Haiti por si A reconquista da independĂŞncia roubada
Presidente: Manfredo Araújo de Oliveira Diretor executivo: Ermanno Allegri Coordenação administrativa: Conceição Rosa de Lima
Projeto Haiti por si Organização e edição: Adriana Santiago Subedição: Benedito Teixeira Projeto gráfico e diagramação: Eduardo Freire Tratamento de imagens: Elton Gomes Revisão da edição em Português: Lucas Carneiro e Paulo Emanuel Lopes Tradução: Delza Tereza Lombardi, Benedito Teixeira, Francisco Nogueira e Paola Vasconcelos Transporte e logística: Robenson Lafortune Impressão: Expressão Gráfica
Reportagem Adriana Santiago, jornalista brasileira (textos e edição) Alty Moleon, fotógrafo haitiano (fotos) Ana Paola Vasconcelos, jornalista brasileira (textos e traduções) Benedito Teixeira, jornalista brasileiro (textos, edição e traduções) Francisca Stuardo, jornalista chilena (textos e fotos) James Alexis, jornalista haitiano (fotos) Jonh Smith Sanon, jornalista haitiano (fotos) Moranvil Mercidieu, fotógrafo haitiano (fotos) Nélio Joseph, jornalista haitiano (textos) Phares Jerôme, jornalista haitiano (textos e fotos) Thalles Gomes, jornalista brasileiro/MST (fotos) Wooldy Edson Louidor, jornalista haitiano (textos)
Catalogação na Fonte Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães - CRB 3 801- 98
Haiti por si : a reconquista da independência roubada / Adriana Santiago [organizadora] .- Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013. 192 p. : Il. Isbn: 978-85-420-0138-9 1. Haiti- história I. Santiago, Adriana II. Título CDD: 900
Haiti por si A reconquista da independĂŞncia roubada Adriana Santiago (organizadora)
Fortaleza - 2013
Um povo entre a dor e a esperança • Por Adolfo Pérez Esquivel (Prefácio) ............................................. 6 Refundar uma nação livre e soberana • Por Ermanno Allegri ............................................................ 9 Um ideal e um atrevimento • Por Adriana Santiago ...............................................................................11 Capítulo 1 Uma história paradoxal ................................................................................................................... 12 Cine para não morrer com os braços cruzados .............................................................................. 32 O “unga” crioulo .................................................................................................................................. 36 O Haiti existe? • Por Frei Betto ................................................................................................................. 44 Capítulo 2 Depois da catástrofe, como estamos? ....................................................................................... 46 Intelectualidade haitiana contribui para a reconstrução .............................................................. 50 Bispos do mundo em favor do Haiti.................................................................................................. 55 Casas da Finlândia inadequadas ao clima .........................................................................................57 Uma lição de solidariedade ................................................................................................................ 58 Escolas para reconstruir Léogâne.................................................................................................... 66 Cooperação para salvar vidas ........................................................................................................... 70 O Haiti após o sismo, qual a reconstrução? • Por Irdèle Lubin ..............................................................75
Capítulo 3 Soberania alimentar: um território agrícola em agonia ....................................................... 80 Café crioulo é iguaria disputada........................................................................................................ 84 O arroz na beira da estrada .............................................................................................................. 89 Kat Je Kontre - Quatro olhos que se encontram ............................................................................ 93 5 milhões em estado de desnutrição ................................................................................................ 98 Governo lança programas para reduzir a pobreza........................................................................102 Para proteger um patrimônio natural em perigo • Por Rochelle Doucet ............................................. 103 Capítulo 4 Uma alternativa de desenvolvimento econômico e social ..................................................106 Kasay: casa de farinha com uma linha de produção supereficiente.............................................114 Lèt Agogo - Beneficiamento de leite ajuda moradores do campo .............................................. 125 País emergente. Um caso de desvio? Mentira, confiança e sociedade • Por Alain Gilles .................131 Capítulo 5 A cultura como vitrine................................................................................................................... 136 Vodu: cultura e religião, resistência e solidariedade ..................................................................... 140 Artesanato em ferro é também coisa de mulher .......................................................................... 152 Da estabilidade cultural • Por Pierre Clitandre ........................................................................................160 Capítulo 6 Construindo a própria resistência ............................................................................................. 164 Mulheres cuidam de uma cidade...................................................................................................... 170 Escola gratuita nas férias para quem não pode pagar ..................................................................174 Rádios comunitárias para a organização popular ......................................................................... 178 Automeca, um acampamento de solidariedade.............................................................................185 Uma democracia participativa limitada • Por Marie Frantz Joachim.......................................................188
Prefácio
Um povo entre a dor e a esperança Por Adolfo Pérez Esquivel
Adolfo Pérez Esquivel é arquiteto, escultor e ativista de direitos humanos argentino, agraciado com o Nobel da Paz de 1980. Coordenou a fundação do Servicio Paz y Justicia en América Latina (SERPAJ-AL), junto com vários bispos, teólogos, militantes, líderes comunitários e sindicalistas. Tradução: Benedito Teixeira.
O Haiti foi formado pelos diversos povos africanos vítimas da escravidão a que foram submetidos como força de trabalho. No tempo de sofrimento e expulsão de sua terra, o povo foi gerando a resistência cultural, espiritual e política por seus direitos, vidas e identidade, conseguindo preservar suas raízes originárias. Através de sua história, foram objeto de diversas dominações e ditaduras que levaram o povo a situações limite, e o povo haitiano teve a capacidade de sobrepor-se e gerar a resistência para conquistar a construção de novos espaços de liberdade. Apesar desses esforços, o Haiti teve que suportar a presença de tropas estrangeiras, a dependência, sendo o país de maior índice de pobreza extrema no continente; castigado por catástrofes naturais, como terremotos e a epidemia de cólera, que afetaram a vida do povo há pouco tempo. É necessário saber a gravidade que isso representa: segundo informe publicado pelo OCHA (Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários), até 22 de junho de 2012, havia 559.487 infectados por essa doença de outubro de 2010 a junho de 2012, e 7.299 mortos; as projeções da doença diziam prever 170.000 novos casos para o ano de 2012. O informe do SG da ONU (Organização das Nações Unidas), publicado em 31 de agosto de 2012, dizia: 7.440 mortos entre outubro de 2010 e 15 de julho de 2012, e 580.947 infectados durante esse mesmo período. Apesar da difícil situação que o povo tem de suportar, tem a vontade e a capacidade de buscar caminhos alternativos e reconstruir espaços sociais, culturais e políticos, tem necessidade de recuperar os bens e recursos naturais que foram devastados por falta de políticas de desenvolvimento e integração de sua população e conseguir satisfazer suas necessidades básicas, como a saúde, educação, trabalho, e a possibilidade de uma moradia digna. Um povo a que as políticas impostas foram de especulação financeira sobre o desenvolvimento integral para a vida.
O Haiti é um país ocupado por tropas estrangeiras da Minustah, que, sob o nome de Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, não tem conquistado avanços significativos para recuperar as instituições do Estado e meios de segurança para a população, e fortalecer suas instituições, inclusive a ajuda internacional esteve mais direcionada ao assistencialismo do que à promoção de programas, nos quais os setores sociais, educacionais e políticos tenham participação ativa para conseguir recompor a estrutura do Estado, o poder judiciário e as instituições que tornam a vida democrática. Alguns organismos, como a ONU, Unasul e diversas instituições contribuem para melhorar a situação de vida do povo haitiano, alcançando algumas conquistas, que são insuficientes. É fundamental encontrar caminhos alternativos através da participação de diversas organizações sociais para superar seus problemas e fortalecer seus direitos de soberania e autodeterminação. No Haiti foram aplicados programas corrosivos, políticas assistencialistas “para o povo haitiano” sem participação das organizações sociais, que ficaram como espectadoras e não como protagonistas. Uma atitude cabível seria a participação ativa e o diálogo “junto ao povo”, esses sim são conceitos distintos de valores e de possibilidades reais para superar os problemas existentes. É urgente implementar programas viáveis para alcançar a soberania alimentar, recuperar os recursos naturais, a água, o direito à terra e a distribuição dos bens de maneira equitativa, como a recuperação das florestas e terras cultiváveis. Isso não é possível sem a participação ativa da população, é necessário despertar consciências e ativar seus próprios valores e saberes para um desenvolvimento integrador.
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Haiti por si
É um longo caminho a percorrer e esperamos que a solidariedade e o apoio internacional possam contribuir e dar frutos, pelo bem do povo haitiano. A França tem uma dívida histórica com o Haiti e tem a oportunidade de reparar e superar a crise que hoje vive a população haitiana, e a possibilidade de restituir a chamada dívida externa que o Haiti lhe pagou depois de sua libertação, e destinar esses recursos para cooperar com a reconstrução do País. A retirada das tropas estrangeiras é vital, a necessidade de estabelecer etapas para sua retirada e suplantar esses espaços de segurança com o pessoal haitiano. Esperamos e reclamamos aos países latino-americanos para não renovarem o mandato dentro da Minustah e para que retirem as tropas do Haiti. É o clamor e a exigência do povo, que já faz um ano. O Senado votou recentemente em favor da retirada das tropas, antes de 12 de outubro. A ONU e os governos dos países que mantêm tropas de ocupação no Haiti devem escutar a reclamação do povo. Reclamar a retirada dos efetivos militares norte-americanos do País, que, por razões estratégicas e políticas regionais, busca consolidar sua presença na região caribenha. Não é possível aceitar a presença de tropas estrangeiras que, com falsas justificativas, querem permanecer no País. É necessário mudar os eixos e objetivos que impuseram no Haiti e aprofundar a cooperação internacional e a solidariedade, e saber que é possível superar as dificuldades se o protagonista for o povo haitiano, que, para sua vida e desenvolvimento social, cultural, econômico e político, possa avançar no encontro do seu próprio caminho, e necessita das mãos e do apoio dos povos irmãos do continente e do mundo. Buenos Aires, janeiro de 2013
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No dia 15 de outubro, o secretário geral da ONU voltou mais uma vez a recomendar que se continuasse com a ocupação militar pela Minustah no Haiti, sem avaliar nem levar em conta que, depois de oito anos de ocupação, não foram alcançados avanços pelo bem do povo e de suas instituições. Volta-se a insistir e a submeter o povo a continuar com seu território ocupado por tropas estrangeiras, violando a soberania e os direitos do povo, com o pretexto de que a ajuda é necessária. A pergunta fundamental é: O que tem sido alcançado nesses anos de ocupação do país? E para quem é a ajuda? Quantos milhões de dólares e de euros são gastos para sustentar as forças de ocupação no Haiti, em vez de destiná-los à vida e desenvolvimento do povo? Em diversas oportunidades, foram enviadas ao Haiti missões internacionais para avaliarem e verificarem a situação dos direitos humanos e do povo, inclusive delegações das Nações Unidas. Sem avanços, nem resultado algum. Um exemplo do que assinalo é a zona talvez de maior marginalidade e pobreza do país, ‘Cité Soleil’, onde a falta de água potável, redes sanitárias, esgotos e as condições de aglomeração das pessoas suportam a violência social e estrutural, provocando altos índices de doenças e mortalidade infantil. Dentro desse quadro dramático, devemos encontrar caminhos esperançosos que nos iluminem, como a ação de diversas organizações humanitárias que contribuem apoiando o povo haitiano com programas e aportes concretos para o acompanhamento da vida do povo, a presença de grupos médicos que vivem e compartilham a vida com os moradores nos bairros onde atuam, somando-se educadores e técnicos agrícolas, capacitando campesinos para que eles sejam gestores do seu próprio desenvolvimento e vida. Há tentativas de promover programas de reflorestamento e a recuperação da terra, os cultivos orgânicos e o desenvolvimento, tendo em vista economias regionais e participativas.
Apresentação FOTO: MORANVIL MERCIDIEU
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Haiti por si
Refundar uma nação livre e soberana Por Ermanno Allegri
que está no Brasil há 40 anos, foi assessor da Pastoral da Terra e hoje é Diretor da Agência de Informação Frei Tito para América Latina - Adital. www.adital.com.br
metade da população do Haiti vive, hoje, na miséria, é porque os haitianos nunca chegaram a criar estruturas sociais e econômicas próprias. Na medida em que iam construindo sua vida livre, a repressão chegava para cortar suas pernas. É o que os grupos dominantes fizeram sistematicamente também com os três pilares da cultura haitiana: o creol, o vodu e o lakou. Faz 500 anos que o Haiti vem sendo varrido e demolido pelos furacões e terremotos dos colonizadores: a Espanha e a França, no começo e, depois, os Estados Unidos, com seus marines e suas máfias que chamam de ‘corporações’. Sempre contando com a colaboração da ‘elite’ local, vendida e servil. Mas, hoje, vivemos um tempo novo de nossa história. Vários países da América Latina e do Caribe estão recuperando sua dignidade política e social. Por isso, a ADITAL quis dar à reportagem um enfoque definido: destacamos as múltiplas iniciativas e ações das organizações haitianas que estão determinando no país um caminho novo como nação soberana. Esta é a primeira finalidade da reportagem que está em suas mãos: acreditamos que o Haiti tem jeito, o Haiti tem futuro, que os haitianos têm condição de reconstruir ou, como dizem agora, de refundar seu país como nação livre e soberana. No meio de mil dificuldades, está acontecendo o que Toussaint Louverture (o precursor da independência haitiana) disse em 1802, ao ser capturado e deportado pelos Franceses: ”Vocês me derrubaram, mas só cortaram o tronco da liberdade dos negros. Ela brotará de novo porque suas raízes são muitas, e profundas”. Fortaleza, janeiro de 2013.
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Ermanno Allegri é padre italiano
Lembramos, hoje, o terceiro aniversário daquela data. O dia 12 de janeiro de 2010 marca a história do Haiti: um terremoto, uma ‘fatalidade natural’ , deixou mais de 300.000 pessoas mortas. O país ainda estava se recuperando de quatro furacões que levaram morte e destruição à ilha entre agosto e setembro de 2008. Nesta oportunidade, o saldo também foi pesado: 793 mortos. Poucos, porém, sabem que os mesmos furacões, Fay, Gustav, Anna e Ilke, varreram também a vizinha ilha de Cuba. Lá, ‘só’ causaram quatro vítimas fatais. Isso mesmo: as catástrofes desnudam o estado «real» das sociedades. Para confirmar, no fim de outubro de 2012, o furacão Sandy matou 11 pessoas, em Cuba. No Haiti, foram registrados 54 mortos e 21 desaparecidos. Quase ninguém noticiou. E poucos sabem que, em 1970, o Haiti produzia 95% dos alimentos que consumia, enquanto, hoje, está importando cerca de 50% de sua necessidade alimentar. Lendo esta reportagem, vamos conhecer mais ‘casos’ como estes. E vamos descobrindo, sobretudo, que a extrema vulnerabilidade social e física do Haiti (e de quantos outros países no mundo?) é uma praga produzida sistematicamente ao longo da história. Dos 300.000 mortos no terremoto, quantos poderiam estar vivos, se... se aquele país não tivesse sofrido a carnificina de toda a população indígena (os arawakos e os tainos), o massacre de 300 anos de escravidão, varias décadas de ditaduras cruéis e, ultimamente, as leis assassinas do mercado globalizado. É uma longa história de violência e opressão que negou ao país a possibilidade de se construir como nação autônoma na economia, na vida social, na política. É necessário deixar claros e definidos estes elementos básicos da história haitiana para que todos percebam que, se mais da
Introdução FOTO: MORANVIL MERCIDIEU
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Haiti por si
Um ideal e um atrevimento
Adriana Santiago é jornalista, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA) e professora de Jornalismo na Universidade de Fortaleza (Unifor) desde 2006. Foi editora-chefe da Adital de 2003 a 2006, e hoje colabora com projetos especiais.
reconstrução, economia solidária, soberania alimentar, cultura e democracia participativa. São seis linhas de investigação com propostas dadas pelos próprios haitianos, com saídas já iniciadas por alguns, na esperança de que se transformem, um dia, em políticas públicas efetivas. No capítulo da história, Edson Louidor chama a atenção para as raízes ancestrais da aparente subserviência, do excesso de exploração e a origem da força do haitiano. Phares Jerôme traz, no capítulo da refundação, os processos de reconstrução e tenta explicar como é importante ir muito além do levantar paredes físicas, elevando as paredes da alma do haitiano e de sua autonomia. Ao falar no capítulo de economia solidária, Jerôme mostra ainda que é necessária uma integração econômica voltada para a emancipação do País das ajudas internacionais, com saídas locais e reformas efetivas para a construção da cidadania, principalmente da força feminina de trabalho. Tal saída conta com o reforço da agricultura, pois 65% dos quase 10 milhões de haitianos moram nas zonas rurais. Eles se sustentam de minúsculas propriedades, apesar de nem sempre terem condição de transportarem e venderem sua produção por conta das estradas destruídas e da falta de água e energia. Jerôme mostra ainda, nesse capítulo, que a agricultura familiar é a saída para a subsistência do País e a retomada das exportações. Nélio Joseph trabalha com cultura e ele mesmo propôs o capítulo em que traça um panorama geral das riquezas culturais de seu País. Defende que a cultura é a grande vitrine que vai elevar o País, em sua soberania e autoestima, pois seja na música, na pintura, no artesanato, na literatura, a cultura é o único ambiente onde o Haiti é competitivo, no plano internacional. Por fim, no capítulo de democracia participativa foram colocadas por mim, Benedito Teixeira e Paola Vasconcelos questões mais políticas que atravancam o desenvolvimento do País. Esperamos, agora, que apreciem este trabalho e que se aliem a nós nos resultados para que possamos ajudar a alavancar este país, com um povo tão simpático, forte, inteligente e trabalhador. Sorte e perseverança!
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Por Adriana Santiago
Este é um livro de reportagens e um atrevimento: escrever matérias que mostrem uma perspectiva para uma nação que não é a sua. Assim, a ADITAL me convida para organizar esta empreitada, fazer-me conhecer o Haiti e escrever sobre ele para o mundo. Esta não é uma tarefa para um estrangeiro fazer sozinho. Mais do que uma tarefa árdua, seria uma irresponsabilidade e uma incoerência se não fizéssemos um livro sobre o Haiti com os haitianos. Desta forma, no Haiti, colaboram com capítulos deste livro os jornalistas Wooldy Edson Louidor, Nélio Joseph, James Alexis (fotos) e Phares Jerôme, este último com três capítulos. Além dos articulistas Irdèle Lubin, Rochelle Doucet, Alain Gilles, Pierre Clitandre e Marie Frantz Joachim. No Brasil, além de mim e o diretor da Adital, Ermanno Allegri, o jornalista Benedito Teixeira coeditou o material e a jornalista Paola Vasconcelos foi o elo com os jornalistas haitianos, além do Frei Betto, com um artigo. A colaboração ainda mais estrangeira fica por conta da jornalista chilena, Francisca Stuardo, que fotografou e escreveu para nós, em suas horas de folga, em Porto Príncipe. O trabalho de organização e coleta de dados começou em setembro de 2011, com uma série de reuniões para escolher o foco ideal para o livro. Quando fazíamos pesquisas, só víamos miséria, dor e ações de ajuda humanitária. Perguntávamos onde estavam os haitianos. Assim, resolvemos fazer um projeto com textos e fotos que chamasse a atenção dos haitianos e da comunidade internacional para que percebessem as reais possibilidades de autogestão do povo daquele país, que sofre com ocupações militares e desastres naturais como furacões e terremotos, que trazem ainda mais fome, desabrigados e o cólera, causando cada vez mais a subserviência às economias estrangeiras. A primeira visita técnica ao País foi em dezembro de 2011, quando levamos o projeto ao Haiti e conversamos com as lideranças dos movimentos sociais, que aprovaram e incentivaram nossas ideias. Depois de muitas entrevistas com líderes locais, que culminaram no capítulo sobre democracia participativa, escolhemos, então, seis eixos que apontam caminhos para uma reconstrução verdadeira e efetiva para o País: história,
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Capítulo 1 Por Wooldy Edson Louidor
Uma história paradoxal No início, eram os índios os principais habitantes da ilha Hispaniola, totalmente massacrados com a chegada dos europeus. O Haiti passou, então, a ser um depósito de escravos trazidos da África, cujos descendentes, após a independência do País em 1804, conheceram poucos momentos de verdadeira soberania econômica e política.
Quando Cristóvão Colombo chegou, em 5 de dezembro de 1492, à primeira ilha onde se estabeleceu no Novo Mundo, se sentiu num paraíso. As altas montanhas que separavam as vastas planícies e os amplos vales; pássaros de todos os tamanhos e de todas as cores; árvores majestosas, bosques densos… Ao redor do oceano, várias ilhotas como esfinges faziam guarda.
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Assim escreveu Silvio Zavala, autor de livros sobre a colonização espanhola nas Américas, descrevendo a impressão nada agradável causada aos “descobridores” do encontro com os habitantes originários da ilha. Os espanhóis não tardaram a empregar o maquinário da colonização na ilha, explorando as minas de ouro e reduzindo à escravidão os índios, considerados bárbaros e inferiores. Colonização que ia de mãos dadas com a evan-
FOTO: FRANCISCA STUARDO
Foram nesses termos que vários escritos da época apresentaram a ilha que hoje compartilham Haiti e República Dominicana. Os primeiros colonizadores acharam a ilha tão bela, que puseram o nome de Hispaniola, ou seja, a pequena Espanha, em homenagem à sua terra natal. No entanto, os habitantes originários dessa ilha paradisíaca, os arawakos e os tainos, pareciam seres estranhos aos colonizadores espanhóis. Chamaram de índios, por equívoco, porque os “descobridores” pensaram que tinham chegado às Índias Orientais. Os índios eram tão sumamente bárbaros e incapazes, que nunca se poderia imaginar caber tal torpeza numa figura humana: tanto que os espanhóis, que primeiro os descobriram, não podiam ser persuadidos de que tinham uma alma racional, mas, quando muito, um grau a mais do que macacos ou papagaios, e não tinham nenhum escrúpulo ao engordar seus cães com a carne dos aborígines, tratando-os como puros animais.
Uma história paradoxal gelização. A espada e a cruz foram os dois lados de uma mesma moeda. Assim começou, na ilha batizada de Hispaniola pelos próprios espanhóis, o encontro entre dois mundos diferentes, que dará lugar a uma história de invasão, colonização, dominação, racismo e, ao mesmo tempo, de resistência, rebelião e luta pela liberdade. Uma história paradoxal…
agravou a situação humanitária. As difíceis condições de vida, a instabilidade política e o desespero da população forçaram, durante as últimas décadas, mais de um quarto da população (entre mão de obra barata e intelectuais) a emigrar, principalmente para a República Dominicana, algumas ilhas do Caribe, América do Norte e, em menor medida, para a Europa e América do Sul.
Uma história de invasão e rebelião
A colonização espanhola e a resistência indígena
Diante de tantos paradoxos faz-se necessária uma breve apresentação geográfica e sociodemográfica do Haiti, antes de esboçar um panorama histórico desse país caribenho, contrapondo os diferentes momentos de invasão com as respectivas formas de rebelião contra eles. O Haiti é um pequeno grande país, que conta com uma superfície de 27.500 quilômetros quadrados, mas que representa a primeira república negra do mundo inteiro. Está localizado no Caribe, vizinho à República Dominicana, país de maioria branca e língua hispânica, com o qual comparte a ilha. É composto por uma grande maioria de pessoas de raça negra (mais de 95% da população total). Lá, se fala o francês ou o crioulo haitiano. Antiga colônia da França tornou-se independente em 1804, mas guarda elementos culturais do colonizador, tais como o idioma, o sistema educacional, a religião católica, o sistema jurídico e outros. Entretanto, os negros do Haiti conseguiram conservar sua herança africana, que se reflete na tecnologia, na vida econômica, na organização social, na religião, na arte, no folclore, na língua. A maioria dos ancestrais dos negros haitianos provém do Golfo de Benin, antes chamado Costa dos Escravos, e do antigo reino de Ouidah, ocupado pelo rei de Dahomey, que vendia aos brancos seus prisioneiros de guerra em troca de produtos europeus: armas, pérolas, utensílios etc. De fato, predomina no Haiti a tradição cultural-religiosa dos fon e yoruba (mahi e nagô), procedente das regiões de Dahomey e Congo, tradição conhecida como o vodu. Considerado o país mais pobre do Hemisfério, o Haiti foi terrivelmente afetado por um terremoto em 12 de janeiro de 2010, que devastou grande parte de seu capital e
Os arawakos foram uma das primeiras etnias aborígines dizimadas pelos colonizadores espanhóis. Seu caráter hospitaleiro e pacífico, admirado de maneira irônica pelo mesmo Colombo, facilitou, num primeiro momento, o trabalho dos colonizadores espanhóis. “Com cinquenta homens, poderemos subjugá-los”, escreveu em seu diário. Os indígenas foram surpreendidos pela crueldade dos espanhóis, conforme relatou Colombo. Quando começam a capturar os índios, as aldeias de Hispaniola vão ficando vazias. Em 1495, caçam 1 mil e quinhentos índios e os prendem em cercos vigiados por espanhóis e por cachorros; logo selecionam quinhentos para levar para a Espanha, duzentos dos quais morrem no caminho, e os que chegam, são vendidos… Os espanhóis começam a caçar índios arawakos; muitos deles são enforcados e queimados, e muitos outros começam a matar seus filhos para livrá-los dos espanhóis. Em dois anos, a metade da população de Hispaniola, calculada em 250.000 habitantes, morreu assassinada, mutilada ou suicidada. Quando se viu que não restava mais ouro, os índios foram tomados como escravos para trabalharem em grandes fazendas chamadas “encomendas”. Tinham que trabalhar num ritmo tão terrível que morreram milhares. Em 1515, restavam aproximadamente cinquenta mil. Em 1550, havia apenas quinhentos. Um relatório de 1650 mostra que nenhum arawako ou descendente seu sobrevivia. Foi o fim dos primeiros habitantes da ilha: os arawakos. Um genocídio praticado em nome da “Santíssima Trindade”, tantas vezes invocada por Cristóvão Colombo em seu diário e em seus Relatórios à Corte de Madrid. O que depois se chamará de descobrimento da América significou para os arawakos e outros povos do “novo”
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Uma história paradoxal continente a invasão, a colonização, a morte, a tortura, a escravidão, o racismo, o genocídio. Na América, não houve descobrimento, mas “encobrimento do outro”, como bem disse o filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel. Os colonizadores europeus converteram o continente no “novo mundo” e seus habitantes originários em “bárbaros”: converteram a América no Outro para justamente negá-la como o Outro, encobri-la em sua alteridade. O Outro foi declarado bárbaro, era preciso evangelizá-lo, reduzi-lo à escravidão, absorvê-lo. O Outro era considerado um objeto e não um sujeito. Os arawakos, que eram um povo pacífico e não conheciam armas, tiveram que organizar-se rapidamente para resistir à crueldade dos colonizadores. Ante a superioridade militar dos espanhóis, não se renderam, mas brigaram até o final. Utilizaram várias formas de luta, tais como a “cimarroneria”, que consiste em refugiar-se nas montanhas para atacar à noite os colonizadores. Uma das figuras emblemáticas da resistência indígena é Caonabó que, a partir de 1522, liderou um grupo de índios cimarrones que resistiam nas montanhas contra os espanhóis. Caonabó foi capturado pelos espanhóis, encarcerado e extraditado. As histórias narram que ele desapareceu do barco que o levava para a Espanha. Os povos aborígines se articularam como um só homem, unindo vários caciques e fazendo uma frente comum para lutar. A figura de Anacaona, a rainha taina da tribo Maguana, é emblemática dessa forma de resistência organizada dos aborígines. Teve um papel importante para unir os diferentes caciques e estabelecer a concordância e a paz entre eles. No entanto, pela força de traições e da brutalidade, os espanhóis capturaram e executaram os aborígines e seus chefes, tais como Caonabó e a própria Anacaona. Fica por escrever a história da rebelião desses aborígines. Por desgraça, a história que nos chega é a que
Anacaona em obra da artista
contam os vencedores. A história dos vencidos tende a
plástica e escritora haitiana
desaparecer. O genocídio indígena se confunde com o
Alexandra Barbot, em seu livro
historicídio indígena.
“Mommy, tell me about Haiti”.
A colonização francesa e a primeira república negra Logo após o genocídio dos índios, provocado principalmente por um conjunto de fatores tais como massacres, trabalhos forçados, fome, choque microbiano (introdução de
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Haiti por si Além da cimarroneria, muito parecida com a estratégia da guerrilha urbana de nossos tempos, os escravos utilizavam outras formas de resistência. Por exemplo, à noite, saíam das plantações para se reunirem, dançarem ao som dos tambores, celebrarem as cerimônias religiosas ritmadas pelo vodu, e organizarem a luta ideológica e armada contra os colonizadores franceses. Como bem define o escritor e antropólogo afrocolombiano Manuel Zapata Olivella, “o vodu é uma religião africana, originária dos povos iorubás de Dahomey, que se sincretizou com a dos bantues… Se inspira numa filosofia ontogênica a partir do laço que une os vivos com seus ancestrais e orixás”. As cerimônias vodu serviam para congregar os escravos e conectá-los espiritualmente com seus ancestrais da África, que lhes enviavam mensagens, geralmente revolucionárias e esperançosas, através dos sacerdotes vodu. Por exemplo, a cerimônia vodu de Bois-Caïman, presidida pelo sacerdote jamaicano Bouckman, deu inicio à revolução haitiana. Em tal cerimônia, Bouckman declarou que “um pacto foi selado entre os iniciados daqui e os grandes loas (espíritos) da África, para que a guerra se iniciasse sob signos propícios”. E ele completou: “O Deus dos brancos ordena o crime. Nossos deuses nos pedem vingança. Eles conduzirão nossos braços e nos darão assistência. Rompamos a imagem de Deus dos brancos, que tem sede de nossas lágrimas; escutemos em nós mesmos a chamada da liberdade!” A luta definitiva contra a colonização francesa foi encabeçada pelo grande herói nacional, Toussaint Louverture, a partir de 1791. Ao ser capturado pelos franceses, em 1802, e antes de ser levado preso para a França, onde morreu de pneumonia, em 1803, no cárcere de Fort-de-Joux, o precursor da independência haitiana declarou que “ao derrotar-me, vocês mataram somente o tronco da liberdade dos negros, que voltará a crescer porque suas raízes são profundas e numerosas”. Em 1804, dois anos depois da derrocada de Toussaint Louverture, os negros “tinham derrotado o glorioso exército de Napoleão Bonaparte, e a Europa nunca perdoou essa humilhação”, descreveu o escritor uruguaio Eduardo Galeano.
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novas doenças e vírus pelos europeus no novo continente) e suicídios, era preciso buscar outra mão de obra escrava para sustentar a ordem escravagista. A França conseguiu, em 1697, que a Espanha lhe cedesse a parte ocidental da ilha (hoje, República do Haiti) através da assinatura do Tratado de Ryswick, ainda que os franceses já houvessem se instalado em Saint-Domingue (nome dado pelos franceses à parte ocidental da ilha) desde 1650 e 1670. O flamejante ministro de Luis XIV, Colbert, tinha começado a organizar o tratado negreiro, principalmente nas colônias francesas. Somente no século XVIII, 864.000 escravos negros da África tinham chegado a Saint-Domingue, com uma média de 8.000 por ano, em 1720, e de 40.000, em 1787. A quantidade de escravos era tão numerosa que resultava menos caro para um plantador francês renovar seu estoque de escravos que alimentá-los e deixar que se reproduzissem. Os escravos negros foram muito maltratados: mal nutridos, mal vestidos e mal dormidos; qualquer manifestação de rebelião era passível de mutilação corporal ou morte. De fato, em 1788, só restavam em Saint-Domingue cerca de 500.000 escravos negros, dos quais 60% tinham nascido na África. Centenas de milhares de escravos negros morreram também por causa dos trabalhos forçados nas plantações de cana-de-açúcar, índigo, algodão, café e cacau. Graças à exploração de mão de obra escrava negra, Saint-Domingue chegou a converter-se, no século XVIII, na Pérola das Antilhas, a colônia mais rica da França; por exemplo, foi a primeira produtora mundial de açúcar e de café. “Em meados desse século, Saint-Domingue se converteu na colônia mais lucrativa do mundo, ao produzir mais riqueza que as 13 colônias que, posteriormente, formariam os Estados Unidos da América”, ilustra o jornalista Kevin Edmonds, em reportagem de 2010, da Agência Latino Americana de Informação (Alai). No entanto, a rebelião dos negros escravos de SaintDomingue não tardaria a acontecer. Começou com a resistência dos cimarrones negros, com destaque para o manco Mackandal, que utilizava seus conhecimentos das ervas, dos cogumelos e das folhas para fabricar venenos e, à noite, assaltava as plantações, envenenava as fontes de água, as árvores frutíferas e os campos onde pastava o gado, e incendiava os canaviais e cafezais.
Uma história paradoxal peste antiescravagista. E, no Brasil, essa peste se chamava haitianismo.
Ao longo de todo o século XIX, o exemplo do Haiti constituiu uma ameaça para a segurança dos países que continuavam praticando a escravidão. Já havia dito Thomas Jefferson, presidente estadunidense (1801-1809): do Haiti provém a peste da rebelião. Na Carolina do Sul, por exemplo, a lei permitia encarcerar qualquer marinheiro negro enquanto seu barco estivesse no porto, pelo risco de que pudesse contagiar a
Efetivamente, o chefe de Estado haitiano, Alexandre Pétion, Toussaint Loventure pela artista
ajudou Simón Bolívar e Miranda com armas, munições e ho-
plástica Alexandra Barbot (in http://
mens em sua luta pela independência sul-americana. Numa
mommytellmeabouthaiti.com).
carta escrita ao presidente haitiano, em 1816, Bolívar agradeceu: “Meu reconhecimento não tem limites pela honra que V. Exa. acaba de fazer-me (…) Do fundo do meu coração, digo que V. Exa. é o primeiro dos bem-feitores da terra! Um dia a América proclamará V. Exa. seu libertador, sobre todos os que gemem ainda, inclusive sob o jugo republicano. Aceite por antecipação, senhor Presidente, o voto de minha pátria! (…)” O Haiti vira símbolo da rebelião contra a escravidão em todo o continente, principalmente na América Latina. As potências internacionais da França, Estados Unidos, Inglaterra e Holanda, deixando de lado suas rivalidades coloniais, estavam decididas a estrangular essa revolução em sua infância; tanto que obrigaram o Haiti a pagar uma indenização de 150.000.000 de francos em ouro aos proprietários das plantações francesas pela perda de sua propriedade. “O Haiti pagou à França, durante um século e meio, uma indenização gigantesca, por ser culpado de sua liberdade, mas nem isso alcançou. Aquela insolência negra continua doendo aos brancos do mundo”, afirmou Galeano. “A decisão [do Haiti] de pagar essa indenização superior às rendas disponíveis do país equivaleu a amarrar uma corda no pescoço, uma corda que o estrangulará a cada vez que tentar mover-se”, ilustrou o economista haitiano Lesly Péan. De fato, as rendas públicas do Haiti representavam três milhões de dólares, enquanto que a dívida da independência contratada injustamente pelo país era dez vezes maior que suas rendas anuais. “A título de comparação, o território da Louisiana (ou seja, 15 estados que incluíam o meio oeste americano, com um território de 2,14 milhões de quilômetros quadrados) foi vendido em 1803 aos Estados Unidos pela França por um preço de 15 milhões de dólares americanos (80 milhões de francos), isto é, a metade do preço pago pelo Haiti por sua independência”, prossegue Péan.
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Haiti por si Sophie Perchellet, que é vice-presidente do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo na França. Todos os capitais do Haiti, derivados da exportação de café e outras exportações de seus recursos naturais, foram Alexandre Pétion apóia a luta de
transferidos para a França para pagar a enorme dívida da
Simón Bolivar em obra da artista
independência. Ao mesmo tempo, o País exportou para os
plástica haitiana Alexandra Barbot.
Estados Unidos da América, França e outros países europeus matérias primas, tais como a madeira. Por exemplo, França e Estados Unidos sangraram a ecologia do País, ao explorarem de todas as formas as madeiras e as minas. Para pagar a indenização da independência, o País teve que contratar uma dívida pública que o obrigou a adotar uma economia de exportação, ao invés de uma economia orientada para a satisfação das necessidades básicas de seus cidadãos, e de transferência de seus capitais e seus recursos naturais para a antiga metrópole. O jovem país não pôde trabalhar para reconstruir-se e desenvolver-se. A independência haitiana, recentemente conquistada, estava condenada a fracassar.
A ocupação americana e a resistência campesina Em 1915, os Estados Unidos da América ocuparam o Haiti, aproveitando o clima de instabilidade política gerada no país caribenho à raiz de incessantes conflitos entre facções políticas. Entre 1908 e 1915, o País foi dirigido sucessivamente por nove presidentes. Sob o pretexto de estabilizar o Haiti, os Estados Unidos ocuparam o país caribenho para estender seu imperialismo e o capital estadunidense através da implantação de suas corporações, que se dedicaram principalmente às indústrias açucareira e bananeira. A ocupação americana foi acompanhada por grandes expropriações de terras dos campesinos e pela apropriação dos recursos financeiros do Banco Nacional da República do Haiti (BNRH). “Os invasores começaram por apoderar-se das aduanas e entregaram o Banco Nacional ao City Bank de Nova York. E já que estavam, ficaram por 19 anos”, escreveu Eduardo Galeano.
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O jovem Estado teve que solicitar aos banqueiros franceses três empréstimos: de 30 milhões de francos, em 1825, de 15 milhões, em 1874, e de 50 milhões, em 1875, para poder pagar o montante total da dívida, em 1897, e os juros, até 1913. “O Haiti pagou um preço alto, e a dívida é o instrumento neocolonial utilizado para ter acesso aos múltiplos recursos naturais desse país”, escreveu
Uma história paradoxal Grupos campesinos haitianos chamados Cacos, encabeçados por Charlemagne Péralte, seguidos por Benoit Batraville, depois do assassinato de seu predecessor, em 31 de outubro de 1920, em Hinche, organizaram a resistência armada contra a invasão americana e brigaram até a morte. Ainda que dispusessem de pouquíssimas armas, os campesinos realizaram várias expedições contra os marines, principalmente em Porto Príncipe, mas os ocupantes já haviam instalado um sistema repressivo no País e criado uma guarda nacional para neutralizar toda reação contra a ocupação. Durante a ocupação americana, que durou de 1915 a 1934, chegou ao Haiti o capital estrangeiro, principalmente o capital estadunidense, que continuou com o ‘ecocídio’, substituindo a cultura de víveres alimentícios, centrada em uma economia de autossubsistência, pela cultura do sisal, da borracha, da banana e da cana-de-açúcar para exportações. Todo esse processo foi acompanhado por expropriações brutais de terras dos campesinos, que nelas vinham cultivando café, árvores frutíferas e criando animais, tais como caprinos, galinhas e vacas. Por exemplo, a lei de 22 de setembro de 1922 proclamava em seu artigo primeiro que “as terras deverão ser arrendadas apenas a pessoas ou companhias que possam justificar suas capacidades financeiras e as condições necessárias para realizarem o desenvolvimento do País, conforme a Presente Lei”. Essa situação de expropriação e exploração dos campesinos alcançou seu ápice em 1946, quando o governo de Élie Lescot proclamou o decreto de 6 de janeiro de 1945, que permitiu corporações americanas, como a Sociedade Haitiano-Americana de Desenvolvimento Agrícola (SHADA), destruir as plantações de víveres alimentícios, produtos agrícolas e árvores frutíferas. Alguns intelectuais apoiaram a situação, a exemplo de Franck Blaise, em seu livro Le Problème agraire à travers l’Histoire d’Haïti (O problema agrário ao longo da história do Haiti), quando qualificou essa destruição ecológica de “desastre natural”.
A ditadura duvalierista e a rebelião popular A ocupação americana terminou em 1934. No entanto, os Estados Unidos da América ficaram com uma importante
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Haiti por si
Selo de 1904 para Alexandre Pétion, presidente de 1806 a 1818, logo após a morte de Dessalines.
Selo de 1988 em homenagem a Carlos Magno Peralte, o líder dos Cacos, que lutou contra ocupação dos EUA entre 1915 e 1919.
Tela em arte primitivista, comum nas ruas do País, representa o toque do início das batalhas de resistência contra os franceses.
da ilha. Tal matança de porcos, que constituíam um dos pilares da economia haitiana, desequilibrou o sistema agrário de subsistência campesina e contribuiu para a descapitalização das explorações agrícolas, a pauperização dos campesinos, a insegurança alimentar e o êxodo rural. Considerava-se que os porcos crioulos eram as contas de poupança dos campesinos, que os vendiam para, com o dinheiro, mandarem seus filhos para a escola, irem ao hospital quando estivessem doentes e para outras ocasiões especiais. A matança de cerca de 1 milhão de porcos crioulos, de um total estimado entre 1,2 milhão e 1,9 milhão que havia em todo o País, foi um desastre socioeconômico, principalmente para os campesinos, apesar de sua grande resistência frente a essa medida mortal. Por exemplo, escondiam os porcos crioulos atrás dos pátios de suas casas. A compensação entregue aos campesinos donos dos porcos crioulos foi muito menor (7,5 milhões de dólares), em comparação com o valor total do rebanho, estimado em 60 milhões de dólares. Os novos porcos importados não se adaptaram ao País imediatamente, a ponto de necessitar cruzar três diferentes espécies para criar uma nova raça. O cruzamento levou vários anos e foi feito sem o apoio dos Estados Unidos da América. Mas a suinocultura nunca seria igual com os novos porcos, já que não se incorporaram ao estilo de vida dos campesinos como os porcos crioulos. O descontentamento, principalmente no campo e nos bairros populares, crescia contra o regime repressivo dos Duvalier. Os meios de comunicação, a universidade pública e a Igreja Católica, em especial as Comunidades Eclesiais de Base (Ti Legliz, em crioulo), figuraram entre as primeiras forças (ainda que não as únicas) que canalizaram e articularam o protesto social contra o regime duvalierista. Um grupo de sacerdotes católicos haitianos, próximo à Teologia da Libertação, que prega a opção preferencial pelos pobres, teve um papel importante para atualizar a mensagem libertadora de Jesus na realidade haitiana e convidar o povo a lutar para transformar, à luz da fé, tal realidade, caracterizada pela opressão política, a miséria, o analfabetismo, a injustiça...
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presença no País através das forças armadas haitianas, principalmente a Guarda Nacional, que eles mesmos criaram durante a ocupação. O triunfo da revolução socialista cubana, em 1959, liderada por Fidel Castro, deu aos Estados Unidos o pretexto para apoiar, no Haiti, o regime ditatorial dos Duvalier. François foi eleito presidente do Haiti, em 1957, com o apoio dos Estados Unidos. Criou uma milícia paramilitar pessoal chamada Tontons Macoute, para assentar seu poder vitalício, reprimindo todas as rebeliões e os movimentos sociais, inclusive assassinando membros da elite intelectual do País que se atrevessem a questionar seu poder. A corrupção foi parte fundamental do regime duvalierista. A família Duvalier enriqueceu, principalmente, com o dinheiro recebido da máfia estadunidense, em especial a novaiorquina, e com os recursos do País. Além da repressão e da corrupção, a presidência de Jean-Claude Duvalier, filho de François Duvalier, se caracterizou também pela “liberalização econômica”, através da instalação das indústrias de manufatura, principalmente têxteis e de vestuário, para exportação. Esse modelo de manufaturas se apresentou, daí por diante, como o modelo de desenvolvimento para o Haiti, em detrimento da produção nacional (principalmente agrícola), ainda mais quando tais empresas multinacionais contribuem para gerar pouquíssimos empregos (além de mal remunerados) e não deixam quase nenhum capital no País ao não utilizarem os produtos do Haiti, mas matérias primas importadas de outras nações, principalmente dos Estados Unidos. Explica bem Sophie Perchellet: “de 1970 a 1985, a indústria de manufatura pôde criar somente entre 40.000 e 50.000 empregos, ou seja, três mil anuais”. O descontentamento popular contra Jean-Claude Duvalier aumentou de maneira exponencial quando ele decidiu matar os porcos crioulos em 1978, sob pressão dos Estados Unidos da América, Canadá e México. Essas três nações recomendaram erradicar todos os porcos crioulos do País, supostamente por temor de que a Peste Suína Africana, que foi descoberta na República Dominicana no mesmo ano, afetasse todo o gado suíno
Uma história paradoxal
À raiz de um grande movimento social, o ditador JeanClaude Duvalier teve que exilar-se do País, pondo fim a uma terrível ditadura que durou cerca de 30 anos. O dia 7 de fevereiro de 1986 marcou uma nova etapa na história do País: “a segunda independência do Haiti”, como foi batizada. No ano seguinte, uma nova Constituição, democrática e de acordo com a vontade popular, foi elaborada e aceita unanimemente pela população, que a proclamou solenemente para “garantir seus direitos inalienáveis e imprescritíveis à vida, à liberdade, conforme com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948”, para “constituir uma nação haitiana socialmente justa, economicamente livre e politicamente independente”, e para “implantar a democracia, que implica o pluralismo ideológico e a alternância política, e afirmar os direitos invioláveis do povo haitiano”, de acordo com o preâmbulo da nova Carta Magna do País. O povo haitiano viveu, ainda que de maneira efêmera, o sonho de construir um país democrático, sonho que se converterá logo em pesadelo por uma série de regimes militares autoritários, que dirigirão o País até 1994, depois de vários golpes de Estado. O golpe de Estado militar que será mais lembrado é o que foi executado pelo general Raoul Cedras contra o presidente Jean-Bertrand Aristide, em 30 de setembro
Ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, ex-sacerdote salesiano, apóstolo da teologia da libertação e ídolo dos bairros populares, foi deposto com apoio dos EUA por três vezes.
de 1991. Ex-sacerdote salesiano, apóstolo da Teologia da Libertação e ídolo dos bairros populares, Jean-Bertrand Aristide foi escolhido nas eleições de dezembro de 1990 como candidato presidencial das forças progressistas e do movimento popular, para exorcizar a ameaça de uma eventual volta ao poder do regime duvalierista, simbolizado por seu candidato de então, Roger Lafontant. O presidente Jean-Bertrand Aristide foi eleito com uma maioria consolidada de 67% dos votos. Logo depois de ter passado apenas sete meses no poder, foi derrubado pelas Forças Armadas do Haiti com a cumplicidade da administração americana de George Bush (pai), das forças duvalieristas, da burguesia nacional e de grande parte da hierarquia da Igreja Católica. A capital, Porto Príncipe, se converteu num rio de sangue e numa imensa sala de tortura contra o povo haitiano, que dizia não à repressão e reclamava a volta à democracia e à ordem constitucional. Escreveu Eduardo Galeano: A democracia haitiana nasceu há pouco. Em seu breve tempo de vida, essa criatura esfomeada e doente não recebeu mais do que bofetadas. Estava recém-nascida nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela tomada de quartel do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de ter colocado e tirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos tiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que tinha sido o primeiro governante eleito pelo voto popular em toda a história do Haiti, e teve a louca vontade de querer um país menos injusto. Após seu regresso ao poder, com o apoio da administração de Bill Clinton, dos marines americanos e dos ‘cascos azuis’ da Organização das Nações Unidas (ONU), Aristide já “não pôde resistir às mudanças impostas pelo Fundo Monetário Internacional sobre a abertura comercial, sobre a liberalização financeira”, explicou Camille Chalmers, coordenador da Plataforma para o Desenvolvimento Alternativo do Haiti (Papda). De acordo com Sophie Perchellet: Enquanto que os Estados Unidos se encarregaram de “restaurar a democracia”, as instituições financeiras deveriam aportar “estabilidade financeira e desenvolvimento”. Através dos planos de ajuste estrutural (PAS), a soberania econômica, política e financeira do País é abandonada aos seus credores, às grandes potências e ao deus Mercado.
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Haiti por si
Desde a década de 90, o Haiti vem afundando progressivamente na dependência econômica, financeira e militar, através dos mecanismos de liberalização comercial e financeira, da presença militar de diferentes “missões de paz” das Nações Unidas e do controle de suas políticas públicas pelas instituições financeiras internacionais. Desde 1986 e 1987, as autoridades haitianas já tinham reduzido as tarifas alfandegárias, o que provocou a invasão do mercado local por produtos importados. A produção local foi muito afetada por essa medida liberalizante, anunciada pelo ditador Jean-Claude Duvalier. Por exemplo, em 1995, após um acordo com o FMI, foram reduzidas de 35% para 3% as tarifas sobre o arroz importado, principalmente de Miami. A produção do arroz haitiano colapsou ante a competição desleal com o arroz americano, que chegava infinitamente mais barato. Em 2008, mais de 80% do arroz consumido no Haiti provinha de Miami. Essa abertura excessiva do País ao mercado, através da drástica redução das tarifas sobre os produtos importados, prejudicou a produção local e provocou um grande desequilíbrio entre as importações e exportações.
A Minustah chegou ao Haiti em 2004, comandada pelo Brasil. FOTO: ANA NASCIMENTO/ABR.
“De 653 milhões de dólares, em 1995, o valor das importações aumentou para 2,158 bilhões de dólares, em 2008”, ilustra Sophie Perchellet. Da mesma forma que os capitais derivados das indústrias de manufatura, os capitais das importações se dirigem para o exterior, principalmente para os Estados Unidos da América. Por outro lado, as políticas públicas no Haiti, principal instrumento para atacar os problemas mais graves de um país, têm sido definidas, durante os 20 últimos anos, segundo a organização haitiana Papda, por “especialistas das instituições financeiras internacionais (IFI), representantes das missões diplomáticas e organizações internacionais acreditadas no Haiti, acompanhados por alguns burocratas/tecnocratas, políticos haitianos e, supostamente, alguns membros da sociedade civil”. Foram elaborados – sem participação real da sociedade civil haitiana – vários documentos como marco de ditas políticas públicas, tais como: o Programa de Urgência e Reabilitação Econômica, de 1994 a 2004; o Marco de Cooperação Interina, de 2004 a 2006; o Documento de Estratégia Interina para a Redução da Pobreza, de 2006 a 2008; o Documento de Estratégia Nacional para o Crescimento e a Redução da Pobreza, de 2008 a 2010; e, ultimamente, (logo depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010), o Post Disaster Needs Assessment/ Avaliação das Necessidades Pós-Desastres (PDNA) e o Plano de Ação para a Recuperação e o Desenvolvimento Nacional (PARDN). Todos esses instrumentos de políticas públicas, desfavoráveis para o povo haitiano, têm-se orientado a intensificar a dependência econômica e financeira do País das instituições financeiras internacionais, que obrigam o Estado haitiano a reduzir seus gastos sociais, acelerar a privatização de suas empresas e abrir totalmente seu mercado sem nenhuma subvenção à produção local. Ou seja: a aplicar o plano de ajuste estrutural. Por outro lado, à raiz da instabilidade política gerada no Haiti por conflitos entre diferentes facções políticas, o País tem acolhido, “de 1993 até hoje, cinco missões de apoio e manutenção da paz: a Minuha (Missão das Nações Unidas no Haiti), a Manuh (Missão de Apoio das Nações
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A luta dos movimentos anti-neoliberais
Uma história paradoxal Unidas no Haiti), a Mitnuh (Missão de Transição das Nações Unidas no Haiti), a Miponuh (Missão de Polícia Civil das Nações Unidas no Haiti) e a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) desde 2004”. Essas distintas missões de paz têm sido acusadas de cometer abusos e violações aos direitos humanos contra cidadãos haitianos. Atualmente, a Minustah, a nova missão da ONU no Haiti, tem sido qualificada de “força de ocupação” por vários movimentos sociais do País. Ela é acusada de reprimir os protestos sociais e perpetrar violações aos direitos humanos, inclusive abusos sexuais contra jovens, homens e mulheres. Tem sido desencadeada uma ampla luta contra a presença da Minustah e para sua saída imediata e incondicional do País, luta encabeçada pelos estudantes da Universidade do Estado do Haiti, principalmente a Faculdade de Ciências Humanas. Outros movimentos sociais, tais como os dos operários, os dos camponeses e das organizações feministas, têm intensificado também seus protestos contra os ‘cascos azuis’, para pedir sua saída do País. Do mesmo modo, têm exigido uma reparação para as mais de 7.000 vítimas haitianas da epidemia de cólera, provocada por essa missão militar através dos ‘cascos azuis’ nepaleses, e também para centenas de pessoas, todos jovens - homens e mulheres -, que têm sofrido agressões sexuais por parte dos cascos azuis. Ante a amplitude dos protestos, vários países, entre eles o Brasil, que detém o comando militar da Minustah, analisam a possibilidade de reduzir suas tropas policiais e militares nessa missão e fazer uma retirada progressiva, tal como anunciou a presidenta brasileira, Dilma Rousseff, durante sua visita ao Haiti em 1º de fevereiro de 2012. Do mesmo modo, os operários e grupos sindicais, apoiados pelos movimentos sociais, vêm empreendendo uma luta contra a privatização das empresas públicas, que tem implicado na demissão de milhares de empregados. Por exemplo, logo que as autoridades haitianas venderam, em abril de 2010, 60% das ações da companhia de telefonia pública Teleco à sociedade vietnamita Viettel, os empregados dessa empresa que foram despedidos organizaram uma manifestação contra a medida de privatização. Inclusive um ex-empregado chamado Jakson Saintelus ameaçou
A presença dos militares da ONU mudou o cotidiano dos haitianos. FOTO: MARCELLO CASAL JR. / ABR .
suicidar-se se não fossem efetuados para todos os ex-empregados dessa empresa seus pagamentos e as indenizações pelos danos causados por demissões injustificadas. Num país onde o desemprego e o subemprego afetam mais de 80% da população economicamente ativa, as autoridades haitianas têm insistido que os investimentos estrangeiros privados são a alternativa para gerar empregos, convertendo essa abundante mão de obra numa “vantagem comparativa” a oferecer no mercado internacional. Com a assessoria das instituições financeiras internacionais, os diferentes governos têm assinado uma série de acordos comerciais com os Estados Unidos da América (através das Leis Hope I e II) e com a União Europeia (mediante os Acordos de Parceria Econômica). Ambos os acordos têm o objetivo de abrir o País aos mercados americano e europeu, sem proteger a mão de obra e produção nacionais. Por exemplo, a Lei Hope (Haitian Hemispheric Opportunity through Partnership Encouragement), que foi prorrogada em 2007, estabelece a abertura ilimitada dos dois países a intercâmbios comerciais livres entre eles sem pagar direito de aduanas em nenhum lugar, principalmente para os produtos têxteis provenientes das manufaturas. Longe de criar os 10.000 empregos prometidos em três anos, de
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Haiti por si O Haiti destina 22% de seu orçamento ao pagamento da dívida externa. Somente em 2005, o Haiti pagou ao Banco Mundial 52,6 milhões de dólares como serviço da dívida, como requisito para receber a ajuda dos empréstimos oferecidos na Conferência de Doadores, realizada em Washington, em julho de 2004, pela quantidade de 1,5 milhão de dólares. No entanto, depois do pagamento realizado pelo Haiti, o BM outorgou um empréstimo de 46 milhões, dos quais 80% estavam destinados a acelerar a privatização de cinco empresas públicas: água potável, eletricidade, telefonia, portos e aeroportos. Esse modelo promoveu a abertura dos mercados, principalmente a produtos agrícolas, que têm destruído a produção nacional, como é o caso do café e do arroz. Até os anos 1970-1985, o Haiti era um país autossuficiente em cereais e, agora, 82% do mercado nacional de arroz está abastecido pela importação dos Estados Unidos. Paralelamente, se impulsionaram as exportações de produtos não tradicionais através da expansão de monocultivos para exportação, que utilizam as melhores terras, a mão de obra barata e o uso do pacote verde, principalmente agrotóxicos, que causam graves danos à saúde dos trabalhadores e ao meio ambiente.
Capitalismo do desastre Nem sequer o terremoto de 2010 conseguiu fazer com que as grandes nações do Norte e as instituições financeiras internacionais deixassem de invadir, dominar e explorar o Haiti. Por exemplo, imediatamente após a tragédia, os Estados Unidos enviaram 20.000 marines ao Haiti para controlar o País. Por outro lado, a tragédia renovou o interesse da comunidade internacional pelo Haiti. Foram realizadas várias cúpulas e outras reuniões internacionais (em Montreal, em janeiro e março de 2010; em Santo Domingo e Nova York, em março de 2010) em torno da reconstrução do Haiti. Países como os Estados Unidos da América e nações europeias vêm brigando pela liderança da reconstrução do Haiti, o que provavelmente poderia mobilizar mais de 9 bilhões de dólares americanos para um período de 10 anos (segundo as promessas feitas pelos doadores na Cúpula de Nova York), assim como numerosos contratos substanciosos para suas empresas.
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2004 a 2007, a Lei Hope I não gerou mais que 3.000 empregos, principalmente nas zonas francas. De fato, essa lei favoreceu só os capitalistas estadunidenses (e, em pequena medida, empresários dominicanos), que se aproveitam da mão de obra barata (quatro vezes mais barata que em seu país) e da liberalização comercial do Haiti. Os operários das manufaturas, apoiados por amplos movimentos sociais, e principalmente pelo movimento sindical Batay Ouvriye, empreenderam, em 2009, uma luta para pedir o aumento do salário mínimo e contra essa forma de escravidão moderna instituída pelas manufaturas com a cumplicidade dos governantes e da burguesia nacionais. Com o apoio de alguns parlamentares, conseguiram obter aumento de 200 gourdes (moeda haitiana: 40 gourdes equivale a 1 dólar americano) e, para o setor de manufaturas, de 125 gourdes; o que representa uma vitória relativamente importante para os operários. A respeito dos Acordos de Parceria Econômica (APE), a Papda encabeça uma importante luta desde 2007 contra esse instrumento de liberalização comercial, através do qual a União Europeia quer invadir o mercado haitiano com suas grandes empresas de prestação de serviços sociais, profissionais e financeiros, e com seus produtos agrícolas altamente subsidiados. Finalmente, a imposição da dívida externa sobre o Haiti é outro mecanismo utilizado pelas instituições financeiras internacionais para controlar o País. Essa dívida foi estimada em 1,9 bilhão de dólares, antes da anulação parcial de 1,2 bilhão desse montante, em junho de 2009. Essa dívida foi reavaliada, em fevereiro de 2010, em cerca de 890 milhões de dólares, dos quais “41% correspondem ao Banco Interamericano de Desenvolvimento e 27% ao Banco Mundial”. Logo após o terremoto de 2010, vários movimentos sociais haitianos e internacionais pediram não apenas a anulação total e incondicional da dívida externa do Haiti (espécie de corda amarrada ao pescoço do País), mas também a reparação da dívida histórica, social e ecológica para com o país caribenho. Em um comunicado dirigido, em fevereiro de 2010, à União das Nações Sul-Americanas, solicitaram o respaldo do organismo regional para reclamar essa dívida histórica, social e ecológica com o Haiti:
Uma hist贸ria paradoxal
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Haiti por si Uma história de vulnerabilidade social e de resistência Compreender o Haiti depois de 12 de janeiro de 2010 obriga a retroceder muito antes do mortal terremoto que devastou esse país caribenho. É importante entender que a tragédia foi, em grande parte, resultado de uma vulnerabilidade social historicamente produzida. Daí a necessidade de nos interrogar sobre o processo de produção da vulnerabilidade social do Haiti. O terremoto foi um fenômeno natural que se converteu em desastre (ou catástrofe social) porque, justamente, encontrou, no País, condições vulneráveis em todos os níveis. Uma situação historicamente produzida na sociedade e que influiu em sua falta de “capacidade de antecipar, lidar, resistir e recuperar-se do impacto de um evento natural extremo”. Essa condição frente aos fenômenos naturais nos conecta diretamente com a história do País. A vulnerabilidade do Haiti é resultado de um longo processo, que começa desde a colonização espanhola e a francesa até hoje, passando pela ocupação estadunidense no País e a irresponsabilidade das autoridades haitianas, que não têm implementado políticas públicas destinadas a reduzir essa vulnerabilidade. Além disso, o terremoto que provocou a maior tragédia que a humanidade conheceu nas últimas décadas aumenta a fragilidade social frente a eventuais fenômenos naturais. Tem se intensificado o ciclo de vulnerabilidade no Haiti.
Impacto do terremoto
O monumento Torre da Liberdade, iniciado por Aristide em homenagem ao bicentenário da Independência do Haiti, ainda está inconcluso. FOTO: FRANCISCA STUARDO
O terremoto ocasionou um desastre que deixou um saldo impressionante: ao redor de 300.000 pessoas perderam a vida, cerca de 1 mil estão desaparecidas, 250.000 feridas, 3 milhões de pessoas afetadas, mais de 30.000 pessoas sofreram amputações de algum membro de seu corpo, 600.000 fugiram da capital Porto Príncipe rumo a outros departamentos do País. Os danos totais alcançam mais de 7,8 bilhões de dólares americanos, equivalentes a mais de 120% do Produto Interno Bruto (PIB) do País, em 2009. Segundo o informe preliminar preparado pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) Avaliação setorial de danos, perdas e requerimentos, “a porcentagem de haitianos que vivem em condições de pobreza extrema depois do
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A comunidade internacional, sob a liderança estadunidense, criou a Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti (CIRH), comandada pelo ex-presidente americano Bill Clinton, para coordenar a gestão dos trabalhos de reconstrução. Essa estrutura, teoricamente bilateral (haitiano-internacional), tem sido totalmente controlada pelos grandes países e organismos da comunidade internacional, principalmente pelos Estados Unidos da América. As análises realizadas pelos especialistas do Haiti Support Group corroboram as críticas que vêm fazendo as organizações da sociedade civil desde a criação da CIRH. Esta foi “mal concebida, disfuncional, pouco eficaz” e constitui “uma estrutura destinada a ajudar, não o Haiti ou os haitianos, mas os doadores, a quem é permitido canalizar os contratos de projetos das multinacionais e das ONG”, explica o Haiti Support Group. Acrescenta que “esses projetos emanaram das instituições que dirigem o Haiti desde sempre: o BID, o Banco Mundial, a ONU, a Usaid e os países doadores individuais, que tinham prometido dinheiro suficiente para assegurar um posto no Conselho de Administração da CIRH”. “As pessoas implicadas nunca são consultadas (pela CIRH) para se conhecerem suas necessidades”, explica esse grupo solidário com o Haiti. “Que a única autoridade encarregada da reconstrução do Haiti depois do terremoto tenha sido deliberadamente mal concebida e dotada de uma estrutura mal adaptada é um exemplo chocante do ‘capitalismo do desastre’, um fenômeno bem conhecido”, conclui o Haiti Support Group, baseado no Reino Unido. As organizações de direitos humanos haitianas, de desabrigados e outros grupos da sociedade civil organizada têm realizado ondas de protestos, principalmente com o motivo do segundo aniversário do terremoto de janeiro de 2010, para denunciar as difíceis condições de vida no País, o processo lento e excludente da reconstrução após a catástrofe, a dependência, a falta de transparência na gestão dos fundos e, sobretudo, as expulsões violentas dos desabrigados nos acampamentos.
