fragilidades de toda ordem. Um educador decidido a enfrentar desafios e riscos em nome da democratização do ensino público e da criação de oportunidades para jovens em desvantagem so-
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cial inventarem seus próprios meios de sobrevivência, assim como modos alternativos de compartilhamento e multiplicação de saberes e fazeres. Capacitados nos cursos de desenvolvimento de software e conectividade de rede, os egressos do Pirambu Digital são hoje empresários do setor de Tecnologia da Informação (TI), seja no próprio bairro ou em empresas altamente gabaritadas com sede em Fortaleza. Coautor e entusiasta da façanha, o professor Mauro segue replicando o modelo cooperativo que bebe na fonte da economia solidária onde pisa. Por último, criou o Aracati Digital, além do espaço cultural A Barca, no mesmo município, espaços onde educação tecnológica, qualificação profissional e inclusão social continuam sendo, juntas e misturadas, as mais arrojadas tecnologias de ponta inventadas por ele para transformar vidas. Em entrevista à Adital-IHU, Mauro Oliveira revê a gênese do Pirambu Digital e faz uma análise crítica sobre os êxitos e as dificuldades de um projeto que, acredita, merecia ser modelo para políticas públicas e iniciativas privadas, mas ainda é exceção à regra. A “mística” do Pirambu Digital
ADITAL – E como se deu o desdobramento da formação para o empreendedorismo?
ADITAL – Onde o sr. localiza a gênese do Pirambu Digital? MAURO OLIVEIRA – Quando, em 1998, me tornei diretor do IFCE, então Escola Técnica. Nessa função, recebi uma visita de um coreano que era vice-presidente (ou presidente) da empresa LG no Brasil. Ele queria investir na área da informática e eu o convenci que podia apoiar a formação de alunos da periferia. Me questionaram também, claro: “professor, como é que o senhor vai pegar 120 jovens de escola pública, que não têm o mesmo nível que os demais, e conseguir que eles entrem aqui, passando na seleção?” No dia seguinte, chamei a minha equipe: “abre o concurso pra esse curso que a LG vai financiar”. Aí meus assessores: “mas, ô Mauro, a turma vai se inscrever e o pessoal do Pirambu não vai entrar”. “Tá, mas faz essa inscrição lá no Pirambu e não aqui na Escola Técnica”. Usei a técnica do judô: a força do inimigo. Resultado: dos mil inscritos, 990 eram do Pirambu, porque a turma da Aldeota, do Bairro de Fatima, do Benfica, do Montese não teve coragem de ir lá. ESTICADORES DE HORIZONTES
ADITAL – Quer dizer, quebrou-se um paradigma também no contexto do ensino público... MAURO – Sim, porque criamos um modelo, né? E sem precisar de consenso. Porque tem hora que você tem que tomar a decisão, chamar para si a responsabilidade e fazer. Bom, mas por que cooperativa? Simplesmente porque era mais fácil do que ser empresa e pagar benefício, funcionário... Um modelo que não teriam tributos a pagar. Não foi uma questão ideológica, mas pragmática. Daí criamos quatro unidades de geração de renda: o PODES (Polo de Desenvolvimento de Softwares); a TREVO (Treinamentos e Eventos); a FACIL (Fábrica de Computadores com Inteligência Local) e a NEGA (Negócios e Administração). Esse modelo, a posteriori, foi abandonado, porque não dá para eles competirem no mercado com desenvolvimento de software.
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Mauro Oliveira [imagem 202B]
MAURO - Nesse período eu fui ser Secretário de Telecomunicações, em Brasília, e cheguei em agosto de volta e eles iam se formar em outubro. Aí veio aquela coisa, não sei de onde, aquela ideia: “vem cá, vocês não queriam formar uma cooperativa? Vamos conversar sobre isso”. Não vinha com esse plano, não sei por que tive essa ideia naquela hora. Mas eles toparam. Então, a gente propôs ao Emaús que cedesse um espaço a eles, um lugar que era um depósito onde se acumulavam as doações de coisas que a sociedade de consumo descarta como lixo e com as quais o Emaús financia suas atividades, recuperando e vendendo o que parecia inútil. Bom, cederam aquele prédio na rua Nossa Senhora das Graças pra cooperativa. E a gente passou a construir tudo, foi uma loucura. Passei um ano da minha vida ali dentro, de manhã, de tarde e de noite com eles.
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Aquela era uma época romântica, eu ia atrás de clientes e serviços usando o meu nome. Mas tive que me afastar, fazer um pós-doutorado fora e eles reviram esse modelo, com mais autonomia. O fato é que os meninos hoje faturam de 80 a 100 mil reais por mês. E o mais importante: na época era raro vermos na periferia qualquer atividade ligada à Informática, isso era coisa para quem tinha grana. Então, de certa forma, a gente estava quebrando um paradigma ao implantar essa atividade econômica no bairro, porque permitia que as pessoas que nasceram lá e queriam ficar lá pudessem permanecer. Então, de certa forma, a gente tava quebrando um paradigma, porque o que acontece muito é a pessoa ter uma ascensão econômica e sair do bairro desprivilegiado onde mora. E aí você tem uma fuga de pessoas inteligentes, que formam opinião e são capazes de alterar o território. O Pirambu Digital vai na contramão dessa tendência. ADITAL – Esse seria, então, o diferencial do Pirambu Digital? MAURO - O principal diferencial, para mim, era este: gerar renda pra que pessoas que moram no Pirambu tivessem a opção de permanecer no Pirambu. Então, essa mobilidade social merece uma análise. Hoje, os 35 que estão lá são filhos do bairro, ok? Embora a cooperativa seja aberta, se tiver uma demanda de negócio, não quer saber se o cara é do bairro ou não. Isso porque é autossustentável, independente. Mas tentei replicar esse modelo no Titanzinho e não deu certo. Por quê? Porque quando fui tentar replicar lá, eu já não era mais o diretor da Escola Técnica, ou seja, não tinha mais o poder público e não tinha mais a LG como financiadora.
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O coordenador do projeto e-Jovem, iniciado em 2007 no âmbito do Governo do Estado, Júlio Cavalcante, teve que empreender um trabalho de convencimento junto ao empresariado local a fim de abrir caminho para jovens técnicos em informática formados através do poder público e remanescentes das periferias. “Era difícil uma empresa grande contratar uma pessoa sem experiência, só com o ensino médio. O mercado ainda é fechado, mas a gente vem conseguindo mudar isso graças a essas bolsas e a um trabalho de formiguinha junto à iniciativa privada, hoje bem mais aberta a reconhecer a qualidade do trabalho e a dedicação ímpar desses jovens. E, claro, com uma formação de um ano e mais seis meses de experiência, ficou mais fácil ter qualificação. O nó ainda está no interior, onde faltam grandes empresas que possam abraçar esses meninos. É difícil ter parceiros e apoio nos municípios, por isso estimulamos o empreendedorismo. Mas, por mais que nem todos consigam abrir sua cooperativa, essa formação é para o resto da vida. Ou seja, eles podem não abrir o próprio negócio de imediato, mas com o tempo, com mais maturidade, podem voltar a pensar nisso ou aplicar esse conhecimento na carreira que escolherem”, acredita.
Mas tentei replicar esse modelo no Titanzinho e não deu certo. Por quê? Porque quando fui tentar replicar lá, eu já não era mais o diretor da Escola Técnica, ou seja, não tinha mais o poder público e não tinha mais a LG como financiadora. Então, um projeto desse para dar certo tem que ter, primeiro: uma entidade local de credibilidade, no caso, o Emaús estava atuando fortemente no Pirambu
A “mística” do Pirambu Digital
Então, um projeto desse para dar certo tem que ter, primeiro: uma entidade local de credibilidade, no caso, o Emaús estava atuando fortemente no Pirambu. O Titanzinho tinha uma associação de moradores que fornecia até espaço físico, mas na hora de ter o suporte de professores, de pessoal, não havia a quem recorrer, quer dizer, faltou o poder público. Esse projeto, pra dar certo, tem que ser tutorado durante dois, três anos, que é o tempo que o pessoal adquire maturidade pra se autogerir. No Titanzinho, a gente começava um curso, aí vinha o Fortal e desmantelava tudo, porque o pessoal precisava de cinco reais pra segurar aquela corda. Ora, ali é um lugar paupérrimo. Então, é um modelo replicável sim, mas não é fácil. ADITAL - O que o Pirambu Digital aponta de mais importante para o poder publico, então? ESTICADORES DE HORIZONTES
Quem criou o Pirambu Digital foi uma mística, tem gente que nasce com essa mística, Acho que é uma coisa que está adormecida dentro da gente. Nenhum projeto social dá certo se essa mística não acontecer. E essa mística vem de um processo educativo que você desperta nas pessoas MAURO – Primeiro, tenho a convicção de que o poder público sério é indispensável para o Terceiro Setor sério ou para iniciativas autossustentáveis sérias. É impossível você ter uma experiência como o Pirambu Digital se não fosse o apoio do IFCE e do Emaús. Segunda coisa: a mística, a mística. Quem criou o Pirambu Digital foi uma mística, tem gente que nasce com essa mística, hoje o Fabrício (Monte Mendes, atual diretor-presidente do Pirambu Digital) tem essa mística. Acho que é uma coisa que está adormecida dentro da gente. Nenhum projeto social dá certo se essa mística não acontecer. E essa mística vem de um processo educativo que você desperta nas pessoas. Esses meninos foram despertados para essa mística que, no fundo, deveria ser a missão da escola pública. O objetivo da escola era: eu quero que esse menino seja feliz, o resto vem a reboque. Hoje é uma ensinadora ou repetidora de informação numa época em que a informação já está disponível na rede. No Estado é difícil essa mística, essa paixão chegar lá, por causa do processo político mesmo, da disputa pelo voto e pelo poder, intrínseca a ele. Fui secretário adjunto de Ciência e Tecnologia no primeiro mandato do Governo Cid (Cid Gomes, governador do Ceará por dois mandatos consecutivos, entre 2006 e 2014), durante um ano, e minha ideia era transformar isso numa política pública.
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Integrante do Movimento Emaús no Pirambu e moradora do bairro desde a década de 1960, Erivânia Queiroz não perde de vista o abismo que separa e distancia as periferias do poder público. “As políticas públicas que chegam aos bairros desassistidos são muitas vezes impostas de cima para baixo. É preciso que os gestores ouçam as pessoas, ouçam as demandas daquela juventude, conheçam suas aflições, suas histórias, para depois agir sobre aquela realidade. Mas não. Já chegam para o pobre com um prato de feijão com gorgulho e não perguntam, sequer, se ele come feijão. Olha, foi bom construir conjunto habitacional e retirar as famílias da orla? Foi, claro. Mas não prepararam ninguém para aquela mudança. Aí as mães chegam no Emaús pedindo dinheiro para o gás porque na casinha de beira de praia cozinhavam no chão e lá não podem fazer isso. Também não prepararam para pagar o papel da luz ou da água, que antes não havia. Então, são essas iniciativas, às vezes bem intencionadas, mas apressadas e pouco debatidas internamente, que precisam ser repensadas no âmbito governamental”, critica a educadora social.
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E tinha dinheiro, ele queria investir, mas faltava lá embaixo “avisar aos russos”. Na estrutura do serviço público, você tem gente que não necessariamente tá torcendo pelo que vem da cúpula. Ou seja, havia essa dificuldade da base, junto ao quarto, quinto escalões, que para fazer as coisas precisam estar motivados. Eu, por exemplo, na direção da Escola, tinha que convencer as pessoas. Mas, no Estado, a estrutura era mais viciada. Eu queria fazer em cada cidade, cheguei a sonhar com um projeto que chamei de Dragão Digital. Fazer um Pirambu Digital em cada município, interligado pelo Cinturão Digital e assim ia ter geração de renda... Mas fiquei só um ano, cansei e não houve tempo hábil... De qualquer forma, há resquícios dessa época, por exemplo, no projeto e-Jovem, hoje sob o comando da Secretaria da Educação do Estado. Só que enquanto eu queria atingir 20 mil, a turma lá queria fazer pra dois mil. Faltou ousadia, acho. [texto - Ethel de Paula] O coordenador do projeto e-Jovem, iniciado em 2007 no âmbito do Governo do Estado, Júlio Cavalcante, teve que empreender um O e-Jovem é um projeto do Governo do Estado do Ceará que, à luz do Pirambu Digital, deu os seus primeiros passos em 2007, alcançando de início cinco municípios e 200 alunos egressos de escolas públicas estaduais. Hoje, já se espraia por mais de 100 municípios, alcançando quase dez mil alunos-ano. “São todos egressos do ensino médio e das escolas públicas estaduais, alunos entre 16 e 24 anos. Numa última pesquisa que fizemos, 65% deles tinha recebido o benefício do programa Bolsa Família do Governo Federal, portanto, são também jovens em situação crítica de vulnerabilidade social, que através de qualificação profissional e educação empreendedora, tudo associado a uma prática social, voltam a sonhar e a vislumbrar um futuro individual e coletivo mais próspero”, destaca o atual coordenador do e-Jovem, Júlio Cavalcante, 33, um mestre em Computação que já compunha a equipe gestora original.
Casario da Vila do Mar - Piranbu [imagem 202B]
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A “mística” do Pirambu Digital
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Espigão na Vila do Mar - Piranbu [imagem 202B]
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ESTICADORES DE HORIZONTES diversidade
O jovem corpo utรณpico Arthur Sam [imagem 202B]
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O jovem corpo utรณpico
Um corpo que não se deixa reduzir tão facilmente. Que evoca a vivacidade dos desejos e se projeta para além da aparência da carne. Um corpo solto, poroso, maleável, transfigurado, infinito em sua potência, aberto às utopias seladas nele mesmo, sensível às suas partes invisíveis, poderoso o bastante para fazê-las existir, apesar dos estigmas, couraças e clausuras do mundo exterior. É com a coragem de se tornar o que se é que o estudante universitário e operador de telemarketing Arthur Sam, 22, nascido sob pele feminina, vem conduzindo a própria transformação para o gênero oposto, luta também feita de sofrimento, mas da qual não abre mão e nem volta atrás, fiel a uma vontade soberana de ser homem, à revelia do invólucro original. “A população transgênero é ampla, inclui travestis, transexual masculino, transexual mulher. São pessoas que não se identificam com a maneira como nascem. No meu caso, saio do gênero feminino, por não me sentir bem assim, e faço uma transição para o gênero masculino, no qual me sinto bem mais confortável”, esmiúça. Um querer incorporal, teimoso e fora dos padrões que ele só veio a compreender melhor ao longo da puberdade, depois de muito fuçar, primeiro via internet, sentimentos e pulsões similares aos seus, assim como espaços de diálogo e orientação abertos às complexidades da sexualidade humana. Entre poucos endereços, veio dar no Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), ONG sem fins lucrativos que, desde 1989, atua em Fortaleza no campo do enfrentamento ao preconceito por orientação sexual. É lá onde hoje Arthur e outros jovens da cena LGBT, todos oriundos das periferias da cidade, correm atrás de qualificação profissional gratuita na esteira do Centro de Formação Juvenil Patativa do Assaré, núcleo formador financiado pela Petrobras e certificado pelo Senac-Ceará. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Um querer incorporal, teimoso e fora dos padrões
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Para o pai, machista, “aquilo era falta de homem”. Para a mãe, blasfêmia, aberração, anormalidade, algo disforme que iria de encontro à natureza humana No rol de cursos ofertados sob o guarda-chuva do Turismo Sustentável, o trans-homem optou por ter noções básicas sobre o ofício de operador de hospedagem domiciliar, aquele especializado em cuidar do conforto de turistas que, ao invés de hotéis ou pousadas, preferem o aconchego e a intimidade de um lar para se hospedar. Aconchego e intimidade no lar são sensações que Arthur não conseguiu experimentar no seio da própria família. Com pai e mãe conservadores e religiosos ao extremo, sofreu com o preconceito, a incompreensão e toda sorte de violências. “Posso dizer que não tive casos sérios de transfobia fora de casa. Minha grande dificuldade foi com meus pais. Quando eles perceberam que eu não era a filhinha que queriam, que eu tinha comportamentos e gostos de menino, começou a pressão. Implicavam com meu boné pra trás, com a barra da calça que eu queria dobrar, com os cadarços mais folgados no tênis, com o cabelo que eu queria cada vez mais curto, tudo. Até o dia em que minha mãe foi fuçar nas minhas coisas enquanto eu tava na faculdade e descobriu um panfleto do Centro de Referência LGBT Janaina Dutra, lugar recém-descoberto via internet. Aí veio tudo abaixo. Acharam que eu era lésbica, que alguém estava me influenciando... e se chocaram mais ainda quando eu disse que não era nada disso, que eu me sentia menino mesmo”, relembra Arthur.
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Arthur Sam [imagem 202B]
Para o pai, machista, “aquilo era falta de homem”. Para a mãe, blasfêmia, aberração, anormalidade, algo disforme que iria de encontro à natureza humana. “Chegaram a ir ao próprio Centro LGBT descer o barraco com a advogada e a psicóloga. Também passaram a me deixar e buscar na faculdade, abriam a porta da sala pra ver em que lugar e perto de quem eu me sentaria. Passei por esses constrangimentos todos. Também passaram a me buscar no trabalho, marcação cerrada mesmo. Pensei várias vezes em me matar, mas desistia na hora agá. Em casa, vivia trancada dentro do quarto. E quando ia pra faculdade, levava roupas masculinas dentro da mochila, escondido, pra trocar no banheiro de lá. Até o dia em que minha mãe me expulsou debaixo de pancada, e meu pai me mandou esquecer que eles existiam. Ou seja, me perderam. A partir dali, como trabalhava em call center à noite, aluguei um cantinho e me engajei no movimento social. E foi assim que tive mais liberdade pra me jogar de cabeça. Hoje, as roupas femininas que me sobraram servem de pano de chão”, ri-se. O jovem corpo utópico
Assumidamente romântico, Arthur sonha em apresentar-se como namorado aos pais da amada. Aproximação que requer procedimentos fora do lugar-comum. Ele só quer se apresentar à família dela, que o conheceu ainda Samara, nome que consta em sua certidão de nascimento, quando a transição estiver em fase mais avançada. Ou seja, no momento em que o tratamento hormonal for iniciado e, junto à mastectomia, mostrar resultados explícitos, como barba, voz grossa e retirada completa dos seios. Tudo isso é pessoal, intransferível e político. Não à toa, Arthur hoje se organiza junto ao Instituto Brasileiro de Homens Trans (IBRAHT) para criar em Fortaleza a Associação Cearense de Transmasculinidade (ACETRANS). Organizados, os trans masculinos querem fazer valer os tratamentos e cuidados a que têm direito, tanto no âmbito social quanto institucional. ESTICADORES DE HORIZONTES
O processo transexualizador é garantido pelo SUS, mas nem toda cidade ou estado dispõe desse aparato “O processo transexualizador é garantido pelo SUS, mas nem toda cidade ou estado dispõe desse aparato, um ambulatório com atendimento psicológico e psiquiátrico, clínico-geral, endocrinologia, ginecologia. Isso porque a gente precisa de laudos pra fazer cirurgias, como a mastectomia e a histerectomia. Também precisamos de hormônio-terapia. Hoje, como não temos um lugar de referência em Fortaleza voltado a esse público, muitos tomam hormônios por conta própria, compram no mercado negro, simplesmente porque não aguentam a disforia, que é justamente o sentimento de não aceitação e repúdio ao próprio corpo. Isso é um sintoma grave, gera depressão, suicídio e males correlatos ao mau uso dos hormônios, que também podem levar à morte. No caso dos homens trans, a maioria das disforias é relacionada aos seios e ao quadril, por ser muito largo. É claro que tem a disforia com o órgão genital, mas isso é mais fácil de se adaptar”, revela Arthur.
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A força para romper com o moralismo de plantão e dar forma aos próprios desejos, Arthur encontrou no amor. Foi durante o período de um ano e meio em que saiu de Fortaleza para iniciar o curso superior no interior do estado que conheceu Luciene, companheira heterossexual com quem namorou e passou a viver maritalmente, depois de convencê-la de que a amizade nascida a princípio entre duas amigas, na verdade, era paixão de um trans masculino por uma mulher. “Foi um processo gradual pra que ela viesse a me ver como homem. Era uma pessoa da Igreja, com mais de 30 anos, que até então nunca nem havia beijado alguém. Imagina o tamanho da minha responsabilidade... Mas insisti até ganhar o primeiro selinho e daí já se vão três anos. Somos um casal hetero apaixonado como outro qualquer, só que em vez de pênis, eu uso uma prótese, e como tenho seios, mas não gosto deles, comprimo com um binder, espécie de faixa torácica. E nada disso é impedimento. Ao contrário. Só sei que não é o que trago entre as pernas que vai definir o que me faz feliz”, regozija-se Arthur.
Renan Ridley é coordenador adjunto da Coordenadoria Especial de Políticas LGBT do Estado do Ceará, órgão cujo orçamento de apenas R$ 400 mil ao ano amarra as mãos de qualquer gestor interessado em promover uma política eficaz, em um estado com tamanhas dimensões e carências. Assim, as principais ações vêm se concentrando no apoio às Paradas pelo Orgulho Gay de Fortaleza e de algumas cidades do interior do Estado, como também no projeto Cidadania contra a LGBTfobia, campanhas contra a homofobia e pelos direitos da população LGBT promovidas pela Coordenadoria.
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Renan Ridley, coordenador adjunto da Coordenadoria Especial de Políticas LGBT do Estado do Ceará, explica que o órgão não é executor, por isso realiza um trabalho transversal com outras secretarias com melhor dotação orçamentária. “Fazemos o acompanhamento das denúncias do Disque 100 [Disque Direitos Humanos, do Ministério da Justiça e Cidadania] e da população carcerária LGBT do Estado, a partir de um trabalho conjunto com a Secretaria Estadual de Justiça. Já com a Secretaria de Saúde, intermediamos uma demanda da população LGBT: um ambulatório para as transexuais. Com a Secretaria de Educação, temos uma parceria para a formação de professores, alunos e servidores. Inclusive, há um núcleo de políticas públicas de gênero e sexualidade dentro do órgão”, informou. O militante já mapeou: em Fortaleza, a única porta em que transexuais poderiam bater era a do Atendimento Ambulatorial de Transtornos da Sexualidade Humana (ATASH), vinculado ao Hospital de Saúde Mental de Messejana. Entretanto, segundo ele, há mais de um ano os serviços foram suspensos. “Depois disso, ficamos a sós, reféns do mercado negro. Teve um período em que fiquei muito tentada a começar a tomar hormônio por conta própria, até porque tenho plano de saúde do trabalho. Busquei na rede particular, fui ao endócrino e disse que queria tais exames, além de um acompanhamento hormonal. Ele passou os exames, mas no retorno disse que não prescreveria hormônios. Ou seja, preconceito. Então, a gente tá dependendo da boa vontade de um médico. Eu posso até esperar, mas a partir do momento em que se começa a hormônio-terapia, a sua vida está em risco, você não pode parar de se hormonizar. Se parar, vai voltar a menstruar, os pelos vão cair, o fígado vai ficar destruído, pode desenvolver câncer de útero, de mama. Até mesmo o binder, se a gente compri-
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mir demais os seios, ou de forma errada, isso pode maltratar a coluna vertebral e inviabilizar a cirurgia. Portanto, a ACETRANS vem pra lutar por mim e pelos outros”, anuncia Arthur, ao mesmo tempo em que já organiza uma pressão junto ao Governo do Estado para garantir um novo ambulatório especializado no Hospital das Clínicas.
É muito constrangedor, principalmente pra quem já é hormonizado, você pegar a identidade e ver um nome feminino e uma foto feminina, quando, na sua frente, está alguém barbado e falando grosso Outra questão central e de direito relacionado ao bem-estar da comunidade LGBT diz respeito à retificação do nome. “É muito constrangedor, principalmente pra quem já é hormonizado, você pegar a identidade e ver um nome feminino e uma foto feminina, quando, na sua frente, está alguém barbado e falando grosso. Então, é um processo doloroso, porque ainda temos que reunir um monte de documentos, passar por um processo de acompanhamento psicológico e psiquiátrico pra gerar laudos que comprovem aquela sua identidade. E aqui no estado do Ceará, nós estamos nas mãos de duas juízas, uma mais flexível e outra mais conservadora. Ou seja, é cruzar os dedos e ir driblando muita coisa pra se descobrir, se aceitar e viver com dignidade, conquistando respeito”, emenda ele, que vibra por já ver seu nome social pelo menos na carterinha do SUS e nas listas de chamadas da Universidade. O jovem corpo utópico
Para Renan Ridley, coordenador adjunto da Coordenadoria Especial de Políticas LGBT do Estado do Ceará, as políticas públicas para a população LGBT só serão expandidas ou mesmo mantidas se houver pressão da sociedade: “Só vamos crescer, ter maior visibilidade quando os governos entenderem que essa não é uma política terciária, a ponta da ponta de uma política, mas sim uma muito importante, tanto que vários cidadãos morrem por ausência dessas políticas. Somente a organização social fará com que essa realidade mude”. Em tempo: entre as metas da atual gestão da Coordenadoria Especial de Políticas LGBT do Ceará estão a implantação do Conselho Estadual de Combate à Homofobia e o lançamento do Plano Estadual de Combate à Homofobia. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Detalhes nada pequenos para quem só veio a entender a própria sexualidade depois de assistir ao filme Meninos não Choram, drama dirigido por Kimberly Peirce e com roteiro baseado na história real de Brandon Teena, jovem norte-americano que nasce com um corpo biologicamente feminino, mas identificado com o gênero masculino, sendo assassinado por isso. “Quando vi o filme chorei muito, porque era aquilo que eu sentia, mas não entendia nem sabia como entender. Foi quando descobri o termo transexualidade e procurei ajuda junto aos grupos organizados. Cresci ouvindo que era sapatão machuda. Isso me doía muito, porque nunca me achei lésbica. Então, no dia em que entrei no banheiro feminino e a servente me chamou atenção porque não era lugar de menino, vibrei, embora, logo depois, quando virei de frente, ela percebeu os meus seios e me pediu desculpa. No trabalho, quando me chamam de rapaz e usam o pronome masculino é outra alegria. Então, cada passo pra gente é libertação. E é político também. Porque diz sobre o modo como queremos viver em sociedade, respeitando as diferenças”, destaca Arthur. [texto - Ethel de Paula]
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Dedé nem completara 18 anos quando, pela primeira vez, veio bater à porta do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), interessado no curso de cabeleireiro, entre outros que a ONG faria chegar aos jovens da comunidade LGBT em Fortaleza. Franzino e delicado, chegou como uma pálida sombra do que viria a se tornar cerca de dois anos depois: a inquieta e febril ativista dos Direitos Humanos, Dediane Sousa. Ela hoje compõe a direção da instituição e se orgulha de ter na trajetória de militante política e educadora social o título de primeira travesti cujo nome social foi impresso no Diário Oficial de São Paulo, quando de sua passagem pela cidade para integrar a equipe de governo do atual prefeito Fernando Haddad, estruturando a Rede Paulista de Proteção e Promoção à Cidadania LGBT, espaço referencial para toda a América Latina. Aos 27 anos, a negra de unhas longas e vasta cabeleira, dona de muitos cabelos postiços guardados em casa, é uma Medusa às avessas, alguém que, ao invés de petrificar quem lhe atravessa o caminho, dinamiza e anima as lutas daqueles que são estigmatizados e violentados por uma sociedade ainda machista, racista, elitista, binária. Assim, compõe a linha de frente dos conselhos municipal e nacional da Juventude; coordena e realiza projetos ligados à diversidade sexual, incluindo as Paradas LGBT em Fortaleza; forma multiplicadores e formadores de opinião junto aos espaços de sociabilidade homoeróticos da cidade; orienta usuários quanto à prevenção a doenças sexualmente transmissíveis e à garantia de direitos básicos de saúde junto ao SUS; dialoga com todas as esferas de governo em nome da causa e tem cacife o bastante para hoje referendar um conjunto de serviços no âmbito governamental já sensíveis às demandas do segmento.
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A Medusa e o Marciano
Complexa, mas essencial, a construção da ideia do corpo feminino se deu aos poucos, já bem após a primeira transa, aos 16 anos. “Eu queria ter peitão, cabelão, mas só pude bancar minha primeira prótese com 20 anos. Juntei R$ 7 mil durante dois anos e fiz meu peito. Isso foi muito demarcador de sentido pra minha vida, a coisa de ser desejada e desejar o outro. Acho que é quando eu descubro de fato a sexualidade e compreendo o imaginário masculino, como mulher. Deslanchei pro sexo, foi o período em que me senti bem, bonita e, enfim, pude dizer: a Dediane é isso”, recorda. Feminilidade à toda prova, mas que precisou defender com o próprio corpo também de fora para dentro. Como estudante da graduação em Comunicação Social pela FAC (Faculdades Cearenses), Dediane bateu de frente com a junta docente quando se viu proibida a usar o banheiro feminino da universidade. “Pedi uma justificativa por escrito porque ia, claro, abrir um processo diante daquela violência institucional. É claro que nunca me deram e, assim, eu consegui fazer valer outro direito comumente desrespeitado” sublinha. ESTICADORES DE HORIZONTES
Para Adriano Henrique Caetano, filósofo e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), um ativista do movimento LGBT que também passou pelo Grab, em Fortaleza, ainda há muitas dificuldades para se pensar a saúde integral da população LGBT, mesmo junto ao Ministério da Saúde. “O que vemos são apenas recursos para prevenção às DST/HIV/Aids. Mesmo que isto também seja importante, porque estamos assistindo ao crescimento do HIV em meio à população de jovens gays. Esse dado faz com que a gestão de saúde repense as práticas de prevenção para se alcançar esse segmento”, observou o também doutorando no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.
Eu queria ter peitão, cabelão, mas só pude bancar minha primeira prótese com 20 anos
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“Eu venho do movimento de juventude secundarista e nunca interrompi a militância que abraça a discussão crítica das políticas públicas voltadas aos direitos humanos como um todo. Particularmente, sempre convivi com um conjunto de pessoas ao meu redor que tinha HIV e a solidariedade junto a elas me veio como algo natural: levar alguém que nunca tinha ido a uma unidade de saúde fazer uma testagem a entender que aquilo é direito dela. Ao mesmo tempo, me descobri sexualmente justo quando descobri os movimentos sociais, a questão da autonomia do corpo, da transformação possível. Sempre tive afinidade com coisas de menina, desde criança, e mesmo viadinho, nunca apanhei por isso em casa. Mas eu sabia que não era gay e quando optei por me travestir e me tornar Dediane foi difícil, fiquei com medo porque sabia que ia haver perdas. Um dos meus irmãos, por exemplo, nunca aceitou. Mas eu me fortaleci enquanto fortalecia a luta”, reafirma.
“No aspecto educacional, essa nossa luta é bem mais difícil porque temos aí uma bancada [parlamentar] evangélica fundamentalista muito organizada, que tenta fazer da escola um espaço de propagação do preconceito contra a população LGBT. Infelizmente, tivemos várias derrotas com o Plano Nacional de Educação, que é a base ao enfrentamento a essa discriminação e que atinge a população jovem diretamente”, observou Renan Ridley, coordenador adjunto da Coordenadoria Especial de Políticas LGBT do Estado do Ceará.
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Essa nova geração vai radicalizar isso, vai assumir a diversidade muito mais livremente, mas também vai precisar resistir aos apelos fakes de uma ideia de felicidade atrelada ao consumo e que só se sustenta nas redes sociais, justamente porque é falsa”, sustenta.