Uma história paradoxal abalo é similar aos níveis registrados há quase uma década, quando alcançou mais de 70% da população.” O terremoto afetou e continua afetando de modo intenso e direto os haitianos, que buscam incansavelmente o sentido de uma situação tão sem sentido, que implicou para eles nas perdas de seus entes queridos, seu modo de vida, seus sonhos, seus bens e propriedades. A organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) fala das “feridas invisíveis”, ou seja, das consequências psicológicas do desastre nos sobreviventes, que vivem a ausência de seus parentes e pessoas próximas mortas ou desaparecidas, que temem reviver o pesadelo (principalmente após cada réplica ou outro evento natural), que sofrem de palpitações cardíacas, dores, problemas de visão e inclusive doenças psiquiátricas... A crise humanitária no Haiti, agravada depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010, está longe de ser resolvida. A intensificação da insegurança alimentar, que afeta 4,5 milhões de haitianos (quase a metade da população), o recrudescimento da epidemia de cólera, que cobrou a vida de mais de 7 mil vítimas, e a difícil situação de 550.000 pessoas desabrigadas, que vivem atualmente em 800 acampamentos, segundo os dados proporcionados por diferentes entidades haitianas e internacionais, apresentam um quadro geral desolador. A vice-secretária de assuntos humanitários da Organização das Nações Unidas, Valerie Amos, expressou, em setembro de 2011, durante uma visita de dois dias ao Haiti, que estava “inquieta” pela situação das pessoas desabrigadas nos campos. “A situação dos atingidos que vivem nos acampamentos não está melhorando, mas agravando-se”, ressaltou ela, assinalando que a ONU recebeu só a metade dos 382 milhões de dólares americanos que o organismo internacional tinha solicitado para executar seus programas humanitários no Haiti. Os desabrigados seguem enfrentando sérios problemas de acesso à alimentação, água potável, higiene e outros direitos fundamentais, enquanto que a violência contra as mulheres continua crescendo nos acampamentos. A comunidade internacional reconhece que a mesma complexidade da crise relacionada ao deslocamento nas zonas urbanas do Haiti, com a falta de moradia e a po-
Apesar dos perigos de desabamento, dois anos depois do terremoto, a vida segue em frente. FOTO: FRANCISCA STUARDO
breza, complica o processo de saída dos desabrigados dos acampamentos e a busca de soluções mais duradouras e dignas para eles e para as comunidades de retorno. O objetivo é manter o Haiti na agenda humanitária e de desenvolvimento em nível internacional, consideram os atores internacionais. Além disso, o País tem se tornado ainda mais vulnerável frente aos fenômenos hidro-meteorológicos, que o ameaçam a cada ano, aos eventuais abalos que poderiam produzir as falhas geológicas, e a muitas outras doenças e pandemias. Como se fosse pouco, um grupo de especialistas dirigido por Eric Calais, da universidade americana de Purdue (Indiana) advertiu, em outubro de 2010, que a Falha Enriquillo-Plantain Garden (na península do sul da Ilha Hispaniola), que guarda ainda uma carga de energia acumulada durante séculos, “continua sendo uma ameaça sísmica importante para o Haiti e para Porto Príncipe em particular”. O Haiti deve romper o ciclo da vulnerabilidade que aumenta logo após cada desastre natural, já que este destrói um pouco mais do que as capacidades do País para prevenir o próximo desastre e responder a ele durante e depois de sua ocorrência. Apesar dessa extrema vulnerabilidade social historicamente produzida, o povo haitiano tem mostrado uma grande capacidade de resiliência, que se evidenciou imediatamente depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010. Os haitianos foram os primeiros a salvarem, praticamente com suas mãos, seus compatriotas que estavam presos ou enterrados debaixo dos escombros. Organizaram-se para construírem os acampamentos e tendas de campanha, oferecerem os primeiros auxílios aos feridos e outras vítimas da tragédia e buscarem comida e água potável para os demais atingidos. Empregou-se uma grande solidariedade dos camponeses e habitantes das províncias do País, que acolheram os afetados de Porto Príncipe e os alimentaram durante várias semanas. Por exemplo, essas famílias camponesas que tinham recebido os refugiados “tiveram que usar de sua escassa produção para alimentar essas pessoas. E a pressão dessas pessoas recai sobre a agricultura”, segundo explicou Gérard Mathurin, dirigente da rede campesina haitiana
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Haiti por si KROS (Coordenação Regional das Organizações do Sudeste). Infelizmente, essa ampla solidariedade do povo haitiano não foi valorizada nem pelas autoridades haitianas, tampouco pela comunidade internacional, muito menos pelos grandes meios de comunicação, mais interessados em mostrarem casos isolados de violência entre alguns refugiados, que brigavam pela ajuda humanitária. Vale sublinhar que a dita ajuda humanitária foi distribuída sem coordenação entre as organizações não governamentais e com pouco respeito pela dignidade dos atingidos.
Causas históricas da vulnerabilidade
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O terremoto que o Haiti sofreu em 12 de janeiro de 2010 veio complicar ou evidenciar mais as duras condições de vida da maioria de um povo que conta com um pouco mais de 10 milhões de habitantes. Esse povo já por si era vítima de uma forte exclusão social, geradora de pobreza e de instabilidade política. Até 2009, 55% da população haitiana viviam em pobreza extrema e 80%, abaixo da linha da pobreza. O Haiti ocupava, em 2009, o posto 142 entre os 182 países do mundo, de acordo com o Informe Mundial do PNUD sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); em 2011, passou para o posto 158, de acordo com seu IDH, segundo o informe de 2012 desse organismo da ONU. A saúde e a educação figuram entre os serviços sociais mais afetados no Haiti. É evidente que o País não cumprirá as metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (OMD), fixadas em 2010 pelos países membros das Nações Unidas. Entre os oito objetivos que tais países acordaram conseguir até 2015, figuram a redução da mortalidade infantil, a melhoria da saúde materna e a universalização do ensino primário. Mesmo que o governo de Martelly e o Unicef tenham afirmado, no começo de 2012, ter escolarizado mais de 700.000 crianças no ensino primário, ainda há muito por fazer para que todas as crianças haitianas completem o ciclo escolar de ensino primário, em 2015. O objetivo é muito grande: a taxa de escolarização no Haiti é apenas de 60%; 375.000 crianças entre 6 e 11 anos não vão à escola (pelo menos antes de 2012); cerca de 50% dos jovens e
Uma história paradoxal
adultos com mais de 15 anos são analfabetos; ao redor de apenas 1% da população passa pela universidade, segundo os dados do Unicef. A grande maioria dos jovens que termina seus estudos secundários não pode ingressar na única universidade pública que existe no País pela falta de vagas; por exemplo, a Faculdade de Medicina admite a cada ano apenas 100 novos estudantes que tenham sido selecionados por concurso de admissão. As famílias não podem pagar para seus filhos os altos custos que exigem as universidades privadas, que, além disso, não têm capacidade para responder à grande demanda. Essas crescentes demandas e as poucas ofertas de serviços educativos disponíveis fazem com que a educação fique cada vez mais cara, principalmente para as famílias pobres. É a mesma realidade para a saúde: a metade das mulheres grávidas não tem acesso aos cuidados pré-natais
Os haitianos ainda têm muita
por causa da carência de infraestrutura e de pessoal mé-
dificuldade para obterem água
dico; situação que foi agravada pela tragédia de 12 de ja-
potável e energia elétrica.
neiro de 2010. Nesse sentido, a taxa de mortalidade, ava-
FOTO: ERMANNO ALLEGRI
liada, em 2006, em 670 para cada 100.000 nascimentos, ameaça aumentar, depois do terremoto. Além disso, a política de austeridade fiscal aplicada pelos diferentes governos, sob a imposição das instituições financeiras internacionais, contribuiu para reduzir progressivamente os gastos sociais, principalmente em matéria de educação, saúde e agricultura. Os gastos sociais diminuíram para a saúde em 7,37% em 2001-2002, 4,84% em 2008-2009; para a agricultura em 2,47% em 2001-2002 e em 1,6% em 2008-2009. O investimento do Estado haitiano na universidade pública nunca alcançou 1,35%.
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Haiti por si
População total (mil), 2009 População urbana % Nascimentos anuais (mil), 2009 Mortes anuais (<5 anos) (mil), 2009 Renda per capita (dólares), 2009
10033 50 274 24 772
Esperança de vida ao nascer (anos), 2009
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% da população abaixo da linha internacional de pobreza de US$1,25 ao dia, 1994-2008
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Desnutrição infantil (< 5 anos), 2002
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Taxa de alfabetização, total de adultos (% de pessoas de 15 anos ou mais), 2006
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Fontes: Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Unicef, Instituto Haitiano de Estatísticas e de Informática (IHSI)
O Haiti constitui também um dos 15 países mais desiguais socialmente no mundo. As riquezas estão sumamente concentradas em mãos de uns poucos, enquanto que a grande maioria vive na pobreza. “O Haiti é um país escandalosamente desigual”, escreveu o economista haitiano Marc Bazin, em 2006. A América Latina tem um coeficiente de Gini, que mede o nível de concentração de riquezas, de 0,56 em média, ou seja, 10 vezes mais alto que o de países desenvolvidos ou do Sudeste Asiático. A média haitiana é de 0,63. “No Haiti, 5% dos mais ricos detêm 50% da renda nacional, o que faz de nós o país mais desigual da América Latina.” A catástrofe que gerou o terremoto foi principalmente social, devido à exclusão e à produção histórica da vulnerabilidade social no País, ainda que grande parte das primeiras interpretações acerca de tal catástrofe social fosse de ordem sobrenatural. Acusou-se a tradição africana do vodu, considerado “coisa de negros, ignorância, atraso, pura superstição”, de ser a causa principal do desastre, como afirmou enfático na televisão o pastor pentecostal, advogado e ex-candidato à Presidência da República dos Estados Unidos, Pat Robertson, ao explicar o terremoto de 2010. Disse à sua larga audiência que os negros haitianos tinham conquistado a independência da França a partir de uma cerimônia vodu, invocando a ajuda do diabo desde o fundo da selva haitiana. “O diabo, que lhes deu a liberdade, enviou o terremoto para cobrar a conta”, afirmou o pastor estadunidense.
A ideia de que o Haiti é um país historicamente maldito é justamente, dos mitos sobre o País, o mais amplamente difundido e arraigado. O mito sobre o Haiti como terra do diabo vai e vem constantemente e aparece nos momentos mais inesperados para interpretar os acontecimentos históricos que ocorrem no Haiti e, sobretudo, a realidade social, política e econômica (por exemplo, a pobreza) e a história do País. Não bastaram as campanhas terroristas de “antissuperstição” (que eram como cruzadas) promovidas em 1845, 1869, 1896, 1915 e 1942 no Haiti pela Igreja Católica e os diferentes governos haitianos para erradicarem o vodu, junto com seus sacerdotes, sacerdotisas e seus praticantes. Além disso, tem havido um intenso processo de estigmatização e satanização do vodu, que contribui para falsear o que é verdadeiramente e o que representa para a identidade e a história dos haitianos. Reiteramos, contudo, que a tragédia provocada no Haiti pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010 tem causas históricas e não sobrenaturais. São causas relacionadas principalmente com a vulnerabilidade social do País historicamente produzida. Por exemplo, o País não se recuperou ainda de quatro furacões (Fay, Gustav, Hanna e Ike), que o açoitaram entre agosto e setembro de 2008, deixando um saldo de 793 mortos, 548 feridos e 112.000 casas destruídas e atingidas. Segundo um documento oficial intitulado Informe de avaliação das necessidades pós-desastre: Furacões Fay, Gustav Hanna e Ike, as perdas alcançaram um total de 897,39 milhões de dólares. “Diminuíram a dinâmica econômica, ocasionaram a perda das condições de vida de muitas famílias, particularmente do Vale de Artibonite, a principal região arrozeira do País”. Além disso, prossegue o documento, “o embate do vento e das chuvas causou fortes inundações e a destruição de rodovias, pontes, rede elétrica, assim como casas, hospitais, escolas e edifícios públicos”. O terremoto encontrou um terreno muito fértil de fragilidade social, que vem se intensificando ao longo de meses, anos, décadas e, inclusive, séculos. Por exemplo, o processo histórico de degradação do meio ambiente remonta ao século XV, desde o início do colonialismo selvagem espanhol, logo após o francês, e da ocupação
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Tabela 1 - Indicadores sociais e econômicos selecionados do Haiti*
Uma história paradoxal
Cine para não morrer com os braços cruzados Por Francisca Stuardo O primeiro sintoma de que algo estava mal lhe chegou, literalmente, à porta de sua casa. Arnold Antonin tinha 16 ou 17 anos. Poderia ser até 15, lembra, quando viu um homem morrer linchado nas mãos de um funcionário da ditadura de Papa Doc, por furtar um recipiente com plantas. O jovem Arnold presenciou como o cadáver do homem jazia no meio da rua enquanto seu executor empurrava os transeuntes para olhar o corpo. “A partir daí, entendi muito mais o que significava a opressão num país, a violência contra os pobres, contra a população”, recorda hoje, aos 67 anos, com uma história que inclui 20 anos de exílio, estudos em quase todas as áreas das Ciências Sociais, cerca de 40 documentários, o primeiro longa-metragem haitiano, prêmios por todo o mundo e a volta ao seu país natal. Com essa ideia da ditadura na mente, entrar para os movimentos de resistência contra ela foi uma obviedade. Sair de seu país, a pedido de sua mãe, para estudar economia na Itália, uma consequência. E produzir cinema e produtos audiovisuais, uma necessidade. Assim, surgiu seu primeiro documentário em 1973. Foi a consequência de uma denúncia contra a ditadura dos Duvalier. Ele, juntamente com um grupo de estudantes, levou o documento de acusação ao tribunal de Bertrand Russel para dar conhecimento à comunidade internacional das atrocidades cometidas pela ditadura. “Era o primeiro filme que faziam os haitianos no exterior, comprometidos com a luta do Haiti contra a ditadura - com a intervenção de um companheiro que falou abertamente contra o regime. Tudo se encontrava escondido por medo das represálias. Foi uma coisa muito importante, porque valorizou as declarações contra a ditadura abertamente”, recorda, desde seu escritório, no Centro Petit Bolívar, que se encarrega da promoção do debate político em Porto Príncipe.
Foram esses 25 minutos de gravação acerca do regime de Duvalier, nos anos 70, que bastaram a Antonin para ter a certeza de que numa cultura de “oralitura” (literatura e oralidade) como a haitiana, era necessário fazer cinema. “Havia a falta de produzir um material audiovisual para dar mais eficácia à nossa denúncia contra a ditadura. Eu era um cinéfilo, mas a razão que me impulsionou a entrar na área foi estimular uma tomada de consciência de que não se podia continuar lutando contra a ditadura utilizando somente textos escritos. Era indispensável fazer cinema”, comenta. E assim chegou ao seu primeiro longa-metragem, “O Caminho para a Liberdade”, como uma forma de entender, a partir de uma perspectiva local – ainda que estivesse longe – a história que determinou e permitiu uma ditadura com semelhantes aberrações contra seus cidadãos. Foi a forma que o estudante, nesse tempo, encontrou para gritar ao mundo sobre o complô contra a memória histórica de seu povo, como ele mesmo chama a falta de incentivos para a cultura popular. Nesse tempo, também integrou a União de Estudantes Haitianos no Estrangeiro e assumiu a função de secretário geral. Viajou pela Europa buscando apoio para derrotar a ditadura, escreveu editoriais e assinou colunas em jornais. Moveu suas forças para acabar com a opressão e voltar ao Haiti, seu país. Quando por fim retornou, em 1986, o território sobre o qual tentou fazer refletir a partir do exterior não era o mesmo: “A primeira impressão era de que tudo me parecia belo, até os maus cheiros. Encontrar as ruas que tinha percorrido, lugares que haviam parado no tempo, onde ninguém mudou muito. Mas havia outros lugares que tinham se degradado. Quando regressei, depois de 20 anos, o País tinha se degradado muito”.
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Arnold Antonin filmou “O Caminho para a Liberdade” sobre a ditadura Duvalier e suas aberrações contra os cidadãos. FOTO: FRANCISCA STUARDO
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Haiti por si
Uma história paradoxal estadunidense, em poucas palavras: desde que “a região da América Latina e do Caribe se vê incorporada ao processo de formação do moderno sistema mundial como provedora de alimentos, matérias primas e como reserva de recursos”. Tem se dado, desde muitos tempos atrás, uma sobre-exploração de nossas terras (ou melhor dizendo, de nossos ecossistemas) determinada pela avareza dos países colonialistas e capitalistas de extraírem e saquearem nossos recursos naturais levando-os para o Norte. Inclusive, pode-se falar de ‘ecocídio’. Os colonizadores espanhóis haviam saqueado as minas de ouro e eliminado os aborígines que viviam em Hispaniola. Já em 1792, escreve o jornalista Vario Sérant, ou seja, três séculos depois do “descobrimento” de Cristóvão Colombo, não restava muito dessas selvas encantadoras que havia na chegada dos europeus. “Hispaniola já não era o paraíso que Colombo ‘descobriu’”. Essa sobre-exploração da terra se intensificou com a colonização francesa. “Além disso, o corte sistemático das árvores cumpriu com perfeição essa empresa de destruição que fazia para plantar cana-deaçúcar no solo de Saint-Domingue. A madeira era a única fonte de energia que se utilizava em Saint-Domingue para cozinhar a cana, os escravos cortavam as árvores sob a ordem de seus amos”, explicou Sérant. “Durante a independência, as classes dominantes continuaram exportando madeira e cana-de-açúcar. Durante todo o século XIX se exportou madeira para pagar a dívida da independência, apesar de que o Haiti foi o primeiro país a estabelecer uma reserva florestal formal”, escreveu um grupo de movimentos sociais, entre eles a Papda. Durante a ocupação estadunidense, que durou de 1915 a 1934, só no Nordeste do País, 32.000 hectares de bosques foram desflorestados para estabelecer plantações de sisal, com o objetivo de produzir fibras para exportação. A pobreza, que várias décadas de políticas neoliberais e de corrupção têm fundado no país, obrigou os haitianos a cortarem árvores para produzirem carvão vegetal, que 70% da população utilizam para cozinhar. Essa prática de corte indiscriminado de árvores e a queima de bosques para convertê-los em terra cultivável, entre outros fatores, con-
tribuem para reduzir em 2% a cobertura vegetal do País e para destruir as reservas florestais, com uma taxa de desaparecimento de 15 a 20 milhões de árvores por ano.
Um país exposto a fenômenos naturais Além da realidade de vulnerabilidade social do Haiti, o País está muito exposto aos fenômenos naturais, tais como furacões e terremotos, por causa de sua posição geográfica, sua topografia, sua história geológica e a complexidade de sua estrutura geomorfológica. Por exemplo, encontra-se no arco insular das Antilhas, que nasce da união das placas tectônicas do Caribe e do Atlântico. No passado, as atividades em tais placas provocaram terremotos em muitas partes do País (Porto Príncipe em 1770, Cabo Haitiano em 1847 e 1887) e continua representando uma ameaça constante para a população.
O fato de o Palácio Nacional não ter sido reconstruído após mais de dois anos do terremoto é simbólico para a situação política do País. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
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Haiti por si contingência para cada tipo de risco e educar a população sobre cada um deles para que adote um comportamento razoável frente aos fenômenos no momento em que acontecem.” Mas as autoridades, a população, ninguém prestou atenção ao engenheiro, nem a outros especialistas, que pregaram e continuam pregando no deserto sobre os riscos relacionados com a eventualidade dos fenômenos naturais. Ainda falta muito por fazer por parte dos governos haitianos em nível de elaboração de políticas públicas destinadas a prevenir os desastres, ou seja, “evitar que fenômenos naturais (furacões, erupções vulcânicas, terremotos, erosão das costas, inundações…) se transformem outra vez em catástrofes sociais”, como bem aponta a Papda. Urge deter o processo de produção da vulnerabilidade social no Haiti. Isso passa não só pela implementação de políticas públicas por parte dos governos haitianos,
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Além disso, a cada ano, de 1º de junho a 30 de novembro, o País se arrisca a enfrentar uma série de ciclones, furacões, tempestades tropicais e suas consequências, tais como inundações, deslizamentos de terras… No entanto, não se tem feito o suficiente para prevenir ou mitigar os desastres naturais. A título de exemplo, na metade do mês de setembro de 2008, o sismólogo e geólogo haitiano Claude Preptit advertiu em vários meios de comunicação: “Uma vez que o País conheceu vários terremotos destruidores no passado, devemos esperar que aconteçam no futuro a qualquer momento, porque cada século traz um terremoto destruidor.” E o especialista aconselhou: “Cada tipo de risco (ligado a certo fenômeno natural) carrega seus próprios enfoques, suas próprias especificidades e exige competências necessárias e adequadas. Então, é preciso elaborar um plano de
Uma história paradoxal
Jean Yves Blot é o intelectual que virou houngan, sacerdote vodu. FOTO: FRANCISCA STUARDO
O “unga” crioulo Por Francisca Stuardo O fim da ditadura Duvalier trouxe de volta o etnólogo Jean Yves Blot, em 1988. Naquele tempo, já ostentava uma Licenciatura em História e Ciências Sociais, obtida no México, e em Teologia e Antropologia, cursadas no Canadá. Um perfil de elite. Muito teórico, muito ausente da cultura popular, Blot assume que uma visão crítica da história do seu país só chegou até ele quando já era uma autoridade como etnólogo. “Quando voltei, comecei a visitar os templos vodu, a falar com haitianos e a viver dentro dos templos. Aí me dei conta de que são dois mundos culturais muito diferentes”, sentencia, hoje, 24 anos depois, já convertido em houngan (sacerdote). Visitas, estadias, perguntas, investigações; recorreu às opções que tinha nas mãos para reformular sua cosmovisão. Para compreender o que necessitava e queria o povo haitiano, distante dos centros de poder. “Se as pessoas não participam da elaboração do que querem e do que podem ser, não funciona”, acrescenta, desde sua sala na faculdade de Etnologia da Universidade do Haiti. Nesse caminho, coincidentemente, conheceu quem se converteria em seu mentor espiritual. Foi num painel em um programa de televisão, cerca de seis anos depois de iniciada sua
busca, que o colocou frente a frente com o houngan Son Son. O teórico se encontrou com um iniciado no vodu desde os 13 anos, convertido em houngan aos 19, filho de outro houngan e de uma mambo (sacerdotisa), além de neto de outro sacerdote conhecido na área de Léogâne. Da discussão televisionada passaram a uma amizade. Da amizade à inclusão de Blot na Sosyete djab andey sale rezon 7 ti lanp (Sociedade dos diabos de luto das 7 lâmpadas). Em 2000, Son Son se converteu em seu papa kanzó, ou seja, em seu iniciador. Ainda no mesmo ano concluiu o processo: o crioulo aprendeu os cantos, as rezas e se arriscou a compreender o outro lado de sua cultura. Consagrou seu processo numa cerimônia de seis dias, que teve que fazer em grupo para poder pagar os músicos que tocavam os tambores durante as cerimônias. Também para os animais que teve que sacrificar. Ao mesmo tempo, os estudos de Blot avançaram na história haitiana, mas não foram concluídos. Até agora, o que mais lhe chama a atenção é que a versão expressa em seus textos escolares era de “água com açúcar”: “Quando comecei a ler livros sobre a luta contra a escravidão e a luta contra o colonialismo, entendi que foi com essas lutas que nasceu a cultura haitiana, que nasceu para a sobrevivência, para a vida”.
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Haiti por si mas também pelo perdão da dívida ilegítima reclamada do Haiti pelas instituições financeiras internacionais (IFI), bem como pela restituição da injusta dívida que a França cobrou do Haiti por sua independência e, sobretudo, pelo cumprimento – por parte das nações industrializadas e ricas do Norte – de sua obrigação ética de ajudar o Haiti e outros países que emitem muito poucos gases de efeito estufa a reverter ou controlar seu dano meio-ambiental. Tem sido mais que comprovado que “os efeitos da mudança climática (cuja principal causa é o aquecimento global) provocam o aumento em intensidade e frequência dos desastres, particularmente os eventos hidrometeorológicos na América Latina e Caribe.”
Uma história de exclusão social e luta pela emancipação
Gravura de batalha dos haitianos contra a dominação francesa exposta no Museu Nacional. FOTO: FRANCISCA STUARDO
lizadas no campo. Quando não os colocavam apenas como arrendatários ou meeiros. Os primeiros presidentes haitianos deram as terras deixadas pelos franceses a quatro grupos sociais: 1) os generais do Exército haitiano e os grandes funcionários da ordem civil; 2) os oficiais do Exército e civis de patente menos elevada; 3) os soldados que se distinguiram na luta pela independência; e 4) a adjudicação. Isso quer dizer que a massa dos antigos escravos não teve a possibilidade de aceder à propriedade das terras nas primeiras distribuições nem nas seguintes reformas agrárias. As reformas agrárias feitas pelos primeiros presidentes haitianos contribuíram para criar e manter essa situação de exclusão dos antigos escravos (ou novos livres), com exceção do primeiro chefe de Estado haitiano, Jean-Jacques Dessalines, que teve a bravura de decretar que todas as propriedades (sobretudo as terras) dos colonos franceses pertenciam ao Estado haitiano, a menos que seus atuais proprietários (os filhos dos franceses e os demais que se apropriaram das terras dos colonos franceses) pudessem comprovar seus títulos de propriedade. Os grandes proprietários de terras se uniram aos altos comandos do Exér-
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A história do Haiti tem sido também uma história de rebelião contra “a elite local” do País, qualificada de “cínica” pelo articulista do Le Mond Diplomatique, Christophe Wargny, que escreveu um livro sobre o Haiti. Para ele, a elite tem também mantido a grande massa dos novos negros livres em uma situação histórica de exclusão social. Juntamente com a história da invasão externa do Haiti e de produção de vulnerabilidade social e suas respectivas contra-histórias de resistência e resiliência, há que se falar também da história da exclusão social interna e da luta pela emancipação, desde sua independência, em 1804, até hoje. Vale a pena mencionar aqui um dos grupos sociais mais excluídos do País, que constitui a metade da população haitiana. Trata-se dos camponeses, que têm vivido sempre numa espécie de semisservidão, desde que a nação conquistou sua independência. Por exemplo, desde a partilha das terras, que os colonos brancos franceses deixaram depois de 1804, ano em que o Haiti proclamou sua independência, a grande massa dos antigos escravos chegou a ser livre, mas permaneceu pobre e não recebeu terras. A nova burguesia e os ricos haitianos se apropriaram das grandes propriedades (em virtude do seu sangue francês e da sua “herança”) e deixaram às “massas” de negros as propriedades de tamanho médio e as pequenas terras loca-
Uma história paradoxal cito da nova República haitiana para massacrar Dessalines em 1806, dois anos depois da independência do País. Depois da morte de Dessalines, o presidente Alexandre Pétion dividiu as terras do Oeste e do Sul e as deu aos oficiais e a alguns soldados. Por sua parte, o autodenominado “Rei do Norte do Haiti”, Henry Christophe, fez o mesmo que Pétion em 1819. Mas o pior não tardou a chegar, em 1821, com a ascensão de Jean-Pierre Boyer à Presidência, quando este criou a guarda agrária campestre, cuja missão era proceder a expropriação das terras dos campesinos e a submissão desses campesinos expropriados e seus filhos ao cultivo da terra dos grandes proprietários em troca de comida e outros favores. De acordo com o Código Rural, decretado por Boyer, “as associações de campesinos foram proibidas de gerir por si mesmas as moradias” (art.30); “os campesinos foram proibidos de abandonar a moradia a menos que tivessem uma permissão” (art.71); “os filhos dos cultivadores continuaram na condição de seus pais” (art.178); “submissão à polícia rural e repressão da vagabundagem e do ócio” (art. 136, 143, 174, 180). Depois da queda de Boyer do poder, os campesinos organizaram uma luta em 1843 e 1844 para pedir que lhes fossem outorgadas as terras abandonadas que pertenciam ao Estado, ao mesmo tempo em que reivindicavam a instrução primária para suas crianças. Essa luta continuou até a época da ocupação estadunidense (1915-1934) sob várias formas. Até hoje, os campesinos seguem reclamando uma reforma agrária verdadeira, bem como a proteção de seus direitos fundamentais e o acesso aos serviços sociais de base. De fato, atualmente a pobreza se concentra principalmente nas zonas rurais do Haiti. Mais de 82% dos campesinos haitianos vivem abaixo da linha de pobreza. Uma das consequências dessa exclusão dos campesinos é o êxodo rural (principalmente rumo à capital, Porto Príncipe), que tomou uma dimensão exponencial a partir da década de 80, logo após a matança dos porcos crioulos em 1978. Atualmente, mais de 2 milhões de um total de 10 milhões de habitantes vivem em Porto Príncipe, com todos os problemas que carrega: cinturões de pobreza, invasões ilegais das terras, construções anárquicas de moradias precárias, insalubridade, degradação do meio
A presença feminina é importante para a reconstrução do País, pois as mulheres não migraram e criam seus filhos em situação, muitas vezes, de extrema pobreza. FOTO: FRANCISCA STUARDO
ambiente, ampliação do setor informal, falta de acesso a serviços e infraestrutura básicos, aumento da taxa de delinquência... Além disso, se intensifica a fragilidade social frente aos fenômenos naturais, tal como mencionamos. Desde a independência do Haiti, em 1804, até hoje, os campesinos não têm ficado de braços cruzados. Têm resistido contra essa exclusão sócio-histórica, organizando revoltas, insurreições e, inclusive, lutas armadas, apesar de que grande parte de seus diferentes movimentos tenha fracassado. Uma de suas reivindicações fundamentais é o acesso à propriedade da terra, para que possam produzir para eles mesmos, ao invés de trabalhar para os latifundiários sob um regime de semisservidão. Outra de suas principais reivindicações é a necessidade de subvenção para poder desenvolver a agricultura. Em um contexto nacional dominado pela excessiva abertura comercial, pela aplicação cega de políticas neoliberais e pelo corte dos gastos sociais, as autoridades haitianas dedicam cada vez menos fundos à agricultura. A Papda pediu, em 2012, aos parlamentares haitianos para não ratificarem os acordos internacionais, principalmente os que foram firmados com a União Europeia, os Estados Unidos, o FMI e outras instituições financeiras internacionais, que preconizam a liberalização econômica. Segundo essa organização, “tais acordos representam um perigo iminente para a consolidação e o desenvolvimento da produção nacional e o acesso da população aos serviços sociais de base”. Por exemplo, os Acordos de Parceria Econômica “exigem uma liberalização de 82% de todos os setores produtivos do País”, o que obrigará “nossos produtores agrícolas a entrarem em competição direta com os agricultores da União Europeia, que dispõem das tecnologias mais avançadas e de subvenções crescentes por parte de seus governos”, explicou o documento. Os campesinos e produtores agrícolas do Haiti estão em uma encruzilhada histórica importante, em que são constante e crescentemente ameaçados pela liberalização comercial e as grandes empresas multinacionais. Por exemplo, mais de 1.200 campesinos haitianos e haitianas marcharam, em meados de maio de 2010, contra “o pre-
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Haiti por si sente envenenado” de 475 toneladas de sementes transgênicas que a empresa Monsanto ofereceu ao Haiti após o terremoto. A multinacional “se aproveita do terremoto para entrar no mercado de sementes do Haiti”, denunciaram os campesinos, que consideram que tais doações constituem um ataque contra a agricultura campesina e a biodiversidade.
As mulheres entre a exclusão e a luta
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As mulheres constituem também um grupo social historicamente vítima da exclusão social, econômica, jurídica e política. Por exemplo, segundo um estudo realizado em 2007 pelo Ministério Haitiano da Condição Feminina e dos Direitos da Mulher, o Haiti foi considerado um dos países da região com a taxa mais elevada de violência perpetrada contra as mulheres no lar. A discriminação contra a mulher se reflete inclusive na legislação interna do País, em sua participação muito limitada na vida pública, na falta de oportunidades de trabalho ou no salário muito menor que o dos homens com trabalho igual, e em sua pouca participação na tomada de decisões no lar, na vida social, política e econômica. Apesar de ser o pilar da família (43% das famílias mono-parentais são dirigidas apenas por mulheres) e do País, principalmente nos momentos mais difíceis, as mulheres são um dos grupos mais vulneráveis. A Anistia Internacional denunciou, em seu informe publicado em janeiro de 2011, que “a violência sexual, que era um fenômeno generalizado no Haiti antes de janeiro de 2010, foi exacerbada pelas condições imperativas após o terremoto. A assistência limitada que proporcionavam antes as autoridades foi socavada pela destruição de delegacias e juizados, o que torna ainda mais difícil denunciar a violência sexual”. Apesar de ter perdido várias de suas lideranças durante o terremoto, o movimento feminista no Haiti segue lutando contra o sistema patriarcal e a violência de gênero, e a favor da equidade entre homens e mulheres, e da melhoria da condição das mulheres. Por exemplo, imediatamente após a tragédia, várias organizações de mulheres no Haiti, em associação com outros coletivos na Costa Rica e República Dominicana, se articularam ao redor de um projeto
Uma história paradoxal conjunto destinado a brindar atenção médica às mulheres, ferramentas de comunicação para jornalistas e dados de monitoramento dos direitos humanos das mulheres. As organizações de mulheres haitianas, como a Solidariedade para as Mulheres Haitianas (Sofa), Enfofanm, Kay Fanm e demais, continuam levantando a voz e lutando dia após dia contra a violência de gênero, as agressões sexuais e todas as formas de discriminação das quais são vítimas as mulheres em todos os departamentos do País.
Dominação externa É possível romper com a história de dominação externa, produção de vulnerabilidade social e exclusão interna do Haiti? A contra-história do Haiti nos conta que a história desse país tem sido, por sua vez, de invasão e rebelião: de dominação externa e resistência, de vulnerabilidade social e resiliência, de exclusão social e luta pela emancipação. Que a invasão nunca teve a última palavra. Para evitar que a palavra da rebelião seja esquecida, é necessário romper com a violência “sistêmica” fabricada por um discurso orientado a justificar a dependência militar, financeira e político-econômica do Haiti. Tal discurso veicula uma série de lugares comuns e estereótipos sobre o Haiti, tais como: “É o país mais pobre do Hemisfério ocidental” (ao invés de dizer que é um país que foi empobrecido), “Do Haiti nada de bom pode sair”, “É um Estado falido”, “Não há esperança para esse país”, “É o país do vodu, da magia negra, da bruxaria, do diabo”, “É uma violenta sociedade que não tem nenhuma história de democracia e de direitos”, “Não há nada o que fazer com esses negros bárbaros que não têm capacidade de governar e de dirigir”, “A história do Haiti é a história da luta entre negros e brancos crioulos (os mulatos) para a conquista do poder”, “Esse país é uma ameaça para a segurança da região e do continente”… Enfim, lugares comuns e estereótipos que nos impedem de aceder à verdade desse país tão singular, com uma paradoxal história que é o Haiti: à verdade de seu passado e de seu futuro. Definitivamente, o Haiti é um país que segue sendo desconhecido no mundo. A tragédia de janeiro de 2010 tornou visível midiaticamente a trágica situação desse país,
Museu do Panteão Nacional foi preservado do terremoto. FOTO: FRANCISCA STUARDO
que vem lutando desde sua independência, em 1804, para sobreviver, para existir, para ser. No entanto, alguns meses depois, o Haiti foi desaparecendo da agenda dos meios de comunicação e da opinião pública internacional. Tudo voltou a ser como antes. Toda a artilharia de estereótipos, prejuízos e mitos sobre o Haiti, acima mencionados, voltou à tona. Qualquer discurso que queira dizer algo novo ou diferente sobre o Haiti (antidiscurso) terá que enfrentar esse conjunto de lugares comuns e estereótipos que têm contribuído para ocultar e obscurecer a verdadeira história do País ou, pelo menos, a história dos de baixo, a história dos Ti Noel. A história não é só a dos invasores, mas também a dos rebeldes: a história da rebelião. A história do Haiti é a genealogia da luta entre a ordem escravagista-colonialista-racista e a rebelião de alguns negros escravos que exigiram liberdade, não só para eles mesmos, mas também para todos os que estavam submetidos ao jugo da escravidão. O Haiti é, por sua vez, a primeira ilha onde se instalou Cristóvão Colombo, em 5 de dezembro de 1492, e a primeira república negra independente.
Uma história de invasão e rebelião Falta recorrer à contra-história do Haiti no sentido foucaultiano de “introduzir uma nova forma de continuidade histórica: o direito à rebelião”. Para nós, o elemento chave para compreender a história do Haiti é a rebelião, e não só a invasão, a conquista, a ocupação, a escravidão… A rebelião permite contar de outra maneira a história: desde o revés da história, desde os interstícios, desde as margens. Possibilita a contra-história, que resgata a verdadeira história, a dos de baixo, a que não aparece nas histórias oficiais ou que aparece falseada, maquiada, tergiversada nelas, à medida dos vencedores e invasores. A contra-história luta contra o ‘historicídio’ para salvar a memória e, portanto, o futuro. Um povo que não é consciente de seu passado não pode construir seu futuro. A verdade sobre a história do Haiti como uma história de rebelião tem sido falseada. Vejamos o que discorreu o historiador uruguaio Eduardo Galeano sobre o que representa o Haiti para a História:
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Haiti por si
Uma história paradoxal Consulte qualquer enciclopédia. Pergunte qual foi o primeiro país livre na América. Receberá sempre a mesma resposta: os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos declararam sua independência quando eram uma nação com seiscentos e cinquenta mil escravos, que continuaram sendo escravos durante um século, e em sua primeira Constituição estabeleceram que um negro equivalia às três quintas partes de uma pessoa. E a qualquer enciclopédia, pergunte qual foi o primeiro país que aboliu a escravidão, receberá sempre a mesma resposta: Inglaterra. Mas o primeiro país que aboliu a escravidão não foi a Inglaterra, mas o Haiti, que ainda segue expiando o pecado de sua dignidade.
Tal como afirma o intelectual estadunidense Noam Chomsky, contaram-nos sobre outro Haiti e tem havido “múltiplos enganos nessa história deliberadamente falseada”. Parece que as mentiras, os enganos e os mitos triunfaram sobre a verdade. Perguntemo-nos o que se sabe hoje em dia sobre o Haiti, além dos lugares comuns e estereótipos acima mencionados que falseiam sua história. “Pouco ou nada”, responde Eduardo Galeano. “O Haiti é um país invisível. Somente teve fama quando o terremoto de 2010 matou mais de duzentos mil haitianos. A tragédia fez com que o País ocupasse, fugazmente, o primeiro plano dos meios de comunicação”. Prossegue o escritor uruguaio: “O Haiti tem desaparecido. Sido apagado. De nossa memória, da memória. O Haiti é uma realidade para os haitianos, uma reputação para os demais, e ainda mais… Uma imagem, a pior, feridas sangrentas ou prurido de miséria. O Haiti existiu alguma vez?”, se pergunta o jornalista francês Christophe Wargny em seu famoso livro Haïti n’existe pas. [....] “No imaginário latino-americano, o Haiti existe, está presente, mas como um fantasma. De fato, vários cidadãos latino-americanos não sabem em que continente se situa o Haiti. Alguns meios da região falam do Haiti como um país moribundo, que agoniza...”, havíamos escrito num artigo recentemente publicado.
“O Haiti não existe”, “O Haiti é invisível”, “O Haiti é um fantasma”… Tantas expressões para nomear o ‘historicídio’ do qual o Haiti tem sido vítima. No entanto, a história do Haiti tem sido realmente uma história de rebelião, desde a conquista europeia até 1804, quando o País se converteu na primeira república negra independente. Rebelião que continua até hoje. É tempo de reescrever essa contra-história do Haiti frente às múltiplas expressões do seu ‘historicídio’.
Reconstruir o passado para construir outro Haiti Depois do terremoto de 2010, todos os discursos sobre o Haiti têm pleiteado a necessidade de reconstruir ou refundar o País. Não se tem insistido suficientemente sobre a necessidade de revisar as bases dessa nova construção ou fundação para poder construir outro Haiti. A grande pergunta é sobre onde queremos construir o novo país: se é sobre a rocha ou sobre a areia, para replicar uma imagem bíblica (Mateus 7: 24-27). Construir sobre a rocha equivale a romper com o ciclo de vulnerabilidade, com a história da invasão, com a produção dessa fragilidade e da exclusão sociais, com a dependência militar, econômica, financeira e política. Edificar as bases dessa nova construção de outro Haiti sobre a rocha equivale a resgatar a história de rebelião frente às diferentes formas históricas de invasão e exclusão. Resgatar a contra-história do Haiti permite reconstruir outro Haiti, que é totalmente desconhecido: aquele que resiste contra os discursos hegemônicos que tentam negar sua identidade, sua cultura, suas formas de vida, seus conhecimentos e, sobretudo, sua verdadeira história. O Haiti que se rebela contra sua “elite local”, aliada histórica dos invasores e inimiga da grande maioria que o tem condenado à exclusão social. A construção de outro Haiti passa pela reconstrução da outra história, a dos de baixo, a da rebelião, que tem sido falseada. O Haiti, tanto nos tempos dos aborígines como dos negros africanos, tem sido um símbolo de rebelião contra a invasão, uma “peste” de rebelião para outros países subjugados. Do mesmo modo, a grande maioria dos haitianos negros, historicamente submetidos pela “elite local” à exclusão social e à dominação militar, tem sido um exemplo de rebelião; sua
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Haiti por si incansável luta é uma clara mostra de que outro Haiti inclusivo, democrático, soberano, livre e próspero, é possível. Esse Haiti com o qual havia sonhado o povo haitiano na Constituição de 1987. Frente aos mecanismos de sujeição histórica, o povo haitiano tem adotado formas de subjetividade, ou seja, mecanismos para constituir-se como sujeito de sua própria história. Poucas vezes, como durante a independência do País, a derrocada da ditadura duvalierista, em 1986, e a eleição de Jean-Bertrand Aristide, em 1990, o povo haitiano pôde ser sujeito de sua própria história. Por desgraça, foram momentos efêmeros que arrebataram os dirigentes políticos do País, em cumplicidade com a elite nacional e os países imperialistas e neo-colonialistas. Geralmente, o povo haitiano tem utilizado formas criativas, ainda que silenciosas, de resistir pacientemente e de construir alternativas frente à exclusão social, à repressão política, à dominação externa, à pobreza e a toda classe de adversidades. O povo haitiano é um exemplo de resiliência, paciência e criatividade. Conjuntamente com os mecanismos de sujeição do povo haitiano, tem se utilizado também contra ele a violência sistêmica; tal forma de violência havia sido exercida nos tempos da colônia pelos donos sobre os escravos, para que estes aceitassem sua condição de escravos e se resignassem a ela. É-nos apresentada, atualmente, sob a roupagem da “nova ordem
cos) dessas construções conceituais que não fazem mais do que produzir e reproduzir essa violência sistêmica. À medida que os grandes meios de comunicação interna-
A esperança do Haiti está depositada na força e na capacidade de recuperação de seu povo. FOTO: FRANCISCA STUARDO
cionais e outros produtores de discursos hegemônicos propagam essa violência sistêmica sob uma nova roupagem, torna-
nato, criação de animais crioulos), pela descentralização, pela proteção ecológica e meio-ambiental; por um maior acesso
-se importante um contradiscurso que faça ouvir e valer a voz da rebelião no Haiti contra a invasão, a exclusão social e a
aos serviços de saúde, educação, água potável; pelos direitos humanos, principalmente os direitos dos grupos vulneráveis,
dependência. A voz silenciosa das e dos que lutam para sobreviver diariamente, que se organizam para trabalhar criativa e pacientemente por um desenvolvimento alternativo, por uma
tais como mulheres, crianças, pessoas com deficiência…; pelo direito a uma moradia digna e segura, pela participação dos
comunicação popular alternativa, pela soberania alimentar, pelo relançamento da produção local (da agricultura, artesa-
haitianos na reconstrução de seu país, pela luta contra o cólera, contra a ocupação… Por fim, todos os grupos e movimentos sociais haitianos que representam o futuro do País.
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mundial”, “a democracia”, a “globalização”, o “desenvolvimento” e, inclusive, “a cooperação internacional”, “a ajuda humanitária”… Mais do que nunca, é necessário exercer a vigilância epistemológica frente aos diferentes usos e abusos (ideológi-
Uma história paradoxal
O Haiti existe?
Por Frei Betto
Jornalista e escritor com mais de 50 obras publicadas e assessor de movimentos sociais. Texto publicado em 29 de janeiro de 2010 em www.adital.com.br
Interessados em exibirem na Europa uma coleção de animais exóticos, no início do século XIX, dois franceses, os irmãos Edouard e Jules Verreaux, viajaram à África do Sul. A fotografia ainda não havia sido inventada e a única maneira de saciar a curiosidade do público era, além do desenho e da pintura, a taxidermia, empalhar animais mortos, ou levá-los vivos aos zoológicos. No museu da família Verreaux, os visitantes apreciavam girafas, elefantes, macacos e rinocerontes. Para eles, não poderia faltar um negro. Os irmãos aplicaram a taxidermia ao cadáver de um e o expuseram, de pé, numa vitrine de Paris; tinha uma lança numa das mãos e um escudo na outra. Ao falir o museu, os Verreaux venderam a coleção. Francesc Darder, veterinário catalão, primeiro diretor do zoológico de Barcelona, arrematou parte do acervo, incluído o africano. Em 1916, abriu seu próprio museu em Banyoles, na Espanha. Em 1991, o médico haitiano Alphonse Arcelin visitou o Museu Darder. O negro reconheceu o negro. Pela primeira vez, aquele morto mereceu compaixão. Indignado, Arcelin pôs a boca no mundo, às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos de Barcelona. Conclamou os países africanos a sabotarem o evento. O próprio Comitê Olímpico interveio para que o cadáver fosse retirado do museu. Terminadas as Olimpíadas, a população de Banyoles voltou ao tema. Muitos insistiam que a cidade não deveria abrir mão da tradicional peça de seu patrimônio cultural. Arcelin mobilizou governos africanos, a Organização para a Unidade Africana, e até Kofi Annam, secretário-geral da ONU. Vendose em palpos de aranha, o governo Aznar decidiu devolver o morto à sua terra de origem. O negro foi descatalogado como peça de museu e, enfim, reconhecido em sua condição humana. Mereceu enterro condigno em Botswana. Em meus tempos de revista “Realidade”, nos anos 60, escandalizou o Brasil a reportagem de capa que trazia, como título, “O Piauí existe.” Foi uma forma de chamar a atenção dos brasileiros para o mais pobre Estado do Brasil, ignorado pelo poder e pela opinião públicos. O terremoto que arruinou o Haiti nos induz à pergunta: o Haiti existe? Hoje, sim. Mas, e antes de ser arruinado pelo
terremoto? Quem se importava com a miséria daquele país? Quem se perguntava por que o Brasil enviou para lá tropas, a pedido da ONU? E agora, será que a catástrofe – a mais terrível que presencio ao longo da vida – é mera culpa dos desarranjos da natureza? Ou de Deus, que se mantém silencioso frente ao drama de milhares de mortos, feridos e desamparados? Colonizado por espanhóis e franceses, o Haiti conquistou sua independência em 1804, o que lhe custou um duro castigo: os escravagistas europeus e estadunidenses o mantiveram sob bloqueio comercial durante 60 anos. Na segunda metade do século XIX e início do XX, o Haiti teve 20 governantes, dos quais 16 foram depostos ou assassinados. De 1915 a 1934 , os EUA ocuparam o Haiti. Em 1957, o médico François Duvalier, conhecido como Papa Doc, elegeu-se presidente, instalou uma cruel ditadura apoiada pelos tonton macoutes (bichos-papões) e pelos EUA. A partir de 1964, tornouse presidente vitalício... Ao morrer, em 1971, foi sucedido por seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que governou até 1986, quando se refugiou na França. O Haiti foi invadido pela França em 1869; pela Espanha em 1871; pela Inglaterra em 1877; pelos EUA em 1914 e em 1915, permanecendo até 1934; pelos EUA, de novo, em 1969. As primeiras eleições democráticas ocorreram em 1990; elegeu-se o padre Jean-Bertrand Aristide, cujo governo foi decepcionante. Deposto em 1991 pelos militares, refugiouse nos EUA. Retornou ao poder em 1994 e, em 2004, acusado de corrupção e conivência com Washington, exilou-se na África do Sul. Presidido por René Préval, o Haiti foi mantido sob intervenção da ONU e agora ocupado, de fato, por tropas usamericanas. Para o Ocidente “civilizado e cristão”, o Haiti sempre foi um negro inerte na vitrine, empalhado em sua própria miséria. Por isso, a mídia do branco exibe, pela primeira vez, os corpos destroçados pelo terremoto. Ninguém viu, por TV ou fotos, algo semelhante na Nova Orleans destruída pelo furacão ou no Iraque atingido pelas bombas. Nem mesmo após a passagem do tsunami na Indonésia.
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Haiti por si
paz”, tropas de intervenção, ajudas humanitárias; jamais projetos de desenvolvimento sustentável. Findas as ações emergenciais, quem haverá de reconhecer o Haiti como nação soberana, independente, com direito à sua autodeterminação? Quem abraçará o exemplo da dra. Zilda Arns, de ensinar o povo a ser sujeito multiplicador e emancipador de sua própria história?
FOTO: FRANCISCA STUARDO
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Agora, o Haiti pesa em nossa consciência, fere nossa sensibilidade, arranca-nos lágrimas de compaixão, desafia a nossa impotência. Porque sabemos que se arruinou, não apenas por causa do terremoto, mas sobretudo pelo descaso de nossa dessolidariedade. Outros países sofrem abalos sísmicos e nem por isso destroços e vítimas são tantos. Ao Haiti enviamos “missões de
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Capítulo 2 Por Phares Jerôme
Depois da catástrofe, como estamos?
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De acordo com números oficiais, apresentados pelo Post Disaster Needs Assessment (PDNA) - Avaliação de Necessidades Pós-Desastres -, documento elaborado pela International Recovery Plataform (Plataforma Internacional de Reconstrução) com avaliações sobre a necessidade de ajuda após o terremoto, mais de 300 mil mortos, quantidade equivalente de feridos e 1,3 milhão de desabrigados foram registrados. Cerca de 1,5 milhão de pessoas, representando 15% da população nacional, foi afetada diretamente. Os danos materiais foram enormes. Cerca de 105 mil casas foram completamente destruídas e mais de 208 mil outras danificadas. Mais de 1,3 mil instituições de ensino e de 50 hospitais e centros de saúde ruíram ou foram danificados. O País, considerado o mais pobre do Ocidente, enfrenta uma situação apocalíptica no rescaldo do terremoto. Foi necessária uma ajuda maciça e rápida da comunidade internacional, incluindo os países da América Latina, para evitar uma catástrofe humanitária em Porto Príncipe. Água potável, alimentos, kits de higiene e saúde, tudo foi necessário para salvar vidas e resgatar vítimas.
FOTO: FRANCISCA STUARDO
Em 12 janeiro de 2010, às 16h53min, a capital do Haiti, Porto Príncipe, e áreas vizinhas foram devastadas por um terremoto de magnitude 7,3 na escala Richter. O hipocentro do terremoto aconteceu a 10 quilômetros de profundidade, nas proximidades da superfície da terra, e seu epicentro foi perto da cidade de Léogâne, cerca de 17 quilômetros ao sudoeste de Porto Príncipe. Aproximadamente 80% da cidade foi destruída.
Depois da catástrofe, como estamos? O valor total dos danos e prejuízos causados pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010 é estimado em 7,804 bilhões de dólares, equivalente a pouco mais que o PIB do País em 2009. “Na verdade, em 35 anos de aplicação da Avaliação de Perdas e Danos para Desastres (Metodologia DaLa), é a primeira vez que o custo de uma catástrofe é relativamente tão elevado para o tamanho da economia de um país”, diz o documento PDNA. O custo dos danos às propriedades, incluindo unidades habitacionais, escolas, hospitais, edifícios, estradas, pontes, portos e aeroportos, foi de 4,302 bilhões de dólares, representando 55% dos efeitos totais do desastre. Mais de dois anos após o terremoto, o Haiti ainda não conseguiu cicatrizar as feridas do desastre. Mais de 500 mil sem-teto viveram em acampamentos de emergência, muitos em condições subumanas. Cerca de 500 mil metros cúbicos de material, parte dos 10 milhões gerados pelo desastre, ficaram amontoados nas ruas. O Palácio Nacional, ministérios e outros prédios públicos destruídos pelo terremoto continuavam em ruínas muitos meses depois do terremoto. Os traços da reconstrução física do País são pouco visíveis. Em resumo, o processo de reconstrução, anunciado com grande alarde após o terremoto, não alcançou a mesma velocidade de “cruzeiro”.
As promessas de Nova York O plano de reconstrução para o Haiti do documento Post Disaster Needs Assessment (PDNA) foi validado em Nova York, em 31 março de 2010, durante uma conferência internacional sobre o Haiti. O documento, de acordo com o ex-primeiro-ministro Jean-Max Bellerive, foi encomendado por uma equipe composta por representantes do governo haitiano e membros da comunidade internacional. Juntamente com a avaliação das necessidades, o PDNA contempla um plano de ação para a identificação de necessidades de recuperação e reconstrução do País em curtíssimo prazo (seis meses), de curto prazo (18 meses), médio prazo (três anos) e longo prazo (10 anos). O valor total dos recursos necessários, segundo o PDNA, equivale a 12,2 bilhões de dólares e são os seguintes: 52% para os setores sociais, 15% para infraestrutura,
Depois do terremoto, que destruiu a catedral, centenas de haitianos assistem à missa do domingo sob lonas montadas ao lado dos escombros da basílica. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
incluindo habitação, e 11% para a gestão ambiental e de riscos e desastres. O montante de 9,9 bilhões de dólares foi prometido ao Haiti pela comunidade internacional na conferência de Nova York, dos quais 5,3 bilhões foram pagos ao País ao longo dos últimos dois anos. O resto deve ser desembolsado em médio e longo prazo. “Quatro bilhões foram alocados para projetos específicos”, disse Nigel Fisher, vice-representante especial do secretário-geral da ONU para o Haiti, no segundo aniversário do terremoto, em janeiro de 2012.
O que funciona após a tragédia? O Haiti lembra, a cada 12 de janeiro, o aniversário do terremoto de 2010, considerado o maior desastre natural
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Haiti por si medo e fugiram, voltando para as casas ainda destruídas ou com risco de desabarem”, destacou Collete. Ela também questiona os números oficiais. No último informe, eram 300 mil pessoas ainda desabrigadas, depois falaram que era um milhão e meio de pessoas com problemas de moradia. “Mas, de alguma maneira, a problemática da moradia é ainda muito grande e ela já existia antes do terremoto. Havia pessoas que dormiam na rua, mas agora o problema é muito maior e ainda não foi resolvido porque, até agora, não existe um plano real de reconstrução nacional, sobretudo de moradia, que contemple o problema da propriedade, do acesso à terra, e financiamento para a construção de suas casas”. O GARR já chegou a levar suas propostas de reconstrução ao governo, inclusive sugerindo a construção de casas que possam ser alugadas por valores mais baixos que os do mercado, além da concessão de subvenções para que os próprios moradores possam construir suas casas. “As pessoas tampouco sabem que é um direito que precisam reclamar. Então, o esforço que estamos fazendo agora, utilizando as rádios e todos os meios de comunicação, é para dizermos que ter um lugar onde morar de maneira digna é um direito humano. As autoridades do Estado têm a responsabilidade de garantir esse direito, tomando medidas para permitir que diferentes categorias sociais tenham acesso à moradia”, enfatizou Collete. A entidade sugere ainda a criação de cooperativas de moradias para que se possa debater o problema da terra, principalmente entre os que não possuem propriedades, e também junto aos que possuem imóveis, para que estes não tomem a moradia como mercadoria. “Queremos promover essa ideia porque é muito difícil ter terra para todo mundo. Se a reforma é feita de maneira cooperativa, não somente podemos resolver o problema da casa, mas também reduzir a especulação imobiliária e, ao mesmo tempo, reduzir os custos”, explica Collete. Camille Chalmers, da Plataforma para o Desenvolvimento Alternativo do Haiti (Papda), afirma que, em relação ao dinheiro internacional para a reconstrução, houve um processo de marginalização total dos atores haitianos, inclusive do próprio Estado. Por exemplo, para ajuda humanitária
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dos tempos modernos. Além dos relatórios detalhados da maioria dos atores no local, a ONU fez uma avaliação geral da ajuda humanitária conduzida nos primeiros dois anos. De acordo com o Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, por sua sigla em inglês), um decréscimo de 65% da população nos campos de desabrigados foi observado. Isso significa que o número de desabrigados passou de 1,5 milhão após o terremoto para 519.164 em janeiro de 2012. O número desses acampamentos de desabrigados passou de 1.555 para 758. Relatório do OCHA, divulgado no início de janeiro de 2012, informa também que quase 1 milhão de pessoas desalojadas pelo terremoto já foram realocadas. Mesmo não especificando em que condições essas pessoas foram realocadas, a agência da ONU disse que 100.456 abrigos temporários foram construídos para os desabrigados. Enquanto isso, mais de 6 mil subsídios de aluguel foram concedidos aos residentes dos campos. O desastre destruiu cerca de 70 mil edifícios, que geraram 10 milhões de metros cúbicos de detritos. “Cinco milhões de metros cúbicos de entulho, a metade do total, já foram retirados”, dizem as Nações Unidas. Os canteiros de remoção dos entulhos permitiram a criação de 400 mil empregos temporários, totalizando 45 mil dias de trabalho. Para o Grupo de Apoio aos Refugiados e Repatriados (GARR), a realidade é bem mais cruel do que apontam os números da ONU. É verdade que muitas pessoas já teriam voltado para suas casas, mas em condições bem longe do ideal. Collete Lespinasse, coordenadora do GARR, revelou em entrevista à Adital que há muitas pessoas que deixaram terrenos privados ou públicos porque algumas organizações internacionais construíram o que chamam ti kay, que são umas casinhas muito, muito pequenas, de 16 metros quadrados, muito inconvenientes para as famílias. “As famílias são grandes no Haiti, de cinco a seis pessoas. Por isso é que algumas pessoas puderam sair, outras ‘tiveram’ que sair porque estão expostas à violência, e houve uma tentativa, nos últimos meses, de criminalizar os acampamentos, tendo em vista que algumas gangues se esconderam neles após cometerem delitos. As pessoas começaram a dizer que lá vivem criminosos, outras tiveram
Depois da catástrofe, como estamos?
Intelectualidade haitiana contribui para a reconstrução Por Benedito Teixeira A intelectualidade haitiana vem se esforçando para contribuir com a reconstrução do País, que, mais de três anos depois, ainda se encontra devastado pelo terremoto de 2010. Um exemplo desse esforço é a revista Observatório da Reconstrução, que já está na quarta edição. Lançada em maio de 2012, com uma tiragem de apenas 1 mil exemplares distribuídos gratuitamente, mas pensando num futuro maior. Laënnec Hurbon, sociólogo, diretor de investigação científica do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris, professor na Universidade Kisqueya, afirma em artigo na revista que o objetivo do Observatório é partir do conhecimento da realidade e do que já está se fazendo para que a população entenda e possa participar. “Queremos conhecer a economia, a situação cultural, as arquiteturas na construção de casas, a situação financeira do
O haitiano Laënnec Hurbon é sociólogo, diretor de investigação científica do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris e professor na Universidade Kisqueya. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Estado. Temos uma série de dúvidas e de críticas sobre o que está acontecendo e, ao mesmo tempo, temos muitas sugestões para corrigir os erros. A revista abre espaço para aquilo que a imaginação e a competência podem oferecer”, explica. Hurbon conta que, desde os primeiros dias do terremoto, houve muitas sugestões sobre a maneira de executar a reconstrução do País. Segundo ele, particularmente importante foi a ideia de fazer um centro autônomo para a reconstrução, que fugisse dos interesses da política partidária, mas com a presença do Estado, dos emigrantes e de especialistas internacionais. O Estado, porém, não entendeu essa possibilidade e focou seus esforços nas eleições. “Ninguém acatou nossa proposta. Por isso vários intelectuais decidiram, agora, participar da iniciativa do Observatório da Reconstrução”. Esse foi o embrião da revista Observatório da Reconstrução, que acabou se transformando num espaço para discutir,
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Haiti por si Ele defende que a reconstrução do Estado deva partir de um novo sistema de justiça. Houve um monte de crimes durante as ditaduras e nenhuma ação para punir os criminosos. Isso deixa o País em estado de insegurança permanente, que não permite o desenvolvimento econômico porque não há investimentos. A revista Observatório da Reconstrução é espaço para discutir o futuro dos haitianos e inhar soluções. encaminhar
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concretamente, o futuro dos haitianos e, sobretudo, encaminhar soluções. “Também teremos uma página web para permitir que qualquer pessoa possa dar suas ideias. Pouco a pouco, vamos organizar mais essa iniciativa, com todas as tecnologias para ampliá-la. A revista já está sendo distribuída para grupos, instituições, personalidades que trabalham nessa direção”, observa Hurbon. Para ele, o terremoto de 2010 foi uma oportunidade para que o Haiti pudesse realizar uma nova fundação do País, já que os impactos da tragédia foram agravados pela situação política debilitada que o Haiti vive há mais de 50 anos. “Depois das longas ditaduras, o Haiti encontra dificuldades para viver uma experiência democrática. Há o problema da função do Estado, um tipo de Estado que não tem nenhuma orientação a dar para poder suportar qualquer desastre, seja furacão ou terremoto. No terremoto, não houve nenhuma lei para regulamentar o uso do território. Eu estava aqui e vi que o governo praticamente não existiu. Houve um abandono da política do País, entregando a situação nas mãos das ONG e da comunidade internacional. Não houve Estado, não houve governo”, lamenta. Ele conta ainda que, quando o governo tentou fazer alguma coisa, no lugar de procurar reagrupar as forças políticas do País, agiu com uma ação estreita e partidária, só para organizar as eleições. Havia 300 mil pessoas perdidas, mortas, sem nome, sobre as quais não se sabia nada. “Isso mostra a banalização do desastre por parte do governo, só preocupado em organizar as eleições para reproduzir o mesmo poder que tinha antes”, enfatiza Hurbon. Na sua avaliação, o interessante teria sido criar um governo de unidade nacional para dar passos políticos frente à catástrofe. Em dois sentidos: na área natural e na área da política. A comunidade internacional também teria aproveitado a ocasião para instrumentalizar a debilidade, o vazio, a ausência do Estado. Essa mesma comunidade internacional, nas palavras de Hurbon, tratou de fazer o que ele chama de “mimetismo democrático”, porque as decisões sobre a utilização de milhões de dólares escaparam das mãos dos haitianos. Até hoje, não se sabe o que fizeram com o dinheiro. “Todos os palácios públicos desabaram, também caíram 11 das 13 faculdades e muitas escolas, mas nada foi reconstruído. Apesar disso, os estudantes procuram trabalhar graças a ajudas paliativas”, destaca o estudioso.
Depois da catástrofe, como estamos? gastaram 2,43 bilhões de dólares e, desse dinheiro, o Estado haitiano ficou com 25 milhões de dólares. Chalmers enfatiza: 25 milhões de 2,43 bilhões de dólares! Só a Usaid gastou, para as atividades de reconstrução, 292 milhões de dólares e, desses, firmou contrato com uma empresa haitiana somente de 49 mil dólares. Todo o resto foi destinado para pagar empresas estadunidenses. E o pior é que os resultados do dinheiro supostamente investido não aparecem nas ruas. Inclusive, segundo Chalmers, há pessoas vivendo em condições piores do que antes do terremoto. Pelas contas da Papda, 643 mil pessoas ainda viviam nas ruas dois anos após a tragédia, um terço do que havia depois do terremoto. Ele conta que, em agosto de 2011, houve um vento forte, que não chegou a ser um furacão, acarretando 29 mortes, sendo que 23 foram arrastadas porque estavam em casas fragilizadas pelo terremoto. Pelo menos 50% dos escombros permanecem nas ruas e, das infraestruturas importantes que foram destruídas, não se reconstruiu nada, nem os hospitais, nem as escolas, nem as universidades. “Nós, na universidade, perdemos 49 edifícios, que ficaram totalmente destruídos. Eu, na minha faculdade, ainda ensino sob uma lona, dois anos depois, em condições terríveis. Quando chove, tem que parar a aula, quando faz calor chega a uma temperatura de 55°, ninguém pode suportar isso. Dois anos depois, nenhuma faculdade do Estado funciona em condições normais. Quer dizer que isso não é nada demais ao saber que todo o dinheiro foi chupado por empresas estrangeiras, basicamente ONG”, lamenta Camille Chalmers. Ele conta ainda que um grupo estadunidense fez uma pesquisa junto a 196 ONG que receberam recursos para as vítimas do terremoto no Haiti. Dos 196 interrogados, somente 38 responderam, e desses, somente oito teriam alguma política de transparência. “Obscuridade total. E sobre o dinheiro, os 38 que receberam 1,5 bilhão de dólares para o Haiti, em 31 de dezembro de 2010, haviam gasto menos da metade do que foi recebido para urgência. Esse dinheiro gerou 1,8 milhão de dólares em juros para os bancos. Um escândalo, realmente, além de toda a questão da instrumentalização da ajuda humanitária dos Estados Unidos.
Porque os Estados Unidos chegaram dois dias depois do terremoto com 23 mil marines, com a 82ª. Divisão Aerotransportada (tropa de elite estadunidense, a mesma que invadiu o Panamá, Granada e Santo Domingo, em 1965), com 165 barcos aportados ao redor do Haiti, sendo apenas um barco hospital e 164 barcos de guerra com armas nucleares. Enquanto isso, gente morrendo nas ruas”, denuncia. Para ilustrar o caos, Chalmers conta que um amigo de seu filho, de 19 anos, com a perna fraturada, ficou na rua por seis dias sem nenhuma assistência e, por isso, tiveram que cortar toda a perna. Quando os Estados Unidos chegaram ao País, segundo ele, a primeira tarefa que fizeram foi controlar o aeroporto para evacuar os estadunidenses. Fecharam o aeroporto para salvar seus cidadãos. Bloquearam o aeroporto de Porto Príncipe, inclusive quando estavam chegando aviões-hospitais da França, que não puderam aterrissar durante 48 horas, nem os aviões de Cuba. “Não se pode calcular quantas vidas foram perdidas por esses atos dos Estados Unidos. Isso é muito grave e é preciso denunciar claramente”.
Saúde e educação em alerta Com a presença de 1,5 milhão de pessoas nas ruas, outro desastre era temido no Haiti depois do terremoto, dessa vez em relação à saúde. Foi preciso colocar a população dos acampamentos em alerta sobre as necessidades de tratamento da água, saneamento e higiene. “Um total de 1,7 milhão de pessoas tiveram resposta às suas necessidades de água potável e saneamento”, informa o relatório do OCHA. Mais de 11 mil latrinas teriam sido construídas, enquanto cinco litros de água foram distribuídos por pessoa, diariamente, até o final de 2010, aos 1,3 milhão de desabrigados. O setor de saúde foi colocado em xeque pelo terremoto. O cálculo mais preciso aponta para 300.572 pessoas feridas, sendo que 30 dos 49 hospitais foram danificados ou destruídos. Cerca de 30 mil amputações (conforme a Papda) já foram realizadas após o desastre. A epidemia de cólera interferiu nesse jogo com a saúde. Cerca de 7 mil mortes foram registradas de um total de 500 mil casos de infecção registrados da doença até dezembro de 2011. Em resposta à epidemia, as Nações Unidas estimam que 3 milhões de
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Situação de urgência humanitária permanece Apesar de as autoridades haitianas e seus parceiros internacionais se darem por satisfeitos com o trabalho feito nos
Ruas de Porto Príncipe necessitam de organização, saneamento e, principalmente, limpeza. FOTO: FRANCISCA STUARDO
últimos dois anos, alguns atores sociais estimam que o País ainda encontra-se em situação de urgência humanitária. “O Haiti ainda enfrenta significativa necessidade humanitária”, relatou o OCHA numa petição para solicitar novos fundos em caráter de urgência para o País, em 2012. Perto de 520 mil pessoas, calcula o OCHA, continuam vivendo em acampamentos de desabrigados. Além disso, há uma epidemia de cólera que surgiu em outubro de 2010 e que já custou a vida de 7 mil pessoas. A insegurança alimentar, que atinge atualmente 45% da população, e a vulnerabilidade elevada do País às catástrofes naturais durante as estações de chuvas e furacões, são também levadas em consideração. Face a este quadro, Genebra aceitou conceder 8 milhões de dólares em favor do Haiti para responder às urgências durante o ano de 2012. “Esse dinheiro vai permitir que as organizações humanitárias continuem a oferecer serviços aos atingidos que ainda vivem nos acampamen-
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pessoas receberam produtos de tratamento e sistemas de filtragem de água. Mais de 300 centros de tratamento de cólera, com cerca de 12 mil leitos, teriam sido criados. O sistema educacional do Haiti não foi poupado pelo desastre. Um total de 3.978 escolas foram destruídas ou danificadas pelo terremoto. Até janeiro de 2012, 636 escolas, de acordo com o OCHA, foram reconstruídas ou reparadas. Em paralelo, a capacidade do programa nacional escolar teria sido reforçada. Antes do terremoto, a rede escolar abrangia 700 mil crianças. Atualmente, esse número atingiria 1,5 milhão de alunos. Vale ressaltar que, dessas crianças, uma em cada três sofre de desnutrição. Além disso, há outras ações, como proteção da criança na agricultura e luta contra a violência.
Depois da catástrofe, como estamos?
tos”, informa Emmanuel Schneider, porta-voz do OCHA
Na esperança por empregos,
no Haiti. Mesmo que existam ainda 500 mil atingidos a
distribuição de alimentos e abrigos
serem realocados, o OCHA afirma que as organizações
atualmente ainda há mais pessoas
humanitárias, cuja missão é salvar vidas, podem se van-
na capital Porto Príncipe.
gloriar de um balanço positivo de sua missão no Haiti,
FOTO: FRANCISCA STUARDO
nesses últimos dois anos. Muitos movimentos sociais não estão tão satisfeitos como o OCHA. Paralelamente à ação de ONG internacionais e doadores, as organizações sociais haitianas têm a sua própria avaliação das ações desenvolvidas nos acampamentos nesses dois anos. “Por falta de vontade política, nós perdemos a chance de fazer algo novo”, lamenta o padre Jean Hansen, diretor da Comissão Nacional Episcopal Justiça e Paz (JILAP). “Como muitas pessoas optaram por regressar à sua província após o terremoto, houve uma oportunidade para iniciar o processo de descentralização”.
Seiscentas mil pessoas, de acordo com dados do governo haitiano, deixaram a capital depois do terremoto. Porto Príncipe, onde todos os serviços públicos estão concentrados, tinha uma população de 2 milhões de pessoas durante o desastre. “Mesmo assim, há certamente mais pessoas na capital hoje. Na esperança de que haverá empregos, distribuição de abrigo, comida etc, muitas pessoas vêm para se estabelecer na capital”, lamenta o padre Hansen. Com isso, a falta de serviços públicos está se tornando cada vez mais aguda. Para o diretor da JILAP, um dos aspectos mais importantes da reconstrução deve ser a “reconstrução da mentalidade”. “No entanto, esse é o aspecto que é mais negligenciado”, denuncia. Para Pierre Esperance, diretor da Rede Nacional de Direitos Humanos (RNDDH), o resultado da ajuda internacional é pouco visível no País. “Nenhum grande canteiro de reconstrução foi lançado”, disse ele. Segundo Esperance, as realizações dos últimos dois anos não são proporcionais à
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Haiti por si
Bispos do mundo em favor do Haiti Há quase três anos do terremoto que levantou a poeira do sofrimento haitiano, o Sínodo dos Bispos, que aconteceu em outubro de 2012, no Vaticano, fez um apelo mundial em favor do Haiti. Os católicos chamam a atenção para a epidemia de cólera que vive num estado persistente de emergência humanitária. Na época do terremoto, o papa Bento XVI também acionou a Cáritas, rede de doações da Igreja, para direcionar ajuda ao Haiti. Hoje, 12 Cáritas atuam no Haiti, segundo Francisco Hernandez Rojas, coordenador regional da Cáritas na América Latina e no Caribe, que envolve 22 organizações. E tem chegado muita ajuda ao País nesse sentido. Embora o arcebispo de Porto Príncipe, dom Guire (Guy) Poulard admita, em entrevista a Adital, que tenha chegado muito dinheiro, através da Cáritas haitiana, ainda falta algo para a coordenação deste trabalho. E não só na Caritas, mas em toda ajuda internacional. O bispo Poulard afirma que, no início, a ajuda internacional levou ao País ações de urgência. Deram água, comida e necessidades essenciais, porém, agora, a situação não é a mesma, é preciso dar às pessoas a oportunidade de se levantarem por si mesmas. O bispo aproveita para fazer um alerta: as primeiras organizações já foram embora, muitas delas vindas de países que passam por crises econômicas e, segundo ele, muitos foram ao Haiti só para aproveitar esse dinheiro. “Então, esse dinheiro vem e volta sem uma resposta direta à necessidade das pessoas”. O bispo reclama uma coordenação mais efetiva por parte do governo. Hoje, a Arquidiocese de Porto Príncipe atende a 4,1 milhões de pessoas. De acordo com o bispo, há muitos padres, leigos e religiosos nas ruas procurando saber como está, realmente, a situação das pessoas na Diocese. Foram muitos estragos provocados pelo sismo. Por isso, estão percorrendo os acampamentos que fazem parte da arquidiocese. Poulard é descrente em uma mudança imediata e afirma que a situação pode continuar por muito tempo, exatamente porque falta orientação, uma coordenação. Segundo ele, há dinheiro, mas não há uma orientação certa para saber o que fazer com ele.
O bispo de Porto Príncipe tenta explicar melhor a situação: “Os políticos que estão dirigindo o Haiti são líderes improvisados. Então, se um músico, ou outra pessoa sem experiência, que é colocada no poder, sem formação para fazê-lo, vai passar pelo menos uns cinco anos aprendendo e não vai dar uma resposta certa ao problema”. Alguns setores internacionais incentivam essa situação para continuarem tendo mais influência no País e também para aproveitar e aumentar sua riqueza. Outra coisa a se observar é que muitos países, principalmente República Dominicana e Estados Unidos, especialmente da cidade de Miami, aproveitaram o terremoto para ganhar dinheiro. “Porque todas as coisas foram compradas na República Dominicana e em Miami. Agora mesmo, alguns deles já voltaram aqui para investir seu dinheiro e ganhar ainda mais. Eu gosto muito do esforço que vejo no Brasil, Espanha e Itália, entre outros países, pois se dá de uma maneira distinta, porque eles mesmos organizam a população para responder aos seus problemas”, destaca.
Homens da Minustah não querem perder o emprego O bispo também chamou a atenção para uma situação séria e que envolve as pessoas, e não só o interesse econômico dos grandes países. Tomou como exemplo a presença da Minustah, com os seus 10 mil militares de dezenas de países, que estão trabalhando no Haiti, ganhando bem, e, portanto, não querem ir embora. “Como estão no Haiti há muito tempo, há a necessidade de renovação periódica dos contratos. Nesse período, há muita violência nas ruas do Haiti e, por isso, o governo haitiano se vê forçado a continuar com a presença dessas forças no País”. Segundo ele, facilmente, se vê que interesses pessoais vêm primeiro do que os interesses nacionais. Ele afirma que, nos dois anos em que está em Porto Príncipe, acredita que o dinheiro que a comunidade internacional investe no País deveria ser investido em uma polícia local, além de dar mais técnica e mais possibilidades às pessoas, para que assumam a segurança do País por si mesmas. “E isso não acontece por falta de vontade. Uma investigação simples pode mostrar que a possibilidade econômica da Minustah é 10 vezes maior do que a possibilidade econômica da polícia nacional”.
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Por Adriana Santiago
Depois da catástrofe, como estamos? quantidade de dinheiro gasto. “Somos a favor de uma avaliação do dinheiro já desembolsado antes do novo financiamento”, afirmou, ao levantar dúvidas sobre a utilização adequada da ajuda às vítimas do terremoto. “Há muita conversa, mas pouca realização”, disse, por sua vez, o dirigente do GARR, Patrick Camille. Para ele, o Haiti está vivendo em situação provisória mais de dois anos após o terremoto. Ele lamenta que o País não disponha de um plano com uma visão de uma verdadeira reconstrução haitiana. Junta-se a isso a questão da terra, que ainda está longe de ser resolvida. Perante essa situação, ele pergunta quando é que os pobres se beneficiarão de uma habitação decente. De acordo com Patrick Camille, os mais capazes já deixaram os acampamentos de vítimas de desastres. Ele defende uma estratégia para permitir que os mais pobres tenham acesso à habitação.
República das ONG Muitas organizações não governamentais atuavam no Haiti mesmo antes do violento terremoto. O desastre de 2010 apenas contribuiu para a multiplicação dessas organizações em todo o País. Elas estão em quase todas as áreas relacionadas ao desenvolvimento e ajuda humanitária, incluindo serviços essenciais que deveriam ser gerenciados pelo governo haitiano, como distribuição de água potável, saneamento, gestão dos acampamentos, além da construção de estradas e de abrigos. As ONG são cada vez mais numerosas a ponto de o Haiti ser conhecido como a República das ONG. Alguns contabilizam a cifra de 10 mil organizações. É difícil verificar esse número, uma vez que quase todas as ONG que operam no País não são devidamente registradas junto ao governo haitiano. Isso porque a Unidade de Coordenação de Organizações Não Governamentais (Ucaong), do Ministério do Planejamento e Cooperação Externa, entidade responsável pela coordenação e supervisão das ONG em todo o País, tem dificuldade em desempenhar o seu papel. Em 2011, Jerry Maxime, responsável pela Ucaong, disse que eram apenas 495 ONG legalmente registradas para operar no território nacional, sendo que apenas 24 delas foram registradas após o terremoto de 12 janeiro de 2010.
Vê-se que a Ucaong não é capaz de monitorar as ONG que trabalham ilegalmente, em clara violação ao Decreto de 14 de setembro de 1989, que regula o funcionamento das ONG, e as obriga a entregarem até dia 30 de setembro de cada ano, no mais tardar, um relatório de suas atividades e apoio financeiro ao governo haitiano. Para o ano fiscal de 2008-2009, apenas 56 ONG tinham enviado o seu relatório ao Ministério do Planejamento. Para o ano fiscal de 20092010, apenas 19 apresentaram seus relatórios. O fato é que as ONG são dotadas de melhores orçamentos do que a instituição responsável por controlálas. Essas organizações administram a maior parte da ajuda proporcionada ao País após o terremoto, tanto no campo humanitário como no de desenvolvimento. “Menos de 5% dos fundos alocados para o benefício do País após o terremoto de 2010 são geridos pelo Estado haitiano”, reclamou publicamente Michaelle Jean, ex-governador geral do Canadá e correspondente para a Unesco no Haiti. Em relatório publicado em junho de 2011, relativo à ajuda financeira da comunidade internacional ao Haiti, o enviado especial adjunto das Nações Unidas para o Haiti, Paul Farmer, denunciou a marginalização das instituições haitianas na gestão da ajuda. Segundo o relatório, a quase totalidade da ajuda humanitária após o terremoto foi desembolsada para as agências de ajuda bilateral e multilateral, como a Cruz Vermelha e organizações não estatais prestadoras de serviços, incluindo ONG e empresas privadas. “O fato de 99% do financiamento de emergência ignorar as instituições públicas do Haiti torna a liderança do governo bem mais difícil”, disse Paul Farmer no relatório intitulado “O que mudou com a ajuda? - Remessas de ajuda ao Haiti antes e depois do terremoto”. O Haiti, nas últimas duas décadas, conheceu desastres naturais repetidos em série. Os haitianos ainda se lembram dos quatro furacões consecutivos que atingiram a ilha Hispaniola no verão de 2008. O terremoto de 12 de janeiro de 2010 atingiu o País de forma tão forte porque ainda não havia se recuperado completamente dos ciclones. É nesse contexto que o Haiti se tornou um terreno fértil para ONG. Essas instituições são, frequentemente, acusadas de estilhaçar a ajuda aos haitianos e de agir como um Estado den-
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Haiti por si tro do Estado. O problema é que é difícil separar o joio do trigo, pois há algumas ONG que fazem bons trabalhos ao incentivarem a participação da sociedade e o protagonismo da população, e aquelas sobre as quais as lideranças dos movimentos sociais fazem críticas contundentes de desvio ou má aplicação da verba.
A CIRH e a ordem
Casas da Finlândia inadequadas ao clima Por Adriana Santiago
A Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti (CIRH) foi criada por decreto presidencial em 21 de abril de 2010, logo após o terremoto, e, desde então, recebe críticas severas sobre sua atuação, sem qualquer intervenção dos movimentos sociais haitianos. A comissão é composta por haitianos ligados ao governo e estrangeiros ligados à ONU, que coordenam e supervisionam os esforços de recuperação e reconstrução. Co-presidida pelo ex-presidente dos EUA, Bill Clinton, e pelo primeiro-ministro do Haiti, ela é responsável pelo planejamento e coordenação das ações de reconstrução, atuando, teoricamente, para facilitar a implementação de projetos de desenvolvimento e prioridades. O documento da instituição diz que, antes de conceder a aprovação, a CIRH faz uma crítica dos projetos e programas financiados por doadores bilaterais e multilaterais, ONG e setor privado. A comissão facilita também a emissão de títulos e autorizações para a construção de hospitais, sistemas de geração de energia, portos e outros projetos de desenvolvimento econômico. De acordo com o vice-representante especial do secretário geral da ONU para o Haiti, Nigel Fisher, pouco antes do final de seu mandato, a CIRH aprovou projetos prioritários em um total de US$ 2,3 bilhões para transporte, infraestrutura, remoção e gestão de resíduos, desenvolvimento urbano, educação e saúde. A avaliação da Papda é que, mesmo acumulando grandes responsabilidades, a Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti ainda não disse a que veio. O governo haitiano teria delegado suas funções e colocou a população nas mãos de um órgão inoperante, condenando o País à “instabilidade e indignidade”.
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As ajudas chegaram ao Haiti vindas do mundo todo. Nessas horas, a solidariedade fala mais alto, mesmo sem saber direito como vivem aqueles que se está ajudando. Algumas ajudas podem ser dizer até inusitadas ou paradoxais. Por exemplo, a Igreja Anglicana da Finlândia, um país europeu nórdico de 5,3 milhões de habitantes, a metade da população do Haiti, mas um dos maiores em qualidade de vida e pouca densidade populacional do mundo, doou casas de madeira para os haitianos. Como se situa no extremo norte da Europa, é muito, muito frio, quase o ano todo, e a madeira ajuda a aquecer. Com os U$ 350 mil dólares doados à paróquia da Igreja Anglicana de Sain Matthieu, foram construídas 80 casas de 3,30m x 3,50m, algo em torno de 18m² para famílias de até seis pessoas. Casas pequenas e quentes demais para um país caribenho, que pode chegar a 35° no verão. Contudo, as casas terão cozinhas comunitárias e pátios comuns para convivência, como os antigos lakou , proibidos na ditadura Duvalier. Apesar do tamanho, o investimento na estrutura tribal já é um avanço na organização do País.
Depois da catástrofe, como estamos?
Uma lição de solidariedade Por Wooldy Edson Louidor “A solidariedade é a ternura dos povos”
A Cruz Vermelha Colombiana foi a primeira a chegar ao Haiti após o terremoto. FOTO: CRUZ VERMELHA COLOMBIANA
“Fui ao Haiti porque queria manifestar a minha solidariedade com o povo haitiano depois da tragédia que eles viveram”, disse-me um voluntário da Cruz Vermelha Colombiana, especialista em construção de albergues temporários, durante um voo de volta de Porto Príncipe para Bogotá, em meados de março de 2011. “Sou da Armênia, Quindio. Minha cidade foi destruída por um terremoto em 1999. Sei das adversidades e entendo o que significa para uma pessoa afetada receber um aperto de mãos e ver pessoas que vêm de outros lugares para ajudá-los”,
prosseguiu o voluntário, um homem já idoso, com seus 70 anos. Ele estava muito satisfeito do dever cumprido, logo após ter ajudado os haitianos durante um ano em Porto Príncipe. Esse sentimento relatado do dever cumprido pode ser estendido a todo o povo colombiano, cuja solidariedade de primeira hora com o Haiti deixou uma grande lição. O desejo de “sentir junto com o outro” e de mostrar-lhe que não está sozinho em meio a uma situação limite, levou ao Haiti, “sem pensar duas vezes”, o voluntário que também teve sua cidade destruída de forma semelhante. No dia 25 de janeiro de 1999, Armênia, capital do estado de Quindio, localizada a 290 quilômetros a oeste de Bogotá, foi destruída por um forte sismo de magnitude 6,2 na escala Richter. Nosso voluntário também viveu o horror de tragédia semelhante. O terremoto, que cobrou a vida de aproximadamente 300 mil haitianos e deixou outros três milhões seriamente feridos, relembrou ao povo colombiano a triste página da história de Armênia, onde residiam cerca de 300 mil habitantes, dos quais 800 morreram por causa do desastre natural. As imagens da tragédia ficaram gravadas não apenas em fotografias, em filmes e em arquivos, mas também na memória e no coração do povo colombiano, que devolveu ao Haiti a mesma solidariedade manifestada pelo mundo inteiro durante esse episódio lamentavelmente célebre da história da Colômbia.
A solidariedade é contagiosa Imediatamente depois de ver a notícia do terremoto no Haiti, os colombianos acorreram às diferentes sedes da Cruz Vermelha para levar alimentos, roupas, colchões, cobertores, água, artigos de higiene e outros produtos de emergência. De todos os cantos do País, diferentes meios de comunicação, bem como igrejas e templos das mais diversas religiões, associações e organizações sociais, de grêmios, de bairros, não governamentais, organismos
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Haiti por si
A solidariedade supera todos os cálculos Alguns dias depois da tragédia, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu à Colômbia equipes de resgate e ajuda de emergência para o Haiti. Em menos de nove dias, 1.200 toneladas de ajuda humanitária foram recolhidas e mais de 1,5 bilhão de pesos colombianos arrecadados nas contas bancárias de emergência da Cruz Vermelha Colombiana. Já no dia 23 de janeiro de 2010, toneladas de ajudas humanitárias, procedentes da Colômbia, foram levadas ao Haiti em oito voos da Força Aérea e no navio ARC Cartagena, que, além disso, funcionava como navio hospital, com 13 especialistas em saúde. A Cruz Vermelha Colombiana teve um papel fundamental para coletar ajudas e levar voluntários procedentes de diferentes localidades do País. No informe de gestão apresentado pela instituição, podemos ler as cifras de sua operação no Haiti, de janeiro de 2010 a abril de 2011: 151.678 famílias haitianas receberam ajuda alimentar durante cinco meses, 168.000 litros de água apta para o consumo humano foram repartidos, 2.785 pessoas foram capacitadas em promoção e prevenção de enfermidades epidemiológicas, 3.168,48 toneladas de ajuda alimentar e não alimentar foram entregues durante 15 meses. Um total de 600
voluntários da Cruz Vermelha Colombiana prestaram seus serviços no Haiti durante 10 meses. Vinte especialistas em albergues disponibilizaram assessoria técnica durante seis meses. Outros especialistas colombianos ofereceram capacitação aos haitianos em âmbitos tais como: busca e resgate, saúde em desastres, prevenção do cólera e construção de albergues temporários. A solidariedade colombiana foi impulsionada também pela Igreja Católica, que enviou, imediatamente depois do terremoto, um aporte financeiro ao povo haitiano através da Cáritas Haitiana. Em todas as paróquias do País foi realizada, em 24 de janeiro de 2010, uma grande coleta, na qual se arrecadou uma soma de 2 bilhões de pesos colombianos, que foram enviados ao Haiti. Desde 2011, a Igreja Católica vem realizando, através da Cáritas, diversas iniciativas pastorais para fortalecer a solidariedade com o povo haitiano. Tais iniciativas consistem em disponibilizar acompanhamento e assessoria em temas como “a proteção da infância, a prevenção do tráfico de pessoas, a promoção da mulher, a educação e atenção em saúde às comunidades mais marginalizadas”, assim como em impulsionar “processos para a produtividade, o empreendedorismo e a formação humana e cristã para a convivência, a solidariedade e o desenvolvimento”. Tal como relatou a imprensa, “depois do dia 12 de janeiro de 2010, com equipes de resgate, toneladas de doações, barcos, voos militares e cúpulas no alto governo, a solidariedade colombiana superou todos os cálculos”.
A solidariedade é “para nunca acabar” Sendo um dos primeiros povos a se solidarizar com o Haiti, a Colômbia continua manifestando sua ternura com o povo haitiano. Essa solidariedade é tal, como expressou a Cruz Vermelha Colombiana, “para nunca acabar”. Ou, como escreveu a Cáritas Colombiana, não é “uma ação pontual”, mas que deve se estender até conseguir “fortalecer os laços de fraternidade” entre ambos os povos. Ainda que esteja satisfeita com o dever de solidariedade cumprido durante o período pós-desastre no Haiti, a Cruz Vermelha “segue apoiando os haitianos em linhas de assessoria técnica e a Cruz Vermelha Haitiana para fortalecer sua capacidade de resposta a desastres”. Esse trabalho tem uma grande importância, já que o Haiti continua sendo muito vulnerável a desastres naturais, como terremotos e furacões.
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estatais, escolas, universidades, empresas, lançaram uma vasta campanha de solidariedade com o povo haitiano. Já em 14 de janeiro de 2010, chegaram ao Haiti, em dois aviões da Força Aérea Colombiana, as primeiras ajudas humanitárias, entregues pelo então Ministro do Interior e de Justiça da Colômbia, Fabio Valencia Cossio, na qualidade de coordenador do Sistema Nacional de Prevenção e Atendimento de Desastres. Entre essas primeiras ajudas humanitárias: um hospital militar provisório, uma unidade de água e saneamento, uma equipe de resgate canina composta por oito cães, 10 mil pares de luvas e outras tantas máscaras, 500 kits de artigos de higiene, um contêiner de primeiros socorros com 100 quilos de insumos, outro com 180 quilos de medicamentos. “A Colômbia chegou muito rápido, antes mesmo que o Haiti expressasse suas necessidades. Chegaram com seu coração e com vontade. A ajuda não é somente de emergência. O governo colombiano não nos deixou sozinhos”, agradeceu o então primeiro-ministro haitiano Jean-Max Bellerive ao governo colombiano.
Depois da catástrofe, como estamos? A Cáritas continua também trabalhando em vários projetos focados na proteção e promoção da infância haitiana, cuja vulnerabilidade a violações de direitos humanos e a situações de tráfico de pessoas para a República Dominicana e outros países tem aumentado após o terremoto. Através da Fundação Instituto para a Construção da Paz (Fincopaz), a Cáritas Colombiana está em processo de impulsionar no Haiti o Movimento de Crianças Semeadoras da Paz com a finalidade de “transformar certas práticas culturais que possibilitem a promoção de uma nova cultura de respeito pela dignidade e pelos direitos das crianças do Haiti, desde os valores da Doutrina Social da Igreja e o reconhecimento, a valorização e a ressignificação dos direitos das crianças”. Durante a reunião do Conselho de Segurança da ONU, presidida pelo colombiano Juan Manuel Santos, em 6 de
A Cruz Vermelha Colombiana, de janeiro de 2010 a abril de 2011, atendeu a 151.678 famílias haitianas, que receberam ajuda alimentar durante cinco meses; 168.000 litros de água apta para o consumo humano foram repartidos; 2.785 pessoas foram capacitadas em promoção e prevenção de enfermidades epidemiológicas; 3.168,48 toneladas de ajuda alimentar e não alimentar. FOTO: CRUZ VERMELHA COLOMBIANA
abril de 2011, o mandatário colocou o tema da recuperação e reconstrução do Haiti no centro do debate da sessão especial de alto nível da organização internacional. Instou o mundo inteiro a não abandonar o Haiti e chamou a comunidade internacional a deixar o processo de reconstrução do País nas mãos dos próprios haitianos. “Pensemos em construir um melhor Haiti não apenas hoje, não apenas amanhã, mas nos próximos 25 anos. Devemos imaginar o Haiti do futuro, e colocar as bases para que sejam os próprios haitianos que continuem sua reconstrução”, declarou o presidente colombiano, convidando as Nações Unidas e o seu Conselho de Segurança a estarem unidos e “comprometidos para tirar o Haiti dessa situação tão difícil que enfrenta”.
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Haiti por si
Insustentável permanência da CIRH A maioria das organizações sociais haitianas se manifesta contra a renovação do mandato da CIRH. “Ao criar a CIRH, a comunidade internacional impôs sua visão de reconstrução aos haitianos”, disse o padre Jean Hansen, da JILAP. Na mesma direção, a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH) acredita que o plano de reconstrução foi preparado sem a participação de haitianos. “A CIRH é simplesmente uma estrutura para enfraquecer ainda mais o Estado haitiano”, queixa-se Pierre Esperance, diretor da RNDDH, que pediu ao Parlamento haitiano a não renovação do mandato da comissão. Esperance se pronunciou, no entanto, em defesa de uma colaboração aberta entre o Haiti e a comunidade internacional. O GARR, membro do coletivo de organizações locais para a defesa do direito à habitação, observou que o governo do Haiti, dois anos após o terremoto, ainda não se apropriou do plano de reconstrução. O PDNA, desenvolvido após o terremoto, denuncia Patrick Camille, do GARR,
foi apresentado em Nova York e na República Dominicana. “Esse plano foi elaborado com pouco debate na sociedade haitiana”, diz ele. Para Patrick Camille, a presença da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) em solo haitiano e a criação da CIRH após o terremoto testemunham a colocação do Haiti sob tutela. Já a plataforma “Je nan Je” agrupa uma dezena de organizações e ONG, incluindo Action Aid, e também é bem crítica quanto à CIRH. “Simplesmente porque ela não é uma estrutura haitiana”, adianta Marjorie Bertrand, coordenadora nacional da plataforma. A CIRH é copresidida pelo primeiro-ministro haitiano e uma eminente personalidade estrangeira implicada nos esforços de reconstrução. Estes esforços são assistidos por um diretor executivo encarregado da gestão cotidiana das operações, com a supervisão de um secretariado. A Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti é fortemente criticada pelo movimento social haitiano por ter como cabeças o ex-presidente dos EUA, Bill Clinton, que também é enviado especial do secretário-geral das Nações Unidas no Haiti, e o primeiro-ministro haitiano, função que chegou a ficar desocupada oficialmente três meses após a renúncia de Garry Conille, que permaneceu apenas quatro meses no cargo, em meio a uma disputa com Martelly sobre contratos de reconstrução pós-terremoto. Desde então, permanece no comando o ex-chanceler Laurence Lamothe, tendo o Senado o aprovado em definitivo em março de 2012. Até Conille assumir, oito nomes propostos por Martelly foram rejeitados pelo Senado. A CIRH é composta ainda por quatro representantes do governo haitiano, um representante do Senado, um representante designado da Câmara dos Deputados, um representante do movimento sindical e um representante do setor empresarial. A CIRH inclui igualmente um representante de cada um dos principais doadores que se ofereceram para reconstruir o Haiti e que tenham contribuído com, pelo menos, 100 milhões de dólares a título de doação por um período de dois anos ou, pelo menos, 200 milhões de dólares a título de alívio da dívida. Os países e instituições nesta lista são: Canadá, Brasil, União Europeia, França, Estados Unidos, Venezuela, BID, ONU e Banco Mundial.
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A Papda denuncia que há uma disputa de poder e que esta não é para estar à frente do processo de reconstrução, mas, sim, para controlar milhões de dólares que pagarão as empresas que trabalham no País. De acordo com a entidade, cada país estaria tentando impor suas empresas para que se aproveitem da “reconstrução do Haiti”. Paralelamente à CIRH também foi criado o Fundo Financeiro de Multi-Doadores (MDTF), cuja missão é promover a harmonização entre os programas e projetos que necessitam dos recursos e fundos de financiamento disponíveis. O fundo deveria facilitar a coordenação das ajudas externas e assegurar a boa gestão dos fundos postos à disposição para a reconstrução do Haiti. É gerido pelo Banco Mundial e tem como exemplo ações que foram desenvolvidas no Iraque e Afeganistão, fato suficiente para também levantar a desconfiança dos movimentos sociais haitianos. A CIRH, criada por uma lei de emergência controversa aprovada pelo Parlamento, tem um prazo de 18 meses para resolver a situação de urgência. Está em ação desde outubro de 2010. Meses depois do fim previsto, o governo ainda não decidiu o futuro da instituição.
Depois da catástrofe, como estamos?
Outros membros da comissão são: um representante da Comunidade do Caribe (CARICOM), um representante em base contínua de outros países doadores, um representante da Organização dos Estados Americanos (OEA), um representante da comunidade das ONG do Haiti e um representante da diáspora haitiana.
A contribuição do movimento social à reconstrução A maioria das organizações sociais haitianas se reúne numa plataforma com a intenção de ter suas vozes ouvidas no processo de reconstrução do País. A plataforma denominada, em crioulo haitiano, “Je nan Je”, se refere a um confronto de franqueza e honestidade entre duas pessoas, no qual, através do que se chama “olhos nos olhos”, um pode facilmente detectar se o outro está mentindo. A “Je nan Je” começou em 2011 no contexto de reconstrução do Haiti a partir de organizações e de movimentos sociais haitianos. Uma campanha de mobilização que visa à obtenção da garantia do direito à terra e à habitação decente no Haiti foi lançada por essa iniciativa, focada na
Padre Jean Hansen, diretor da Comissão Nacional Episcopal Justiça e Paz (JILAP), lamenta a falta de vontade política para mudanças. FOTO: FRANCISCA STUARDO
transparência, responsabilidade e boa governança. Apoiada pela Action Aid, a campanha foi oficialmente lançada em agosto de 2011 em todo o Haiti para incitar os responsáveis estaduais a porem em prática tudo o que for possível para remanejar dignamente os habitantes dos acampamentos de desabrigados, improvisados após o terremoto. “Lamentamos ainda a inacessibilidade à terra pelas pessoas da própria terra, que deixaram as zonas afetadas”, destaca Marjorie Bertrand, coordenadora da plataforma. A “Je nan Je”, diz ela, luta também contra a transformação de terras agrícolas em espaços habitáveis. “Os problemas fundiários não são sempre levados em consideração no contexto da reconstrução”, lamenta. Agrupando 800 mil membros pelos 10 departamentos geográficos do país, a “Je nan Je” já programa consultas tendo em vista a elaboração de especificações regionais das terras. “Essa iniciativa vai nos permitir elaborar também um documento com as especificações nacionais”, informa Bertrand. O processo será concluído a partir de um encaminhamento de um projeto de lei ao Parlamento sobre os problemas fundiários levando em conta o direito à habitação e o retorno à agricultura. “Nossa demanda está sendo bem recebida pelos parlamentares”, comemora ela, reivindicando o retorno da liderança do processo de reconstrução aos haitianos. É preciso também, acredita, uma refundação da nação haitiana no contexto de reconstrução. Outro movimento de organizações sociais, chamado Coletivo de Organizações Haitianas pelo Respeito do Direito à Habitação, foi criado para defender o direito à moradia das vítimas do terremoto de 12 de janeiro de 2010. Essa plataforma inclui a Papda, a Plataforma das Organizações Haitianas de Direitos Humanos (POHDH), o Serviço Jesuíta aos Refugiados e o GARR. O fortalecimento das instituições haitianas, a descentralização, leis que regulam as relações dos haitianos com o Estado, são, entre outras, as reivindicações do coletivo. “Os danos do terremoto foram mais graves devido à centralização de todos os serviços públicos em Porto Príncipe”, afirma Patrick Camille, um dos líderes da plataforma e dirigente do GARR. A questão dos despejos forçados nos acampamentos preocupa as organizações membros da pla-
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Haiti por si O GARR tem quatro eixos de trabalho: o primeiro é incidência política para mudar as práticas, as políticas, as leis sobre migração, para prevenir a migração forçada e procurar uma melhor gestão dessa migração. “Esta é uma parte muito importante do nosso trabalho e, por isso, fazemos uma grande ação de comunicação, de formação e de apresentação de propostas ante as autoridades nacionais, mas também locais e em nível internacional”, observa Collete. O segundo eixo é o fortalecimento dos grupos que correm risco de ter seus direitos violados no processo migratório, ou seja, os candidatos e as candidatas à migração, as pessoas repatriadas e as pessoas que vivem na fronteira. Por isso, a entidade oferece formação para diferentes grupos que estão envolvidos nesse processo, seja na fronteira ou não. Outro eixo é a assistência humanitária. “Acolhemos os grupos de repatriados que chegam. Às vezes, chegam quase nus porque são detidos no lugar de trabalho, num local de construção ou no campo, e os levam para a fronteira, dessa forma as pessoas chegam com apenas uma roupa, suja ou de trabalho. Também muitas vezes estão com fome e doentes. Esse é um trabalho permanente que fazemos porque quase diariamente há repatriações a partir da República Dominicana”, conta a coordenadora do GARR. Em locais onde que se verifica a passagem de muitas pessoas, como, por exemplo, na zona de Belladere, centro geográfico da fronteira, o GARR mantém um centro de acolhimento. A entidade acolhe também pessoas vítimas de tráfico. Os traficantes são chamados de ‘buscones’, gente que vai buscar as pessoas lhes fazendo promessas, como a de que vão encontrar um bom trabalho. As pessoas vendem tudo o que têm para fazer a viagem e, quando cruzam a fronteira, não sabem onde estão, se perdendo. Essas pessoas logo têm que voltar. Nesse caso, também os comitês de direitos humanos do GARR os acolhem e os ajudam a voltarem para suas casas. Outra atividade ligada também à ação humanitária do GARR é a reinserção social. Em locais onde há muitas pessoas repatriadas, a entidade faz um trabalho de reinserção socioeconômica e cultural com essas pessoas e também com a comunidade. Além de ajudar os repatriados a superarem seu trauma psicológico no processo de repatriação, já que perderam tudo, deixaram seus amigos, sua família, às vezes seus filhos, o GARR os acompanha.
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taforma. Graças ao grupo de defesa, Camille diz constatar uma tendência de queda nos despejos forçados. Por exemplo, em maio de 2011, o prefeito de Delmas, Wilson Jeudy, desencadeou uma operação para desalojar centenas de famílias que haviam escolhido como domicílio as praças públicas do município. Os acampamentos nos espaços públicos, disse o prefeito, favorecia a insegurança na cidade. O prefeito Jeudy foi questionado por membros do Coletivo de Organizações Haitianas pelo Direito à Habitação por sua decisão, que eles julgaram arbitrária. Por isso, as ONG membros, juntamente com as famílias atingidas, ameaçaram levar a Prefeitura à Justiça. As organizações sociais haitianas não se contentam em fazer seus pedidos ou em denunciar a lentidão do processo de reconstrução. Centenas delas executam projetos em benefício de sobreviventes do terremoto. É o caso do GARR, que realiza um projeto de moradia em Lascahobas em benefício de desabrigados do terremoto que fugiram de Porto Príncipe. O projeto remanejou 40 famílias, cerca de 400 pessoas, para condições decentes de moradia. Financiado pelo Disasters Emergency Committee (DEC) - Comitê de Emergência de Desastres -, esse projeto visa a melhorar as condições de vida de pessoas atingidas pelo terremoto nas áreas humana, econômica, social e ambiental. É nessa outra ponta do processo de resgate da cidadania e da soberania do povo haitiano que o GARR luta para promover e defender os direitos dos migrantes e das migrantes. Collete Lespinasse, dirigente do GARR, explica que a entidade trabalha com três grupos de migrantes: pessoas repatriadas, refugiados que estão no Haiti e, desde o terremoto, com os desabrigados. É principalmente na fronteira onde se concentra o trabalho, pois é lá onde passam os migrantes que vão, por exemplo, para a República Dominicana, ou que são deportados. Collete ressalta que é ao redor da fronteira onde há muita mobilidade humana, ou seja, pessoas que entram ou saem do país. “Há uma migração diária, não permanente, mas há mobilidade humana e muitos abusos de direitos humanos. Por isso a fronteira é muito importante para nós”, explica.
Collete lembra que, nessa frente de trabalho humanitário com os migrantes, o terremoto criou uma categoria nova: os desabrigados pela catástrofe. Desde o ano passado, o GARR também está trabalhando com acampamentos próximos e também na fronteira, já que alguns desabrigados criaram acampamentos na zona fronteiriça.
Os benefícios da cooperação Sul-Sul
Acontece de, algumas vezes, as pessoas, da mesma comunidade para onde voltam, não os entenderem, pois como deixaram o Haiti há muito tempo não falam muito bem o crioulo, o que torna necessário que programas de reinserção sejam feitos também com a comunidade e com as famílias. Por causa da situação de calamidade em que se encontram muitos repatriados, os programas do GARR dão também apoio socioeconômico, além de apoio às crianças para que sejam colocadas na escola. “Trabalhamos com as crianças, mas também com as escolas, para que as apoiem, pois muitas delas nem nasceram no Haiti”. Nesses programas também há apoio para recuperar seus documentos, para que as crianças tenham um registro de nascimento, além de iniciativas para fortalecer a auto estima das pessoas, para que conheçam seus direitos e os riscos que sofrem. Por exemplo, em 2011, o GARR trabalhou muito com o risco do cólera. Há ainda o risco da violência. “As mulheres, às vezes, quando estão sozinhas, atraem homens que pensam: ‘essas que vivem na República Dominicana são prostitutas’. Então, acham que podem fazer qualquer coisa”. O GARR presta ainda assistência nos casos em que é preciso procurar a Justiça, como, por exemplo, para se obter o registro de nascimento ou outros documentos.
Collete Lespinasse, coordenadora do Grupo de Apoio aos Refugiados e Repatriados (GARR), faz crítica severa à intervenção estrangeira. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
O Haiti foi socorrido por países de todos os cantos da Terra. Os países da América do Sul e Caribe, até agora, trouxeram uma ajuda considerável para o País em direção à recuperação. A União das Nações Sul-Americanas (Unasul) demonstrou dedicação especial à causa do Haiti. Um orçamento de 300 milhões de dólares foi prometido ao Haiti pelos países da Unasul. Os membros devem pagar 100 milhões de dólares desse montante, enquanto os restantes 200 milhões de dólares serão provenientes de um crédito do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A criação de um secretariado técnico e político foi anunciada para implementar o plano de ação da Unasul para o Haiti, que inclui projetos em agricultura, segurança alimentar, infraestrutura e redução de riscos em caso de inundações. Além da Unasul, o Haiti tem recebido o apoio da Aliança Bolivariana para os Povos da América (ALBA). Na apresentação dos países da ALBA, ocorrida em março de 2011, a Venezuela se comprometeu em aumentar a ajuda ao Haiti. Presente no coração de muitos haitianos por causa do futebol, o Brasil posiciona-se dia após dia como parceiro do povo haitiano. Após as turbulências políticas de 2004, o Brasil está aumentando substancialmente sua ajuda ao Haiti, embora haja uma crítica dos movimentos sociais quanto à presença do Exército brasileiro na Minustah. A Solidariedade para as Mulheres Haitianas (Sofa), inclusive, já fez um apelo ao então presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva para que ele intermedie a retirada das tropas do país na missão. O Brasil é responsável, desde 2004, pelo comando da Minustah. Os presidentes Lula e Dilma Rousseff já fizeram visitas ao Haiti, além de missões oficiais a Porto Príncipe. Chegou-se a levar um grupo de atletas do futebol brasileiro
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com todas as suas estrelas para jogar um amistoso com a seleção haitiana, em 2004. A chegada da atual presidenta da República, Dilma Rousseff, não afetou a cooperação entre Haiti e Brasil. A chefe de estado brasileira fez sua primeira visita oficial ao Haiti em fevereiro de 2012. Na oportunidade, ela reiterou o compromisso de seu País na reconstrução do Haiti. Na conferência internacional de doadores sobre a reconstrução do Haiti, o Brasil prometeu um orçamento de 172 milhões de dólares para a reconstrução do País, em uma conferência em Nova York.
Viva Rio contra a violência
A ONG brasileira Viva Rio está desde 2007 no Haiti, concentrando suas atividades nas áreas de saúde, meio ambiente, arte, esportes, educação e segurança da comunidade. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
áreas de eletricidade, alvenaria, serralharia etc. “É uma escola para a reconstrução do Haiti”, diz Charles Sadraque, também oficial de comunicação da entidade, responsável pela relação com a mídia. O Viva Rio também montou uma escola de futebol para compartilhar a experiência do Brasil nesse campo com a juventude haitiana. Além de esportes, o Viva Rio, no aspecto de reintegração de seu programa, ensina dança para crianças. No bairro de Bel-Air, onde o Viva Rio começou as operações, a organização regularmente conta com representantes da Minustah, da Polícia Nacional e autoridades da área, em torno do clima de segurança. “Os acordos de paz são assinados entre as partes interessadas para promover a paz na região”, diz Jente Minne. Para ele, os esforços do Viva Rio não são em vão. “Bel-Air passou de uma zona de segurança vermelha a uma zona laranja. Nosso sonho é transformar Bel-Air em uma área verde”, explica. Para promover a paz nessa favela de mais de 100 mil habitantes, que tem semelhanças com as favelas do Brasil, o Viva Rio oferece bolsas de estudo para as crianças dos bairros onde a violência é baixa. “Pretendemos abrir nossa própria escola para receber um número maior de crianças”, diz o oficial de comunicação da organização. Enquanto isso,
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Em 2004, Ruben César, um antropólogo brasileiro, foi trabalhar como consultor da Minustah no Haiti. O País estava enfrentando, à época, um clima de violência sem precedentes. Casos de sequestros e assassinatos em plena luz do dia eram comuns. Foi assim que César decidiu criar o Viva Rio no Haiti, um braço da organização que atua há vários anos no Rio de Janeiro. A entidade iniciou suas operações em 2007 em Bel-Air, uma favela em Porto Príncipe. “Ao contrário de outras ONG, o Viva Rio não tem uma estrutura hierarquizada”, explica Jente Minne, oficial de comunicações da organização. “Nossa filosofia é viver nas favelas com as pessoas”. O objetivo do Viva Rio é reduzir a violência e promover o desenvolvimento local. Depois do terremoto de 12 de janeiro, a ONG brasileira teve que mudar de estratégia para se engajar em missões humanitárias e descentralizar suas atividades em outras áreas do País. “Estamos presentes em quatro áreas agora”, diz Minne. O Viva Rio está concentrando suas atividades nas áreas de saúde, meio ambiente, arte, esportes, educação e segurança da comunidade. A organização, cujas atividades são financiadas, sobretudo, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Canadá, informa que chega a remover cerca de 120 toneladas de resíduos sólidos por dia. Também vem plantando aproximadamente 100 mil mudas de plantas no solo por ano para a reabilitação do meio ambiente. Disponibiliza ainda um centro que oferece treinamento rápido a centenas de pessoas nas
Depois da catástrofe, como estamos?
Escolas para reconstruir Léogâne Por Adriana Santiago
Modelo de escola padrão, apoiada pelo Cresfed, na cidade de Léogâne. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
O hipocentro do terremoto foi bem perto da superfície da Terra, somente a 10 km de profundidade, e o epicentro foi próximo à cidade de Léogâne, cerca de 17 km ao sudoeste da capital Porto Príncipe. Logo, 80% de tudo foi destruído, isso inclui principalmente as escolas e todos os prédios públicos. O Centro de Pesquisas Sociais e de Formação para o Desenvolvimento (Cresfed), uma organização da sociedade civil formada por professores anistiados pós-ditadura Duvalier, realizava no distrito um trabalho de educação civil e acompanhando algumas atividades econômicas, como a moagem de grãos, a associação de mulheres, beneficiamento de frutas, mas, principalmente, fazendo um trabalho de educação e de formação para a cidadania dos campesinos. Quando tudo desmoronou, o Cresfed
refez o foco do trabalho e começou a priorizar a reconstrução das escolas locais. Susi Castor, diretora do Cresfed, explicou como o trabalho ficou, logo após o sismo: “Envolvemos-nos, então, em qualquer projeto de reconstrução, que é um grande desafio, sobretudo no campo, nas zonas rurais afetadas pelo terremoto”. Na região de Léogâne, existem duas experiências: uma na zona rural, onde reformaram três escolas e vão construir uma quarta, nos moldes de escola modelo, para que seja aproveitada o dia todo pela comunidade. “Nossa concepção é de que essas escolas fazem parte da reconstrução. Para nós, a reconstrução não é somente a dos edifícios, é algo que vai muito mais além. Abarca muitas atividades para chegar a toda uma concepção de refundação do País. Para nós, reconstruir uma escola não é apenas reconstruir, dar abrigo, mas dar formação, participação da família e toda a constituição de uma comunidade escolar”, complementa. Castor explica que o Cresfed trabalha ainda na formação dos professores e diretores de escolas porque, nas zonas rurais, de maneira geral, as escolas são miseráveis e há aspectos que não foram conquistados e, por isso, a organização social entra para dar o status de cidadãos aos habitantes da cidade ou do campo. Para ela, “se trata de dar toda uma dignidade na concepção da escola”. E passa pela Associação de Pais, em que a própria escola é convertida em edifício de múltiplo uso comunitário. É escola de manhã para as crianças e, à tarde, lugar de reunião para os pais e para a comunidade. E esses espaços são de suma importância, levando em conta a situação de desarticulação do campo haitiano. Assim como no Brasil, as escolas serviriam como locais de uso público para vacinação, reuniões de bairro e até capela. “É essa a concepção que estamos trabalhando na zona rural”. Na zona de Léogâne, o Cresfed faz parcerias entre prefeituras haitianas e prefeituras do Canadá, França e Holanda, na região chamada Las Palmas, que abrange quatro
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As crianças poderão ter escola gratuita em locais melhores do que os barracões de madeira, que hoje abrigam o projeto dos professores. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
afetada e é um projeto piloto”, explica ao anunciar que estão sugerindo não só uma nova concepção arquitetônica para as escolas, mas conscientizando a população em geral sobre como o espaço pode ser utilizado para a construção da cidadania e de uma identidade comunitária. Nesse sentido, as escolas reconstruídas pelo Cresfed deverão ser públicas e gratuitas, o que não é a prática comum no Haiti. Conforme Castor, em 1804, no momento da Independência, a primeira Constituição falava de uma escola obrigatória e gratuita, e até os dias atuais ainda é difícil observar a escola como uma questão primordial no País. Susi Castor lembra o slogan de campanha do atual presidente Martelly: Escola gratuita para todos. “Eu, pessoalmente, aplaudi porque, se um governo fizer isso, será uma evolução depois de dois séculos”, comenta. Contudo, sabe que será impossível, pois “primeiro, isso não se decreta, se prepara. E não se prepara em linha reta, há muitas ramificações que é preciso preparar. Tampouco também é algo instantâneo”. Ela acredita que a escola gratuita só será possível se, definitivamente, o governo tomar como uma tarefa fundamental para o País e começar a preparar professores e escolas. Depois, preparar conteúdos para os programas, a pedagogia etc. “É como uma guerra. Tem que se estar bem preparado, em ângulos bem modelados, com tarefas diversas, porque é uma coisa grande, não é fácil, mas não é impossível. Com vontade, com visão, com preparação, muitos dizem que não, mas eu penso que é possível, sim. Mas tal como está se fazendo, irá se perder”, decreta.
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comunidades, nas quais estão fazendo, em cada uma delas, uma escola. “Estamos fazendo um esquema de trabalho com os prefeitos, envolvendo-os, sobretudo, como uma comunidade de prefeitos, e não como um prefeito em particular. A escola tem que ser o coração de uma comunidade”, disse Castor. Quem cuida do projeto “Escolas para Léogâne” é Marco Bordignon, um voluntário italiano do Projeto Mundo, do Movimento de Leigos para a América Latina e a África (MLAL). Concomitantemente, continuam no trabalho de formação para gestão de pequenos negócios, que geram autossustentabilidade para a comunidade local. Das três escolas reformadas, o projeto ainda mantém a estrutura provisória original, mas acrescenta poços profundos com bombas de água para retirada livre pela comunidade, que chega a 35 mil pessoas, em uma área de 34,5 km², a chamada seção comunal. A escola que querem construir passa pelo modelo de formação de professores e incentivo da autonomia da comunidade, mas a parte arquitetônica será baseada na escola que está em fase de construção pela Paróquia de Saint Matthieu, da igreja anglicana, financiada pela igreja finlandesa, e que será particular. Serão oito salas de aula, com biolatrina, com aproveitamento de gás propano para a cozinha, salas arejadas e hortas comunitárias. No meio, um grande salão para reuniões. A recepção da proposta entre os prefeitos tem sido a melhor possível, segundo Castor, porque, além das escolas, existe a intercomunitariedade, que fortalece politicamente as prefeituras. Há também a construção de novas infraestruturas e o apoio técnico do Cresfed. “É um projeto lindo porque foi uma zona muito
o Viva Rio faz também a promoção do turismo sustentável no Haiti. “Vamos ensinar as pessoas que trabalham no setor”, diz Minne. Para ele, o Viva Rio é mais uma ONG haitiana que brasileira. Isso porque, com uma força de trabalho de 750 funcionários, a ONG tem apenas entre sete e 10 brasileiros. Funcionários do Viva Rio estavam entre os convidados que se reuniram com a presidente Dilma Rousseff, durante sua visita ao Haiti, em 2012. “É uma marca de reconhecimento da relevância do nosso trabalho”, comemora Minne, renovando o compromisso de sua organização para compartilhar sua experiência com o povo haitiano. “É a nossa forma de contribuir para a reconstrução do Haiti”, disse ele.
Nem tudo é negativo É fato que ainda há muito a ser feito para tirar o País do seu estado de abandono, há mais de três anos após o terremoto de 12 de janeiro de 2010. Também é necessário destacar que os problemas enfrentados, atualmente, não têm sua origem apenas no desastre. O terremoto simplesmente agravou a situação. Apesar da avaliação negativa por muitos atores no que diz respeito ao processo de reconstrução, alguns acreditam que nem tudo é negativo. “Mais crianças vão à escola este ano do que antes do terremoto”, diz o representante adjunto do secretário-geral da ONU, Nigel Fisher, em seu balanço por ocasião do segundo aniversário do terremoto. Nove meses após o terremoto, o Haiti foi atingido por uma epidemia de cólera, que já causou milhares de mortes. As Nações Unidas, por meio do contingente nepalês da Minustah, são acusadas de introduzirem a doença, contaminando as águas do rio Artibonite, o maior do Haiti. Acusações estas que a ONU continua a rejeitar, apesar de vários estudos científicos independentes as confirmarem. Organizações haitianas de defesa dos direitos humanos apresentaram à ONU petição solicitando indenização para as vítimas da doença. Nada está decidido ainda. Enquanto isso, o representante especial adjunto do secretário-geral da ONU comemora a implementação de um sistema nacional de alerta ao cólera, liderado pelo Ministério da Saúde Pública e População (MSPP).
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da capital haitiana foram esvaziados de seus ocupantes por meio desse projeto. Custando um total de 78 milhões de dólares, a proposta de 16 distritos por 6 acampamentos, que foi aprovada pela CIRH, em 16 de agosto de 2011, foi financiada em 30 milhões de dólares pelo Fundo para a Reconstrução do Haiti (HRF, por sua sigla em inglês). O centro de tratamento de resíduos de Morne Cabri, não muito longe de Porto Príncipe, é o primeiro disponível no País e foi construído pelo governo haitiano com o apoio financeiro da comunidade internacional. Financiado no valor de 2,6 milhões de dólares americanos, o centro tem capacidade para processar 500 metros cúbicos de resíduos líquidos por dia, o equivalente a resíduos produzidos por 500 mil pessoas diariamente.
Mais participação
As crianças estudam, em sua maioria, em escolas particulares, mesmo vivendo em acampamentos. FOTOS: ERMANNO ALLEGRI
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Um Plano de Contingência Nacional e 10 planos departamentais - um para cada departamento - foram desenvolvidos para lidarem com possíveis desastres naturais. Centenas de milhares de haitianos, afirma Nigel Fisher, encontraram emprego através de programas intensivos de mão de obra, trabalho e investimentos iniciais na economia, que começaram a aumentar a oferta de emprego e a produtividade nacional. A porta-voz do OCHA, Emmanuelle Schneider, também não concorda com aqueles que dizem que nada foi feito no Haiti por dois anos. “É um mito dizer que nada foi feito como parte da reconstrução”, ela responde, citando a construção de uma estação de tratamento de águas residuais em Morne Cabri; o lançamento dos trabalhos de construção de um parque industrial em Caracol, no departamento do Nordeste; e a proposta 16/6, de transferência de desabrigados. Esse projeto 16/6 pretende facilitar o regresso ao distrito de origem dos deslocados nos seis acampamentos que sediaram 5.239 famílias prioritárias - em torno de 30 mil pessoas - a partir dos 16 bairros, espalhados em Porto Príncipe e seus arredores. Vários locais públicos da área metropolitana
Para o diretor da Comissão Nacional Episcopal Justiça e Paz (JILAP), padre Jean Hansen, a mais importante lição tirada dessa reconstrução não são as realizações das ONG ou do governo, mas a vontade do povo haitiano para continuar a proteger seu passado, o que o povo já possuía. O setor informal, segundo ele, logo retomou suas atividades após o terremoto. “As pessoas têm conseguido fazer alguma coisa sozinhas”, diz ele. Elogiou o trabalho dos agentes humanitários, que forneceram aos sobreviventes do terremoto água potável e alimentos imediatamente após o desastre. Não havendo a experiência de uma catástrofe de tal magnitude, padre Hansen disse que não há medida capaz de saber se o processo de reconstrução é lento ou não. Considerando a extensão dos danos do terremoto de 12 de janeiro de 2010, ninguém poderia esperar que o País se recuperasse totalmente em três anos, especialmente porque a maioria dos males que afligem o País data de antes do desastre. Mas, considerando-se as promessas feitas pela comunidade internacional, os haitianos têm muitas razões para sonhar com um Haiti melhor, em um futuro bem próximo. Mais de 24 meses depois da catástrofe, os resultados da reconstrução do País são tímidos, mesmo que as ONG se deem por satisfeitas com o trabalho feito em nível humanitário. O mais perturbador de tudo isso é a falta da visão haitiana na reconstrução.
Depois da catástrofe, como estamos?
Cooperação para salvar vidas Por Benedito Teixeira Cooperação é a palavra que move a Brigada Médica Cubana no Haiti, há, aproximadamente, 13 anos, desde que o primeiro grupo de 100 médicos chegou ao País, devastado pelo furacão George, em 1998. O então presidente René Preval, aproveitando a retomada das relações diplomáticas com o país vizinho, rompidas logo após a revolução liderada por Fidel Castro, em 1959, e retomada no governo de Jean-Bertrand Aristide, eleito democraticamente em 1991, pediu ajuda e foi prontamente atendido. De lá pra cá, a ação de solidariedade cubana com o povo haitiano na área da saúde tem sido ininterrupta, como fez questão de assinalar, em entrevista à Adital, o chefe da Brigada Médica Cubana no Haiti, Lorenzo Somarriba López. O mais paradoxal é que o Haiti foi um dos primeiros países a romper relações diplomáticas com Cuba, logo depois da vitória da revolução comunista, que tirou Fulgêncio Batista do poder e rompeu relações com os Estados Unidos. O Haiti, vizinho dos novos comunistas, vivia o auge da ditadura dos Duvalier, que entregou o País ao capitalismo estadunidense. Apesar dos conflitos políticos, das intervenções estrangeiras, de outros tipos de catástrofes naturais, a ajuda se mantém. Por quê? López responde: porque Cuba tem respeitado os princípios do povo haitiano. “O Haiti é dos haitianos. Cuba acompanha o País com programas iniciados como ajuda humanitária, mas que logo se transformaram em programas de cooperação, duas coisas bem diferentes”, afirma o médico. Segundo ele, a ajuda humanitária é caracterizada por períodos curtos ou, como ele explica: “eu te ajudo e vou embora, o que se passa depois é um problema teu”. Mas Cuba preferiu fazer diferente e optou por um programa de cooperação. Para López, o que mais distingue esse programa não é a presença de Cuba no Haiti, mas a formação de recursos humanos,
tendo em vista que o governo cubano acredita que, para que um programa de cooperação seja sustentável, é preciso formar pessoas. “Você pode vir aqui, dar capital ao Haiti para semear arroz, mas é necessário formar engenheiros agrônomos, técnicos em agronomia, especialistas sanitários. Cuba pode vir aqui e dar atendimento médico, fundar instituições, mas se não formar haitianos, não há sustentabilidade”, explica. Na área da saúde, o governo cubano já conseguiu formar 1.747 médicos haitianos e, atualmente, tem mais de 300 estudantes de Medicina em Cuba, muitos sendo formados como especialistas. O problema é que nem todos permanecem trabalhando no sistema de saúde haitiano. “Países ricos os captam porque são talentosos, dão a eles uma bolsa e, se tem um bom rendimento, oferecem-lhes outros cursos, fazendo com que fiquem fora do País”, lamenta. Ele conta que, uma vez, alguém o perguntou se os médicos haitianos formados por Cuba têm valor para o Haiti. “Não gostei da pergunta. Sugeri que perguntasse aos canadenses, aos espanhóis, aos franceses, aos estadunidenses, que os levam embora, se eles servem ou não. Devem servir porque, senão, eles não levariam”, afirma de maneira taxativa.
Saúde onde não havia nada Lorenzo Somarriba López apresentou as iniciativas do Governo de Cuba no Haiti, por meio de seus médicos, ao longo dos últimos 13 anos. Logo depois da passagem do furacão George, os primeiros 100 médicos cubanos que chegaram ao Haiti, começaram a ir a lugares onde nunca havia chegado atendimento em saúde, “por terra, por mar ou por ar”. São lugares difíceis de chegar, mas eles colocaram o equipamento nas costas e foram aonde poderiam ser úteis. Lá, os cubanos passaram a viver na casa dos haitianos e começaram a ensinar à população medidas de higiene, de prevenção de doenças. Prestaram atendimento médico
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Lorenzo Somarriba López é o chefe da Brigada Médica Cubana no Haiti. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
debaixo de uma mangueira. Na noite seguinte, choveu muito e tudo foi inundado. “Queríamos sair da cidade, mas a população bloqueou as saídas. Um magistrado abriu uma casa que era da família Duvalier, e lá nos instalamos provisoriamente, adequamos a casa para ser um centro de saúde e até hoje os cubanos estão trabalhando lá”.