Essa nova geração vai radicalizar isso, vai assumir a diversidade muito mais livremente
Dediane Sousa [imagem 202B]
Para a estudante de jornalismo que sonha em seguir carreira acadêmica, tão importante quanto a construção do próprio corpo é a construção de um outro modelo de sociedade, em que pessoas fora do padrão normativo não sintam medo de ir e vir livremente. “A homofobia cotidiana e a violência de gênero acontecem por conta da naturalização com que o Estado trata essas questões. Quando nega o nome social dos travestis e transexuais no ambiente escolar, quando vota junto com o fundamentalismo religioso, isso tudo interfere diretamente sobre nosso corpo e diz sobre a posse que o Estado e o capitalismo querem ter sobre nós. Mas não terão, sempre vamos escapar, e é por isso que somos historicamente marginalizados e martirizados, ao mesmo tempo em que somos capazes de derrubar ou negar governos e inventar modos de vida alternativos, desobedientes, estranhos a eles.
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Monitor dos cursos ministrados no GRAB através do Centro de Formação Juvenil Patativa do Assaré, Renan Monteiro, 25, também é prova de que livrar-se dos clichês não é tarefa fácil, mesmo entre pares da comunidade LGBT. Antes de se liberar para experimentar sua primeira relação sexual com um homem, aos 14 anos, confessa que tinha aversão à ideia de ser gay. “Desde pequeno, minha sexualidade era muito aflorada, mas me achava hetero porque cheguei a namorar meninas, embora sentisse algo errado ali. Hoje em dia, me considero uma pessoa livre, sem restrições. Mas no início, eu tinha sim, desejos que tentava reprimir. Era homofóbico, não aceitava isso por conta da família, da religião, enfim... Mas o fato é que sempre fui o diferente entre meus irmãos, tanto que eu era chamado de “marciano” por eles. E eu mesmo não me entendia. Foi conturbado separar o que eu pensava do que eu sentia. Até que bati martelo: sim, estou gostando de um menino. Porque não havia como fugir. Tentei resistir, mudar, mas não consegui. Cheguei a pegar uma grande quantidade de remédios, mas no momento do suicídio, voltei atrás. E resolvi me aceitar”, conta. A Medusa e o Marciano
Aos 20 anos, Renan se sentiu preparado para contar à mãe sobre si. Àquela altura, ele já era o único da família assentada na comunidade do Lagamar a concluir o ensino médio e ser aprovado no ENEM, ingressando no curso de Matemática da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Com o primeiro salário como telemarketing, também já havia comprado a primeira pia de casa para a mãe lavar com melhor estrutura as roupas que vinham da Aldeota e acabaram garantindo o sustento família ao longo de certo período. Antes disso, foi com ela que também aprendera a costurar e bordar, cortando as pontas das flanelas que o pai vendia no sinal próximo de casa. Orgulho da família, Renan respirou aliviado quando o único senão materno diante do segredo íntimo veio em tom de cumplicidade, sussurrado baixinho ao ouvido: “só não se vista de mulher, por favor”. Promessa feita e cumprida. Ainda mais quando, no dia seguinte, foi poupado por ela de uma segunda aflição. “Renan, sabe aquele nosso segredo? Contei para o seu pai. Ele desmaiou na hora, só recobrou os sentidos quando pus álcool no nariz dele. Mas, assim como eu, já sabia, né? E aceitou”. ESTICADORES DE HORIZONTES
“Nesses últimos anos, houve um fortalecimento do movimento LGBT brasileiro, a exemplo da união civil de homossexuais, a lei do nome social para travestis e transexuais, e as grandes manifestações públicas, como exemplo, as Paradas pela Diversidade Sexual. E gostaria de destacar em relação à atual juventude LGBT que esses sujeitos, desde cedo, romperam com o fantasma do ‘armário’. A visibilidade da temática na grande mídia, nas duas últimas décadas, possibilitou que o jovem LGBT saísse dos guetos e passasse a demonstrar afetos e carinhos em espaços públicos”, destacou Adriano Henrique Caetano, filósofo e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), um ativista do movimento LGBT que também passou pelo Grab.
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Processo de autoaceitação que passou pelo GRAB. Foi em 2011 que Renan conheceu a ONG, como educando do curso de guia de turismo de aventura ofertado lá dentro. No dia a dia foi além, fisgado pelos rumores em torno da organização da Parada Gay em Fortaleza. “Já tinha ouvido falar, mas nunca havia ido, por puro preconceito, porque não me via fazendo parte daquilo, apesar de gay já assumido. Mas acabei não resistindo à curiosidade e fui conhecer a Parada. Fiquei encantado. Justamente porque eu era muito reprimido, nerd, vivia preso dentro de casa e descobri um mundo que não sabia existir. Daí em diante, a festa me levou à formação política que, na época, foi muito agregadora pra mim. Inclusive, foi aqui também que aprendi sobre prevenção. Antes, não me prevenia. Através do GRAB, fiz minha primeira testagem de HIV. E, depois, peguei o hábito de ir sempre ao posto de saúde, além de aconselhar as pessoas”, credencia.
Renan Monteiro [imagem 202B]
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Uma pessoa traz em si diferentes formas de amor. Então, por isso que a ideia de diversidade pra mim é tão simples e palpável. O ex-homofóbico, que em casa foi bem aceito, namora com o mesmo homem desde 2011. Foi através do Facebook que conheceu o namorado de 38 anos, um brasileiro há 15 radicado na Itália. Uma ou duas vezes ao ano, o casal se reencontra. E, assim, o amor à distância segue pautado pelo respeito à liberdade. “Sou livre e sei que ele também. Fico com mulheres, homens, garotos, travestis. E acho que somos felizes assim, apaixonados mesmo. Pras coisas do coração e do sexo, não existe fórmula matemática. Isso eu não precisei ir pra faculdade pra aprender, assim como não conseguiria calcular as muitas possibilidades de amar. Se são cerca de sete bilhões de pessoas no mundo, existem pelo menos sete bilhões de possibilidades de amor. Isso, se a gente considerar que uma pessoa representa uma só forma de amor, o que não é. Uma pessoa traz em si diferentes formas de amor. Então, por isso que a ideia de diversidade pra mim é tão simples e palpável. Tudo pode existir e, mesmo que eu não concorde ou não venha a conhecer essa variedade de experiências, elas existem independente de mim e ponto. Aliás, ponto não, reticências, né?”, ri-se o futuro matemático. [texto - Ethel de Paula]
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A Medusa e o Marciano
DIVERSIDADE Parada pela Diversidade Sexual em Fortaleza 2016 [imagem - Jorge Alves arquivo Diรกrio do Nordeste]
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a resistencia da
Asa Branca
A Columba Picazuro é uma das aves mais comuns do Nordeste brasileiro. A fêmea e o macho alternam-se na criação dos filhotes. O pássaro que, na canção imortalizada por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, bateu asas do sertão fugindo da seca é a mesma que batiza o Grupo de Resistência Asa Branca, o Grab, instituição que, desde 1989, luta contra a homofobia na capital cearense. Assim como a ave, seus integrantes-fundadores ansiaram por voos mais amplos em busca de um ambiente menos ameaçador para os homossexuais naquela Fortaleza do fim dos anos 1980.
Chico Pedrosa [acervo pessoal]
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Vivia-se o medo e as incertezas por conta da epidemia de Aids. Naquele momento, não era toda a sociedade quem sofria com a nova doença, mas em sua quase totalidade, os homossexuais masculinos, um grupo historicamente esquecido pelas políticas públicas. Para lutar contra essa exclusão e por mais participação política, surgiu a ideia de fundar uma organização que combatesse a violência estrutural enfrentada pela população gay da cidade que, àquela altura, ainda não compunha a sigla que, política e socialmente, se consolidou para juntar debaixo do mesmo guarda-chuva lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT). A resistência da Asa Branca
“O Grab surgiu a partir do espírito da juventude. Fomos nós, jovens gays nos anos 1980, que fundamos o grupo. Era um momento de redemocratização. A Maria Luísa acabava de ser eleita prefeita de Fortaleza [professora universitária, ex-integrante do Partido dos Trabalhadores, em 1985 tornou-se a primeira mulher prefeita de uma capital no Brasil]; uma brisa progressista invadia a cidade”, relembra Francisco (Chico) Pedrosa, atual presidente do Grupo de Resistência Asa Branca. A ideia inicial do grupo era combater a violência contra a população homossexual no Estado do Ceará. Entretanto, naquele início de década de 1990, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) tornou-se uma questão muito forte “no meio. “Quando surgiram os primeiro casos de Aids no Ceará, a população gay masculina foi muito afetada. Alguns dirigentes do Grab eram positivos [portadores do vírus da Aids] e alguns chegaram a falecer. Essa questão da solidariedade com as pessoas infectadas acabou sendo incluída na agenda de luta pela livre orientação sexual”, relembra o presidente do Grab.
No decorrer desses quase 30 anos, a sociedade mudou, assim como o Grab, segundo Pedrosa. “Hoje, existem outros atores que trabalham junto à população LGBT, como universidades, outras ONGs, movimentos sociais de juventude... Naquele tempo [anos 1980-1990], só tinha o Grab. Em 2007, fizemos uma pesquisa focando o comportamento sexual dos jovens e a publicamos em dois livros. Organizamos o I Encontro Nacional de Jovens Gays, em outubro de 2009, e a partir de 2011 expandimos os cursos de qualificação profissional que já oferecíamos. Mas nós mantemos nossa atuação política, seja com pronunciamentos na Assembleia Legislativa; nacionalmente junto com a ABGLT [Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais]; contribuições ao Fórum Social Mundial; bem como a organização da Parada pela Diversidade Sexual de Fortaleza, desde 1999.” ESTICADORES DE HORIZONTES
Para Adriano Henrique Caetano, filósofo e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), além de doutorando no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, as ONGs possibilitaram as conquistas e o fortalecimento das lutas do movimento LGBT, apesar de, atualmente, estarem passando por um verdadeiro desmonte no Brasil. “O que deve ser feito é a retomada de parcerias com as diversas instâncias governamentais e agências internacionais. O mundo precisa saber que, por exemplo, a Aids ainda é um problema para população de gays e trans nesse país”, destacou.
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30 ANOS DE ATUAÇÃO POLÍTICA
No decorrer da atuação da ONG, observou-se que os jovens gays passavam por novos desafios. Para Pedrosa, entre as principais vulnerabilidades enfrentadas pela população LGBT em Fortaleza, destaca-se o problema da baixa autoestima, “pois ainda temos casos de jovens expulsos de casa quando revelam sua orientação sexual”. “Ontem mesmo, conversei com um que foi expulso de casa pelo irmão.
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Sede do GRAB - Fortaleza-CE [imagem 202B]
A transexualidade também é um problema, pois não há acompanhamento adequado na rede de saúde, nem mesmo em relação à psiquê desses jovens. Assim como a falta de escolaridade, a evasão escolar e a falta de perspectiva profissional”, explica o ativista. A baixa qualificação profissional da juventude LGBT foi identificada pela instituição como uma das principais vulnerabilidades enfrentadas por essa população no Estado. Com patrocínio da Petrobras, obtido via edital público e apoio técnico do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), o Centro de Formação Juvenil para o Turismo Patativa do Assaré – Fase II nasceu e tornou-se o principal projeto social mantido, hoje, pelo Grab. No momento do fechamento desta edição, o Grab estava com inscrições abertas para o curso de Operador (a) de Hospedagem Familiar, voltado para a área de turismo. Os estudantes recebem lanche, vale transporte, bolsa de estudo e certificado emitido pelo Senac. Não é necessário ser LGBT para participar, embora entre 70 e 80% desses alunos enquadram-se nesse perfil.
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Uma das formas de preconceito que identificamos é o fato de serem preteridos em seleções para vagas de trabalho Quanto mais esses jovens são identificados com o estereótipo do gay efeminado, ou seja, quando adotam trejeitos femininos, mais enfrentam dificuldades na vida profissional, como diagnostica o presidente do Grab. “Uma das formas de preconceito que identificamos é o fato de serem preteridos em seleções para vagas de trabalho por serem gays. Quanto mais esses jovens apresentam um comportamento feminino ou, como se diz na linguagem própria, quanto mais ‘pintoso’ for esse jovem, mais discriminado é no trabalho”, detalha Francisco Pedrosa. “A gente tenta desconstruir esses preconceitos. Por exemplo, em nosso Centro de Formação, não oferecemos curso para cabeleireiro. O que, aliás, é uma profissão ótima, mas não podemos ficar achando que LGBT só pode ser cabeleireiro”. A resistência da Asa Branca
PERSPECTIVAS E DIFICULDADES Francisco Pedrosa observa uma mudança singificativa na militância social brasileira no decorrer das últimas três décadas, seja em relação às próprias instituições como ao público atendido. “Eu sinto uma fragmentação política muito grande em comparação aos anos 1980 e 1990. Uma hipótese: se vamos fazer um seminário sobre democracia e participação LGBT, por exemplo, para encher um auditório, é muito difícil. Mas se organizamos um show, aí lota. Teve um grupo de jovens com quem me reuni e perguntei quem era ultraconectado às redes sociais, todos eram, mas quando perguntei sobre Stonewall, silêncio”, reflete.
“Nossa sede é própria, se não a tivéssemos, provavelmente já estaríamos fechados, porque não teríamos como arcar com o aluguel”, desabafa o presidente do Grab. Durante muitos anos, o Grab era sediado no Centro da cidade e há apenas alguns anos mudou-se para o Itaperi, zona sul de Fortaleza, após a construção de uma casa no terreno comprado pela instituição. Nosso financiamento sempre foi por meio de editais e estes diminuíram bastante nos últimos anos.
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Eu gostaria que a sociedade nem precisasse de uma instituição como o Grab. Que nós não precisássemos estar todo o tempo tendo que reafirmar nossa sexualidade Pedrosa se refere ao bar Stonewall Inn, em Manhattan (Nova York), que se tornou referência mundial na luta contra o preconceito de ordem sexual quando, em 1969, um grupo de gays frequentadores do local resistiu à violência policial. O presidente estadunidense, Barack Obama, nomeou, recentemente, Stonewall como o primeiro monumento nacional dos Estados Unidos pelos direitos LGBT. A realidade se complica ainda mais quando se analisa a perspectiva financeira. Apesar da expertise de todos esses anos trabalhando com a população LGBT, as dificuldades em se obter financiamento ameaçam a continuidade dos projetos. ESTICADORES DE HORIZONTES
Bar Stonewall Inn - Nova York - 1969 [imagem - Diana Davies - Wikimedia Commons]
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Além disso, quando há editais, é uma burocracia enorme, a gente até consegue cumprir com toda a papelada, mas parece que existe uma pessoa só pensando em como dificultar para que a sociedade civil não tenha acesso ao recurso”, relata Pedrosa. “Hoje, conseguimos captar metade ou menos do que recebíamos há 10 anos, por exemplo. O Grab ainda consegue acessar algumas dessas oportunidades de financiamento pela nossa história, pelo que já foi produzido, mas muitas ONGs fecharam suas portas, e isso não é apenas no movimento LGBT. A cooperação externa afastou-se do Brasil. Já tivemos financiamento externo, mas a ONG holandesa que nos apoiou por um tempo, inclusive, fechou”. O parco financiamento reflete-se em uma deterioração da atenção pública aos cidadãos e cidadãs LGBT. Um exemplo, citado por Pedrosa, é o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, uma luta do Grab, com apoio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, assumido posteriormente pela Prefeitura de Fortaleza. O Centro contava com psicólogo, advogado, assistente social, atendente e o disque denúncia. “Era um projeto de um ano, depois que terminou, demorou dois pra voltar, não tínhamos como segurar esses profissionais. Nas discussões em torno do OP [Orçamento Participativo], sugerimos que a Prefeitura de Fortaleza assumisse o Centro, o que achamos muito positivo, pois é função do Estado. Mas a gente tem várias críticas, o Centro é subutilizado e a população não o conhece bem”, explica. Para Francisco Pedrosa, entender as dificuldades das organizações não governamentais no Brasil é refletir sobre o momento político pelo qual o país e o mundo estão passando. “O que vivemos hoje na Assembleia Legislativa do Ceará era impensável há 10, 15 anos. Durante a votação do Plano Estadual de Educa-
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ção, por exemplo, ficamos umas 12 horas nas galerias do plenário, e dividimos o mesmo espaço com grupos de ultradireita, católicos com terço na mão, desde senhoras a carismáticos bem jovens, evangélicos... Teve até culto. E somente a gente, os indígenas e ambientalistas, defendíamos os direitos humanos. É um cenário bastante complexo.” “Eu gostaria que a sociedade nem precisasse de uma instituição como o Grab. Que nós não precisássemos estar todo o tempo tendo que reafirmar nossa sexualidade. Infelizmente, acho que a sociedade ainda vai precisar de instituições como a nossa por um bom tempo, basta ver o massacre de Orlando [nos Estados Unidos, no início de junho de 2016], e o massacre diário que vemos aqui no Brasil, com assassinatos de homossexuais e transexuais motivatos apenas por homofobia e transfobia. Diante do avanço do fundamentalismo islâmico, católico e evangélico, parece que a coisa vai piorando”, lamenta o ativista. “Nos dois últimos anos, estamos vivendo um período de retrocessos. Um dado importante que ele destaca foi o debate sobre a tentativa de inclusão das temáticas de gênero e diversidade sexual nos currículos escolares. Excluir esse tema da escola recoloca de volta no armário direitos sexuais entendidos como direitos humanos. A homo/lesbo/transfobia é um dos grandes problemas que afeta diretamente a população LGBT no Brasil, mas, mesmo assim, não se conseguiu aprovar na Câmara Federal o Projeto de Lei que criminaliza a homofobia. E um dos motivos é a bancada religiosa fundamentalista. Enquanto não tivermos um estado laico, de fato, será difícil avançar com os direitos humanos”, alertou Adriano Henrique Caetano, filósofo e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), além de doutorando no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. A resistência da Asa Branca
O Grab ainda trabalha fortemente a questão da prevenção em saúde dentro da comunidade LGBT. Ativistas da entidade vão até às comunidades para debaterem com o público LGBT sobre prevenção de doenças e sobre como acessarem os sistemas de saúde. “Buscamos um ganho de conhecimento nas comunidades quanto à questão da Aids. Inclusive, hoje, é um desafio encaminhar as pessoas para fazerem o teste de HIV”. A Parada pela Diversidade Sexual de Fortaleza também é uma marca do Grab, que organiza o evento em parceria com outras entidades e com apoio do poder público. No entanto, Pedrosa assinala que as dificuldades são imensas pois “o orçamento é muito curto para pagar trio, pagar tudo”. A organização da Parada começa quatro meses antes. “Gosto da visibilidade massiva que o evento oferece, mas sinto falta de mais politização. A crítica é que é muita festa, mas se ficássemos de 1h da tarde às 10h da noite fazendo discurso, provavelmente ninguém iria”.
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O Grab, uma das mais antigas instituições em atuação no Brasil na luta pelos direitos humanos da população LGBT, foi agraciado com o 5º Prêmio Arco-Íris de Direitos Humanos, em 2006, e com o Troféu 1º de Dezembro – Dia Mundial de Luta contra a Aids, do Ministério da Saúde, em 2004; também com o Prêmio Cultural LGBTT (2009), do Ministério da Cultura, entre outros reconhecimentos. [texto - Benedito Teixeira]
Parada pela Diversidade Sexual em Fortaleza 2016 [imagem - Jorge Alves arquivo Diário do Nordeste]
ESTICADORES DE HORIZONTES
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Privação histórica de direitos Camila Castro é socióloga, mestra pelo departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da mesma universidade. Foi a partir de seus estudos sobre culturas sexuais, juventude e infecção pelo vírus HIV que ela discute as políticas públicas voltadas para esse segmento da população. A pesquisadora comemora o que considera um grande avanço na proteção aos direitos humanos da população LGBT no Brasil, principalmente nos últimos anos. “Tais como a conquista do uso do nome social pelas travestis e transexuais por meio de diversos projetos e leis; a união estável; o direito de adoção de crianças, considerando as diversidades familiares, entre outros pontos. Podemos citar também a conquista de espaço nas mídias, em que pudemos constatar uma ampliação das possibilidades de diálogo sobre o tema”, observou.
Camila Castro [imagem 202B]
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Segundo Camila, no período entre 2008 e 2012, aproximadamente, as secretarias e coordenações no âmbito das políticas LGBT e de diversidade sexual em nível federal, mas também nos estados e municípios, financiaram, incentivaram e apoiaram projetos e programas diversos e com resultados importantes para a garantia de direitos das populações LGBT. Tais como as paradas pelo orgulho gay, ações relacionadas à assessoria jurídica, proteção, empoderamento e autonomia para a garantia de direitos, saúde e conferências. “Tivemos ainda alguns avanços em relação às propostas de elaboração de materiais e projetos sobre a importância da abordagem sobre saúde, sexualidades e homofobia nas escolas. Muitos materiais, como livros, revistas, cartilhas, sites, informativos, impressos e virtuais foram produzidos”, enumerou.
Privação histórica de direitos
Apesar de alarmante, o número de assassinatos representa apenas a ponta de um iceberg chamado privação de direitos que os homossexuais enfrentam, como explica Camila Castro. “Os assassinatos conformam as estatísticas mais violentas de uma rede de direitos violados cotidianamente entre essa população, tais como o acesso ao mundo do trabalho, à educação, saúde, participação política, aceitação e à boa convivência familiar, à vivência religiosa, entre outros”, refletiu. Em relação à privação de direitos, vale abrir um parênteses às observações do pesquisador Adriano Henrique Caetano, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, que alerta sobre as dificuldades enfrentadas no ambiente profissional pela população LGBT como um todo, mas principalmente pela população transexual. “Um dos principais entraves para o exercício de cidadania da população trans é a questão da formação. Muitas trans, cedo, são expulsas de casa e da escola, assim não conseguem realizar uma formação escolar e acabam na prostituição e em subempregos por não estarem capacitadas para concorrerem a outras vagas no mercado de trabalho”, enfatizou. Após um período de bons ventos governamentais em relação às políticas LGBT no Brasil, em especial durante os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), a expansão desses direitos ficou estagnada, com uma forte tendência à redução, principalmente na área da saúde, na qual Camila Castro atua como pesquisadora. “Posso citar como exemplo um projeto do Ministério da Saúde, o SPE – Saúde e Prevenção nas Escolas, um dos poucos que abordavam questões sobre sexualidade e direitos sexuais, e que, hoje, não está mais sendo implementado nesta perspectiva. Também políticas de incentivo a projetos que discutem, capacitam e formam profissionais de educação e saúde em relação aos direitos da população LGBT não existem mais nas propostas do governo federal. O cenário atual nos apresenta muitos desafios”, concluiu.
ESTICADORES DE HORIZONTES
De acordo com o relatório anual sobre o assassinato de homossexuais divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB),
318 pessoas gays fo-
ram mortas, em 2015, em todo o país. Desse total de vítimas, o GGB diz que
52% foram homens, 37% travestis, 16% lésbicas e 10% bissexuais.
O número é levemente menor do que o ocorrido em 2014 quando, conforme a entitade, foram anotados
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No entanto, conforme alerta a pesquisadora, esses avanços não foram suficientes para reduzir as mortes ocasionadas por homofobia, transfobia e lesbofobia no Brasil, uma situação que apresenta números alarmantes. “De acordo com o relatório anual sobre o assassinato de homossexuais divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 318 pessoas gays foram mortas, em 2015, em todo o país. Desse total de vítimas, o GGB diz que 52% foram homens, 37% travestis, 16% lésbicas e 10% bissexuais. O número é levemente menor do que o ocorrido em 2014 quando, conforme a entitade, foram anotados 326 assassinatos. Esses dados apontam para a necessidade de ampliar as discussões sobre a importância de políticas mais efetivas em torno dos direitos da população LGBT”, salientou.
326 assassinatos
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Controle da Aids
Temos cerca de 780.000 pessoas com diagnóstico positivo no Brasil. Trata-se de uma prevalência de 0,4% para a população geral e de 11,5% para os HSH
O tratamento aos portadores do vírus HIV, oferecido gratuitamente pelo governo brasileiro por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), já há tantos anos em funcionamento, recebeu elogios da pesquisadora. “Tivemos avanços significativos e muito importantes no controle da epidemia de Aids, principalmente entre os grupos HSH [homens que fazem sexo com homens], transexuais e travestis. O acesso universal aos medicamentos antirretrovirais, que possibilitam a vivência com o HIV, foi uma conquista dos movimentos sociais de luta pelos direitos LGBT e de enfrentamento da epidemia, que garantiu a sobrevida das populações infectadas no Brasil ainda nos anos 1990”, ressaltou. No entanto, apesar de um maior controle sobre a doença, ainda vivenciamos uma epidemia concentrada, na qual os homens gays continuam sendo os principais atingidos pelo vírus. “Temos cerca de 780.000 pessoas com diagnóstico positivo no Brasil. Trata-se de uma prevalência de 0,4% para a população geral e de 11,5% para os HSH. Esses dados demonstram a necessidade de políticas de controle da epidemia muito mais qualificadas e efetivas junto a esses grupos. Atualmente, as políticas públicas não têm dado conta de frear uma estatística já conhecida de uma população (HSH) que tem sido historicamente mais vulnerável à epidemia de Aids e que conformam os grupos que mais se infectam, adoecem e morrem em consequência da doença”, pontuou.
O próprio desenho institucional da democracia brasileira estaria atuando como um problema na questão da saúde dessas populações. “O governo federal tem considerado a necessidade dessas políticas e realizado projetos nesse sentido, porém os estados e municípios não necessariamente tornam efetivas essas políticas públicas. A Aids não é só uma epidemia viral, ela é também um fenômeno social, que requer esforços multidisciplinares, multisetoriais e respostas comunitárias para garantir seu controle. E nesse sentido, ainda precisamos avançar muito, não só em políticas de prevenção e assistência, mas, fundamentalmente, em ações que contribuam para o exercício de direitos, acesso aos serviços de saúde, educação em saúde sexual e proteção social”, afirmou Camila. O enfraquecimento das parcerias entre o poder público e as organizações não governamentais também tem, segundo a pesquisadora, contribuído para uma diminuição da atenção a essa e outras populações vulneráveis, além de distanciar a sociedade civil de seus representantes. “Houve, nos últimos anos, um grande desmonte das ONGs no Brasil, com a escassez de recursos, mas também falta de incentivo e apoio. Houve ainda um retrocesso nas políticas de direitos humanos, que já eram muito restritas. O que se traduz em um certo enfraquecimento dos movimentos sociais, afetando diretamente o controle social e o exercício democrático no país”, alertou.
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Privação histórica de direitos
Mais atenção em saúde integral
“A questão da saúde mental também deve ser lembrada como um fator importante. Estudos apontam que as populações LGBT são acometidas por diversas doenças ocasionadas devido ao sofrimento psíquico relacionado ao preconceito e à dificuldade de se lidar com a sexualidade, tais como depressão, ansiedade, stress e, não raras vezes, podendo chegar ao suicídio”, advertiu a socióloga. A população trans deveria receber uma atenção especial, tanto no campo físico como psíquico, defende Camila. Essas pessoas precisam de orientação e atenção em relação às mudanças desejadas em seus corpos, como também ao risco de automedicação com hormônios. “Podemos ainda ressaltar que a população trans é a que menos acessa os serviços de saúde devido ao preconceito e, por isso, vivencia constantemente processos de agravos das suas condições de saúde”, finalizou. [texto - Benedito Teixeira]
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DIVERSIDADE
Camila Castro alerta que o cuidado em saúde da população LGBT vai muito além do tratamento aos portadores do vírus HIV. Ela lembra que as mulheres lésbicas, por exemplo, “encontram dificuldades e preconceitos diversos ao acessarem os serviços de saúde. E pesquisas ainda demonstram que essas mulheres, principalmente as mais jovens, são mais acometidas por agravos associados ao uso contínuo de álcool e cigarro”.
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MĂĄrio Ă?talo [imagem 202B]
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Existir para resistir
D E H S ORIZONTES E R O D A C I T ES
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manos
Capacidade precocemente desenvolvida para suportar o insuportável. Fragilidade aparente que, vista de perto, é indício de uma vitalidade superior, criadora de modos insuspeitados de resistência face ao sofrimento. Um sofrer que recruta um agir: o ato tenaz de lamber as próprias feridas, constituindo, a partir delas, uma nova economia da dor, aquela capaz de perscrutar e reunir forças ativas para encarar o necessário atrito com o mundo. Eis a relação intrínseca entre existir e resistir que perpassa os 18 anos de vida do estudante Mário Ítalo, um dos 817 jovens educandos em situação de vulnerabilidade social já acolhidos pelo ViraVida, programa de desenvolvimento humano, aprendizagem e capacitação profissional criado em 2008 pelo Conselho Nacional do Sesi e gerido conjuntamente por todo o Sistema S.
DIREITOS HUMANOS
DIREITOS HUMANOS
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Vida que arde desde cedo Vida que arde desde cedo. Em 2014, ao chegar ainda adolescente ao Centro Integrado SESI-SENAI, na Parangada, sede do projeto ViraVida, Mário agarrou com força o último fiapo de esperança e amparo surgido desde que perdeu a mãe de forma trágica e abrupta, aos 12 anos de idade. Foi em pleno réveillon, em um balneário onde as tias tinham um pequeno comércio para venda de bebidas e comidas, instalado à beira de um açude, nas imediações de Caucaia. Ao final da tarde, ela já estava alcoolizada e, justo naquele dia, o filho, companhia inseparável e guardião atento, havia sido recrutado para ajudar no atendimento ao público, que só aumentava. Ao perdê-la de vista, não demorou a intuir, em meio a tanto alvoroço, que o tal afogamento espalhado aos quatro ventos o atingiria em cheio. “Meus pais são separados há muito tempo e, desde a minha infância, tomei conta da minha mãe, que era alcoólatra. Era eu quem carregava pra casa, que ia buscar nos lugares sempre que ela caía de bêbada. Minha mãe também era lésbica. Mas nunca tive problema com nada disso, nunca tive vergonha dela. Ao contrário, cuidava porque amava. Então, fiquei sem chão, morando com um e outro familiar, largado. Foi quando tudo se complicou”, conta. Entre moradas provisórias e improvisadas, os descaminhos foram dar no endereço de uma tia envolvida com tráfico de drogas, que acabou presa. Época em que Mário também chegou a experimentar algumas delas, ao mesmo tempo em que passaria a beber quase que diariamente, entre noites e noites de baladas. Junto aos excessos juvenis, afloraram os desejos. E foi ao se descobrir gay que enfrentou a rejeição absoluta de toda a família, incluindo o pai.