O milagre da parceria Lorenzo López faz questão de salientar que Cuba trabalha muito por meio do que ele chama “triangulação de cooperação”. “Cuba é um país pobre, mas tem recursos humanos, é o nosso forte”, ressaltou, mostrando a imagem de um hospital norueguês, em Gonaives, onde trabalham basicamente médicos cubanos. “Os noruegueses têm muito dinheiro, mas é difícil que seus médicos venham trabalhar aqui. Eles montaram o hospital e os cubanos trabalham”. O médico observa que muitos haitianos que estão no último ano de medicina retornam ao seu país para terminarem
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e distribuíram, gratuitamente, remédios. Essas primeiras comunidades forneceram o primeiro grupo de 132 jovens educados em espanhol e que foram estudar Medicina em Cuba. Foram graduados no ensino pré-médico, fizeram exames de competência, nivelação, para conseguirem entrar no ensino de Medicina já com algum conhecimento. “Porque em Medicina é preciso saber matemática, química. Por exemplo, um bioestatístico é um homem com potenciais em matemática, faz todas as projeções, prognósticos, e é parte de sua formação como médico”, conta López. Outro ponto de destaque, apontado pelo médico, para mostrar que Cuba tratou de ir além do viés assistencialista é que houve um esforço para que as ações tivessem qualificação e enfoque científico. Todos os anos, realizam rodadas científicas com a participação de cubanos e haitianos, totalizando cerca de 150 delegados. Os trabalhos são publicados em revistas, livros e os conhecimentos adquiridos são transmitidos entre os médicos. O segundo passo da ação cubana, depois da ação humanitária por causa do furacão George, foi a prestação de atendimento médico secundário nos hospitais departamentais haitianos. Para esses estabelecimentos, Cuba enviou cirurgiões, radiologistas, anestesistas, pediatras, obstetras, intensivistas, entre outros especialistas. Apesar das conquistas visíveis na apresentação de resultados, López se mostra, em alguns momentos, um pouco decepcionado. A imagem de um prédio abandonado, em ruínas, era uma faculdade criada por Aristide para a formação de médicos. Depois do golpe de Estado, em 2004, foi fechada e se transformou numa prisão. Por outro lado, outros fatos animam ainda mais o médico. A Brigada vem se tornando, a cada dia, mais parte da vida do povo haitiano. Tanto que, conforme nos conta López, após o terremoto de 2010, muita gente afetada se dirigiu para bairros onde viviam os cubanos, mesmo que lá não houvesse unidades de saúde, em busca de atendimento médico. Foi necessário improvisar unidades para começar as cirurgias. Já em 2006, a Brigada Médica Cubana estava presente em 102 das 140 comunas que fazem a divisão político-administrativa do Haiti. Outra história contada por López aconteceu na localidade de Carrefour, que fica sete quilômetros a oeste do centro de Porto Príncipe, onde os médicos montaram um hospital de campanha
Depois da catástrofe, como estamos? os estudos como professores e também para treinarem o tratamento de patologias que aparecem no seu povo. “O médico haitiano, em Cuba, aprende a tratar sarampo em livro, aqui ele aprende a agir com os próprios pacientes. Há ainda muitos acidentes vasculares encefálicos por causa de hipertensão e diabetes mal tratadas. Ou seja, o País se converte num cenário prático para que terminem os estudos”, destaca.
Operação Milagre O programa de cooperação entre Cuba e Venezuela, chamado Operação Milagro, é um dos mais destacados. Criado no fim de 2005, o programa visa a eliminar a cegueira no continente latinoamericano. A principal causa de cegueira na população pobre é a catarata. López conta que, primeiro, o programa começou a operar em Cuba para pessoas mais necessitadas e, logo depois, foi levado ao Haiti, onde se criou o primeiro centro oftalmológico no Caribe. As cirurgias são feitas, gratuitamente, por pessoal altamente qualificado. Além dos centros fixos, há operações itinerantes. O resultado é que mais de 54 mil haitianos já foram operados. “Dominicanos vêm para cá para serem operados. Haitianos que vivem nos Estados Unidos também vêm para cá só para serem operados. São pessoas que não têm condições de pagar essa operação nos Estados Unidos. Lá, cada cidadão é responsável por seu atendimento em saúde. Quem não é cidadão não tem direito a nada”, observa. A parceria com a Venezuela também gerou outros projetos na área da saúde. Um deles é a montagem de hospitais comunitários de referência nas comunas. Inicialmente, foram 10, que começaram a ser construídos em 2008. Em dezembro de 2009, cinco já estavam concluídos em locais onde não havia nada para atender à população. Os demais seguiram em processo de construção, mas o terremoto de 12 de janeiro de 2010 paralisou o projeto. López conta que o primeiro hospital de campanha do Haiti foi montado pelos cubanos.
Salvar vidas em primeiro lugar Logo depois do sismo, o governo cubano enviou uma brigada de médicos e paramédicos especializados em atendimento em catástrofes naturais e epidemias, a Brigada Henry Reeve. López conta que o grupo, quando da passagem do furacão Katrina pelo
sul dos Estados Unidos, foi proibido de prestar ajuda ao povo estadunidense pelo então presidente George W. Bush, o filho. “Ele não admitiu que 500 cubanos fossem auxiliar àquela população majoritariamente negra que vive no sul dos Estados Unidos. Essa brigada já prestou atendimento a muitas catástrofes no mundo. Por exemplo, esteve no terremoto do Paquistão”, enfatiza o médico. No mesmo dia 12 de janeiro, os cubanos começaram a montar seis novos hospitais de campanha, climatizados, com salas de cirurgia, terapia intensiva, medicamentos e pessoal treinado em todas as especialidades. Os cubanos também passaram a trabalhar nos hospitais haitianos, mesmo sendo privados, pois “era um momento de salvar vidas”. Com um discurso marcado por total referência ao expresidente cubano, Fidel Castro, o chefe do grupo médico destacou a iniciativa do seu governo de aproveitar os jovens graduados na Escola Latino-Americana de Medicina, a ELAM, para atuar depois do terremoto no Haiti. A ELAM foi inaugurada por ocasião da Cúpula Ibero-Americana, em 1999, com o objetivo de formar médicos de países pobres da América Latina. Primeiramente, eram apenas jovens latino-americanos, mas depois foram incluídos africanos e até estadunidenses. López informa que a Brigada Cubana conta, atualmente, com dois médicos estadunidenses, mas já foram mais, no auge da catástrofe. No dia do sismo, 331 profissionais enviados por Cuba estavam em solo haitiano, nenhum morreu, e dois apenas tiveram ferimentos leves. Entre eles, havia jovens de 26 países. No dia 8 de março de 2010, a Brigada chegou a ter 1.712 colaboradores. Segundo relata o médico chefe, criou-se também um grupo com 56 médicos especialistas contra epidemias. Houve ainda o que ele chama de “Brigada Artística Cubana”. Artistas famosos de Cuba se instalaram no Haiti para trabalharem com crianças órfãs do terremoto, também vivendo em barracas. A etapa da emergência do terremoto durou de 12 de janeiro a 30 de abril de 2010. Os cubanos atenderam quase 350 mil pacientes nesse período; foram feitas mais de 8 mil cirurgias; mais de mil partos; 421 cesáreas; e mais de 70 mil pacientes passaram a ser atendidos em serviços de reabilitação. Inclusive os amputados passaram a ter direito a próteses, que são produzidas em Cuba. Hoje o projeto é realizado em cooperação com Brasil
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Além do atendimento, o governo cubano passou a atuar também em projetos de infraestrutura em saúde. FOTO: BRIGADA MÉDICA CUBANA
em 2010 em Santo Domingo, uniram-se outros países ao projeto, como o Brasil, Noruega, Namíbia e Austrália. O projeto também prevê a montagem de 30 clínicas de reabilitação integral. Logo após o sismo, os médicos cubanos montaram cinco clínicas em Porto Príncipe, mas havia pessoas deslocadas por todo o País. Então, a saída foi ampliar para 30, que estão funcionando. Já foram reabilitados 27 mil pacientes. Outra ação de destaque da Brigada Cubana é a criação de uma rede de vigilância epidemiológica. Foi por meio dessa rede que os cientistas cubanos descobriram que havia cólera no Haiti, no dia 15 de outubro de 2010, em Mirebalais, cerca de 60 km a nordeste de Porto Príncipe.
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e Venezuela. “Aqui, a Brigada trabalha com todos que querem trabalhar junto, sem distinção, não politizamos a cooperação para que a população não tenha prejuízo”, afirma o médico. Ele destaca que, para além do atendimento, o governo cubano passou a atuar também em projetos de infraestrutura em saúde. Em cooperação com outros países, iniciou a construção de 30 hospitais em toda a extensão do País. Desses, 17 já estão concluídos, inclusive utilizando a estrutura existente de pequenas instituições, ampliando-as. Treze pequenos centros de saúde também já foram construídos. Esse programa foi discutido e aprovado, juntamente com a Venezuela e os países da Alba, em Caracas. Durante a Cúpula Mundial para o Haiti, que aconteceu
Depois da catástrofe, como estamos? A fatalidade do cólera No dia 18 de outubro de 2010, o laboratório haitiano analisou o informe de Cuba, detectando a presença do cólera. Seis dias depois, o presidente Préval confirmou ao mundo que no Haiti havia a doença. “Isso é para aplaudir. Na maioria das vezes, não se confirma tão rápido uma epidemia num país, pois é preciso controlar os efeitos negativos que pode ter, mas o Haiti não tinha nada a perder. Retardar o anúncio poderia prejudicar ainda mais”, observa López. Segundo ele, depois da descoberta, os cubanos capacitaram-se rapidamente em tratamento do cólera, e começaram a montar unidades para atender aos casos. O pessoal da península e do nordeste do País, que não tinham casos de cólera, foram levados para reforçar as unidades do centro-norte. Com a chegada do furacão Thomaz, o Haiti foi inundado e houve o que todos temiam, a disseminação da doença no País. O cólera se converteu em um problema de segurança nacional e Cuba reenviou o pessoal especializado em atendimento para catástrofes e epidemias. A subsecretária de Ajuda Humanitária da ONU, Valerie Amos, na ocasião, disse à comunidade mundial que o País necessitava de 350 médicos e enfermeiros. Assim, a Brigada foi reforçada por um contingente de 350 médicos, enfermeiros e outros profissionais. Naquele momento, estavam no Haiti mais de 1.200 profissionais de saúde cubanos. “Chegamos a ter 1.349 colaboradores, sendo 134 jovens de 22 países, para combater o cólera. Eles vieram da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Guiné-Bissau, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Panamá, Peru, República Dominicana, República Árabe, Mali, Nigéria, Brasil, Uruguai e República Democrática do Congo”, salienta López. A Brigada montou 44 Unidades de Tratamento do Cólera (UTC) e 34 Centros de Tratamento do Cólera (CTC), espalhados por várias regiões do País. A equipe médica cubana chegou a atender 77.354 casos de cólera até abril de 2012. O Ministério da Saúde registrou mais de meio milhão de casos, com uma letalidade de 1,36 casos por mil habitantes. A letalidade na Brigada, segundo López, é quatro vezes menor. Além das unidades de tratamento fixas, foram criados grupos de pesquisa que buscavam casos em todas as áreas
do País. “O Haiti tem acessos muito difíceis. É montanhoso, super povoado, sem unidades de saúde em áreas rurais, mas o cólera chegava a todas elas e as pessoas podiam morrer sem assistência. Então, tomamos a decisão, proposta por nosso comandante em chefe [Fidel Castro], de criar os grupos de pesquisa”, relembra López. Eram grupos de cinco a seis pessoas, com um chefe e um médico haitianos, um médico da Brigada Cubana, uma enfermeira, além de mochilas, alimentos para sobrevivência e medicamentos. Segundo ele, toda a geografia do País foi explorada. Esses grupos também ensinavam as pessoas a como prevenir a doença.
Até que o Haiti precise Há ainda muitos outros obstáculos que a Brigada Cubana teve que superar no Haiti. Por causa do terremoto, sobraram poucos armazéns de mantimentos no País. Foi preciso construir uma base de armazéns para abastecer as unidades do programa cubano. “E como todas essas unidades têm muitos equipamentos médicos, criamos um laboratório de eletromedicina, para fazer a manutenção. Agora, Cuba tem 30 engenheiros biomédicos trabalhando no Haiti, porque o País só dispunha de um engenheiro biomédico. Mas estamos formando 31 jovens haitianos como engenheiros biomédicos, aqui mesmo no Haiti”. O balanço das atividades da Brigada Médica Cubana no Haiti, apresentado por Lorenzo Somarriba López, chega a ser surpreendente. Em mais de 13 anos no País, foram realizados 18 milhões de atendimentos médicos; mais de 138 mil partos; mais de 320 mil intervenções cirúrgicas; cerca de 55 mil haitianos foram operados da visão. “Salvamos 312 mil vidas humanas, cifra muito similar às vidas perdidas no terremoto”. “Você me perguntou até quando Cuba vai ficar no Haiti. Bom, acho que já está respondido. O presidente de Cuba, general Raúl Castro, assegura que a colaboração cubana é um modesto esforço, e permanecerá no Haiti o tempo que for necessário, se o governo desse país assim o quiser. Para Cuba, um país ferreamente bloqueado, não sobram recursos. Lá falta de tudo, mas estamos dispostos a compartilhar nossa pobreza com quem tem menos e, em primeiro lugar, hoje, com quem mais necessita no continente”, finalizou o chefe da Brigada.
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O Haiti após o sismo, qual a reconstrução? Por Irdèle Lubin
Professora Phd da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade do Estado do Haiti. Doutora em Serviço Social pela Universidade Laval. Seu campo de pesquisa é bem estar das crianças de rua no Haiti. FOTO: JAMES ALEXIS
1. A discussão reconstrução/refundação Além do 1,5 milhão de desabrigados, o terremoto de 12 de janeiro de 2010 provocou o desabamento da grande maioria dos edifícios que abrigavam serviços públicos: faculdades, hospitais, ministérios, agências, campi da universidade pública, o prédio da Receita Federal, o tribunal, o parlamento, os edifícios dos ministérios, o Palácio Nacional. Todos os setores da vida nacional foram afetados: economia, educação, saúde, lazer, cultura etc... Pode-se entender
que a questão do realojamento é central desde o terremoto. O desaparecimento físico da infraestrutura pública enfraqueceu ainda mais o Estado. Isso dá o que pensar, ou pelo menos deve remeter à reflexão. Fala-se de reconstrução ou de refundação. Alguns usam o primeiro conceito, outros preferem o último. Alguns os utilizam indistintamente, outros enxergam ainda um nível de reconstrução e um nível de refundação. É importante notar, de imediato, que não se trata de meros sinônimos. Com efeito, o conceito de reconstrução pode mais facilmente ser entendido como o ato de construir novamente aquilo que desabou ou fissurou com o terremoto, com o objetivo de realojar as pessoas e os serviços o mais rapidamente possível. Pode, também, significar refazer o que falta após o terremoto. Pode ser tentador olhar apenas o lado técnico e material da construção, pois o realojamento é importante e urgente. Reconstrução pode significar a necessidade de permitir o estabelecimento de zoneamento para a construção de casas, infraestrutura de todos os tipos e questionar as práticas de construção em andamento.
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Terremoto, emergência e reconstrução são temas recorrentes nas conversas dos haitianos desde o sismo de 12 de janeiro de 2010. O classificamo-lo como terrível porque o terremoto, de acordo com fontes oficiais, fez mais de 300 mil mortos e muitos mutilados, sem falar em um milhão e quinhentos mil desabrigados e causou grandes danos materiais. Mais de dois anos depois, onde estamos? Fala-se muito de reconstrução. O que é isso? O que se passa? Para onde vamos? Este texto tem como objetivo fornecer algumas respostas para estas perguntas.
Depois da catástrofe, como estamos? É importante também falar de refundação De fato, a refundação convida-nos a rever as bases sociais para melhor empreender a reconstrução necessária. Aqui, nos referimos às questões que envolvem a sociedade haitiana. A refundação convida-nos a reconsiderarmos as relações sociais a fim de analisarmos o tipo de sociedade que queremos. Também nos convida a observarmos os processos históricos que levaram à pobreza degradante deste país, a seguirmos o caminho e as trajetórias dos estratos sociais, para compreendermos as razões da fragilidade da maioria das construções. A refundação convida-nos a olhar os novos projetos e serviços por múltiplos padrões que existem em nossa sociedade (urbana/ rural, pitit andan [criança dentro de casa]/ pitit deyò[criança fora de casa, de rua], bon lekòl [boas escolas] / lekòl bòlèt [escolas superlotadas], cidade/favela, tèt legliz / ti legliz [grande proprietário / trabalhador rural meeiro] etc ...). A refundação convida-nos a repensar a situação vivida por crianças e jovens (crianças em casa, crianças e jovens em situação de rua, crianças e jovens que vivem da prostituição etc.). Costuma-se dizer que as crianças são o futuro do País. A refundação convida-nos a dizer precisamente como e em qual lugar queremos ver nossas crianças crescerem, que tipo de país queremos deixar para os próximos 25 a 30 anos, como e em que sentido nós, os haitianos, queremos ver o País evoluir. As construções propriamente ditas, “no duro”, em lugares previstos para isso e com a infraestrutura necessária, são importantes para permitir que a população ocupe uma casa decente e viva como seres humanos plenos. Para fazer isso, devemos levar em conta a importância da vida de maneira geral e da vida em comunidade, a intensidade das relações sociais, o modo de se relacionar com o espaço e com a terra, e o nível de vida em termos de acesso aos serviços. Ao mesmo tempo, devemos nos perguntar se continuaremos a enfrentar engarrafamentos intermináveis para levar nossos filhos à escola? Devemos constantemente pensar numa lógica de atendimento de emergência no exterior, ou, no caso de pessoas pobres, que são a maioria no País, morrer por falta de cuidados? Devemos continuar a andar quilômetros para buscar água limpa apresentada como potável ou chegar a um centro de saúde dirigido por um enfermeiro ou um paramédico? Devemos continuar a nos dirigir para a capital para todos os serviços, para as necessidades básicas?
A refundação nos convida a olharmos para além de aspectos técnicos e materiais. Olharmos aspectos dos modos de relações existentes na sociedade, as concepções sociais que rejeitam, para grande maioria da população, o duplo padrão dos serviços. O terremoto de 12 de janeiro de 2010 nos dá a oportunidade de revermos as bases da sociedade haitiana.
2. O trabalho de reconstrução Alguns antecedentes Falar de refundação, no sentido definido acima, leva-nos a analisarmos a situação que conduziu aos estragos causados pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010. As situações catastróficas de hoje têm suas raízes no passado. O terremoto nos deu uma sacudida. Nós acordamos diante das péssimas práticas discriminatórias para a grande maioria da população. Isto levanos a olhar, ao mesmo tempo, as práticas de construção de baixa qualidade. Notemos imediatamente que estas são o resultado da nossa adaptação aos contextos políticos e sociais vividos no País. Na verdade, é preciso lembrar que o Haiti foi, durante vários séculos, dominado, explorado e saqueado sucessivamente pela Espanha, pela França, pelos Estados Unidos... Os habitantes da ilha fizeram o que puderam, desde então, para escaparem da escravidão e da exploração, a fim de protegerem o País. Eles se refugiaram em cavernas ou nas montanhas. Foi o caso das tribos dos tainos, que fugiram das aldeias para se refugiarem nas cavernas quando Colombo e seus companheiros quiseram reduzir os índios à escravidão; foi o caso dos escravos vindos da África, que fugiram das plantações para se refugiarem nas montanhas e em cavernas; foi também o caso dos “novos libertos”, depois de 1804, que se refugiaram nas montanhas para evitarem os ofícios nas “casas grandes” e o retorno a uma escravidão velada. Viver em cavernas ou nas montanhas exigiu uma adaptação. Após a Independência, a refundação da sociedade era necessária. Obviamente, os grupos envolvidos não enxergavam a situação pelo mesmo ângulo. Os “antigos libertos” queriam a manutenção de um sistema que lhes era vantajoso, mas os “novos libertos” viam as coisas de outra maneira. Este grupo se protegeu da forma que pôde na tentativa de manter os antigos libertos em posição de inferioridade, embora tenham sido, por um tempo, a camada mais fraca da sociedade, que se reproduziu nas condições mais difíceis.
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Haiti por si tecidos impróprios ao ambiente etc.) oriundos de países que buscam lixeiras para despejar seus resíduos. A situação é muito crítica. O enfraquecimento do Estado não possibilita um mínimo de controle. A população está abandonada à sua própria sorte, em todas as áreas, empregando o seu jeitinho sem limites. É nestas condições que nos surpreende o terremoto de 12 de janeiro de 2010. A escala da destruição Após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, pessoas, tomadas pelo pânico, ocuparam praças públicas, terrenos baldios, espaços públicos e privados. Elas, assim, são classificadas como refugiados. Vivem em tendas. A grande maioria da população de refugiados do 12 de janeiro definha em áreas insalubres onde o estupro e o roubo tentam expulsá-los. Poucos meses depois, em outubro de 2010, o cólera veio acrescentar seu contributo à aflição e à desolação do povo haitiano. A pobreza e a miséria estavam presentes, mas até então não havia cólera. A presença de Minustah marcou definitivamente o País com a introdução do cólera. Não podemos mais esconder ou fingir ignorar os impactos negativos da colonização das superpotências sobre o Haiti. Não podemos mais hesitar em concluir que a pobreza degradante é o resultado de um longo processo de pilhagem e espoliação, imposto pelas potências que o colonizaram e ainda hoje o colonizam, através de estruturas ditas de reconstrução ou de vigilância. O terremoto nos deixa com mais órfãos, mais vítimas de violência e estupro, mais doentes mentais, mais jovens sem esperança, em suma, com mais males. A refundação se faz urgente. Conseguiremos fazer esta frente comum para a refundação do País? O que acontece desde o terremoto não oferece perspectivas interessantes nesse sentido. As propostas de reconstrução Imediatamente após o terremoto, certas estruturas foram estabelecidas a fim de ‘facilitar’ a reconstrução. Entre essas estruturas, podemos citar a Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti (CIRH). Ela é copresidida por William Jefferson Clinton (expresidente dos EUA) e Max Jean Bellerive, então primeiro-ministro do País. Imediatamente, lembremos que se trata do mesmo Bill Clinton que reconheceu publicamente ter destruído a economia haitiana por meio das decisões tomadas durante seu mandato como presidente dos Estados Unidos. Camponeses haitianos ainda sentem o gosto amargo das consequências das decisões de Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos. Esta comissão foi encarregada de:
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Diante destas duas forças, constitui-se outro grupo social mais forte, com meios cada vez maiores, que buscaram alianças com potências estrangeiras em detrimento das outras duas camadas mais frágeis da sociedade. Compreensivelmente, os governos frequentemente apoiaram os exploradores. Aliás, para alcançar o poder, políticos locais e governos estrangeiros fazem promessas mútuas, sempre em detrimento dos mais fracos. Foi a partir dessas alianças e relações que nasceu a burguesia local. Frente a tudo isso, entendemos que a moradia assume muitas formas, com as preocupações e os recursos disponíveis. Entendemos também que o estilo de habitação varia de acordo com o meio. Muitos eventos transformam o setor habitacional, no País. A chegada de fuzileiros navais dos EUA, por exemplo, deixou a sua pegada na paisagem. Vários governos ditatoriais deixaram igualmente a sua. Por exemplo, sabemos que o uso de concreto (armado, bem armado ou mal armado) nos edifícios deu-se após os incêndios dos casebres de pessoas vivendo em bairros populares. Tais áreas foram alvo de muitos políticos por um longo período de tempo. Para evitar constituírem-se em eternas vítimas das ações dos políticos, as pessoas recorreram ao uso de concreto na construção de suas casas. Outro elemento importante é a falta de planejamento para explicar o aumento ou mutações no uso da terra pela população. Por exemplo, o governo dos Duvalier não pensou em abrigos para a acolhida da massa de pessoas que trazia para as cidades em determinados períodos, em apoio ao regime. Não pensou tampouco nas necessidades habitacionais da mão de obra necessária ao funcionamento das ‘cooperativas’ que vieram se estabelecer em Porto Príncipe, a partir dos anos 70. Era necessário espaço para todas essas pessoas. Mas nada foi planejado para acolhê-las. Assim, a migração interna combinada com um aumento da população no local fazem pressão sobre os serviços existentes. Uma parte significativa da população desses grupos instalou-se gradualmente em áreas marginais impróprias para construção, o que resultou, finalmente, nessas favelas monstruosas e insalubres em várias áreas urbanas do Haiti. A cidade de Porto Príncipe expandiu-se e abarrotou-se ao ponto de tornar-se uma megalópole com serviços insuficientes. A falta de controle por parte dos responsáveis pelos poderes públicos é evidente nesta capital, muitas vezes cheia de resíduos (computadores antigos, televisores velhos, carcaças de carros,
Depois da catástrofe, como estamos? • Facilitar investimentos e esforços de reconstrução do País; • Garantir que a execução das prioridades, planos e projetos sejam fiéis ao Plano Nacional de Ação para a Recuperação Nacional no Haiti, e sigam a sequência conveniente de reconstrução para criar um Haiti melhor. Dois anos mais tarde, qual é o balanço da ajuda e da reconstrução? Segundo as informações do Gabinete do enviado especial para o Haiti, em março de 2012, relatado por Ramachandran, V e Walz, J (2012, 12). “As agências humanitárias, ONG, empresas privadas e outros prestadores de serviços não estatais receberam 99 por cento da ajuda humanitária, enquanto que menos de um por cento foi destinado ao governo do Haiti” Aproveitemos para destacar que a CIRH aprova, sem dúvida, projetos interessantes, mas não se fundamenta em um plano abrangente, nem em uma visão global. Além disso, não se pode sequer antecipar que algumas ideias ou projetos do passado, que são o orgulho do País, se reproduzirão nos planos aprovados. Há riscos de que a memória de um país inteiro desapareça em favor dos interesses capitalistas que dizem pensar o desenvolvimento sem considerar algumas riquezas (históricas, culturais, ambientais...) . O texto sobre o Parque Industrial de Caracol (Doucet, RC., 2012) muito revela. Talvez, trate-se de uma questão estratégica. Pensa-se em eliminar um povo fazendo desaparecer suas lembranças e tudo o que o caracteriza. A orientação das intervenções A reconstrução sofre diversas intervenções desde 12 de janeiro de 2010. Algumas organizações trabalham na coleta de entulho no âmbito do programa “Cash for Work” (trabalho em troca de remuneração), outras demolem casas muito fissuradas ou em parte desabadas, outro grupo faz reparos em casas pouco atingidas ou constroem abrigos provisórios. O conjunto dessas ações se faz sem qualquer coordenação de responsáveis do Estado. Conserta-se onde não se devia nem ter construído. Constrói-se ou reconstrói-se em espaços onde não há condições de construção. Leva-se serviço para lugares onde as pessoas não deveriam estar. Reproduzem-se as mesmas circunstâncias de risco de antes de 12 de janeiro. Intervenções são feitas nas infraestruturas sociais e de serviços comunitários (água, vias, drenagem, saneamento etc.). O caso do Projeto de Desenvolvimento Participativo (Prodep) é digno de nota. Como é explicado em sua publicação “Informações Prodep, 2012”: “Prodep e Prodepur preparam as comunidades
rurais mais pobres e algumas comunidades urbanas vulneráveis para promoverem, elas mesmas, o desenvolvimento de suas áreas, apoiando-as tecnicamente e fazendo-as gerenciarem diretamente os recursos públicos destinados a seus projetos de desenvolvimento local”. A Organização Comunitária de Base (OCB) permanece como gestora do sistema, o Escritório Técnico de Execução (BTC) assegura o cumprimento das normas e padrões, as OCB recrutam um coordenador técnico, os dirigentes (das OCB) fornecem supervisão..... e o trabalho do supervisor será avaliado pelos beneficiários (Informações Prodep 2012, 5). Esse projeto até parece interessante em termos de participação e de responsabilidade cívica. Mas pode-se perguntar: Quem vai planejar de acordo com a evolução da população? Qual é o papel do Estado central, que deve, entre outras coisas, prever, avaliar, estabelecer prioridades, planejar e executar planos? Quem irá determinar o valor dos tributos a pagar? Quem recolherá esses tributos? A gestão participativa significa a substituição do Estado? A implementação do Prodep não seria uma forma de eliminar o Estado? Quem tem ou pode ter esse interesse? Se o Estado não dirige, não controla sua população, não recolhe tributos, como pode ele intervir? Planeja-se outra desgraça nacional por mais tempo, após as de 1915, 1994 e 2004? A presença de tropas estrangeiras para “reestabelecer a ordem”, que ordem? Ou querem permanecer indefinidamente? Apesar do aspecto participativo de que se podem revestir as estruturas Prodep ou Coprodep, é claro que a generalização de tais estruturas, da maneira que foram projetadas, é muito perigosa para a sustentabilidade do Estado. Além disso, notese que as OCB são grupos de pessoas que foram incentivadas pelos organizadores a criarem estruturas para participarem do Coprodep. As antigas organizações de base não são aceitas no Prodep. Em outras palavras, as organizações que participaram de várias lutas populares ao longo dos últimos 20 anos não podem fazer parte dessa estrutura. As organizações de mulheres que encabeçaram o movimento de protesto no País não tomam parte e os seus nomes não são mencionados nessas estruturas. Seria estratégico afastar essas antigas organizações para estimular novas composições sem antecedentes organizacionais a montarem uma estrutura que parece independente dos responsáveis do Estado? Ainda no âmbito da reconstrução, podem-se notar as intervenções na formação de mão de obra qualificada para os trabalhos de
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Haiti por si coleta de lixo, parque e escola para as crianças etc..). As casas são construídas de madeira com telhados de chapa. O autor referese a uma moradia construída depois de vários desastres naturais desde 2008 e depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010. Em outro artigo, Joseph (2012) relata de “dois cômodos para dormir”, enquanto, destaca que “mais de 60% dos domicílios têm um tamanho que comporta de 4 a 6, 7 a 9, 10 ou mais pessoas”.
3. Em conclusão O terremoto de 12 de janeiro de 2010 emocionou e fez chorar muita gente. A solidariedade local permitiu que um grande número de pessoas permanecesse vivo. A solidariedade internacional provou que amigos, daqui e de outros lugares, pensaram nos haitianos. Mas os interesses das elites e as questões capitalistas, como sempre, estão presentes para pilhar tudo o que pertence à grande massa. A miséria foi se esconder nas áreas impróprias para construção. A roda da miséria continua a girar. A refundação não está na cabeça dos tomadores de decisão. A reconstrução não trouxe resultados animadores. Bolsos continuam a se encher, os pobres continuam a ficar mais pobres. Deve ser dada uma chance ao Haiti para uma saída do túnel da miséria. Deve-se parar de apoiar corruptos. Deve-se parar de propor modelos para a nova geração. Não é suficiente crer ou dizer “Ayiti pap peri”, deve-se apenas dar uma chance a este país, pensando em todos os seus filhos e em todas as suas filhas.
4. Algumas referências Doucet, R.C. (2012) : Parc industriel de Caracol : pour protéger un patrimoine naturel et culturel en danger. In Observatoire de la reconstruction num.2 pp8-11 Élie, J.R. (2012) : Reconstruction ou refondation? À paraître Élie, J.R. (2012) : L’habitat en Haïti : évolution, carences et risques. À paraître dans la revue CEPODE num3) Joseph, F (2012) : Inégalités sociales face au logement. (à paraître dans la revue CEPODE num3) Louis, I (2012) : la relocalisation des familles victimes des catastrophes naturelles à Port-au-Prince. Boletín Científico Sapiens Research, Vol. 2(2)-2012. PRODEP INFO : (2011) num7 juillet-aout 2011. Vijaya R. et Walz J. (2012): HAÏTI: Où est allé tout l’argent? Center for Global Development
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construção civil. Observam-se também estudos que se encontram em andamento para se avançar no planejamento de determinadas áreas (Centro de Porto Príncipe, Delmas 32, Carrefour-Feuilles, Fort National etc...), sob o lema “espas pam, katye pam, vil nou vle a”. Nesses espaços, nota-se, apesar de tudo, uma boa participação da comunidade. Mas a grande questão que permanece sem resposta é esta: sobre o terreno de quem os trabalhos vão se desenvolver? A questão da terra é uma questão espinhosa no Haiti. Além disso, um governo (o de Préval) declara de utilidade pública um espaço, um outro (o de Martelly) revoga a decisão. Em benefício de quem se trabalha? Quem protegerá os interesses das massas pobres e sem-terra nesses atos ditos de reconstrução? Paralelamente a tudo isso, os refugiados nos campos são forçados a deixarem os espaços ocupados desde o dia 12 de janeiro de 2010 (praças públicas, prédios públicos etc). Em alguns casos, os ocupantes desses espaços recebem 20 mil gourdes (cerca de 500 dólares) para pagarem uma casa de 10 mil gourdes e desenvolverem uma atividade com o restante. Estamos todos conscientes de que a moradia está se tornando cada vez mais rara, com a invasão das ONG e a quantidade de casas destruídas. Onde as pessoas que hoje vivem nos campos vão ser alojadas? De qualquer forma, elas não poderão buscar abrigo nas grandes favelas antigas de Porto Príncipe por causa da violência que as assola há meses. Elas não terão escolha a não ser continuarem a construir em espaços reservados ou em locais inadequados para a construção. Hoje, mais do que nunca, há preocupação com a situação de “Morne l’Hôpital”, uma área de reserva estratégica para toda a região metropolitana de Porto Príncipe, porém a multiplicação das construções era evidente desde logo após o terremoto. Deseja-se remover as pessoas sem planejamento. Podemos falar de reconstrução racional, em tais circunstâncias? Por outro lado, um número significativo de pessoas instalam suas tendas em espaços identificados como zonas eventualmente construtíveis (Titanyen, Bas du morne à Cabri etc.). Nesses espaços, não há serviço algum, nem planejamento. As pessoas fazem o possível com os meios disponíveis. Além disso, são propostos diversos projetos de construção, mas que tipo de construção? Em um artigo intitulado “A deslocalização de vítimas de desastres naturais” (Louis 2012, 3), o autor fala de casas de 18 m2 construídas para uma família de seis filhos, sem serviços (água, eletricidade
Capítuo 3 Por Phares Jerôme
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia
A fome e a desnutrição que atingem uma boa parte da população são consequências da falta de programações integradas, em grande escala, em relação à nutrição e à segurança alimentar. Os órgãos públicos encarregados desse setor sofrem para realizar o seu papel. “A insegurança alimentar, junto com a debilidade do poder de compra, com as insuficiências do setor produtivo e com a precariedade das fontes de renda, aumentam a vulnerabilidade das famílias em relação aos choques econômicos e sociais”, diz o PDNA. Os programas Aba grangou e Ti manman cheri, lançados pelo presidente Michel Martelly, não estão dando ainda os resultados esperados.
FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Apesar da debilidade do território agrícola haitiano, a agricultura representa aproximadamente 25% do PIB e 50% dos empregos. Em todo o País, enumeramse 85 mil hectares irrigados em um potencial de 150 mil. Segundo o PDNA (Post Disaster Needs Assessment / Avaliação de Necessidades Pós-Desastres), antes do sismo de 12 de janeiro de 2010, o Haiti já era um dos países das Américas mais atingidos pela desnutrição e pela fome. Apesar da ajuda internacional, cerca de 3,8 milhões de pessoas, ou 40% das famílias, viviam na miséria. Isso se traduz pela incapacidade de garantir o necessário para a alimentação básica. Desse número, 30% das crianças sofriam pela desnutrição crônica, o que representa, segundo os cálculos, um custo econômico de pelo menos 1,2 bilhão de dólares, ou 30% do PIB.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia A catástrofe de janeiro de 2010 não poupou o setor agrícola. Segundo o quadro apresentado no PDNA relativo ao referido setor, os destroços e os deslizamentos de terra destruíram os sistemas de irrigação que cobriam 3.500 ha, assim como os centros de estocagem e de beneficiamento nas zonas atingidas. As usinas de açúcar de Darbonne e os prédios administrativos e técnicos do Ministério da Agricultura também foram destruídos. E com isso, quase um terço das famílias perdeu o estoque da produção de sua subsistência, avaliado em 12 milhões de dólares. Ao todo, 600 mil pessoas abandonaram as zonas da catástrofe. Não há dúvida de que a tragédia agravou os problemas estruturais que o setor agrícola enfrenta e reduziu, ainda mais, a capacidade do governo de enfrentá-los. A incapacidade de resolver os problemas relacionados às necessidades alimentares, em quantidade e qualidade, atinge, particularmente e de forma inquietante, as mulheres grávidas, aquelas que amamentam e as crianças menores. Em alguns manuais escolares, fala-se que o Haiti é um país essencialmente agrícola. Considerando a situação atual do setor agrícola, alguns chegam a cogitar tirar essa frase dos livros de geografia, pois o País não consegue mais nutrir sua população. Já em 2007, segundo a Coordenação Nacional da Segurança Alimentar (CNSA), 52% da alimentação disponível no Haiti eram importados. No entanto, no passado, o Haiti era um país autossuficiente em matéria alimentar. “A economia do País se baseava na exportação de produtos alimentares agrícolas, como o café, o cacau, o açúcar. A produção desses produtos teve um declínio drástico durante os anos 80”, diz Chavannes Jean-Batiste, líder do Movimento Peasant Papaye (MPP), uma das mais importantes organizações camponesas do País. Fatores que contrariam o avanço da economia no Haiti são: a falta de investimento no setor, a crise política recorrente, e, além dessa instabilidade política, o empréstimo mal feito de recursos financeiros. No setor público, poucos recursos têm sido consagrados para reforçar a capacidade produtiva econômica nos últimos decênios. No setor privado, os recursos financeiros, através do crédito distribuído pelo sistema bancário, foram essencialmente
Os cerca de 10 milhões de habitantes do Haiti têm condições
concedidos para as atividades comerciais em detrimento dos setores produtivos, dentre os quais o da agricultura.
de se autossustentarem, como já aconteceu no passado, com a agricultura de subsistência. Na foto, ST-Naré Philefranp, porta-voz do Movimento de Camponenses Papaye (MPP), supervisiona um viveiro de legumes. FOTO: PHARES JERÔME
Problemas estruturais A ausência de crédito, a falta de investimento público, a concorrência desleal dos produtos estrangeiros são alguns dos problemas que o setor agrícola enfrenta. De um país autossuficiente há alguns decênios, o Haiti é hoje um país dependente em alimentação. Esses problemas existiam antes mesmo do sismo de 12 de janeiro de 2010. Com cerca de 10 milhões de habitantes, o Haiti constitui um grande mercado para seus vizinhos, entre os quais a República Dominicana. “As importações correspondiam a 48% da demanda global em 2001”, afirma o economista Frédéric Gérald Chéry, em sua obra “A Economia e seus fundamentos cognitivos no Haiti”, de 2008. Diz ele que a demanda de arroz no Haiti enriquece o camponês da Ásia ou o americano; a demanda de têxteis enriquece o operário chinês; e a de ovos, os fazendeiros dominicanos. Segundo os resultados da Enquete Nacional sobre a Segurança Alimentar, realizada pela CNSA, 80% do consumo nacional de produtos, como o arroz, os ovos e a carne de aves, são importados, bem como 65% de produtos derivados do leite. No entanto,
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O Haiti é um país constituído de 75% de montanhas e onde a cobertura florestal é atualmente de menos de 2%. Trata-se de um país em vias de desertificação acelerada. Na foto, parte da estrada que leva a FondConchon, em Grand ‘Anse. FOTO: PHARES JERÔME
“A pequena dimensão dos terrenos constitui uma das embaraçosas questões da agricultura haitiana, na medida em que ela restringe as possibilidades de substituição da mão de obra por equipamento mecânico. Isso a limita a um baixo nível de produtividade por unidade de mão de obra e, como consequência, uma baixa renda familiar”, ressalta o relatório. Contraditoriamente, chegam a lamentar que as grandes propriedades pertencem, frequentemente, às famílias ricas que moram nas grandes cidades do País ou no estrangeiro. O fato é que, enquanto isso, nada é feito. Muitos camponeses, para sobreviverem minimamente, fazem acordos para trabalharem como meeiros, isto é, trabalhar em terrenos de outros proprietários e lhes cederem a metade da colheita. Chavannes Jean-Baptiste diz que não existe uma política de produção agrícola por parte do Estado. “A agricultura só se beneficia de cerca de 4% da receita nacional, que é utilizada só para pagar o seu funcionamento”, denuncia. “Não há praticamente nenhum investimento no setor agrícola. Os camponeses estão abandonados à sua própria sorte”. A degradação do meio ambiente é um outro fator importante da baixa da produção agrícola. Os solos, segundo o líder do MPP, são destruídos pela erosão, que carrega milhões de toneladas de terras aráveis, que vão destruir, por sua vez, o ambiente marinho, complicando a situação dos pescadores artesanais. “A situação é cada vez mais catastrófica quando se sabe que o Haiti é um país constituído de 75% de montanhas e que a cobertura florestal é atualmente de menos de 2%. Trata-se de um país em vias de desertificação acelerada”, denuncia. Chavannes Jean-Baptiste enumera outros obstáculos ao desenvolvimento do setor agrícola, como a problemática das terras devolutas, caracterizadas pela ausência de títulos de propriedade e de cadastro. “Muitos camponeses não têm acesso à terra. Aqueles que têm acesso a um pedaço de terra, em sua grande maioria, confrontam-se com problemas de segurança do seu imóvel. Eles sabem que podem ser despejados a qualquer momento”, revolta-se. A isso deve-se acrescentar: a ausência de crédito agrícola, ausência de assistência técnica, debilidade das infra-
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em 1981, a importação de produtos alimentares não atingia 19%. Não há dúvida de que o problema se agravou com o passar dos anos. “Mais de 400 mil toneladas de arroz, avaliadas em 240 milhões de dólares americanos, são importadas pelos haitianos a cada ano”, lamenta o presidente da Federação Nacional dos Produtores de Arroz do Haiti (Fenaprih), Pierre Richard Santard. O que faz do Haiti o terceiro importador de arroz, depois do México e do Japão. A liberação do mercado, desde 1986, é a principal causa. Contudo, ao contrário da necessidade de incentivar o pequeno agricultor, um estudo da CNSA destaca uma questão até embaraçosa em relação à retomada da agricultura haitiana: a pequena dimensão dos terrenos. Esses pequenos terrenos, segundo o Conselho de Segurança Alimentar, restringem as possibilidades de substituição da mão de obra por equipamentos mecânicos e limitam-se a um baixo nível de produtividade por mão de obra unitária. Para a CNSA, a cultura agrícola deveria ser constituída, em média, por 2,35 desses pequenos terrenos de mais ou menos 0,62 ha, ou 1,46 ha por cultura agrícola, o que colocaria em xeque a agricultura familiar.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia
Café crioulo é iguaria disputada Por Adriana Santiago A inauguração das novas instalações do Instituto Nacional de Café do Haiti (Incah), em 12 de outubro de 2012, foi um sinal do valor que o governo haitiano tem dado aos seus produtores de café. Ainda é menos do que precisam, mas já é um começo. Esse foi mais um passo, iniciado em novembro de 2011, em Kenskoff, com a primeira Cúpula Internacional ‘Café Haiti’, para discutir formas de promover e desenvolver a indústria do café no exterior. O Incah é um organismo público independente, sem fins lucrativos, criado por diferentes operadores do setor, principalmente dos produtores de associações e organizações não governamentais, que trabalham no incentivo do setor cafeeiro no Haiti, porém sob a supervisão do Ministério da Agricultura, Recursos Naturais e Desenvolvimento Rural. O Instituto tem o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da indústria do café, garantindo a melhoria das condições de vida das pessoas envolvidas. O ministro Thomas Jacques, no discurso de inauguração da nova sede, admitiu acreditar que o setor pode fazer melhor e vai ficar ainda mais agressivo, desde a produção até a comercialização. O coordenador executivo do Incah, Jobert C. Angrand, aponta para uma vitória dos produtores de café, pois o setor se auto-organiza desde os anos 1990 e é a primeira vez na história que o governo promove ações combinadas de proteção do meio ambiente e de incentivos econômicos para reagrupar o setor cafeeiro.
Recocarno é destaque Entre as várias cooperativas, a que se destaca, principalmente pelo volume de exportações, é a Rede de Cooperativas do Norte (Recocarno), que tem seu escritório sede na cidade de Cabo Haitiano, que fica a 250 quilômetros ao norte de Porto Príncipe. Nas regiões do Norte e Nordeste do País se espalham 6.500 produtores em propriedades que não chegam a dois hectares. Os organizadores, como o presidente da Recocarno, Aurèle Décimus, reclamam da impossibilidade de aumentar a
produção individual por conta do tamanho das propriedades. Porém, comparado aos colegas, ele é quase um “latifundiário” na fronteira com a República Dominicana, com sete hectares de terra, onde trabalha com seus 10 filhos. Décimus foge um pouco à regra, mas não é ainda um agronegócio na acepção da palavra. Porém, olhando por outro lado, não se pode esquecer que a pequena dimensão das terras é um incentivo natural à agricultura familiar, apontada pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) como saída para a soberania alimentar. O café é exportado em larga escala através do escritório ‘Recocarno Trading Company Twin’, que trabalha no incentivo da produção de café, no marketing de produtos, no fortalecimento organizacional e na diversificação dos seus membros, uma vez que cada região é uma diversidade de café, agregando valor à oferta. Só a Inglaterra chega a levar até oito contêineres por ano, com um preço que varia de acordo com o mercado internacional, mas também o Canadá e a França são bons fregueses. Nos Estados Unidos, um dos principais países importadores, por exemplo, o Alltech Café Citadelle, um café arábico colhido manualmente, orgânico, cultivado à sombra de terras ao redor da fortaleza Citadelle Laferriére, e que tem até certificação internacional (FairTrade Certified™), é vendido a 12 dólares o quilo (12 Oz). No Brasil, um café comum custa até 2 dólares. A Recocarno é a cooperativa de café mais antiga do Haiti, fundada em 1997, e, desde 1998, com ajuda da ONG Oxfam, tem também certificação de comércio justo pela FLO (Fairtrade Labelling Organization), uma empresa independente de certificação internacional. Isso aumenta muito o valor do café. Por isso é preciso infindáveis cuidados.
Padrão internacional Para conservar os altos padrões internacionais é preciso a ajuda de ONG estrangeiras para auxiliar a preparação dos viveiros e a distribuição da semente ideal. São 5 milhões de
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Um dos cuidados com o café, inclusive, traz um benefício importante para o País, que sofre com o desmatamento e, consequentemente, as erosões - o café geralmente cresce sob as árvores. Assim, o cultivo do café no Norte e Nordeste tem combatido o desmatamento, e até com o replantio de uma árvore que os haitianos chamam de ‘Sament’, que mantém o solo sem erosões e proporciona sombra ao café. “É graças à presença de nossos membros em diferentes municípios dos departamentos do Norte e Nordeste que algumas árvores ainda estão de pé nessas áreas”, comemorou o presidente da Recocarno, Aurèle Décimus, em uma entrevista ao Le Nouvelliste. Por esses e outros benefícios, como o fortalecimento econômico das mulheres, a Recocarno foi laureada, em 2003, com o prêmio René Dumont, que distingue contribuições para o desenvolvimento rural dos países do Sul.
O café crioulo de grãos arábicos é plantado à sombra, com uma produção totalmente artesanal. FOTO: PHARES JERÔME
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garrafinhas que vão e voltam cheias de sementes selecionadas em forma de empréstimo. Assim, a Recocarno supervisiona todo o ciclo produtivo, para manter o padrão e não perder a certificação. O controle é feito através das oito cooperativas nas seis comunas, em dois distritos - Norte e Nordeste - , além dos cerca de 50 funcionários da própria rede de cooperativas. Por conta da especificidade de cada região, o sabor do café depende de onde vem. Há uma diferença entre o café plantado em Dondon, Plaisance ou Mont-Organisé. Até o transporte interfere no sabor, por isso, todo o processo é feito com muito cuidado, desde a hora que é separado por uma máquina, fermentado, lavado e seco ao sol. Nenhum grão considerado ruim pode entrar no lote para exportação. Este “grão ruim”, porém, é vendido no comércio local por preços ainda muito competitivos.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia estruturas agrícolas, insegurança dos preços e a drástica baixa da produtividade dos solos e da própria produção. O desmatamento é um outro grande problema que afeta o setor agrícola. Segundo um relatório do Ministério da Economia e das Finanças, cerca de 30 milhões de árvores são abatidas no País a cada ano. Isso torna o País muito vulnerável às catástrofes naturais. E, a cada catástrofe, enormes prejuízos são registrados no setor agrícola. Paralelamente, as terras disponíveis para a agricultura se reduzem cada vez mais. Outra consequência do desmatamento é a diminuição da quantidade de água disponível para a irrigação. Até agora, não existe nenhuma política de reflorestamento, nem política de energia que vise à redução do consumo do carvão de madeira, que garante em torno de 75% das necessidades de energia para o consumo na preparação de alimentos nas cidades. Hoje, até mesmo no meio rural, a lenha para cozinhar é cada vez mais rara. A agricultura tornou-se, assim, uma atividade extremamente vulnerável. Na estação seca os camponeses enfrentam a estiagem e, na estação chuvosa, eles enfrentam as inundações. Os problemas do setor agrícola haitiano são quase os mesmos em todas as regiões do País.
Léogâne com saudades de sua cana-de-açúcar As planícies da comunidade de Léogâne, situada a quase 53 quilômetros de Porto Príncipe, estão sendo urbanizadas em detrimento da produção agrícola. Esse fenômeno, que começou há alguns anos, já ocasionou o desaparecimento de um bom número de plantações de cana-de-açúcar. “Por 20 anos, Chatuley (uma zona de Léogâne) era uma vasta plantação de cana-de-açúcar. Circulava-se com dificuldade pelos estreitos corredores dos campos de plantação. Hoje, essa localidade é tão povoada que está se transformando em uma favela”, constata Civil Melour, presidente do Movimento dos Agricultores de Léogâne. Na comunidade de Léogâne fica uma das raras, se não a única, usina de açúcar do País. Construída em 1983, a usina foi fechada durante certo tempo, antes de ser reabilitada pelo antigo presidente René Préval, no decorrer de seu primeiro mandato (1997-2001). No começo, Léogâne
As montanhas desmatadas durante séculos sofrem erosão severa. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
produzia cana-de-açúcar suficiente para abastecer a usina. Centenas de usinas de destilação funcionavam como produtoras de álcool, cuja produção era capaz de abastecer o mercado leoganês e os de outras cidades da Província. O que hoje não acontece mais. “A usina funciona lentamente depois de sua reabilitação”, diz o agrônomo Martenot-Nels Narcius, chefe do Serviço Industrial da usina. O terremoto de 12 de janeiro de 2010 foi, praticamente, um golpe mortal no que resta do setor de agricultura em Léogâne. Plantações de cana-de-açúcar, perto de 70 quadras de terra, em Santo e em Sarbousse, foram devastadas depois do terremoto. “As plantações foram queimadas pela população na busca de refúgio, depois da catástrofe”, explica o agrônomo. Segundo Narcius, as terras, propriedades da usina de açúcar de Darbonne, eram essencialmente reservadas para a cultura da cana-de-açúcar e para a produção de novas variedades de cana em substituição às primeiras com, pelo menos, 12 anos, que se tornaram pouco rentáveis. Atualmente, essas 70 quadras de terra foram divididas em pedaços e urbanizadas, reduzindo, consideravelmente, a produção de cana para fazer funcionar a usina. Abrigos provisórios, disseminados ou organizados em pequenas vilas urbanas, foram construídos ali, por ONG, para as vítimas do sismo.
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Haiti por si A diversificação da plantação, principalmente o investimento em fruticultura, é a aposta da maioria dos programas que investem em sustentabilidade para o Haiti. Foto: Ermanno Allegri
Em 2010, a comunidade de Léogâne, terrivelmente atingida pelo sismo, transformou-se em lugar de acolhida das ONG internacionais. Isso contribuiu para que os jovens das zonas rurais fossem cada vez mais atraídos para as cidades. O prefeito adjunto de Léogâne, Wilson Saint, lamenta que construções continuem a ser realizadas de forma anárquica na comunidade e que a expansão da cidade esteja sendo feita sobre as terras férteis. Diz ele, ainda, que é indispensável um plano de urbanização nacional, identificando as terras agrícolas, os espaços reservados, as propriedades do Estado e as zonas residenciais, como um paliativo necessário para o problema. Saint denuncia a falta de coesão e de coordenação entre as ações do Estado central e as municipais, que devem ser um prolongamento do Estado nas comunidades.
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“O funcionamento da usina é instável”, lamenta Martenot-Nels Narcius, por falta de matéria prima. Como muitos dos leoganeses, o chefe de Serviço Industrial da Usina de Açúcar de Darbonne tem medo de que a produção de cana, que é a base econômica de Léogâne, seja completamente substituída por construções, dentro de alguns anos. Pois, diz ele, a cana-de-açúcar é considerada uma cultura rentável por não necessitar de muitos cuidados. “Destruir a produção da cana é arruinar a economia da comunidade”. Constata-se, infelizmente, que nenhuma ação foi feita para recuperar as terras ocupadas pelas vítimas do sismo de 2010. A comunidade de Léogâne, reputada pela sua cultura de cana-de-açúcar, sua produção de açúcar e sua aguardente “Clarin”, é dividida em 13 seções administrativas comunitárias, das quais três são localizadas nas planícies e 10 nas terras montanhosas. Até os anos 80, Léogâne constituía uma zona essencialmente agrícola. Essa reputação remonta aos tempos da colônia de São Domingos, quando o Haiti foi o território francês mais próspero. Além da cana-de-açúcar e da banana, Léogâne era conhecida pela cultura destinada a outros alimentos. Ali se cultivavam cereais (feijão, arroz, milho), raízes, tubérculos (mandioca, batata) e frutas (manga, abacate). O que fazia da comunidade uma das localidades mais produtivas do País. “A comunidade produzia com abundância para nutrir bem sua população”, lembra Jean Edward Théagène, secretário geral da Organização dos Cidadãos Unidos para a Reconstrução de Léogâne (CURL). “Hoje, a produção agrícola está consideravelmente em baixa”, lamenta Théagène. “Léogâne, como o resto do País, depende do exterior”. Para os responsáveis por algumas organizações e instituições que trabalham na agricultura em Léogâne, a ausência de um plano nacional de urbanização e a falta de responsabilidade do Estado no que se refere a promover a agricultura são as maiores causas da “descida aos infernos” do setor agrícola. Jean Edward Théagène fulmina: “Os agricultores estão entregues à própria sorte”. É mais um que solta a frase que está se tornando recorrente ao tema. E, por uma razão bem conhecida, os camponeses abandonam sua habitação para aproveitar-se dos benefícios das cidades, onde os serviços de base (saúde, educação e lazer) estão disponíveis.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia Em defesa do arroz nacional Artibonite, o segundo departamento do País em termos de população, é o primeiro produtor nacional de cereais, mas é, particularmente, conhecido pela produção de arroz. Mais de três quartos da produção nacional de arroz, ou seja, 80%, vêm das vastas planícies desse departamento. Muitos afirmam que o departamento de Artibonite poderia, sozinho, produzir as 400 mil toneladas de arroz que a população haitiana consome a cada ano. Como no resto do País, os agricultores artibonenses confrontaram-se com muitos problemas, principalmente a concorrência com os produtos importados, a liberação do mercado dos produtos agrícolas, os riscos de inundação, perdas de colheitas nas zonas de produção e a diminuição dos espaços cultiváveis. “Não há investimento suficiente por parte do Estado para apoiar a produção de arroz de Artibonite”, lamenta Maria Melisena Robert, responsável pelo Movimento de Ajuda às Mulheres de Liancourt Payen (MAFLPV), da mesma comunidade de Verretes. Robert solicita mais investimento em infraestruturas agrícolas. Isnard Louis, responsável pela Associação dos Plantadores para o Desenvolvimento da Agricultura em Artibonite (Apdal), é mais um que afirma que os agricultores estão entregues à própria sorte. “Nós só recebemos ajuda da Oxfam”, diz. Ele acredita que Artibonite poderia produ-
Plantações de arroz na região de
zir muito mais arroz se as terras fossem irrigadas regular-
Artibonite.
mente ou se os agricultores dispusessem suficientemente
Foto: Ermanno Allegri
de equipamentos agrícolas. Apesar dos problemas, os agricultores de Artibonite não desanimam. Eles criaram, em 2001, a Rede das Associações Cooperativas para a Comercialização e a Produção Agrícola do Baixo Artibonite (Racpaba), antes de estruturar, em 2012, a Federação Nacional dos Produtores de Arroz do Haiti (Fenaprih), para defender seus direitos. É importante também notar que Artibonite é um dos raros departamentos geográficos do País que dispõe do seu próprio organismo de desenvolvimento rural, o Organismo de Desenvolvimento do Vale de Artibonite (ODVA). “É pena
que essa instituição não faça o seu papel de recrutamento de plantadores”, esclarece Isnard Louis. Há 10 anos, os produtores de arroz de Artibonite se beneficiam do acompanhamento da organização internacional Oxfam, que investe na tecnologia agrícola, e é isso que falta imensamente para os produtores. “Durante os últimos quatro anos, houve muitos investimentos públicos e não públicos na produção do arroz”, diz Yolette Etienne, diretora do programa da Oxfam no Haiti. Ela afirma ainda: “A Oxfam sozinha investiu 6 milhões de dólares americanos em três anos para a retomada do setor agrícola, sendo 3 milhões investidos no arroz. Isso permitiu, praticamente, dobrar a produção de arroz, em nível do Departamento”, informa, satisfeita. “A produtividade passou de 2,5 a 4,5 toneladas em algumas zonas”.
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Haiti por si
O arroz na beira da estrada O arroz crioulo, que estava secando à beira da estrada, é vendido a um preço muito alto porque virou iguaria rara no País. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Por Adriana Santiago
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O arroz haitiano é caro. Em qualquer lugar do mundo, principalmente no Haiti. Um artigo raro na mesa do povo comum do País. Por conta dos inúmeros subsídios, o arroz estadunidense consegue chegar às gôndolas de Porto Príncipe com preços até mesmo abaixo do custo de produção. Assim, o cultivo e a comercialização desse arroz deixaram de ser uma das maiores fontes de renda de exportação do País para se transformar em artigo de luxo para o comércio local. O prato típico, o Labí, é arroz com yon yon (uma espécie de cogumelo), servido com lagosta e custa uma pequena fortuna para os padrões locais. E não é por conta da lagosta, o que seria um artigo caro em qualquer lugar do mundo. O arroz é caro mesmo, às vezes, até mais do que a lagosta. Assim como o frango local, o arroz haitiano pode custar o dobro do importado. Frango frito para um estrangeiro é tudo igual, mas os haitianos se deliciam ao saborear essa, que é uma de suas iguarias locais, cercada de ‘banana cascuda’ frita em rodelas, como se batatas fossem. É uma delícia mesmo. Diante da raridade, não tem como não observar com alegria na beira da estrada, na volta de Cabo Haitiano, aquele arroz todo secando ao sol sobre uma lona fina. Paramos, claro. “É pra vender?”, perguntamos. “Claro, tudo aqui é pra vender”, responde alegre a comerciante. Ela explica que o arroz é plantado nas redondezas pelas famílias campesinas e vendido aos que passam de carro na estrada. Boas vendas, sempre. Sim, o preço é o dobro do arroz importado. É fácil deduzir que, se incentivada esta produção, o arroz facilmente alavancaria novamente a economia do País, com base na agricultura familiar. Porque é saboroso, como a equipe da Adital pode comprovar em um delicioso almoço servido na casa do nosso amigo e tradutor, Robenson de Lafortune.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia Entre as medidas que permitiram o aumento da produção de arroz em Artibonite, deve-se destacar a subvenção de adubos, que acontece desde dezembro de 2008, pelo Estado haitiano. “O nível fixo de subvenção pelo Estado é importante e da ordem de 80%. Em consequência, o consumo de adubos aumentou de 15 mil toneladas, em 2008, para 45 mil toneladas em 2010”, segundo informações da CNSA. Até o fim de agosto de 2011, o governo haitiano tinha distribuído 17,4 mil toneladas de adubos contra 32 mil toneladas no mesmo período de 2010. No entanto, alguns responsáveis pelas organizações de camponeses acham que o elevado preço do adubo é um dos maiores problemas que os agricultores enfrentam. “O Estado deve colocar o adubo à disposição dos agricultores”, exige Dessous Carrnine, responsável pela Organização pelo Crescimento das Mulheres Haitianas, que vem ganhando força política no departamento de Artibonite. Isso porque, frequentemente, o adubo subvencionado pelo governo é recolhido pelos grandes comerciantes ou por políticos para ser vendido a preço elevado no mercado. A Oxfam intervém em diferentes níveis da cadeia agrícola, entre as quais a produção, o beneficiamento e a comercialização. E tudo se faz, segundo Yolette Etienne, de comum acordo com o governo, tanto no nível nacional como no nível local, de forma descentralizada. Em Dubuisson, uma localidade de Artibonite, os agricultores puderam, depois de cinco anos de incidentes, tomar gosto pelo cultivo de seus campos. O canal de irrigação da localidade, medindo cerca de 9 mil metros, irrigando aproximadamente 100 hectares, foi recolocado em serviço, graças a um financiamento da Oxfam. “Isso permitiu um aumento da produção de arroz e das culturas de hortaliças na localidade”, informa, contente, Cebé Augustin, coordenador da OAD (Organizasyon Ayisyèn pou Developman/ Organização Haitiana de Desenvolvimento), acrescentando “que os canais secundários também foram limpos”. Por intermédio de um programa de apoio à produção e à comercialização de arroz no Vale de Artibonite, a União Europeia e a Oxfam, conjuntamente, equiparam a comunidade de Petite Rivière, em Artibonite, com uma unidade de beneficiamento. Essa unidade recebeu geradores, mo-
Saintilus Herman, diretor de uma creche em Papaye, mostra o viveiro com mudas que estão criando junto com o MPP para incentivar a agricultura local. FOTO: PHARES JERÔME
tocultores, equipamentos para triagem e outros materiais que favorecem uma melhor apresentação do produto final. Para dar força à produção, alguns produtores recebem créditos de serviços através de organizações locais, parceiras da Oxfam, o que lhes permite cultivar seus campos mesmo se não têm fundos necessários para sua preparação e manutenção. “Isso é o que se poderia chamar de um crédito em sistema de troca, isto é, receber o necessário, como as sementes, os fertilizantes e inseticidas, bem como a mão de obra para fazer o trabalho, e depois da colheita o crédito será reembolsado da mesma forma, ou seja, devolvendo o que recebeu antes da colheita”, explica o agrônomo Willard Xavier, coordenador do Programa de Meios de Vida da Oxfam em Artibonite. Por meio dessas ações, a Oxfam e seus parceiros têm por objetivo reforçar a produção agrícola e, ao mesmo tempo, melhorar as condições de vida da população campesina. Entretanto, é preciso também fazer de forma que o mercado local esteja pronto para consumir o produto haitiano, o que é ainda complicado, tendo em vista a livre circulação dos produtos importados no País. Para Yolette Etienne, não é suficiente investir em infraestruturas agrícolas e recrutar plantadores. “É preciso também acabar com a competição desleal dos produtos
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Um celeiro abandonado O Departamento de Grand’Anse fica entre o Departamento Sul e o Departamento Nippes, com 1.871 km² e com uma população estimada em mais ou menos 500 mil habitantes. Está situado a 289 quilômetros de Porto Príncipe. O setor agrícola desse departamento, uma das zonas mais produtivas do País, está passando por uma certa baixa já há algum tempo. A falta de investimento no setor e a degradação do meio ambiente são as principais causas dessa situação. Apesar de tudo, a produção agrícola de Grand’Anse ultrapassa, e muito, a necessidade de consumo da população. “Há bastante alimentação para toda a população de
Apesar de trabalhos de reabilitação realizados na Estrada 7, que liga Jérèmie a Les Cayes, ou seja, várias rotas de escoamento da produção agrícola, o caminho ainda é muito perigoso e de difícil acesso. FOTO: PHARES JERÔME
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importados”, reforça ela. Assim, os esforços da Oxfam para defender a produção local se focalizam nas políticas e práticas nefastas que a penalizam, e sua primeira luta é pela aplicação de taxas aduaneiras sobre o arroz importado. “Os Estados Unidos, que nos invadem com seu arroz subvencionado, é o alvo primordial dessa campanha”, explica Etienne, defendendo o acesso ao crédito pelos camponeses, bem como a criação de uma comissão nacional do arroz.