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Antes disso, em dias de guarida na casa da avó, algo pior já havia acontecido, sem que ele tivesse coragem de contar para ninguém: abuso sexual por parte de um primo mais velho que, nesse mesmo período, foi vítima de um acidente automobilístico fatal. Traumas e violências de ordens diversas que o adolescente só viria a elaborar após a acolhida no projeto ViraVida. Segundo Ivana Timbó, há oito anos delegada titular da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e Adolescente do Ceará – Dececa, o abuso sexual não envolve necessariamente violência física, mas qualquer forma de constrangimento que uma pessoa possa vir a sofrer no que se refere à sexualidade. “O abusador, geralmente, é uma pessoa próxima, parente, vizinho. Procura seduzir a vítima com bombons, presentes, o objetivo é comprar o silêncio da criança. Por estar próximo, em muitos casos, a violação se estende por muitos anos, até a juventude”, ressaltou. No entanto, a coragem de denunciar, para ela, vem aumentando. “A gente percebe que as pessoas violentadas não admitem mais ficar com aquilo guardado, é um peso. Acredito que as pessoas estão denunciando mais por conta da disponibilidade de equipamentos sociais e das melhorias na educação. Na medida em que vão tendo uma melhor educação e mais cultura não admitem mais se calar”. “Foi nesse estado de total insegurança, confusão e culpa que ouvi falar do ViraVida, através de uma amiga que já estava passando pela formação. Confesso que o que ficou na minha cabeça foi a possibilidade de ganhar dinheiro só pra estudar. Todos nós ganhamos uma bolsa de R$ 150,00 a cada mês, durante o ano em que fazemos os cursos. E quando termina o período de aprendizagem, somos encaminhados pra estágios ou empresas parceiras, em que trabalhamos como jovens aprendizes e ganhamos nosso primeiro salário-mínimo. Existir para resistir
Virada que não veio sem esforço. Ao aderir ao processo de aprendizagem e qualificação profissional do ViraVida, o adolescente que se rendeu à partilha do sensível também teve que queimar pestanas. Ao longo de um ano, acordou cedo para cumprir a grade curricular de cursos ligados à computação, finanças e empreendedorismo, entre Sesi, Senac e Sebrae; passou a integrar a turma do EJA, a fim de recuperar o tempo afastado dos estudos; e se viu obrigado a voltar para o ensino formal, encarando a sala de aula no turno da noite. Só assim, após ser devidamente certificado, é que pôde concorrer, enfim, à seleção para o primeiro emprego como Jovem Aprendiz, fase em que também contou com o apoio do ViraVida para se preparar paralelamente para a entrevista. Longe de baladas e afins, o estudante que hoje está prestes a fazer vestibular para Publicidade e Propaganda abre um largo sorriso metálico ao se apresentar como auxiliar-administrativo recém-contratado pelo Banco do Nordeste. ESTICADORES DE HORIZONTES
“Não vou mais largar os estudos e não vou fazer mais nenhuma besteira. Já comecei a estudar inglês e quero viajar o mundo, conhecer outras culturas, aprender mais e mais. Acho que o mais valioso pra mim nessa experiência do ViraVida, que infelizmente tá chegando ao fim, isso porque eu já estou inserido no mercado de trabalho, foi aprender como me impor perante a sociedade e a minha família. Hoje, incluindo meu pai, todos me respeitam, acreditam em mim, sabem que essas são só as primeiras conquistas da minha vida. Eu acho que qualquer ser humano gosta e precisa ser reconhecido, a gente precisa da aprovação do outro pra ser feliz. E, aqui, eu aprendi a não me sentir culpado pelos meus fracassos e erros, porque eles fazem parte da vida de qualquer pessoa. O importante é a gente fazer deles um trampolim para os acertos, um estímulo para tentar de novo e não desistir dos seus sonhos, dos seus objetivos. Isso não é um curso que ensina, é a relação de amizade. Agora, só venho para o ViraVida de 15 em 15 dias, pra reuniões de acompanhamento. Mas se você olhar no meu whatsapp, vai ver as mensagens que os ex-alunos continuam trocando entre si e com os professores. Essa virada aqui é sem volta e vai com a gente pra onde a gente for, porque mora no coração”, assinala Mário. [texto - Ethel de Paula]
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Não vou mais largar os estudos... Já comecei a estudar inglês e quero viajar o mundo, conhecer outras culturas, aprender mais e mais
Para Liduína Martins, promotora da 4ª Promotoria do Ministério Público do Estado do Ceará e com atuação na 12ª vara criminal, especializada em crimes de natureza sexual contra crianças e adolescentes, “o poder público poderia realizar mais campanhas educativas e de sensibilização. As crianças, muitas vezes, nem sabem que estão sendo abusadas, só vão se dar conta disso na juventude. As campanhas públicas são poucas e o acompanhamento psicossocial precaríssimo. A situação exige uma resposta do poder público à altura”. A promotora também defendeu o aumento das parcerias com as entidades públicas.
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Isso pra quem é pobre e não vê futuro pela frente é o maior atrativo, não posso negar”, justificou. Mas bastou conhecer o projeto de perto para entender que, na verdade, o mais importante não seria o dinheiro. “O ViraVida descobre qual é a sua necessidade interior, porque aqui também somos acompanhados por psicólogos e assistentes sociais. Eu não gostava de demonstrar emoções. Sofria calado. Mas com a ajuda dos profissionais, consegui botar toda aquela mágoa pra fora. Passei a desabafar e a ouvir histórias até mais pesadas do que a minha.Vi que não estava só e era compreendido. Esse foi o começo da virada”, aponta.
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Os lampejos de vigor e inocência ainda estão ali. Sobrevivem indestrutíveis, apesar da infância sombria de Maria Lúcia (nome fictício), educanda do projeto ViraVida que, aos 17 anos, ainda se emociona ao contar sobre o providencial processo de qualificação profissional vivido no âmbito do Sesi-Senac, aprendizado que já resultou em um primeiro estágio na Receita Federal. Mais do que um divisor de águas. Para ela, que se proclama missionária e vem desenvolvendo no bairro periférico de origem, o Planalto Airton Senna, ações assistencialistas, a experiência atual pode mesmo ser comparada à passagem bíblica em que o profeta Moisés abre caminho para o povo hebreu seguir adiante por entre um Mar Vermelho milagrosamente partido ao meio. A metáfora é para contar sobre o sofrimento descomunal em ter visto a mãe ser espancada pelo pai até perder a razão e a conexão com o mundo exterior. “Desde que eu era criança, meu pai sempre agrediu minha mãe por ciúmes. Marcia Luce Aires é coordenadora de Políticas para as Mulheres da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos (SCDH) da Prefeitura de Fortaleza. Para ela, a cultura machista ainda está intrinsecamente ligada ao agravamento da violência contra a mulher. “Os números se mantêm alarmantes porque, muito embora as mulheres brasileiras tenham, nos últimos anos, alcançado uma série de direitos e de mecanismos de proteção à sua dignidade, ainda viceja fortemente na sociedade brasileira uma cultura machista, patriarcal e sexista, por meio da qual a mulher é objetificada e subjugada, a exemplo da forma como normalmente aparece configurada na publicidade”, denuncia. Assim, acredita, é necessária a existência de políticas de Estado que levem informação e diálogo para junto das famílias, das escolas e de todos os espaços de formação cidadã, em nome da equidade entre os gêneros como um valor basilar.
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E, quando eu tinha uns 7 anos, ela simplesmente passou a não me reconhecer mais, não sabia de nada, enlouqueceu, como se diz. E ficou internada pelo menos por um ano no São Vicente de Paula, um hospital de louco. E eu acho que isso aconteceu por conta da violência que ela sofria há muito tempo. Nesse período, meu pai saía pra trabalhar e só voltava à noite. Então, eu ficava tomando conta do meu irmão caçula e a vizinhança era que dava comida pra gente, quando tinha. Eu não podia visitar a minha mãe, porque era perigoso criança entrar no manicômio. Quando ela finalmente voltou pra casa, tomando remédio controlado, assim mesmo, ele continuou batendo. Até que um dia ela não aguentou mais e disse que ia embora com a gente. Saímos sem nada, porque ele não deixou. Mas depois de muita dificuldade e com ajuda de pessoas de Deus, conseguimos viver em paz”, relata. ESTICADORES DE HORIZONTES
Aberto o leque de possibilidades, é com a autoestima elevada que Maria Lúcia encara os atuais desafios e vai elencando outros. Enquanto estagia na Receita Federal pela manhã, faz cursos profissionalizantes à tarde no Senac e finaliza o Ensino Médio à noite. Diariamente, reserva os sábados para assistir aulas especiais voltadas aos conteúdos do Enem no Sesi Parangaba. Nas poucas horas vagas e aos domingos, ainda encontra tempo para estudar para concursos. Isso porque sonha em vestir a farda da Polícia Rodoviária. Ou integrar a equipe da Secretaria de Educação do Estado. Ou ainda compor a coordenação de alguma ONG.
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ele sempre dizia que só queria filho, menina não
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Maria Lúcia [imagem 202B]
A filha, que por toda a vida também foi rejeitada pelo pai – “ele sempre dizia que só queria filho, menina não” – hoje testemunha e comemora a recuperação da mãe, que permanece em tratamento via CAPS, mas leva uma rotina sem agravos. É com ela, “a melhor amiga”, que também comemora cada conquista pessoal e profissional diretamente ligada à descoberta e incursão no projeto ViraVida. “Sempre gostei de estudar e mesmo com tudo o que passei, nunca parei de ir pra escola. Era o melhor lugar do mundo pra mim, claro. Fugia desde pequena tanto pra escola quanto pra igreja. Porque ali todos sabiam da minha situação e me encorajavam a seguir em frente. Foi o que encontrei também quando cheguei no ViraVida: estímulo, compreensão, bem-estar e, claro, conhecimento. Acho que o estudo foi, assim, a minha forma de sair um pouco da realidade e sonhar com outras. Graças ao estudo, a esse aprendizado aqui no ViraVida, veio o primeiro trabalho. E isso foi tão importante na minha vida que até minha mãe, contagiada, voltou a estudar. Depois disso, sei que posso ser o que eu quiser, morar onde for, até no Japão, porque sempre vai ter uma profissão que eu possa aprender”, observa.
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Ficava nas calçadas, sem ter como entrar. E isso me machucava demais. Foi quando comecei a trabalhar num restaurante e estudar à noite. Lá eu servia, entregava marmita de sol a sol, lavava, limpava. E foi assim que tomei coragem pra pedir pra morar com meu avô, pagando alguma conta de lá. Mas ele também viajava e mudava os cadeados pra eu não entrar. Tinha que passar pela humilhação de deixar a farda e algumas roupas no varal do quintal pra pular o muro e poder me vestir. Era muita humilhação”, recorda.
Cláudia Andrielly [imagem 202B]
De imediato, sonha também – e especialmente – em ver a mãe ser contemplada pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal. Assim, escapariam do aluguel que hoje consome boa parte do rendimento de ambas. “O número da minha mãe na lista de possíveis ganhadores é o 33. A idade de Cristo, né? Então, depois de tudo o que me aconteceu de bom, como é que não vou acreditar que ela vai ser uma das ganhadoras?”, conjectura, confiante. Confiança é o que também move a estudante Cláudia Andrielly, 18, outra educanda do ViraVida cuja biografia muda radicalmente ao conhecer o projeto. Abandonada ainda na maternidade pela mãe e sem jamais conhecer o pai, passou a viver sob custódia da avó, que falece quando ela mal completara 12 anos. “Fiquei órfã pela segunda vez e meio que jogada de casa em casa. Minha tia quis ficar comigo, mas o esposo dela bebia e me botava pra fora de madrugada.
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foi no próprio ViraVida que me fortaleci. Ali, com toda a equipe de profissionais me apoiando e orientando, aprendi que o medo é justamente o começo da coragem A via-crúcis da menina pelo bairro Jacarecanga chamou a atenção de lideranças comunitárias. Atraída para o Projeto Ilhas, foi encorajada por uma psicóloga a largar o trabalho pesado do restaurante e procurar qualificação profissional no ViraVida, onde, além de alimentação e vale-transporte, havia atendimento psicossocial e bolsa de estudos para quem estivesse disposto a se dedicar ao longo processo de aprendizado. Andrielly reuniu forças, respirou fundo para aguentar por mais um ano os maus-tratos nas casas de familiares e, hoje, já pode bater no peito, orgulhosa, por ser mais uma jovem aprendiz contratada como auxiliar-administrativa no Banco do Nordeste. Assim, o primeiro salário-mínimo da vida veio como uma carta de alforria. Indestrutíveis, venceremos
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“O dinheiro é pouco, mas fui comprando o essencial à prestação. Escondia tudo na casa de uma ex-sogra, mãe do meu primeiro namorado, grande incentivadora também. Até que, há um mês, tomei coragem pra alugar uma quitinete pra mim. Tive muito medo de não conseguir me manter, mas foi no próprio ViraVida que me fortaleci. Ali, com toda a equipe de profissionais me apoiando e orientando, aprendi que o medo é justamente o começo da coragem. Eu ouvia: ‘vá com medo mesmo, mas vá. Fui. E quer saber? Ganhei um monte de presentes dos amigos do banco e a casinha já tem mais do que o essencial. É o meu lugar, de onde posso entrar e sair a qualquer hora. Só precisava ter a minha paz, o meu sossego, a minha liberdade, nem que fosse numa caixinha de fósforo. Isso, por si só, já me faz a pessoa mais realizada do mundo, capaz de enfrentar tudo pra conquistar muito mais. O próximo passo agora é cursar enfermagem e cuidar de idosos. Isso porque se assim, tão jovem, eu já senti o gosto amargo do abandono, imagine eles, que são considerados improdutivos, né? Não, vou abrigar todos eles, serão os meus velhinhos”, planeja a “guerreira”, alcunha recebida de bom grado e por motivos óbvios, ainda em sala de aula. [texto - Ethel de Paula]
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Primeiro, o choque. Torpe e criminoso, o comércio de infâncias, desfilando explicitamente em pleno calçadão da orla marítima de Fortaleza, quinta capital brasileira, não poderia passar despercebido – e muito menos ser encarado como algo natural. Eis a imagem desoladora e preocupante, ligada à exploração sexual de crianças e adolescentes, que sensibilizou e animou o ex-presidente do Conselho Nacional do SESI, Jair Meneguelli, a propor a criação do projeto ViraVida, ainda em 2008. Tendo como público-alvo jovens entre 16 e 21 anos vítimas de crimes do tipo, a experiência-piloto foi plantada no Ceará e a aposta se deu com base na promoção do desenvolvimento humano através da qualificação profissional estrategicamente vinculada a um programa paralelo de geração de emprego e renda. Mas não só: o foco haveria de se estender para a educação continuada, o fortalecimento da autoestima e a conquista da autonomia, com ênfase no protagonismo juvenil.
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Segundo a Assessoria de Análise e Estatística Criminal do Ceará (Aaesc), da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado, o número de crianças e adolescentes (de zero a 17 anos) vítimas de crimes sexuais - estupro, estupro de vulnerável, atentado violento ao pudor e exploração sexual de menor - em âmbito estadual, teve uma variação negativa de 8% entre 2014 e 2015. No entanto, o número dos casos, considerando apenas os que são denunciados oficialmente, ainda é muito elevado. Em 2015, foram 1.263 casos de crimes sexuais, representando uma média de quase quatro ocorrências de violação sexual a cada dia, no Ceará. Do total de casos registrados, 584 ocorreram com jovens entre 12 e 17 anos, e a grande maioria ainda afeta as mulheres (1.071 casos registrados). As reviravoltas da vida
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Feito o pacote internamente, pensou-se onde e como fazê-lo repercutir e se desdobrar em bons resultados lá fora. Hora de acionar parcerias: ONGs, órgãos governamentais, empresas que poderiam receber esse contingente de jovens extremamente capacitados para estágios ou contratos empregatícios diversos. Junto ao Governo Federal e ao Governo do Estado, os programas Jovem Aprendiz e Primeiro Passo vieram somar ao processo de articulação e encaminhamentos para o mercado de trabalho. Hoje, instituições e empresas como Casas Freitas, Freitas Varejo, Handara, Nido Box, Água de Coco, Super Deli, Panevitta, Banco do Nordeste, Petrobras e Avine recebem de bom grado essa mão de obra comprometida e sedenta por rendimentos cada vez melhores. Em âmbito institucional, Advocacia Geral da União, Delegacia da Mulher, Receita Federal, Cagece e Santa Casa de Misericórdia são outras portas de entrada para educandos que vão experimentar o gosto do primeiro estágio remunerado.
Segundo a Coordenadoria da Mulher, do Governo do Estado do Ceará, a agenda atual está voltada ao fortalecimento e ampliação dos equipamentos que compõem a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, à operacionalização das Unidades Móveis de Atendimento à Mulher em Situação de Violência do Campo, da Floresta e das Águas, assim como à implementação da Casa da Mulher Brasileira do Ceará. Este equipamento, que será inaugurado em 2016, terá, no mesmo espaço, Delegacia da Mulher, Juizado da Mulher, Ministério Público e Casa de Passagem. “Acreditamos que continuar o que foi feito é positivo para solidificar uma política de gênero no Estado, dando continuidade às atividades das Unidades Móveis no interior do Estado, articulação e acordos de cooperação com os equipamentos, prefeituras e ONGs”, informou via e-mail.
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o ViraVida já atendeu 817 jovens. Destes, 551 saíram certificados e 472 foram inseridos no mercado de trabalho
Para tanto, foram pensados, conjuntamente, os meios: doze meses de aprendizagem com direito à certificação, em que todo o Sistema S estaria envolvido, sobretudo Sesi, Senai, Senac, Sebrae e Sescoop. Em sala de aula, conhecimento vasto: empreendedorismo, cooperativismo, autogestão, finanças, administração, matemática, português, direitos humanos, cidadania, esporte, cultura, lazer e saúde, tudo coexistindo em uma mesma grade curricular. E, antes mesmo dos conteúdos em si, foco no autoconhecimento: atendimento psicossocial, terapias comunitárias, vivências e dinâmicas, não só enquanto estratégia de acolhimento, mas também para fazer acordar potencialidades roubadas face a tanta violência vivida. Para manter a adesão de jovens emocional e economicamente fragilizados, o ViraVida ainda viabilizou uma bolsa de R$ 500,00 mensais a todos os educandos, além de alimentação, vale-transporte e material didático.
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Alunos do ViraVida [imagem 202B]
Mário Ítalo e Cláudia Andrielly [imagem 202B]
De 2008 até 2015, o ViraVida já atendeu 817 jovens. Destes, 551 saíram certificados e 472 foram inseridos no mercado de trabalho. Na ponta do lápis, a evasão gira em torno de 18%, índice considerado baixo pelo coordenador pedagógico do projeto, Anderson Machado, que leva em consideração a altíssima vulnerabilidade da parcela da população com a qual trabalha. Como meta, 2016 trouxe consigo o desafio de formar 100 jovens, sendo 50 do Ensino Fundamental e 50 do Ensino Médio. “Percebemos que o maior índice de evasão se dá entre aqueles do Ensino Fundamental. Isso por conta de uma defasagem escolar mesmo, ou seja, parte deles não consegue acompanhar o ritmo de conteúdos aplicados, por conta de uma questão cognitiva. E também porque o ViraVida exige um compromisso sério com os estudos. Para permanecer no projeto, eles vão ter que estar conosco um turno fazendo cursos e, no outro, ir à escola formal, para mais à frente, ainda estagiar ou trabalhar como Jovem Aprendiz. Quer dizer, o ritmo é puxado, ao longo de pelo menos um ano. E alguns desistem no meio do caminho”, ilustrou. O que seria um engasgo no processo de aprendizagem já gerou mudanças no ViraVida. A partir de 2016, não só o perfil dos candidatos se diversificou, a fim de abraçar outros tipos de violências que não somente aquelas ligadas ao abuso ou exploração sexual, como a metodologia vem sendo repensada. “Através de uma triagem inicial feita junto a instituições parceiras que também trabalham com o acolhimento desse público em situação de vulnerabilidade social, hoje já recebemos jovens que cumpriram medidas socioeducativas, que têm vínculos familiares fragilizados ou baixa escolaridade, enfim, o leque se abriu porque são muitas as violações aos direitos deles – e por toda uma vida. Diante disso, o formato também muda, até para diminuirmos ainda mais as evasões.
Alunos do ViraVida [imagem 202B]
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é no núcleo familiar que o jovem de baixa renda também tem que ter estímulo, se sentir acolhido, para não ceder a apelos externos ou promessas de ganho financeiro imediatistas, em detrimento aos estudos e ao trabalhado assistido Fundamental porque, segundo ele, é no núcleo familiar que o jovem de baixa renda também tem que ter estímulo, se sentir acolhido, para não ceder a apelos externos ou promessas de ganho financeiro imediatistas, em detrimento aos estudos e ao trabalhado assistido. “Temos que unir forças para que não haja interferência durante o processo de aprendizagem. Por isso, estamos cada vez mais próximos das famílias e até atendemos aos familiares, promovendo encontros periódicos, ministrando oficinas e viabilizando encaminhamentos ao mercado de trabalho, quando possível”, acrescentou. A preços de hoje, o custo por aluno do ViraVida, em Fortaleza, é de R$ 530,19/mês, totalizando R$ 6.362,32/ano. Segundo o coordenador pedagógico, ao saírem de lá, 100% deles dão continuidade aos estudos e aos trabalhos, seja como empregados ou mesmo enquanto empreendedores. Alguns já fazem parte, inclusive, do quadro de funcionários do Sistema S. E quem os contrata não quer mais abrir mão. Assim, o jogo vem sendo ganho de virada. [texto - Ethel de Paula]
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A preços de hoje, o custo por aluno do ViraVida, em Fortaleza, é de R$ 530,19/mês, totalizando R$ 6.362,32/ano. Ao saírem de lá, 100% deles dão continuidade aos estudos e aos trabalhos
A formação que fazíamos internamente ao longo de um ano, agora se resume a quatro ou seis meses. Abreviamos porque o jovem ficava ansioso para entrar logo no mercado de trabalho. A ordem é encaminhá-los mais cedo às empresas parceiras e ir fazendo esse acompanhamento em paralelo, de forma que ele passe um turno conosco e outro trabalhando. Assim, a bolsa do ViraVida passa a ser de R$ 150,00 mensais, só que eles somam ao salário de aprendiz, que atualmente gira em torno de R$ 400,00. Isso vem estreitar ainda mais os vínculos entre o ViraVida e seus parceiros, além de satisfazer e beneficiar mais rapidamente também as famílias dos jovens que, a rigor, anseiam vê-los logo empregados. Manter essa tríade – ViraVida-família-empresa – em equilíbrio é fundamental”, observou Anderson.
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Lídia Rodrigues [imagem 202B]
Era o ano de 2004, quando Lídia Rodrigues, voluntária na Associação Curumins, ONG que trabalha com crianças e adolescentes, iniciava seu trabalho de combate à violência e exploração sexual. Por meio da sua colaboração nessa ONG, assumiu a coordenação colegiada do Fórum Cearense de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Em 2008, ainda na Associação Curumins, Lídia compôs a coordenação colegiada da Rede ECPAT Brasil, e participou da organização do III Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual. Desde 2012, a ativista social faz parte da Coordenação de Mobilização Social da Associação Barraca da Amizade, uma das parceiras do Sesi no projeto ViraVida.
“A literatura predominante sobre o tema aponta que as relações de poder são as maiores determinantes nas dinâmicas de abuso e exploração sexual”, assinala Lídia. “O abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes são um problema multicausal e de raízes sócio-históricas. O machismo, o adultocentrismo, o racismo, o classismo, a lgbtfobia [ fobia de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais], entre outros, são sistemas de poder que estão intrinsecamente ligados à sustentação da cultura de dominação sexual perversa, que está, por vezes, extremamente naturalizada, arraigada no corpo social”, destacou. “Não podemos afirmar que o problema tem piorado”, ressalvou a especialista. “Acontece que, antes, o problema estava profundamente escondido, mas temos percebido um aumento na abordagem do tema na sociedade. O assunto vem progressivamente ganhando a pauta pública e sendo incorporado às preocupações políticas para a promoção da justiça social. Isto faz com que os casos sejam mais denunciados, e que fatos que anteriormente ficariam escondidos ganhem a pauta pública”, ratificou.Lídia Rodrigues também alerta para o fato de que os números oficiais sobre violência sexual no Brasil estão bem abaixo da realidade. “Estima-se que, para cada caso denunciado, pelo menos seis deixam de ser”, arrisca. “Sabe-se também que, quanto ao sexo, a maioria das vítimas é menina e adolescente trans”, pontuou. As consequências da violência sexual para a vítima são profundas e se propagam por toda a vida. “Fisicamente, entre as consequências, posso citar as DSTs [doenças sexualmente transmissíveis], gravidezes indesejadas, dilaceramento de órgãos sexuais. Mas os sinais psíquicos, embora invisíveis, podem ser mais danosos. Há sentimentos como insegurança, culpa, depressão, assim como problemas sexuais, a exemplo da dificuldade de se chegar ao orgasmo, bloqueios ou culpa ao sentir prazer, diminuição da libido, dificuldade de se entregar em relacionamentos íntimos, baixa autoestima, síndrome do pânico e até tendência ao suicídio”, enumerou Lídia.
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O dia a dia do enfrentamento à violência sexual
“Recomenda-se a notificação ao Conselho Tutelar para que este possa orientar quanto aos outros encaminhamentos. Dependendo do caso, a vítima pode precisar de atendimento de saúde de urgência para profilaxia de emergência e cuidados ambulatoriais ou cirúrgicos.
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A rejeição interna chega a tornar os órgãos genitais insensíveis ou mesmo doloridos. “É costumeiro o sentimento de impureza e indignidade para ter um relacionamento amoroso natural e positivo”, emendou. Aos pais e responsáveis, a dica de Lídia é observar o comportamento dos filhos. Podem surgir sintomas como “medo de ficar só com um adulto, acessos de tristeza, distúrbios alimentares, automutilação, comportamento sexual incompatível com o grau de desenvolvimento, apatia diante da vida...”. No caso da agressão ter sido constatada, deve-se buscar apoio especializado.
Também é importante que os responsáveis façam a notificação na delegacia especializada. Mas a preocupação principal, diante de uma situação de violência sexual, deve sempre ser o bem-estar da vítima”, explicou Lídia. Pode ocorrer, por conseguinte, da própria vítima desejar esquecer o ocorrido e não levar o caso à justiça, seja por medo do agressor ou do próprio sofrimento. Para a especialista, entretanto, deve-se encorajar a denúncia. “No sistema de justiça, há, inclusive, uma metodologia de inquirição especial que, embora não seja amplamente aplicada, apresenta sucesso na diminuição de revitimização das vítimas. Algumas abordagens terapêuticas variam sua metodologia para melhor atender a esse tipo de violação, desde o atendimento clínico, arte-terapia, psicodrama... Depende muito da própria vítima e de como ela ficará à vontade. O importante é que, em todo atendimento, a vítima seja ouvida e sua opinião seja levada em conta”, reiterou.
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Poder público e parcerias Para Lídia Rodrigues, no momento atual, em matéria de enfrentamento à violência sexual no Ceará, “é fundamental a revisão e aprovação do Plano Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes”, plano este que, segundo a ativista, encontra-se desatualizado. A exploração sexual de crianças e adolescentes é uma pauta cara ao Ceará. Conhecido por suas belas praias, o Estado também figura entre os principais destinos turísticos sexuais do país. Uma boa estratégia para se combater a violência sexual é a parceria entre poder público e organizações da sociedade civil, segundo a ativista. “Para o enfrentamento à violência sexual, atualmente, as parcerias com o poder público se dão via editais em nível federal, para o desenvolvimento de metodologias inovadoras e mobilização social. Mas existem várias coisas que poderiam ser feitas: qualificação do corpo técnico público para lidar com o problema; articulação de ações via fóruns e redes; cooperação entre as organizações públicas e da sociedade civil organizada; e a constante cobrança do Estado, eis algumas delas”, pontuou. Para ela, a ação transversal é imperativa. “Legalmente falando, as ONGs teriam a competência de notificarem os casos, o Estado deveria assumir o atendimento, e a sociedade civil faria o controle social dessas políticas. No entanto, historicamente, quem desenvolve metodologias e realiza atendimento são, em muitos casos, as ONGs, principalmente em se tratando de exploração sexual. Porém, as organizações o fazem com recursos técnicos e financeiros bastante escassos”, advertiu Lídia. [texto - Benedito Teixeira] ESTICADORES DE HORIZONTES
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D E HORIZONTES S E R O D A C I SE T violĂŞncias
Helena Santos [imagem 202B]
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Juventude capturada
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VIOLÊNCIAS
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O alargador de orelha e o piercing no nariz ficaram para trás. Espelho, ali, também não entra. O kit básico de sobrevivência é o mesmo para todas: um calção laranja, uma camiseta branca, um copo, uma colher. Racionada, a água para banho não pinga mais do que uma vez por dia e, de tão salobra, provoca coceira pelo corpo e queda de cabelo. Assim, a beleza e a autoestima, tão caras às mulheres, vão perdendo espaço para a domesticação dos desejos e a maquinização dos gestos. Logo na entrada, se cumpra a primeira regra: é imperativo andar reto sobre a linha amarela traçada ao longo do chão. Mãos para trás, cabeça baixa, boca cerrada. Não se permite qualquer passo em falso entre os corredores que levam às celas do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, em Fortaleza. E que as internas assimilem sem demora: ao se dirigirem às agentes penitenciárias, o pronome de tratamento “dona” deve soar em alto e bom som. É “dona agente” e “sim, senhora”.
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Imagens de dominação que seguem martelando a memória recente de Helena Santos, 20, sentenciada a cumprir pena de um ano e oito meses em regime aberto, prestando serviços comunitários; isso após passar exatos quatro meses e 20 dias encarcerada. O motivo: foi flagrada por um policial à paisana no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, equipamento cultural da Praia de Iracema, com 12 gramas de maconha no bolso.Vivia, segundo afirma, a melhor fase de sua vida. Tinha tido a primeira experiência de emprego como Jovem Aprendiz e acabara de passar pela peneira do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], figurando na lista de classificáveis da Uece [Universidade Estadual do Ceará] para cursar Serviço Social.
de repente, estávamos eu e um amigo, que tinha mais uma grama de maconha, dentro do camburão da Força Tática “Era um fim de semana como outro qualquer e, feito a maioria dos jovens que vai se divertir na Praia de Iracema, eu tava com meu baseado, tomando cerveja, de boa. E realmente não acreditei quando o ‘cana puxou o distintivo e disse que eu tava presa. Era um playboy na minha frente. E eu não tava fumando nessa hora, mas tinha fumado antes, com um monte de outros usuários ao redor. Ele cismou com a minha cara. ‘Bora, não tô brincando não, tu tá presa’. Olhei assim: meu chapa, vá dar uma volta na Beira-mar, um monte de gente sendo roubada, vá prender peixe grande. Sou maconheira, não sou traficante não. Acho que isso deu foi mais raiva nele... Era uma raiva estampada no rosto que eu não conseguia entender.