Grand’Anse, que poderia também nutrir as populações de outros departamentos se tivessem sido colocadas infraestruturas”, diz Nicossa Paulémont, coordenador executivo do Konbit Peyizan Grandans (KPGA), um reagrupamento de organizações camponesas. O Departamento de Grand’Anse é famoso pela sua produção diversificada de produtos alimentícios. Ali, se encontram muitas árvores nativas de castanhas, bananas, inhames, batatas, cocos, frutas (laranjas, chadeques/laranja haitiana), limões, maracujá, abacates, mamões, cachiman uma espécie de fruta-do-conde -, repolhos, feijões, cacau, pimentas etc. Algumas regiões possuem grandes plantações de café, de cacau e de cana-de-açúcar. A agroecologia de Grand’Anse permite uma produção frutífera plural e possui ainda uma boa cobertura para o solo, o que facilita uma cultura agrícola mais próspera. A produção de árvores frutíferas é considerada um sistema de agricultura durável pelo fato que protege o meio ambiente e, ao mesmo tempo, produz a matéria prima para a retomada do setor secundário. Ela poderia representar uma alternativa para o cultivo em terras nuas e submetidas à erosão, destrutiva do meio ambiente, e favorecer o desenvolvimento dos mercados locais e internacionais. Porém, a fruticultura enfrenta grandes problemas que influenciam negativamente a quantidade e a qualidade da produção. Entre eles, o das plantações antigas, velhas, associadas a certas doenças criptogâmicas, que prejudicam as espécies frutíferas, além da falta de cuidados destinados a essas árvores. Ainda mais que a produção frutífera não é realizada de maneira racional e os frutos, particularmente as mangas e os abacates, são severamente atacados por ratos. O departamento de Grand’Anse, como o resto do País, enfrenta um grande problema de infraestrutura rodoviária. A maior parte de suas comunas é de difícil acesso, o que complica o transporte dos produtos agrícolas para fora e mesmo dentro do Departamento. Eis a principal causa do desperdício de boa parte dos produtos agrícolas. E, sobretudo, porque existem poucas usinas de beneficiamento. “Existe um desperdício de até 35% de produtos alimentícios a cada ano em todo o Departamento”, alerta Nicossa Paulémont.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia “As estradas que ligam a maior parte dos vários locais das comunidades estão em péssimo estado”, explica Pierre Elius, um agricultor de 40 anos. É a pé ou a cavalo que os camponeses, vindos de longe, podem transportar seus produtos, sem a garantia de evacuá-los para a cidade de Jérèmie. Chegando à cidade, torna-se um pouco mais fácil transportar para fora, como para Porto Príncipe ou outros lugares por via marítima. É um longo trajeto que, frequentemente, desanima os agricultores. “É muito perigoso transportar os produtos por via terrestre, devido ao longo trajeto e às más condições das estradas” lamenta, por sua vez, Daryl Pierre, responsável pela Organização do Levantamento da Comunidade de Roseaux (Orcro). Felizmente, a estrada de Jérèmie está em construção pela empresa brasileira OAS. Os primeiros trabalhos já permitiram a redução do tempo de transporte de 12 para oito horas. É claro que Grand’Anse está longe de estar em situação de insegurança alimentar. Uma feira agrícola organizada pela Orcro, na localidade chamada Fond-Cochon, em agosto de 2012, permitiu constatar a imensa quantidade de riquezas agrícolas da região, que, devido à falta de infraestrutura, não são suficientemente exploradas e/ ou cultivadas. Em julho de 2012, organizações e reagrupamentos de organizações de produtores de Grand’Anse se reuniram para denunciar o programa de distribuição de alimentos colocado em prática no quadro da iniciativa contra a fome, “Aba Grangou”, do governo haitiano. Eles defenderam um verdadeiro programa regional agrícola no lugar do governamental, já em execução em nove das 12 comunidades do Departamento, pois avaliam que há necessidade dele. As organizações de Grand’Anse avaliam que esse programa é um obstáculo ao desenvolvimento da produção nacional. Elas preferem que as autoridades encontrem um meio mais interessante que permita aos beneficiados comprarem a produção do campo, ao invés de distribuírem produtos importados. “Senão a produção agrícola só sairá dessa com reforços”, avaliam as organizações contrárias, entre as quais KPGA e Racpaba. Os responsáveis por essas organizações denunciam também que algumas ONG insuflam os camponeses a
abandonarem a agricultura em proveito dos programas Food for work. O departamento de Grand’Anse está em uma das regiões que mais tem florestas no País. Isso é, sem dúvida, explicado por sua posição geográfica. Entretanto, o fenômeno do desmatamento cresce amplamente em algumas comunidades. “Indo mais para o interior das seções administrativas comunitárias, vê-se que a situação do meio ambiente é alarmante”, constata Jean Marc-Antoine Guilloux, da Rádio Xaragua. Segundo ele, as condições econômicas difíceis, a indiferença das autoridades locais, mais a ausência de agentes agrícolas ou florestais encorajam os camponeses a praticarem o corte das árvores, pois a venda de carvão, de madeira para construção e fabricação de pranchas é mais rentável que a agricultura. “As terras cultiváveis de Grand’Anse estão ainda disponíveis para a agricultura, mas não há sistema de irrigação para ajudar os agricultores a enfrentarem os problemas da seca e da erosão, muito frequentes na região”, explica Denis Dieuvilhome, responsável pela Direção Departamental Agrícola de Grand’ Anse. “Nós enfrentamos muitos problemas em Grand’Anse, mas não há fome”, afirma um outro responsável, destacando que a ausência de suporte do Estado aos produtores é a raiz do problema. A valorização da produção camponesa, um plano de reconstrução das estradas agrícolas, um centro de pesquisas sobre a cultura camponesa, um banco de crédito agrícola com guichês nas comunidades, proteção comercial e preço garantido para os produtos importantes, colocação em rede de empresas de beneficiamento e de conservação dos produtos do Departamento, isso, entre outras coisas, são soluções imaginadas pelas organizações camponesas diante dos problemas do setor agrícola.
O MPP na vanguarda Papaye é uma pequena comunidade situada a quatro quilômetros a nordeste da cidade de Hinche, capital do Departamento do Centro, onde fica a sede central do Movimento Paysan de Papaye (MPP). Fundado em março de 1973, o MPP tira Papaye da sombra.
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Kat Je Kontre - Quatro olhos que se encontram As organizações camponesas são relativamente fortes em relação a outros movimentos sociais do País e contam com os movimentos campesinos Tet Kole Ti (Cabeças Unidas), Mouvman Peyisan Papay (MPP), a Coordenação Regional de Organização do Sudeste (KROS - Kòdinasyon Rejyonal Òganizasyon Sidès) e o Congresso Nacional do Movimento Camponês Papaye (MPNKP). Contudo, desde 2009, conta com o reforço importante da Via Campesina e sua Brigada Dessalines, que criou o movimento local formado por todas essas forças, chamado Kat Je Kontre (Quatro olhos que se encontram). No vídeo que marca os três anos da Brigada Dessalines, que recebeu o nome de Jean-Jacques Dessalines, um dos heróis da revolução que levou o País à independência em 1804, ressalta-se uma frase de Fidel Castro: “Solidariedade não é dar o que sobra, e sim repartir aquilo que temos”. E, assim, tem seguido desde então. Passaram por lá mais de 40 militantes, principalmente do Brasil, por meio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Hoje, o número baixou e já caiu para 10 brigadistas, porque, cada vez mais, os haitianos tomam conta das ações. Em 2011, 76 jovens haitianos passaram no Brasil por um período de formação na Escola Nacional Florestan Fernandes e visitaram experiências ao redor do País. A maioria voltou animada, com vontade de aplicar experiências no Haiti. Agora, parece que está mais fácil para os haitianos entenderem o que aqueles brancos, ou “blan”, como são chamados os estrangeiros de qualquer cor no País, faziam ombreados com eles, sob o sol escaldante e de enxada na mão. A Brigada prioriza duas frentes de trabalho: a implantação de 1.500 cisternas de captação de água de chuva (doadas pelo
“As organizações camponesas são a agricultura do País”. Assim uma placa escrita à mão traduz o sentimento dos produtores rurais no Haiti. 1º de Maio de 2010 - Marcha Camponesa Gwomòn/Haiti. FOTO: THALLES GOMES /MST
Governo da Bahia) e a produção de sementes ecológicas de grãos e hortaliças. No início deste ano, já eram seis centros de produção de sementes envolvendo aproximadamente 150 famílias camponesas. Em 2011, construíram o Centro Nacional de Formação e Agroecologia do Movimento de Camponeses Tet Kole, com apoio da Arquidiocese de Belo Horizonte (Minas Gerais), onde fazem viveiros e criação de cabritos, além de formação política. O Centro quer criar o Programa Nacional de Produção de Sementes, já que o governo haitiano não dá qualquer incentivo ao pequeno produtor. Até então, 100% das sementes de hortaliças eram importadas dos Estados Unidos e as sementes de grãos não tinham boa qualidade. Hoje, o Kat Je Kontre já construiu três centros de produção de sementes de grãos e outros três de hortaliças. Também estão construindo viveiros com mudas para reflorestamento, nas cidades de Verret, Desalin, Tu Riviy e Semak. Isso porque somente 3% do País têm cobertura vegetal, devido à forte extração de carvão, que é a maior fonte de energia do Haiti. Fora da capital Porto Príncipe, que também é carente, não se vê energia elétrica ou saneamento básico. E o meio rural abriga 65% da população de cerca de 10 milhões de pessoas. Porém, os brigadistas destacam que uma característica forte da agricultura haitiana é a plantação diversificada, que mantém a fertilidade do solo, diminui a presença de pragas e de doenças e não demanda o uso de inseticidas. Nas montanhas, se produz arroz, cana-deaçúcar, banana, mandioca e feijão, porém com poucas técnicas de conservação do solo, por isso há problemas de erosão e rios assoreados.
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Por Adriana Santiago
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia Chavannes Jean-Baptiste é o líder do MPP desde a década de 1970 e tem estado à frente de grandes conquistas para o País. Foto: Phares Jerôme
A criação da organização está ligada à colocação em prática do Centro de Iniciação à Catequese e Agricultura em Papaye (Cicap), por um padre missionário belga chamado Jos Berghmans, da congregação dos Padres de Scheut. O padre empregou Chavannes Jean-Baptiste, em julho de 1972, no Centro, como responsável pela secção agrícola. “Eu tinha decidido fazer uma enquete em torno do Centro para conhecer a situação das famílias camponesas antes de começar uma formação de seis meses, que eu devia organizar no Centro”, lembra Chavannes. “Estava claro para os camponeses que a produção agrícola estava em baixa porque as terras produziam muito menos. Mas isso era consequência de nossos pecados. Se não chovia, se a colheita era baixa, isso era punição de Deus. Também, existiam pessoas mal intencionadas que tinham a capacidade mágica de monopolizar a colheita”. Esse foi o resultado da enquete realizada por Chavannes, em Papaye. E, além dessa situação, disse ter identificado
outros problemas, como o fatalismo. “Tudo está ligado ao destino. Não se pode fazer nada contra o destino. Se nascemos para ser pobres, vamos ser pobres, implacavelmente. Se nascemos para ser ricos, vamos ser ricos”. “Um outro problema crucial que eu tinha identificado era a divisão que existe no seio das famílias, nas comunidades”, acrescenta o fundador do MPP. Esse fenômeno, disse ele, era a consequência dos problemas históricos ligados à terra, à cultura, à superstição. “A divisão era também provocada pelos jogos de azar, a poligamia, os abusos de autoridade, a exploração em geral”. “Diante dessa constatação, cheguei à conclusão de que o trabalho prioritário a ser feito com os camponeses não tinha nada a ver com uma assistência técnica, mas, sim, com a educação popular”, explica o agrônomo Chavannes Jean-Baptiste, quatro décadas mais tarde. Foi nesse contexto que o MPP foi criado. Hoje, a organização conta com cerca de 4 mil agrupamentos, totalizando cerca de 60 mil membros, sendo 10 mil jovens e crianças, 20 mil mulheres e 30 mil homens. Tendo por missão fundamental a defesa dos interesses dos camponeses empobrecidos, o MPP trabalha no campo da educação e organização popular; a agricultura camponesa; a reabilitação e a proteção do meio ambiente, desenvolvendo programas de conservação do solo; a gestão integral da água; o beneficiamento e a comercialização dos produtos agrícolas; o desenvolvimento de pequenos rebanhos e o desenvolvimento de produção de energias alternativas ou renováveis. Depois de 40 anos, os resultados do trabalho do MPP são animadores. Papaye é uma zona verde com um conjunto de atividades ligadas ao setor agrícola. Ele desenvolve programas de formação em educação e organização camponesas para sensibilizar os agricultores. A organização liga agricultura à proteção do meio ambiente. “Nós temos já plantadas quase 25 milhões de árvores no Haiti”, ressalta Chavannes, que diz promover uma agricultura que respeita o meio ambiente, utilizando sementes, adubos e pesticidas naturais. O MPP coloca em prática unidades de beneficiamentos de milho, de cana-de-açúcar, de mandioca, de amendoim.
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Haiti por si Produz um rum branco, com certificado orgânico, que é exportado para a França. Transforma as frutas em geleias e doces. Está desenvolvendo uma experiência de secagem de frutas, principalmente com a manga. Ainda conduz atividades de produção animal, tais como a avicultura, piscicultura, apicultura, cunicultura. Desenvolve, também, criação caprina e bovina, em pequena escala. O movimento popular e seu líder, Chavannes Jean-Baptiste, estão na vanguarda do desenvolvimento do setor agrícola no Departamento do Centro. Papaye é hoje uma das zonas mais reflorestadas da região. Isso acontece devido aos esforços do MPP, que criou um centro de produção de mudas.
Insegurança alimentar é causa de preocupação
Camponesa expõe sua produção agrícola durante a feira de produtos agrícolas orgânicos em Found Chochon, em Grand’Anse, em agosto de 2012. Foto: Jonh Smith Sanon
mente rurais, 49% das famílias estavam em insegurança alimentar (contra 67% em fevereiro de 2010). O presidente Michel Martelly prometeu, no momento de sua campanha eleitoral, combater essa situação. Desde sua posse como Presidente da República, em maio de 2011, tomou algumas iniciativas, poucas e polêmicas, visando a permitir às camadas mais pobres poderem acabar com a fome. Primeiramente, criou um ministério encarregado da luta contra a extrema pobreza. O governo lançou programas de caráter social, como Ti manman cheri e o Aba grangou, que são gerenciados pela primeira dama da República, Sophia Martelly. Esses programas consistem na distribuição de dinheiro via celular ou kits alimentares para as famílias pobres do País.
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É difícil dissociar a situação de segurança alimentar da situação do setor agrícola. Segundo a CNSA, a segurança alimentar no Haiti tem como sustentáculo o setor agrícola, que é o principal provedor de bens alimentares da população. Isto quer dizer que o setor agrícola fornece menos de 50% da oferta alimentar do País e significa que uma boa parte da população se encontra em situação de insegurança alimentar. Segundo as estatísticas citadas no relatório da CNSA, um entre dois haitianos vivia na extrema pobreza (com menos de um dólar por dia) em 2001; a metade da população não tinha acesso à ração alimentar mínima, estabelecida pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) - 225 quilos de cereais por ano, por habitante; 80% das famílias seriam incapazes de satisfazer adequadamente as suas necessidades alimentares. Um estudo recente da mesma instituição mostra que a extema pobreza no Haiti é principalmente um fenômeno rural (58% contra 20% na região metropolitana). Mais de três quartos dos mais pobres vivem em zonas rurais, com uma taxa de pobreza de 88% contra 45% em Porto Príncipe e 76% nos outros centros urbanos. Em junho de 2010, 39% das famílias do campo estavam em insegurança alimentar (contra 70% em fevereiro de 2010). No mesmo período, nas comunidades essencial-
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia “De forma alguma, esses programas contribuirão para melhorar a segurança alimentar”, criticam muitas personalidades haitianas, entre as quais parlamentares. “O governo faria melhor se recrutasse plantadores em dificuldade de todo o País no lugar de implementar esses programas, cujos impactos são ainda pouco visíveis”, avalia Mario, um plantador de Torbeck, comunidade do sul do País. Richardson, agrônomo de formação, concorda com a opinião desse agricultor. Segundo ele, não há o que falar de segurança alimentar dando 500 gourdes por mês (um dólar é equivalente a 42 gourdes) para uma mulher que tem duas crianças sob sua responsabilidade. “O governo utiliza esses programas para fazer propaganda política, para tentar mostrar que faz alguma coisa, mas, na realidade, nada é feito verdadeiramente para melhorar as condições de vida das pessoas que patinam na miséria”, critica o agrônomo. Esses programas não trazem ainda os resultados esperados, pois manifestações já aconteceram nos vários departamentos do País contra a degradação das condições de vida da população. Pipocam por todos os lugares denúncias de inflação. “O preço dos produtos de primeira necessidade não cessam de aumentar”, denuncia Madeleine, de 20 anos, que tem sob sua responsabilidade uma pequena irmã e sua filha de sete meses. Os opositores do presidente Michel Martelly exploram essa situação para exigirem a saída dele do poder. Nas manifestações, as pessoas expõem cartazes com slogans acusando o governo atual de nada fazer para melhorar as condições de vida dos mais pobres.
Perspectiva para o setor O ministro da Agricultura, dos Recursos Naturais e do Desenvolvimento Rural (MARNDR), Thomas Jacques, anunciou que vai revisar as estratégias em matéria de investimentos no setor agrícola. Em uma longa entrevista concedida ao jornal Le Nouvelliste, o ministro defendeu o aumento do pacote orçamentário, acordado com o setor agrícola no orçamento nacional, que varia, geralmente, entre 4% a 6% do orçamento.
Os agricultores, como esta senhora de Jérèmie, levam vários dias para chegar a uma feira, por estradas de terra sinuosas para conseguirem vender ou trocar a produção. Foto: Phares Jerôme
Mesmo se o País dispusesse do dinheiro necessário para a retomada da agricultura, não se faria de um dia para o outro. O ministro Thomas Jacques sabe disso. E, pertinentemente, está esperando atrair os investimentos privados ou públicos para o setor. No entanto, opta por ações pontuais. O ministro Jacques informou ainda que, em parceria com instituições públicas, entre as quais o Ministério de Economia e de Finanças, o de Planejamento e de Cooperação Externa, o de Questões Estrangeiras e Religiosas, o Ministério de Promoção Campesina e da Luta contra a Extrema Pobreza, foi elaborado um plano de ações para a realização de projetos de infraestrutura de irrigação, de estradas secundárias, de limpeza dos leitos dos rios e de criação de empregos para a época dos ciclones. Ele explicou que esse plano leva em conta o problema da insegurança alimentar com a qual a população haitiana confronta-se permanentemente. As ações a serem empreendidas para modernizar o setor agrícola, a longo prazo, são definidas em dois docu-
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Catástrofes e falta de crédito A Coordenação Nacional de Segurança Alimentar (CNSA) destaca que toda mudança sobre o mercado internacional repercutiria enormemente na segurança alimentar e nutricional das famílias haitianas. Em abril de 2008, o índice de preço de consumo atingiu 17% no acumulado anual. Ou seja, um aumento de quase 70% em quatro meses. Como consequência, 800 mil pessoas se encontraram em insegurança alimentar transitória. A situação poderia agravar-se com os quatro ciclones no mesmo ano, que provocaram perdas estimadas em aproximadamente 230 milhões de dólares só no setor agrícola, e uma queda do PIB estimada em 15%. Além da
destruição, a catástrofe de 12 de janeiro de 2010, segundo o Conselho de Segurança Alimentar, levou mais de 1,5 milhão de pessoas a uma insegurança alimentar transitória. “De 1,8 milhão de pessoas em insegurança alimentar na véspera, esse número passou para 3,3 milhões de pessoas no dia 13 de janeiro. Era necessário intervir o mais rápido possível para evitar uma crise alimentar”. Todos os esforços feitos para a retomada da agricultura nesses últimos anos foram minados pelo terremoto de 12 de janeiro (que trouxe perdas na ordem de 7,804 bilhões de dólares), ou seja, um montante um pouco maior que o PIB de 2009. De 3,3 bilhões em 2007, a evolução do PIB foi de -5,1%, em 2010. Ainda por cima, a existência de um verdadeiro fenômeno de racionamento de crédito é confirmada pelo fato de que o Haiti apresentava uma taxa média de juros de 26,04% entre 1995 e 2004, a mais alta da América Latina. “Pode-se afirmar, sem risco de se enganar, que a taxa de juros nessa economia está entre as mais altas do mundo, pois o custo médio do crédito na América Latina já é muito alto em relação ao da Ásia, do Pacífico e ao da Europa Central, que apresentam taxa média de juros inferiores a 10%”, afirma o relatório anual do FMI (Fundo Monetário Internacional), em 2004. As altas nos preços das provisões alimentares e dos produtos de petróleo no mercado internacional estão entre os impactos poderosos das catástrofes naturais, como o terremoto de 12 de janeiro de 2010, os tornados devastadores de 2008 e o ciclone Thomaz, em 2009. As catástrofes desses três últimos anos afetaram profundamente a população haitiana.
A disponibilidade alimentar As intervenções massivas (humanitárias e outras), realizadas para se oporem aos efeitos dos choques (alta de preços, ciclones em 2008, terremoto de 2010 e, de alguma forma, o cólera) nas populações mais vulneráveis, permitiram obter resultados até encorajadores. Porém, é preciso reconhecer que a dimensão crônica ou estrutural da insegurança alimentar é preocupante.
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mentos. Trata-se do Documento de Orientação 2010-2025, que apresenta o quadro global de referência da política agrícola para o período indicado, e do Plano Nacional de Investimento Agrícola, que traduz as ações concretas de desenvolvimento agrícola a serem empreendidas durante o período 2010-2016. Esses dois documentos são válidos para os parceiros internacionais do Ministério da Agricultura, entre os quais o Programa Mundial de Agricultura e de Segurança Alimentar, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). As ações definidas nesses dois documentos de orientação são concernentes, sobretudo, à transferência de tecnologias aos camponeses e ao reforço dos serviços públicos agrícolas. A retomada do setor agrícola haitiano, depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010, permanece um desejo piedoso para alguns. “O setor agrícola não entra no dito plano de reconstrução que visa a somente vender o País para as multinacionais, a colocar em prática as zonas francas, megaprojetos turísticos, e à produção de agrocombustível”, denuncia Chavannes Jean-Baptiste, que era um dos chefes do movimento de protesto contra a eventual introdução dos produtos Monsanto na agricultura haitiana depois do sismo. Após as manifestações pacíficas, organizadas em todo o País, o governo, então, teve que desmentir as informações, que deixava crer que a Monsanto, uma das maiores empresas de agrotóxicos do mundo, teria feito uma doação de sementes ao Haiti.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia
5 milhões em estado de desnutrição Por Benedito Teixeira O mais recente relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), “O estado da insegurança alimentar no mundo 2012”, traz um verdadeiro retrato das causas, consequências e perspectivas sobre a situação da segurança alimentar ou a falta dela no mundo. No caso de países pobres como o Haiti, o informe mostra caminhos e aponta que o crescimento econômico deve envolver as nações mais pobres, aumentando o emprego e outras oportunidades para a geração de receitas. Em “O estado da insegurança alimentar no mundo 2012” são apresentadas novas estimativas sobre o número e a proporção de pessoas subnutridas a partir de 1990. Com quase 870 milhões de pessoas vivendo na subnutrição crônica em 2010-12, o número de pessoas famintas no mundo continua sendo inaceitavelmente elevado. A grande maioria
Feira de Font Chonchon, onde agricultores tentam vender a escassa produção. FOTO: JONH SMITH SANON
vive em países em desenvolvimento, onde se calculam que ao redor de 850 milhões de pessoas, ou seja, pouco menos de 15% da população estão subnutridas. O relatório da FAO assinala que ainda persistem diferenças significativas entre países e regiões. Apesar de que a fome e a desnutrição diminuíram em regiões como a América Latina e o Caribe, os percentuais continuam significativamente elevados. No Caribe, região onde se encontra o Haiti, 17,8% da população, 7 milhões de pessoas, continuam desnutridas.
5 milhões de pessoas em estado de desnutrição Já o Haiti chega aos alarmantes 5 milhões de pessoas em estado de desnutrição ou 44,5% de sua população, ainda que esse número já tenha chegado a 63,5% da população em 1990. Mesmo assim, em números absolutos não houve mudança. Há 22 anos, o mesmo número, ou seja, 5 milhões de pessoas eram consideradas subnutridas no Haiti. A FAO afirma que é
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Haiti por si e acesso à educação podem melhorar o desenvolvimento cognitivo, aumentando, assim, os níveis de renda, quando as crianças se tornam adultos, com benefícios para toda a sociedade”, destaca o relatório. No caso de países pobres como o Haiti, um forte crescimento econômico e equitativo com base na economia rural contribui, significativamente, para aumentar o acesso a alimentos e melhorar a nutrição dos pobres. No entanto, para isso, é preciso que o Estado tenha um papel fundamental, é necessário dar proteção social para apoiar os mais vulneráveis e para reduzir a fome e a desnutrição. Se um sistema político e econômico é bem estruturado para apoiar a proteção social e complementar o crescimento econômico, a subnutrição e a desnutrição podem ser eliminadas. Ainda, na perspectiva da FAO, os resultados revisados da fome no mundo implicam que o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM) de reduzir pela metade a prevalência da subnutrição no mundo em desenvolvimento para o ano 2015 está a nosso alcance, se os países adotarem medidas apropriadas para inverter o desaceleramento econômico registrado desde 2007/2008. Para que o crescimento econômico resulte na melhoria da nutrição dos mais necessitados, os pobres devem participar desse processo de crescimento e de seus benefícios. Além disso, o crescimento agrícola e econômico deve incluir a dimensão da nutrição. O crescimento tem que resultar numa melhor situação nutricional através de um aumento das oportunidades dos pobres para diversificar sua dieta; a melhoria do acesso à água potável e saneamento; a melhoria do acesso aos serviços de saúde; um melhor conhecimento por parte dos consumidores sobre a nutrição e as práticas de cuidado infantil adequadas; e uma distribuição seletiva de complementos alimentícios em situações de grave carência de micronutrientes. O informe também afirma que a proteção social é crucial para acelerar a redução da fome. Em primeiro lugar, pode proteger os mais vulneráveis que não têm se beneficiado do crescimento econômico. Em segundo lugar, a proteção social, adequadamente estruturada, pode contribuir de forma direta para um crescimento econômico mais rápido mediante o desenvolvimento dos recursos humanos e o fortalecimento da capacidade dos pobres, especialmente dos pequenos agricultores.
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necessário que as mulheres se beneficiem das melhorias para reduzir a fome e a desnutrição porque, quando as mulheres têm maior controle sobre a renda familiar, tende-se a gastar mais dinheiro com itens que melhoram a nutrição e a saúde. Segundo o relatório, o crescimento econômico deve resultar em uma receita adicional para o governo em tributos, o que pode e deve financiar o desenvolvimento da educação, além da realização e diversificação de programas públicos de alimentação e saúde. Também é essencial, e isso é fundamental para resolver a situação política caótica atual do Haiti, uma boa governabilidade, sem esquecer o fornecimento dos bens públicos essenciais; estabilidade política; garantia do Estado de direito; respeito aos direitos humanos; e um controle maior sobre os casos de corrupção. E é justamente o crescimento agrícola, tendo como foco a produtividade dos pequenos agricultores, o que, para a FAO, pode melhorar, substancialmente, a situação econômica dos países. Esse crescimento agrícola é especialmente importante em países de baixa renda, onde a agricultura contribui bastante para a redução da pobreza. Uma maior atenção à integração dos pequenos agricultores ao mercado não só ajuda a atender à demanda futura por alimentos, mas também vai abrir mais oportunidades de se estabelecer ligações com a economia rural não agrícola, possibilitando que os pequenos agricultores adquiram bens e serviços produzidos na própria comunidade. A redução da desnutrição, conforme o relatório, é outro ponto crucial para o crescimento econômico dos países de baixa renda. Para ter mais segurança alimentar e nutrição é preciso mais do que aumentar o consumo de alimentos, mas também envolve a melhoria da qualidade dos alimentos, ou seja, a diversidade da dieta, a variedade, o teor de nutrientes. Até agora, para a instituição da ONU, a ligação entre crescimento econômico e nutrição tem sido débil, tendo em vista que as políticas para apoiar estes objetivos devem ser aplicadas em uma estrutura integrada entre agricultura, nutrição e saúde. O resultado de políticas que façam a integração entre esses três eixos pode ser claramente explicado: uma dieta nutritiva é vital para a saúde das pessoas e para que estas explorem plenamente o seu potencial físico e cognitivo e contribuam para o crescimento econômico. “Melhor nutrição na infância
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia Os resultados da última pesquisa da CNSA indicam que, em nível nacional, apenas 17% das famílias, em moradias urbanas ou rurais, se encontram em situação de consumo alimentar pobre, no limite do aceitável. O restante é miserável. A análise dos dados referentes ao consumo alimentar, segundo os diferentes níveis de estratificação geográficos considerados, mostra, porém, uma pequena melhoria geral, nesta faixa de consumo alimentar, entre 2007 e 2011. Nas zonas rurais, todavia, a predominância do consumo alimentar pobre, no limite do aceitável, caiu de 25% em 2007 a 20% em 2011. Nas áreas diretamente afetadas pelo terremoto, observa-se, igualmente, uma clara tendência à baixa dessa predominância, entre fevereiro de 2010 e maio de 2011. De 30% em fevereiro de 2010, a porcentagem das famílias cujo consumo alimentar é pobre no limite do aceitável passou de 27% em 2010 para 13% em maio de 2011. E pouco está sendo feito. A baixa é também acentuada nos acampamentos: a predominância das famílias cujo consumo alimentar é pobre no limite do aceitável reduziu de 42% em fevereiro de 2010 para 27% em junho de 2010, e para 19% em maio de 2011. Da mesma forma, nota-se uma baixa significativa que pode ser percebida nos departamentos do Noroeste, do Norte e do Nordeste, que viram passar as percentagens de famílias cujo consumo alimentar é pobre no limite do aceitável de 42%, 38% e 35%, em 2007, para percentagens respectivas de 36% e 17%, em 2011. Por outro lado, a percentagem de famílias cujo consumo alimentar pobre no limite do aceitável aumentou, entre 2007 e 2011, nos departamentos do Centro (de 18% para 22%), de Nippes (11% para 18%) e do Sul (de 16% a 20%). Em nível nacional os tubérculos, as bananas e, em terceiro lugar, os cereais, constituem as culturas mais praticadas. De fato, três em cada quatro famílias (75%) cultivam tubérculos, um pouco mais de dois terços cultivam bananas (67,88%) e cerca de seis famílias em 10 cultivam cereais. A cultura de legumes (44,21%), que também não deve ser esquecida, é cultivada em diferentes zonas, modos de vida e departamentos (cerca de quatro famílias em 10).
Enquete Nacional da Segurança Alimentar (ENSA) A análise por departamento mostra que no Sul, como Grand’Anse, e no Sudoeste as famílias cultivam, com vigor,
cereais, tubérculos e bananas. Um grande número de famílias cultiva, igualmente, essas diferentes espécies nas zonas agro-pastoris semiúmidas e, nas zonas secas, agricultura e pesca. Frutos e legumes, ao longo do ano todo, óleos essenciais, flores e plantas ornamentais: tudo brota nesse paraíso vegetal e da maneira mais natural. E isso não é dado criado por haitianos, são informações citadas no Internacional Paris Match. A agricultura permanece o mais importante setor gerador de empregos. Ela ocupa perto de 46% dos trabalhadores haitianos. Com um terço de seu território de planícies aráveis, o potencial de cultivo é, portanto, imenso. As principais produções agrícolas do País permanecem sendo o milho, os feijões, o arroz e as mangas. A maior virtude ainda é que a agricultura haitiana não tem, praticamente, nada de produto químico nocivo, principalmente fertilizantes, pesticidas e herbicidas originados e utilizados nos países industrializados. A forte tendência pelos produtos “BIO” fará eclodir a demanda pelos produtos haitianos, tanto pela grande comunidade haitiana que vive no estrangeiro, como pelas outras etnias. Passeatas em 2010, promovidas pelos camponeses, denunciavam a investida da multinacional Monsanto, com a distribuição de grãos transgênicos e o consequente aparato de maquinário e agrotóxicos, mas que não foi para a frente diante da reação dos camponeses haitianos e das próprias condições dos terrenos locais, de pequenas dimensões e sem condições de utilização de grandes máquinas agrícolas.
Destinado à exportação O Haiti é um dos primeiros produtores de mangas do Caribe e da América Central. O café, o cacau, os óleos essenciais, as mangas franciques (fruta nativa) são os produtos vedetes da exportação haitiana. Essas mangas são muito apreciadas pelo seu gosto, textura e aroma. Milhões de caixas são exportadas para os Estados Unidos, seu maior comprador. O Canadá também representa um mercado atraente, pois os canadenses apreciam muito os produtos naturais. Em razão da variedade de seu clima, o Haiti pode desenvolver estufas e aumentar sua produção de legumes,
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A banana está em quase todo lugar, crescendo em pequenas plantações, na beira da estrada. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
A Flórida tem cada vez mais dificuldades para sustentar suas plantações enquanto que, no Haiti, estão disponíveis vastas zonas cultiváveis para laranjas, citrus ou pamplemousse (grape fruit), fora da estação. É preciso continuar a desenvolver as estufas como se faz para as mangas franciques ou francis e o café do tipo arábico, de que se faz o excelente “Haiti Bleu”, exportado para o mundo todo, principalmente para a Europa, Estados Unidos e Japão.
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fora da estação, para o mercado onde o clima é temperado: pepino, alface, abobrinha, tomates, feijões, cenouras, repolho, alcachofras etc. O clima temperado de suas numerosas montanhas (dois terços de seu território) favorece a cultura de uma variedade de flores ornamentais. Na verdade, as flores ornamentais do Haiti (rosas, orquídeas, gladíolos etc) competem tanto em beleza como em preço com as flores da Jamaica, da Colômbia ou da Holanda.
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia
Governo lança programas para reduzir a pobreza Por Benedito Teixeira
Programas do governo são voltados prioritariamente para as mães. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
O governo do presidente haitiano, Michel Martelly, começa a dar os primeiros passos para tentar acabar com a fome no País. Dois programas, ainda tímidos, foram recentemente anunciados. Batizados em creóle haitiano, “Aba grangou” (Não à fome), e “Ti mamman cheri” (Mãezinha querida), surgem como uma esperança oficial contra a pobreza. O primeiro foi lançado em janeiro de 2012 pelo presidente e sua esposa, a primeira dama Sophia Martelly, que está à frente do Programa Nacional de Luta contra a Fome e a Desnutrição, o ‘Aba grangou’. Tendo como modelo as experiências do Brasil, México e República Dominicana, será realizado com a ajuda de representantes das Nações Unidas, organizações não governamentais (ONG), organizações populares e especialistas em segurança alimentar, entre outros parceiros. Até 2016, o governo quer reduzir em 50% o número de pessoas que passam fome. A erradicação completa é estimada para 2025. O Programa tem três eixos estratégicos – projetos de segurança social, investimento agrícola e melhoria de serviços básicos. São nove ministérios envolvidos, sete organizações independentes e a Cruz Vermelha Haitiana, que deverão implantar 21 programas a serem realizados em todo o País, de forma federalizada e harmônica. Já em 2012, esperava-se que 10 mil agentes de desenvolvimento fossem mobilizados para acompanhar as famílias beneficiadas. Durante a Rio + 20, no Rio de Janeiro, em junho de 2012, Sophia Martelly aproveitou para conhecer alguns projetos do governo brasileiro de combate à pobreza. Antes do “Aba grangou”, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), do governo brasileiro, já mantinha um projeto em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação para construção de cisternas de captação de água da chuva.
Já o “Ti manman cheri” utiliza o celular para anunciar a distribuição de até 1 mil gourdes todos os meses para cada mãe, que tenha filhos comprovadamente matriculados na escola e esteja cadastrada no programa. O presidente manda uma mensagem pelo telefone das mães anunciando o benefício, o que não deixa de ser uma espécie de propaganda do governo. Detalhe: o Programa conta com a parceria da Digicel, operadora de telefonia que patrocinou boa parte da campanha de Michel Martelly à Presidência da República e hoje mantém, praticamente, o monopólio do serviço no País. O projeto é financiado pelos fundos da Petrocaribe, totalizando 13 milhões de dólares. “Uma revolução para o País”. A declaração ufanista do primeiro-ministro haitiano, Laurent Lamothe, parece não condizer ainda com a abrangência do programa. As famílias são cadastradas por seis meses, com possibilidade de renovação por cinco anos. Até o fim de 2012, serão 100 mil famílias beneficiadas, que, pelas contas do governo, impactarão 500 mil pessoas. Ou seja, cerca de 5% da população do Haiti.
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Para proteger um patrimônio natural em perigo
PhD em Antropologia pela Universidade de Nova York. Atualmente trabalha como consultora independente em Porto Príncipe e é Membro do Centro de Estudos sobre o Desenvolvimento das Culturas e Sociedades (CEDERCS), da Universidade de Quisqueya, em Porto Príncipe, em projetos de base. Tradução: Delza Tereza Lombardi
Diamond compara a República Dominicana com a República do Haiti. Adivinha-se em quais categorias respectivas – sucesso ou fracasso – ele coloca os dois países! Haiti é o mal exemplo a que não se deve seguir e apresenta uma tomada de consciência severa: segundo ele, “a maior ameaça para o mundo atual é que condições semelhantes às do Haiti se generalizem no terceiro mundo” (Diamond 2005: 499). Pode-se, certamente, criticar Diamond por certo determinismo ecológico, e um olhar, às vezes, superficial e errado sobre o Haiti, mas há ensinamentos proveitosos a tirar dessas reflexões. Sua comparação com a República Dominicana é instrutiva, e é ainda mais produtivo para nós haitianos de hoje, comparar o nosso comportamento em relação ao meio ambiente com aquele dos polinesianos da Ilha de Páscoa. As devastações causadas pela tempestade Jeane e os ciclones Faye, Gustav, Hanna e Ike – para nós acantonados por um passado recente - deveriam nos questionar. O terremoto de 2010 nos colocou frente a uma grande vulnerabilidade. Nós aprendemos a lição de vida? Vamos, enfim, reconhecer que chegou o tempo de agir e de mudar de comportamento? Precipitando-nos alegremente na construção de um parque industrial em Caracol, não estamos cortando conscientemente as nossas últimas árvores? Uma solução, a curto prazo, que arrisca hipotecar o futuro. A criação do parque industrial promete, primeiramente, 20.000 empregos, e, dentro de quatro anos, atingir de 60.000 a 80.000 empregos. Entretanto, o parque só será atrativo se o Haiti conseguir manter sua “vantagem comparativa”, sobre uma mão de obra abundante, mas não qualificada e a quem serão oferecidos baixos salários. [1] Mas, como assinala o relatório, esta “vantagem” é volátil: “sendo um país onde os custos de mão de obra são baixos, o Haiti pode sustentar a concorrência na baixa escala do mercado, no momento atual, mas essa situação não persistirá,
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Por Rochelle Doucet
Uma vez mais, parece que damos razão a Jared Diamond, biólogo, professor de geografia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Diamond coloca o crucial problema do “desenvolvimento durável e ecologicamente sustentável “ através dos tempos, e procura compreender os mecanismos pelos quais uma sociedade segue pela via da autodestruição a curto, médio e longo prazos. Sua teoria desenvolvida na obra ‘Collapse’ (desmoronamento) é simples: há sociedades que escolhem fracassar, há outras que escolhem vencer. As primeiras esgotam seus recursos naturais e são incapazes de reconhecer os momentos quando as mudanças tornam-se necessárias à sua sobrevivência. As segundas, ao contrário, conseguem inverter seus paradigmas culturais, mexer em sua confortável rotina e tomar medidas audaciosas que asseguram seu bem estar coletivo. Cinco fatores principais são a base dessas “escolhas”. O que importa absorver da análise sobre os comportamentos coletivos, feito por Diamond, é a relação que estabelece entre as necessidades do grupo social, seus valores, os recursos do meio e a visão de seus líderes. Para Diamond, um grupo, em seu conjunto, pode tomar decisões ruins, baseando-se em decisões individuais erradas. Diamond ilustra sua tese tomando como exemplo civilizações passadas e também sociedades contemporâneas. O exemplo passado, o mais representativo é, talvez, o da Ilha de Páscoa. Segundo Diamond, esta sociedade outrora próspera, vivendo em uma vegetação viçosa, sofreu um declínio lento, mas inevitável, pois as preocupações políticas e sociais tiveram mais importância que a preservação do meio ambiente. Os primeiros Polinesianos da ilha cortaram até a última árvore para erguerem estátuas a seus deuses. O resultado do desmatamento, previsível a longo prazo, mas invisível internamente e a curto prazo, atingiram em alguns séculos a desertificação e o desaparecimento do grupo humano estabelecido sobre a ilha. Para as sociedades contemporâneas,
Soberania alimentar: um território agrícola em agonia provavelmente, indefinidamente. De fato, os custos de mão de obra em vários outros países valem ouro e já são competitivos em relação aos do Haiti”. Nós deveríamos cuidadosamente pensar nas escolhas econômicas e adotar uma abordagem holística. Nós sabemos o que isto quer dizer, quando se quer transformar agricultores haitianos em assalariados nas usinas subcontratadas, sem pesar as consequências dessa tomada de decisão, numa perspectiva global. Nós já fizemos uma experiência como essa, com o projeto “revolução econômica” de Jean Claude Duvalier e seu projeto de fazer do Haiti a “Taiwan do Caribe”. Desde o fim dos anos 80, nós aceleramos a destruição da produção nacional agrícola “para dar comida barata ao povo”. Importando arroz, nós deixamos os campos haitianos ao abandono. O presidente Bill Clinton reconheceu publicamente os impactos nefastos da escolha econômica para o Haiti, baseada sobre premissas neoliberais erradas. A criação do parque SONAPI, em Porto Príncipe, e a criação de favelas que o seguiu, afetam ainda toda a zona metropolitana. Em relação ao meio ambiente, assistimos – impotentes ou despreocupados – a deterioração, sob nossos olhos, de uma das mais belas baías do mundo (a terceira, depois da do Rio e de Nápoles) com suas montanhas próximas e suas preciosas águas vertentes das encostas que alimentam fontes hoje poluídas e com o curso de água reduzido. Porto Príncipe poderia ter sido a mais bela capital do Caribe. Hoje, Port-auxFatras sofre as consequências de nossas inconsequências. O exemplo recente da CODEVI, em Ouanaminthe, é gritante. A criação de empregos que promete o Parque Industrial de Caracol não será sem riscos, segundo o que revelam os relatórios encomendados pelo Ministério das Finanças e o BID, publicados em maio de 2011. [2] Os riscos são numerosos e graves os perigos identificados pelo relatório KOIOS. Eis aqui alguns. É preciso, primeiramente, efetuar as medidas do Parque, situado sobre as melhores terras aráveis e irrigadas da zona e retirar do local mil agricultores e suas famílias [3]. Este parque será a causa de grande estresse sobre as infraestruturas sociais e urbanas, e deverá provocar uma imigração estimada entre 30.000 a 300.000 pessoas. Será exercida, pois, uma enorme pressão demográfica sobre os recursos disponíveis. Somente para as necessidades de fabricação e de pintura dos tecidos, será preciso bombear 6.000m3 de água por dia do lençol freático – o que poderia
comprometer a recarga da água - e jogar as águas usadas – mas tratadas, esperamos – no Rio Trou du Nord e, por fim, na baía de Caracol. A eletricidade não será verde – oportunidade de inovação perdida, mas se produzirá, em vez disso, a gasolina. Dessa produção restarão dejetos pesados e tóxicos. A construção de 5.000 casas pelo governo americano em parceria com Food for the Poor [4] não poderá tramar contra o perigo do favelismo, não só em Caracol, mas em localidades vizinhas. Nós poderíamos continuar a lista de riscos e impactos negativos enumerados no relatório, pois ela é longa.
Plano de gestão e medidas de mitigação indispensáveis Segundo o Ministro Toussaint, o Ministério do Meio Ambiente precisaria de cerca de 50 milhões de dólares para um plano que suavizasse os riscos. Na data, o Ministério só dispôs de 4,2 milhões de dólares [5]. O que vai acontecer se os fundos não estão disponíveis e se as recomendações contidas nos diferentes planos de gestão não podem ser colocadas em prática? Nós conhecemos a resposta: muito provavelmente NADA. E isto é a razão de nossa preocupação. Em vista de nossa despreocupação passada, de falta de sensibilidade da população e das mais altas instâncias do Estado sobre as questões ambientais e patrimoniais, e, principalmente, sobre a falta de infraestruturas legais e administrativas e as carências atuais em recursos materiais, humanos e financeiros. Temos nós boas razões de acreditar que todas as medidas serão tomadas para enfrentar todos os problemas mencionados, e isto, antes da abertura do parque, previsto para o fim de março de 2012? Esperamos, pois, de nós, cidadãs e cidadãos haitianos, ou uma confiança cega nos políticos e homens de negócios deste país e uma fé beata na benevolência internacional, ou então nos é forçado adotar uma mentalidade “mágica” que nos permitiria afirmar que neste “singular pequeno país”, as mesmas causas não produzem mais os mesmos efeitos. Tudo vai bem, as coisas se arranjarão por elas mesmas. Nós temos uma propensão a classificar todo aviso baseado em dados científicos numa lista de elucubrações fantasiosas de um punhado de lunáticos. Em nossa incredulidade e em nossa despreocupação proverbiais, o conceito “catástrofe previsível” é simplesmente inconcebível. Nós estamos no Haiti... No país do Bom Deus, duas vezes Bom.
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No estado atual das coisas, o dilema é: como compreender as oportunidades econômicas, a curto prazo, oferecidas pelo futuro Parque de Caracol, sem jamais comprometer o patrimônio natural e cultural de toda a região? Estudos científicos e de ações de mitigação e de salvaguarda multissetoriais são indispensáveis e urgentes como condição para se colocar em obra o projeto. Senão, o Parque de Caracol se inscreverá no livro vermelho das catástrofes ecológicas anunciadas. Endereço original do texto: http://www.reconstruction-haiti.org/IMG/pdf/revue2.pdf Publicado na revista L’Observatoire de la reconstruction, N. 2, de agosto de 2012.
Referências ALTERPRESSE Haïti-Parc industriel de Caracol: Un modèle, pour Michel Martelly . Silence sur les impacts négatifs… 29 nov. 2011 AYITIKALE Je. Le parc industriel à Caracol: Une situation « gagnantegagnante » pour tous?http://haitigrassrootswatch. squarespace.com/ BID Communique de presse 28 novembre 2011. www.iadb.orgCadet , Carl Henry. Pour un parc respectueux de l’environnement. Le Nouvelliste, mercredi 8 février 2012. DEAGAN, Kathleen (editor). Puerto Real: The Archaeology of a Sixteenth Century Spanish Town in Hispaniola. University Press of Florida, Gainesville, 1995. _______ . Curation of materials from En Bas Saline. Florida Museum of Natural History. En Bas Saline Project, 2003. DIAMOND, Jared. Collapse. How Societies Choose to Fail or Succeed. New York : Penguin Books. 2005. FoProBiM. (Fondation pour la Protection de la Biodiversité Marine) Quis custodietipsoscustodes? www.FoProBim.org FoProBiM(Fondation pour la Protection de la Biodiversité Marine) et Reef Fix Rapid Assessment of the Economic Value of Ecosystem Services Provided by Mangroves and Coral Reefs and Steps Recommended for the Creation of a Marine Protected Area, Caracol Bay, Haïti. May, 2009 For the Organization of American States (OAS) and the Inter-American Biodiversity Information Network (IABIN). www.foprobim.org JOACHIM, Dieudonné. Le Nouvelliste, Haïti: Caracol aura le plus grand Parc industriel du pays 28 nov 2011
KOIOS Associates LLC. Étude des Impacts Environnementaux et Sociaux (EIES) du Parc Industriel dans la Région du Nord d’Haïti présenté au Ministère de l’Économie et des Finances de la République d’Haïti, 21 juin, 2011. MEF-UTE et BID. Contrat HA-L1055-SN2. Plan d’Action pour la compensation et le rétablissement des moyens d’existence des personnes affectées par le projet du parc industriel de la région du nord. Réalisé par ERICE AZ, PauP Sept 2011 MEF-UTE: www.ute.gouv.ht/caracol/images/stories/docs/PAR.pdf, PIRN. Plan de Gestion Environnemental et Social (PGES) pour Le Parc Industriel de la Région du Nord d’Haïti. 5 août 2011. WALL STREET Journal. Planned haitian textile park provides hope for jobs.11 Janvier 2011. WILFORD, John Noble. Columbus’s lost town: new evidence is found. New York Times. August 2
Notas [1] Wall Street Journal: « Duty-free entrance to the U.S. is “a big reason” behind Sae-A’s decision, Mr. Garwood said. It means that Sae-A will be able to offer discounts to U.S. clients, who will then have incentives to place more orders with the company, he said. (…)” This is business,” Mr. Garwood said. “At the end of the day, it’s about making a profit. It’s finding a country like Haiti with close proximity to the U.S. and having access to a labor supply. There’s such unemployment here there wont be a problem finding employable people although it will take time and effort to train them.” [2] Pelo menos quatro estudos foram encomendados: dois atribuídos à firma Koios, um ao grupo Rocher, o outro à Universidade Quisqueya, segundo o dossiê de Ayiti Kale Je. Mas para que eles servem se as recomendações não são levadas em conta? [3] Um plano foi previsto pelo Ministério haitiano, mas segundo as reportagens de Ayiti Kale Je, os agricultores não receberam ainda nenhuma compensação. [4] Food for the Poor, conhecido por ser um organismo através do qual os Estados Unidos frequentemente passam para o Terceiro mundo os produtos de seus fazendeiros, que são subvencionados. [5] Carl Henry Cadet. Pour un parc respectueux de l’environnement. Le Nouvelliste, mercredi 8 février 2012 FoProBiM. Quis custodietipsoscustodes? www.FoProBim.org.
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Conclusão
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Capítulo 4 Por Phares Jerôme
Uma alternativa de desenvolvimento econômico e social
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Já em decadência, a economia haitiana foi varrida pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010. De acordo com o Post Disaster Needs Assessment/Avaliação das Necessidades PósDesastres (PDNA), o valor total dos danos e prejuízos causados pela catástrofe é estimado em 7,804 bilhões de dólares, o equivalente a 120% do PIB do país em 2009. O setor privado pagou o mais pesado tributo em danos e perdas: 5,722 bilhões de dólares, ou 70% do total, enquanto a participação do setor público foi de 2,081 bilhões de dólares, ou 30%. Especialistas haitianos e estrangeiros que participaram da elaboração do documento constataram variação nos fluxos econômicos (perdas de produção, volume de negócios reduzido, perda de empregos e salários, custos de produção crescentes etc), que atingiram 3,561 bilhões de dólares, ou 45% do total do prejuízo. Os setores mais afetados foram o comércio, transportes, telecomunicações e indústria. De acordo com estimativas feitas logo após o terremoto, o Haiti precisa de 11,5 bilhões de dólares americanos durante um período de três anos para se recuperar dos danos. Uma soma que o País não dispõe. As autoridades haitianas tiveram de recorrer à comunidade internacional na Conferência Internacional sobre o Haiti, em 31 de março 2010, que prometeu o montante de 9,9 bilhões de dólares ao País, divididos em remessas por um período de mais de 10 anos.
FOTO: FRANCISCA STUARDO
A socioeconomia solidária está presente nos textos da Constituição haitiana de 1987. Nada mais simbólico para este País que, em meio a uma situação de grave pobreza, mostra que é possível sobreviver a partir de exemplos simples de economia solidária e cooperativismo, distribuídos nas suas diferentes regiões como alternativa à exploração internacional.
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social Mais de dois anos após o desastre, o Haiti é uma figura de Estado que pena para escapar de uma violenta guerra. Nenhum dos prédios públicos destruídos pelo terremoto ainda foi reconstruído. É preciso admitir, no entanto, que grandes esforços foram feitos pelas autoridades haitianas e seus parceiros da comunidade internacional para permitir que muitas pessoas desabrigadas voltassem para casa e livrar os bairros de toneladas de detritos gerados pelos edifícios destruídos no terremoto. A nação haitiana ainda está longe dos grandes projetos de reconstrução figurados no PDNA. Os grandes canteiros da reconstrução estão com trabalho cada vez mais lento. Talvez os fundos prometidos em doações pela comunidade internacional ainda não chegaram, ou não cheguem no ritmo desejado. De todo modo, esse é o sentimento de muitos haitianos e, até mesmo, de algumas autoridades do alto escalão do Estado. Não há, no PDNA, nenhuma menção de que o Haiti vai mobilizar recursos próprios como parte da reconstrução. No entanto, alguns especialistas acreditam que o Haiti, a partir da economia social ou solidária, é capaz de mobilizar recursos locais para se reconstruir. Uma alternativa à ajuda internacional, que nem sempre chega no momento desejado.
República cooperativista? A Constituição Haitiana de 1987, no seu artigo 1º, define o Haiti como uma “República cooperativista”. Isso poderia explicar por si só porque o conceito de economia solidária deveria ocupar um lugar de destaque nas políticas públicas do País. De acordo com Lionel Fleuristin, diretor executivo do Conselho Nacional para o Financiamento Popular (KNFP), a economia social e solidária tem uma longa história no Haiti. Ela remonta a antes da independência do País, em 1804, com os escravos. Os esquadrões, ou “escouades”, disse ele, são os ancestrais da economia social no Haiti. Segundo Fleuristin, nesta forma de economia, que não visa ao lucro, a criação de riqueza não deve ser feita em detrimento da pessoa humana e do meio ambiente. Ela se opõe diretamente à atual economia de mercado - neoliberal - instalada no País, que busca apenas o lucro.
O mercado de flores é uma das áreas mais conhecidas em Porto Príncipe. FOTO: FRANCISCA STUARDO
Normalmente, os camponeses haitianos são pequenos agricultores sem subsídios governamentais, tendo a posse do terreno ou tendo apenas alugado seus lotes de terra. Em alguns casos, eles trabalham a terra de um latifundiário, de forma livre ou em condições de caráter feudal, independentemente e segundo seus próprios recursos financeiros e técnicos. Eles raramente trabalham para o agronegócio, grandes fazendas agrícolas, mas podem oferecer seus serviços aos agricultores vizinhos, voluntariamente e esperando reciprocidade. É o que se chama de “esquadrão”. Essa prática na atividade camponesa, que quase não existe mais, permitia a cada membro da comunidade trabalhar em seus lotes de terra com menos dificuldade. Hoje, em algumas áreas rurais, os agricultores reclamam do desaparecimento da vida associativa. Os campesinos muito pobres preferem vender o seu dia de trabalho a um agricultor em situação um pouco mais “confortável”. Para Carole Pierre-Paul Jacob, coordenadora do escritório executivo da Solidariedade para as Mulheres Haitianas (Sofa), o Haiti sempre desenvolveu a economia solidária. Os “lakous” e os esquadrões, diz ela, constituem o que se tem de mais solidário na economia do Haiti. Para muitos especialistas e profissionais em economia solidária,
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Qualquer parede vira vitrine pelas ruas da capital haitiana. FOTO: FRANCISCA STUARDO
cooperativas que operam no Nordeste, Norte e Noroeste. Na área de financiamento e apoio técnico, há o Conselho Nacional de Financiamento Popular (KNFP), criado em 1998 a partir da união das três principais instituições de microcrédito. Essa rede inclui, atualmente, nove associações que dedicam seu trabalho ao financiamento das atividades econômicas do mundo rural haitiano. De acordo com um documento da Anacaph, existem, pelo País, em torno de 175 cooperativas de crédito, 20 ONG/fundações/associações, quatro departamentos ou subsidiárias de bancos comerciais, mais de 75 cooperativas e uniões de cooperativas e 3 mil estruturas de financiamento de base (bancos comunitários ou de solidariedade mútua). É um número significante para não representar nenhuma preocupação por parte do governo haitiano.
Para entender o cenário econômico Antes de apresentar um panorama sobre a economia solidária no Haiti, é preciso conhecer e entender alguns fatos e reflexões sobre o seu cenário econômico nos últimos anos,
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há uma falta de reconhecimento desse setor pelo Estado haitiano. “Falamos de investimentos estrangeiros como se não tivesse nada no País para ser incentivado”, lamenta Lionel Fleuristin, que diz constatar o declínio de certas formas de economia comunitária no Haiti. Ele, por outro lado, destaca que as cooperativas de poupança e crédito são mais valorizadas em comparação com outras instituições de economia solidária, como as cooperativas de produção. Os bancos comunitários, os grupos de ajuda mútua solidária e as cooperativas financeiras e não-financeiras são as principais instituições de economia solidária atualmente identificadas no País. São instituições que, geralmente, se agrupam em associações. Primeiro, existem as cooperativas de poupança e de crédito. Entre as associações mais conhecidas do setor está a Associação Nacional de Cooperativas de Crédito do Haiti (Anacaph), criada em 21 de junho de 1998, que conta com 46 cooperativas de crédito. Ela se apresenta como uma rede de cooperativas de fundos e crédito que incentiva o desenvolvimento do financiamento descentralizado. Há também a Le Levier, que é uma federação de cooperativas de fundos e créditos, fundada em 30 de junho de 2007. Ela inclui 21 cooperativas de crédito em todo o País. Algumas cooperativas de poupança e crédito funcionam sob a supervisão do Conselho Nacional das Cooperativas (CNC), do Banco Central Haitiano (BRH) e do Ministério do Planejamento e Cooperação Externa (MPCE). Há, por outro lado, cooperativas de produção e serviços. Neste setor, há a Rede de Associações Cooperativas para a Comercialização e Produção Agrícola do Baixo Artibonite (Racpaba), que é uma estrutura de sete cooperativas, criada em julho de 2001, e que conta com cerca de 2.350 membros. A Racpaba especializou-se, sobretudo, na produção e comercialização de arroz, a principal produção do departamento de Artibonite. O café é uma das principais produções do Haiti. Várias associações de produtores de café foram identificadas em todo o País, incluindo a Federação das Associações Cafeeiras Nativas (FACN), agrupando as associações de produtores dos departamentos do Sudeste e da Grand’Anse, e as Cooperativas Cafeeiras do Norte (Recocarno), com as
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social o que muito tem a ver com a presença dos Estados Unidos, que tomaram a liderança da exploração política e econômica no País. Nas décadas de 80 e 90, o Haiti passou a ser um grande importador de gêneros alimentícios e diversos outros produtos dos EUA. Atualmente, é o terceiro maior importador mundial de arroz, principalmente oriundo dos Estados Unidos, quando suas terras são propícias para a produção autossustentável do produto. Que o diga o arroz nativo, que nossa equipe de reportagem encontrou sendo vendido na estrada, bem mais caro do que o comprado dos Estados Unidos. Só para se ter uma ideia do quanto o domínio econômico estadunidense se perpetua e se amplia no Haiti, atualmente mais cinco parques industriais para exportação de produtos de vestuário e tecidos para os Estados Unidos estão sendo construídos. De acordo com o coordenador da Plataforma Haitiana por um Desenvolvimento Alternativo (Papda), Camille Chalmers, as chamadas ‘zonas francas’ existem desde 1969. Agora, são mais cinco parques, com um investimento muito destrutivo, que não considera os fatores ambientais e nem os fatores sociais. Ele conta que a Papda trabalhou junto ao parque industrial de Codevi, que fica na fronteira com a República Dominicana. Lá, 70% das mulheres recebem um salário por oito horas, mas trabalham 12 horas. Os patrões não pagam pela duração do trabalho, mas pela quantidade de roupas feitas. Ou seja, o número de roupas impostas por dia não pode ser produzido em oito horas e as mulheres passam três ou quatro horas a mais, “uma superexploração terrível e sanguinária, por salários de 125 gourdes a 200 gourdes ao dia. Temos tudo documentado”, denuncia. Camille Chalmers cita apenas alguns casos isolados de rompimento com a estrutura de dominação econômica. É o caso da cooperativa de leite Lèt Agogo, que consegue se diferenciar porque um dos fundadores é do alto escalão do Ministério da Agricultura. No entanto, a visão dominante do Estado é expulsar o pequeno campesinato para instalar grandes áreas de agroexportação. Para as elites, o atraso do Haiti é o pequeno campesinato, visão coerente com a da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), que agora estaria investindo milhões de
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Tudo é vendido pelas ruas. As farmácias ambulantes são o tipo de comércio que causa mais estranhamento aos turistas. FOTO: FRANCISCA STUARDO
damente porque os camponeses tinham ainda a memória viva da luta contra os três impérios: Espanha, França e Portugal. Houve uma grande iniciativa em que se formou um exército de 15 mil camponeses armados contra os EUA. O segundo elemento, para o economista, é que se instalou uma economia caribenha centrada em Cuba e na República Dominicana que, historicamente, haviam mantido os laços com a Espanha, por exemplo, ou com Portugal e França, porque os dois países mantiveram todas as infraestruturas de logística como, por exemplo, ferrovias, rodovias e portos. Então, investir no Haiti era muito mais caro porque, além de construir a empresa, era preciso ainda investir em infraestrutura para transportar a riqueza. A Haitianos carregam todo tipo e
estratégia defendida pelos Estados Unidos é que deixassem
quantidade de mercadoria em
o Haiti de lado e fossem investir em Cuba e na República
farneis sobre a cabeça.
Dominicana, organizando uma migração forçada de trabalhadores do Haiti para os países vizinhos.
FOTO: FRANCISCA STUARDO
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dólares no programa Winner para estimular a produção de agrocombustível. A ideia é converter 25% do território haitiano em produção de álcool e biodiesel. Estão ainda planejadas muitas aquisições de terras de camponeses para instalar mais zonas francas, projetos de turismo e de agronegócio. Um dos efeitos da ajuda estrutural dos Estados Unidos foi o encarecimento do crédito. No Haiti, os bancos privados utilizam somente 25% do apurado para financiar crédito. Além disso, é um crédito concentrado em Porto Príncipe, já que 92% do total estão emprestados a pessoas da Capital, basicamente para atividades de consumo, nunca para financiar atividades produtivas. “Por isso, temos uma economia violenta, uma economia de especulação. Nunca teremos uma economia produtiva, com uma classe dominante de investidores que se aproveitam de situações comerciais”, comenta o coordenador da Papda. Por exemplo, o grupo que controla o comércio de importação e exportação tem sempre mantido níveis de ganhos muito altos, aproveitando-se da diferença de preço do mercado internacional e do preço nacional, supostamente com a cumplicidade do Estado. “Você tem aqui realmente uma situação de oligarquia rentista, que não investe seu dinheiro no Haiti, mas na República Dominicana, em Miami ou em outros países. Há um processo de fuga de capitais enorme. Todo dinheiro que entra, sai rapidamente para financiar as atividades dessa oligarquia lá fora”, explica Chalmers. Para piorar essa relação de dominação, um grande número de haitianos migrou para os Estados Unidos. São cerca de 2 milhões de haitianos vivendo em solo estadunidense, resultando em que aproximadamente 30% do PIB haitiano seja formado pela transferência de divisas. É 1,8 bilhão de dólares por ano que entra no País, enviado por haitianos que vivem no exterior, basicamente nos EUA. São os maiores em percentuais de remessas sobre o PIB da América Central e Caribe. Chalmers destaca que é muito interessante discutir essa questão porque, no começo do século XX, também houve interesse dos Estados Unidos em tentar implantar no Haiti empresas de agroexportação. O modelo escolhido foi o de importação, que começou com as bananeiras da América Central, mas que fracassou rapi-
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“Assim, o papel que nos impuseram foi a divisão regional do trabalho em benefício das empresas estadunidenses, foi de subministrar mão de obra barata. Em menos de 15 anos, saíram 300 mil trabalhadores haitianos para Cuba, uma migração massiva. E isso foi possível porque a economia era controlada pelos camponeses na produção de alimentos, possibilitando um crescimento demográfico importante”, conta Chalmers. Dessa forma, a população do Haiti passou de 400 mil pessoas, após a revolução de 1804, para mais de 5 milhões de pessoas, em 1970, com uma autossuficiência quase completa. Até 1972, o Haiti era autossuficiente em 98% do que consumia, um êxito impressionante da economia campo-
A venda de gêneros alimentícios acontece nos mercados e calçadas. FOTO: FRANCISCA STUARDO
nesa. Além da autossuficiência alimentar, produziam café, que era exportado e consistia na fonte básica de receita do Estado. Quer dizer, o Estado viveu 200 anos somente dos impostos por exportação de café. Situação esfacelada pela relação de submissão diante dos Estados Unidos e dos organismos financeiros internacionais.