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“Nosso sistema penal completou 250 anos prometendo três coisas que nunca conseguiu cumprir. Quando foi criado, no século XVIII, o pensamento era: ‘se eu punir alguém com prisão, pelo exemplo, os crimes vão diminuir’, mas isso nunca aconteceu; ‘se eu punir, a vítima e a sociedade vão se sentir reconfortadas’, mas isso, ao que parece, nunca aconteceu; e ‘se eu punir pessoas, essas sairão melhores do sistema’, mas, na prática, o que o sistema penal faz é, basicamente, produzir mais e mais brutalidade e estigmatização”, apontou o deputado estadual Renato Roseno (Partido Socialismo e Liberdade - Psol), relator do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência da Assembleia Legislativa do Ceará. E de repente, estávamos eu e um amigo, que tinha mais uma grama de maconha, dentro do camburão da Força Tática”, recorda. Para Helena, o trajeto até a Divisão de Homicídios soou como uma espécie de condenação antecipada. “Quando eu já tava na viatura, eles trouxeram outro cara e botaram lá dentro. Aí foram na favela do Baixa Pau, entraram dentro da casa dele e acharam 32 gramas de maconha. Algemaram eu, meu amigo, esse cara, todo mundo junto. E simplesmente disseram: “vai responder por formação de quadrilha, associação ao tráfico e desacato à autoridade”. Brother, eu nem conhecia o cara. Quando vi, tava dentro de uma sala com um monte de traficante de verdade, de pedra, de pó. Tinha assassina, ladra, altos artigos e eu ali, sem entender direito aquela galera. Tinha hora que eu tinha vontade de rir, outra de chorar... Desde a morte da minha mãe, quando eu tinha 16 anos, rompi com minha família inteira, que nunca aceitou o fato de eu ser lésbica e fumar maconha. Ou seja, não tinha sequer a quem chamar. Entrei sexta à noite e terça já desci pro Juventude capturada
Trezentos reais por mês. Era com a pensão por falecimento deixada pela mãe que Helena pagava o quitinete onde até então morava, enquanto corria atrás de vagas em projetos sociais profissionalizantes aptos a encaminharem jovens de baixa renda para o mercado de trabalho. Aperto que nem se compara ao que passou no período em que dividiu com 11 presas uma cela na abafada ala D, onde preferia dormir na “pista”, milimetricamente estirada sobre o chão batido, a ter que enfrentar o calor asfixiante das comarcas. Isso depois de passar pela já traumática triagem, espécie de pavilhão de espera, um limbo que antecede a locação definitiva das recém-chegadas, entre elas apelidado de “cu da cobra”. “Ainda bem que fiquei só um dia lá. Tem gente que passa semanas. E é horrível, porque é justo o lugar onde ficam as presas ‘espirradas das celas, as que não são aceitas em nenhuma ala, justamente porque são traiçoeiras ou perigosas demais.”, justifica. ESTICADORES DE HORIZONTES
“O encarceramento sempre vai ser para aqueles que não tiveram nenhum outro lugar na sociedade. Por que o encarceramento hoje é de jovens? Porque estamos vivendo uma exclusão social, geracional e racial da juventude muito evidente. 50% dos homicídios registrados no Ceará vêm de 40 assentamentos existentes em Fortaleza, e nós sabemos que o Estado é muito ausente nesses territórios. Você está com 17 anos de idade, olha para o circuito de rentabilidade que você tem no mercado legal, tendo baixa escolaridade, uma escola pública que é ruim... Na outra ponta, o mercado ilegal acaba se apresentando como uma alternativa mais rentável, possível e factível. Se não estivessem presos, onde esses jovens estariam? Eles deveriam estar no mercado de trabalho, produzindo arte, cultura, deveriam estar nas universidades, nas escolas, mas por que eles estão lá? Porque a sociedade escolheu que a prisão seria a alternativa pra eles. Nosso sistema acabou se tornando um sistema de administração penal da miséria instituída”, denunciou o parlamentar Renato Roseno, relator do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência da Assembleia Legislativa do Ceará.
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quando eu tinha 16 anos, rompi com minha família inteira, que nunca aceitou o fato de eu ser lésbica e fumar maconha. Ou seja, não tinha sequer a quem chamar. Entrei sexta à noite e terça já desci pro presídio
Conviver entre diferentes exigiu maturidade precoce, jogo de cintura, “calma para não ficar igual”. “É claro que existem criminosas ali, mas, com certeza, muitas também inocentes, esperando resposta do juiz. Basta enfileirar uma a uma: a maioria é visivelmente pobre, negra e cada vez mais jovem. São mulheres que não tiveram acesso à educação, à cultura, nem mesmo a saneamento básico. Muitas já foram estupradas ainda menores de idade, cresceram vendo os pais usarem drogas e acabaram entrando pro mundo do crime, principalmente por causa de homem, do companheiro. São usuárias de crack, tratadas como lixo.Você vê mães, senhoras idosas lá dentro. Ouvi uma história muito triste, de um filho que criava passarinho e a polícia entrou batendo. A mãe pegou um cabo de vassoura e começou a defender o filho, não sabia que era um policial à paisana.
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presídio. Porque nem delegacia específica tem pra mulher. O homem ainda fica lá um tempo e, se tiver dinheiro, paga um bom advogado e consegue ser liberado antes de descer, entendeu? A mulher não, como a Divisão é pequena, pra não lotar, tem que descarregar logo, ainda mais se, como eu, não tiver emprego nem renda”, assinala.
Helena Santos [imagem 202B]
Levaram a senhora por desacato. Já tava cumprindo mais de um ano de cadeia, cara. Coisa que não é normal. Olhe, levam mulher cega e idosa pro presídio, raquítica, deficiente, com problema de cabeça, muitas já com alvará, mas presas há meses... E reze pra não ficar doente, o que é difícil quando até a água de beber tem que ser coada por conta do lodo que vem junto.Vi uma mulher com suspeita de tuberculose ser isolada com outra que realmente tinha a doença na “tranca”. A “tranca” é um lugar úmido, um canto podre, cheio de fezes de gatos, onde você mal come, mal bebe, fica sozinha lá, confinada. Esse tipo de tratamento aniquila e revolta qualquer um”, critica. Revolta que Helena pressentiu culminar em rebelião, fato que ela não chegou a presenciar, mas mesmo livre da prisão, entendeu o porquê, tão logo leu os jornais do último mês de maio de 2016. “O estopim foi justamente a greve das agentes penitenciárias, que acabou por proibir as visitas dos familiares. Ora, sem visita não há nem o que comer ou beber direito ali.
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Conviver entre diferentes exigiu maturidade precoce, jogo de cintura. É claro que existem criminosas ali, mas, com certeza, muitas também inocentes, Basta enfileirar uma a uma: a maioria é visivelmente pobre, negra e cada vez mais jovem
O que salva são os mantimentos que os familiares levam semanalmente e que dividimos entre nós. É quando você ainda pode beber uma água gelada, comer uma fruta... Mexeram com um direito sagrado, um dos únicos que se tem lá dentro”, recorda. Entre privações e refregas, Helena testemunhou a palavra “direito” se tornar recorrente no vocabulário das internas do presídio feminino. Isso desde que o Instituto Negra do Ceará (Inegra) conseguiu autorização junto à Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado (Sejus) para desenvolver, ali, o projeto “Pelas Asas de Maat: ampliando o acesso à justiça das mulheres em situação de privação de liberdade do Ceará”. Com financiamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos, o coletivo feminista, antirracista e anticapitalista, criado em 2003, foi o primeiro a investir em formação política junto a mulheres encarceradas, ampliando o repertório crítico de quem, até então, só havia acessado conhecimento técnico ou expertises de Juventude capturada
Ao reconquistar a liberdade, Helena voltou à Praia de Iracema, bairro do qual saiu para a prisão. Lá, venceu sem esforço o antigo medo de pular da Ponte Metálica de bico para um banho de mar. À noite, foi para o reggae, dançar. Já no dia seguinte, voltou a usar piercing, cuidar do cabelo, comer fruta, beber água gelada. Trabalho anda difícil, ainda mais quando lhe exigem a ficha corrida. Mesmo livre, está presa à condição infame de ex-detenta. Estigma à parte, sabe que continua sendo julgada pelo tribunal invisível, mas impiedoso da sociedade da norma, aquela que não cansa de inventar punições e clausuras reais e subjetivas. Ainda assim, não deixa de fazer planos. Quer voltar a fazer o Enem, cursar Direito ou Serviço Social – “preciso entender por dentro essa Justiça véa injusta, ó”. Assim que puder, vai para Jericoacoara. Porque lá, a linha do horizonte se confunde com o céu – não é amarela, rente ao chão, reta, nem muito menos impeditiva. [texto - Ethel de Paula]
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O deputado estadual Renato Roseno (Psol-CE) defende um regime prisional diferenciado para as mulheres, à luz da Política Nacional para Mulheres Privadas de Liberdade: “a situação delas é pior porque são mais vulneráveis à violência, à tortura psicológica, e são mais estigmatizadas, ou seja, sua inserção depois do cárcere é muito mais difícil do que a dos homens. As regras de Bangkok [Tailândia] são absolutamente claras. Você não deve encarcerar mulheres que têm filhos de até dois anos de idade porque você está encarcerando a criança também”.
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Ao longo de um ano, Helena e outras 50 internas participaram de encontros semanais em que o útil se uniu ao agradável
caráter profissionalizante. Assim, ao longo de um ano, Helena e cerca de outras 50 internas participaram de encontros semanais em que o útil se uniu ao agradável. “Ao mesmo tempo em que a gente discutia sobre relação de gênero, violência contra as mulheres, lesbofobia, racismo, acesso à justiça e à própria condição de ser mulher, o Inegra distraía a nossa mente. Pra mim, aquilo era importante demais porque era a hora em que eu me reaproximava do meio em que eu tava acostumada a viver. A gente cantava, dançava, elas levavam violão e eu sempre gostei de tocar, ouvir um reggaezinho, então, era a única coisa boa dali. Até as agentes passaram a tratar melhor as internas, porque sabiam que a gente também recorria ao Inegra pra denunciar as atrocidades. No grupo, tinham advogadas que acompanhavam nossos processos e agilizavam a saída de quem cumpria prisão provisória há tempos. Todas saíram dali mais engajadas, despertaram para as injustiças que aconteciam e ainda acontecem. E o mais valioso: o curso também ensinou a gente a sonhar, a vislumbrar novas perspectivas, a ter de novo autoestima, fazer planos, respeitar umas às outras”, destaca.
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A arapuca saltou da tela do computador. Fernanda Mascarenhas, 19, nem acreditou quando botou o olho naquele anúncio virtual de emprego. É certo que haveria o inconveniente de trocar a terra-natal, Sergipe, por Fortaleza. Em compensação, ganharia o primeiro salário-mínimo da vida, livrando-se, inclusive, dos gastos com alojamento e alimentação, bônus ofertados pela própria empresa contratante, uma papelaria também dedicada à venda de livros de porta em porta. Para a função de vendedora, não carecia sequer de experiência anterior no ramo. Sua maioridade recém-completada cumpria o único pré-requisito. Quanto à desejável boa aparência, nem de longe faria feio com aquele rosto angelical, valorizado pelo par de olhos amendoados. Na flor da idade, encheu-se de coragem e veio, certa da contratação imediata.
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“Entre as principais causas para a entrada do jovem no mundo do crime, já identificamos o abandono da escola. Nós sabemos que o adolescente, dois ou três anos antes de morrer, abandona os estudos. Por isso, é necessário intervir nesse abandono para tentar impedir essa trajetória trágica”, alertou o deputado estadual Renato Roseno (Psol-CE), relator do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência da Assembleia Legislativa do Ceará.
A sorte parecia estar mudando para a jovem que, abandonada pela mãe biológica, ainda recém-nascida, morou e cuidou da avó com Alzheimer desde meninota. “Quando fiz 13 anos, ela ficou doente. Trocava a fralda, banhava, dava todos os remédios. Cuidei como se fosse uma filha, ela me chamava inclusive de mãe, às vezes. Uma vez, quase queimou a casa. Acordou de madrugada, acendeu o fogão, botou água numa vasilha de plástico e esqueceu lá. Quase explode o bujão. O caso foi ficando grave. E uma hora ela precisou de internação. Passei quase um ano no hospital com ela lá, só ia em casa lavar roupa. Parei de estudar e de trabalhar. Pra completar, fiquei grávida nessa época. Mas perdi o filho já no sexto mês, dois dias antes do Dia das Mães. Um aborto espontâneo, que tiveram que fazer a fórceps. Foi porque tive um susto grande, o rim dela parou e iam levar pra UTI. Pouco antes disso, meu namorado havia me batido por conta de um surto de ciúmes. Tudo me fazia crer que Fortaleza era a salvação”, relembra. ENTRE MÃES E FILHAS
Quando cheguei no presídio, menstruada, tive que entrar sem calcinha, simplesmente porque era preta.
A mãe legítima, por sua vez, custou a descobrir o paradeiro da filha. Isso porque, segundo Fernanda, ao chegar ao presídio feminino Auri Moura Costa, sequer lhe foi permitido fazer uma ligação. “Diziam que eu só podia ligar para o DDD 085. O de Sergipe é 079. Então, fiquei ali totalmente isolada por meses. ESTICADORES DE HORIZONTES
Fernanda Mascarenhas [imagem 202B]
Foi quando a visita de uma presa que tava na mesma cela que eu teve pena de mim e pediu o telefone da minha mãe pra ligar. E assim, ficou recebendo todo mês um dinheiro na conta dela pra trazer o que eu tava precisando. Foi mais um anjo que apareceu na minha vida. Quer dizer, delas eu não tenho nada do que reclamar, ao contrário das agentes penitenciárias, que tratavam a gente como lixo. Uma vez, vi uma interna tendo uma parada cardíaca e, só meia hora depois, foram dar atenção. Outra vez, derrubaram uma grávida de uma cadeira de rodas, porque levam de má vontade, sempre com a cara feia. Na última rebelião, bateram até nas visitas pra barrar a entrada. Aí não dá, faça com qualquer interna ali dentro, mas não mexa com as visitas. O que salva a gente é a merenda que a família traz. Porque a comida é horrível. Já teve frango que veio com bico e até o nariz de porco na feijoada. Cabelo, carne com aquela larvazinha, gosma verde, como se já tivesse podre, já, tudo isso se vê no prato. Como é que não se revolta?”, provoca Fernanda.
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Não foi. Com um mês de trabalho, Fernanda viu a polícia invadir a empresa de súbito e levar para depor os oito funcionários presentes. O caso era de suposto estelionato, dizia-se, e por não saber sequer o significado da palavra, a moça enrolou-se diante da pressão policial e da sequência de perguntas inquisitórias. Sem família ou amigos na cidade, ficou à mercê do advogado contratado para defender o grupo. “Eram seis homens e duas mulheres, eu e uma outra menina, que se dizia sobrinha do dono. Ela foi presa junto comigo e disse que, se eu contasse qualquer coisa a alguém, ia me matar na cadeia. Ora, eu não entendia direito nem o que tava acontecendo. Parecia um pesadelo. Quando cheguei no presídio, menstruada, tive que entrar sem calcinha, simplesmente porque era preta. Também não pude entrar com meu sutiã, porque tinha bojo. Cheguei na ala toda suja. Além disso, tinha passado um dia e meio na cela da Divisão de Homicídios com fome e sem banho.Visivelmente, eu era a mais nova da ala C e acho que por isso as mais velhas logo me adotaram. O pessoal se juntou e me deu lençol, toalha, calcinha, sutiã, roupa. Elas eram minhas mães”, narra.
Dillyane Ribeiro é assessora jurídica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), instituição que, entre outras atividades, monitora o sistema socioeducativo – que envolve crianças e adolescentes infratores – numa perspectiva de garantia de direitos. Sobre o ambiente carcerário que devia ser reintegrador, apontou: “Hoje, a maioria dos meninos está cumprindo as medidas de internação permanecendo dentro dos ‘dormitórios’ 24 horas do dia. Das unidades de internação em Fortaleza, somente duas oferecem atividades educativas regulares. Em todas as outras, os meninos só saem para fazer a visita, e quando têm. Então, se você entra num sistema cuja principal função é ser educador, ressocializador, e se você simplesmente passa o dia confinado, muitas vezes em condições de superlotação, a possibilidade de você criar outros projetos de vida é muito difícil. Num momento em que as unidades estão cada vez mais policializadas, são esses policiais que estão fazendo o papel de ‘socioeducadores’”.
Flagrante paradoxo. Revoltar-se diante de maus tratos, injustiças e preconceitos foi lição que Fernanda aprendeu no próprio presídio, entre privações diversas. Sobretudo, a partir do momento em que se inscreveu para o curso de formação política desenvolvido junto às internas do Auri Moura Costa pelo Instituto Negra do Ceará (Inegra). Como participante do projeto “Pelas Asas de Maat”, entendeu que as mulheres ainda lutam para ganhar espaço no mercado de trabalho, que o preconceito com mulheres negras é maior do que com mulheres brancas, que violência contra a mulher é crime passível de prisão, que um presídio com capacidade para 374 mulheres não tem como comportar a contento as 780 contabilizadas no último Censo Penitenciário do Ceará, retroativo a 2014. “Comecei a entender que, no presídio, não cumpriam quase nenhum dos nossos direitos. E ninguém tinha a menor ideia disso. No curso é que a gente começou a se dar conta de que aquilo era tudo errado”, observa, visivelmente empoderada e já em liberdade, ainda que vigiada.
Condenada a oito meses de trabalho comunitário em regime aberto, ela deixa a cadeia aliviada, mas um travo permanece. Fernanda não se conforma em saber que a funcionária presa junto com ela, cúmplice declarada do golpe de estelionato, acabou absolvida pela Justiça. “Rapaz, a justiça anda um pouco injusta, viu? Hoje, eu sei mais falar de injustiça do que de justiça. Até agora não consegui arranjar nenhum trabalho porque, quando veem o meu artigo, estelionato, tudo dificulta.
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um presídio com capacidade para 374 mulheres não tem como comportar a contento as 780 contabilizadas no último Censo Penitenciário do Ceará, retroativo a 2014
Sempre sonhei em fazer uma faculdade de Gastronomia, mas nunca tive oportunidade. Eu faço comida mexicana bem.Trabalhei num restaurante mexicano em Sergipe, quando tinha 14 anos. Ganhava 300 reais por mês e trabalhava até meia-noite na cozinha, praticamente escrava. Acho que a maioria das mulheres do presídio é tipo eu: não tiveram oportunidade de trabalho, não conseguiram ter dinheiro pra pagar um advogado e ainda sofrem mais por serem negras. Preto e pobre é que vai preso”, assinala. ENTRE MÃES E FILHAS
No dia de uma vistoria lá, passei mal, desmaiei, as próprias presas me arrastaram, pediram pra levar pro corredor e levar ar. Culpa do tal do spray de pimenta. Enfermaria também era um lugar onde ninguém queria ir
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Gorete Lopes com foto da filha Amanda, ainda bebê [imagem 202B]
A estridente rejeição coleciona justificativas. Quando dona Gorete adentrou o presídio junto com a filha, tinha acabado de haver um assassinato em uma das alas do Auri Moura Costa. Assim, as celas eram abertas ao meio-dia, para duas da tarde tudo já estar cerrado. “Não tinha tempo nem pro banho de sol. Era estender roupa e pegar água pra abastecer dez dentro de uma cela. A comida era o pior. Achava vidro, cabelo... Um dia, veio uma carne cheia de varejeira... A gente também via chegar carradas de frutas, mas nunca chegou nenhuma na mão de qualquer presa. Pra quem, então? Tudo pras agentes? Pra nós, era uma única farda. De noite, eu me enrolava nos lençóis pra lavar e vestia de manhã, depois de deixar secar nas grades. No dia de uma vistoria lá, passei mal, desmaiei, as próprias presas me arrastaram, pediram pra levar pro corredor e levar ar. Culpa do tal do spray de pimenta. Enfermaria também era um lugar onde ninguém queria ir. Gato mijando, cachorro, rato, as muriçocas matando a gente. Então, melhor ficar nas celas. Até por que, pra tudo o que você sentia, era dipirona. Não havia outro remédio”, denuncia.
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Descabeçada. Foi assim que Gorete Lopes, 54, diz ter saído do Auri Moura Costa; isso depois de ser presa em flagrante junto com a própria filha, Amanda, de 21 anos, condenada a sete anos de encarceramento por tráfico. “Encontraram meio quilo de maconha em cima da cama dela, dentro do quarto. Ela confessou logo e disse que eu não tinha nada com isso. De fato, a polícia não achou nada comigo. Ainda assim, disseram que tinham que me recolher, porque também havia denúncia contra mim. Pois bem, passei seis meses e 10 dias lá dentro porque, no dia em que a polícia entrou na minha casa, forjou 75 gramas de maconha como se fosse minha. Não era. Mas o advogado contratado pela minha outra filha mandou eu confirmar. Era orientação dele, então, eu tive que dizer. Mas até hoje me envergonho e me revolto, porque eu prefiro pedir esmola do que voltar pro presídio”, reclama.
Presídio Auri Moura Costa [imagem - Denise Mustafa arquivo Diário do Nordeste]
Para Aline Miranda, defensora pública e assessora especial para o Sistema Penitenciário da Secretaria da Justiça e Cidadania do Ceará (Sejus), apesar de em número bem inferior, o encarceramento de mulheres chama a atenção por ter crescido muito nos últimos anos. “Todas as assistências que nós disponibilizamos para os homens, fazemos também para as mulheres, como serviço social, assistência psicológica, médicos, dentista, educação, trabalho e assistência jurídica. Agora, quanto às mulheres, existem alguns protocolos da saúde prisional específicos da população feminina, a exemplo de determinados exames, do uso de absorvente, da facilitação da visitação pelos seus familiares. Esse fortalecimento dos laços é necessário porque as percebemos muito fragilizadas pelo distanciamento dos filhos. Elas sofrem um isolamento voluntário por parte dos familiares, enquanto temos uma população masculina que recebe muitas visitas”, argumentou.
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Se a entrada no Auri Moura Costa foi de pés no chão, já que sandália com abotoadura de metal ali não entra, a saída de dona Gorete foi de joelhos, ao som de louvores. “Fiz uma promessa de sair dali limpa, absolvida, de cabeça erguida. Deus me deu essa graça. E a ala todinha cantou junto. Amanda chorou muito. Ela tá com um ano e quatro meses presa. É ré primária, acho exagerada essa pena. Mas rezo que saia dali com outra cabeça. É difícil. Só se ela fizer como eu: se agarrar a tudo o que é curso que aparecer lá dentro. Aprendi muito com o Inegra sobre direitos humanos. Não sabia qual o direito que a gente tinha no presídio. Elas defenderam muito a gente, aceleraram os processos, conheceram tudo por dentro e denunciaram muita coisa errada. Quando o GAP [Grupo de Apoio Penitenciário] entrava lá dentro, era devorando tudo. As próprias agentes faziam toda sacanagem. Quebravam ventilador; misturavam bolacha, leite, fumo, sabão; botavam tudo dentro dos tanques; rasgavam lençol da gente, colchão, tacava era o canivete. Depois que o Inegra chegou, a gente botou a boca no trombone e a Sejus [Secretaria de Justiça do Estado do Ceará] soube de tudo. Ali, pobre e preto já não sofrem mais calados”, frisa, exibindo orgulhosa os dois certificados de conclusão do curso de formação política do projeto “Pelas Asas de Maat”. [texto - Ethel de Paula] entre mães e filhas |ENTRE PelasMÃES asas deE FILHAS Maat
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O Ministério da Justiça é quem adverte: hoje, são quase 700 mil pessoas encarceradas no País
No que diz respeito às mulheres, a preocupação cresce na medida em que o gráfico ascende. Segundo dados do Relatório Nacional sobre a População Penitenciária Feminina do Brasil, divulgado pelo mesmo Ministério da Justiça, de 2000 a 2014, o número de mulheres em privação de liberdade cresceu 567%, passando de 5.601 para 37.380 detentas. Um percentual que representa mais do que o dobro do crescimento da população presidiária masculina no mesmo período, que foi de 220%. Apurando ainda mais o foco sobre o documento, o Inegra aponta: até 2014, 70% das mulheres encarceradas no País não tinham sido julgadas ou condenadas. Realidade que não só se repete, mas recrudesce em âmbito local, segundo o próprio Censo Penitenciário do Ceará de 2014: no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa, em Fortaleza, o mesmo percentual chega a 80%.
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Maat, a deusa egípcia do equilíbrio, da justiça e da liberdade nomeia e anima simbolicamente o primeiro projeto do Instituto Negra do Ceará (Inegra), organização social dedicada à formação política de mulheres em privação de liberdade. Com financiamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos, o coletivo feminista e antirracista, atualmente formado por 12 ativistas políticas , uniu forças e expertises com o Escritório Frei Tito de Alencar e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidade, Gênero e Família (Nuafro) da Universidade Estadual do Ceará (Uece) para conhecer pelo avesso e transformar por dentro o superlotado e excludente modelo prisional em voga. Aquele que pune mais do que restaura e já coloca o Brasil em quarto lugar no ranking mundial de população carcerária. O Ministério da Justiça é quem adverte: hoje, são quase 700 mil pessoas encarceradas no País.
De 2000 a 2014 o número de mulheres em privação de liberdade cresceu 567%, passando de 5.601 para
37.380 detentas
“Esse número é absurdo. É muito grave. En“Hoje, a nossa massa carcerária abrange tão, a gente tem pressionado o poder públimuitos provisórios. A média nacional é de co a cumprir a lei, simplesmente isso. Hoje, 42%, mas, no Ceará, chega a 70%. Aqui, quase 800 mulheres em privação de liberdade temos a média mais jovem e uma maior estão sob custódia do Estado, quando, na verpercentagem de provisórios em relação à médade, o presídio só tem capacidade para 370. dia nacional. Isso gera uma estigmatização Assim, a superlotação acaba fugindo ao conmuito forte. Você sai do sistema penal, mas trole, não há como assegurar sequer o direito o sistema penal não sai de você”, denunciou à vida. Hoje, entre elas, cento e poucas foo deputado estadual Renato Roseno (Psolram julgadas, as demais são todas provisó-CE), relator do Comitê Cearense pela rias aguardando julgamento. Nosso esforço Prevenção de Homicídios na Adolescência da é pela inversão desse quadro, incidindo sobre Assembleia Legislativa do Ceará. os Poderes Executivo e Judiciário, a fim de garantir o acesso à justiça. Paralelamente, a luta também é para dar visibilidade e combater o caráter flagrantemente racista do sistema prisional, assim como o conjunto de violações dos direitos humanos erroneamente naturalizados naquele ambiente”, destaca a assistente social Francisca Sena, integrante da linha de frente do Inegra, organização social que também atua junto ao Fórum Cearense de Mulheres – FCM e à Rede Mulher e Democracia. Com o aval e parceria da própria Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado (Sejus), o Inegra se propõe, assim, a refinar ainda mais o Censo Penitenciário, abrindo um crítico providencial espaço de escuta e reflexão entre as detentas. Dessa forma, na esteira do projeto “Pelas Asas de Maat”, não só compartilha e revisa conteúdos ligados aos direitos humanos, justiça restaurativa, relações de gênero, violência contra a mulher e sexualidade, como acolhe denúncias e busca a resolução dos conflitos mais gritantes relatados em grupo. “O Censo não chega perto, por exemplo, de determinadas situações, como a violência que ocorre no ato da prisão, muito recorrente, quando ofensas, xingamentos e espancamentos são mais comuns do que se pensa. Uma das detentas apanhou de 16 policiais quando foi presa. Isso simplesmente porque foge do padrão feminino: os policiais disseram que, se ela queria ser homem, então apanharia como homem. Ficou toda machucada, mas com medo de abrir o bico e apanhar mais, o que fez? Silenciou. Relatos como esse vão gerar uma análise de dados que, por sua vez, gera um documento a ser publicado e publicizado a partir do próximo mês de agosto, através de uma audiência pública e um seminário”, adiantou Sena.
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o Inegra aponta: até 2014, 70% das mulheres encarceradas no País não tinham sido julgadas ou condenadas
Pelas asas de Maat
“Muita gente infringe as leis, mas existem aquelas que são aprisionáveis. E aí é onde vemos esse recorte racista, de classe, muito forte. Não estão presas pela proporção do delito. Estão lá porque são pobres e negras. Se um menino da periferia, de 16 anos, é abordado pela polícia e pegue com uma balinha de maconha, já desce para o sistema socioeducativo. Se uma pessoa rica, num carro, branca, for encontrada com a mesma balinha de maconha, ela jamais vai presa. Então, há muitas injustiças que nos fazem repensar esse sistema criminal. ESTICADORES DE HORIZONTES
Dillyane Ribeiro é assessora jurídica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), instituição que, entre outras atividades, monitora o sistema socioeducativo – que envolve crianças e adolescentes infratores – numa perspectiva de garantia de direitos. Ela narrou: “Fizemos uma oficina sobre violência sexual em maio de 2016. Eu falei pra elas: ‘olhe, vocês sabem que a polícia não pode levar vocês dentro de um camburão, vocês são adolescentes’; e elas me responderam: ‘Camburão? Isso é o mínimo’. E começaram a relatar casos de extrema violência policial na abordagem. Uma falava o nome de um policial, outra menina no outro canto da sala disse ‘Ah, fulano, eu conheço’; é como se a violência sexual nas abordagens policiais fosse algo quase corriqueiro”. Aline Miranda é defensora pública e assessora especial para o Sistema Penitenciário da Secretaria da Justiça e Cidadania do Ceará (Sejus). Para ela, a ausência do Estado é a principal causa dos graves índices de violência juvenil. “É um problema de má distribuição de renda, de falta de políticas públicas ao longo de muitos anos, que negligenciou as nossas infâncias, e, hoje, estamos colhendo os frutos dessa desatenção. Esses jovens passam a ter uma certa visibilidade após cometer um delito, embora sempre estivessem entre nós, embora anônimos, pedindo ao Estado e à sociedade que lhes dessem oportunidades de se desenvolverem como seres humanos. Essas políticas não aconteceram e, hoje, assistimos a cada vez mais jovens adentrando no mundo do crime”, opinou.
Hoje, quase 800 mulheres em privação de liberdade estão sob custódia do Estado, quando, na verdade, o presídio só tem capacidade para 370
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A imersão vem confirmar estatisticamente a relevância e necessidade do trabalho de formiguinha do Inegra e de seus parceiros em defesa dos direitos humanos. “A maioria das mulheres em privação de liberdade é empobrecida, negra, jovem, teve pouca escolarização, e é ré primária. Tem suas vidas marcadas por violação de direitos, abuso sexual, exploração do corpo, violência física, fome, abandono. Muitas sequer recuperam os laços com suas famílias, principalmente as do interior, que quase não recebem visita. Quase 70% estão ali por conta do tráfico. Mas quem tem o comando? Os homens. Acontece que apenas 25% dos homens estão presos por tráfico. Isso mostra a dependência que elas têm em relação a eles”, ilustrou. E há, segundo ela, outros tantos disparates: mulheres que roubaram um pacote de fralda, um desodorante, um pedaço de pizza; outras acusadas de tráfico, quando, na realidade, são usuárias e necessitam de tratamento. Casos e casos tramitando no limbo ou mesmo esquecidos, de tão ínfimos.
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Francisca Sena [acervo pessoal]
E acho que, a partir desse aprendizado, que é delas, mas também nosso, a gente passa a ter mais elementos pra contestar determinados argumentos que a sociedade, de um modo geral, usa pra condenar ou justificar o encarceramento das pessoas. A gente acha, sim, que a forma de punir e castigar tem relação direta com a escravidão, o componente do racismo, já que a maioria dessa população é negra. Basta levar em conta que dois terços das mulheres encarceradas no País são negras”, aferrou a socióloga Cícera Silva, uma das fundadoras do Inegra. A depender do coletivo que, desde 2003, luta contra o preconceito e a discriminação racial, sexista e de classe, não só fortalecendo a construção afirmativa da identidade da mulher negra como também propondo políticas públicas voltadas à promoção da igualdade de gênero, raça e classe, a cultura do encarceramento no Ceará sofrerá mais e mais erosão e rachaduras. Novamente com financiamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos, o Inegra passa a desenvolver um segundo projeto linkado à população carcerária feminina, dessa vez com foco no acesso precoce à defesa e aos mecanismos de revisão das prisões provisórias.
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“Mulheres Negras: quebrando as novas correntes” vem agora incidir mais diretamente sobre a política pública de justiça, com vistas a reduzir o aprisionamento de mulheres através da aplicação das alternativas penais e a aplicação dos princípios da justiça restaurativa “Mulheres Negras: quebrando as novas correntes” vem agora incidir mais diretamente sobre a política pública de justiça, com vistas a reduzir o aprisionamento de mulheres através da aplicação das alternativas penais e a aplicação dos princípios da justiça restaurativa.