A produção local subfinanciada No Haiti, a produção local está em queda livre há décadas. Segundo o Ministério da Agricultura, Recursos e Desenvolvimento Comunitário, entre 2003 e 2005 a produção nacional representou uma média de 43% do abastecimento de alimentos, enquanto que as importações de alimentos
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Haiti por si Não é uma surpresa que o número de devedores esteja, em 2012, atingindo a marca de 1 milhão. Para o professor Camille Chalmers, o microcrédito é simplesmente uma circulação de moeda. Segundo ele, o setor de microfinanças constitui uma maneira para capitalistas penetrarem ainda com mais vantagens no mercado haitiano. É tudo simplesmente manipulação. Carole Pierre-Paul Jacob concorda: “O microcrédito é o capitalismo dos pobres, dá a ilusão às pessoas de que são empresários mas, na realidade, eles são comerciantes”, diz a responsável pela Sofa. De acordo com Lionel Fleuristin, o microcrédito está a serviço da importação. O que deixa o País em desvantajosa dependência. O responsável pelo KNFP qualifica o setor de microcrédito como uma “perversão das cooperativas populares”. “A economia solidária representa uma alternativa à economia liberal, que não visa mais que ao lucro. Muitas vezes, penso que não há capitalismo como um meio de criação de riqueza. Isso é falso”, diz Camille Chalmers, que acredita que economia solidária é outra coisa. “As microfinanças baseadas em economia solidária podem proporcionar uma sinergia entre a economia e o social levando ao desenvolvimento sustentável”, alerta François Lermithe. Para ele, isso pressupõe sinergias, alianças e tomada de consciência das realidades haitianas e também das realidades culturais. Um processo de financiamento solidário, disse ele, combinando as questões econômicas e sociais, também pode considerar as questões ambientais de certas comunidades.
Experiências de economia solidária Quando falamos de experiências de economia solidária bem sucedidas, no Haiti, não se pode deixar de falar de Lèt Agogo, um programa de apoio ao desenvolvimento da produção de leite. É também o nome comercial de uma série de produtos lácteos disponíveis no mercado, como “Yawout”, que é um iogurte natural ou com frutas frescas e “Lèt-Bèf”, que é o leite integral esterilizado, aromatizado, de chocolate ou de baunilha e limão. Esse programa é realizado pela Veterimed, uma organização não governamental criada em 1991 por um grupo de veterinários haitianos, a fim de contribuir para o desenvolvimento nacional por meio de atividades nas áreas rurais. Ela é especializada em saúde e produção animal.
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mantiveram-se em alta em cerca de 51%, e a ajuda alimentar em torno de 6%. No entanto, em 1981, a participação das importações na disponibilidade de alimentos haitiana não chegava a 19%. Como se chegou a esse ponto? “A economia agrícola foi marginalizada em favor da exportação”, responde o economista Camille Chalmers, da Papda. Como prova dessa política, Chalmers denuncia que o governo haitiano escolheu implantar fábricas de subcontratação e exploração em terras férteis em detrimento de milhares de camponeses. “Existe uma segurança maior para as cooperativas de poupança e crédito em detrimento de cooperativas de produção”, constata Lionel Fleuristin. As organizações de produtores e outros grupos que se autodescrevem com a tarefa de promover a produção nacional, diz ele, não recebem qualquer assistência após a sua inscrição no Ministério dos Assuntos Sociais. Isso é, a seus olhos, uma anomalia. “Quando se abandona a produção local, a economia está a serviço da importação”, conclui o coordenador da KNFP, acrescentando que, atualmente, não há políticas públicas favorecendo o desenvolvimento da economia solidária ou da produção local. Por algum tempo, o campo do microcrédito vem crescendo no Haiti, de acordo com François Lhermitte, atual primeiro-ministro e, na época, ex-presidente diretor geral do Grupo de Gestão Estratégica (SMG), em uma apresentação sobre a evolução do setor, em um simpósio em setembro de 2010. Se, de 1946 a 1982, a prática de crédito para pequenos investidores foi uma exclusividade das cooperativas de fundos e crédito, mais comumente chamadas “cooperativas populares”, a realidade mudou há três décadas. Desde os anos 90, informa Lhermitte, a microfinança é apresentada como oportunidade comercial para distribuidores de serviços financeiros, notadamente microcrédito. “Em 30 de setembro de 2008, o mercado de microfinanças alcançou o montante de 6,3 bilhões de gourdes em termos de ativos, 4 bilhões de gourdes em termos de carteira e 2,6 bilhões de gourdes em termos de depósitos”, destacou François. O número de mutuários do setor foi de 245 mil, enquanto o número de poupadores seria de 799.455.
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Kasay: casa de farinha com uma linha de produção supereficiente Por Adriana Santiago Transitar nas estradas do Haiti é parar diante de cenas inusitadas. Foi isso que aconteceu quando vimos uma tapioca gigantesca sendo preparada em plataformas de dimensões igualmente enormes. Do lado de fora, uma verdadeira linha de produção. Gente chegando com a mandioca recém-colhida, outros descascando, outros ralando, outros pisando, outros tirando o sumo e outros tantos fazendo os beijus. Umas 50 pessoas, no mínimo, envolvidas nessa produção. O nome do beiju haitiano é outro, incompreensível para a escrita de um brasileiro não versado em bom crioulo haitiano. Um metro de diâmetro, mas são vendidos aos pedaços nas ruas de Porto Príncipe, tudo intermediado por um atravessador. Um homem que ninguém se deu o trabalho de lembrar o nome. Mas quem comanda a produção são duas mulheres: Dieu Dodonne, quatro filhos, e Metler François, 10 filhos. Rindo sem parar, talvez
Domingo à tarde, um grande número de pessoas leva a mandioca colhida para o Kasay. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
com uma ponta de orgulho, anunciam que não precisam de marido para comandar o estabelecimento. Elas são marchands, ou seja, arrendaram do proprietário do terreno. Isso quer dizer que ele recebe um percentual significativo do lucro, mas não disseram quanto era a divisão, talvez pudor de estarem na frente dos funcionários. Mas, pela experiência de exploração mundial, deve ser 50%, o conhecido “meeiro” no Brasil. Bem humorada, François diz que tem que trabalhar duro sempre, pois tem 10 filhos para casar. Sim, casar, logo ela que não precisa de marido. Alegre, com um sorrisão de poucas cáries, explica que a casa de farinha, ou kasay, é a fonte de renda delas, dos filhos e de muitos vizinhos e amigos, quer seja pelo emprego direto das 24 pessoas na produção dos “super-beijus” ou na movimentação da produção agrícola da região. No dia, ainda não estavam ali todos os envolvidos. “Tem dia que é muito, mas muito mais gente”, diz a marchand.
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A mandioca de Plaisance é descascada, cortada, pilada, coada, peneirada e depois espalhada em grandes rodas de aço para assar o kasay, uma espécie de tapiocas gigantes que são vendidas nas ruas da capital. Dieu Dodonne e Metler François sustentam os filhos e a vizinhança com o negócio.
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FOTO: ERMANNO ALLEGRI
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O programa Lèt Agogo foi lançado em 2001. Hoje, existem 18 minileiterias funcionando pelo País. Em abril de 2012, cinco outras leiterias estavam em construção e sete em preparação para lançarem suas atividades. As leiterias trabalham em rede e custaram cerca de 200 mil dólares cada. “As minifábricas de lacticínios são propriedades de associações de produtores que utilizam o rótulo Veterimed”, diz Rosanie Moise Germain, diretora da ONG. Os produtores assinam um contrato com a Veterimed para atenderem aos padrões de higiene, de gestão, de contabilidade, visando a manterem um padrão na produção e processamento de leite. A Veterimed lhes dá apoio técnico em nível organizacional, gestão de negócios e comercialização, explica. A rede Lèt Agogo inclui cerca de 2 mil produtores de leite e emprega 108 pessoas em tempo integral, cerca de 60 em tempo parcial e fomenta dezenas de milhares de
O desmatamento e a produção de carvão vegetal é um crime ambiental secular que se confunde com a crise de energia. No Haiti, é fácil ver a venda de carvão pelas ruas. FOTO: FRANCISCA STUARDO
empregos indiretos. Antes do lançamento da Lèt Agogo, o setor do leite confrontava-se com toda sorte de dificuldades, incluindo um grave problema de comercialização. Entregues a si mesmos, os produtores se arranjavam como podiam. Poucas pessoas estavam interessadas em comprar leite local, porque os produtores muitas vezes o misturavam com água. E também era vendido em más condições de higiene. Foi em Limonade, uma cidade do departamento do Norte, que a Veterimed lançou seu projeto Lèt Agogo. “Começamos, assim, a trabalhar para removermos as restrições ao consumo do leite”, conta Moise Germain. A primeira leiteria foi criada em conjunto com a Associação de Produtores de Leite de Limonade. Na chegada da Veterimed a Limonade não havia nenhuma organização de agricultores ou produtores. Praticava-se a pecuária livre. E a zona estava enfrentando um período de seis meses de seca a cada ano, uma situação que provocava a morte dos animais. A implementação desse projeto não aconteceu sem dificuldades. “Quando chegamos a Limonade, os agricultores e produtores eram muito hostis”, lembra Moise Germain. “Eles pensaram que nós tínhamos vindo tomar o pouco que tinham”. Apenas 10 produtores de leite, depois de muita relutância, concordaram em colaborar com a equipe da Veterimed. Onze anos depois, há uma lua de mel entre Veterimed e produtores de leite, ou até mesmo com a população. “Existe, hoje, em Limonade, uma organização de agentes veterinários, uma organização de produtores de leite com mais de 300 membros, uma associação de mulheres muito ativa”, diz a diretora da Veterimed. Limonade não está mais em uma região onde o gado e outros animais morriam por causa da quantidade escassa de chuva. “Plantamos jardins, com ervas que conseguem resistir aos longos períodos de estiagem. Em seguida, organizamos um banco de sementes para cultivo”, explicou Moise Germain. Paralelamente, Limonade gozava da reputação de ser uma zona ativa na produção de leite de vacas. Além disso, o trabalho da renomada Associação dos Produtores de Leite de Limonade (Apwolim) ultrapassa as fronteiras da área.
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Haiti por si Lèt Agogo nas escolas O iogurte, o leite esterilizado e o queijo são os principais produtos da rede Lèt Agogo. O leite esterilizado continua, no entanto, sendo seu principal produto. “70% dos nossos produtos são compostos de leite esterilizado, distribuídos principalmente nas escolas, no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNCS)”, informa Moise Germain, da Veterimed, que conhece bem a problemática do setor agrícola. A parceria entre PNCS e Veterimed constitui um modelo de valorização da produção local e de uma empresa de economia solidária. O“Manman bèf” é outra faceta do trabalho da Veterimed, que permite a criação de riqueza nas comunidades. O programa é o seguinte: um doador voluntário, sobretudo da “diáspora” (haitianos que moram no exterior), compra uma vaca e a confia a um agricultor para, pelo menos, três ninhadas. Os dois primeiros filhotes pertencem à pessoa a quem a vaca é confiada e o terceiro, ao proprietário. No final da terceira ninhada, podem decidir renovar o contrato ou vender a vaca. 500 vacas, de acordo com a diretora da Veterimed, já foram distribuídas através do programa lançado em 2004. O Coletivo Haitiano da França é o grupo mais ativo nesse programa. Dos 500 animais, 360 pertencem a eles. “Isso é diferente da ajuda humanitária”, destaca Moise Germain. Como muitas outras instituições do País, a Veterimed e sua rede de minileiterias foram afetadas pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010. Duas leiterias foram parcialmente danificadas. No entanto, com o fechamento de escolas, causado por danos do terremoto, a maioria das leiterias têm lutado para vender seus produtos. Os danos mais importantes foram registrados na Central de Comercialização e Suprimentos, que fornece os laticínios e empacota seus produtos.
Plantação de arroz próxima à cidade de Cabo Haitiano. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Segundo estatísticas, 400 mil toneladas de arroz, no valor de 240 milhões de dólares, são importados anualmente pelos haitianos. A concorrência com o arroz importado e subvencionado dos países produtores (EUA, por exemplo); a liberalização do mercado de produtos agrícolas; o risco de inundações e perdas de safra em áreas de produção (efeitos das alterações climáticas); problemas de posse da terra; diminuição de áreas cultiváveis; a concorrência com o crescimento da habitação; promoção nos meios de comunicação do Estado para os produtos importados em detrimento da produção nacional são algumas das causas do declínio na produção de arroz no Haiti. Em três décadas, o Haiti passou de um país autossuficiente em produção de arroz a um país dependente do mercado internacional. Desde a sua criação em 2001, a Racpaba, com cerca de 2.350 membros, visa a reverter a situação e melhorar as condições de vida dos agricultores. A Racpaba, que é uma associação de sete cooperativas agrícolas, dispõe de parque de guarda de sementes, que pode armazenar 500 sacos de arroz de 80 libras; um laboratório para produtos de teste; bem como uma frota de equipamentos agrícolas. De acordo com o presidente da rede de cooperativas, Bien-Aimé Dieula, a instituição também ajuda seus membros a encontrarem crédito e fornece apoio técnico na produção e comercialização de arroz.
A Racpaba para a retomada da produção de arroz
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A Rede de Associações Cooperativas para a Comercialização e Produção Agrícola do Baixo Artibonite (Racpaba) foi fundada em 25 de junho de 2001 para trabalhar na retomada da produção de arroz do País e defender os direitos dos produtores. Como já foi dito, o Haiti é, depois do Japão e do México, o terceiro país importador de arroz do mundo.
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social A produção de arroz local representa de 15% a 20% do mercado. Bien-Aimé Dieula tem solicitado ao governo que elimine as restrições de produção, incluindo a falta de crédito apropriado para o setor agrícola. “As cooperativas de crédito não querem dar crédito, porque há um risco muito grande de investir na agricultura”. Há também a concorrência desleal do arroz importado, desestimulando produtores. Com a presença da Racpaba e da Federação Nacional dos Produtores de Arroz (Fenaprih), criada em abril de 2011, Bien-Aimé Dieula está otimista quanto à recuperação da produção de arroz nos próximos anos. Os 240 milhões de dólares investidos anualmente na importação de arroz serão assim injetados na economia nacional.
Cooperativas de fundos e de crédito Le Levier é um grupo de 23 cooperativas de crédito federadas, reconhecidas entre as melhores do País. A Assembleia Constituinte da Federação foi realizada em 30 de junho de 2007, após vários anos de processo de implementação. De acordo com Jocelyn Saint-Jean, diretor geral da Le Levier, as cooperativas têm um papel importante a desempenhar no desenvolvimento do País, especialmente porque o Haiti é constitucionalmente apresentado como uma República cooperativista. Segundo Saint-Jean, a experiência haitiana das caixas populares mostra que o País pode contar com seus próprios recursos para realizar alguns projetos. “As cooperativas de crédito mostram que há dinheiro suficiente em algumas áreas para fazer muitas coisas”, diz. Ele também acredita que, com as cooperativas de crédito, a poupança servirá ao desenvolvimento local. “Essa é a diferença entre as cooperativas e os bancos, nos quais o dinheiro local serve aos mais ricos”, pontua. O diretor de Le Levier acredita que, através da economia solidária, o Haiti pode desenvolver produtos que atendam às necessidades de sua população. Por exemplo, ele considera que, no campo da habitação, podem se fazer programas de construções progressivas. Isto é diferente das estruturas capitalistas. Além disso, incentiva o Estado haitiano a acompanhar as cooperativas para que elas possam dar crédito a um público mais amplo.
O Conselho Nacional de Financiamento Popular (KNFP), uma ferramenta para o financiamento agrícola, fundado em 1998, é uma associação que reúne atualmente nove membros. Ele trabalha para a promoção e o reforço do financiamento público no Haiti, com uma posição forte nas áreas rurais. “Hoje, há setores que compreendem melhor a importância da economia social”, afirma Lionel Fleuristin, diretor executivo do KNFP. A formação de atores do financiamento rural (membros da comissão de grupos de base, profissionais de financiamento descentralizados) através do seu Instituto Móvel de Formação (Imofor); advocacia e promoção de financiamento rural; melhoria dos serviços financeiros prestados no País em geral e nas áreas rurais em particular são as três áreas principais do KNFP. Uma mesa de tomadas de decisões sobre economia solidária, reunindo políticos locais e atores da área, está em fase experimental em uma das províncias do Haiti. Especializado em crédito agrícola, o KNFP é reconhecido como de utilidade pública desde 2008. “É uma espécie de reconhecimento do nosso trabalho”, diz Fleuristin. Em 2005, os nove membros do KNFP reuniram, por conta própria, mais de 3 mil estruturas de financiamento de base (bancos comunitários ou de solidariedade mútua - BC/Muso), cerca de 70 mil chefes de famílias espalhados por todo o País. O KNFP é membro fundador do Fórum Latino-Americano e do Caribe sobre Financiamento Rural (ForoLacFr); da Associação Internacional de Investidores de Economia Social (Inaise); e da Coordenação Europa-Haiti (CoE-H) da Plataforma de ONG Haitianas e Europeias.
A Sofa para dar autonomia às mulheres A Solidariedade para as Mulheres Haitianas (Sofa) é uma organização feminista, fundada em 1986, que luta pela garantia dos direitos das mulheres. A organização, desde seu início, implementa um trabalho de advocacia com os poderes públicos para que levem em consideração os direitos das mulheres e das populações vulneráveis. A Sofa trabalha em várias linhas de intervenção em favor das mulheres, incluindo o direito à saúde, à luta contra a violência, pela autonomia e a promoção da sua partici-
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Haiti por si A pobreza no Haiti, falha do capitalismo
Mulheres haitianas buscam autonomia social e econômica com ajuda da Sofa. FOTO: FRANCISCA STUARDO
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pação nos espaços de decisão. “Estamos desenvolvendo a economia solidária para atingir esse último objetivo”, diz Carole Jacob, coordenadora da Sofa. Quatro moinhos agrários, diz ela, foram instalados no departamento de Artibonite, região produtora de arroz, em benefício das mulheres que se dedicam à agricultura. “Este é um projeto que segue um objetivo comunitário”, diz a chefe da Sofa, acrescentando que os terrenos são cedidos às mulheres atendidas. Cerca de 2 mil mulheres se beneficiam com os projetos da Sofa, que permite a elas se lançarem no empreendedorismo e protagonizarem suas vidas. Com a contribuição dos beneficiários, a Sofa dá crédito para os seus membros na região. “Nós não estamos no microcrédito. Nossa abordagem é diferente de algumas organizações de microcrédito porque não buscamos o lucro”, explica Carole Jacob. De acordo com ela, os moinhos da Sofa fazem uma grande diferença na vida das mulheres das áreas onde estão instalados. “Os beneficiários entendem que eles não precisam mais esperar de braços cruzados a intervenção das autoridades para resolverem seus problemas”, comemora ela, elogiando a economia solidária. Carole Pierre-Paul Jacob acredita que, com a queda do capitalismo, o Haiti deva recorrer à economia social e solidária.
De acordo com dados divulgados no PDNA, antes do terremoto, a taxa de desemprego no Haiti era estimada em cerca de 30% para todo o País (45% nas áreas metropolitanas), sendo 32% para as mulheres e 62% para a população entre 15 e 19 anos. Todos os indicadores de desenvolvimento estão em vermelho. De acordo com o PDNA, em 2001, 76% da população do Haiti vivia abaixo da linha da pobreza, com menos de 2 dólares por dia, e 56% abaixo da pobreza extrema, com menos de 1 dólar por dia. Estima-se que, ao longo dos últimos 10 anos, o percentual de pessoas pobres e extremamente pobres caiu mais de 8% em todo o País, exceto na área metropolitana, que viu a sua pobreza aumentar em quase 13% durante o mesmo período. A situação do Haiti, de acordo com vários especialistas, incluindo o professor Camille Chalmers, da Papda, é uma consequência da política neoliberal aplicada pelas autoridades haitianas. Chalmers destaca que o Haiti está em fase de desindustrialização. Desde os anos 80, o Haiti tornou-se um mercado de venda para os produtos capitalistas. Isso começou com a destruição dos porcos crioulos, que constituíam um importante pilar da economia nacional. Os porcos foram destruídos durante as décadas de 70 e 80 pelo governo haitiano sob pressão das autoridades estadunidenses. De acordo com informações oficiais, os porcos crioulos foram mortos para evitar a propagação do vírus da peste suína africana, que havia se espalhado a partir da Espanha para a República Dominicana e Haiti, e depois pelo rio Artibonite. Uma explicação rejeitada pelos haitianos, que acreditam que foi um plano para destruir sua economia. O setor de montadoras, que foi outro pilar da economia haitiana, se deteriorou ao longo de décadas. De outubro de 1990 a junho de 1991, o Haiti perdeu 8.200 postos de trabalho dos 40 mil que tinha na época. Em 1994, no fim do embargo imposto pela comunidade internacional contra o Haiti após o golpe de Estado de 1991, havia menos de 11.000 empregos na indústria metalúrgica. Na década de 80, havia cerca de 150 mil pessoas empregadas na área de terceirização. Após as crises políticas recorrentes vividas pelo País, algumas fábricas foram realocadas e reabertas em outros países da região, como
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social
Jamaica, República Dominicana e Porto Rico. Diante desse fenômeno, as autoridades haitianas procuraram relançar a terceirização de serviços, com a criação de zonas francas, definidas como uma porção de terra claramente delimitada. A ação, que promove a exploração de mão de obra barata e regime de semiescravidão, tem a supervisão da Administração Geral das Alfândegas (AGD), um regime aduaneiro e fiscal especial. “A recuperação da área têxtil seria muito vantajosa, em termos de criação de empregos”, ameniza o economista Alix Labossière. No entanto, a recuperação das têxteis não deve ser considerada um milagre tão esperado para a eco-
O comércio toma conta das ruas, misturando todo tipo de mercadoria. FOTO: FRANCISCA STUARDO
nomia haitiana. “Isso ajudaria substancialmente na criação de empregos, mas não é um motor do desenvolvimento econômico, tais como o turismo, a agricultura etc”, disse Labossière. O Congresso estadunidense votou, em 2006, a favor do Haiti, a lei intitulada Hope I, apresentada como uma “oportunidade hemisférica haitiana pelo incentivo à parceria”. A principal missão da Hope I era garantir o livre acesso ao mercado estadunidense para determinados produtos fabricados no Haiti, tais como roupas e cabos elétricos, isto é, com isenção de direitos aduaneiros. A lei Hope II, uma versão da primeira, foi adotada em 2008.
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Haiti por si O ministro da Indústria e Comércio, Wilson Laleau, também é otimista quanto à construção desse parque. “Esse é um parque aberto e que fornece uma plataforma e ferramentas para favorecer um investidor. Esse é o maior parque industrial do País e até do Caribe, que pode ser um catalisador, uma locomotiva para o desenvolvimento do País”, disse o ministro, durante uma coletiva de imprensa, em maio de 2012. Na verdade, ao lado dos milhares de empregos que o parque industrial de Caracol pode criar, mesmo sem citar em que condições para o trabalhador, os economistas não deixaram de mencionar os impactos ambientais negativos sobre a economia agrícola, uma vez que está sendo construído em terras férteis. “O parque industrial de Caracol está concorrendo com a economia agrícola. Poderia ter sido colocado em uma zona árida e não em uma área propícia à agricultura. Isso vai destruir as organizações de agricultores. As pessoas ganham infinitamente menos na terceirização industrial do que na agricultura”, lamenta Lionel Fleuristin, do KNFP. Para o professor Camille Chalmers, a Lei Hope não representa vantagens. “É o mesmo tipo de condições de liberalização e privatização que está sendo imposto ao País há décadas e que dizimou a economia nacional e, com ela, as condições socioeconômicas da população”, critica. Os cidadãos tardam a ver os resultados das iniciativas empreendidas nos últimos anos para reativar a economia haitiana. O terremoto de 12 de janeiro de 2010, sem dúvida, diminuiu os esforços das autoridades haitianas e dos parceiros internacionais para tirarem o País da situação atual. Mesmo antes do terremoto, o orçamento nacional foi financiado em mais de 60% pela comunidade internacional. O País tornou-se insolvente aos olhos de doadores de fundos internacionais. O Haiti não é mais elegível para empréstimos, mas apenas para doações. Vive dos investimentos dos países internacionais, nem sempre solidários. A produção agrícola haitiana está em declínio. Um relatório do Centro de Exportações e de Investimentos da República Dominicana (CEI-RD) diz que o Haiti importou da República Dominicana, de 2004 a 2010, mercadorias no
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Essas iniciativas deveriam ajudar a revitalizar o setor de terceirização, mas não foi o que aconteceu. Por ter uma mão de obra extremamente barata, a economia haitiana acaba não tendo o retorno esperado dessas leis. Enquanto isso, o atual governo atribui grande importância ao desenvolvimento industrial e de manufaturas. O parque industrial de Caracol, cuja primeira pedra foi lançada em 28 de novembro de 2011, está sendo construído em 250 hectares da planície de Caracol, que fica a 260 quilômetros a nordeste de Porto Príncipe, na cidade de Trou du Nord. O parque é um projeto que o presidente Martelly leva a sério. Os planejadores dizem que cerca de 20 mil empregos serão criados durante a “Fase 1”. Serão cerca de 100 mil empregos diretos e indiretos ao longo dos próximos anos. O que o presidente não fala é que serão quase exclusivamente empregos na manufatura, a salários de miséria. Há um grande interesse internacional nesse parque, provavelmente pela possibilidade de exploração de mão de obra barata. Enquanto o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) destinou 55 milhões de dólares para a fase inicial da construção do parque industrial, a empresa sul-coreana Sae-A Co Ltda, a principal locatária da infraestrutura próxima, conta com investimentos de 78 milhões de dólares para o desenvolvimento das operações. O governo dos Estados Unidos, por sua vez, comprometeu-se a repassar um mínimo de 124 milhões de dólares de fundos para o fornecimento de, pelo menos, 25 megawatts de eletricidade, melhoria das instalações regionais de saúde, e a construção de cerca de 5 mil unidades habitacionais no entorno do parque industrial no Norte. Esse parque, com investimentos totais previstos em 257 milhões de dólares, tem a pretensão de ser o maior e mais moderno do Caribe e também o maior investimento estrangeiro no Haiti. Durante o lançamento, em novembro de 2011, Martelly disse que o parque industrial era um modelo de investimento que deverá ser feito em outros departamentos, e que isso pode ajudar a mudar o País. Para ele, é um modelo de “desenvolvimento sustentável, real”. Assim, já se percebe que a concepção de República cooperativista do presidente haitiano não tem a participação do povo, a não ser para ser explorado pelas grandes organizações internacionais.
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social valor total de 872,7 milhões de dólares. Os principais produtos importados são tecidos de algodão, roupas feitas de fibras sintéticas, hastes de aço para construção, vários comestíveis, cimento cinza, antidiarreicos, farinha de trigo, combustível, barracas, algodão, galinhas, bananas, massa, sacos de plástico, chapas de zinco, barras de aço, cimento, tinta automotiva, biscoitos, óleo de soja, coco ralado, feijão preto, roupas usadas, salame e açúcar bruto de cana. O relatório não indica o montante das exportações do Haiti para a República Dominicana. Inseridos na questão agrária e no movimento de trabalhadores rurais haitianos, os brasileiros, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a engenheira agrônoma Dayana Mezzonato e o professor de História José Luis Rodrigues (Patrola), que também fazem parte da Via Campesina, consideram que a situação do Haiti é difícil e o desafio do País é se desvencilhar de toda a presença ativa dos Estados Unidos. “Qualquer passo fora dessa política pode ser punido severamente. A ruptura com esse sistema de dominação que se ancora em interesses de uma elite nacional é um dos maiores desafios da sociedade haitiana, se quiser desenvolver um efetivo processo de democracia participativa”, destacam. Na avaliação do MST e da Via Campesina, o fomento à agricultura, sem dúvidas, é um dos caminhos para se romper com a dominação econômica, tendo em vista que 65% da população haitiana ainda estão no campo. Mas, para isso, o processo é longo. “Fundamental é a realização de uma séria reforma agrária e um programa para a agricultura, com investimentos em pesquisa e educação profissionalizante. A equação é simples: a agricultura empregaria mão de obra e promoveria o aumento da renda da população camponesa, o que movimentaria a economia local. E, por outro lado, a agricultura nacional poderia assumir a responsabilidade de uma série de produtos que hoje em dia são importados, como ovos, frango, arroz, açúcar e outros, processados, a exemplo de massa de tomate, embutidos, leite e derivados etc”, explicam eles. Por estar situado em uma ilha de escassos recursos naturais, com 75% do território composto por montanhas, é preciso muita força de vontade política e recursos bem
aplicados para tornar a agricultura haitiana um setor que consiga contribuir efetivamente para reerguer a economia do País. Reconhece-se que os problemas “naturais” são determinantes para que os haitianos não consigam produzir toda a riqueza de que precisam. O intercâmbio de produtos entre as nações não é algo por si só maléfico, afirmam Mezzonato e Patrola. “O problema é a exploração que se aplica nas trocas comerciais dentro da lógica capitalista. E o Haiti está na condição de superexplorado”, concluem.
Como sair do atoleiro?
A despeito da falta de higiene, os haitianos vendem alimentos expostos no chão. FOTO: FRANCISCA STUARDO
No Haiti, são produzidas muitas riquezas, todos os dias! São aproximadamente 10 milhões de pessoas que se alimentam por dia e 50% dessa comida é produzida no próprio País. Mesmo sabendo que as condições dos camponeses para realizar essa produção são das mais precárias: grande parte dos camponeses não tem terras suficientes, existem problemas de crédito e assistência técnica, não existe nenhuma entidade de pesquisa agropecuária e há apenas uma universidade pública de agronomia no País. Por causa da ausência de serviços básicos no Haiti, como água, eletricidade, saneamento e estradas, a construção civil também tem um espaço para se desenvolver e gerar empregos, na avaliação do MST e Via Campesina. Jean Garry, analista haitiano da entidade brasileira Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (Ceiri), acredita que a alternativa de produção de riquezas se encontra no desenvolvimento de ações capazes de combater a pobreza e promover lideranças políticas que entendam os verdadeiros desafios da globalização. Ele também avalia que a agricultura pode aportar muito à economia haitiana, mas é preciso ir mais, além da simples agricultura familiar. “A agricultura necessita melhorar a produtividade, fortalecer sua orientação orgânica, para poder criar uma diferença nos mercados exteriores”. Outro setor que, na opinião de Garry, poderia sustentar em parte a economia haitiana é o turismo. O Haiti foi o líder desse setor na década de 1960. No entanto, a ditadura Duvalier e a instabilidade política frearam seu desenvolvimento e relegaram o País ao último do setor na região.
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Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social Não é um segredo que a ajuda internacional falhou no Haiti. A situação socioeconômica do País é a prova disso. Em cada período de crise política ou em cada desastre, a comunidade internacional promete milhões, até bilhões ao País. Esse foi o caso de 2004, após a saída do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, como também após o terremoto de 12 de janeiro de 2010. Três anos após a catástrofe de 2010, todos concordam que as promessas não foram cumpridas. Todos concordam que os fundos não são desembolsados no ritmo desejado. Os sobreviventes do terremoto estão começando a mostrar sinais de impaciência. Alguns começam até mesmo a expressar desconfiança na comunidade internacional. “O Haiti não vai se reconstruir a partir da ajuda internacional, pois esses países estão em crise”, diz Rosanie Moise Germain, da Veterimed. Para Lionel Fleuristin, é na produção local que as autoridades haitianas devem investir, se quiserem tirar o País da situação econômica desastrosa em que se encontra. “Se abandonamos a produção local, a poupança será usada para servir à exportação”, disse ele, mostrando-se pessimista sobre as promessas da comunidade internacional. Ele também denuncia a política pública que privilegia a importação de arroz em detrimento da produção local. Com outro foco, como foi demonstrado com a construção da zona franca de Caracol, o governo anunciou que quer fazer do Haiti um país emergente até 2030. O novo chefe do governo haitiano, Laurent Lamothe, em sua declaração política diante do Parlamento, não fez nenhuma menção à promoção da economia solidária. No entanto, para atingir esse objetivo, os principais setores visados através do seu programa de desenvolvimento foram o turismo, agricultura, têxtil, infraestrutura (telecomunicações, eletricidade, estradas, portos e aeroportos) e a construção civil, com ênfase particular nos edifícios da administração pública e acesso à habitação. “Incentivaremos o desenvolvimento de novos mecanismos de apoio às pequenas e médias empresas. Nós já cogitamos, em caráter de emergência, a criação de um
fundo de solidariedade para as mulheres e camponeses; a reforma do código de investimento, da lei sobre as zonas francas e do regime fiscal em vigor; a renovação do ambiente de negócios; o fortalecimento do setor de seguros através de uma regulamentação adequada; a intensificação da luta contra a corrupção e o contrabando; o fortalecimento dos órgãos de captação; o aumento significativo das receitas fiscais; e o fortalecimento do Centro de Facilitação de Investimentos (CFI)”. As medidas específicas anunciadas pelo primeiroministro Lamothe até 2030 podem até ser consideradas medidas inquestionavelmente importantes, mas são simbólicas também por demonstrarem que o poder público e a população marcham em caminhos paralelos, Itens perecíveis, como leite, também
ou até contrários. No entanto, espera-se que, com decisão
são vendidos nas ruas e mercados.
política e organização popular, seja possível que o caminho,
FOTO: FRANCISCA STUARDO
um dia, seja um só.
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Lèt Agogo - Beneficiamento de leite ajuda moradores do campo Por Adriana Santiago Cedinho começam a chegar à leiteria galões brancos amarrados nas bicicletas, nas motos, sobre torçais de pano, que aliviam o peso nas cabeças. Pessoas de todas as idades chegam silenciosamente e entregam sua produção diária na leiteria comunitária para beneficiamento. O leite é medido, checado para saber se não foi adulterado com água e, depois de aceito, controle de qualidade atendido, é anotado tudo bem direitinho. O leite é beneficiado, pasteurizado, transformado em iogurte e queijo de excelente qualidade. No fim do mês, quando os fornecedores pagam, tudo é dividido proporcionalmente entre a comunidade participante, porque a leiteria é gerida em sistema cooperativo, e a administração pega um pouco para
reinvestimento. Ideia simples e eficaz que tem trazido benefícios para várias comunidades no Haiti. Gente simples, que consegue, assim, tirar seu sustento e para a família. Essa é uma das poucas experiências de organizações sociais que deu certo, talvez porque um dos fundadores da Veterimed, organização de agrônomos responsável pela ideia, seja o secretário de Estado para a Produção Animal do Haiti, Michel Chancy, que firmou um acordo com a FAO e, a partir dos aportes do Brasil, distribui os produtos Lèt Agogo como merenda escolar para milhares de crianças da escola pública haitiana. Se todos os programas de emergência que recebem recursos internacionais investissem nessas ideias simples e autocentradas talvez o Haiti não precisasse, ainda hoje, de tanta ajuda estrangeira, que muitos já chamam de dominação.
Na leiteria de Limonade, não param de chegar carregamentos de leite.
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FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social E surgiu a Lèt Agogo
Formando veterinários
O agrônomo Cimé Jean Shilet é
A Veterimed é uma organização não governamental que começou trabalhando a capacitação de profissionais, desde 1989, enviando profissionais para o Brasil para aprender técnicas de manejo sustentável da terra ou formando veterinários em Cuba. O foco era a saúde dos animais, formação de técnicos, chamados de auxiliares, além da promoção de campanhas de vacinação, principalmente contra o Antrax, entre outras atividades, financiadas por doações e pela ONG internacional “Veterinários Sem Fronteiras”. Nessa época, a ideia do Ministério da Agricultura era que cada sessão comunitária, algo como os distritos no Brasil, tivesse três técnicos veterinários. Mas, em 1990, só existiam 10 veterinários em todo o Haiti. Daí, iniciou-se o trabalho, a partir de situações de urgência e formação de médicos veterinários em convênio Cuba-Haiti. Em 2000, 10 anos depois, foi que se atingiu a meta dos três veterinários por sessão. Feito isso, começaram a partir para a saúde, produção e pesquisas que apontassem aspectos que rendessem desenvolvimento e divisas para o País, como a produção de leite, criação de gado, cabritos e coelhos. “Uma mudança radical de estratégia”, como explicou didática e pacientemente o risonho Cimé Jean Shilet, coordenador técnico da organização.
o coordenador técnico da ONG haitiana Veterimed. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Assim, a organização começou a buscar ideias e doadores fora do Haiti e a investir no Nordeste do País, região com maior bacia leiteira. Hoje, a Veterimed faz o acompanhamento técnico em cada uma das leiterias que, juntas, já produzem entre 300 a 400 litros de leite por dia. É pouco quando se pensa na importação de 40 milhões de litros de leite por mês para abastecer o mercado interno, mas é uma produção considerada excelente para as 20 leiterias e 6 mil famílias rurais envolvidas no trabalho em um país onde mais de 80% estão sem emprego. Nas leiterias, são produzidos quatro produtos: leite pasteurizado, que dura de sete a 10 dias; leite esterilizado, que chega a durar de nove a 10 meses; iogurte; e um queijo cheddar maravilhoso. O queijo é tão bom a ponto de, em menos de uma hora de entrevista, quatro pessoas da reportagem, acompanhadas de Cimé, devorarem uma peça de quase dois quilos. O iogurte, igualmente delicioso, também teve sua hora, já no campo, em Limonade, dois dias depois, quando a equipe foi conhecer a leiteria, próxima ao extremo norte, em Cabo Haitiano. O problema que a Veterimed enfrenta, atualmente, é encontrar uma forma de baratear e ampliar a produção da Lèt Agogo. Hoje, todo o material de beneficiamento do leite esterilizado, que dura mais tempo, vem de fora. Máquina de fechar as garrafas, a autoclave para esterilização em 100 graus centígrados, tudo é importado dos Estados Unidos. As tampinhas vêm de outro país, e as garrafas de 350 ml, próprias para porções individuais da merenda escolar, são adquiridas na Guatemala. Além do leite e da mão de obra, nada é feito no Haiti. A Veterimed incentiva as leiterias a investirem na comercialização, além da merenda escolar, e é possível ver a produção local da Lèt Agogo nos supermercados de Porto Príncipe e Limonade. São poucos produtos em relação às marcas importadas, mas já podem ser vistos, um avanço. O mercado para o queijo são os hotéis e restaurantes, que podem oferecer um produto realmente original do Haiti a seus fregueses. Mas, para Cimé, o relevante mesmo foi a cooperação brasileira através da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), que possibilitou a entrada de produtos haitianos nas agendas das ONG internacionais, promovendo uma grande demanda de laticínios locais, feitos cooperativamente, para hospitais e escolas públicas. Principalmente, porque podem
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O agrônomo Djilouf François explica como a Veterimed ajuda aos produtores familiares de Limonade com capacitação, beneficiamento e negociação de contratos.
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FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social ser recuperadas e reutilizadas as embalagens de vidro. Uma garrafinha custa U$ 0,50, mais custo de transporte desde a Guatemala. Assim, eles esperam conseguir juntar dinheiro para comprar 1 milhão de garrafinhas de cada vez para diminuir o custo. No mercado, hoje já circulam 1,2 milhão de garrafinhas recicláveis.
Produção e política Pela ideia de sucesso, a ONG Veterimed e o projeto Lèt Agogo ganhou, no Chile, o primeiro lugar, no ciclo 2004–2005, do Concurso “Experiências em Inovação Social”, organizado pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), com apoio da Fundação W. K. Kellogg, concorrendo com 1.600 projetos de inovação social. Isso deu respaldo para grandes conquistas, inclusive a incorporação de seu produto pelas ONG transacionais. Um dos raros produtos haitianos na lista dos gêneros da ajuda humanitária. Os jurados acharam que o programa, além de contribuir para a segurança alimentar e nutricional do Haiti, teve uma profunda repercussão nas formas de aproveitar os recursos agropecuários, e utilizá-los para a produção local de produtos tão nutritivos como são o iogurte e o leite. Os resultados práticos também refletem nos políticos, pois, a partir das 20 cooperativas leiteiras do Norte, foi fundada a Federação Nacional de Leite Haitiano (Fenaprola, pela sua sigla em francês), que reorganiza todo o setor. Cimé explica que o sistema agrário atual não permite grandes criações de animais. Dessa forma, a Fenaprola dá uma uniformidade, mas é preciso um grande debate para a mudança nacional, pois, pouco a pouco, os produtores de leite aumentam sua criação e querem negociar com o Estado para que disponha de terras. Esse é um conflito nas mãos de Michel Chancy, que foi diretor e um dos criadores da Veterimed e do Lèt Agogo, está secretário de Estado para a criação de animais, função importante no Ministério da Agricultura desde o governo do presidente René Préval. Essa posição deixa a ONG em uma situação confortável, porém não tira seu mérito. O Ministério deveria incentivar iniciativas semelhantes, com base no que já deu certo.
Cada produtor recebe recipientes de coleta numerados e higienizados. Quando entregam, é checada a qualidade, a higiene e a pureza do leite, que depois é pasteurizado. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
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As garrafas retornáveis do leite são higienizadas e esterilizadas pelos funcionários da leiteria comunitária, assim como os recipientes entregues pelos produtores. O leite pasteurizado pode durar até nove meses, em estoque, para a merenda escolar.
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Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social Terremoto atrasou planos de expansão Com o terremoto de 12 de janeiro de 2010, tudo mudou. A sede da Veterimed ruiu, muitas das pesquisas voltaram à estaca zero, empregados importantes morreram ou fugiram para os Estados Unidos, muitos perderam a documentação e o trabalho precisou ser recomeçado quase do zero. Uma das casas perdidas abrigava o centro de maturação de queijo com todo um maquinário importado do Equador, que acabou por atrasar a produção e as pesquisas. Contudo, as leiterias do interior continuavam a funcionar e o governo pressionou a FAO para incluir o leite na ajuda internacional. De março de 2010 a março de 2011, o faturamento total da Lèt Agogo ficou entre 20 e 22 milhões de gourdes, sendo que 40% foram direto para os produtores, e 60% para a administração e reinvestimento das cooperativas, que não param de crescer. E todo o produto é de excelente qualidade, verificada constantemente pela vigilância sanitária do programa da FAO. O objetivo é chegar a 85 leiterias espalhadas por todo o Haiti, como organizações produtoras cooperativas, com beneficiamento de leite, queijos e iogurte para abastecer todo o território nacional. Mas elas têm ainda que vencer o obstáculo do vasilhame e já estão querendo desenvolver um material que se assemelhe ao tetra pak, construir leiterias mais modernas que consigam atender à demanda pelo volume de consumo de leite exigido pelo mercado interno, principalmente nos meses de maio a junho, quando, por tanta chuva, praticamente cessa a produção. De agosto a setembro, quando o volume de leite aumenta, é preciso mais tecnologia para estocar o excesso e garantir a produção. As pessoas no campo tinham o costume de comercializar tudo nas ruas, agora têm um lugar para concentrar a produção, facilitando o trabalho, garantindo mais empregos e dando segurança alimentar dentro e fora de casa, porque as crianças da escola pública estão bebendo um leite local, integral e de boa qualidade. Já existe, inclusive, um projeto no BID para garantir verba para enriquecer o leite com vitaminas de forma artesanal.
A leiteria modelo A leiteria de Limonade, em Cabo Haitiano, foi a primeira implantada. Lá encontramos o agrônomo Djilouf François, que informa que a produção local chega de 180 a 200 litros por dia.
Hoje, são quatro associações, preferencialmente de mulheres que garantem a produção (Pawolim, Aflidepia, MCAD e Intervet), nomes que nem ele sabe direito o que significam, mas foram criadas pelas próprias famílias do Município. Hoje, só a Pawolin e a Aflidepia beneficiam 400 pessoas cada uma, e as outras menores, MCAD e Intervet, 80 e 65 pessoas, respectivamente. Essa experiência, além de garantir a compra total da produção, tem um valor maior do que o mercado. “Antes, a gente nem sabia o que fazer com a produção, às vezes guardava só para as crianças, estragava ou tentava vender na cidade. Agora, a venda do leite puro é garantida pela leiteria”, comemora Elise Elbeu, que perdeu, em 1999, todos os animais, de fome ou sede, mas aprendeu, com a Veterimed, técnicas de produção animal. Ficamos na frente da leiteria 15 minutos para ver a grande movimentação. Os produtores chegam com dois, cinco, sete galões, cada um com um número que indica o produtor. Entregam no balcão, onde um dos 10 funcionários da leiteria faz o teste de qualidade, uma vez que não pode ter a tradicional mistura com água do leite vendido nas ruas das cidades. Passado no controle de densidade, 1,025 de densidade limite, é feito o controle com álcool para ver o nível de bactérias e micróbios, assim como verifica se não há amido ou areia e faz o controle de acidez. Enfim, se os produtores são treinados para tirarem o leite da melhor forma possível, a exigência é grande. Quando o leite é finalmente aceito, é computado na conta do produtor-associado e segue para beneficiamento. Se for pasteurizado, vai para uma fervura de 95° de cinco a 10 minutos, se for iogurte, a temperatura é de 45°, se for esterilizado, sobe para 75°, e ainda passa por uma autoclave a 121° por mais 15 a 20 minutos, para aguentar os nove meses de garantia. As garrafinhas seguem para as escolas, onde recebem aromatização de baunilha ou chocolate, que já foram inseridas pela FAO na merenda escolar de Limonade. As garrafinhas voltam todas, em um reaproveitamento total. Na leiteria, é só chegar e ver a lavagem e esterilização das garrafinhas e um aparato bastante simples para vedação. O surpreendente é ver que o depósito está cheio e aguardando a demanda. Não para. O iogurte e o queijo, quando não vão para a escola, estão nas prateleiras dos supermercados de Limonade. “A própria cooperativa que rege a leiteria é responsável pelos contratos com o mercado local”, garante o agrônomo.
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País emergente. Um caso de desvio? Mentira, confiança e sociedade Por Alain Gilles
Membro do Centro de Estudos sobre o Desenvolvimento das Culturas e Sociedades (CEDERCS), e professor da Universidade de Quisqueya, Porto Príncipe, Haiti. Gilles também ensinou no Canadá e tem colaborado com revistas como Amérique Latine (Paris), Reveu Canadienne des Etudes etlação americaines Caraïbe (Canadá), Paroles COLLECTIFS (Canadá) e no Journal of International Affairs. Tradução: Delza Tereza Lombardi
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Universidade de Columbia,
emergente”, pois, segundo O’Neill, é o que define a possibilidade de um país produzir um impacto global. Apresentamos o quadro na página seguinte (quadro 1) com algumas características de base do Haiti, dos BRIC e dos N-11. Em 2011, a população do Haiti representava 7,1% da população da Rússia, que é a menos populosa dos BRIC, e 20,3% da população da Coreia do Sul, a menos populosa dos N-11. Segundo o Centro de Estudos Prospectivos e de Informações Internacionais, os países emergentes se definem por “um nível de riqueza, uma participação crescente nas trocas internacionais de produtos manufaturados e a atração que esses países exercem sobre os fluxos internacionais de capitais”. Em termos relativos, isto é, em percentagem de seu PIB, o Haiti importa muito mais do que a maior parte dos BRIC ou dos N-11. Em importação, o Haiti só é superado pela Coreia do Sul e o Vietnã, o que mostra a grande dependência do País. Entretanto, em valores, a importação haitiana é irrisória, diante da debilidade de sua economia. Os investimentos estrangeiros diretos no País são insuficientes: em 2007, esses investimentos representavam 74,5 milhões de dólares e, em 2008, 29,8 milhões de dólares. Enquanto que o mais fraco investimento estrangeiro registrado para Bangladesh, um dos N-11, é de 652,8 milhões de dólares, em 2007, e 1 bilhão de dólares, em 2008. A balança comercial haitiana é sistematicamente negativa. No artigo “A razão de viver de rendimentos” (Revista Encontro, Jan. 2012) nós chamamos a atenção para o fato de que a economia haitiana é baseada na especulação financeira e no comércio de produtos importados, além de tráfico. A subcontratação é claramente caracterizada por uma fraca produtividade. Como
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É Phd em Sociologia pela
É oficial. O Haiti, ao final de sua reconstrução, em 2030, será um “país emergente”. Foi o atual primeiro-ministro que disse: “Quanto ao programa econômico e social, meu governo executará as recomendações feitas pelo Ministro do Planejamento e de Cooperação Externa, que propôs um Plano Estratégico de Desenvolvimento do Haiti (PSDH) visando a fazer do Haiti um país emergente em 2030”. Lemothe (Laurent Lemothe) substituiu Gary Conille, que ficou no governo apenas seis meses. Embora esses dois sejam do mesmo partido, o primeiro ministro Lamothe tem mais afinidades com o governo de Préval-Bellerive, o que justifica sua opção pelo PSDH, pois esse plano foi criado, em 2010, no governo de Bellerive, o segundo governo do novo presidente. Será que, em 20 anos, estaremos ao lado dos grandes países emergentes como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China? Não queremos ir assim tão longe. Esse grupo foi chamado de BRIC pelo economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs, uma sigla com as iniciais dos nomes desses países. Esse economista propõe ainda os próximos 11 países, os “Next Eleven”, ou N-11, como candidatos a se juntarem aos BRIC. (O’Neill, Goldman Sachs, nº.134, Dec, 2005). Os 11 candidatos são: Bangladesh, Egito, Indonésia, Irã, Coreia do Sul, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Turquia e Vietnã. Como se vê, o Haiti não está entre eles. Alguns deles já pertencem ao grupo chamado NPI (novos países industrializados). Trata-se de países relativamente grandes, cujos recursos naturais são medidos em valores absolutos, de volume e quantidade. Mas a África do Sul não pode fazer parte desse grupo, porque sua população é de apenas 50 milhões de habitantes (DEGAN, 2011). Portanto, o fator demográfico também é critério para se classificar um “país
Uma alternativa vi谩vel de desenvolvimento econ么mico e social
Fonte: Banco Mundial
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associar as análises sobre os países emergentes, que são inspirados nos escritos de Jim O’Neill, que, aliás, não o cita nenhuma vez em seu “The Growth Map”, de 2011. Por que, então, tratar com tanta imprudência uma questão tão importante para o futuro de todo o País? Na verdade, encontra-se essa mesma lógica, quando uma escola de gestão é classificada como universidade, quando um campus universitário é desprovido de uma sala de leitura, ou quando o chefe de Estado de um regime autoritário faz questão de organizar um referendo. Nós estamos em um país onde deveriam estar colocados entre aspas: “Polícia”, “Eleições”, “Parlamento”, “Universidade”, “Professor”, “Empresário”... Aqui trata-se de um conjunto de atitudes e de comportamentos que fazem parte do que nós chamamos “cultura do desvio” (Observatório da Reconstrução, nº 2, junho, 2012). A busca de uma consonância com nossa representação leva-nos a utilizar discursos, fórmulas, um modelo institucional, sem o menor cuidado quanto à responsabilidade nas escolhas das palavras ou modelos para expressar nossos conceitos. Como compreender que o conjunto de palavras “país emergente”, um instrumento de análise elaborado para entender a evolução de uma economia mundial, possa ser tomado e colocado no PSDH com tanta irresponsabilidade? Por que se arriscar a não ser levado a sério? Deturpar um conceito é despir-se de sua capacidade de análise. É utilizá-lo para fins diferentes daqueles para os quais foi produzido. Para produzir um efeito de anúncio? Para assumir um risco previsto? Quem se lembra das “declarações de política geral”? As declarações sobre a política geral foram esquecidas logo depois de lidas pelos primeiros-ministros, no Senado e na Câmara de Deputados. Isso representa uma lógica chamada por Bertrand Badie de “O Estado importado”, que se dá pela participação da elite na modernidade. Não se encontra nenhuma das declarações sobre a Política Geral, apresentadas pelos primeiros ministros, em nenhuma instituição encarregada da conservação da memória institucional. No Centro de Pesquisa e Documentação do Governo (Credoc), por ocasião de uma pesquisa, só foram encontradas sete dessas declarações: CHERESTAL, março de 2001 (44 páginas); Yvon NEPTUNE, março 2002 (14 páginas); Jacques-Édouard ALEXIS, junho 2006 (38 páginas); Smarck MICHEL, sem data, (32 páginas); uma versão numérica das declarações de Gary Conille e do atual
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já dissemos, a produtividade e a demografia são dois fatores importantes para acessar o grupo dos países emergentes (O’Neill, 2011). Nossa economia não cria valor. Devemos sair dessa lógica de viver de rendimentos, pois, dessa forma, os ganhos e os lucros não são determinados pelos investimentos legais, pelos fatores internos de nossa economia. Em 1998, Madeleine Albright, então secretária de Estado dos Estados Unidos, identificava quatro categorias de países, tendo em vista sua capacidade de integrar o sistema internacional. Segundo ela, há: 1) os países que são totalmente membros desse sistema; 2) os países que estão em transição, na procura de uma participação mais efetiva no sistema internacional; 3) os países que estão mergulhados numa espiral de conflitos, muito pobres, muito fracos para participar de maneira significativa; e 4) os países que rejeitam os valores e as regras sobre as quais o sistema mundial está fundado. Designadamente, ela coloca o Haiti na terceira categoria. Desde quando as coisas mudaram radicalmente? No dia 23 de julho de 2012, Jean Michel Cadet (consultor francês) lembrou, em um artigo cujo titulo é “Investir no Haiti: uma questão de imagem”, dos contínuos obstáculos aos investimentos no País: “a instabilidade política”, “o prazo acordado para a implantação de uma empresa”, entre outros. Finalmente, acredita-se que os responsáveis pelo nosso país, tanto no setor público como no privado, pronunciam-se com uma aparente imprudência. Vejamos. A declaração de Michael Porter sobre a política geral é inspirada no PSDH, plano estratégico produzido no contexto pós 12 de janeiro de 2010, quando o País começava a ser reconstruído. Na versão disponível do PSDH, no site do Ministério, em seu sumário, item quatro, anuncia-se “a noção de emergência”, que, de fato, está ausente do documento. No alto da página 12 do PSDH se lê “Modelo de Michael Porter”, mas não se apresenta nenhuma referência. Michael Porter, de reputação mundial, é um professor de estratégia empresarial na Universidade Harvard (Estados Unidos). Suas obras clássicas “Competitive Strategy” (1980) e “Competitive Advantage” (1985) tratam de questões relativas às “estruturas industriais”. Ele se interessou, mais tarde, pela competitividade das nações. No capítulo 8 de sua obra “The competitive advantage of nations” (New York: The Free Press, 1990), intitulado “Emerging Nations in the 1970s and 1980s”, Michael Porter apresenta o caso do Japão, da Itália e da Coreia. Nada do que ele escreve permite
Uma alternativa viável de desenvolvimento econômico e social primeiro-ministro. Mas a declaração de M. Jean-Marc BELLERIVE e a da senhora Michelle PIERRE-LOUIS não foram encontradas. Na Biblioteca Nacional, não se encontra nenhuma declaração. E o site do governo é, na prática, o site do primeiro-ministro em exercício. Não se pode imaginar que um primeiro-ministro, que espera ter um voto de confiança da Câmara e do Senado, possa ter dito: “de toda maneira, tudo já está resolvido” e “eu me contento em falar francês”. Ele não teria mobilizado um grupo de experts para produzir pouco mais de 40 páginas, no caso de CHERESTAL, que leria, com gestos e eloquência, simplesmente para falar francês! Sua declaração também será esquecida, uma vez que integrou a cultura política ao campo institucional do País. O primeiro-ministro pressente e sabe disso? Eis um questionamento que se deve fazer, tendo em vista a liberdade que se tem para fazer promessas. Mas isso não diz respeito somente aos responsáveis políticos. Podem-se distinguir as estruturas sociológicas pelas características de parte das mentiras que permeiam a sociedade. Em primeiro lugar, a mentira ameaça muito menos a existência do grupo em sociedades simples do que em sociedades muito complexas. O homem primitivo, vivendo em círculo restrito, provendo suas necessidades graças à sua produção pessoal ou pela cooperação dos mais próximos, controla a matéria de sua existência mais facilmente e mais perfeitamente do que aquele que pertence a uma civilização superior. Em contrapartida, nas culturas mais ricas e mais amplas, a vida está condicionada a várias situações preliminares, que o indivíduo não pode estudar nem verificar em seu fundamento, mas que deve aceitá-la com confiança. Nossa existência moderna – da economia até as atividades científicas – fundamenta-se sobre a crença na honestidade dos outros. Isso acontece de forma mais ampla do que habitualmente nos damos conta. Deve-se levar em conta o pensamento de Simmel como uma ferramenta de inteligência. Há sociedades nas quais a mentira ou ausência de confiança seriam menos perturbadoras que em outras. São sociedades que funcionam em redes, em círculos estreitos, em que a concessão de crédito, por exemplo, é restrita e depende de “quem você é” ou de “quem o conhece”, ou de sua rede de contatos. No caso de discurso político, enfeitado de termos emprestados das experiências de outras sociedades desenvolvidas e democráticas, a mentira não é revelada senão pela análise que a objetiva. No campo político haitiano, a mentira está desaparecendo com o
tempo. Está se perdendo na memória. Seus primeiros efeitos se bastarão. E outros discursos seguirão. De fato, as elites políticas, econômicas e “universitárias” de nosso país nunca pensaram que seria necessário avaliar o grau de confiança que os haitianos colocam neles e nas diferentes instituições do País: na escola, na polícia, nas empresas comerciais, nas ONG? Imaginam eles que, para uma “sociedade de confiança”, como o diz Alain Peyrefitte, é necessária a construção da democracia, e que o bom desempenho de uma economia de troca se fundamenta na confiança mútua (Amartya, 2003). São questões que se colocam quando se quer romper com a tradição, quando a reconstrução se encontra com a democracia e o desenvolvimento na justiça social. “País emergente”: o que há nesse conjunto de palavras? A expressão “país emergente” é um termo operacional, que remete ao “impacto global” que um país possa exercer. Para isso deve-se levar em conta seu potencial demográfico e econômico, sendo que o potencial econômico é definido em termos de capacidade de absorver o capital estrangeiro. Jim O’Neill, que inventou a sigla BRIC, diz isso de maneira clara. O nível do desenvolvimento econômico e a qualidade de vida de um país não são suficientes para que seja considerado como um “país emergente” em potencial. Os países emergentes, assinala Degans, “têm como característica comum, além de terem várias diferenças, serem países-continentes, em que a importância da população é um trunfo a mais sobre o jogo de xadrez mundial”. Não existe, em parte alguma, certeza quanto ao futuro dos países emergentes. Sem ir tão longe, como diz, em seu livro “A grande mentira chinesa”, Thierry Wolton, em 2007, há, mesmo assim, lugar para refletir sobre o que nos diz Martin Bulard em seu editorial sobre a China, no Le Monde Diplomatique, (junho-julho, 2012): “O modelo está no seu fim: muito desigual socialmente, muito custoso ecologicamente, muito virado para as exportações, muito corrompido, e segurado firmemente pelos mandarins de um partido onipotente. Nossos dirigentes teriam compreendido isso? Eles só compreenderão no dia em que eles quiserem que sejam lembradas suas “declarações sobre a política geral”. Essa deveria ser a história do tempo da reconstrução. Endereço original do texto: http://www.reconstruction-haiti.org/IMG/pdf/revista_ observatorio_3_okey.pdf Publicado na revista L’Observatoire de la reconstruction, nº 3.
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Haiti por si Foreign Affairs, November/December 1998 SIMMEL, Georg (sociólogo alemão, 1858-1918) “Le secret et la société secrete”, reproduzido na Sociologia. Études sur les formes de la socialisation, Paris : PUF, 2010. SEN, Amartya, Un nouveau modèle économique. Développement, justice, liberté, Paris: Odile Jacob, 2003, p. 345. WOLTON, Thierry, Le grand bluff chinois: Comment Pékin nous vend sa «révolution » capitaliste, Paris: Robert Laffont, 2007. BULARD, Martine em seu editorial “Le grand tournant”, in Manière de voir. Le monde diplomatique, juin-juillet 2012, p. 6.
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FOTO: FRANCISCA STUARDO
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REFERÊNCIAS: O’NEILL, Jim et al., How Solid are de BRICs, Global Economics Paper nº. 134, Dec, 2005) DEGANS, Axelle, Les pays émergents: de nouveaux acteurs, Paris: Ellipses, 2011, p. 94). REVISTA haitiana de sociedade e cultura – Encontro. La raison rentière - nº 24-25, janeiro de 2012 O’NEILL, Jim. The Growth Map. Economic Opportunity in the BRICs and Beyond, Kindle edition, New York : Penguin, 2011. ALBRIGHT, Madeleine, The Testing of American Foreign Policy,
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Capítulo 5 Por Nélio Joseph
A cultura como vitrine
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Seja na música, na pintura, no artesanato, na literatura, a cultura, como afirma o mais lido escritor haitiano, Gary Victor, é o único ambiente em que o Haiti é competitivo no plano internacional. Em janeiro de 2012, o romance “Le sang et la mer” (O sangue e o mar), do próprio Gary Victor, ganhou o prêmio Casa das Américas, um dos mais prestigiados prêmios literários do continente americano. O escritor Lyonel Trouillot ganhou, em abril de 2012, o primeiro prêmio literário da “Feira Internacional do Livro e da Imprensa de Genebra” e chegou à semifinal do igualmente importante prêmio Goncourt, em 2011, com seu romance “La belle amour humaine” (O belo amor humano). Dani Laferrière, romancista haitiano-quebequense, obteve o prêmio Médicis 2009 pelo seu romance “L’enigme du retour” (O enigma do retorno), que conta seu retorno ao país natal, após o terremoto de 12 de janeiro. A literatura haitiana se afirma como uma das mais borbulhantes e mais visíveis do Caribe. Somente no ano de 2009, os escritores haitianos tiveram uma excelente “colheita” de prêmios literários internacionais. Foram 11 prêmios conquistados, segundo o jornal do Salão Nacional do Livro (Le Nouvelliste, 25 de abril de 2012). A pintura tem um grande prestígio e atrai a curiosidade nos grandes museus do mundo. O artista plástico André Pierre, conhecido por suas telas de inspiração vodu, é considerado, internacionalmente, como uma das figuras emblemáticas da pintura dos últimos 50 anos. O movimento de artes plásticas Saint-Soleil, do qual Jean-Claude Garoute (Tiga) foi o líder, é objeto de um longo capítulo de um dos mais conceituados livros de arte moderna que prega a autonomia do artista, intitulado “L`Intemporel”, do eminente escritor, crítico de arte e ministro da Cultura francês, André Malraux.
FOTO: FRANCISCA STUARDO
Além de seu passado político glorioso de primeira república negra do mundo, que derrotou o forte Exército francês de Napoleão Bonaparte para conquistar, a preço de muito sangue, sua independência, em 1° de janeiro de 1804, a cultura é um espaço privilegiado que faz a força do Haiti e é um dos poucos setores que ainda atrai o olhar positivo da comunidade estrangeira.