Cícera Silva [acervo pessoal]
Pelas asas de Maat
“Por que produzir conhecimento? Porque há um senso comum que o parlamentar chama de ‘populismo penal’, muito valorizado pelos meios de comunicação. O populismo penal é achar que, recrudescendo a legislação penal, se diminui a violência. O Brasil tem, hoje, 1.667 tipificações penais. Para todo problema social já se criou um tipo penal. Isso é completamente ineficiente, você não reduz um crime simplesmente fazendo uma lei. Isso é o populismo penal, que é fácil e rende votos; gera audiência, e é raso, muito raso. Enquanto que a violência é um problema bem mais complexo”, refletiu o deputado estadual Renato Roseno (Psol-CE), relator do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência da Assembleia Legislativa do Ceará.
“Queremos ampliar, junto à sociedade civil, essa reflexão sobre a realidade das mulheres negras encarceradas e o sistema prisional. Mas, sobretudo, fazer incidência política junto ao Judiciário. Os juízes precisam mudar as lentes com as quais eles olham o mundo e as pessoas que estão sendo encarceradas. Inclusive, já estamos negociando com o Judiciário para que todas as participantes do projeto “Pelas Asas de Maat” tenham uma remissão de cinco dias da pena. O intuito, a partir de agora, também é fazer o monitoramento das alternativas penais aplicadas às mulheres negras, bem como acompanhar o desempenho delas no seu cumprimento. O Brasil, já há mais de uma década, vem implementando as penas e medidas alternativas que deveriam substituir o encarceramento. Tem crescido as penas alternativas, mas também o encarceramento. Então, não houve a esperada substituição. Portanto, se não houver mudança, a injustiça vai aumentar cada vez mais”, observou Cícera. [texto - Ethel
VIOLÊNCIAS
de Paula]
Atividade INEGRA [acervo pessoal]
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pela
PAZ nas prisões
Irmã Grabriella Pinna [divulgação Pastoral Carcerária]
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Irmã Gabriella Pinna, italiana da Ilha de Sardenha, não faz corpo mole diante do que chama de missão. Desde que chegou ao Brasil, em 1994, ocupa-se em levar um pouco de apoio às mulheres presas no sistema penintenciário do país que escolheu como segunda casa. “Nunca fui agredida, nem tenho medo. Hoje, não me permitem mais, mas eu entrava sozinha no presídio, às vezes, com 500 homens soltos, e nunca tive medo. Tampouco com as mulheres, sempre fui muito bem tratada”, conta essa mulher de fala forte, sempre sorrindo. Aos 69 anos, com votos perpétuos feitos ainda aos 24, é uma das figuras obstinadas que compõem a Pastoral Carcerária do Ceará, pertencendo à Congregação das Irmãs da Redenção, instituição que se dispõe a cuidar de mulheres em situação de vulnerabilidade.
Pela paz nas prisões
Além do problema estrutural, irmã Gabriella elenca outras dificuldades vivenciadas no presídio feminino: “Há ainda o problema das visitas... Num domingo de manhã, nos presídios masculinos, você vê uma fila de mulheres esperando para a visita, mas no feminino, não. Muitas nem são visitadas, vivem sob o abandono da família. Falta material de higiene pessoal, se não é zero, é quase. Quem tem família, tem material, porque levam, mas quem não recebe visita não tem nada. Agora, que lindo, há a solidariedade. Até um sabonete dividem em duas partes. Fizemos até uma campanha para arrecadar esse tipo de produto, o que é função do Estado garantir. Acredita que somos obrigadas a levar aquela pasta de dente de tubo transparente, que é muito mais cara, em vez da tradicional branca? Tudo para conseguir passar pelo raio X”. ESTICADORES DE HORIZONTES
Chama a atenção de irmã Gabriella o que ela chama de uma ‘juvenização’ da população carcerária. “A gente percebe que, nos últimos anos, tem havido uma presença mais forte de mulheres jovens, de 18 a 25 anos. Basta entrar nos presídios e olhar para as caras daquelas meninas. Criou-se um problema: antes tínhamos um contingente de mulheres bem submissas, controláveis, entre aspas, pela gestão pública, mas, hoje, essas mulheres jovens são mais revoltadas. E, muito provavelmente, por serem mais conscientes dos seus direitos. Essa diferença é por conta da juventude, elas não mais se submetem”, observou.
Num domingo de manhã, nos presídios masculinos, você vê uma fila de mulheres esperando para a visita, mas no feminino, não. Muitas nem são visitadas, vivem sob o abandono da família
Temos
1.229 mulheres encarceradas nesse momento, no Ceará, 787 destas estão no IPF, que possui capacidade para apenas 374 mulheres, ou seja, 110% de excedente, o máximo de lotação
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“Nosso trabalho sempre foi duro, mas o momento atual é, particularmente, muito difícil, porque estamos vivendo uma situação de superpopulação carcerária”, salientou. “E o sistema feminino vive essa situação de uma maneira particular porque, na prática, temos apenas um único presídio feminino para todo o Estado do Ceará, aqui em Fortaleza [o Instituto Penal Feminino - IPF Desembargadora Auri Moura Costa]. Temos 1.229 mulheres encarceradas nesse momento, no Ceará, 787 destas estão no IPF, que possui capacidade para apenas 374 mulheres, ou seja, 110% de excedente, o máximo de lotação. O segundo presídio mais lotado [Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto – CPPL III –, em Itaitinga] chega a um excedente além da capacidade de 82,5%.”, denunciou.
Apesar de soar como um ponto favorável, irmã Gabriella explica que há um outro lado dessa mesma moeda. As jovens, acredita, estão se tornando também mais violentas, e a entrada no mundo do crime não se restringe somente a acompanhar o parceiro. “A maioria é presa por tráfico, mas levadas por mais gente, ou seja, não só pelo companheiro, mas pelos irmãos, amigos... São poucas, mas, agora, há também mulheres entrando na chefia do tráfico.
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a única maneira de pôr fim ou amenizar o caos e a seletividade do sistema penitenciário brasileiro é o reencontro das pessoas como sociedade. No entanto, não adiantará reformar o sistema penal se as condicionantes que levam as pessoas ao mundo do crime também não forem reformadas E há ainda as que se envolveram em gangues, roubos. Típico do masculino, agora, lá há também a lei do mais forte, há hierarquia, e a presença de drogas tem muito a ver com isso porque, mesmo que você não use, você precisa delas para pagar as dívidas que faz lá dentro do presídio. Isso vem ocorrendo de uns quatro anos pra cá (…) Pelo meu conhecimento, até então, não tinha havido uma rebelião tão grande no presídio feminino como a que ocorreu recentemente. Arrancaram as portas de ferro das celas, uma força incrível. Então, a violência entre as mulheres encarceradas vem aumentando. Tivemos duas mortes no ano passado, uma delas brutalmente assassinada”, recuperou. A rebelião a que se refere a religiosa ocorreu no último dia 21 de maio de 2016. Na ocasião, irmã Gabriella foi ao presídio verificar como estava sendo controlada a situação. Ela conta: “Fomos uma equipe, as agentes estavam fora e, logo que chegamos, nos cercaram, disseram ‘o que vocês vieram fazer?’; Dissemos: ‘queremos saber o que está acontecendo’; ‘Hoje, vocês não podem entrar’, informaram; daí fomos embora. Um dia depois, no domingo, voltamos. Fomos em um masculino, CPPL, depois fomos no feminino. E lá estavam todos apavorados, nós pedimos para entrar, dessa vez fomos autorizados. Elas quebraram tudo. Éramos nós da Pastoral e um grupo do Inegra [Instituto Negra do Ceará]”, detalhou.
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A irmã, que conhece as “leis internas e peculiares” da população carcerária, percebeu além: “Quem estava mais revoltada eram as meninas da ala E, que não conseguiram quebrar os portões e ficaram dois, três dias trancadas nas celas, sem comida, água e luz. As demais estavam livres no espaço. Quem estava muito, muito apavorada, era a ala B, geralmente mulheres homicidas, que mataram filhos; e, pela lei do presídio, elas têm que ser mortas. Elas só não morreram porque as demais não conseguiram abrir os portões. Um dia depois, essas mulheres foram levadas para Uruburetama, no interior do Estado, e nós fomos visitá-las. Estavam separadas dos homens por um portão, sem o mínimo de privacidade. Mas apesar de tudo, estavam serenas, se sentiam mais seguras do que lá no IPF”. Para irmã Gabriella, a única maneira de pôr fim ou amenizar o caos e a seletividade do sistema penitenciário brasileiro é o reencontro das pessoas como sociedade. No entanto, “não se deita vinho novo em odres velhos”; ou seja, não adiantará reformar o sistema penal se as condicionantes que levam as pessoas ao mundo do crime também não forem reformadas. “Se, ao invés da cultura do encarceramento, o Estado investisse na cultura da educação, do acompanhamento das famílias mais vulneráveis, garantindo o necessário para se viver... Tem família que não ganha um salário-mínimo para sustentar quatro, cinco pessoas. É claro que vender um pouco de droga vai ser necessário para comerem. Talvez, se fosse eu, nesse caso, faria a mesma coisa. Nossa sociedade é altamente punitiva, castigadora, hipócrita e não quer encontrar soluções em longo prazo... É necessária uma série de medidas para se cuidar das pessoas desde que nascem”, frisou a agente pastoral. A crítica de irmã Gabriella resvala para o sistema educacional brasileiro, retrato da brutal desigualdade de renda existente no país. “Quando cheguei ao Brasil, o que me chamou a atenção foi o apartheid na educação. Tinha a escola para os favelados, escola para os favelados de uma classe mais alta, as escolas para as classes B, A... Essas crianças vivem um apartheid desde que nascem. Agora, há um acesso mais fácil à universidade; lá, eles Pela paz nas prisões
De uma maneira mais pragmática, se não é possível ainda viver a utopia, irmã Gabriella sugere duas ações para melhorar o sistema penal brasileiro: uma nova relação política com as drogas e a instituição de penas alternativas De uma maneira mais pragmática, se não é possível ainda viver a utopia, irmã Gabriella sugere duas ações para melhorar o sistema penal brasileiro: uma nova relação política com as drogas e a instituição de penas alternativas. “Tem que dividir o pequeno traficante; uma mulher que é pega com 30 gramas de maconha, por exemplo, não precisa de encarceramento. Veja o custo benefício disso para a sociedade! Não estou dizendo que se vai passar a mão na cabeça, mas devemos ter alternativas penais. A violência está chegando a idades cada vez mais jovens. Aqui, na comunidade do Pirambu, você encontra meninas de 12 anos com arma na mão. Então, com 18 anos, onde vai estar essa menina? Precisamos acompanhar essas famílias, onde está o serviço social?”, questionou. Para ela, se não é possível reformar o mínimo que for, deve-se, pelo menos, respeitar os direitos já garantidos. “Acesso à justiça. Mas de verdade. Ou seja, processo em tempo real, apresentar-se ao juiz em até 24 horas; isso evitaria muita violência policial, pois se chegaria na Justiça ainda com as marcas da violência. As mulheres chegam a apanhar dos policiais na frente dos filhos. ESTICADORES DE HORIZONTES
Também é urgente alimentação adequada, água tratada, que nem tratada muitas vezes é; acesso à educação, à saúde, principalmente para as mulheres, porque até o acesso a um pré-natal é muito difícil. E tem o problema da mídia, que não deve fotografar, filmar, respeitando a presunção da inocência e o direito de imagem. Soube de uma mulher que estava sendo levada para o IML [Instituto Médico Legal], mas voltou ao local do crime para que a mídia a pudesse fotografar (…) Os presos devem ser tratados e respeitados como gente. Cometeram um crime, mas merecem acolhida e, muito provavelmente, porque não tiveram as mesmas oportunidades que outros”, defendeu.
Agora, com a lei nova, se permite que uma mulher com filhos de até 12 anos ou grávida tenha a possibilidade de transformar sua prisão preventiva em domiciliar Como algum avanço no sistema penal brasileiro, irmã Gabriella cita a aprovação recente da Lei nº 13.257, de março de 2016, que ampliou os direitos das mulheres encarceradas. Uma medida que vai em direção ao desencarceramento sugerido pela religiosa. “Agora, com a lei nova, se permite que uma mulher com filhos de até 12 anos ou grávida tenha a possibilidade de transformar sua prisão preventiva em domiciliar; ou seja, ela pode esperar o julgamento em casa; antes, era só mãe com criança deficiente. Em parceria com a defensoria, inclusive, já conseguimos esse benefício para algumas mulheres no Ceará”, comemorou. Segundo a religiosa, o caminho para a paz passa pelo fortalecimento da pessoa humana. “A gente perecebe que só oferecer escola e trabalho para os presos não funciona, porque você não trabalha a pessoa, a espiritualidade, não fortalece a autoestima. Tem que se trabalhar a desconstrução da violência, da vingança, do rancor, que atinge em cheio a população carcerária”, complementou. [texto - Benedito Teixeira]
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se encontram juntos, mas, no entanto, essas pessoas de classes sociais distintas passaram 18 anos separadas. Por que, na mesma sala de aula, nas escolas, eu não posso ter o filho de um lavrador, de um comerciante ou de um deputado? O mundo seria bem melhor porque eles cresceriam juntos, tendo um mesmo nível educacional”, conjecturou.
LAGAMAR
DE T U É C ERRA E Cravada à força bruta entre trilhos urbanos e manguezal, a comunidade do Lagamar é redundante. E não apenas pelas cheias invernosas que anualmente alagam os casebres fincados à margem do canal de águas poluídas outrora propícias ao fecundo encontro do riacho do Tauape com o rio Cocó. Ali, o que mais se repete historicamente é a política do desprezo, uma flagrante ausência do poder público que não só protela a solução definitiva para os alagamentos agravados pela falta de saneamento básico, como também vira as costas para a mais antiga luta dos atuais 12 mil moradores assentados no território desde a sua origem, na década de 1950, quando retirantes castigados pela seca apearam em meio ao matagal em busca de oportunidades e um chão para chamar de seu, demanda até hoje pendente, dada a também sempre adiada entrega do “papel da casa”.
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Adriana Gerônimo [imagem 202B]
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Canal assoreado no Lagamar [imagem Marcelo Barbalho]
12 mil moradores assentados no território desde a sua origem, na década de 1950
Queda de braços. Em resposta ao que se repete a contragosto no pedaço mais esquecido do bairro São João do Tauape, há o eterno retorno da força contrária vinda das profundezas daquele aglomerado humano: uma teimosa militância política aliada à incansável resistência de moradores decididos não só a permanecer onde estão como também a correr atrás da prometida qualidade de vida nunca experimentada.Vontade coletiva que se propaga de forma organizada desde a década de 1980, quando as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) varreram o Lagamar para fazer subir a poeira da Teologia da Libertação. Poeira até hoje solta no ar e que reverbera na linha do tempo através do grupo católico-cristão Jovens em Busca de Deus (JBD), ativo há exatos 19 anos e cujo trabalho de catequese e formação humana atinge hoje mais de 100 crianças e adolescentes da comunidade. Adriana Gerônimo, 26, é uma das 15 catequistas do grupo que assumiu como legado a postura crítica e atuante do padre e filósofo Manfredo Oliveira, o primeiro religioso a desassossegar as almas de quem, até então, aceitava passivamente a pobreza e o desamparo, alheio à ideia de um Cristo revolucionário e acolhedor, contrário à naturalização de qualquer sofrimento ou castigo tido como desígnio de Deus.
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As mulheres foram pioneiras tanto na descoberta quanto no debate e na propagação da Teologia da Libertação no Lagamar. Isso porque antigamente eram elas que ficavam em casa, enquanto os homens iam trabalhar. E é aí que começa uma formação política na comunidade paralela à vida religiosa
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Para Adriana, é a peleja por justiça social no Lagamar, protagonizada pelos próprios moradores e não por políticos de ocasião, que ensina sobre uma fé comprometida com a vida, impossível de se dissociar do que é demasiado humano. “Os fiéis caminharam durante anos acreditando que Deus era só uma sensação. A gente acredita que nossa espiritualidade tem se fortalecido porque cada vez mais enxergamos e conseguimos encontrar esse Deus no outro. Tá tão pleno na palavra de Deus quando ele diz que a gente tem que amar o outro, quando ele acolhe as pessoas que ninguém queria, a prostituta, o lazarento, o oprimido. Nós somos esses oprimidos hoje”, sugeriu. Humanizado, o Deus acolhedor e libertador que habita o Lagamar é também o guia de todo o processo de formação religiosa e humana praticada pelo JBD.
Daí porque a preparação de crianças e adolescentes para a Primeira Eucaristia e a Crisma vai muito além de textos bíblicos e preceitos da Igreja Católica, acolhendo o vivido, as dúvidas, as provações, os erros, as fragilidades.
A Pastoral da Juventude (PJ), a Pastoral da Juventude Estudantil (PJE), a Juventude Rural (PJR) e a própria Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) formam algumas das instituições pastorais da Igreja Católica que atuam junto às diferentes juventudes cristãs. Para Ítalo Morais, 20 anos, da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), independente das diferenças entre as pastorais de juventude inseridas na estrutura da Igreja Católica brasileira, o que as une são o protagonismo da juventude e a reflexão sobre os problemas atuais, contemplando desde a situação da degradação ambiental até a negação dos direitos sociais ou o golpe no Brasil. “Hoje, existe uma onda que tenta puxar a Igreja cada vez mais para trás, para mais distante da nossa realidade, em uma espiritualidade que aliena, de muito louvor e de pouca reflexão, estudo. Foi pela nossa fé que estivemos presente nas ocupações das escolas públicas estaduais do Ceará, em todas as manifestações em defesa da democracia, nas mobilizações em torno do clima... Então, acreditamos que a nossa fé tem que nos mover para uma transformação social, porque senão não é uma fé viva, uma fé encarnada, uma fé em Jesus Cristo”, reflete.
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“As mulheres foram pioneiras tanto na descoberta quanto no debate e na propagação da Teologia da Libertação no Lagamar. Isso porque antigamente eram elas que ficavam em casa, enquanto os homens iam trabalhar. E é aí que começa uma formação política na comunidade paralela à vida religiosa, de porta em porta, com elas encabeçando a luta por direitos historicamente desrespeitados. Mesmo hoje, já idosas, se unem em torno da Legião de Maria e participam de todas as decisões coletivas. Você pode ir à Praça São Francisco que vai ver lá a dona Rita, septuagenária, varrendo, tapando buraco, sozinha. Quer dizer, nós, do JBD, sobretudo as mulheres, temos como inspiração e incentivo verdadeiras guerreiras, algumas mártires que deram suas vidas pelo ideal de uma sociedade mais justa e todas feministas natas, mesmo sem saber”, credencia a recém-formada assistente social, autora de uma pesquisa de graduação cujo foco recaiu justamente sobre os movimentos sociais incitados “pelo povo” e “para o povo” naquele território.
Adriana Gerônimo [imagem 202B]
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É o senso crítico que queremos despertar em cada criança e jovem que chega ao JBD. Entender que somos da periferia sim, mas não por que Deus quer, permeia muito as discussões “Durante, pelo menos, um ano de catequese, debatemos sobre sexualidade, namoro, DSTs, gravidez precoce, preconceito, racismo, feminismo, educação, trabalho, bullying na internet, enfim, todos os temas que fazem parte do nosso dia a dia. E também muito sobre a forma como cada um se vê enquanto morador do Lagamar. É o senso crítico que queremos despertar em cada criança e jovem que chega ao JBD. Entender que somos da periferia sim, mas não porque Deus quer, permeia muito as discussões. E é incrível como chegam inexpressivos, passivos e sem perspectivas de futuro, reféns do estigma de violência e criminalidade associado ao lugar, e saem instigados a fazer a diferença, a estudar, a se aproximar das lutas sociais, e a serem os primeiros da família a ingressar numa faculdade, algo que há bem pouco tempo a maioria sequer se dava o direito de sonhar”, observa Adriana.
O Lagamar é a única ZEIS de ocupação de Fortaleza que conseguiu eleger um conselho gestor, que delibera e decide sobre qualquer modificação proposta para a área 186
Com ela foi assim. A primeira da família de mãe cozinheira e pai carpinteiro a entrar na faculdade, brilhando como oradora da turma de Serviço Social da Faculdade Cearense (FAC), chegou ao JBD com nove anos de idade, sem nunca haver saído do Lagamar e feliz com a novidade de acessar ali, sem ônus ou seleção, uma formação preparatória para a Primeira Comunhão que lhe renderia viagens de retiro, amigos extras, cursos de música e teatro, lugar cativo na quadrilha e na encenação comunitária da Via Sacra e ainda participação garantida nas muitas festas religiosas do calendário local, tudo enquanto aguardava a fase seguinte de preparação para a Crisma. Entrou para não sair. Depois de crismada, Adriana decidiu ser catequista e repassar às próximas gerações tudo o que aprendeu e vem aprendendo tanto na profissão de fé quanto na trajetória acadêmica e cidadã. Fez isso voluntariamente entre as quatro paredes da Casa de Missão Ana e Edméa, sede do JDB. E para além dela, tomando assento, mais recentemente, em conselhos populares e comitês de discussão formados para deliberar sobre o uso e ocupação daquele território que figura, desde 2009, no Plano Diretor Participativo de Fortaleza, como uma Zona Especial de Interesse Social do tipo 1. “Os anos 2000 marcam a urbanização do Lagamar, ou seja, eu já nasci na esteira desse projeto de mudança, que também foi debatido e rebatido entre moradores e poder público. Hoje, outras lutas na área de legislação se colocam como desafio. O Lagamar é a única ZEIS de ocupação de Fortaleza que conseguiu eleger um conselho gestor, que delibera e decide sobre qualquer modificação proposta para a área. Isso depois de ser alvo de várias tentativas arbitrárias de remoções em meio a obras de mobilidade urbana propostas pela Prefeitura e pelo Governo do Estado. Apesar de ainda não terem o papel da casa, Lagamar de terra e céu
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Fogo cruzado a perder de vista. O Lagamar é também uma das 22 comunidades atingidas pelas obras de mobilidade para implantação do Veículo Leve sobre Trilho (VLT), bem como pela construção de uma rotatória que pretende agilizar o trânsito nas proximidades. Originalmente, as remoções propostas a partir da avenida Raul Barbosa previam a retirada de mais de 363 famílias da comunidade, mas frente a um inflamado processo de resistência, esse número caiu para 11. “Queriam tirar as famílias e não iam urbanizar. E graças às ZEIS, conseguimos inserir a urbanização no orçamento, reduzindo esse impacto. Calçada, rua pra passar ambulância... Na verdade, a gente mudou o projeto inteiro. Sentamos com a comunidade e uma pessoa daqui, que não tinha formação nenhuma, fez um novo projeto à mão e entregou pro engenheiro que, no início, disse que era impossível, mas depois se rendeu e readaptou em cima do projeto nosso. Ou seja, a ZEIS é um instrumento protetor. Por sermos ZEIS, todos foram indenizados pelo terreno e pelas benfeitorias. Se não fosse isso, a gente tinha sido exterminado”, afirma.
Originalmente, as remoções propostas a partir da avenida Raul Barbosa previam a retirada de mais de 363 famílias da comunidade, mas frente a um inflamado processo de resistência, esse número caiu para 11 famílias
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as pessoas já estão aqui há tantos anos que têm direito àquelas moradias. No Plano Diretor, as ZEIS são zonas de investimento prioritário do Governo que preveem uma nova infraestrutura, um projeto de urbanização sério que acabasse com os alagamentos anuais e trouxesse qualidade de vida pros moradores, um padrão de casa habitável, com saneamento, esgotamento. Então, é regularizar urbanisticamente e fundiariamente, liberando as escrituras das casas. Só que lei ainda precisa ser implementada, sair, de fato e de direito, do papel”, provoca Adriana.
Casa de Missão Ana e Edméa, sede do JDB [imagem - Marcelo Barbalho]
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Em permanente clima de instabilidade e ameaça, a comunidade do Lagamar não se acovarda, tendo nas mulheres, até hoje, sua maior frente de resistência Em permanente clima de instabilidade e ameaça, a comunidade do Lagamar não se acovarda, tendo nas mulheres, até hoje, sua maior frente de resistência. Em sua segunda gestação, Adriana é o retrato vivo da coragem cultivada e fortalecida há anos, de geração para geração, em meio a muita dor. “Somos jovens e mulheres à frente dessa luta. A gente sofre, porque não há respeito. Os vereadores só nos chamam de florzinha, minha linda, meu amor. Ora, meu nome é Adriana. Isso é querer nos diminuir, tipo: ela é jovem demais e ainda é mulher. Mas quando a gente fala sobre legislação, uso e ocupação do solo, aí começam a respeitar e entender que a gente sabe das coisas. É um espaço de aprendizado, mas é violento. E muito difícil porque esses mesmos gestores que nos recebem em seus gabinetes também mandam bater. Há dois meses, um policial me agrediu, mesmo grávida, em frente ao Paço Municipal, quando cobrávamos o encaminhamento de uma comissão criada para tratar das ZEIS em nove comunidades. A gente estava fazendo pressão. Eram 25 pessoas lá fora diante de um batalhão com 100 policiais. Aí foi pêia em todo mundo. Tinha outra mulher grávida, pessoas com deficiência, idosos, crianças... Enfim... A comissão acabou instalada, mas teve que fazer vídeo de denúncia, pôr na internet e, pior de tudo, apanhar pra fazer valer um direito”, dispara.
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Junto às obras do VLT, mais tensão. De início, as famílias atingidas seriam removidas para o Conjunto José Walter e realojadas entre as casas populares do Residencial Cidade Jardim. De olho na legislação e amparada pela condição de ZEIS, a comunidade novamente bateu de frente com o poder público e fez valer a alternativa de comprar um terreno vazio próximo à última ponte do Lagamar. A ideia é reassentar todos lá, tão logo o recurso para a construção do novo casario seja liberado. Outra vitória: aqueles que viviam de aluguel na área vão ganhar um apartamento para quitar em dez anos, tendo, enfim, acesso à casa própria. Entre perdas e ganhos, o Lagamar inventa seus escapes. “A gente ia ficar cercado por um muro, mas conseguimos derrubar. Agora vai ser uma cerca tipo a do Cocó e as pessoas não vão mais abrir a porta e dar de frente com o trilho.Vai ter a distância da calçada e da rua para segregar menos. Ou seja, antes, não se conseguiria mais passar pro lado do São João do Tauape. Isso porque, aqui dentro, também vai ter uma estação do trem, que sempre estará dando partida, e não se preocuparam em fazer uma passagem para pedestres. Consequentemente, quem mora no Lagamar, não iria mais acessar posto de saúde, escola... Aí a gente conseguiu mudar o projeto e colocar duas passagens de pedestres por cima do trilho”, detalha Adriana.
não podemos deixar de dizer que a Igreja precisa estar aqui, conhecendo a situação das nossas crianças, que se iniciam como aviãozinho pro tráfico aos 7 anos de idade, que têm pais que batem nas mães, que vivem sobre a lama, entre dejetos Lagamar de terra e céu
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Para ela, cada conquista no plano terreno vem fortalecer o espírito. Assim é que a cobrança ferrenha empreendida junto ao poder público também resvala para a Igreja Católica. “A gente fala de uma Igreja que tem opção preferencial pelos pobres, pelo povo que sofre e é oprimido. Mas a presença da Igreja na comunidade deixa muito a desejar. E não cansamos de cobrar: ‘Padre, por que o senhor passa um ano sem celebrar uma missa no Lagamar?. ‘Ah, porque minha agenda é atribulada, sou sozinho, não tenho tempo’. Acontece que as comunidades que não são periferia são visitadas. Ou seja, ele não sabe quais os sofrimentos dos mais pobres e tinha que trabalhar com esses primeiro. A gente tenta não bater de frente, mas não podemos deixar de dizer que a Igreja precisa estar aqui, conhecendo a situação das nossas crianças, que se iniciam como aviãozinho pro tráfico aos 7 anos de idade, que têm pais que batem nas mães, que vivem sobre a lama, entre dejetos. Se a Igreja fosse mais presente aqui dentro o Lagamar que existe e resiste teria o céu como limite”, aferra. [texto - Ethel de Paula]
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Lucas Guerra integra a Juventude Missionária, organização da Igreja Católica que nasceu no Brasil há cerca de 10 anos, para atuar extramuros e não apenas nos espaços eclesiais . “O nosso principal objetivo é promover a universalidade e incentivar o jovem a construir um mundo sem muros e sem barreiras. A Juventude Missionária crê muito nas palavras de Dom Helder Câmara: Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso eu. Acredito plenamente que a experiência missionária nos torna menos egoístas, na medida em que paramos para ouvir a realidade dos outros, as tristezas, as conquistas, e nos alimentamos da fé que sustenta as pessoas mais simples”, destacou.
Linha de trem no Lagamar [imagem - Marcelo Barbalho]
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O Lagamar que ri e que chora, a um só tempo, convive lado a lado nas memórias de infância da estudante de psicologia Jessyca Ferreira Rocha, 24. Catequista do grupo católico-cristão Jovens em Busca de Deus (JBD), ela é capaz de recuperar do limbo tanto o frisson de um desembestado passeio de bicicleta sem freios nem pedal por entre ruas e becos íngremes da comunidade como a dor precoce da perda de um grande amigo, assassinado no primeiro assalto que ousou praticar em nome de um incontrolável fetiche em torno de roupas de marca. Como ele, pelas contas de Jessyca, pelo menos 20 colegas próximos da vizinhança já tiveram suas vidas interrompidas na esteira moedora da violência que opera nas periferias de Fortaleza , chaga que ainda se faz ferida aberta naquele pedaço. Daí porque um de seus sonhos é levar para debaixo do guarda-chuva do JBD um projeto ligado à saúde mental que possa focar detidamente na prevenção ao uso abusivo de drogas e álcool. Desejo que nasce em casa, à revelia. No círculo familiar, há casos de usuários de drogas. “Através da psicologia, busco entender o outro e não julgá-lo. No JBD, me pergunto como posso chegar nesses jovens e apresentar a eles outras alternativas de vida”, desabafou a primeira da família que conseguiu acessar a universidade.
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O documento de Aparecida [texto com as deliberações da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe] lembra que a missão da Igreja Católica também consiste na defesa dos direitos humanos e na promoção da justiça social. Assim, olhar preferencialmente para os mais pobres é, também, não deixar que se mantenha impune o extermínio dos jovens negros e pobres nas periferias brasileiras. Foi assim que, em 2008, a partir da 15º Assembleia Nacional das Pastorais da Juventude, teve início a Campanha Nacional contra a Violência e o Extermínio de Jovens, momento em que as quatro organizações da Igreja Católica passaram a lutar por uma maior sensibilização acerca da violência enfrentada pela juventude brasileira. “Essa campanha esteve dentro de uma estratégia nacional chamada ‘A juventude quer viver’, que busca valorizar o jovem da periferia, entender como está a vida dessa juventude, proporcionando uma visão crítica para esses jovens e conscientizando sobre seus direitos. Utilizamos a campanha para mobilizar a sociedade. O próprio Estatuto da Juventude recebeu influência da nossa campanha”, contextualizou Inaldo Brandão, 24 anos, que compõe a coordenação arquidiocesana da Pastoral da Juventude (PJ) no Ceará, assim como a PJ na Região Nossa Senhora dos Prazeres, cuja atuação abrange cidades da Região Metropolitana de Fortaleza.