A cultura como vitrine Max Beauvoir, chefe supremo do vodu no Haiti, posa para fotos com uma turista em visita ao seu templo.
O artesanato haitiano decora grandes boutiques internacionais de objetos decorativos. A tradicional música folclórica e de raiz, expressão de reivindicações populares e de afirmação cultural, faz cada vez mais sucesso entre os jovens.
O vodu, fonte de riqueza Essa vitalidade cultural é resultante de uma riqueza, de uma diversidade de expressões artísticas e de tradição que, às vezes, desenha sua fonte no vodu haitiano. Max Beauvoir, chefe supremo do vodu no Haiti, explica que essa é uma tradição cultural e religiosa haitiana que resulta de uma combinação de conhecimentos e práticas ancestrais deixadas pelos africanos (Congo, Dahomey), levados para Hispaniola pelos europeus, e os índios (arawakos e tainos), habitantes originais da ilha. O vodu teve uma importância fundamental na vida da população e, como tradição cultural, integra todas as expressões artísticas autênticas haitianas: os cantos tradicionais, a música, a pintura, a dança etc. Todas as produções artísticas do País, destaca Max Beauvoir, passam pelo formato que molda a expressão haitiana. Mesmo as expressões profanas, a forma de sentar, de comer, de rir, são moldadas nesse modelo. Como religião, continua, o vodu é a relação que o voduísta estabelece com seu deus. No vodu haitiano, Deus é uma mulher: Yèhwe. Todas as loas são expressão desse deus.
O vodu é a relação que o homem estabelece com Deus, no qual ele reconhece toda a potência e a quem decide submeter-se. O antropólogo haitiano Laënnec Hurbon o define “como a coerência de uma religião, de uma cultura própria a um povo consciente de dividir uma mesma história” (Dieu dans le vodou haïtien, p. 74). Lugar de refúgio de uma boa parte da população saída notadamente das classes desfavorecidas das zonas rurais, o vodu jamais foi respeitado à altura de sua popularidade. Bombardeado pelos governantes que se sucederam após a Independência e pelo clero católico, que chegaram a orquestrar, no início dos anos 1940, uma campanha contra a crença, chamando-os de “rejeitados”. Há pouco tempo, em 2010, cerca de 40 chefes vodu foram linchados ou queimados pela população do departamento de Grand’Anse, no sul do País, acusados de terem criado uma substância mágica em pó que teria propagado o cólera na região. Casos semelhantes aconteceram em todo o País, onde mais de 70% da população segue a tradição, mesmo que concomitante a outras religiões. Os cultos são praticados nos templos vodus (hounfo) e nas áreas comuns das comunidades rurais (lakou). Max Beauvoir define os lakou como uma derivação de três palavras indígenas: zak, lak, kou. É um lugar de encontro, proximidade de membros de uma mesma família para oferecer desde cultos religiosos a loas. É também um lugar de comunicação fraternal. Toda a geografia haitiana é fundada sobre os lakous. As cidades se constituem em uma soma de comunidades, e as comunidades em uma soma de lakous. “O lakou é a alma do País”, afirmou o “agregado” Fernand Bien-Aimé, responsável pelo lakou Souvenance - plantado em cinco hectares de terra em Mapour, a poucos quilômetros da cidade de Gonaives, no Departamento de Artibonite - que abriga três dos mais conhecidos lakous do Haiti. O velho lakou Souvenance, de mais de meio século, é um dos altos lugares místicos e históricos do Haiti, que acolhe, a cada ano, milhares de visitantes e chama a atenção de pesquisadores haitianos e estrangeiros. Ele abriga residências familiares em torno de uma área comum (peristilo) e, algumas vezes, um mercado.
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Haiti por si está estreitamente ligado à história do povo mais simples, e não raro, falar o crioulo é associado a um traço cultural das camadas menos favorecidas da sociedade. Contudo, nesse processo de refundação do país pós-terremoto, o que se espera restabelecer no Haiti é que essa tríade, que sofreu tantas perseguições (o lakou, o vodou e o kreóle), seja, realmente, o fundamento, o alicerce da identidade cultural do País. Eddy Prophète, músico haitiano bem conhecido, afirma, em uma de suas canções, que “crioulo somos todos nós” (se kreyòl nou ye). O crioulo haitiano deixa de ser somente uma língua para demarcar a identidade dos próprios haitianos.
Indigenismo e identidade
língua materna, ao lado da língua francesa.
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Nos lakous, as cerimônias se organizam em crioulo haitiano,
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Fernand Bien-Aimé sonha em construir um jardim medicinal e um centro de saúde para os frequentadores. “Em média, 80% dos adeptos do vodu que vêm nos consultar em Souvenance para as cerimônias de cura, sofrem de doenças naturais e merecem ser hospitalizados”, disse o funcionário. Esses rituais são organizados durante a Páscoa, a Festa dos Mortos, nos dias 2 e 3 de novembro, e em outras datas importantes na história tradicional ou religiosa haitiana. Nos lakous, as cerimônias se organizam em crioulo haitiano, língua materna, ao lado da língua francesa. O francês é uma imposição do grupo dominante e dos antigos colonos, consagrada como oficial pela Constituição Haitiana em 1987, na Ditadura Duvalier, que sufocou os três pilares da cultura haitiana: o lakou, o vodou e o kreóle (crioulo haitiano). O crioulo é a língua mais falada por todos os haitianos, e o francês é a língua de uma elite que, se espera, tenha um nível de estudos avançado. Ou seja, o crioulo haitiano, que nasceu como uma ferramenta linguística dos escravos para se organizarem e escaparem do jugo dos franceses,
A identidade cultural haitiana, de acordo com o escritor, pintor e jornalista Pierre Clitandre, tem suas diretrizes teóricas a partir do movimento indigenista, durante os anos 40. O livro de Jean Price Mars, Ainsi parla l’Oncle (Assim falou o tio), coloca a problemática da identidade a partir do olhar da cultura campesina (vodu, crenças imateriais, práticas agrícolas, entre outros) na época em que a elite haitiana optou por colocar-se entre a cultura francesa e a americana. “Agora que as estruturas campesinas implodiram por uma conjuntura de quebra, de êxodo, de ruína e de penetração do protestantismo, que culpabiliza as tradições seculares, a identidade deve se redefinir numa modernidade teórica. Devem-se colocar em questão as influências tecnológicas estadunidenses sobre as atitudes, a cultura e as concepções nos meios urbanos”. Isso significa que as crenças religiosas tradicionais estão sendo cientificamente reabilitadas por alguns especialistas. As riquezas retiradas do solo, ainda não totalmente exploradas, estariam diretamente ligadas à capacidade inventiva dos haitianos. A identidade seria também essa capacidade de resistência histórica popular que quer proteger os ganhos físicos e culturais em detrimento da destruição provocada por diversas circunstâncias. “A identidade cultural haitiana é uma nova maneira de projetar um mundo dominado pelo materialismo sobre todas as suas formas”, afirma Pierre Clitandre.
A cultura como vitrine
Vodu: cultura e religião, resistência e solidariedade Por Benedito Teixeira A cultura haitiana tem na prática religiosa do vodu um dos seus pilares de resistência. Perseguido desde os tempos da Colônia, o vodu resiste bravamente em todos os cantos do Haiti e não só entre as camadas consideradas “menos civilizadas” pela burguesia. O silêncio a que foi submetido durante longo tempo não foi capaz de esmorecer a religião, que pode ser considerada genuinamente haitiana. Nas palavras do sociólogo Kawas François, diretor do Centro de Pesquisa, Reflexão, Formação e Ação Social (Cerfas) e coordenador da Pastoral de Jesuítas do Haiti, ela faz parte do imaginário haitiano, é elemento fundamental na cultura do seu povo. Resumindo: “é difícil entender o haitiano sem conhecer o vodu”. Kawas François é diretor do Centro de Pesquisa, Reflexão, Formação e Ação Social (Cerfas) e coordenador da Pastoral de Jesuítas do Haiti. FOTO: ALTY MOLEON
Estudioso do vodu, François afirma que todas as camadas sociais praticam o vodu no Haiti. Está em vários setores da classe média, em setores da burguesia e do mundo político. “E como historicamente foi marginalizado e identificado como coisa de gente não civilizada, então até hoje os setores mais ‘civilizados’ (se assim podemos dizer), os ocidentalizados, estão com medo de expressar publicamente sua pertença ao vodu”, acrescenta, lembrando que as barreiras culturais em relação à religião tiveram um grande impacto com o reconhecimento oficial do vodu pelo decreto de 4 de abril de 2004, do presidente Jean-Bertrand Aristide. “Isso reforçou a presença do vodu no espaço público. Porém, há muita gente, políticos e parte da burguesia que seguem essa prática, mas ainda às escondidas”.
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Haiti por si
Os templos vodu não são fáceis de identificar. Um desses, liderado pelo houngan Merisier Jerome, fica no município de Croix des Bouquets, perto de Porto Príncipe. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Compartilhando o que tem Um desses templos é liderado pelo houngan Merisier Jerome, que vive junto com a esposa e a mãe no mesmo lakou, onde se encontra seu templo, no município de Croix des Bouquets, perto de Porto Príncipe. Em entrevista à Adital, ele explica como funcionam as atividades do templo, onde a solidariedade parece ser o principal serviço disponibilizado para as pessoas. “Todo dia, nós, com o pouco que temos, buscamos nos programar, de uma certa maneira, para recebermos as pessoas e compartilharmos o que temos com elas. De manhã, minha mãe prepara café em quantidade para receber os loas (os espíritos) e
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Diferente dos templos católicos e protestantes, por exemplo, um templo vodu não é algo tão fácil de identificar à primeira vista. São casas comuns, mas que, conforme levantamento feito pelo próprio François, em 2000, ultrapassam e muito a quantidade de espaços católicos no Haiti. “Você vai ficar assombrado com o número alto de hounfo, de templos vodu que existem na Capital (Porto Príncipe): nas três grandes áreas de Delmas, Carrefour e Zona Sul, com mais de 800 mil habitantes, existiam (em 2000) 419 templos vodu com 419 houngan (sacerdotes). E existiam 14 paróquias da Igreja Católica, com cerca 25 padres em atividade”, compara o sociólogo.
A cultura como vitrine
todas as pessoas que nos visitem; depois seguimos atentos para receber gente com diferentes problemas”, conta Jerome. No bairro de Kafoj, onde vivem, o templo comandado por ele é considerado referência para a cura de pessoas com problemas psíquicos. Jerôme explicou à Adital algumas práticas do vodu, em muitos pontos parecidas com os ritos da Igreja Católica, incluindo referências a figuras santas. Por exemplo, cada templo tem seu nome específico; o dele se chama Sen Jak Majè (São Tiago). A presença de imagens também é marcante. Segundo ele, cada imagem tem um significado e um espírito dentro; Legba, por exemplo, representa o santo católico Lázaro e é o chefe de todos os templos de vodu no Haiti. Na imagem, em sua perna, há dois cães; cada um tem uma responsabilidade, um para as decisões e o outro para buscar os espíritos, em caso de um trabalho difícil. Já Ogou ou Sen Jak Majè (São Jorge) é representado por um homem sobre um cavalo. Santa Ana se chama Èzili Freda; Moisés se chama Simbi Andezo; a virgem Imaculada se chama
Imagens de santos católicos se
Èzili Dantò, é homem de noite e mulher de manhã; São João Batista se chama Ti Jan Petro; Deus que carrega a cruz se chama Kadjabosou; Dambala (São Camilo) e Kafou acompanham as pessoas no hospital; entre outros exemplos. O estudioso Kawas François explica essas coincidências entre as religiões, enfatizando que o vodu tem suas liturgias como todas as religiões, tem seus ritos e práticas litúrgicas próprias. Às vezes, essas festas coincidem com o calendário católico, pois como o vodu foi proibido durante o tempo colonial, ele utilizou sinais, símbolos e o mesmo calendário católico para ocultar, frente ao branco, suas práticas. Por isso, há muitos santos católicos que têm nome dos ‘lwa’, dos espíritos, mas têm sentidos diferentes. Seria uma forma de enganar os colonizadores e missionários. “Também as festas. No começo de janeiro há uma festa do vodu que coincide com a festa dos Santos Reis. A festa dos santos e dos mortos em novembro é a festa dos ‘gede’. Há um grande calendário bem estruturado. Há grandes cerimônias de iniciação: como fazem na Igreja Católica, temos o noviciado, o seminário para introduzir as pessoas, e há instituições para preparar as pessoas a terem acesso ao clero”, observa François. Segundo ele, um jesuíta haitiano, chamado Fritzen Wolf, fez um trabalho de doutorado estudando o paralelo entre o rito de iniciação do vodu e a celebração da eucaristia cristã.
confundem com as crenças vodu. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Desmistificando o vodu Durante a entrevista, François tentou fazer uma síntese de como funciona realmente a prática do vodu, que, para ser desmistificada, precisa ser conhecida. De um ponto de vista antropológico, como outras religiões, o vodu tenta oferecer respostas às grandes questões fundamentais e existenciais, como a existência e a identidade de Deus, a origem da vida, o sentido do sofrimento, a vida depois da morte. A teologia do vodu também afirma a existência de um Deus, que não tem as mesmas características do Deus católico. Ele existe, é poderoso, mas não se mistura com a história real do mundo, ou seja, não se mete nas coisas cotidianas da humanidade. Essa tarefa é destinada aos espíritos, os loas, que são mais próximos porque estão inseridos nas coisas do dia a dia. Nesse ponto, o Deus vodu é bem diferente do Deus cristão, que é mais histórico, pessoal, materializado através de Jesus Cristo.
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Haiti por si O vodu crê também numa vida depois da morte. François explica que o espírito do homem não desaparece depois da morte: não vai ao paraíso ou ao inferno como para a Igreja Católica, porém existe, sim, alguma existência espiritual depois da morte. “E também há uma ética, uma ética mais de solidariedade. Há quem pense que o vodu é a morte, não. No vodu, como em todas as religiões, há exageros, há desvios em direção à magia e, como o marco sociológico do vodu é marcado pela ignorância, o analfabetismo, por isso o desvio para a magia tem um significado muito forte, porém não constitui a essência dessa religião”, ressalta.
Religião, cultura e reconstrução
Em um altar vodu é possível encontrar fotos de santos, moringas e até símbolos piratas.
que vêm com a origem de cada pessoa. “Você faz uma opção madura, quando adulto, pela fé cristã porque nasceu na Itália, por exemplo. Um rapaz que nasceu na Índia e que nunca viu uma Igreja Católica é hindu; ou alguém que nasceu na selva africana, que nunca viu a cara de um missionário, segue sua religião tradicional, lógico. Essa é a vida. Assim, a religião é um elemento cultural porque ela procura dar as respostas às grandes perguntas da vida. São problemáticas que são comuns a todos os homens da Terra”.
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Como não poderia deixar de ser, a prática do vodu continua tendo um papel importante na construção e, depois do terremoto de 2010, na reconstrução do País. Infelizmente, para François, esse processo de refundação do Haiti não conta oficialmente com a participação de todos os grupos religiosos, que fazem parte da cultura do povo. Refundação se resume a um conceito, mas na prática não tem funcionado. “Como verdadeira missão pessoal, fiz a proposta de que o governo fizesse uma espécie de conferência nacional, com a participação de todos os setores nacionais, para elaborar um plano de refundação do País. Isso, porém, não foi feito. Há alguns pequenos planos para casas, com ajuda de algumas entidades internacionais, mas não houve um processo participativo para incluir todos os setores. Houve esforços em nível humanitário de muitas agências, das Nações Unidas, das igrejas. Houve também um pequeno esforço do governo, porém não houve uma reação coordenada em favor de uma reconstrução”, lamenta François. Ele reconhece que houve muita generosidade, mas conta que muitas ONG se aproveitaram para ganhar dinheiro e levá-lo às suas instituições, e também houve setores oficiais do governo que teriam aproveitado para enriquecer. “Por isso, não se pode dizer que há um esforço de refundação nacional, que chame as religiões e todas as pessoas de cultura para um trabalho de reestruturação do País”, afirma o sociólogo. Na visão de Kawas François, para explicar a força das religiões na formação cultural dos povos e, especificamente, do vodu para os haitianos, elas são um fato cultural, claramente,
A cultura como vitrine Esconder-se para sobreviver De maneira mais vasta, a identidade haitiana designa a visão do mundo e das coisas, atitudes e temperamentos, modos de vida dessa população, indica Max Beauvoir. “Por exemplo, nós temos uma maneira de falar às pessoas sem olhá-las diretamente. É um sinal de respeito pelos mais velhos, defendido por valores relacionados ao vodu. Essas expressões estão relacionadas com a educação que receberam de seus familiares ou avós por contos e histórias”, explica. Há outras interpretações dessa característica dos haitianos, como a do professor e economista Camille Chalmers, diretor da Plataforma Haitiana por um Desenvolvimento Alternativo (Papda), com base no processo de sobrevivência do povo haitiano, pois, para ele, há ainda o que explica como a estratégia de “esconder-se para sobreviver”. Esse comportamento vem desde a invasão espanhola, com a resistência dos indígenas. Eles foram todos massacrados e mortos. Sobraram os escravos trazidos da África, que aprenderam a esconder-se para manterem suas vidas. Chalmers conta que, durante dois séculos, os escravos construíram quilombos e toda uma estratégia de resistência contra o Estado. Era preciso esconder-se e afastar-se de todos os laços com a sociedade oficial, com o Estado, “é uma estratégia fundamental para entender a cultura haitiana e a resistência”. Ele observa que, sem isso, não seria possível explicar que o vodu tenha ainda hoje tanta força, uma religião que foi perseguida em todos os momentos históricos com violência, “mas agora é disseminada em cânticos e cerimônias vodus entre meninos de 15 e 16 anos”. Para o coordenador da Papda, essa resistência só foi possível utilizando como um eixo tático e fundamental esconder sua própria personalidade. Dizer uma coisa para esconder o que pensa. E a aparência de submissão que os haitianos passam para o mundo inteiro está muito ligada a isso. Fazer crer para o outro que está totalmente submisso e não dar pistas de quando sua verdadeira força pode se revelar. O problema, para Chalmers, é que essa dissimulação, apesar de eficaz para a resistência à dominação estrangeira, é muito difícil para construir alternativas internas. “Por exemplo, dentro do povo funciona, mas tem uma tendên-
cia a muita fragmentação. É uma das grandes dificuldades para os movimentos se ampliarem, porque há muita desconfiança entre os grupos, e muita desconfiança entre as regiões do País. Precisamos perder um pouco disso”, diz. “Para passar à ofensiva, é preciso também romper com isso. É uma estratégia muito eficiente para defender-se, mas para conquistar espaço não é”.
Cultura não globalizada Constata-se, cada vez mais, a paixão dos estrangeiros em descobrir a cultura haitiana. Essa curiosidade está ligada ao fato de que existem ainda alguns traços culturais fortes no Haiti que não são enquadrados na globalização cultural, comandada pelo Ocidente. Esses traços se encontram notadamente na cultura popular. A Rara é uma expressão dessa cultura. Essa festa é normalmente confundida com o Carnaval, é uma festa que acontece na Quaresma, que vai da Quarta-feira de Cinzas até a Páscoa, mas com fortes laços vodu. As pessoas desfilam nas ruas com instrumentos tradicionais: tambor, trompete de bambu e ‘tcha-tcha’ (uma espécie de maracá) e entoam canções populares, às vezes sexistas, tiradas da música folclórica haitiana. Os dançantes, ou “bandas” de Raras, percorrem as ruas realizando cerimônias religiosas como parte de suas obrigações rituais para os loas, que são os espíritos vodu do Haiti. Guédé é a família dos espíritos associados à morte e sexualidade e, geralmente, possui um houngan (sacerdote vodu do sexo masculino) ou mambo (sacerdote vodu do sexo feminino), antes de a “banda” começar sua procissão, para abençoar os participantes e desejar-lhes caminhos seguros para suas jornadas noturnas. De acordo com o artista Luc Bonaventure, “a Rara é um fenômeno cultural que visa a criar distração, entretenimento, principalmente no meio rural”. Mas, com o fenômeno migratório da segunda metade do século XX, que viu os campos se esvaziarem de um bom número de seus habitantes, em busca de vida melhor nos centros urbanos, a Rara se espalhou por outras cidades do País, como Porto Príncipe. “Se alguns municípios e suas regiões vizinhas, como Léogâne, guardam essa tradição com mais importância e destaque, atraindo muitos visitantes de outras cidades, a Rara se diluiu
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Haiti por si e os ritmos tradicionais. Era permitido aos escravos, segundo relatos do antropólogo e um dos maiores especialistas em música haitiana, Emmanuel C. Paul, cantarem e dançarem no fim da semana após o Carnaval de seus patrões e nos três últimos dias da Semana Santa. A Rara conheceu, com o passar do tempo, uma evolução. Nos seus inícios, era chamada Chayopye. Os pés e a boca foram os instrumentos sonoros utilizados para criar uma ambiência nessa época. Em seguida, integraram-se instrumentos tradicionais como tambor, címbalo, gongo e outros vindos do exterior, como saxofone, trombone, barítono e helicon. “A Rara não se projetou fora de seu aspecto religioso”, diz Bonaventure. Logo que sai a banda de Rara prosseguem as cerimônias de “eliminação” e de “banho esfregão”, a fim de limpar os males. Esses rituais variam de região para região e visam a proteger a banda contra toda tentativa de transporte de maus espíritos que poderiam vir de seus adversários. As cerimônias são organizadas seja pelos houngan (sacerdote) ou pelos housin (iniciados).
A festa de fevereiro
obrigações rituais para os “loas”, que são os espíritos vodu do Haiti. Tocam um instrumento de bambu. FOTO: ALFONSO LOMBA
de cidade em cidade e nos bairros, tornando-se um evento social concorrido para, finalmente, tornar-se, no início do século XXI, uma prática largamente generalizada”, escreveu Anathalie Durant, em seu artigo “Rara das cidades e dos campos”, no jornal Le Nouvelliste, de 27 de abril de 2011. A Rara é de origem africana. Os africanos de Saint Domingue conseguiram conservar os cantos, as danças
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As “bandas” de Rara percorrem as ruas na Quaresma, como parte das
Na linha dos eventos culturais de caráter popular, mas em escala nacional, destaca-se o Carnaval. Festa tradicional haitiana, manifestação de renovação popular por excelência, o Carnaval chegou ao Haiti durante a colonização, através dos escravos. Segundo o antropólogo Jean Coulanges, foi, em seguida, transformado e ‘crioulizado’. Os elementos de sincretismo africano também foram integrados. Hoje, fala-se da Terça-feira Gorda, que é uma novidade e uma realidade haitianas, e da Quarta-feira de Cinzas, quando a Igreja Católica queima tudo o que lembra esse tempo profano, consagrado às orgias e à grande loucura. A tradição se exprime nos seus cantos, danças, fantasias, nas vestimentas suntuosas de bandas fantasiadas que desfilam durante os dias ‘gordos’, nas máscaras que são uma linguagem, um signo semiótico, que carregam a realidade sóciocultural e dão uma ideia do estado da política haitiana, do estado dos relatos sociais. Nesse período de festas no mês de fevereiro, principalmente as ruas da capital Porto Príncipe e de Jacmel (cidade turística 85 quilômetros ao sul da capital) são abertas ao canto, à dança e aos prazeres mundanos. É o momento em
A cultura como vitrine
que não valem proibições e barreiras sociais: ricos e pobres, negros e mulatos se juntam nos carros alegóricos, nos estandes, nas ruas para celebrar “a carne”. O Carnaval gera receitas significativas em Porto Príncipe e em Jacmel, onde existe uma boa organização oficial. A nostálgica “diáspora haitiana” aproveita essa época para se recarregar. Turistas locais e haitianos viajam em número considerável para observar, se divertir, comprar produtos artesanais (chapéus e máscaras). Cayes é outra cidade turística 195 km ao sul de Porto Príncipe, onde o Carnaval oficial do País foi transferido. Em 2012, por conta do terremoto, turistas locais e estrangeiros foram transportados em barcos de cruzeiros para contornarem as dificuldades da falta gritante de estruturas rodoviárias e evitar engarrafamentos, o que acarretou a ida massiva dos visitantes para esse novo núcleo carnavalesco. Os artistas e artesãos aproveitam o evento para venderem suas obras e a imagem do País. O marionetista Paul Junior Casimir Lintho, há alguns anos, frequenta esse lugar de grande aglomeração popular. Lintho aproveita a visibilidade em grande escala que o Carnaval oferece, não somente para ganhar um pouco
O marionetista Paul Junior Casimir Lintho apresenta seus bonecos nas ruas durante o Carnaval e aproveita para oferecer oficinas de bonecos do seu atelier, Komedi lakay.
mais de dinheiro, mas para vender a imagem de seu atelier, Komedi lakay, e instruir as pessoas. “No Carnaval de 2011, encampei a personagem cólera com tudo aquilo que ela tem de simbólico”, explica Lintho. No momento no qual essa epidemia molestou o País, seria necessário dizer às pessoas que deveriam aplicar regras de higiene para não
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Haiti por si audiência junto aos jovens. Todas essas tendências da cena musical geral se encontram e se afrontam no Carnaval. A Compa (konpa), música dançante criada em 1955 pelo maestro Nemours Jean-Baptiste, predomina pelo seu caráter comercial. Inúmeros festivais no Haiti e na “diáspora haitiana” se fazem em torno da Compa. Seus cantores Carimi, T-Vice, Djakout, Tabou Combo, Mizik Mizik, Zenglen, são solicitados para shows em todo o Caribe e nos Estados Unidos. A música comercial do Haiti é uma soma de influências e estilos que se combinam para criar um som que vem de todos os lugares (Europa, África, América Latina), para criar algo inteiramente original. O filho mais famoso da música haitiana fora do País é Wyclef Jean, co-fundador do The Fugees, e um artista de sucesso solo, que vive nos Estados Unidos desde os nove anos de idade e tentou ser, sem êxito, um dos inúmeros candidatos à Presidência da República do Haiti, em 2010. A música do Haiti pode ser dividida em muitos gêneros distintos de jazz mais tradicional, como, por exemplo, a Orchestre Septentrional d’Haiti (Orquestra Setentrional do Haiti) em When the Drum is Beating (Quando o tambor está batendo), ao hip-hop com mistura de vodu, Compa e mizik rasin (haitian roots music).
Retorno às raízes A música de raiz, por ter tirado sua essência do vodu, é o lugar no qual a identidade cultural haitiana encontra sua expressão privilegiada. Essa tendência teve origem no fim dos anos 70 e início dos 80 no contexto no qual o duvalierismo e sua ditadura ainda ecoavam. Louis Lesly Marcelin (Sanba Zao), um dos pioneiros dessa música, convida a descobrir um pedaço da história importante através de sua vida e sua trajetória de músico. Nascido em 1954, Sanba Zao começou a sua carreira em 1972 na música ocidental imitando as vedetes pops estadunidenses. Mas, em 1978, mostrou sua versão original. Ele fundou, junto com outros amigos, como Théodore Beaubrun, outro músico muito conhecido no Haiti, no início dos anos 80, o Movimento Sanba, que se afirmaria como uma luta pela revalorização das expressões culturais ligadas à tradição popular - o que ficou conhecido como música de raiz.
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serem presas fáceis dessa doença, que já fez muitas vítimas no Haiti. “A arte tem a vertente de educar as pessoas ao mesmo tempo em que se divertem”, disse. Figura de destaque nessa área artística no Haiti, Lintho se formou na Escola de Comunicação Poli-Artes (Coparts) antes de montar, em Carrefour-Feuilles, bairro popular de Porto Príncipe, seu próprio atelier, que foi destruído pelo terremoto de 12 de janeiro. As marionetes multidimensionais de Lintho são testemunhas de um verdadeiro pedaço da história. Sua arte é um olhar sem compaixão sobre a realidade sociopolítica haitiana. Ele é daqueles que acreditam que a arte deve estar a serviço da ideologia. Seus espetáculos fustigam a noção de ‘restavèk’, fenômeno frequente no Haiti, que é a prática das famílias pobres de darem suas crianças aos parentes ou conhecidos mais ricos. No idioma crioulo, o termo é oriundo das palavras francesas ‘rester avec’, ou seja, “ficar com”. “Nossas marionetes falam às pessoas dizendo-lhes que ‘restavèk’ também são seres humanos e merecem ser tratados como tal”, explica. A arte deve servir como meio de transmissão de conhecimentos e de formação das pessoas. “Ensinamos às crianças a arte da reciclagem em marionetes. Elas aprendem a se servir de resíduos que poluem o meio ambiente para criarem obras de arte, usando garrafas vazias, entre outros, para fabricarem marionetes de mão e outros personagens artísticos”. O Carnaval é uma encenação de diversas expressões tradicionais haitianas: a música, a dança, o artesanato etc. A música tem um papel importante na vida dos haitianos. Serve para exprimir sua vivacidade, sua alegria, sua pena, sua miséria, sua angústia existencial, sua visão do mundo. Tudo gira em torno da música. Mesmo a coumbite - festa que representa agricultores no exercício do cultivo da terra - é executada tendo como fundo a música folclórica. O agricultor trabalhando na lavoura canta e dança para alegrar seu trabalho. A música folclórica engloba cantos sagrados e profanos ligados à tradição haitiana. A música popular haitiana cobre muitas tendências: a folclórica; de raiz, poderosa dentro do vodu; o compasso; e, mais atualmente, o rap, música importada mas que tem uma importante
A cultura como vitrine A origem do movimento se deu sob o jugo dos Tontons Macoute, milícia repressiva implantada pelo presidenteditador François Duvalier. “Nessa época, era necessário ser corajoso para ser um sanba, porque você poderia ser perseguido pelos Tontons Macoute”, relembra o músico. Zao contribuiu para implantar a música de raiz no Haiti depois de ter frequentado lakous e templos vodus. Ele fundou com seus amigos o ‘Foula Jazz’, que deixou mais tarde para criar seu próprio grupo, o ‘Sanba yo’. O Movimento Sanba teve certa expansão no Haiti e Zao se afirmou como um dos grandes precursores da música de raiz. “Essa tendência me transformou. Me ensinou a ser haitiano e a resguardar meu caráter de homem”, disse. Pai de seis filhos, Zao vive de sua profissão como artista e como professor de percussão na Escola Nacional de Artes, graças à sua disciplina de vida. “Eu não sou desses músicos que se exilam no estrangeiro e que se distanciam progressivamente de sua raiz, de sua origem. Eu viajei muito. Mas eu retornei à fonte para conduzir o debate para o qual fui chamado”, assinalou. Zao contribuiu para formar vários jovens, ministrando o curso de tambor em Porto Príncipe e nas províncias. Fundador e líder do grupo Djakata, Zao é o chefe de uma família-grupo de artistas. Isso porque sua esposa e filhos cantam, dançam e tocam tambor no Djakata. Todos são da música de raiz, ‘la musique racine’. “É importante que o haitiano tenha um ritmo que o identifique. Isso permite a troca com os estrangeiros. Quando eu produzo no exterior, fico extraordinariamente surpreso com o acolhimento dos estrangeiros. Eu toco em muitos países e em lugares turísticos, inclusive onde morreu o precursor de nossa independência, Toussaint Louverture, no Forte de Joux, na França”. O artista tem um engajamento social para ajudar as pessoas mais pobres de seu país. Com seu modesto salário, Zao fundou uma escola comunitária em Morne de l’Hôpital, bairro popular de Porto Príncipe, para ensinar crianças pobres a ler e a escrever. “Eu tenho vergonha de ver compatriotas incapazes de escreverem seu próprio nome”, considera. Essa escola foi fundada em 1998, após uma turnê que o artista realizou na França. “Eu me dei conta de até que ponto o analfabetismo desumaniza nos-
Louis Lesly Marcelin (Sanba Zao) é um dos pioneiros da música de raiz haitiana, com forte influência vodu. No início dos anos 80, fundou o Movimento Sanba que se afirmaria como luta pela revalorização da cultura haitiana. Criou o ‘Foula Jazz’, que deixou mais tarde para montar seu próprio grupo familiar, ‘Sanba yo’. FOTO: NÉLIO JOSEPH
sos irmãos. O Haiti é um país onde o analfabetismo apresenta uma proporção alarmante”, disse. Os professores são pagos com fundos próprios e ele contribui com o melhor que pode. “Acontece frequentemente de ter que acionar o governo judicialmente para as crianças atendidas conseguirem registro de nascimento porque, no Haiti, muitas pessoas não têm identidade”. Além da formação escolar, as crianças são iniciadas nas atividades de artes e informática. Face às dificuldades econômicas que Zao enfrenta, o setor de informática da escola foi suspenso temporariamente. “Infelizmente constatamos, nos últimos anos, uma invasão de ONG internacionais, mas a situação socioeconômica se deteriora cada vez mais. E é nessa situação que o artista deve se mostrar. Minha música é a voz de uma fala engajada que denuncia o inaceitável e o politicamente incorreto”, conclui Sanba Zao. Voz de destaque da música de raiz no Haiti, o grupo ‘Chay Nanm’, criado em março de 2006, mistura o vodu e o jazz com o objetivo fundamental de colocar o estilo musical sobre a cena mundial. “Nos nossos dias, muitas pessoas renunciam à sua origem. Existe uma diversidade rítmica na nossa produção, mas com base no vodu”, disse Georges Muller Régis, chefe do grupo. No momento, quando a identidade cultural é colocada à prova, na qual o hip hop invade os espaços culturais haitianos, Chay Nanm é uma das vozes que vêm para lembrar aos haitianos suas origens africanas. “Não fui criado numa família de voduístas, mas decidi retornar à fonte, à nossa raiz, onde as pessoas dançam de pés nus. Não critico aqueles que se voltam para o hip hop, mas que ninguém esqueça a importância do papel que o vodu teve na independência do Haiti. É a nossa alma. É por isso que o grupo é chamado Chay Nanm, traduzido literalmente como uma grande quantidade de almas que liberam energia”, explica. Jovens, Georges Muller Régis e sua banda não vivem totalmente de sua arte. Os músicos ministram cursos na escola clássica e vendem sua força de trabalho nas ONG. Às vezes, o artista vira um motorista de mototáxi. “Ser músico de raiz no Haiti é uma escolha assumida, contra ventos e marés. Frequentemente organizamos espetáculos para ficarmos em evidência. Apesar de tudo, nós não ligamos muito para o sucesso. Nossa cultura é nossa alma. Se ela desaparecer um dia, nós vamos com ela”, afirma.
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A cultura como vitrine As riquezas do artesanato Ao lado da música popular, o artesanato é um dos domínios em que a riqueza do Haiti tem muita vivacidade. Ele está presente em todos os lugares. No Carnaval, nas festas campestres, nas galerias de objetos decorativos, nos mercados sobre as calçadas. E se apresenta também numa diversidade animadora: ferro cortado, bordado, argila, madeira, pedra, papel machê, cerâmica, porcelana etc. É um setor de atividades cada vez mais próspero e criativo. Muitas atividades econômicas e promocionais são organizadas em torno do artesanato. O Carnaval é certamente seu lugar de visibilidade em grande escala. A vivacidade das cores das máscaras de Jacmel, os personagens tirados do folclore haitiano, as marionetes gigantes dão uma personalidade ao Carnaval haitiano, que é dotado de uma expressão que impressiona os carnavalescos locais e estrangeiros. Além do Carnaval, existem notadamente outros momentos de expressão. Artesanato em Festa, um evento anual organizado pelo Le Nouvelliste, mais antigo jornal diário do Haiti, e pelo Instituto de Pesquisas e de Promoção da Arte Haitiana (Irpah), é um evento que traz uma variedade impressionante de produtos artesanais, como joias, bijuterias, bolsas, sapatos, além de peças em chifre, de madeira e osso, pedra talhada, bordado pintado, crochê, bordado, porcelana, tecido, pintura etc. O Parque Histórico da Cana-de-Açúcar, em Tabarre, na zona oeste de Porto Príncipe, é palco, todo ano, de exposição de centenas de esculturas de todas as categorias e dimensões, vindas de diferentes regiões do País, e de milhares de visitantes que aproveitam para apreciar as instalações e admirar o talento dos criadores. Esses espaços constituem um mercado importante para vender os produtos ou fazer contatos com potenciais compradores (haitianos e estrangeiros). Os artesãos, distribuídos em todas as regiões do País, são, em sua maioria, oriundos da classe mais desfavorecida, que fazem de sua arte um ganha-pão, em um país onde o desemprego é estimado em mais de 70%. Alguns conseguem viver decentemente e se impor no mercado graças à sua coragem, devoção, talento e capacidade de consolidar seu nome no meio.
Lionel Saint-Eloi é um escultor de inspiração vodu. Foto: Nélio Joseph
O Parque Histórico da Cana-de-Açúcar, em Tabarre, é palco todo ano de exposição de centenas de esculturas como esta de Saint-Eloi. FOTO: NÉLIO JOSEPH
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pedra talhada e um dos modelos de sucesso do País. FOTOS: DIVULGAÇÃO/ NEGROARTIST.COM
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Obra de Ronald Laratte, o artesão de
guir créditos para os nossos artesãos”, observa. O setor do artesanato não foi poupado pela catástrofe de 12 de janeiro, indo ao chão os ateliês dos artesãos. Ronald Laratte, cujas obras são expostas em feiras internacionais, é um dos que solicita um acompanhamento com mais suporte do Estado e do setor privado para que o artesanato seja, efetivamente, uma profissão viva, uma janela aberta para o mundo. Corajoso, o artesão, com a voz embargada, relembra o acidente que causou a amputação de sua perna esquerda, há cerca de oito meses. “Eu dirigia uma motocicleta quando o automóvel do irmão do então senador Edwin Zenny me atingiu. Sobrevivi, mas fiquei com uma perna só”. Apesar disso, o acidente em nada atingiu sua determinação e sua paixão. Essa frase-conclusão é uma prova disso: “Dois meses após o acidente, recomecei a trabalhar com a mesma intensidade”. Em outro registro, Smith Mackendy, chamado de “homem-sandália” pelo jornalista Roberson Alphonse, especializou-se na fabricação de sandálias em macramé de
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Ronald Laratte, artesão de pedra talhada, cuja perna esquerda foi amputada num acidente de carro, é um deles. Ele é desses modelos de sucesso, engajamento e coragem que merecem ser apresentados como exemplo para a nova geração de artistas, em questão de esplendor e de identidade. Laratte, 46 anos, escultor que herdou a arte de seu pai, iniciou na escultura com 12 anos, convencido desde já da nobreza desse trabalho. “Muito jovem, trabalhei esculpindo pedra para mostrar a outra face do Haiti fora o País”. Devotado ao artesanato, construiu uma carreira ativa e consistente, o que lhe valeu homenagem do presidente da República do Haiti, Michel Martelly. Dotado de um talento extraordinário, Laratte faz de sua profissão uma arte de viver, de afirmar sua existência e de captar a realidade. “É minha vida, minha fonte inesgotável”, resume o incansável trabalhador, que também critica a falta de envolvimento do setor privado haitiano. “O setor do artesanato não pode viver de oportunidades. É necessário um investimento a longo prazo, consistente, para conse-
A cultura como vitrine
Artesanato em ferro é também coisa de mulher Por Adriana Santiago
Mitha Balan é uma artesã que trabalha com ferro há mais de 20 anos em Croix-des-Bouquets. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Os haitianos são uns artistas de mão cheia. Em Croix-des-Bouquets, um bairro afastado de Porto Príncipe, é fácil encontrar a artesã Mitha Balan. Ela é a única mulher que trabalha com ferro da redondeza. Virou atração turística e um excelente atrativo para todos os outros artesãos da rua, que vendem mais com as visitas de turistas de todo o mundo. Sim, o Haiti não é um país turístico, mas tem chamado a atenção da ajuda internacional e cada vez mais estrangeiros chegam ao País. Nas horas de folga, são turistas. Agachada, lustrando uma obra de ferro com areia, não faz jus à fama que tem. Dizem que é forte, determinada e não teme o trabalho duro. À primeira vista é uma senhora pequena, que faz com amor aquele serviço empoeirado. A artesã, de 43 anos, minimiza as falas. Trabalha com ferro como se por herança. Aprendeu vendo o pai e os irmãos trabalharem, mas era proibida de fazer uma atividade tão masculina para os padrões patriarcais haitianos. Até Mitha engravidar. E solteira. O irmão a ajudou nas primeiras peças, devagar, escondida do pai, que vendia rapidamente na cidade até encontrar um jeito de sair de casa antes da barriga aparecer. Nada profissional. A barriga apareceu, os conflitos, e a saída demorou ainda 10 anos. Mitha adora árvores, talvez por isso seja o seu primeiro trabalho com estilo profissional. A árvore de Mitha encantou um cliente que encomendou 200 de uma vez só e, com muito esforço e a ajuda do irmão, pôde sair de casa com dinheiro no bolso, criar já seus três filhos e viver de artesanato. Hoje sustenta cinco filhos (25, 23, 20,11 e sete anos), um neto (dois anos) e uma casa própria. Suas primeiras árvores ainda fazem sucesso e são vendidas para o mesmo atravessador de Miami a 100 gourdes, mas tem peças mais elaboradas e únicas que chegam a 500 gourdes. Uma escultura de mulher com pássaros, de tamanho médio, custa apenas 10 dólares americanos. E a casa de Mitha é cheia de esculturas nas paredes, porque lá também é seu ateliê e loja.
Os desenhos exóticos, que lembram muito a estética vodu, saem da cabeça de Mitha, mas com o traço do irmão, mais versado nos desenhos. Ela prefere as árvores, não só porque as faz sozinha, mas porque a aproximam da natureza. Na produção, estão engajados os cinco filhos e a artesã garante que nem o terremoto atrapalhou os negócios. Nesse tempo todo de negócios, só ficou triste porque ganhou o prêmio de melhor peça artesanal em uma feira internacional em Miami, mas não pôde ir buscar, negaram o visto. Mas ela queria só passear em terras gringas, não quer deixar o Haiti, sente-se satisfeita com o que faz e onde mora e fica feliz porque, nos 10 anos de trabalho profissional, já tem milhares de peças circulando no exterior. O que Mitha e seus colegas da “Rua dos Ferros”, como chamam aquele recanto de artesãos, precisariam é de um incentivo para o escoamento da produção. Ou um setor de exportação organizado e um centro de artesanato, para receber os turistas. Ali, longe do centro de Porto Príncipe cerca de 20 km, numa cidade sem estrutura turística alguma, deixa a produção à mercê dos atravessadores e dos poucos turistas que se aventuram a chegar até lá.
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A arte em ferro de Mitha Balan tem forte inspiração mĂstica, com sereias e deusas vodu.
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Foto: Ermanno Allegri
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Os artesãos desenham nas chapas de ferro, depois recortam com um cinzel rudimentar. O polimento é feito com areia da rua. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
pele de carneiro (tecelagem manual), exporta seus produtos para a República Dominicana e para Miami. O chefe do ateliê “Mak pa nou /nossos trabalhos” criou sua própria empresa, que emprega mais de 30 trabalhadores, dos quais uma dezena de forma permanente. Smith Mackendy, que se considera um artista nato, fabrica seus produtos com capacidade de competir com as melhores marcas de sandálias importadas no mercado haitiano. Nessa diversidade imponente, cada município se ocupa de uma especialidade: a pedra talhada em Léogâne, o papel machê em Jacmel, o ferro cortado em Croix-des-Bouquets etc. A comunidade de Nouailles, bairro modesto de Croix-des-Bouquets, é uma atração turística. Dezenas de ateliês dotados de sua própria estrutura de exposição permanente, acolhem diariamente visitantes estrangeiros e locais, vindos para comprar obras artesanais. Além da prática artística, o ferro dividido é uma “devoção coletiva”, citando o jornalista Gary Cyprien. Jovens e velhos cortam o ferro
para darem forma e vida a seres estranhos e ganharem suas vidas. Todo visitante de Nouailles tem que visitar os ateliês e o museu Georges Liautaud, o artesão pioneiro dessa grande aventura em Croix-des-Bouquets, integrante ilustre do Centro de Arte no início dos anos 70, graças ao seu encontro com o então diretor Pierre Mondosier. Ao sair desse passeio, o turista tem a impressão de descobrir um mundo fantasmagórico onde a imaginação é potencializada ao excesso. A diversidade de tendências de esculturas sobre o metal é atrativa, cativante. Cada um com seu estilo, seu conhecimento, ‘savoir-faire’. É isso o que faz de Croix-des-Bouquets um destino. A arte gera turismo e se impõe como cartão de visita da zona. Na jornada dos ferreiros de Nouailles, quem se diferencia pelo talento e conhecimento é Serge Jolimeau. O sexagenário aguerrido é uma grande figura em Nouailles, lugar onde cresceu e se formou na arte do ferro cortado aos pés dos irmãos Louis Juste - discípulos de Georges
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chama a atenção dos visitantes. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
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A variedade de formas e tamanhos
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Liautaud. Esse ferreiro, aberto e apaixonado, construiu, durante mais de 30 anos, uma obra singular e profunda na qual ele mistura, de forma habilidosa e impressionante, o sincretismo católico e vodu. Pai de dois meninos e uma menina, Serge Jolimeau, em decorrência das dificuldades econômicas, abandonou o estudo formal secundário para
se consagrar na arte do ferro, tornando essa atividade sua principal fonte de recursos. Ele está ligado apaixonadamente ao seu objeto-fetiche - o ferro -, que lamina sem parar no ateliê onde são expostas suas obras e as produções de alguns de seus alunos. Trabalhador incansável, Serge Jolimeau alcançou, graças ao seu trabalho e determinação, a coragem para educar seus filhos e os oito irmãos, e deixar em segurança os fracos, humildes, deserdados de sua região. Sua disciplina, também de ferro, o priva de certos prazeres. Da manhã ao anoitecer, ele corta, achata o ferro para dar vida a seres inanimados. “A ferraria de arte é tudo na minha vida. Eu a trago na minha alma. Eu vivo desse trabalho. Não posso deixá-lo por outro. Sinto-me muito à vontade em praticá-lo. Felizmente, eu aprendi essa profissão desde muito jovem. É necessário estar em meu lugar, viver comigo, para compreender o que me motiva, como essa atividade orienta minha visão da vida, melhora minha relação com os meus semelhantes, com meus amigos”, afirma Jolimeau. O artesanato saiu do ambiente de feiras e de lugares especializados para ganhar as ruas. Calçadas enormes tornam-se, hoje, grandes butiques de objetos decorativos a céu aberto, onde são postas à venda telas, esculturas, joias e bijuterias. Olhares humanos e formas estéticas disputam espaços largos ou exíguos, frequentemente não apropriados, o que mostra aos estrangeiros que o Haiti é um país de artistas. A vida cotidiana gira em torno dos objetos de arte. As caminhonetes ou os ‘tap-tap’, que asseguram transporte público em algumas vias da capital e de cidades da província, são construções artesanais. Os artesãos conservam a base, o esqueleto principal do veículo ou do caminhão, substituem a cobertura inicial por uma artesanal em madeira com assentos capazes de conter mais passageiros. A cobertura é pintada com cores vivas, imagens e expressões proverbiais tiradas da mitologia haitiana, que dão a esse engenho rolante um nova identidade, inscrita numa demanda cultural própria. Os salões de beleza, os restaurantes-boates, os muros de residências privadas e os prédios públicos são obras em plena rua.
A cultura como vitrine O artesanato haitiano ganha hoje visibilidade internacional graças ao talento de seus artesãos e à determinação de alguns promotores haitianos e estrangeiros. Nessa última categoria ressona o nome de Donna Karan, personalidade internacional que luta pelo artesanato haitiano e o guia através de uma nova rota: o mercado internacional, conforme diz Franz Duval, redator-chefe do jornal Le Nouvelliste e coordenador da feira Artesanato em Festa. Essa filantropa americana é presidente da Fundação Urban Zen e visitou algumas vezes o Haiti, levando para sua loja em Nova York, badalada internacionalmente, objetos artesanais importados do Haiti e de outros países pobres. Em setembro de 2011, Donna Karan foi ao programa de Pears Morgan, na CNN, ao lado do presidente haitiano Michel Martelly e do presidente de Ruanda, Paul Kagamé, para divulgar trabalhos de artesanato dos dois países. Na ocasião, teve destaque o artista haitiano Philippe Dodard, no qual inspirou sua coleção de verão de 2011, causando muita polêmica no mundo com a modelo brasileira Adriana Lima posando para o fotógrafo James Russel, ao lado de crianças haitianas visivelmente necessitadas.
O primodernismo
A propaganda da grife Donna Karan com a modelo brasileira Adriana Lima, divulgando o artesanato do haitiano Philippe Dodard, causou polêmica porque usou imagens de haitianos visivelmente necessitados. FOTO: JAMES RUSSEL/ DIVULGAÇÃO
O artesanato é incontestavelmente uma das melhores vitrines do Haiti. No entanto, não se pode falar de cultura haitiana sem se referir à sua pintura que, na metade do século XX, suscitou admiração de observadores haitianos e estrangeiros e colocou o Haiti na cena cultural do mundo. Sua história remonta, segundo historiadores de arte, ao início do século XIX, após a independência do País. A expressão dessa pintura foi resultado de uma combinação de arte africana, cultura francesa e aqueles nascidos de convulsões sociais causadas pela ‘crioulização’. Mas, após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 40, a pintura haitiana começou a construir uma identidade e a se impor no cenário internacional, graças à Dewitt Peters, um professor estadunidense apaixonado pelo charme da pintura naïve haitiana. Ele fundou, em 1944, o Centro de Artes em Porto Príncipe. Desse local, emergiu um viveiro de pintores naïfs - Hector Hyppolite, Philomé Obin, Benoit Rigaud, Préfète Duffaut, Wilson Bigaud, Bazile Castera, Adam Leontus, Gabriel Levêque -, que ficaram conhecidos no mundo inteiro. A pintura naïve haitiana, desenhando seus temas vodu e a realidade cotidiana do País, atraiu a curiosidade de grandes museus do mundo. Sobre o sucesso dessa corrente pictural formaram-se diferentes movimentos e escolas, entre eles o movimento Saint-Soleil, fundado em 1970 por Jean-Claude Garroute, conhecido como Tiga, e Maud Robart, em Soissons-la-Montagne, sendo festejado pelo eminente escritor e ministro francês da Cultura, André Malraux, na sua obra L’Intemporel. Figura renomada desse movimento, Levoy Exil, que vive nos altos do bairro afastado de Porto Príncipe, Thomassin, e cuja primeira obra ilustrou o L’Intemporel, de Maulraux, lembra, “como se fosse ontem”, seu encontro com o misterioso Tiga. “Eu o encontrei na qualidade de marceneiro profissional para pedir-lhe um emprego porque, nessa época, ele trabalhava em Soisson-la-Montagne (uma comunidade camponesa na cidade de Kenscoff, 10 quilômetros ao sul de Porto Príncipe). Vendo minha obra, Tiga me perguntou se eu seria igualmente artista. Eu lhe disse que não era um pintor e ele questionou se eu me
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obra de André Pierre. Acima, uma reprodução da obra de Jean-Claude Garroute, conhecido como Tiga.
Dominique Domerçant, pintor do Movimento Loray e diplomado na Enarts, expôs suas obras no Haiti e em outros países. Ele foi selecionado em 2009 como ganhador nacional em pintura por representar o Haiti nos Jogos da Francofonia, no Líbano, e por expor seu trabalho em universidades francesas e estadunidenses. “A arte representa para mim uma moeda de troca, um instrumento de revolta, um espaço de divisão, um pretexto para comunicar, uma janela aberta para o mundo invisível. Eu uso minha arte para afirmar minha visão de mundo e impor meus sonhos”, defende o jovem artista plástico, acrescentando que a arte contribuiu grandemente para mudar sua vida. Segundo Domerçant, a arte pode ajudar a puxar o Haiti do atoleiro no qual o país está imerso, na condição de que as autoridades coloquem em prática uma verdadeira política cultural focada na educação de jovens, reforçando os valores identitários, cívicos e cidadãos, que valorize a profissão dos artistas e leve em conta sua contribuição para o desenvolvimento econômico e social do País.
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Ao lado, a reprodução de uma
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interessava por pintura. Eu respondi positivamente. Ele me perguntou também se eu já tivera contato com uma obra de arte. Sim, eu respondi, no Hotel Danballah. Ele partiu, finalizando nossa conversa e retornou após três semanas me trazendo três pincéis. Mas onde está a tinta? Ele me respondeu: nós aprendemos a passar sem a tinta importada, use pigmentos naturais. Eu misturei cenoura, beterraba, barro preto, pó cinza de mandioca, amido... Dessa mistura estranha nasceu uma composição multicolor forte. E meu primeiro trabalho plástico resultante disso ilustrou a obra de André Malraux, que teoriza o movimento. Uma experiência inesquecível”. Nascido em 7 de dezembro de 1944, Levoy Exil, agraciado com a Medalha do Milênio em 2000 pelo Salão de Artes Plásticas de La Rochelle, continua a viver de sua arte. Suas obras, inspiradas no vodu, estão expostas nos grandes museus do mundo. Hoje, não é mais a época da pintura naïve. Os pintores mudaram de tema. Mas a pintura haitiana contemporânea, menos explosiva e menos visível que em outra época, guarda ainda sua força expressiva. O “primodernismo”, como o qualificou Tiga, é uma mistura de primitivismo clássico e de modernismo. Os jovens pintores, formados em sua maioria na Escola Nacional de Artes (Enarts), redobram seus esforços para guardar vivo um patrimônio que marcará durante muito tempo a história da cultura haitiana.
A cultura como vitrine
Além disso, destaca a importância de descentralizar e democratizar os serviços culturais entre as cidades haitianas, com vistas a salvar algumas práticas tradicionais autênticas do País que estão na iminência de desaparecer. O jovem pintor, por conta do seu projeto de exposição de pintura haitiana nas universidades do mundo, continua a sensibilizar jovens em torno da arte do País. No momento, os escritores haitianos têm o destaque nacional e internacional que, em outro momento, foi dos pintores. “O Haiti está na onda graças aos seus escritores”, afirma Max Chauvet, diretor do jornal Le Nouvelliste e coordenador da maior feira de livros do País: Livros em Festa. A literatura ocupa um lugar elitista em um país onde a taxa de analfabetismo é estimada em cerca de 40%. É um paradoxo para os observadores que a literatura haitiana ainda floresça. Os autores haitianos são bem destacados em qualidade e em quantidade na cena literária francofônica. Frank Etienne, autor de uma obra imensa e profunda, fundador do Espiralismo, tornou-se uma lenda viva no Caribe. As obras de Jacques Roumain, um clássico da literatura haitiana, são traduzidas em diversas línguas.
A pintura naïve haitiana desenha seus temas vodu e a realidade cotidiana pelas ruas do País. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Algumas áreas artísticas, confrontadas com enormes dificuldades, têm uma audiência muito limitada. O cinema, após ter conhecido seu boom há cinco anos, atravessa um período difícil de sua história, caracterizado pela pirataria excessiva, que causou o fechamento de salas de exibição no país. O cineasta Arnold Antonin, um ícone do setor, não perde jamais uma oportunidade para dar um sinal de alerta e chamar as autoridades públicas a assumirem suas responsabilidades. Da mesma forma, o teatro haitiano, apesar dos esforços de algumas companhias para subsistirem e guardarem viva uma velha tradição, se depara com uma dura realidade: a falta de infraestrutura cultural no País. O Teatro Nacional, construído no bicentenário de Porto Príncipe, em ambiente enlameado e degradado, ainda sofre pelos danos do terremoto de 12 de janeiro de 2010. A dança folclórica haitiana, saída das cerimônias vodus e dos lakou, carrega histórias ligadas ao passado colonial dessa população. Ela traduz nos estados da alma a alegria, o sofrimento e as angústias existenciais desse povo. A dança folclórica é rica em expressões e permite apreciar
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histórico, a maior fortaleza do Caribe, foi considerado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1982. FOTO: HUMANANDNATURAL.COM
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Citadelle Laferrière, monumento
associações de artistas, dos próprios artistas, dos centros culturais privados, das embaixadas, dos institutos culturais estrangeiros. O mecenato é quase inexistente. As estruturas de acolhimento aos eventos culturais, já precárias antes, foram colocadas em prova após o terremoto. O Centro de Arte, testemunha dos períodos de glória da pintura haitiana, foi colocado no chão. A biblioteca Soleil, do escritor-pintor-jornalista Pierre Clitandre, foi gravemente atingida e ele pena para reconstruí-la. A biblioteca do eminente historiador Georges Corvington ruiu. Os edifícios dos museus e da Galeria de Arte Nader, protetoras do patrimônio pictural haitiano, foram duramente atingidos. Os agentes culturais estão cansados. Os artistas, na sua função de criar, estão abandonados à própria sorte ou esperando subvenção de raras instituições existentes, como a Fundação para o Conhecimento e Liberdade (Focal), por exemplo, cujos fundos provêm de um filantropo estadunidense.
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uma variedade de ritmos. É uma fonte de inspiração para a música contemporânea, embora pouquíssimas atividades culturais anuais em grande escala sejam organizadas em torno da dança, nem mesmo um festival, como se encontra na música, no teatro e no cinema. Como falar da riqueza cultural do Haiti sem citar seus lugares históricos, que servem de destinos de peregrinação e de pesquisas para turistas locais e internacionais? A Citadelle Laferrière é, sem dúvida, a mais conhecida. É um monumento histórico plantado sobre o alicerce rochoso e íngreme do Pico Laferrière, a 900 metros de altura, situado cerca de 27 quilômetros ao sul de Cabo Haitiano e oito quilômetros acima da cidade de Milot, ambas no Norte, a cerca de 250 quilômetros da capital Porto Príncipe. A Citadelle é a expressão da criatividade no plano da arquitetura haitiana e um símbolo vivo da força cultural do País. Essa imponente fortaleza, a maior do Caribe, construída após a guerra da Independência por Henry Christophe para conter os invasores europeus, foi considerada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1982. Mas outras, como Le Palais Sans-souci, Ramiers, L’Ilê-de la-tortue, o Môle-Saint Nicolas, os fortes Jacques e Liberdade, e Labadee são verdadeiros centros de atração turística. O clima ameno e as praias ensolaradas do Haiti são uma maravilha. O sol foi sempre um atrativo para os estrangeiros durante os melhores anos do turismo haitiano. Hoje, especialistas pensam que a luminosidade do sol pode servir para produzir energia elétrica em todo o território. Minado por uma instabilidade política crônica e disputas internas, o Haiti, denominado em outro momento de ‘Pérola das Antilhas’, chama, sem grande sucesso, os turistas internacionais, que querem mais segurança, infraestruturas de acolhimento, além de uma melhor condição de vida no País. Apesar dessa ebulição cultural e esse nível impressionante de criatividade, poucos artistas e artesãos chegam a viver de sua arte por falta de políticas culturais. O Estado, sempre atolado nas suas urgências sociais, revela-se frequentemente apenas como espectador. As iniciativas que deixaram vivo o setor cultural no Haiti são originárias de
A cultura como vitrine
Da estabilidade cultural
Por Pierre Clitandre
Escritor, pintor e jornalista haitiano, defensor do simbolismo vodu e do folclore do Haiti. Tradução: Paola Vasconcelos.
Existem terríveis acontecimentos que, embora jogando uma sociedade no pessimismo, têm também como vertente provocar um choque psicológico positivo. O terremoto de 12 de janeiro de 2010 devastou, sob o plano físico, a capital e as províncias. Nos bairros onde os sentimentos de boa vizinhança se desenvolveram ao longo de muitos anos, uma luta diária foi realizada para salvar um sorriso ou um gesto de felicidade, apesar da deterioração dos espaços. Parece-nos compreender o fato de que, se o estado mental é atacado, a situação será pior; que se o imaginário é empurrado, o luto influenciará a natureza; que se as tradições de alegria e de convívio não são mantidas na resistência permanente, os homens criam o seu próprio deserto, e a vida será estéril. Acreditamos que as instâncias internacionais envolvidas nas missões humanitárias e de reconstrução permanecerão confinadas em emergências. Elas desenvolvem planos ideais que não têm nada a ver com uma tradição de ser haitiano, elemento determinante das relações entre os cidadãos. Não é preciso ir muito além na história do País com o “grande vizinho do norte” para entender que a ocupação americana, em 1915, era a introdução de um longo período militar que seria marcado, posteriormente, por estudos antropológicos, culturais e arqueológicos. Estes últimos permitirão parcialmente melhor compreender os lugares intangíveis da chamada “resistência haitiana”. Nessa nova cruzada de atualização cultural, na pesquisa acadêmica, dos princípios que regem o nosso comportamento coletivo, a religião desempenhou um papel determinante. Entre a acusação inquisitorial que causou danos consideráveis e a convivência inteligente, elaborando uma estratégia melhor articulada de cooptação, as instâncias políticas nunca deixaram de tornar o País o “quintal” do “grande vizinho”. A companhia chamada “Rejeté “ (rejeitado), que queimou os locais de cultos voduísticos e fez desaparecer os artefatos das crenças populares dos agricultores, enquanto atacava as árvores que equilibravam
o ecossistema, deu lugar à implantação de estruturas religiosas protestantes. Estas últimas têm sido, mal ou bem, a força ideológica de sua cruzada. O declínio físico e moral do mundo camponês, o êxodo para as cidades e para a capital, a pobreza urbana e as tragédias pessoais nos levam a acreditar, ainda mais, que há uma experimentação da ruína no Haiti. Pelo menos uma análise superficial que diz respeito a todos os domínios, assim como aqueles do imaginário criativo e a cultura profunda de um povo. Nessa guerra passível de desarticulação do mundo camponês e urbano, a inteligência haitiana, contrariamente ao início do século XX com Jean Price Mars e Jacques Roumain, não teve articulação ideológica suficiente para se contrapor ao vasto trabalho de decadência física e moral. Também houve um êxodo intelectual. O nacionalismo original observou um grande declínio. O intelectual contemporâneo ainda não encontrou uma terminologia de combate adaptada à nova conjuntura de desarticulação. No entanto, acreditamos que, formados em universidades estrangeiras, antropólogos, geógrafos, sociólogos, historiadores da arte têm produzido muito mais do que seus antecessores. Suas obras técnicas, mais “científicas”, têm servido para uma melhor compreensão de várias áreas e são mais amplamente difundidas nos círculos acadêmicos estrangeiros do que a serviço dos centros de pesquisa haitianos. É muito cedo para afirmar as diferenças entre Jean Price Mars e Laenec Hurbon em termos de proteção do patrimônio histórico cultural. Mas é urgente dizer que o trabalho experimental do autor do “Barbare Imaginaire” exclui a proposta de combate nacionalista do antropólogo de “Ainsi parla l’Oncle”. Uma amiga me fez lembrar que o mestre da geografia haitiana, Georges Anglade, vítima do trágico terremoto de 12 de janeiro de 2010, jamais falou de terremoto, e eu não pude contestar essa afirmação desesperada. O caos atual em que vivemos dolorosamente em nossa carne e nossa alma é uma série de mal-entendidos, comprometimentos,
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Se culturas que poderiam servir para melhorar as abordagens tecnológicas para a “felicidade” da humanidade ainda são tratadas de maneira sumária, pode-se acreditar que os enriquecimentos filosóficos e herméticos que permitiram à ciência ocidental ser entendida não são mais operacionais. Os meios que nos permitiriam nos comunicarmos melhor, elaborarmos novas maneiras de vivermos, ou melhor, nos harmonizar com toda a natureza, tornariam-se nossa perda coletiva. Apesar das pesquisas mais elaboradas, a ciência ocidental ainda se esconde atrás do manto da dicotomia do bem e do mal, evoluindo cada uma isoladamente. Os colonialismos que ainda dividem o mundo entre nações ricas e pobres vêm dessa concepção, mantida pelas religiões e aplicada nas estratégias militares específicas. Nesse estado crítico, qual o papel ideal do setor cultural caribenho e latino-americano? Em termos de criatividade artística e literária, os pintores e escritores da região (romancistas, teóricos) desenvolveram linguagens indigenistas nas áreas de forma e língua. Não esquecerei jamais minha “iluminação” após a leitura de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez. Não deixarei de dizer da minha paixão pelas obras de Diego Rivera e de Alfaro Siqueiros. Os escritores mais contemporâneos do Caribe francofônico estabeleceram-se em grandes editoras ocidentais. Eles mostraram um outro universo que o cartesianismo negara por muito tempo. Patrick Chamoiseau e Raphel Confiant prolongaram uma tradição iniciada com Jacques Roumain e Jacques Séphen
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A Irresponsabilidade Cultural
Alexis. Essa grande mistura de língua, forma, cor, paisagem, movimento, circulação de textos, de espiralismos, deve ser considerada na demanda mundial por um novo humanismo. Seria desestimulante que essa experiência enriquecedora servisse, para além da sua qualidade ética e estética, a uma nova tentativa etnográfica modernizada para um refinamento de colonialismos mais estáveis. Estabilidade é a palavra! Ela não existirá sem a reconstrução ou construção de nossas infraestruturas culturais. Penso em tudo o que foi desencadeado em torno da arte naïf haitiana. Mal posso acreditar que essa bela aventura tem sido usada por instâncias políticas mais banalizadas. O Museu de Arte Haitiana do Colégio St. Pierre, fortemente abalado pelo terremoto, não pode mais mostrar as suas obras raras. O Centro de Arte não é mais que um terreno baldio hoje. A Igreja da Santíssima Trindade, com seus célebres murais, não existe mais. Onde está o “Juramento dos Antepassados”, a pintura neoclássica de forte simbolismo usado como David, restaurado no Museu do Louvre e mantido, até antes do terremoto, no Palácio Nacional? Nos grandes debates de reconstrução, o discurso não se articula também sobre os locais de proteção ou de arquivo da memória coletiva e da criatividade de um povo. Alguém poderia pensar (eu tenho medo de dizer isso!) que não temos mais esses grandes momentos de arte e que todos aqueles que se sacrificaram para torná-los conhecidos pelas galerias, pela crítica e livros de história trabalharam em vão. Eles desenvolveram teorias estéticas precedentes ao desastre inevitável. É o mesmo dos grandes monumentos históricos sobre todo o território nacional. Lembro-me de ter escrito, em 2008, um texto intitulado “A resistência dos monumentos”, relacionado às estátuas dos heróis da Independência que os ventos do ano não conseguiram quebrar. Agora que é necessário fazer um balanço disso na perspectiva de sua restauração, depois de terem sido cercadas pela insalubridade e precaridade das tendas do terremoto, não ouvimos nenhum discurso articulado para sua manutenção. E os teatros? Já existiam muito poucos antes do terremoto. Após o terremoto, é uma negação. Não tiveram nem mesmo o cuidado de limpar o salão do Teatro Rex ou impedir os passantes de jogarem lá, como se fosse lixo, seu prato de comida. Isso forçou os cidadãos a viverem trancados em suas casas caindo aos pedaços, sem a perspectiva de relaxamento psicológico. Ainda nos restam praias, principais defensoras do apocalipse levantado
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equívocos e de falta absoluta de pesquisas científicas sobre o lugar onde vivemos. Na época da globalização de ideias e questionamentos sobre as catástrofes que atingem o planeta, as tecnologias que atualmente dominam o mundo ocidental não deveriam servir como uma nova arma de recolonização. A decadência encontrada no Haiti e que começou em meados dos anos 60 é o resultado de um longo processo que escapou da gravidade daqueles que colocaram a máquina infernal em movimento. As fronteiras não são mais que uma ilusão geográfica. O espaço para salvar o planeta Terra está ameaçado. Os desastres ecológicos provocados pelo descuido das autoridades nacionais tornaram-se, por mar ou por terra, pela migração e também poluição, problemas internacionais humanitários que não poderão ser resolvidos pela forma simplista da condescendência.