A multiplicação da fé
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Para ela, hoje, a maior recompensa do JBD é ter conquistado o reconhecimento e o respeito da comunidade. “No início, os pais nem sabiam que seus filhos estavam ali com a gente. Era indiferente. Hoje não. Temos contato permanente com as famílias e, nas ruas, todos já sabem que somos os catequistas dos filhos dele. E, assim, a gente se sente plenamente amado e fortalecido, porque nossa espiritualidade, nossa fé, nossa perseverança, todos os dias, é testada aqui. Mas Jesus nunca nos deixa só, ele chega através de alguém ou de algo, sempre na horinha certa. E está até no que parece pequeno, mas é grande pra nós, como levar crianças e jovens que nunca tinham saído do Lagamar, pela primeira vez, ao cinema. Como imaginar milagre maior do que conseguirmos arrecadar fundos pra que seis jovens do Lagamar pudessem participar da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, viajando de avião? Só Deus mesmo”, regozija-se Jessyca.
Canal do Lagamar [imagem - Marcelo Barbalho
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No JBD, mais recentemente, Jessyca tem chegado junto a crianças e jovens através não só da catequização e do processo de formação humana, como também por meio de uma biblioteca recém-inaugurada na Casa de Missão Ana e Edméa, sede do grupo. É com livros e brinquedos educativos que ela tenta obrar “milagres” na Terra, tendo o Lagamar como Terra Prometida feita de altos e baixos. Por último, colocou as turmas de Primeira Eucaristia e Crisma para pensar sobre a narrativa em tom miraculoso da multiplicação dos pães. Para ela, Jesus não fez “mágica”. O alimento se multiplicou simplesmente porque houve ali uma partilha justa do pouco que se tinha, capaz de saciar igualmente a todos. “É isso que nós procuramos fazer no JBD, onde todos os 15 catequistas doam um pouco do seu tempo, dos seus saberes e fazeres, à comunidade, como voluntários. O que a gente considera milagre é termos conseguido sobreviver sem apoio financeiro algum de governo ou mesmo da igreja por todo esse tempo. Já se vão 19 anos e conseguimos até comprar uma casa no Lagamar, tudo graças ao esforço da comunidade, aos bingos, rifas e festas de cunho religioso que promovemos a muitas mãos, com cada um contribuindo com o que pode e o que sabe”, credencia.
Jessyca Ferreira Rocha [imagem - 202B]
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E se acolher é palavra de ordem no JBD, tabus e estereótipos há muito caíram por terra. “As pessoas até se surpreendem quando entram no grupo. Não há proibição alguma. Eu sempre gostei de pagode, de festa e nada disso foi questionado. Nunca barramos ninguém, seja por orientação sexual ou por conta de gravidez na adolescência. É a nossa realidade. Tudo o que o Papa fala hoje sobre as diversas formas de amar e ser feliz, a gente pratica e acredita. ‘Você não vai ser aceito porque é gay. Não tem isso na Bíblia. E não existe mãe solteira, isso não é um status, mãe é mãe e pronto. Essa postura libertadora e que acolhe as diferenças, favorecendo o senso crítico e autocrítica, reforça a importância de lutar para afirmar nossas identidades. Muitos de nós já fomos barrados em entrevista de trabalho simplesmente porque viemos do Lagamar. “Ah, o Lagamar, já vi no Barra-pesada. E nunca mais telefonam”. Qual a necessidade de dizer isso? Então, é um estigma, criado para simplesmente excluir o Outro. E não tem como mudar as coisas da noite pro dia, mas a gente vai plantando pra ser colhido daqui a 10, 20 anos”, projeta Jessyca. Exercer a Espiritualidade Libertadora é também respeitar e manter o diálogo interreligioso, observa Ítalo Morais, da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP). “Temos uma forte ligação com os indígenas da tribo Pitaguari, por exemplo; então, trazemos muito da cultura e da espiritualidade indígena conosco. Temos ainda alguma ligação com povos de terreiros. A PJMP é uma mistura de tudo isso, assim como as CEBs [Comunidades Eclesiais de Base]. Nas nossas orações, encerramos com as seguintes palavras: ‘Amém, Axé, Erê e Aleluia’, trazendo ao nosso meio nossos irmãos das religiões africanas e indígenas”, defendeu.
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Lucas Guerra integra a Juventude Missionária, organização da Igreja Católica que nasceu no Brasil há cerca de 10 anos, fruto dos grupos de Infância e Adolescência Missionária. Para ele, as armadilhas do individualismo, ventiladas pelas ferramentas de comunicação do mundo moderno, afastam cada vez mais os jovens de uma verdadeira ‘Espiritualidade Libertadora’. “Cada vez mais, torna-se difícil trabalhar uma espiritualidade globalizante e universal em meio a tantos apelos, que nos convidam a ter uma fé centrada no isolamento e na fuga do mundo. Os jovens, hoje, são convidados a buscar um céu individual e longe de sua realidade. Fala-se muito em ser um jovem santo, mas pouco em viver essa santidade através da alegria e da doação da vida pelos outros. É o serviço que nos torna cristãos. Acredito em uma Espiritualidade Libertadora que nunca se acomoda, que não deve servir para corroborar as estruturas injustas e opressoras. Cremos na missão que liberta e que torna a nossa sociedade mais justa e fraterna, não na que nos aliena e nos tranca”. Mudar, ainda que lentamente, a imagem negativa do Lagamar é o desafio que Allef Fragoso Bezerra, 22, vem encarando no JBD. Como estudante de Publicidade da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estagiário da TV Diário, ele é o responsável por alimentar a página do Facebook do grupo e ainda criar peças publicitárias a cada evento comunitário ou de caráter religioso, além de fazer as vezes de fotógrafo. Nascido e criado na comunidade, faz isso ao mesmo tempo em que hoje coordena o Ministério das Artes, que tem como principal atividade a oferta gratuita de cursos de violão, bateria e teatro para crianças e adolescentes. Anos antes, aprendeu a tocar por lá, enquanto se preparava para a Crisma e montava a própria banda. Hoje, assina a direção de peças teatrais que envolvem toda a comunidade em torno de música, dança, figurino e cenografia. Assim, deixou para trás a própria imagem A multiplicação da fé
“Há três anos, eu dirijo A Paixão de Cristo, montando espécies de musicais. Nela, Jesus canta ao vivo, a gente toca e as falas vêm entremeadas. O grupo me ajudou muito nisso: desenvolver um espírito de liderança e pensar para além do óbvio, além de me abrir os olhos para um novo modo de “ser igreja”, que não se limita às doutrinas e vai fundo no sentido mesmo da palavra “oração”: orar, mas correr atrás também, agir. Isso me fez acreditar que podia alçar voos maiores, chegar na universidade e não ter vergonha de dizer em qualquer lugar que vim do Lagamar. Sonho em um dia poder fazer uma campanha publicitária sobre o Lagamar, onde ele não vai ser mostrado como clichê, um lugar marcado somente pela violência e a criminalidade, e sim como um berço de lutas, um território onde, historicamente, existem pessoas politizadas e instigadas a construir, juntas, uma sociedade mais justa”, frisa. [texto - Ethel de Paula] ESTICADORES DE HORIZONTES
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chamuscada de filho de ex-presidiário para fazer valer o imprevisível, encontrando nas brechas da evangelização modos inventivos e solidários de ser e conviver no mundo.
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Allef Fragoso Bezerra [imagem - Marcelo Barbalho]
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Um Deus que se humanizou para lutar incansavelmente pelos desvalidos, os excluídos, os abandonados, os doentes, os pobres
Emanuel Costa [imagem - Marcelo Barbalho]
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Um Cristo revolucionário, que pregou a coragem, a ousadia. Que denunciou injustiças sociais, enfrentou dogmas, fugiu aos padrões. Um Deus que se humanizou para lutar incansavelmente pelos desvalidos, os excluídos, os abandonados, os doentes, os pobres. Uma jornada de fé em nome da igualdade e da fraternidade entre os homens. É seguindo e atualizando os passos de Jesus da Galileia que o grupo católico Jovens em Busca de Deus (JBD) mantém vivo, há exatos 19 anos, um trabalho de evangelização junto a crianças e jovens do Lagamar, tendo como porta de entrada para a Casa de Missão Ana e Edméa, sede do coletivo, as pastorais da Pré-Eucaristia, Primeira Eucaristia, Perseverança e Crisma. Aos 32 anos, o publicitário Emanuel Costa é o líder do rebanho de jovens catequistas do Lagamar que adotaram o cristianismo como estilo de vida, entendendo que tão importante quanto evangelizar é colocar o pensamento crítico e a ação cotidiana a serviço da intrincada luta para que todos possam experimentar a tal vida em abundância apontada por Jesus, aquela em que impera a plenitude de direitos e a igualitária oferta de oportunidades na Terra. Para Emanuel, o trabalho é árduo, utópico, doloroso, mas possível. No Lagamar, começa junto às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ainda na década de 1980, e chega ao JBD nos anos 2000, através da Legião de Maria, um grupo de mulheres tocadas pela Teologia da Libertação e decididas a unir forças com quem tem menos, abrindo um canal de escuta, engajamento político e partilha junto aos que viviam e ainda vivem à margem da sociedade capitalista, sob um regime de exploração injusto e excludente. Não à toa, portanto, duas delas batizam a sede do grupo: Ana e Edméa. A multiplicação da fé
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“Começamos a produzir Autos de Natal e peças em torno da Via Sacra, da Paixão de Cristo, da vida dos santos da Igreja Católica. Mas nossa intenção maior com isso, antes mesmo de evangelizar, era mostrar a cara do Lagamar, um lugar varrido pra debaixo do tapete e segregado dentro do próprio bairro que o contém. Então, tudo tinha um teor crítico muito forte, porque nos sentíamos excluídos. Chegamos a falar de aborto em um Auto de Natal. Outra peça trazia José empurrando um carrinho de mão e Jesus como um morador de rua, convivendo com uma prostituta. Foi um escândalo. Mas era aquilo que víamos passar todos os dias na nossa porta, aquele era nosso repertório mais verdadeiro. É claro que corremos o risco de ser até excomungados. Só que mais importante era revelar como a inclusão social perpassa todo o Evangelho e denunciar a apartação dentro do próprio Lagamar, um território onde o IDH do trilho pra cima é um e do trilho pra baixo é outro, inversamente proporcional”, destaca Emanuel.
acho heroico mesmo alguém que é pobre e mora no Lagamar, ao invés de ganhar dois mil reais por dia servindo de avião pro tráfico
Impossível calcular na ponta do lápis o impacto das estratégias criadas no JBD com o intuito de atrair crianças e jovens para processos de catequese e formação humana que duram pelo menos um ano, mas podem seguir por uma vida inteira. Para Emanuel, o resultado do empenho coletivo é intangível. E cresce em valor subjetivo na medida em que, no Lagamar, todos os dias, cresce junto - e muito mais - a oferta sedutora de serviços extremamente bem pagos ligados ao tráfico de drogas. “Não tenho dúvidas em afirmar que milhares de pessoas que passaram pelo JBD abandonaram ou escaparam da criminalidade, além de se destacarem aonde chegam como estudantes aplicados ou trabalhadores honestos e dedicados. E acho heroico mesmo alguém que é pobre e mora no Lagamar, ao invés de ganhar dois mil reais por dia servindo de avião pro tráfico, preferir vir fazer a Crisma e se engajar em movimentos e lutas sociais através do grupo. Hoje, não são poucos os jovens da comunidade que aprenderam a amar e defender esse território em espaços de decisão política ou aonde quer que cheguem. Tudo isso me faz crer que, mesmo sem recursos, estamos fazendo uma revolução lenta e silenciosa aqui dentro. Pra mim, o Reino de Deus já está acontecendo no Lagamar”, encerra. [texto - Ethel de Paula]
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“Perdi primos assassinados, parentes que se suicidaram, amigos de infância e da adolescência por causa de drogas e dinheiro. Mas quando entrei no grupo, com 15 anos, pra fazer a Crisma, comecei a entender porque nada na vida deles tinha dado certo. E não era por que não iam à missa ou não rezavam. E, sim, por não terem vislumbrado outros caminhos que não fosse aquele, por não terem sequer motivação para isso. No JBD, a gente busca ampliar o horizonte e plantar uma semente de autoestima e ousadia na criança, no jovem, fazendo com que olhem para dentro, mas também para fora do Lagamar, entendendo que não estão fadadas ou predestinadas a serem como seus antecessores”, observa. Mais até do que a bíblia, a arte vem sendo a “isca” para atrair crianças e jovens do Lagamar para o JBD. É através de cursos básicos de música e teatro, tudo voltado às celebrações do calendário católico, que se recrutam os iniciantes, convidando-os, ao mesmo tempo, para um mergulho mais profundo no contexto local.
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Emerson Sbardelotti nasceu em Vitória, no estado do Espírito Santo. Começou seu trabalho pastoral junto às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em 1980, migrando depois para a Pastoral da Juventude (PJ). Hoje, entre outras atividades, lidera um grupo de estudos virtual, o ‘Teologia da Libertação Juvenil’. Licenciado em História, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Sbardelotti conceitua: “Espiritualidade é aquilo que faz no ser humano uma transformação. O nosso modo de entender o que há de transcendente à nossa volta. Entendo por transcendente aquilo que vai além dos limites da experiência, o que nos ultrapassa. Somos convidados a refletir e a viver uma espiritualidade unida ao Pai e presente na construção do Reino de Deus, que se reflete em uma sociedade fundada na justiça e na solidariedade”.
Chega de jovens racistas, preconceituosos, violentos, fanáticos e fundamentalistas. Chega de jovens com saudade da cristandade medieval, sem nunca tê-la vivido. Chega de jovens clericalizados!
Emerson Sbardelotti [acervo pessoal]
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Para construir esse reino de Justiça, o teólogo acredita que se deve voltar os olhos para o próximo, o excluído. “É o Espírito Santo de Deus que nos faz caminhar em direção aos jovens, aos pobres, ao povo, às causas do Reino, inclusive no martírio. Eles (pobres), na verdade, nos ensinam uma espiritualidade que não se resume a apenas pensar e refletir Deus. Mas uma espiritualidade que é, antes de tudo, ‘sentir Deus’!”, refletiu. Teologia da Libertação Jovem
Buscamos esclarecer a juventude sobre o que verdadeiramente corresponde a TdL O teólogo fundador da ‘Teologia da Libertação Juvenil’ é também o autor do projeto de ensino digital da Teologia da Libertação, que surgiu a partir dos vários comentários negativos contra a TdL postados na Internet. Assim, a ‘Identidade Pejoteira’ [em referência à PJ], por ele administrada, é uma resposta à má qualidade das informações que circulam na rede. “Buscamos esclarecer a juventude sobre o que verdadeiramente corresponde a TdL”, explica. Há ainda um grupo de discussão em um aplicativo de celular com esse mesmo objetivo. Ou seja, louvor certamente, mas oferecer também às juventudes estudo e reflexão crítica”, salientou. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Para o teólogo, é fundamental deixar as juventudes serem elas mesmas, com seus erros e acertos, acompanhando-as no seu processo de educação da fé, sem impor nada, mas se fazendo presente na caminhada, sendo amigo, não juiz, mostrando a face de um Jesus de Nazaré jovial, “gente da gente, que compreende nossas dores, que se alegra com nossas pequenas vitórias. Escutar mais do que falar. Temos o péssimo hábito de não escutar o que nossos/as jovens têm a dizer... E eles dizem coisas fantásticas”.
“Em ambos os grupos procuro capacitar as lideranças jovens a respeito da Teologia da Libertação: origem, desenvolvimento, crise, refundação – perspectivas e prospectivas. A orientação aos participantes do Grupo de Estudo TdL Juvenil é que possam levar para suas comunidades eclesiais de base reflexões sobre o que dizem, aplicados à realidade de hoje, Jesus de Nazaré nos Evangelhos, para nós, brasileiros e latino-americanos”, observou o teólogo. Nos grupos de base da Pastoral da Juventude, que é o maior público do TdL Juvenil, as lideranças que participam do Grupo de Estudo procuram debater a situação de exclusão social. “Há muito a ser construído em mutirão, estamos apenas no início da caminhada”, pontuou.
as juventudes estão se organizando e, pasmem, muitas vezes, sem ajuda de ninguém, sem apoio. Estão vivendo o velho bordão punk: ‘Faça você mesmo!’
Para Emerson Sbardelotti, a “Espiritualidade Libertadora” seria a espiritualidade “Pé no Chão”, contrária ao comodismo e a favor da gana de lutar em favor do Povo de Deus, principalmente o jovem. Para ele, os/as jovens, em sua rebeldia evangélica, devem gritar contra as injustiças sociais, são profetas e profetisas tentando superar dificuldades que, muitas vezes, vêm do interior das próprias famílias, escolas e Igrejas. Uma dessas dificuldades é não deixarem de ser, de fato, protagonistas da História. “Não tenho respostas prontas para superar tais dificuldades, mas observo que as juventudes estão se organizando e, pasmem, muitas vezes, sem ajuda de ninguém, sem apoio. Estão vivendo o velho bordão punk: ‘Faça você mesmo!’”, observou.
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Quanto à relação entre a juventude e a espiritualidade, Sbardelotti acredita que as políticas públicas, do mesmo modo que o ensino da espiritualidade, devem, obrigatoriamente, respeitar o espaço e o protagonismo juvenil. “Não adianta nada amar as juventudes e infantilizar sua fé! É melhor deixá-las serem donas de si mesmas e não ficar direcionando para que lado ir, o que falar, o que vestir, o que ler, o que ouvir e o que fazer. É preciso coragem para abrir-se ao novo! Chega de jovens racistas, preconceituosos, violentos, fanáticos e fundamentalistas. Chega de jovens com saudade da cristandade medieval, sem nunca tê-la vivido. Chega de jovens clericalizados! É preciso que as juventudes sejam juventudes hoje, com todos seus acertos e erros, pois assim crescerão e darão frutos bons”, assinalou.
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Há um novo papa na Igreja e ele quer que a juventude saia da Igreja e vá para o mundo Apesar do avanço fundamentalista, Sbardelotti acredita que o momento para a reflexão na Igreja Católica é propício desde a chegada do papa argentino Francisco ao Vaticano. “Esse Papa incentiva nas juventudes um novo modo de se fazer cristão. Há um novo papa na Igreja e ele quer que a juventude saia da Igreja e vá para o mundo, que fique toda enlameada por ter ido ao encontro de quem pede socorro, de quem pede ajuda, de quem tenha o cheiro das ovelhas, que não deixe a profecia cair, que faça a opção pelos pobres, que faça a Igreja ser novamente dos pobres! Esta verdadeira ‘primavera eclesial’ nos desafia a vivermos uma fé encarnada e consequente, em solidariedade com os pobres e excluídos da sociedade”, enfatizou.
Espiritualidade é aquilo que obra, no ser humano, uma transformação Como se promove essa transformação na Igreja? Redescobrindo a espiritualidade perdida, arrisca Emerson Sbardelotti. “A palavra ‘espiritualidade tem sua raiz na palavra Espírito, que significa ‘sopro, hálito de vida’. Como diz o profeta Leonardo Boff: ‘a espiritualidade só surge quando passamos da cabeça para o coração’. Espiritualidade é aquilo que obra, no ser humano, uma transformação. É um novo modo de entender o que há de transcendente à nossa volta. Entendo por transcendente aquilo que vai além dos limites da experiência, o que nos ultrapassa. Assim dizemos que Deus e as realidades espirituais são transcendentes”, acrescentou.
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E como transmitir esses conceitos a uma juventude cada vez mais individualista e dispersa? Sbardelotti responde:“Cada jovem deve construir suas próprias experiências, escutando o que Deus fala hoje, agora mesmo. Cada jovem deve ir ao encontro de Jesus de Nazaré na luta, mas também na oração.” Ele, no entanto, surpreende e propõe uma outra forma de orar. “Orar também é escutar o que Deus tem a nos falar! Orar é silenciar, mesmo no turbilhão barulhento de nossos dias. Orar é auscultar o que a natureza-criação expressa a nós, cotidianamente”.
um dos principais desafios para se evangelizar as juventudes hoje tem a ver com a influência da propaganda consumista-individualista veiculada pelo sistema econômico Para o teólogo, um dos principais desafios para se evangelizar as juventudes hoje tem a ver com a influência da propaganda consumista-individualista veiculada pelo sistema econômico. “Não é tarefa simples, nem fácil, porém, não é impossível. É trabalho de formiguinha. Fortalecer a base, nossos pequenos grupos e equipes. Fazer com que nossos melhores teólogos e teólogas, historiadores, pedagogos, sociólogos, músicos, voltem a acreditar na caminhada das Comunidades Eclesiais de Base, na aproximação com a juventude, voltem a acreditar no projeto de uma Igreja dos Pobres. Posso estar sendo utópico, mas já conseguimos fazer isso antes e não tínhamos as ferramentas que temos hoje em dia”, sustentou. Acreditar na juventude, sugere Emerson Sbardelotti, significa continuar investindo nos grupos de base da Igreja, esses que formarão a Instituição no futuro. “São importantes! E fazem o bem sem olhar a quem. Pagam um preço alto por isso, pois, muitas vezes, são alvo de incompreensões e mentiras. Se aproximar destes grupos é se aproximar de um novo jeito de ser Igreja. São profetas e profetisas que estão gritando no deserto, estão fora das Igrejas, indo aonde o povo jovem está. Teologia da Libertação Jovem
Segundo ele, a Igreja jovem se movimenta e avança na organização popular. O teólogo vê nos encontros organizados pelos próprios jovens a renovação esperada da TdL nesse início de século XXI. “Desde 2012, observo uma revitalização dos grupos juvenis da Igreja, com o Congresso Continental de Teologia, que ocorreu na Unisinos-RS [Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul]; depois, tivemos, em 2014, o I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora [em Fortaleza-Ceará], e, em 2015, o Congresso Continental de Teologia [em Belo Horizonte – Minas Gerais]. Em 2016, acontece o Encontro Regional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora – Região Sudeste, que acontecerá também em Belo Horizonte, em preparação para o II Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, que ocorrerá em 2017. Os teólogos e as teólogas da libertação, com muita humildade e abertura, estão preparando novas lideranças. É a primeira, segunda e terceira gerações passando o bastão para a quarta e quinta gerações de adeptos/as à Teologia da Libertação, que está mais viva do que nunca”, regozijou-se. [texto - Benedito Teixeira] ESTICADORES DE HORIZONTES
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Os teólogos e as teólogas da libertação, com muita humildade e abertura, estão preparando novas lideranças
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E, como profetas e profetisas do Reino, estão anunciando, estão denunciando, sobretudo ameaçando os projetos de morte que insistem em crescer como joio no meio do trigo. É preciso abrir os braços e abraçar bem apertado tais grupos e dizer para eles: ‘Estamos juntos! Façamos o mutirão acontecer!’”, conclamou.
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Ismael Rodrigues - D2 |mural assinado por Pedro Henrique - Sneep [imagens - Marcelo Barbalho]
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D2
Domingo, 18 horas. Em plena avenida da Universidade, na mais fina e insuspeitada sintonia, o sagrado e o profano têm seu encontro marcado entre muros vizinhos: de um lado, os cânticos finais da missa na Igreja dos Remédios embalam a dispersão dos fiéis, uma horda de católicos praticantes tipicamente classe média; do outro, a batida perfeita do rap vem dar nos estúdios da Rádio Universitária FM 107,9, arrebatando uma audiência também fiel, mas oriunda sobretudo da periferia de Fortaleza. No ar desde 1999, o programa dominical “Se Liga segue até às dez da noite, projetando em ondas sonoras a efervescência da cultura hip hop e da produção musical das comunidades suburbanas de todo o País.
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Produzido pela Central Única das Favelas (CUFA Ceará) e Movimento Cultura de Rua (MCR), é o canal de informação e entretenimento de toda uma juventude acossada pelas desigualdades e injustiças sociais, mas instigada a lutar para ter voz e ser ouvida em suas demandas e denúncias. Entre o telefone fixo e o celular, o gesseiro e vigia de carros, Ismael Rodrigues, 28, mais conhecido como D2, é o locutor-assistente que recebe via texto ou em viva voz cada “salve” que um ouvinte deseja endereçar a outro. E de tanto emprestar a entonação vocal para esse “alô” típico das “quebradas”, ele próprio se destaca entre os mais citados e cumprimentados a cada noite de domingo. “Um Salve para o D2”: acolhimento que hoje lhe soa como música aos ouvidos, após toda uma trajetória de vida marcada por rompimentos, violações e perdas.
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Quando eu era moleque, meu sonho era ter uma camisa da bad boy. O tráfico me dava dinheiro pra comprar, puxava do bolso e já pagava Foi como egresso e reincidente do Sistema Socioeducativo para adolescentes do Ceará que D2 conheceu de perto as “armas” da CUFA, potencialmente capazes de reinserir socialmente jovens infratores: cursos de Dj, break, grafite e cidadania. Tinha 17 anos. Com 15, na Favela do Urubu, já havia conhecido a pichação e a maconha. Com 16, tendo a “boca” bem em frente à própria casa, não hesitou em provar o mesclado: “pedra em cima do bagulho”. Daí em diante, para manter o próprio vício, passou a roubar e traficar. Fez nome e tocou o terror. “O Marcelo D2 tava arrebentando naquela época com ‘Legalize Já’. E eu tava me achando o bichão, roubando direto. Quando vi, já tava na porta da dona da situação, vendendo pra ela. Era mulher, a traficante das “área”. E comecei a pegar em arma, já comprei uma mobilete, cordão de prata. Quando eu era moleque, meu sonho era ter uma camisa da bad boy. O tráfico me dava dinheiro pra comprar, puxava do bolso e já pagava. O crime te dá uma sensação de poder, ele ilude, age como um agente provedor, pra te promover, ludibria a tua mente. A gente é promovido, mas depois é que vai ver as consequências”, assinala. Refém do crack, com 19 anos, D2 chegou ao que chama de fundo do poço. Já havia “caído” três vezes no sistema socioeducativo, com direito a 45 dias de isolamento na “tranca”, solitária onde o dia é igual à noite e se alonga na medida em que a comida e a água rareiam. “Fiquei tão dependente que a traficante não me dava mais uma bala de maconha pra vender.
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Eu não tinha mais uma roupa boa, nem arma, nem parceiro, nem a família queria mais saber. Foi quando comecei a fazer ‘pirangagem: roubar dentro de casa, roubar gente conhecida, apanhar dos vigias do pedaço. E comecei a pedir, vim pra rua, virei mendigo no Centro da cidade, de andar de pé descalço, comer lixo, dormir no chão. Quem eu via, pedia internação. Foi quando encontrei o coordenador do antigo curso Primeiro Passo e que hoje se chama Transformando Vidas, o Frans Beno.Vi o cara no Centro. E ele me conseguiu o internamento. Cheguei na casa de tratamento do Shalom pesando 42 quilos, hoje tenho 84!”, recorda. Carolina Aires é coordenadora da Célula de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza. O órgão, responsável pela gestão da rede Caps – rede formada pelos Centros de Atenção Psicossocial, envolve o atendimento primário em saúde mental, incluindo os Caps-AD (Álcool e Drogas). Para a coordenadora, as situações de vulnerabilidade social podem estar relacionadas com o problema da dependência. “Algumas pesquisas foram feitas com crianças que se encontravam na rua, sentindo fome, frio, sem acolhimento. Elas diziam que, ao usar determinada substância, sentiam calor, passava a sensação de fome, se sentiam mais acolhidas. Então, temos sim, pesquisas que apontam que o uso de drogas é utilizado como fuga de uma realidade difícil. O que poderia ser uma experiência passageira, segura, acaba se transformando em um grande problema”, explicou. Lenta e gradual, a recuperação do corpanzil de hoje também se deu de dentro para fora. E foi nesse virar-se ao avesso que, ao voltar para a Favela do Urubu, D2 recuperou da memória a única das fontes de prazer que não lhe vinha das drogas: o rap. “Eu cresci na comunidade ouvindo Racionais MCs. E foi justo no show dos Racionais, na Biruta, que reencontrei Um “Salve” para D2
“Limpo”, D2 conseguiu se estabilizar financeira e emocionalmente. Foi além: casou e tem uma filha de quatro anos que “nunca passou necessidade”. Hoje, fazendo todo tipo de revestimento com gesso e “pastorando carros nas imediações da Catedral, já conseguiu comprar o próprio “barraco” e uma moto. Também já pode usar o “tênis da hora” que, na infância, a mãe solteira não pôde lhe dar. O sonho interrompido de ser jogador de futebol, teimosia que lhe rendeu surras homéricas quando criança, por “matar” aula e fugir de casa, também tem voltado à mente, agora sob a forma de projeto para uma futura escolinha profissionalizante acessível à meninada do bairro. Dar o exemplo é outra expertise que a vida ensinou para D2. Por ter superado o envolvimento com o crime e as drogas, ele hoje também pode atuar como palestrante devidamente certificado pela Secretaria de Ação Social do Estado. ESTICADORES DE HORIZONTES
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Por ter superado o envolvimento com o crime e as drogas, ele hoje também pode atuar como palestrante
“A gente que trabalha na saúde mental costuma falar que, quanto mais dependências você tiver, melhor. Eu sou dependente dos meus amigos, sou dependente do meu futebol, de correr, do skate, então, você não vai ter espaço para que o uso de uma substância tome conta da sua vida. Nós não vamos acabar com as drogas. Elas sempre existiram e vão seguir existindo. O que precisamos fazer é dar boas oportunidades às pessoas, de trabalho, lazer, saúde. Este é o grande gargalo: a dependência se trata de um problema social”, defendeu Carolina Aires, coordenadora da Célula de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza.
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o Davi Favela, um dos professores do curso de grafite da CUFA na época do sistema socioeducativo. Ele me falou do programa de rádio Se Liga e me convidou pra ir lá no estúdio da Universitária FM. Trocamos os telefones. E me toquei que a galera da CUFA, Davi, Preto Zezé, dj Doido, b-boy Teo, curtia rap e não usava drogas, então ali era o lado certo. Pensei: ‘tenho que colar nesses caras. Ora, o rap é um pedaço de mim, sempre foi, e hoje me completa, diz o que eu penso, as ideias que rolam na comunidade, tudo com a nossa língua. Então, foi através da rádio que eu fui ter mais contato com os grupos de rap e descobrir que queria aquilo pra mim. Fiquei trabalhando como voluntário, mas nisso já voltei a estudar e decidi fazer vestibular pra Jornalismo. Quer dizer, a CUFA me fez sentir capaz de novo, me fez entender que podia curtir e ser respeitado, ser tido como exemplo, até. Com tudo isso, minhas forças se renovaram”, festeja D2.
Sucesso é dormir tranquilo. Vencer de cabeça erguida, sem aquele medo, aquela “nóia”. Não tem preço essa paz de espírito “O reconhecimento dentro da favela é o meu maior orgulho. Sou um cara bem visto na comunidade, guerreiro, os moleques da minha quebrada todos gostam de mim. Sucesso é dormir tranquilo.Vencer de cabeça erguida, sem aquele medo, aquela ‘nóia. Não tem preço essa paz de espírito. Hoje sou um homem de caráter, tenho minhas próprias ideias, não me deixo ser alienado por ninguém, sei onde as andorinhas dormem, entro e saio de qualquer quebrada, sei dialogar com qualquer pessoa de qualquer nível social, entendeu? Mas quem não vem da periferia tem que entender que ninguém é bandido ou polícia porque quer. São as condições de vida que levam a isso. Quanto mais houver pobreza, falta de educação e trabalho, mais vai haver crime e jovens se envolvendo. A galera da comunidade não tem assistência nenhuma do Governo. Então, fico triste também com alguns ‘canas, a maioria negro que vem da comunidade, que sofre pra caralho na infância e na juventude, daí faz um concurso público e passa por uma lavagem cerebral até virar um ‘robocop’ do Governo. E aquele ódio que ele tinha do sistema capitalista leva pra dentro da favela, pra descontar no irmão dele. Sempre vi a polícia oprimir, odiar, ter preconceito. Já existe pena de morte e prisão perpétua pra pobre e preto. Nossos governantes não fazem nada pra impedir porque o crime é lucrativo. O pobre da favela com um fuzil é patrocinado por um grandão”, critica D2.
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Matar e morrer foram os dois lados de uma mesma moeda que D2 conheceu bem de perto, sobretudo ao “cair”, já maior de idade, nas malhas do sistema carcerário para adultos. Mesmo há tempos sem usar drogas, caiu na tentação de ganhar dinheiro fácil, integrando uma quadrilha especializada em roubo de carros e motos. Foram 11 meses de encarceramento e toda uma vida de privações passada a limpo, trajetória que o fez pensar seriamente em enfiar um lençol entre as grades para se enforcar.Vivas e martelando, recordações enfileiradas: os primeiros trabalhos, ainda criança, na feira-livre do bairro, como vendedor de alho e descarregador de caminhão de milho; os riscos de faca causados pela própria mãe, em dias de descontrole e impaciência com o filho mais velho, que teimava em fugir de casa para jogar futebol nos campos de várzea com os moleques do entorno; a adolescência ao Deus Aline Bezerra é secretária especial de Políticas sobre Drogas do Governo do Estado do Ceará. Seu trabalho frente à Secretaria, frisa de antemão, não faz parte de uma “política de combate às drogas. “Faz tempo que a gente não usa o termo ‘combate’, isso ficou para a SSP [Secretaria de Segurança Pública]. Somos uma secretaria que promove uma ‘política sobre drogas’. Acreditamos que os usuários são pessoas que precisam de ajuda, não de repressão. O trabalho da polícia é combater o traficante, a produção, a venda, os locais de consumo, e o simples usuário fica sob o nosso encargo. A gente vem tentando convencer a SSP, o comando geral da Polícia Militar, por exemplo, de que a prevenção, o acolhimento dos usuários, são o melhor caminho, e eles vêm tendo esse pensamento. Claro que nem todo mundo na polícia tem essa visão, mas garanto que o comando geral já tem (…) A gente acha que a repressão não é o caminho, mas sim entender que a dependência é uma doença muito forte. Precisamos estar com ele, acolher, compreender, esta é a solução. A gente não tá aqui pra julgar, mas para ajudar”, assegurou.
Um “Salve” para D2
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Entre perdas e superações, D2 sabe que é um sobrevivente. Não diz três frases sem mencionar finados amigos que teriam hoje a sua idade: Lorim, Fabim, Pinto, Tonho, Banana, Cará, Daniel Cabeludo, Poli... Dos 20 adolescentes infratores com os quais D2 conviveu no primeiro curso da CUFA, vinculado ao sistema socioeducativo, só três estão vivos, contando com ele. Tio, irmão e primo, todos passaram pelo sistema carcerário e acabaram assassinados. Para estes e outros tantos da “quebrada”, não houve tempo para o “salve”. Ou sequer um minuto de silêncio.Vivo e instigado, com metas a cumprir, ele faz a diferença, se reconhece como vencedor e dia após dia vira um jogo existencial que parecia irremediavelmente perdido. Não está. Após deixar para trás – e de vez – a criminalidade e as drogas, D2 já conseguiu, com o suor do próprio trabalho, garantir doação de alimentos para a clínica de tratamento de dependentes químicos pela qual passou. No último Dia das Crianças, também veio dele a maior parte dos brinquedos doados à meninada do bairro. Para muitas delas, o primeiro até então possível. Alegria em via de mão dupla. Ainda que tardiamente, é jogando em campo de terra batida, soltando pipa e empinando arraia que D2 se reencontra com sua infância perdida e amadurece feliz. [texto - Ethel de Paula]
Justiça, lema estampado na camisa de D2 [imagem - Marcelo Barbalho]
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dará, diante da deserção do pai gigolô, violento e alcoólatra; as tentativas frustradas de seguir carreira profissional nos times juvenis do Ceará e do Ferroviário, dos quais foi levado a sair depois de passar por sucessivas peneiradas, por não ter sequer como comprar uma chuteira ou garantir o mínimo de apoio entre a família para deslocamentos e viagens.
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Com 14, 15 anos, pra usar droga, comecei a me envolver com ladrões, porque via aqueles moleques da rua com uma roupinha mais legal, um tênis de marca, uma bicicleta da hora O talento nato para o desenho foi uma faca de dois gumes nas mãos de Leonardo Rodrigues, o Leo Gordo, hoje mais conhecido, no Grande Bom Jardim, como Leo Aerografia. Aos 27 anos, o jovem nascido e criado em um dos bairros mais pobres da periferia de Fortaleza conserva vivos, na memória, os golpes que sofreu quando, ainda adolescente, envolveu-se com uma gangue de pichadores, que também passou a roubar e consumir maconha, cocaína e mesclado. “Com 14, 15 anos, pra usar droga, comecei a me envolver com ladrões, porque via aqueles moleques da rua com uma roupinha mais legal, um tênis de marca, uma bicicleta da hora. E, como eu gostava de desenhar, andava com os pichadores, embora tivesse medo de altura e preferisse riscar figuras menores. Mas me deixei influenciar e comecei também a vender o bagulho. Me viciei muito e, quanto mais eu fazia coisa errada, mais ficava conhecido no bairro, e mais coisas erradas eu fazia pra ficar mais conhecido. Era um falso poder que eu pensava ter”, afirma.
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Antes de abandonar o crime, experimentou outros solavancos e quedas. Aos 19 anos, acabou preso por assalto e se viu atrás das grades, na Unidade Prisional Adalberto Barros de Oliveira Leal, mais conhecida como “Presídio do Carrapicho”, em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza. Lá, o desenho foi salvaguarda, amuleto da sorte, moeda de troca e garantia de boa convivência entre o novato e uma horda de veteranos orgulhosos de suas longas e infames fichas corridas. “Logo que cheguei, vi um desenho numa parede feito com tinta preta. Era ruinzinho, esquisito, mas fui perguntar pros meus conhecidos: quem fez isso? Com o quê? E me disseram: é feito com uma tinta que a gente mesmo faz. Foi quando eu contei que sabia desenhar. “Tu sabe mesmo? Se tu não souber... Pois bora fazer. Quando derem suas roupas e seu barbeador, você passa o barbeador pra cá”.
“Tem um projeto na Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social que se chama ‘Criando oportunidades’; são cursos de capacitação oferecidos aos internos em unidades terapêuticas que acolhem dependentes. Essas pessoas ficam nesses locais geralmente por uns seis meses. Gostaríamos que elas saíssem de lá com oportunidades e uma nova visão do mercado de trabalho. Ano passado, assim como em 2016, conseguimos 10 cursos, para 200 pessoas no total. Recentemente, fizemos a abertura do curso de cabeleireiro em uma comunidade terapêutica para 20 homens... É um sentido a mais na vida deles”, defendeu Aline Bezerra, secretária especial de Políticas sobre Drogas do Governo do Estado do Ceará.
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Aos 17 anos, Léo foi detido com um celular roubado no bolso. “Apanhei que só e, quando passei por psicólogo e assistente social, me botaram numa medida socioeducativa. Fui encaminhado pro curso Jovens Ambientalistas, na Barra do Ceará. E lá, conheci os professores da Cufa. Todos muito jovens e conversando com a gente de igual pra igual: Teo, o b-boy do curso, que botava a turma do Pantanal pra dançar break; Preto Zezé, o cara da cidadania, que passava uns vídeos sobre a favela pra gente; Davi Favela, o fera do grafite; e Cristiano, o Dj Doido, era da mesa de som e da Comunidade da Rima. Como eu desenhava, me identifiquei mais com o Davi e quis mostrar o que sabia. Ele me estimulou desde o início, disse que eu tinha talento, futuro e tal. Deu bons conselhos. E todos me passaram muita confiança. Só que eu era um jovem, com a cabeça meio doida, e continuei fazendo coisa errada até um ponto em que me afundei. Mas o que aprendi com eles fui usar lá na frente, quando resolvi botar o pé no chão”, remonta.
Leonardo Rodrigues [imagem - Marcelo Barbalho]
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Painel de Léo Gordo [imagem - Marcelo Barbalho]
Resultado: como tinha um tempo enorme para desenhar aquilo, me fez esquecer até das drogas. Não usei nada lá dentro e, conhecendo de perto aquele lugar de sofrimento, onde quem se dizia meu amigo sequer aparecia nos dias de visita, prometi pra mim mesmo que, quando saísse de lá, não ia mais fazer minha mãe sofrer
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E assim eu fiz: dei o barbeador, ele quebrou o cabo, pegou uma tampa de refrigerante, botou no chão, pegou o barbeador, botou em cima e tocou fogo. Depois pegou uma quentinha e cobriu aquilo. O barbeador queimou todo, a quentinha ficou toda preta. Ele raspou aquele pretume da fumaça, fez um pozinho, misturou com sabonete e água e fez uma tinta. Aí pegou pelinho de escova de dente, amarrou numa linha e me deu. Comecei a desenhar”, detalha. Do começo ao fim da pena, que durou exatos quatro meses, Leo desenhou em todas as celas da “rua A do P1, do Carrapicho da Caucaia”. Assim, não precisou se envolver com nenhuma outra demanda vinda do que chama de “Oficina do Diabo”. Ao contrário. Admirado por toda a população carcerária, recebia encomendas diárias e era pago com doces e outras iguarias por cada desenho caprichosamente finalizado. O redesenho da própria vida
A liberdade veio ao fim de 2008. E Leo ainda não sabia ao certo como sobreviver lá fora. Desenho, definitivamente, era a única coisa que sabia fazer. E, mesmo sem acreditar muito no dom como possível fonte de renda, foi o que lhe atravessou o caminho. “Um rapaz do bairro, que era evangélico, queria fazer uma mensagem bíblica na casa dele e uma moça que trabalhava com ele lembrou de mim, que eu desenhava bem. E me chamou. Mas eu não tinha compressor, nem tinta, nem nada. Pedi pra ele comprar a pistola que eu descontaria no valor do serviço. E disse que ia arranjar um compressor emprestado. Lembrei de um amigo que grafitava, ele é do movimento hip hop, o Demi. Trabalhava de segurança de dia e, de tarde, grafitava, era um dos meios de vida. ESTICADORES DE HORIZONTES
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“Uns me davam as fotos dos filhos e pediam pra eu reproduzir. Outros queriam um Jesus Cristo, a Virgem Maria, e assim eu frequentei quase todas as celas, enfeitando todas as paredes. Resultado: como tinha um tempo enorme para desenhar aquilo, me fez esquecer até das drogas. Não usei nada lá dentro e, conhecendo de perto aquele lugar de sofrimento, onde quem se dizia meu amigo sequer aparecia nos dias de visita, prometi pra mim mesmo que, quando saísse de lá, não ia mais fazer minha mãe sofrer, ela que foi a única que não me abandonou, e chegou um dia no Carrapicho com os pés sangrando de tanto andar porque não tinha quem oferecesse um transporte ou desse ao menos o dinheiro da passagem”, recorda.
Quando bati na casa dele, já ouvi um monte de carão e conselho, porque ele sabia que eu tinha sido preso e desenhava bem. Já gostei disso. E o melhor foi quando disse: ‘Leo, pega esse compressor, leva pra tu, eu vou ficar sem grafitar, mas só me devolve no dia em que você tiver condição. Começa, cara, a viver! Aquilo pra mim foi forte demais, determinante. Fiz o trabalho, sobrou quatro reais, porque a pistola foi 96 reais, mas parecia um prêmio da loteria! Só sei que, depois disso, não faltou mais trabalho, era uma bicicletinha, um capacete, o muro da escola, da academia, a quadra poliesportiva. E, até hoje, a demanda só aumenta, na periferia e na Aldeota também, viu?”, regozija-se, contente.
Hoje em dia, eu vejo que nem bandido eu era, só um pobre de um drogado, porque o pouco do dinheiro sujo que eu pegava, comprava de maconha e roupa, uma blusa da smoden, um chinelo e pronto, tava morto de feliz
Respeito é a maior gratificação que o hoje grafiteiro profissional se orgulha em receber. Conhecido em todo o bairro, o Leo Aerografia, que desenha com spray, mas é expert em usar as canetinhas de 3 mm para cuidar de cada pequeno detalhe dos desenhos que aplica sobre superfícies diversas, não sente saudade do “famoso” e “temido” Leo Gordo, nascido do crime. “Hoje em dia, eu vejo que nem bandido eu era, só um pobre de um drogado, porque o pouco do dinheiro sujo que eu pegava comprava de maconha e roupa, uma blusa da smoden, um chinelo e pronto, tava morto de feliz. Agora, comecei foi a usar essas roupas pra limpar minhas pistolas. Prefiro andar todo sujo de tinta aqui no Bom Jardim.
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Leo, pega esse compressor, leva pra tu, eu vou ficar sem grafitar, mas só me devolve no dia em que você tiver condição. Começa, cara, a viver!
“A gente que trabalha na saúde mental costuma falar que, quanto mais dependências você tiver, melhor. Eu sou dependente dos meus amigos, sou dependente do meu futebol, de correr, do skate, então, você não vai ter espaço para que o uso de uma substância tome conta da sua vida. Nós não vamos acabar com as drogas. Elas sempre existiram e vão seguir existindo. O que precisamos fazer é dar boas oportunidades às pessoas, de trabalho, lazer, saúde. Este é o grande gargalo: a dependência se trata de um problema social”, ressaltou Carolina Aires, coordenadora da Célula de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, órgão responsável pela gestão da rede Caps – rede formada pelos Centros de Atenção Psicossocial, que envolve o atendimento primário em saúde mental, incluindo os Caps-AD (Álcool e Drogas).
As meninas que me achavam bonitinho quando eu era criminoso, hoje, nem me olham. E a maioria dos que andavam comigo já morreu por conta do crime.Voltei a estudar, me casei, tenho um filhinho, vivo bem da aerografia e agradeço muito a esses senhores da Cufa. Pela técnica repassada naquele momento crítico da vida e pelos conselhos. Aquele contato reacendeu o meu melhor. Por isso, quero me aproximar cada vez mais da Cufa e mostrar, através da minha experiência, que é possível mudar e ser igualmente reconhecido pelas virtudes e não pelo vício”, enfatiza. A prova dos nove, em termos de reconhecimento, Leo fez há pouco tempo. Foi no dia em que os policiais que rondavam o bairro não o identificaram de imediato na escuridão da noite e resolveram interceptá-lo, de súbito, no meio do caminho, exigindo que encostasse no muro e, de costas, repassasse a mochila para revista. Antes, indagaram sobre o que havia lá dentro. Tranquilo e distraído, o grafiteiro disse: “uma tinta e duas pistolas”. Fez-se o alvoroço. Mãos na cabeça, nenhum movimento em falso. “Foi engraçado porque só minutos depois me toquei do que tinha dito. Pistola pra mim é ferramenta de trabalho, mas pra eles não, claro. E, quando eu apelei e pude me virar, enfim me reconheceram. Disseram: “ah, é o pintor, tá tudo bem!”. E daí rimos muito, enquanto eu explicava que não tinha tido a intenção de fazer qualquer gaiatice com eles. Quer dizer, foi um dos momentos em que vi como é bom ser respeitado até pela polícia”, ilustra.
Painel de Léo Gordo, em aerografia, na paróquia de Santa Cecília [imagem - Marcelo Barbalho]
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A linha de muitos nós cegos e algumas pontas soltas que ligam a pichação ao uso abusivo de drogas também deu voltas lancinantes em torno da vida do jovem Pedro Henrique Lopes, 28. Foi com carvão, giz de cera ou uma mesma lata de tinta para cinco, dada a situação de pobreza reinante no antigo bairro Pantanal, hoje Planalto Ayrton Senna, que ele descobriu o fugaz prazer de reinventar-se como Snnep, codinome que, ao longo de toda a adolescência, conferiu-lhe alguma posição de destaque e glória, ainda que enviezadamente, naquele território cinza de privações. “É onde eu conheço o mundo do maligno. Pichar era a minha forma de expressão. E tinha que ser em todo canto: no banheiro, na sala de aula... E isso incitava os outros a se rebelarem também. Nessa, já fui ter contato com os caras mais maduros, que já bebiam, fumavam, cheiravam cola, se drogavam. E assim a droga foi chegando perto, com todo mundo junto ali, como se fosse família... Foi quando conheci as mais baratas. E um abismo foi puxando o outro. Até que me viciei brabo, lá pelas tantas já não queria mais só usar e sim vender pra ter o respeito que a gente queria ter. O apelido já tava famoso e comecei a entocar maconha, cocaína, crack. A casa caiu quando minha mãe descobriu e me mandou esvaziar o guarda-roupa e chispar dali”, conta.
Aline Bezerra é secretária especial de Políticas sobre Drogas do Governo do Estado do Ceará. Para ela, o meio em que se vive é mais determinante na questão do uso de drogas do que a situação econômica. “Não acho que haja uma relação entre a pobreza e a dependência química, mas, sim, as juventudes mais pobres estão mais vulneráveis; ou seja, se você morar em um lugar em que todo dia você vê o traficante, o consumo livre, isto acaba ficando comum para você, então fica mais fácil você querer experimentar”, opinou.
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E assim a droga foi chegando perto, com todo mundo junto ali, como se fosse família... Foi quando conheci as mais baratas. E um abismo foi puxando o outro
Reprimenda que se converteu em agravante. Ao ser transferido pela mãe solteira para Quixadá, onde moraria com o avô materno, Pedro acabou por se tornar o maior de todos os traficantes entre os de sua idade. “Ficou pior porque lá não tinha e eu levei. Tive acesso a várias armas, o policiamento era pequeno, nós mais bem armados do que a polícia, vendendo direto. E eu andando nas festas, nas baladas, mas Deus começou a cobrar o preço, começou a colocar em mim o espírito da loucura. Eu usava tanto que via alucinação. Não chegava a ter overdose, mas tinha ataque de quebrar as coisas, atirar sem ter nada.Vivia trancado dentro de casa, sozinho, não queria ninguém perto de mim. Foi quando os vizinhos ficaram com medo e chamaram a polícia, que me espancou muito. Aí eu já tinha meus 18, 19 anos. E vim pra Fortaleza, transferido. Inaugurei a CPPL III [Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto, em Itaitinga, Região Metropolitana de Fortaleza]. E ali é que tinha muito demônio, viu?”, narra, à sua maneira, o então réu primário que, na capital, não demorou a ser preso em flagrante por assalto, para findar no Instituto Penal Olavo Oliveira (IPOO).
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E assim fui ficando conhecido dentro da cadeia. Imagina todo mundo armado ali dentro, drogado, cocaína e crack de ruma, dia de visita você vê o cara atirar em outro na frente de todo mundo. Vi tudo isso e não quero ver mais Pedro Henrique [imagem - Marcelo Barbalho]
Foi em meio ao que chama de “barril de pólvora prestes a explodir” que Pedro Henrique “aceitou Jesus”, por meio de um grupo de detentos evangélicos. “Orava com os irmãos, mas não conseguia me livrar das drogas dentro do presídio. Lá é que eu me envolvi com os caras pesados mesmo. Comecei a tomar uns comprimidos que não era pra eu tomar: rivotril, ripinol e era altamente ripinado, no banho de sol, que ia buscar as ‘coisas que jogavam por cima do muro. Ia porque eu ganhava em troca. E assim fui ficando conhecido dentro da cadeia. Imagina todo mundo armado ali dentro, drogado, cocaína e crack de ruma, dia de visita você vê o cara atirar em outro na frente de todo mundo.Vi tudo isso e não quero ver mais”, sustenta. Em meio a seis meses de detenção e horror, uma só miragem: o curso ministrado pelo grafiteiro Davi Favela, um dos integrantes da Cufa empenhados em levar para o sistema carcerário a cultura hip hop como forma de expressão, válvula de escape e alternativa de sobrevivência em dias futuros de liberdade.
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Juliana Sena é coordenadora especial de Políticas sobre Drogas da Prefeitura de Fortaleza. Como gestora, afirma não ser contra parcerias com o Terceiro Setor, mas defende que é hora do poder público assumir o seu papel diante do alarmante quadro de dependência química no País. “As ONGs tiveram um papel fundamental, e que foi cumprido. A política de drogas, os serviços oferecidos pelo Estado, são bem recentes”, observou. Segundo ela, os governos federal e estadual financiam vagas em instituições não governamentais: há parcerias, hoje, com cerca de 17 ONGs. “Em um primeiro momento, nós trabalhamos muito com essas entidades, mas, hoje, fizemos, como escolha, o investimento na rede pública. O governo federal, via Ministério da Justiça, já anunciou a redução desses convênios, mas o Governo do Estado não. A ideia é que, com a expansão da rede pública, nós consigamos dar conta da demanda existente. As igrejas e outras instituições cuidaram muito tempo dessa questão, mas, atualmente, precisamos de novos modelos. A política de drogas precisa dessa diversidade de ações”, defendeu.
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Grafite com temática religiosa, obra de Pedro Henrique [imagem - Marcelo Barbalho]
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“Eu já conhecia o Davi Favela daqui do bairro. No Olavo II, ele dava oficina de grafite, palestra. Não falei com ele na prisão, com vergonha. Mas quando saí, fui procurar o cara e ele me deu umas tintas e tudo. Dois primos dele que o inimigo chegou a levar eram vizinhos da minha casa. Comecei a frequentar a casa dele, da mãe dele. E a conhecer a Cufa. Davi foi me dizendo que eu ia trabalhar com grafite, ganhar dinheiro com isso. Comecei a sentir prazer de novo em ter uma profissão. E várias portas se abriram através disso. A gente já fez vários grafites juntos, em hospital, escola, muros, até pra OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]. E sempre deixamos uma mensagem pros jovens. Aqui, no Pantanal, nós riscamos muito juntos a figura de Jesus, que tá espalhada por todo o bairro. Por último, juntamos uma galera e pintamos uma carpa cercada de mar e rosas. Fiz alguns acabamentos, pintei por dentro. Com ele, tô me profissionalizando e encontrando prazer nessa nova vida sem drogas. Não vou mais dar brecha pro inimigo”, promete. [texto - Ethel de Paula]
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A organização criada pelo rapper MV Bill e o ativista social Celso Athayde tem representação em todas as capitais do País e em mais de 225 municípios do território nacional, desdobrando-se ainda entre 18 países
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Do Rio de Janeiro para o mundo. Há 20 anos, a Central Única das Favelas (Cufa) promove e investe no protagonismo e empoderamento de moradores das periferias brasileiras por meio de ações de inclusão social, que conjugam cultura, educação, lazer e esporte, além de formação profissional, política e cidadã. Hoje, a organização criada pelo rapper MV Bill e o ativista social Celso Athayde tem representação em todas as capitais do País e em mais de 225 municípios do território nacional, desdobrando-se ainda entre 18 países. Em 2015, a Cufa inaugurou seu escritório global em Nova Iorque, no Harlem, o maior bairro negro dos Estados Unidos.
Preto Zezé [acervo pessoal]
A potência da CUFA
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Grafite, DJ, break, rap, audiovisual, basquete de rua, shows e festivais de música, apresentações teatrais, exposições, exibições audiovisuais, espetáculos de dança. Publicações, discos, vídeos, programas de rádio, concursos, festivais de música, oficinas de arte, debates, seminários, cursos. É com total abertura para a diversidade de linguagens artísticas que a Cufa entra nas comunidades periféricas Brasil afora. Em Fortaleza, a fórmula se repete, ao mesmo tempo em que se ramifica pelos territórios. “Estamos apostando numa reorganização do ponto de vista da estrutura, articulando ações nos bairros onde já dispomos de espaços físicos aptos a sediarem as atividades. Caso da Quadra, do Lagamar, do Centro, da Praia de Iracema e agora do Pantanal também. Outra frente nossa vai dar nas organizações parceiras reunidas em torno do que chamamos de Rede Favela. É quando as ações chegam a outros bairros, como Pirambu, Messejana, Curió, Barra do Ceará, passando por estruturas cedidas pelos parceiros para esse fim, podendo ainda ir desembocar nas ruas e praças públicas”, detalha Zezé.
a Cufa só tem sentido se for pra empoderar essas pessoas, pautar o debate das favelas numa perspectiva contrária a do coitadinho, do deprimido, do violento, do trágico. Pautamos o que há de potente, as coisas positivas que existem na favela
Para ele, é somando e gerando sinergia que a Cufa vem formando lideranças locais e, mais recentemente, mão de obra qualificada. Tudo para que a favela não só fale por ela mesma, como venha a assumir a linha de frente de serviços que possam ser desenvolvidos no território, atraindo investimentos diretos. “A Cufa optou por juntar um monte de maluco suburbano e transformar essa galera em gente. Ou seja, sempre optou por preparar os escolhidos e nunca escolher as pessoas preparadas, os especialistas já formados. Tinha tudo pra dar errado. Mas não deu. E a Cufa só tem sentido se for pra empoderar essas pessoas, pautar o debate das favelas numa perspectiva contrária a do coitadinho, do deprimido, do violento, do trágico. Pautamos o que há de potente, as coisas positivas que existem na favela. É claro que nosso objetivo último é o fim das favelas, mas até que elas acabem, vamos ter que transformá-las em lugares melhores de se viver”, observa.
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Aos 40 anos, quem assumiu a coordenação global do movimento foi o cearense Francisco José Pereira de Lima, mais conhecido nas quebradas e bem além delas como Preto Zezé. Atual presidente da Cufa no Brasil, acumula a função depois de também ter sido o responsável pela implantação da Cufa em Fortaleza, ainda em 2003. Rapper e ativista social, Zezé é um entusiasta da cultura hip hop, mas entende que é para além dela que a Cufa precisa atuar para mobilizar, sobretudo, as juventudes em situação de vulnerabilidade social no país. Assim, se a ordem é que as pessoas das favelas sejam protagonistas dos processos de transformação social que ocorrem em seus territórios, é preciso fortalecer as vocações de cada bairro e abrir novos flancos de sociabilidade e invenção, apresentando alternativas de expressão e intervenção na dinâmica interna.
Ousadia que tem seu preço. E pede versatilidade. Ao mesmo tempo em que a Cufa busca apoios junto à iniciativa privada e ao poder público para financiar seu rol de atividades, também aposta no próprio espírito empreendedor que leva à periferia.
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“Como, além de investir nos valores e vocações do território, compartilhamos saberes e fazeres diversos, a Cufa empreendedora avança, qualificando e privilegiando os trabalhadores das comunidades. Assim, funcionamos, hoje, como uma espécie de agência de serviços: se você quiser um show, um grafite, a produção de uma música, de um vídeo, o pessoal da favela tem como desenvolver. Acabamos de grafitar, agora, o viaduto do Shopping Rio Mar e um muro de 300 metros pra Coca-Cola. Isto garante boa parte da manutenção da Cufa e a remuneração dos membros envolvidos em cada trabalho. Ou seja, o social não pode e nem deve prescindir do capital. Porque não há transformação social sem um mínimo de condições materiais para que aconteça, sobretudo na favela, um lugar historicamente esquecido e invisível”, critica Zezé.
é gerando qualidade de vida e criando uma ambiência de bemestar coletivo que a organização vem travando o bom combate junto a problemas urbanos crônicos, como o tráfico de drogas e a criminalidade nas favelas. Em âmbito local, no entanto, foi além: mergulhou no cotidiano de usuários e traficantes para produzir imagens, ditos e escritos em torno de um tema que ainda é tabu 216
Com foco voltado especialmente às potencialidades das periferias, a Cufa não deixa de tratar, a sua maneira, das principais fragilidades ou chagas de cada território marginal. Para Zezé, é gerando qualidade de vida e criando uma ambiência de bem-estar coletivo que a organização vem travando o bom combate junto a problemas urbanos crônicos, como o tráfico de drogas e a criminalidade nas favelas. Em âmbito local, no entanto, foi além: mergulhou no cotidiano de usuários e traficantes para produzir imagens, ditos e escritos em torno de um tema que ainda é tabu. “Através do documentário ‘Selva de Pedra - A Fortaleza Noiada, de 2012-2013, conseguimos dar visibilidade aos relatos de quem vive o drama do crack e encontra saídas para encarar ou sobreviver a isso. Ou seja, optamos por humanizar esse usuário que, até então, era visto como um zumbi que saía matando e roubando por aí. Esse mergulho nos fez ver que um dos problemas centrais dessas pessoas é que estão sozinhas, não tinham nem com quem conversar. No ato das entrevistas, elas pediam pra gente ficar, pra ouvir mais, perguntar. E a gente olhava em volta e via que o único lugar aberto ali era a bocada. Acho que a droga que gera prazer, não podemos negar, entra e se instala nessa lacuna”, pontua. O Centro Integrado de Referência sobre Drogas (CIRD) da Coordenadoria Especial de Políticas sobre Drogas da Prefeitura de Fortaleza atendeu, presencialmente, de julho de 2013 a junho de 2016, a 5.046 pessoas. Deste universo, 3.034 procuraram atendimento por conta própria, os demais foram levados por familiares, amigos, vizinhos, entre outros. Quanto ao sexo, 66% eram homens e 31% mulheres. Dos 15 aos 29 anos, o percentual de atendimentos no Centro chega a 48% do total. O álcool segue liderando o tipo de entorpecente utilizado, com 15%, seguido pela maconha, 14%, e pelo crack, 13%.Já o Estado possui 222 vagas conveniadas em 10 unidades terapêuticas. A ordem agora é interiorizar, já que só há duas unidades no interior. A potência da CUFA
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Carolina Aires, coordenadora da Célula de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Fortaleza, não poupa críticas à política de combate às drogas no Brasil. “Fracassou. A guerra às drogas é uma política falida, não funcionou em lugar nenhum. O que precisamos fazer é um processo de regulamentação dessas substâncias. As pessoas dizem que estão querendo liberar a maconha, mas, na verdade, ela já está liberada. O que alguns estudiosos defendem é que se regulamente, se controle. Por exemplo, há uma cracolândia, mas também há uma equipe de profissionais assistindo àquelas pessoas. Se há uma abordagem repressiva mais forte, eles fogem, acaba todo o trabalho feito até ali. Eu penso: ‘gente, essas pessoas estavam ali, nós podíamos ter chegado com assistência para ajudar, oferecer informações’. O mundo todo tá indo numa direção, enquanto o Brasil vai em outra”, alertou.
Favela Arte Festival [CUFA divulgação]
Segundo Zezé, a imersão também fez ver que não existe receita de bolo para tratar uma questão tão complexa. “Não é abrir um monte de clínica ou reprimir violentamente. Pelos relatos, entendemos que as pessoas são únicas e cada uma cria a sua saída. Um vai pelo Caps (Centros de Atenção Psicossocial), o outro vai pra igreja, a mulher teve um menino, o cara descobriu que era gay. As melhores alternativas, hoje, vêm dos próprios malucos. Muitos criticam a ação das igrejas. Mas a igreja atrai porque é acolhimento, tá lá no território de portas abertas, 24 horas, dá banho, corta cabelo, alimenta. Então, faz algum sentido. E é por isso que, na Cufa, a gente trabalha na perspectiva de melhorar o território, como uma ação restaurativa. Não defendo que as ONGs façam o trabalho do Estado, mas os governantes deveriam ouvir mais quem trabalha na ponta. Com o pouco que a gente faz, os caras conseguem sair do vício e, às vezes, com investimentos altíssimos em palestras e internações o resultado é mínimo. Criar ambiências e oportunidades pra que as pessoas se sintam bem, identificadas, acho que esse pode ser um caminho”, vislumbra. [texto - Ethel de Paula]
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Não defendo que as ONGs façam o trabalho do Estado, mas os governantes deveriam ouvir mais quem trabalha na ponta. Com o pouco que a gente faz, os caras conseguem sair do vício e, às vezes, com investimentos altíssimos em palestras e internações o resultado é mínimo. Criar ambiências e oportunidades pra que as pessoas se sintam bem, identificadas, acho que esse pode ser um caminho
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Jaína Alcântara é cientista social, mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Trabalha como consultora e pesquisadora do Centro Regional de Referência sobre Crack e outras Drogas (Nupes) da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e como professora colaboradora do Núcleo de Estudos sobre Drogas (Nuced) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Jaína Alcântara [imagem - 202B]
Entre as pesquisas acadêmicas que conduziu, a especialista explorou o universo de usuários de maconha e de crack na cidade de Fortaleza. Os resultados da pesquisa demonstraram que, a partir da análise do discurso presente na mídia impressa e de dados empíricos, a “falaciosa” chegada de desordens surgidas com o aparecimento do crack (violência urbana, furtos, roubos, assassinatos etc.) foi um discurso recuperado e atualizado a partir da lógica moralizante aplicada aos usuários de maconha entre os anos 1960-1970. Ou seja, reflexo de uma política proibicionista que pretendia criminalizar populações negras, latinas e juvenis. Atualmente, a pesquisadora desenvolve um estudo entre jovens moradores de um bairro periférico de Fortaleza, na perspectiva de compreender como vem funcionando ações de redução de riscos e danos do consumo de entorpecentes, além de acompanhar uma equipe de educadores sociais ligados aos direitos humanos, que desenvolvem ações de cuidado em saúde entre jovens dessa comunidade.
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Drogas: desafio político
O que transformou o “ritual” em um “provou a primeira vez, se viciou”, explica a cientista social, foram os mecanismos modernos de propaganda que, ironicamente, também atuam na direção oposta, transformando drogas em substâncias atraentes para serem consumidas, inclusive por crianças
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Entender a diversidade das juventudes requer, necessariamente, analisar o contexto em que se inserem, assinala Jaína. Por exemplo, um pai oferecer um cigarro de maconha a um filho soa, atualmente, como um ato amoral. Entretanto, exemplifica: “gosto de tomar o exemplo do tradicional primeiro trago de cachaça de um rapazote no interior do Ceará. Em geral, o pai ou um tio levam o iniciante a um bar em companhia de outros homens e mostra como se bebe uma talagada de cachaça. Nem sempre explicam os efeitos bioquímicos, mas esse ato faz parte de um tipo de ritual de passagem para aquele indivíduo, que entra em fase de maturação e que passa a ser ‘autorizado’ a beber”.
Nesse contexto, tal ato não é visto como estímulo para que esse jovem adquira um vício, mas como uma construção social, exatamente como certas drogas, hoje, ilícitas, foram no passado. O que transformou o “ritual” em um “provou a primeira vez, se viciou”, explica a cientista social, foram os mecanismos modernos de propaganda que, ironicamente, também atuam na direção oposta, transformando drogas em substâncias atraentes para serem consumidas, inclusive por crianças.
A questão do consumo abusivo é que é o nó a ser desatado
Jaína conta que a Maltine, indústria produtora e distribuidora de achocolatados hoje, durante o século XIX, produziu vinho de cocaína. Em suas recomendações de uso, poderiam consumir esse produto tanto adultos como crianças, estas últimas, porém, em pequenas proporções. Também no século XIX, drops de cocaína eram indicados para aliviar dor de dentes, posto que essa droga é um analgésico bastante eficaz. Um dos rótulos das propagandas nesse período expunha uma singela dupla de crianças brincando.Vejamos o caso do açúcar. É uma substância que altera o humor das pessoas, e que, portanto, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é droga toda a substância que, introduzida no organismo vivo, modifica uma ou mais das suas funções. A questão do consumo abusivo é que é o nó a ser desatado”, observa a especialista. Quanto à juventude, Jaína critica o fato como usualmente se lida com essa faixa etária tão particular: “alguém que carrega traços da infância, mas que se entende num devir adulto”. Devemos empoderar nossas juventudes, ouvi-las, direcionar nossas políticas públicas a partir do que propõem, não a partir de “discurso de adultos”, como vemos hoje. As juventudes parecem se instigar ao serem desafiadas por questões que lhes implicam. Então, que as políticas desafiem as juventudes a se implicarem com o que as interpelam”.
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“Pierre Bourdieu já nos alertou que juventude não é apenas uma palavra, mas uma categoria de análise. Como é diversa a expressão desse corte geracional, especialmente em contextos urbanos!”, observou, ao defender que não se pode pensar a juventude a partir de um única perspectiva. “Tal diversidade também perpassa o modo pelo qual as pessoas lidam com o uso de psicoativos, principalmente em uma faixa etária ligada a modificações e descobertas corporais, e a sanções morais”.
Outra questão que chama a atenção da estudiosa é o discurso institucional veiculado através dos meios de comunicação que tem como público-alvo as juventudes. “O discurso do ‘diga não às drogas’ funciona para uma parcela dessa população, mas e as outras que resolvem experimentar, ou que são levadas a isso, com quem dialogam?”, questiona, referindo-se à parcela da juventude que não quer abrir mão de sua autonomia. É necessária uma outra forma de se comunicar com esse público, defende. “São raras as ações que contemplam a noção de cuidado, respeitando a cultura, as escolhas ou o estilo de vida a que certos jovens aderem”.
a ilicitude imposta a certas drogas, não aplicadas ao álcool, ao tabaco e a certos fármacos, “como os benzodiazepínicos e ansiolíticos”, gerou e vem gerando uma cadeia de consequências sociais seletiva Jaína chama a atenção ainda para o fato de que, além de desconexa com o mundo real, a linguagem utilizada pelo Estado, que embasa a elaboração de suas políticas públicas, está construída em cima de preconceitos moralizantes arraigados na sociedade, impostos, muitas vezes, sem embasamento científico. Por exemplo, a noção ventilada de vício, “como se todas as pessoas fossem passíveis de se tornarem viciadas”. “Não se sabe bem diferenciar o que é vício do que é hábito”. Há alguns estudos da Biomedicina que mostram a baixa prevalência de adoecimentos relativos ao uso abusivo de substâncias psicoativas. É um pequeno percentual de pessoas que desenvolvem esse tipo de adoecimento, denominado no Código Internacional de Doenças (CID – 10) de “dependência química. Outros padrões de uso também são reconhecidos pela epidemiologia, como usos experimentais, ocasionais e frequentes, que não necessariamente são entendidos como dependência.
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Para a cientista social, a partir da construção da Política Nacional sobre Drogas, definida pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), em 2005, vislumbraram-se alguns avanços. “No entanto, na contramão, muito mais se investiu no combate às drogas. Permanecemos num eterno retorno ao problema que foi criado ainda no início do século passado com a Convenção da ONU [Organização das Nações Unidas] sobre Drogas, quando, por questões econômicas e de geopolítica, algumas substâncias tornaram-se ilícitas, em detrimento de outras”, critica. Segundo ela, a ilicitude imposta a certas drogas, não aplicadas ao álcool, ao tabaco e a certos fármacos, “como os benzodiazepínicos e ansiolíticos”, gerou e vem gerando uma cadeia de consequências sociais seletiva, que atinge pobres e negros, especialmente jovens, que morrem e são vítimas do mercado ilícito desses produtos. Outra parcela que se tornou alvo dessa guerra são as mulheres, um número absurdo de encarceramento se apresenta na América Latina desde o início dos anos 2000. “Os corpos dessas mulheres passaram a ser utilizados para transportarem substâncias ilícitas nas fronteiras e nos presídios, onde também há consumo, mas ainda continua-se negando essa prática”, salienta.
existe a prática de utilizar planos de gestão, e não planos de governo, para a aplicação de políticas Em relação à política pública de saúde para a recuperação de dependentes, Jaína Alcântara critica o modelo adotado pelas Comunidades Terapêuticas (CT), defendendo como melhor caminho de tratamento a Rede Pública. “Como nas CTs a proposta de abstinência é a única via, em torno de apenas 3% das pessoas que passam por essas instituições conseguem permanecer abstinentes. E o ciclo da recaída se reinicia a cada retorno ao meio aberto. Drogas: desafio político
Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps AD) foram dispositivos criados para este fim, com o intuito de cuidar das pessoas no próprio território”, considera. Mas no Brasil, ressalva, existe a prática de utilizar planos de gestão, e não planos de governo, para a aplicação de políticas. “O investimento que havia sido feito durante os 10 anos de estruturação desse tipo de serviço, a partir de 2011, passou a ser desviado para a manutenção de vagas em CT, que pouco tem a contribuir com uma terapêutica de cuidados, tendo em vista as precárias condições de funcionamento e o baixo poder de fiscalização estatal”, critica.
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Em que medida as pessoas que atuam em serviços de atendimento a usuários abusivos podem trabalhar o cuidado, se têm como pressuposto que quem usa droga é uma pessoa que não vale nada, ou que é um vagabundo, ou um peso social, um desviado?
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Jaína diz que se pudesse modificar um único aspecto da política sobre drogas no Brasil seria o preconceito arraigado ao tema. Para ela, eis o principal empecilho para se chegar a uma verdadeira solução e a um melhor tratamento para os dependentes. “Como trabalhar um tratamento humanizado se os profissionais de saúde e de assistência são formados a partir de conceitos moralizantes? Em que medida as pessoas que atuam em serviços de atendimento a usuários abusivos podem trabalhar o cuidado, se têm como pressuposto que quem usa droga é uma pessoa que não vale nada, ou que é um vagabundo, ou um peso social, um desviado? Enquanto não desconstruirmos os estigmas que rondam as classificações sociais, legais e médicas sobre o uso de drogas, teremos esse grande desafio”, sentencia. [texto - Benedito Teixeira]
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O baiano de Vitória da Conquista, Daniel Souza, hoje radicado em São Paulo, é presidente do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) e esteve à frente da elaboração e discussão crítica do mais importante marco legal voltado às políticas públicas de juventude: o Estatuto da Juventude. Regulamentado há três anos, o documento de proteção legal de toda uma geração tem significado social, jurídico e político estratégicos no enfrentamento das violações de direitos e defesa do jovem como protagonista do desenvolvimento social no Brasil. Em entrevista à Adital, ele diz sobre os desafios enfrentados desde o processo de criação do Estatuto da Juventude e o porvir diante do que chama de “golpe de Estado” e “governo sem voto”. Daniel Souza foi um dos convidados para o seminário de encerramento da série de reportagens Esticadores de Horizontes, publicada desde o mês de abril de 2016 no site da Adital. Ocorrido nos dias 16 e 17 de setembro de 2016, o encontro atraiu juventudes, movimentos sociais, pesquisadores e gestores públicos dedicados a dirimir os problemas e pensar alternativas de vida digna para jovens às voltas com desigualdades sociais e diversos modos de privações e violências. Daniel Souza [imagem - 202B]
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O marco legal da juventude
ADITAL - Em que contexto político o Estatuto da Juventude é regulamentado? E como o Movimento Passe Livre, que desencadeou as manifestações de junho de 2013, influenciou nesse processo? DANIEL SOUZA – Faz três anos que o Estatuto da Juventude foi aprovado no Congresso Nacional e depois sancionado pela presidenta Dilma (Rousseff). Primeiro, você tem um debate dentro dos movimentos sociais sobre a necessidade de se construir, no Brasil, embora tardiamente em relação a outros países, políticas públicas de juventude. Políticas, de fato, específicas, pensando o jovem como sujeito de direitos. Houve dois grandes encontros no Parlamento para debater, na esteira do Projeto Cidadania, com a presença dos movimentos sociais e vinculado ao que depois se chamou Instituto Lula. Esse caldo resulta, em 2005, na constituição da Secretaria Nacional de Juventude, do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) e do Pro-Jovem, importante programa governamental que nasce nesse contexto. Ou seja, surgiu a necessidade não só de construir políticas públicas no âmbito do Executivo, mas construir marcos legais para transformá-las em políticas públicas de Estado. Em 2008, se convocou a primeira Conferência Nacional de Juventude e, em 2011, a segunda. Paralelo a isso, veio o primeiro marco legal: a PEC 65, que em 2011 incluiu o termo “jovem na Constituição, o jovem como sujeito de direitos. Antes não existia. Em 2013, há o estopim ESTICADORES DE HORIZONTES
de um processo. O Estatuto existia como projeto de lei, um documento que ficou nove anos congelado na Câmara dos Deputados. E o que faz o projeto voltar à tona? Junho de 2013. Essa efervescência da juventude foi o caldo necessário para desenterrar esse projeto de lei e empurrar o Congresso Nacional a dar respostas efetivas no âmbito dessa política específica para jovens de todo o território nacional. O Estatuto, portanto, é uma tentativa de responder a algumas demandas de junho de 2013, como por exemplo, a demanda da participação política. Claro, uma resposta ainda limitada, frágil diante do Congresso que ainda se tinha, mas ainda assim uma resposta que amplia direitos para a juventude.
A chave que se leva em conta é a conquista da autonomia, quando se sai da casa dos pais etc. ADITAL - Como se chega a uma proteção legal de uma geração, a partir dessa faixa etária que vai de 15 a 29 anos? O que caracteriza e define esse entendimento de juventude? DANIEL - Não existe, no âmbito internacional, quando você pega a dimensão do direito comparado, inclusive na ONU, um consenso sobre a faixa etária. No Brasil, se tinha uma disputa também, inclusive junto às políticas para criança e adolescente. Isso é um bom debate, fizemos vários diálogos com o Conanda, para criarmos consensos. Qual é o foco do Estatuto da Juventude? Pensar no empoderamento, na autonomia e no protagonismo da juventude, pensando o jovem como sujeito de direitos. O ECA tem outra perspectiva: uma dimensão de tutela, de cuida-
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O Estatuto, portanto, é uma tentativa de responder a algumas demandas de junho de 2013, como por exemplo, a demanda da participação política
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do, embora também como sujeito de direitos. Então, no primeiro momento, se tinha a ideia de que fosse de 18 a 29 anos. Alguns deputados de oposição queriam de 18 a 24 anos. E foi uma disputa profunda no âmbito do Congresso Nacional e dos movimentos. Qual a base para pensar essa faixa de 15 a 29 anos? Pensar no que a gente chamava de bônus demográfico que o país vivia. Essa faixa etária representava cerca de 50 milhões da população. E a ordem era garantir direitos para essa faixa etária justo no seu processo de transição de uma perspectiva de tutela para uma perspectiva de autonomia e empoderamento, complementando direitos e não invalidando o ECA. Do ponto de vista jurídico, o ECA e o Estatuto se integram nessa faixa de 15 a 29 anos, os direitos não são e nem podem ser excludentes, mas complementares. Uma lei não exclui a outra, a complementa. Mas por que essa faixa etária até 29? O jovem sai da universidade aos 24 anos... Começa a construir a sua autonomia a partir dessa idade.... Seria reducionista deixar de ampliar. A partir do bônus demográfico, chegamos a essa faixa etária de 15 a 29 anos. É um bônus para o país. Se estamos em processo de desenvolvimento, esse desenvolvimento tem que ter a juventude como seu centro. Mas, claro, essa decisão é discursiva, política, tanto que isso varia: a juventude rural, por exemplo, vai até 32 anos; a juventude trabalhadora, dos sindicatos, até 35. A chave que se leva em conta é a conquista da autonomia, quando se sai da casa dos pais etc. Então, esses marcos finais se dão a partir de vários fatores e contextos. ADITAL - Como devemos entender o jovem do Estatuto da Juventude em relação ao que reza o Estatuto da Criança e do Adolescente? Onde há convergências e bifurcações, fragilidades e potencialidades, quando atentamos para essa intersecção?
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o segundo marco legal do país garante a livre orientação sexual. O primeiro é a lei Maria da Penha. Você não pode ser discriminado ou discriminada pela sua orientação sexual DANIEL - O Estatuto tem como princípio a promoção da autonomia, emancipação dos jovens, valorização da participação social, promoção da criatividade e participação para o desenvolvimento, ou seja, reconhecimento do jovem como sujeito de direitos, promoção de bem-estar etc. Mas o que eu gosto de destacar é que ele é o segundo marco legal do país que garante a livre orientação sexual. O primeiro é a lei Maria da Penha. Você não pode ser discriminado ou discriminada pela sua orientação sexual. Além disso, você tem direito humano à comunicação e aqui está a complementação em relação ao ECA. O Estatuto vai para além do ECA nesse tema. Outro destaque é que ele é o primeiro marco legal que, de fato, sinaliza que o jovem tem direito à educação superior, junto a isso, o direito à participação política em órgãos públicos, conselhos, em todas as áreas da federação.... Outro ponto relevante é o direito à cultura e aí também há uma complementação ou ampliação frente ao ECA. O direito à cultura se amplia com relação à perspectiva dos estudantes. A meia-entrada, por exemplo. Que fosse não só para os estudantes, mas para toda a juventude. E a mediação possível dentro das negociações foi meia-entrada para estudantes e para os cadastrados no CAD único, pessoas inseridas em programas de políticas sociais, como aqueles para jovens pobres, que contempla basicamente 18 milhões de jovens, além dos estudantes, com acesso à meia-entrada. E também com direito à meia passaO marco legal da juventude
Embora a gente tenha um marco legal como esse, isso não quer dizer que o Estado o assuma como sua política ADITAL – Qual o alcance real desse instrumento no atual contexto, sobretudo quando atentamos para números alarmantes em relação à proteção da própria vida da juventude pobre da periferia, que vem sendo criminalizada e exterminada a olhos vistos?
DANIEL – Muito bem, apresentei até agora o plano ideal do Estatuto da Juventude. Mas temos que dar um passo atrás. E pensar que esse Estado, que agora conta com um marco legal, tem princípios que o orientam. Os Estados Nacionais, modernos, se orientam a partir de uma lógica colonial. E esses resquícios dessa lógica colonial, no caso brasileiro, especificamente, se evidenciam nas suas raízes escravocratas ainda não superadas, o que se desdobra no que a gente denomina de racismo institucional. Embora a gente tenha um marco legal como esse, isso não quer dizer que o Estado o assuma como sua política. O que a gente tem como o Estatuto? Um documento que possibilita o controle social e o monitoramento de políticas públicas. Quando a gente pensa no racismo institucional, da raiz colonial desse Estado escravocrata, que encobre diferenças em nome de um projeto nacional, sobretudo agora, diante de um governo golpista como o do Michel Temer, que vem resgatar a bandeira, resgatar a ordem e o progresso, isso é a imagem de um projeto de unificação nacional que quer encobrir as diferenças, as tensões, as ambiguidades. Por isso a frase clássica: “não pense em crise, trabalhe”. “Vamos pacificar o país”. O que é pacificar o país? É operar nessa mesma raiz colonial, que não consegue lidar com tensões, conflitos, diferenças e oposições.
Daniel Souza na cerimônia de posse como presidente da CONJUVE - Brasília [divulgação]
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gem interestadual, duas passagens integrais e duas meias passagens para jovens. Isso é ampliação do ponto de vista do Estatuto da Criança e do Adolescente. Também o direito à cultura, que a gente regulamentou e vai ser lançado esse mês, que é o ID Jovem. O Identidade Jovem, esse marco na garantia do direito desses jovens pobres, chegando assim a quase 40 milhões de jovens. Então, são temas importantes e de complementação do ECA. E não pensar que essas políticas se excluem, mas buscar integrá-las. Ano passado, por exemplo, todos os movimentos da juventude se integraram ao debate da não redução da maioridade penal, a partir dos dois Estatutos, entendendo que isso é redução de direitos, uma política de encarceramento dos jovens.
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Então, esse mesmo Estado, embora tenha marco legal que garante o direito à vida, não necessariamente cumpre isso. Hoje, você tem dois grandes polos de política pública do Estado, guiados pelo racismo institucional: um é a politica de encarceramento. Quando você pega o mapa do encarceramento, quem são esses jovens encarcerados? Negros, pobres, jovens que não terminaram nem o ensino fundamental, moradores das favelas e periferias. Isso é uma política pública de encarceramento desses jovens e a redução da maioridade penal se juntava a esse processo. Outro esquema de atuação do Estado é o extermínio da juventude negra. Temos índices alarmantes, comparáveis a de grandes guerras. E a sua grande maioria? Jovens negros. Estou no Conselho Nacional de Juventude, agora a gente não reconhece o Governo Temer, não dialoga com o Estado, mas quando a gente debatia em um âmbito de democracia e dialogava com o Governo, essa era uma tensão permanente, para tentar encontrar as fissuras desse Estado e conseguir atuar minimamente. O Estatuto da Juventude é uma fissura, um lugar que a gente conseguiu adentrar, mas isso não necessariamente muda toda a lógica do Estado, o modo como essa entidade soberana, quase um deus, é capaz de regular as nossas vidas. Então, a gente celebra o Estatuto, por ser fissura, mas ao mesmo tempo suspeita dele e de sua atuação. Essa ambiguidade: a gente acredita e suspeita, esse movimento é necessário, para a gente não absolutizar nem o Estado nem a lei. Porque conseguiu um marco legal, o Brasil é outro amanhã. Não. A luta é permanente, é de monitoramento e controle, mas mesmo assim é difícil porque as bases do Estado são coloniais, escravocratas, patriarcais. Esse golpe é racista, machista, homofóbico, ele é velho, porque não há o lugar do jovem nesse espaço de poder.
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Os assassinatos dos jovens negros muitas vezes se legitimam no discurso de combate às drogas ADITAL – E como manter aberta essa fissura a partir de agora? DANIEL - Embora a gente tenha conseguido fazer pequenas mudanças por meio dos movimentos sociais, ao longo de um Governo com suas habilidades, mas também tensões e contradições, nós enfrentamos essas contradições, como, por exemplo, o ajuste fiscal do então ministro Joaquim Levy, autorizado pela Dilma. Quer dizer, você tem um estado de exceção, que agora se mostra mais evidente. Mas já era um estado de exceção, que você tinha que lutar com ele. Mesmo nesses 13 anos de um modelo de governo distinto a esse, você tem o extermínio da juventude negra. E um dos discursos que legitimam a prática desse estado de exceção é a política de drogas. Por isso, no Conselho, sempre vinculamos: para debater o extermínio da juventude negra e construir políticas públicas contra isso precisamos debater a política de drogas, porque as duas coisas estão vinculadas. Os assassinatos dos jovens negros muitas vezes se legitimam no discurso de combate às drogas. Como pensar outra lógica de política de drogas, não essa punitiva, proibitiva, que na verdade é um instrumento do próprio Estado para o encarceramento e o extermínio dos seus jovens. Isso agora também se mostra, de uma maneira mais radical, com a criminalização dos movimentos sociais. Em todas as manifestações dessa semana pelo Fora Temer em São Paulo você tem ampla agressão da polícia. Isso em protestos tranquilos. Uma estudante ficou cega de um dos olhos por causa dos estilhaços de bomba da polícia militar desse Estado. Então, esse estado de exceção, não é necessariamente pelo Estatuto que nós vamos conseguir superar. O marco legal da juventude
pensar uma política de redução de danos, não de criminalização, uma política que coloque no seu horizonte os direitos humanos, a garantia da autonomia e da cidadania desse sujeito DANIEL - A gente começou a atual gestão com esse tema, fazendo um seminário para pensar uma política de redução de danos, não de criminalização, uma política que coloque no seu horizonte os direitos humanos, a garantia da autonomia e da cidadania desse sujeito. E não uma política que pensa sob a lógica da punição, da internação compulsória, que nega esse sujeito, que nega as possibilidades de vida desse sujeito. Exemplo: aqui em São Paulo, na Cracolândia, você teve dois modelos de política pública. Um do Governo Geraldo Alckmin, de internação compulsória, em que o Estado chegava no território com o braço armado da polícia e internava de maneira compulsória, sem qualquer direito, resultando em uma ação profundamente violenta e com resultados péssimos. Já no âmbito do governo municipal, gerido pelo Fernando Haddad, criou-se a política De Braços Abertos, uma política de redução de danos: esses sujeitos continuavam no seu território, os que desejavam, porque trata-se de um sujeito que deseja, não é porque ele é um usuário de drogas que perdeu sua autonomia, seu direito, ele é um cidadão. ESTICADORES DE HORIZONTES
Então, tinha acompanhamento psicológico, tinha um emprego ali no bairro da Luz e o resultado disso são índices altíssimos de acolhida, dois de três pessoas que participaram do programa de algum modo reduziram o uso de crack. São dois exemplos que não estão longe de nós e estão aí para serem analisados. E no âmbito do CONJUVE, a partir dos marcos legais e para além deles, conseguimos incidir, por exemplo, na ONU, conseguimos incidir dentro do Governo Federal, no Ministério da Justiça, para construir uma posição mais ampla, claro, não tão radical, dentro dos limites do próprio Estado, mas distinta dessa política de criminalização, combate e encarceramento.
Então, o Plano foi um grande avanço, para além desses imaginários de uma juventude urbana, criando até novos conceitos, como o conceito de ruralidade, que permeia cidade e campo, para além dessas coisas binárias, pensando como criar conexões entre o jovem da periferia e da agricultura familiar ADITAL - Quais os outros pontos altos do Estatuto? E em que ele ficou frágil? DANIEL – Um ponto alto, sem dúvida, é o direito à participação social e política. Não há governo democrático sem isso, sem controle social. A III Conferência Nacional de Juventude, isso está também no Estatuto da Juventude, delibera que de quatro em quatro anos deve se convocar conferências nacionais, ou seja, convocar também estados e municípios a pensarem políticas públicas para a juventude.
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ADITAL - O que o Conselho de Juventude defende com relação à política de drogas, resvalando para o Estatuto?
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Então, algo que antes poderia se dar pela boa vontade do governante, agora é marco legal. De quatro em quatro anos tem que convocar as conferências. E a terceira conferência foi muito importante porque ela tenta dialogar com junho de 2013, pensando de que modo a gente radicaliza a participação para além dos movimentos sociais mais tradicionais e tenta tocar outros setores da sociedade. Exemplo: construímos, nas conferências, o espaço Manifesta, um espaço de cultura, então como construir políticas não a partir de debates e formulações apenas, mas por meio da arte. Construímos uma plataforma digital que elegeu 600 delegados para a conferência. E possibilitou um rankeamento de propostas, a partir de curtidas e compartilhamentos. As que tinham mais apoio saíram dessa plataforma e foram diretamente para a etapa nacional, por terem ganho muitos adeptos. De que maneira a gente amplia a participação? Isso é um desdobramento do Estatuto. E também destaco que foi uma conferência com paridade de gêneros, 50% homens, 50% mulheres; mulheres como identidade de gênero, mulheres trans, inclusive. E com cerca de 70% de jovens que se identificavam como negros e negras. Isso é uma ampliação da participação que só é possível porque você tem de algum modo um marco legal. Outro destaque: o plano de sucessão rural, que foi sancionado pela presidenta Dilma nos últimos dias de sua gestão, assim como a demarcação de terras de povos e comunidades tradicionais. De que maneira a gente radicaliza a reforma agrária, radicaliza processos de apoio e fomento da agricultura familiar? Essa pauta é importantíssima para nós do Conselho, foi a segunda proposta prioritária da conferência e mostra que o Brasil ainda não enfrentou de fato seu processo de desigualdade na garantia da terra. Então, o Plano foi um grande avanço, para além desses imaginários de uma juventude urbana, criando até novos conceitos, como o conceito de ruralidade, que permeia cidade
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e campo, para além dessas coisas binárias, pensando como criar conexões entre o jovem da periferia e da agricultura familiar. A própria garantia e financiamento da Educação Superior, uma demanda forte no Conselho a partir do Estatuto: dez por cento do PIB para a educação, os royalties do petróleo para a saúde e educação, avanço que agora está em risco diante da venda do pré-sal pelo governo golpista do presidente sem voto Michel Temer. ADITAL - Além disso, o que ficou interrompido ou foi soterrado frente ao golpe de Estado? DANIEL - No âmbito da institucionalização da política pública, o desdobramento final seria o Plano Nacional de Juventude, quais políticas públicas queremos para a juventude nos próximos dez anos. E se criar junto um Sistema Nacional de Juventude, espécie de SUS para política pública de juventude. Daí a gente fechava o ciclo sonhado desde 2005: constrói marcos legais, espaços de participação, programas e políticas e um sistema integrado, que liga o município ao Governo Federal, em termos de políticas públicas. Isso nós não finalizamos, como também o Plano de Juventude e Trabalho Decente. Nós, do Conselho, nessa gestão, vinculados às centrais sindicais, participamos, no âmbito do Estado, do comitê interministerial para a construção do Plano, que não foi implementado por conta da rejeição do grupo dos empresários. Era um Comitê tripartite: governo, sociedade civil e empresários. O plano ia ser implementado mesmo assim, sem a anuência dos empresários, mas agora, com o golpe de Estado, não conseguiremos implementar. Basta ver as falas do Temer quanto à redução dos direitos trabalhistas que, para ele, é modernização. Se já está difícil para a juventude, às voltas com trabalho informal ou trabalho indecente, agora vai piorar. O marco legal da juventude
ADITAL – Então como repensar linhas de ação do conselho e a organização da sociedade civil nesse novo contexto, já que não se dialoga nem se reconhece o atual Governo? Qual a postura política do momento, até para fazer reconhecer e legitimar esse Estatuto em âmbito nacional?
DANIEL - Estamos diante de uma encruzilhada, pensando em termos de CONJUVE. Um conselho é formulado como espaço de diálogo, formulação e construção de políticas. Precisa integrar sociedade civil e governos. Essa é a essência. Na medida em que nós não renunciamos a nossos cargos, temos um mandato e vamos até o fim, a gente se constitui, então, como um conselho que está dentro do Estado, mas não reconhece nem dialoga com o Governo. Como é que se faz incidência política? Por exemplo, fomos à ONU e fizemos a denúncia do Golpe. O que deliberamos? Aquilo que chamamos de monitoramento da perda de direitos: denunciar o desmantelamento das políticas de juventude e do Estado. De algum modo, também construir denúncias internacionais desse governo sem voto e alternativas com os movimentos sociais de resistência à ruptura democrática, redes para além do Conselho. Uma delas é o Pacto pela Juventude, uma ação da sociedade civil para que, em cada eleição, candidatos e candidatas se comprometam com pautas de juventude. Ao assinarem, têm que implementar. É um modo de incidir na politica, a partir do diálogo com os conselhos municipais. [texto - Ethel de Paula]
Daniel Souza no seminário do projeto Esticadores do Horizontes - Fortaleza [imagem - 202B]
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E o Plano era integrado, super sofisticado, pensava os caminhos do trabalho não apenas a partir da garantia do emprego, mas por meio de uma rede. Exemplo: para as mulheres, como garantir creche enquanto elas trabalham; como garantir a permanência do jovem no seu processo de educação vinculado ao seu processo de trabalho. Esse Plano queria integrar de fato as políticas de educação, de trabalho, de mobilidade urbana... Pensava a integralidade e a transversalidade da política pública de juventude, com foco no trabalho, mas irradiando pra varias áreas. E isso é um desdobramento do Estatuto da Juventude e das pautas dos movimentos. Em suma: ainda falta regulamentar o Sistema Nacional de Juventude e o próprio ID Jovem precisa ser lançado, meia-entrada para toda a juventude, meia passagem interestadual. Na atual conjuntura, marcada por um golpe de estado e uma ruptura democrática, onde a ponte para o futuro é na verdade uma redução de direitos, tenho a impressão de que isso não avança.
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ESTICADORES DE HORIZONTES Esta série de reportagens faz parte do projeto “A resiliência da juventude em situação de vulnerabilidade”e foi possível graças ao patrocínio do SESI – Conselho Nacional. A versão impressa é uma iniciativa da ADITAL.