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O Carnaval é uma das manifestações com maior destaque na cultura popular haitiana.
pela ameaça de tsunami! Há uma lógica em todo esse negócio de ameaça e medo. Mas escapa a todos nós. É fortemente frustrante. Os cidadãos haitianos deveriam se reagrupar em associações de defesa e proteção dos bens culturais do País. Embora em articulação de um discurso nacional, eles terão a necessidade de se abrirem ao mundo caribenho, latino-americano e europeu para expertises mais apropriadas. Discursos e contatos internacionais que lhes permitam ter peso suficiente nas circunstâncias para exigirem das instâncias do Estado. A cultura é um negócio importante demais para, nesses tempos de reconstrução da mentalidade coletiva, ser deixada somente nas mãos de um ministério! Manifestações culturais existem em todos os lugares e é um bom sinal. Mas o que está faltando é um discurso bem articulado sobre o fenômeno cultural haitiano depois do terremoto. Esse novo discurso deve evitar o alinhamento do “politicamente correto” constatado após vários anos, porque a cultura não é lugar simplesmente de entretenimento social e de formas de encontros mundanos. É uma fala, uma forma, um som, um movimento, uma palavra, que serve tanto ao objetivo de uma estética nacional como ao propósito “engajado” de defender e de proteger a aquisição de memórias, experiências, de partilha e atos ilustrativos de um momento da vida de um povo. Nessa perspectiva, a cultura perde quando é tratada como uma ferramenta oficial. Ela ganha com pretensões de protesto quando ela denuncia todos os “establishments”. Não se trata de cair em outro jdanovismo* cultural. Além disso, o Estado, em suas atuais relações políticas internacionais, não pode se engajar em tal perspectiva de autonomia ideológica. A missão chega a um intelectual de vanguarda comprometido com a busca de uma outra identidade haitiana. A literatura e as artes existiam antes dos terremotos. Depois do terremoto, elas deveriam ser empreendimentos novos voltados para a sobrevivência e a existência de todo um povo, que, por sua vontade de vencer desafios, merece uma total e definitiva reconstrução. (*) Até o fim dos anos 1950, o rígido código ideológico de Andrei Alexandrovitch Jdanov, conhecido como Jdanovismo, definia os limites da produção cultural aceitável na antiga União Soviética (URSS). Na verdade, Jdanov transcendia os objetivos egoístas da censura totalitária e pretendia criar uma nova filosofia da arte para o mundo inteiro. Seu método objetivava a cultura a serviço do Estado soviético.
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Capítulo 6 Por Adriana Santiago, Benedito Teixeira e Paola Vasconcelos
Construindo a própria resistência
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Povo sofrido, desconfiado, desgastado, com todos os motivos para desistir de ter o mínimo de dignidade. Mais de dois séculos depois de sua independência da França, os haitianos conheceram por muito pouco tempo o que é ser uma nação soberana. Hoje, vivem sob o jugo de aproximadamente 25 países, por meio de milhares de organizações não governamentais (ONG) e forças de ocupação, que estão em terras haitianas, alguns com motivos declarados até, digamos, “nobres”, outros, na prática, nem tanto. Mesmo assim, por meio de pequenas ações, o que se percebe é que ainda existe uma força latente e, o mais incrível, que emerge num contexto de superexploração nos mais variados níveis – político, econômico, cultural, social, ambiental. “Os camponeses vivem em condições dificílimas de saúde, moradia e educação. Se nessas condições eles alimentam a metade do País, imaginem como poderia ser a produção agropecuária do Haiti se tivesse um mínimo de seriedade com o setor camponês”. A declaração é dos brasileiros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a
Foto: James Alexis
Quase nunca o povo haitiano esteve livre da necessidade de se defender do estrangeiro e tem na sua essência o ideal de resistência. Numa situação de grave vulnerabilidade, a soberania de fato está adormecida na vontade de uma população que, antes de tudo, tem que garantir a própria sobrevivência. Experiências de organizações nacionais e (por que não?) estrangeiras mostram que é preciso um pouco mais de organização e solidariedade internacional para que o Haiti reconstrua sua própria história.
Construindo a sua própria resistência engenheira agrônoma Dayana Mezzonato e o professor de História José Luis Rodrigues (Patrola). A primeira está atuando na Brigada Dessaline do MST no Haiti desde 2011, e Patrola trabalha na Brigada desde que esta foi instalada, em 2009. O MST e a Via Campesina estão desde janeiro de 2009 no Haiti com a tarefa desafiadora de desencadear um programa de solidariedade entre as organizações camponesas. Depois de um ano de diagnósticos da realidade rural, Mezzonato e Patrola explicaram que as entidades estabeleceram uma série de articulações com organizações camponesas para construir um programa de intercâmbio e ajuda mútua, por meio de uma brigada de solidariedade. Essa brigada, composta de vários membros, procura fortalecer as organizações de camponeses através de apoio técnico, com instalação de cisternas, construção de centros de produção de sementes, produção de caprinos, reflorestamento, construção de um centro nacional de experimentação e agroecologia, bem como organiza a ida de jovens haitianos para conhecerem as experiências do MST e da Via Campesina no Brasil. “Já enviamos mais de 70 jovens e seguimos organizando os próximos grupos”, informam os técnicos do MST. O mais importante desse trabalho é que a missão solidária da brigada se dá numa relação horizontal e conjunta com os movimentos camponeses. Nada é feito fora dessa relação articulada e coordenada. “Dessa maneira, não impomos a nossa visão. Ao contrário, partimos daquilo que as organizações necessitam ou desejam fazer e, junto a elas, desdobramos os diversos trabalhos”, ressaltam Mezzonato e Patrola. Também atuando no incentivo à organização dos direitos dos trabalhadores do campo, a Organização Batay Ouvriye (traduz-se do crioulo como Luta dos Trabalhadores) fala das dificuldades e também do potencial da agricultura. A porta-voz do Batay Ouvriye, Yannick Etienne, explica que o bloqueio socioeconômico ao Haiti é um entrave ao desenvolvimento do País. “Isso explica porque o sistema não tem capacidade para produzir muitos empregos. O sistema feudal, no País, por exemplo, já está quase acabado. Tomamos como exemplo a problemática dos campesinos, que estão combatendo, mas não têm condições para
Camille Chalmers é o coordenador geral da Plataforma Haitiana por um Desenvolvimento Alternativo. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
produzirem materiais para facilitar a produção e também não têm como exportar. Estamos numa situação em que o sistema econômico é focado na agricultura, mas que também não tem quase possibilidades para produzir. Isso pede outra estratégia e investimentos importantes para que haja alguma possibilidade econômica, para mudar sua orientação”, destaca Etienne, em entrevista à Adital. O Batay Ouvriye também está atuando nas organizações campesinas, visando à unificação dos trabalhadores agrícolas, através de um código de procedimentos, como uma oportunidade de organização e respeito à classe. “Em cada localidade temos organizações sindicais campesinas, mas, se não estão próximas, nós as juntamos, sob uma mesma coordenação. Unificamos, em alguns momentos, essa coordenação. Isso facilita a atuação em grupo, que nos torna mais fortes”, enfatiza Etienne.
Antes de tudo, um forte Para ilustrar a força que o povo haitiano ainda cultiva, mesmo com tantos percalços de ordem natural, social e política, Camille Chalmers, da Plataforma Haitiana por um
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Haiti por si Contribuição feminina
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O futuro do Haiti na qualidade de país democraticamente participativo também se deve, em grande parte, à luta das mulheres. Lenta, mas persistente. Dentro do que a entidade chama Eixos Estratégicos Comunitários, a Solidariedade para as Mulheres Haitianas (Sofa), reunindo cerca de 10 mil mulheres em sete dos 10 departamentos do País, trabalha, há 25 anos, nos níveis político, social, econômico e cultural, conforme nos explicou Carole Pierre Paul-Jacob, dirigente da organização. “Luta contra a feminização da pobreza”, “saúde das mulheres” e “luta contra a violência sobre as mulheres” formam um pilar triplo que tenta garantir a dignidade daquelas que, na ausência dos maridos, mortos pelas catástrofes naturais, pela violência e muitos emigrados do País em busca de melhores condições de vida, sustentam os filhos ao mesmo tempo em que são formadas politica e economicamente pensando num Haiti soberano. Na medida em que denuncia a realidade da exploração capitalista, a Sofa tenta prover as mulheres de meios que as tornem independentes economicamente, sobretudo na área da soberania alimentar. Um dos projetos mais importantes é o que disponibiliza máquinas de transformação de milho, ação conjunta com a Papda, que aporta seus agrônomos, técnicos e engenheiros para acompanharem o processo. No Departamento de Plaisance, na localidade de Peroed, a Sofa atende em torno de 500 mulheres. Em Chinot, são mais 600 beneficiadas pelo programa. “Com esse programa, os grupos ficam mais sólidos, elas têm mais força para conduzir a luta na região, podem ter uma organização mais ampla, contribuindo para dar mais força à Sofa”, afirma Carole Pierre-Paul Jacob. A máquina de milho desencadeia todo um processo de superação da dependência e da pobreza. Elas mesmas se organizam com as máquinas, formando uma cooperativa. Assim elas conseguem juntar dinheiro e, esse dinheiro, emprestar a outras pessoas para a aquisição de materiais diversos. Driblando as dificuldades impostas pelo sistema capitalista superexplorador no Haiti, cujos bancos não emprestam dinheiro aos mais pobres, os beneficiados pelo programa conseguem se livrar desse jugo.
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Desenvolvimento Alternativo (Papda), conta o que se passou após o terremoto de 2010. “O povo haitiano deu uma resposta maravilhosa, uma solidariedade extraordinária se manifestou a partir das redes interhaitianas, não só o povo em Porto Príncipe, que teve que organizar a vida em situações extremas, garantindo salvar mais de 1 milhão e 500 mil pessoas na rua, compartilhando tudo o que tinham como reserva. Eu comi quatro dias na rua sem pagar um gourde”, recorda. Também os camponeses se mobilizaram muito para mandar comida, para mandar frutas, para mandar dinheiro, porque o sistema estava todo paralisado. E, para Chalmers, o mais extraordinário foi o êxodo desde Porto Príncipe de 684 mil pessoas, que saíram em menos de uma semana fugindo do terremoto e foram recebidos, abrigados, nutridos e cuidados afetivamente depois do choque e do trauma do terremoto. “Em nenhum lugar recusaram as pessoas que chegavam. Muita gente chegava sem rumo, porque muitos jovens nasceram em Porto Príncipe sem conhecer o campo, sem ter nenhum familiar no campo, e foram recebidos da mesma forma, de maneira extraordinária”. Chalmers cita o exemplo de uma cidade chamada Papaye, no centro do País que, antes do terremoto, tinha 8 mil habitantes e, uma semana depois, tinha 18 mil. “E todos abrigados, nutridos e cuidados. Mas isso está totalmente calado, não aparece na imprensa, não aparece na televisão, porque provavelmente todos estão contra, querem passar somente uma imagem negativa, recorrente no Haiti”, lamenta. A Papda chegou a escrever informes de experiências alternativas após o terremoto, mas essa solidariedade e as experiências do povo haitiano foram totalmente marginalizadas, caladas, esquecidas, “provavelmente para mostrar a maquinaria pesada das ajudas humanitárias e das agências internacionais. E, possivelmente, estão aproveitando o momento da crise para empurrar mudanças substanciais, que já queriam fazer a partir de interesses das transnacionais e das grandes potências econômicas mundiais. Isso é muito evidente”, diz Camille Chalmers.
Construindo a sua própria resistência
Num país onde os pobres vivem com menos de um dólar por dia, ter a oportunidade de participar de um programa que lhes possibilite produzir significa melhorar de vida. Chega-se, segundo Carole, a obter 100 dólares emprestados para começar um negócio. A melhoria na condição econômica tira, por conseguinte, a mulher da submissão ao sistema patriarcal. Mas, além da parte técnica, a entidade trabalha com formação em economia rural e economia social, valorizando a participação na condução dos projetos. A Sofa afirma trabalhar apenas na orientação. “O mais importante é que qualquer comunidade que tome uma decisão, ou seja, uma iniciativa, tem que conduzir elas mesmas suas iniciativas, de forma independente”, conta Carole. Há formação também sobre modelos de gestão, marketing e contabilidade. Há outra atividade econômica também nas favelas de Porto Príncipe, como em Martisan. É um pro-
Carole Pierre-Paul é coordenadora da Solidariedade para as Mulheres Haitianas (Sofa). FOTO: FRANCISCA STUARDO
grama para fabricar materiais de vestuário, com as próprias pessoas da favela. A Batay Ouvriye também investe no poder feminino para incentivar o trabalho. Existe um projeto na cidade de Ouanaminthe, na zona franca próxima à República Dominicana, no qual um grupo de mulheres fabricam toalhas de mesa. A porta-voz, Yannick Etienne, explica que não são toalhas comuns, de uso diário, mas artigos mais artesanais e bonitos. Esses produtos são fabricados com pequenos pedaços de tecidos que eram jogados fora pelas indústrias na zona franca e elas passaram a construir as toalhas juntando-os, técnica conhecida pelo nome de patchwork. Yannick Etienne destaca que são produtos que vendem com facilidade na fronteira. “Isso é interessante porque ajuda na economia. Ajuda as mulheres não só para agrupá-las, mas para gerar renda, fazer agregação psicossocial nas comunidades e ajudar na sua emancipação, espírito de grupo. Nessas localidades, a única atividade social, recreativa, é a Igreja”, lamenta. Como são mulheres que trabalham muito, que passam os dias perambulando tentando vender o que é possível no mercado informal, o projeto do patchwork promove outras experiências não só recreativas, mas de partilha e convivência com as outras mulheres, além da renda. “Gera outros sentidos e outras possibilidades na realidade dessa gente. Por enquanto, estamos fazendo entre nós. Como não temos recursos econômicos, nós pedimos ao pessoal da zona franca para facilitar o acesso aos tecidos e distribuímos entre as mulheres. Não existe dinheiro de verdade na realização desse projeto. O dinheiro vem da venda dos produtos. Na organização Batay Ouvriye não acreditamos muito em projetos se não dão sentido às batalhas sociais. São as causas sociais nossas principais atividades”, complementa Etienne. Para Pierre-Paul Jacob, da Sofa, a situação é difícil, mas há esperança. Ela avalia que a saída para o Haiti está na emergência de outra classe política, livre das amarras impostas pelos Estados Unidos. Fala-se de uma classe política “progressista, que pode aportar outra visão econômica, social e política ao País”. A que está aí, se perpetuando no poder, também perpetua um cenário de venda da pátria, de olho apenas no próprio umbigo. “Com esse regime que
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vive do comércio informal. FOTO: FRANCISCA STUARDO
rece mais perigoso porque nos apresenta o antigo sistema, que desapareceu há 25 anos”. O regime do atual presidente, Michel Martelly, está mostrando a que veio, ressuscitando a extrema direita, “que pensávamos estar desaparecida do País. O regime de Duvalier se renova, mais uma vez. Isso nos cria a necessidade também agora de nos juntarmos e ganharmos mais força, para seguir adiante”, observa. No relacionamento com os trabalhadores, Yannick Etienne, do Batay Ouvriye, também faz restrições ao atual governo, principalmente porque não encontraram nenhuma abertura para diálogo. “Com este governo de agora, não temos nenhuma relação porque não favorece a atuação dos sindicatos. Tivemos uma experiência com o presidente Préval, mas a sua intenção era implantar corrupção dentro dos sindicatos, o que chamamos de ‘pelegos’. Ofereciam dinheiro e muitas outras vantagens a eles. Com essa prática, tomamos distância. Com este governo, ainda não houve abertura”, disse.
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A maioria da população haitiana
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abre o Haiti para os negócios, não vai haver mudança. Isso faz crescer a pobreza dos campesinos, da classe popular. Eles vão ser cada vez mais pobres. Temos que fazer uma mudança, uma mudança no conceito político do País, mas isso vai ser mais difícil, pois é urgente que a consciência popular responda à essência da mudança”. No Haiti, segundo a dirigente da Sofa, o poder visível não é realmente um poder que beneficie o povo. O verdadeiro poder no Haiti é o poder econômico, daqueles que têm o dinheiro nas mãos, os mesmos que se opõem às decisões políticas do País e que banem a qualquer custo a ideia de se criar um poder à esquerda. A classe dominante não se abre às novas ideias, à mudança, ao progresso, plataforma que defendem entidades como a Sofa e a Papda. O clima opressor da ditatura Duvalier parece ter passado, entretanto Carole prevê um perigo maior. “Agora temos um novo governo, mas isso não quer dizer que o regime político tenha mudado. Pelo contrário, esse regime nos pa-
Construindo a sua própria resistência
Mulheres cuidam de uma cidade Por Adriana Santiago Em Ennery, cidade que fica cerca de 180 quilômetros ao norte da capital Porto Príncipe, quem manda são as mulheres. Lá, uma pequena cidade agrícola tem uma rentável cooperativa de mulheres da Sofa (Solidariedade para as Mulheres Haitianas ou, em crioulo, Solidarite Fanm Ayisyen). Elas beneficiam milho, vendem, têm renda e até fazem empréstimos aos demais membros da comunidade, uma vez que o sistema bancário não financia pequenos comerciantes ou crédito pessoal. Violenne St. Pierre é quem coordena a Sofa de Ennery e afirma que tudo o que conseguiram, como terreno, instalações, edificações e equipamentos veio da cultura e beneficiamento de grãos,
Em Ennery, cidade que fica cerca de 180 quilômetros ao norte da capital Porto Príncipe, quem manda são as mulheres. Fotos: Ermanno Allegri
principalmente do milho. Quando o lucro começou a aparecer, elas criaram a linha de microcrédito e se firmaram como força política na cidade. Na época das enchentes, ou outras catástrofes naturais, e até mesmo o terremoto, não sofreram diretamente seus impactos. São elas que coordenam os trabalhos de solidariedade. Carole Pierre-Paul Jacob, diretora nacional da Sofa, comemora estas pequenas vitórias contra o sistema patriarcal, conquistadas em 25 anos de existência da entidade. As máquinas de beneficiamento de milho são uma retomada econômica das mulheres. Atualmente, a Sofa tem cerca 300 mulheres que participam desse programa. “Elas mesmas se organizam com as máquinas que fornecemos, pagam o que devem, se estabelecem
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Tudo o que as mulheres de Ennery conseguiram, como terreno, instalações, edificações e equipamentos veio da cultura e beneficiamento de grãos, principalmente do milho.
feminina local. São elas que resolvem os problemas de violência doméstica, sexual e casos de prostituição, casos de Aids, através de suas cabines de atendimento e conciliação. Estão ainda resolvendo os problemas de falta de escola para as crianças e coibindo o hábito dos pais venderem seus filhos para o tráfico de seres humanos na República Dominicana. E esse restabelecimento da autoestima passa pelos adultos, os homens também, com escolas de alfabetização noturna, e é responsável pelas festas populares, como o Dia das Mães e o Natal. E é isso que a Sofa pretende com as atividades sociais das mulheres. “Esse projeto torna mais fácil para mulheres a deixarem a posição de dependência, pois dá poder econômico para que elas possam se defender”, disse Pierre-Paul Jacob. Ela explica as duas linhas de trabalho: a primeira, contra o sistema patriarcal, e a segunda é a transformação global. E tudo isso se está conseguindo em Ennery. A Sofa é uma organização que tem cerca de 10.000 membros de âmbito nacional, presente em sete departamentos (existem 10 departamentos no Haiti), mas ainda tem planos maiores. Com a Papda, está desenvolvendo, há três anos, um projeto que envolve agrônomos, técnicos e engenheiros para promover treinamento e formação em economia rural e economia social para as mulheres. Há também formação sobre modelos de gestão, marketing e contabilidade. Enfim, uma riqueza sem incentivo do governo.
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em cooperativas e o dinheiro que sobra emprestam a outros, para investirem em seu próprio comércio, para dar força ao desenvolvimento local”. A diretora explica que, muitas vezes, há algumas cooperativas que fazem negócios ou comércio com quantias mínimas, como 50 gourdes. Afirma ainda que o sistema capitalista é tão difícil no Haiti, que a população pobre não tem direito a um empréstimo bancário. “O aspecto positivo desse programa é ser capaz de produzir, sem sentir o peso do sistema capitalista em suas costas”. Com o microcrédito que fizeram entre elas, têm o poder de compra para fazer seus próprios negócios. Atualmente, com o acesso que têm ao crédito solidário, equivalente a 100 dólares americanos, o padrão de vida aumenta. Então, o sistema patriarcal não é mais um problema para elas, porque agora elas têm mais poder. “Por exemplo, o padrão de vida do pobre aqui é menos de um dólar, então, esses programas deixam a mulher com um nível econômico mais elevado, pois tem a possibilidade de conseguir até U$ 100 por dia. Isso é outro nível, então esta mulher vai se sentir mais independente”. Violenne St. Pierre concorda, porque testemunhou mudanças profundas em Ennery após a criação da cooperativa de mulheres, e não só no que diz respeito à melhoria econômica das mulheres e aos empréstimos, mas na melhoria da autoestima
Construindo a sua própria resistência Além disso, a Batay Ouvriye sente que a repressão contra esses movimentos sociais e de trabalhadores está crescendo muito com esse governo. “Dentro desse governo há muitas pessoas que fizeram parte do antigo regime Duvalier - da milícia Tonton Macoute, por exemplo - que colocam em prática aparentemente a democracia, mas querem implantar a repressão no País. Existem muitas pessoas que eram do antigo regime. Existem muitas coisas que estão acontecendo. Sequestro, pessoas que estão pedindo e matando nas ruas e não há uma solução para isso. A força da Minustah também, porque eles batem nos jovens. Temos um clima ‘potencialmente volátil’. Estamos preocupados com o que vai acontecer adiante”, alerta Yannick Etienne. Já Camille Chalmers atribui a Michel Martelly a alcunha de “produto fabricado nos Estados Unidos”, inclusive como personagem. Ele explica o processo que o elegeu. Supondo que a população tinha muita raiva do governo anterior e da Minustah, toda a campanha de Martelly foi idealizada para mostrar a pessoa que parecia ser mais afastada do governo, mais afastada do poder. Porém, a conclusão da Papda é de que não passa de um candidato que se mostrou totalmente direitista e que mostrou que tinha muitas relações com antigos duvalieristas. Ele conta que muita gente o via cercado pela ditadura de Duvalier, aparecendo agora como uma espécie de revanche, de retorno ao poder de toda a nata da classe média atrelada à ditadura. Por outro lado, Martelly também pode ser um elemento de catalisação, de recomposição das forças populares democráticas, que já havia começado, mesmo antes dele.
Laboratório de dominação? A Papda, entidade que hoje talvez mais represente o povo haitiano na luta por espaço nas decisões políticas e econômicas que podem ditar os rumos do País, fez-nos uma importante leitura histórica para compreender o Haiti. Seu coordenador, Camille Chalmers, é taxativo ao afirmar que os haitianos e a comunidade internacional têm, atualmente, uma grande dificuldade de aceitar o Haiti como um País. O mundo todo vive um contexto de dominação imperialista e, ao que parece, o País se transformou em bode expiatório.
Para sustentar a ideologia imperialista de Estado prestes a falir, o Haiti é utilizado como exemplo para justificar a presença, a ocupação militar e a ocupação econômica. Mesmo sendo um pontinho na extensa magnitude mundial, o pequeno país assume, para Chalmers, mais importância porque é utilizado como um laboratório para a experimentação de novas formas de ocupação militar e de recolonização, com um controle quase total desde as instituições financeiras internacionais, do sistema das Nações Unidas e das grandes ONG ligadas aos interesses básicos do capital transnacional. Leiam-se: a Minustah, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), entre outras instituições. Faz-se, segundo ele, uma leitura totalmente tergiversada, distorcida da realidade haitiana para aproveitar a imagem de um país caótico, sem nenhuma organização, sem nenhuma experiência política, negando toda uma história, todo o acumulado de experiências que existe, com o objetivo de justificar a ocupação militar, o processo de colonização. Chalmers alerta: isso pode ser um modelo a ser utilizado e generalizado em outros países, onde haja uma luta importante para questionar os interesses básicos do imperialismo e das forças dominantes.
As amarras estrangeiras Apesar da luta aguerrida do povo haitiano por se manter vivo em meio a uma realidade tão difícil, agravada sobremaneira com o terremoto de 2010, os representantes da Brigada do MST e da Via Campesina observaram que o estabelecimento de uma democracia verdadeiramente participativa no Haiti ainda é um sonho distante. Fatores múltiplos podem explicar como um dos primeiros países a se tornarem independentes das metrópoles europeias na América Latina e Caribe, portanto pioneiros no rompimento da exploração colonial, chegaram a tal ponto do esfacelamento de sua soberania nacional. Na atual conjuntura, o Estado haitiano está muito debilitado e mergulhado em intermináveis crises políticas. Por essa razão o conjunto da sociedade paga o preço da ausência de políticas públicas, notada em todos os setores, afirmam Mezzonato e Patrola, técnicos do MST.
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Boa parte da população ainda vive em barracos, sem infraestrutura. FOTO: FRANCISCA STUARDO
“Não podemos decidir isso. Estamos tendo a mesma prática de antes. Estamos muito dependentes e não podemos fazer nada. Não podemos fazer eleição, decidir a reconstrução, não podemos decidir a cultura do país, tudo isso está sendo feito por organizações e empresas estrangeiras. Não temos poder na construção de escolas primárias, secundárias, profissionais e universitárias; não podemos decidir sobre isso e elas estão funcionando debaixo das tendas. Não sentimos que o País está orientado para a formação de jovens em vista ao futuro. Sentimos que os profissionais, cada dia mais, estão deixando o País”, denuncia a dirigente da organização social.
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Com a experiência do movimento dos trabalhadores, Yannick Etienne, do Batay Ouvriye, também considera que, cada vez mais, o Haiti está mais submisso a outros países. “Cada dia estamos mais dependentes de fora, como por exemplo, na importação de comida. Importamos muito mais; arroz, por exemplo, importamos quase tudo. A dependência fica cada vez maior”, disse. Para ela, o uso do dinheiro vindo a partir da reconstrução do País depois do terremoto deveria ser uma oportunidade para ter uma orientação diferente, construir outra maneira de desenvolver a economia do País, priorizar as coisas de outra forma.
Construindo a sua própria resistência
Escola gratuita nas férias para quem não pode pagar Por Adriana Santiago A Plataforma Haitiana por um Desenvolvimento Alternativo (Papda) trabalha em temáticas de nível de intervenção global, de vigilância de acordos, de documentos, de investigação, de pressão sobre o Estado, fazendo conferências, fóruns nacionais e acompanhando de perto tudo que está acontecendo agora, bem perto das organizações de base, basicamente das organizações
Marie Roseline Fénelus Sintelus é uma das cinco professoras voluntárias da cidade de Plaisance, que ensinam as crianças gratuitamente a ler e a escrever nas férias na falta de uma escola pública em tempos de aula. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
camponesas. Respeitada nacionalmente, não só pelo que dizem e escrevem seus líderes, mas por ações simples como a de Marie Roseline Fénelus Sintelus, uma das cinco professoras voluntárias da cidade de Plaisance, que ensinam as crianças gratuitamente a ler e a escrever nas férias, na falta de uma escola pública em tempos de aula. Ações simples se misturam às ações macro como integração econômica, com um trabalho intenso de vigilância de todos os acordos firmados pelo Haiti, principalmente com os EUA, como a Alca, a Lei Hope (assinada em 2006, que determina que todo produto têxtil feito no Haiti entre nos EUA em condições preferenciais) e forte mobilização contra o Epas (acordo com a União Europeia). Fazem ainda a vigilância, denúncias e, por consequência, lançam propostas alternativas. Têm uma maior atenção com os acordos com os Estados Unidos, União Europeia, OMC e Caricom. Mas não esquecem ou desvalorizam as ações básicas, como das professoras de Plaisance. As aulas nas férias podem ser debaixo das árvores, em suas casas ou em salas emprestadas das escolas nos fins de semana. Ensinam também a fazer produtos artesanais ou simples calhas para amenizar a queda d’água dos telhados em tempos de chuva, mas o importante é não deixá-las ociosas, principalmente depois do terremoto. “Nós víamos as crianças caminhando rumo à República Dominicana, fugindo, descalças, sem esperança”, comenta Roseline. Ações simples assim também fazem parte do trabalho da Papda, que age sobre os eixos: soberania alimentar, integração econômica e democracia participativa. Como as ações de Roseline e as outras professoras voluntárias que atenderam a 180 crianças em 2010, a Papda tem um trabalho desenvolvido de acompanhamento no sudeste do País, em Artibonite. Lá, trabalham na zona arrozeira, e também nas montanhas, em zonas distantes, onde é preciso caminhar
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A maioria das escolas no Haiti é particular, como a Escola da Igreja Anglicana de Sain Matthieu, em Léogâne. Os pais, sem emprego fixo, fazem um esforço sobre-humano para manterem as crianças nas escolas. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
animadores de educação popular. No norte, acompanham um grupo que faz ocupação de terras improdutivas, o Tet’Kole, e dão orientação econômica para a produção coletiva, além de agrupar rendas de organização de produtores. Por exemplo, há mais de 10 anos, a Papda trabalha com produtores de café, em torno da Recocarno, e espera-se que se associem a outros grupos de produtores, como de leite, produtores de agrobeneficiamento, principalmente as mulheres, que fazem farinha de milho, marmelada etc. Dão ainda apoio técnico para a agroecologia, com a produção de fertilizantes naturais, lombricultura etc. E para isso há um programa de intercâmbio com Cuba, de três meses, para aprendizagem do campesinato, com troca de conhecimentos em agroecologia e estratégias de produção.
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oito horas para chegar, em toda a zona norte (nordeste e noroeste). Nessas regiões, se articulam grupos de base que já têm 20, 30 anos, e fazem um trabalho de melhoria da produtividade na criação de bois, vacas, cabritos e galinhas. Fazem um melhoramento da nutrição, com estratégias locais e produtos cultivados no Haiti. No sudeste, tem um projeto de mistura de grãos locais e farinha de trigo para fazer pão e outros produtos de padaria, além de um fluxo de produção com produtores locais de inhame e mandioca. Ainda há experiências de arte e conscientização, com grupos de jovens que têm formação em teatro popular e que passam pelo tema da produção de alimentos e soberania alimentar. Cuba também colabora na formação de haitianos envolvidos com trabalhos comunitários da Papda, como médicos, economistas,
Construindo a sua própria resistência O haitiano Jean Garry, analista do Centro Estratégico de Relações Internacionais (Ceiri), com sede no Brasil, sabe da força que tem seu povo para conseguir sobreviver diante de uma situação que se pode chamar de “desesperadora”, mas é realista e afirma que sair dessa situação é um processo que demanda tempo e muitas outras iniciativas, principalmente de ordem política. Ele destaca que a presença internacional não é somente militar, é ainda mais forte em todos os aspectos da vida social, econômica e política, com a invasão de ONG, o que fortalece uma situação de dependência. Além disso, o País se encontra em uma situação de pobreza extrema, com mais de 80% da população abaixo da linha de pobreza. Nesse sentido, a participação do povo haitiano nas decisões públicas se vê muito limitada por uma comunidade internacional diversificada, que não tem consenso quanto à maneira de aportar sua contribuição ao País, que quer substituir os haitianos nas decisões que os afetam. “É importante dizer que a comunidade internacional se aproveita dessa pobreza para desenvolver um assistencialismo improdutivo, que reduz a capacidade do povo haitiano de ter uma participação qualitativa nas decisões do Estado”, denuncia o analista. Nos últimos anos, o Estado haitiano está sendo comandado por uma elite que abandonou o desenvolvimento nacional em todos os níveis da economia. Nesse sentido, a participação do conjunto da sociedade se dá apenas nas débeis e, às vezes, fraudulentas eleições que ocorrem constantemente. Mesmo assim, se nota um tremendo cansaço da população com essa dinâmica. Para se ter uma ideia da falta de credibilidade da atual classe política do País, nas últimas eleições para Presidente da República, não houve mais que 1 milhão de eleitores votantes de um total de 4 milhões. “À parte de tudo isso, o baixo nível de participação da sociedade haitiana se dá ao receber os escassos serviços públicos, como educação, transporte, saúde, moradia, alimentação e outros. Para termos como exemplo, o País não tem sequer uma estação rodoviária. Durante o período alto da expansão do cólera, apenas 10% dos casos foram tratados em estabelecimentos do Estado, o restante ficou a
cargo de ONG ou outros Estados cooperantes”, contam os técnicos do MST e da Via Campesina. A sociedade haitiana, com 10 milhões de habitantes vivendo num território menor do que o Estado da Paraíba, no Nordeste do Brasil, foi literalmente abandonada. Não pode haver participação do povo nas decisões sobre os rumos de seu País se ele não recebe o mínimo necessário do Estado. A melhor maneira de um povo participar da sociedade como verdadeiro protagonista é ter acesso a serviços de qualidade, trabalho e renda, tanto a população urbana quanto a rural. Mesmo com todos os motivos para desistir, o que se verifica é que existe uma organização social estruturada. A sociedade haitiana tem uma cultura muito forte no que se refere à participação. O problema é que as elites que assumiram o poder nos últimos anos se submeteram a uma série de regras da “comunidade internacional”, organizando a sociedade de acordo com interesses alheios às reais necessidades do povo, avaliam os técnicos do MST e da Via Campesina.
O sonho da democracia Portanto, não é surpresa o desânimo geral que tomou conta da sociedade haitiana diante dos atuais rumos da política e da economia. E o pior é que, para Mezzonato e Patrola, do MST, esse desânimo não se reveste de uma perspectiva de mudança nem no médio prazo. Nem a forma atual de organização desse Estado resolverá os problemas estruturais da sociedade, nem as atuais formas de organização da sociedade civil possibilitam, até o momento, um caminho claro de mudanças. Jean Garry, do Ceiri, concorda que uma democracia de qualidade deve ser participativa e inclusiva, o que ajuda a fortalecer um ambiente de estabilidade política, necessária para a criação e distribuição equitativa de riquezas. Porém, o fortalecimento da democracia participativa passa pela recuperação da soberania nacional, quando, então, o povo haitiano poderá assumir seus próprios destinos; e também pela redução da pobreza extrema, que diminuirá a vulnerabilidade do povo nos processos políticos e de formação do poder.
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a atenção é o instalado no Champ de Mars, em frente ao palácio do governo, destruído pelo terremoto. FOTO: FRANCISCA STUARDO
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O acampamento que mais chama
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Camille Chalmers, da Papda, defende energicamente que o povo do Haiti sempre lutou pela democracia e que, a cada vez que luta para democratizar esse sistema, para abrir espaço de participação política, enfrenta o imperialismo diretamente. E podemos dizer que o período de luta por democracia se acabou em Aristide, após o golpe de Estado contra o presidente, eleito com 62% dos votos. Depois disso se desencadeou uma crise de credibilidade no sistema político. As pessoas não acreditam mais, porque aqueles que se apresentam como candidatos são vistos como pessoas que querem roubar o Estado, colocar sua família em cargos, por isso as pessoas não se mobilizam. Mobilizaram-se para votar em Jean-Bertrand Aristide, em 1990, e em René Garcia Préval, em 2006. “É muito importante entender o significado político desse voto, que era para dizer não à ocupação, porque, para eles, Préval representava Aristide. Para o povo, era responder à invasão militar, ter um governo de fato, mas se equivocaram porque Préval rapidamente também se aliou ao projeto de dominação. Mobilizaram-se, mas depois disso não houve mais nenhuma mobilização
eleitoral. Nas ultimas eleições, a mobilização foi de menos de 25% do eleitorado”, salienta Chalmers. Recorrendo ao processo histórico para analisar porque o Haiti chegou ao ponto de degradação política e econômica em que se encontra hoje, Camille Chalmers volta a 1986, depois da queda da ditadura dos Duvalier, quando houve uma forte mobilização e grande unidade dentro dos movimentos populares. “O período de 1986 a 1991 foi dominado por um dinamismo incrível dos movimentos sociais, que estavam animando o processo de luta, no qual tínhamos o objetivo de mudanças estruturais substanciais na sociedade, como a reforma agrária, reforma política, disputa de investimentos de créditos estruturais, mas que foi eliminado pela violência do golpe de Estado de 1991”. Chalmers afirma que o principal objetivo do golpe de Estado de 30 de setembro de 1991 foi eliminar o povo como ator político. E, como o movimento era muito forte, desataram um processo completo de agressão contra o movimento popular, que contemplava assassinatos - mataram cerca de 5 mil pessoas -; perseguição contra os dirigentes; destruição das estruturas das organizações, que haviam passado 20, 30 anos para construirem cooperativas. Escolas de formação, com dormitórios, salas, tudo foi destruído pelas Forças Armadas. A partir daí começou uma estratégia de divisão interna do movimento popular através da corrupção e da criação de programas, numa estratégia de multiplicidades de projetos. Isso resultou na fragmentação da sociedade, na corrupção. “Temos comunidades com quatro ou cinco atividades de saúde, com 7 mil pessoas, e essas atividades não se comunicam entre si. Todos têm sua doadora para render relatórios, mas entre si não se comunicam. Essa é a fragmentação do movimento social e que foi consolidada pela divisão ao redor de Aristide”, explica Chalmers. Ele tentou nos fazer um balanço dos governos de Jean-Bertrand Aristide, cuja figura emblemática significava para o povo haitiano uma nova libertação. Esse balanço é difícil de fazer porque, para Chalmers, é preciso contemplar momentos diferentes, e, em cada momento, há contradições sociais. São quatro movimentos distintos de Aristide. Em 1991, estava muito ligado às classes populares,
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Sony Estéus é diretor executivo da Saks (Sosyete animasyon kominikasyon sosyal), a única organização que trabalha com rádios populares no Haiti.
Rádios comunitárias para a organização popular
FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Por Adriana Santiago Plaisance fica a 200 km de Porto Príncipe, no norte do Haiti. É mais um dos departamentos do norte onde a agricultura é forte, e tem uma das fazendas mais prósperas da Cooperativa Recocarno. Mas, quando paramos em Plaisance, não foi para falar de agricultura, e sim de rádios comunitárias. Lá, existem duas. Uma ligada ao movimento social campesino, parada porque roubaram o gerador de energia, e a outra funcionando a todo vapor, conduzida por jovens e financiada por capital estrangeiro. Muita contradição, em uma cidade tão pequena. Mas uma coisa em comum, a rádio é a oportunidade de voz do povo. Sony Estéus, diretor executivo da Saks (Sosyete animasyon kominikasyon sosyal), a única organização que trabalha com rádios populares para capacitar as comunidades rurais por meio de notícias locais e programação social, tenta explicar esse fenômeno no Haiti. A Saks, da qual Estéus foi um dos fundadores, há 19 anos, ajuda organizações rurais e de base a criarem estações de rádio nas comunidades onde não existam meios de comunicação para a transmissão de notícias. Porém, há outras iniciativas isoladas, como a iniciativa privada, ONG e até a Igreja Católica, que também investem em rádios. “Há outras, mas são entre 40 e 45 rádios (da Saks), sendo umas 35 muito mais comunitárias, e as outras, mais locais”, explica. A estimativa é que 5 mil a 10 mil pessoas são alcançadas por rádio, mas esse número se diferencia muito de uma rádio para outra. Sem dúvida, o meio de maior alcance no Haiti é o rádio. É o maior e o mais popular. “Há também a situação do analfabetismo que faz do rádio, que é um veículo oral, um meio de comunicação muito utilizado pela população”, explica Estéus. Por isso é um meio eficaz para a educação popular, dos cidadãos, principalmente daqueles que vivem mais isolados. “Um de nossos critérios, para apoiar um projeto de rádio, é que esse projeto seja
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Haiti por si a filosofia é que a comunicação é um direito como o direito a comer, à saúde etc.”. A Saks também acaba trabalhando com rádios privadas, mas muito locais, na área da difusão de programas educativos. “Temos um estúdio onde gravamos programas sobre temas como o meio ambiente, a saúde, direitos humanos, mulheres, além de programas de informação como uma revista semanal. Enviamos esses programas por CD às rádios, e algumas rádios privadas locais são interessadas em difundir nossos programas”, explica. Desta forma, o diretor da Saks avalia como positivo o trabalho realizado desde 1992. “Antes das rádios comunitárias, a maioria da população não conseguia falar nos meios de comunicação. Como a sociedade haitiana é uma sociedade de exclusão, essa exclusão também acontece na área da comunicação. Somente os políticos e as pessoas da alta sociedade civil podiam falar nas rádios. Com as rádios comunitárias, setores como os camponeses, as mulheres, têm sua própria voz, seu próprio meio para se comunicar, se expressar. Essa é uma grande diferença no âmbito do direito à comunicação, da liberdade de expressão e também dos direitos humanos”, comenta com orgulho. E isso, avalia, também é um eficiente meio de organização social. “Com as rádios, é possível falar como cidadãos, usá-las para pedir saúde e educação”, onde a população se articula e pode mediar conflitos sociais.
Dificuldades de expansão Em 1995 surgiu a Internet comercial no Haiti, mas até agora não há muito acesso à rede de computadores para as pessoas mais pobres, no campo. A Saks tem, há três anos, um projeto para conectar as rádios à Internet, mas é muito difícil devido à queda na conexão e também ao preço, que ainda é muito caro. Um computador custa cerca de 80 dólares americanos por mês e a nova companhia de telefonia, privatizada, barra ainda mais o projeto porque a comunicação não chega às áreas mais distantes, não é economicamente rentável. Outro problema é que as leis haitianas não reconhecem os meios de comunicação comunitários. A Saks tem um projeto e luta para conseguir sua aprovação no parlamento para tornar as rádios comunitárias legais e, consequentemente, para poder ter apoio financeiro do Estado, captar anunciantes. Hoje, as rádios funcionam com muitas dificuldades, sobretudo devido
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elaborado por uma organização. Para nós, a rádio deve fortalecer a organização social e promover outras organizações dentro da comunidade para ajudar as pessoas a mudarem sua situação”, completa. E serve para os mais variados serviços. Por exemplo, na família onde o marido comete violência contra a mulher, ela vai à rádio para denunciar. No caso de conflitos entre irmãos, entre pessoas da comunidade, o microfone da rádio funciona como juiz. E serve para convocar reuniões. “Antes era preciso enviar uma carta por causa da distância. Agora com um spot de 30 segundos, centenas de pessoas ficam informadas”. Estéus conta que a Saks começou em 1992, época em que muitas organizações populares se reorganizaram, ainda época do golpe militar. “Não havia liberdade de expressão, os meios de comunicação não podiam funcionar e as organizações e comunicadores deveriam fazer circular as informações”. Diante da opressão, começaram a difundir informações por meio de panfletos, fitas cassetes, e todas as formas de comunicações possíveis na época, daí foi um salto para chegar à constatação da necessidade de desenvolver meios de comunicação locais: rádios, jornais e pequenas publicações dentro das organizações sociais. Assim, Sony, que é jornalista e educador, começou a organizar capacitações para grupos de base, como camponeses, mulheres, jovens, sobre comunicação, sobre jornalismo, entrevistas, reportagens. E, consequentemente, começou o movimento de rádios comunitárias. Atualmente as cerca de 40 rádios locais comunitárias organizadas pela Saks estão nas áreas mais isoladas e distantes do país e dirigidas pelas próprias organizações nas comunidades. A organização social não tem a intenção de controlar ou manter as rádios, só capacita e fornece alguns programas, mas o financiamento e a maioria da programação são de responsabilidade da organização social que mantém a rádio. Assim, o objetivo é apoiar em nível da formação e da capacitação, porém a Saks também ajuda as organizações a encontrar os caminhos para os financiamentos. No entanto, não quer ser agência de fomento do setor, e acaba funcionando como ponte para algumas agências que estão interessadas em apoiar projetos de rádios. A organização de Estéus depois que capacita, faz alguns programas educativos, leva informações, programas de música, e, principalmente, acompanha as comunidades na área da comunicação e do direito. “Para nós,
Construindo a sua própria resistência Duas rádios bem diferentes em Plaisance
Associação dos jovens para o desenvolvimento de Plaisance cuida da programação da Rádio VWA PEP LA FM Stereo. FOTO: ERMANNO ALLEGRI
aos problemas de energia. Funcionam com baterias e motores porque não há energia pública. “Cada rádio tem seu próprio sistema, como energia solar, baterias e também geradores. É muito difícil comprar gasolina. Em grandes cidades, como Cabo Haitiano, Jeremie, existe fornecimento público de energia, mas em outras locais não existe”, explica. Toda essa dificuldade de conversa com o governo não impede que as autoridades públicas reconheçam a importância das rádios comunitárias, porque na campanha contra a epidemia de cólera, que matou 7 mil pessoas no país entre 2010 e 2011, o governo pediu para a Saks difundir as mensagens educativas. “Reconhece, mas não apóia”, denuncia Sony Estéus, por isso estão lutando para um reconhecimento legal e a obrigatoriedade de ajuda financeira.
A Rádio VWA PEP LA FM Stereo, fica na rua Dessalines, número 103, bem próxima do centro da cidade. O horário é dividido pela comunidade, mas quem domina a maioria do tempo é a Associação dos jovens para o Desenvolvimento de Plaisance (AJPD, por sua sigla em francês). À tarde encontramos Jean Wildet-Myrtch, 25 anos, e Casséus Fanel, 24, às voltas com um computador e uma lista de músicas para tocar. Não tinham nenhuma programação educativa prevista ou de novidades locais, mas admitiram que podem passar recados entre os moradores. Mas é raro. Os meninos nem conheciam a Saks e se via, claramente, um aprendizado de erros e acertos muito semelhante às escolas. O problema é que a Rádio Comunitária de Plaisance é transmitida em ondas curtas e poderia estar a serviço, além do entretenimento musical, de uma organização e da educação do povo. Marcamos para encontrar no centro de Plaisance os representantes da rádio da organização camponesa Tet Kole Ti Peyizan Ayisyen, indicada para visita por Sony Estéus, diretor da Saks. A rádio funcionava desde 1996 com organização e capacitação da Saks e financiamento do movimento campesino. E a expectativa é que poderia ter acesso a uma rádio encrustada nos mais difíceis caminhos e com uma proposta avançada de educação popular e organização social e cidadã das comunidades mais isoladas do interior do país. Tal foi a frustração quando os líderes camponeses Luiu Origène e Luc Wilson Charles nos informaram que há mais de seis meses a rádio está parada por roubo do gerador de energia. Se energia elétrica já é um problema sério nas cidades principais, se agrava sobremaneira no interior, onde devem estar as rádios mais importantes para o povo. Depois de 14 anos servindo na ajuda da organização camponesa, a rádio da Tet Kole deixou de ser a principal tribuna popular e o povo está sem as informações que encurtavam as distâncias entre suas moradias. Agora, qualquer pequena assembleia acaba sendo um transtorno para os organizadores. “Estamos nos organizando para comprar um novo gerador, mas temos que encontrar outro lugar, mais seguro, talvez perto da cidade”, comentou visivelmente chateado Origène. Para ele, quanto mais perto da cidade, mais distante dos camponeses que querem atingir. Enfim, só resta aos líderes camponeses da Tet Kole, pensar também em uma antena mais potente.
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ele aceitou o plano de ajuste na sua dimensão financeira e comercial. Por tudo isso, é muito difícil fazer um balanço equilibrado”, afirma Chalmers. Dessa forma, Aristide teria se tornado, em muitos desses períodos, um elemento importante para fragmentar ao máximo o movimento social. Só agora os movimentos populares haitianos estariam começando a superar essa fragmentação, essa polarização política. Detalhe importante: o Haiti não foi um país pobre em toda a sua existência. Chalmers explica que há uma construção de discurso sobre o País, que esconde aspectos fundamentais para entender a realidade. É imprescindível entender o que aconteceu quando foram assinados os planos de ajuste com o FMI, a partir da assinatura do primeiro acordo por Jean-Claude Duvalier (filho; Baby Doc), em novembro de 1984. A partir daí, começou toda uma linha de políticas, que tem destruído grande parte da capacidade de produção nacional, da capacidade econômica. Criou-se uma massa de operários com salários muito baixos para atender às empresas de exportação. Chalmers analisa que, na formação social do Haiti, depois da revolução de 1804, Jean Jacques Dessalines tentou montar um projeto nacional, tentou fazer distribuição de terras, a reforma agrária, defendendo o interesse das massas, e foi morto. Houve um período de transição e, a partir de 1805, se instalou um Estado neocolonial, que tratou de conservar os laços de dependência com o capitalismo mundial. Adotou-se, então, uma economia de importação e exportação. O que se constituiu na formação de um Estado que passou a agir contra a nação. Cuja primeira tarefa foi destruir a nação em tudo que se constituiu como seus pilares fundamentais. Eram três os pilares que estavam sendo construídos naquele momento. O crioulo haitiano foi proibido. “Inclusive, quando eu era criança havia castigo para quem falava crioulo haitiano na escola. De repente, virou anormal falar crioulo, o idioma de todo mundo daqui!”, conta Chalmers. O vodu, como religiosidade popular, que é muito mais do que uma religião, para os haitianos é uma relação com o cosmos, foi totalmente perseguido. O governo mandou matar os houngans (sacerdotes vodus), queimar todos os
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mas não tinha nenhum projeto sistematizado. Há, depois, o Aristide que voltou dos Estados Unidos (1995), com os militares estadunidenses. O terceiro momento é o Aristide que retomou o poder em 2001; e, mais recentemente, o Aristide que voltou da África do Sul, em 2011. “São quatro momentos distintos e, provavelmente, a concepção tradicional da liderança, quando pensam se ele é bom, mau ou responsável pelo caos social, é a dinâmica fundamental entre ele e o momento” explicou, reforçando que, por trás dessas fases, há sempre a sombra dos Estados Unidos. Para dar um exemplo, Chalmers conta que, em setembro de 1991, alguns dias antes do Golpe de Estado, Aristide organizou uma reunião no Palácio Nacional para apresentar a proposta feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) de um Plano de Ajuste. Ele havia pedido aos seus ministros para explicarem a todas as pessoas o que era a proposta do FMI. Havia uma reunião com 800 organizações no Palácio Nacional, que foi televisionada e transmitida para todas as rádios, numa discussão que durou quase 12 horas. Alguns dias depois, veio o golpe de Estado. Quando Aristide regressou ao poder, assinou o acordo de ajuste com o FMI, totalmente calado, ninguém sabia. O resultado é que, em 1995, haviam conseguido destruir grande parte do movimento popular e reivindicativo, e conseguido destruir a capacidade de intervenção política desses movimentos. “Há muita diferença de um momento para o outro, mas muitas pessoas fazem uma interpretação moral, condenando e acusando. No entanto, é importante ver todos os processos políticos e os atores para entender todas as contradições entre esses quatro momentos distintos”. A Papda defende que é preciso compreender as incoerências das decisões tomadas por Aristide. Por exemplo, ele resistiu um pouco à privatização de algumas empresas-chave, como a telefonia, mas, ao mesmo tempo, não resistiu às mudanças impostas pelo FMI. A liberalização financeira e a abertura comercial trouxeram uma catástrofe social enorme, com uma polarização incrível de riquezas e uma pauperização acelerada, especialmente dos camponeses. “Por isso é muito difícil, porque partidários de Aristide dizem que ele resistiu às privatizações e nós dizemos que
Construindo a sua própria resistência templos, em uma perseguição permanente. E, por último, conta o coordenador da Papda, houve o esfacelamento do que se chama de lakou pe izan, o espaço de produção de alimentos autocentrada nas necessidades da comunidade. O lakou pe izan fica sempre em uma parte comunitária que não se pode vender, está fora do mercado. O resultado de tanta repressão é uma sociedade bloqueada, em que não se desenvolve o Estado e a nação, tampouco. Nação sem identidade. “Combate permanente de um Estado neocolonial, que trata de imitar a França, um povo totalmente distinto”, lamenta Chalmers. Inclusive, denuncia a proibição de os agricultores familiares produzirem alimentos em terras boas, porque as terras boas devem ser dedicadas à exportação, como cana-de-açúcar, café, cacau etc. Na visão neoliberal é a exportação que assegura o processo de acumulação das elites. Esse seria um elemento claro da situação de trancamento, que pode explicar um pouco como a formação social se desenvolveu. A chegada dos EUA piorou em demasia a situação.“Os Estados Unidos mantiveram o mesmo sistema, sendo a classe política e as Forças Armadas controladas a partir de Washington”.
Busca pela emancipação de fato A partir desse momento, os Estados Unidos tomaram a liderança da exploração política e econômica do Haiti. Nas décadas de 80 e 90, o Haiti passou (foi obrigado) a ser um grande importador de gêneros alimentícios e diversos outros produtos dos EUA. Atualmente, é o terceiro maior importador de arroz estadunidense, quando suas terras são propícias para a produção autossustentável do produto. A dominação econômica não foi suficiente para os Estados Unidos, era preciso intervir politicamente no País, se quisessem completar o ciclo de superexploração. Já em 1915, 20 mil marines ocuparam o País por 19 anos. De 1957 a 1986, a ditadura Duvalier (François Duvalier e o filho JeanClaude Duvalier) foi sustentada, basicamente, pelo apoio estadunidense. De 1991, ano em que os haitianos viviam um momento de esperança com a eleição de Jean-Bertrand Aristide para presidente, até agora, os EUA patrocinaram nada mais nada menos que dois golpes e três ocupações militares no País. A mais recente ocorreu com o terremoto, quando mais de 23 mil marines desembarcaram no Haiti.
Mezzonato e Patrola, do MST e Via Campesina, concluem que, com toda essa presença ativa, fica difícil se desvencilhar do seu maior opressor. Qualquer passo fora dessa política pode ser punido severamente. A ruptura com esse sistema de dominação, que se ancora em interesses de uma elite nacional, é um dos maiores desafios da sociedade haitiana, se quiser desenvolver um efetivo processo de democracia participativa. A Papda defende que há duas coisas que precisam ser feitas para que o povo haitiano retome as rédeas do seu próprio país: reconstruir o movimento social e relançar as lutas fundamentais, como a reforma agrária, a reforma do sistema educativo, com projetos de reflorestamento, construção do sistema de saúde pública etc. Para isso, a Papda propõe a construção de uma Assembleia Permanente dos Movimentos Sociais, que se reunirá a cada três meses e será o espaço em que todo mundo possa realmente construir estratégias comuns e locais para converterem-se qualitativamente em propostas nacionais. O outro eixo seria a construção de partidos políticos. Partidos novos e realmente enraizados nos movimentos haitianos, que teriam projetos políticos distintos, projetos de nação, projetos de soberania, que permitam ao País sair da situação atual.
Quando a ajuda não ajuda Faz-se necessária uma reflexão sobre a reconstrução na retomada do controle da nação. A situação social caótica do Haiti também é reflexo da ajuda humanitária que transformou o País numa das principais fontes de recursos de milhares de ONG que atuam há décadas no Haiti, mas não produzem resultados que consigam, de fato, melhorar, de forma sustentável, a vida do povo. Muitas ONG, em sua grande maioria estrangeiras, trabalham sem nenhum tipo de coordenação entre elas, o dinheiro é mal utilizado, as ações são assistencialistas e não existe nenhum tipo de ingerência do povo haitiano, ou mesmo do Estado, na aplicação dos recursos. Fala-se em aproximadamente 10 mil. Isso mesmo, “10 mil” organizações não governamentais atuando no Haiti. O montante de recursos que circula nos projetos dessas instituições é altíssimo, e a maioria delas está no País há muitos
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distribuição de alimentos em Léogâne. Foto: UN Photo/Sophia Paris
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Batalhão do Sri Lanka faz a segurança em um ponto de
tipos: moradia, educação, alimentação, erradicação da violência, entre outros tantos, mas não há nenhuma conexão entre eles. São pontuais e fragmentados e, em geral, sem a participação da sociedade civil organizada na construção das iniciativas. O analista do Ceiri, Jean Garry, também concorda que o Haiti é um dos países com mais ONG no mundo. Ele é taxativo ao afirmar que não se pode desenvolver um país com ONG e programas assistencialistas. “Um país se desenvolve com um processo de criação e distribuição equi-
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anos. No entanto, a situação de pobreza e os problemas estruturais continuam graves. O que o MST e a Via Campesina percebem é que grande parte das ONG se utiliza da situação de miséria para continuar existindo como instituição. Alguns dados mostram que uma porcentagem grande dos recursos vai para o pagamento do quadro técnico das instituições, e esses técnicos são dos países de origem, ou seja, o recurso acaba retornando ao mesmo País de onde veio. Somente 5% passam pelo Estado haitiano. São projetos dos mais diversos
Construindo a sua própria resistência tativa de riquezas. Considero as ONG como empresários da miséria, que aportam, como valor agregado, a pobreza durável e sustentável”, afirma. Carole Pierre-Paul Jacob, da Sofa, chama de catastrófica a “invasão das ONG” no Haiti, após o terremoto de 2010. Segundo ela, essas organizações internacionais de urgência, muitas vezes, querem se colocar acima das ONG de base, que têm muito mais tempo no País. “Para nós, isso se chama ocupação. É no interior dessa situação que estamos vivendo a cada dia, mas nós estamos lutando contra essa ocupação neocolonialista que elas querem fazer aqui. Ainda que essa situação já existisse antes, depois do terremoto, aumentou ainda mais”. A“batalha”contra a Minustah é um exemplo de resistência que movimentos como a Sofa vêm empreendendo. PierrePaul Jacob conta que, durante um encontro da Marcha Mundial de Mulheres no Congo (África), a Sofa aproveitou para denunciar a Minustah e todas as forças multinacionais que contribuem para ampliar o projeto de dominação no Haiti. Em 2010, ela esteve no Brasil, e pediu ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que intercedesse pela retirada das Forças Armadas brasileiras da Minustah. Para a Sofa, a Minustah nada mais é do que a força, o braço armado da colonização. É esse sistema neoliberal que está acabando com o País desde 1980, sendo a Minustah o braço armado da força dominante internacional. “Somos muito conscientes disso”, afirma Carole Jacob. Mesmo diante dessa realidade, Mezzonato e Patrola, do MST e Via Campesina, fazem questão de ressaltar que não é papel das ONG substituir o funcionamento do Estado. Aspectos como educação, infraestrutura básica (estradas, saneamento, eletricidade, água), saúde e agricultura devem ser coordenados pela própria sociedade haitiana a partir da organização do seu Estado. Entretanto, como não há Estado, as ONG seguem fazendo o seu “faz de conta”, vendendo a imagem de miséria para continuarem ganhando dinheiro. E os problemas não param por aí. Cerca de três anos depois do terremoto, a maior parte do País ainda está sob os escombros. E essa letargia pode ser explicada por fatores
que vão além da catástrofe natural. Antes do terremoto, o Haiti já tinha sérios problemas políticos, sociais e econômicos. O terremoto veio aprofundar essa situação de dificuldades. Grande parte do apoio financeiro internacional anunciado não foi efetivada. Além disso, há problemas políticos internos entre o Executivo e o Legislativo, que dificultam o andamento dos processos administrativos do País, ou seja, as pequenas iniciativas são muito morosas devido à instabilidade política. Apesar de já se notar um processo de saída de algumas organizações não governamentais internacionais do Haiti, Camille Chalmers afirma que as grandes entidades não vão largar o País tão cedo, porque ainda há muito dinheiro para chegar ao Haiti. O analista Jean Garry, do Ceiri, enumera os principais motivos para que a maioria dos projetos de reconstrução do Haiti após o terremoto ainda não tenham saído do papel. São eles: 1) falta de consenso dos múltiplos atores em nível de comunidade internacional, pois cada ator tem seus próprios objetivos e métodos; 2) o processo de debilidade institucional promovido pela comunidade internacional da sociedade haitiana; 3) a vontade da comunidade internacional de privilegiar seus próprios interesses, pois de cada 100 dólares gastos no processo de reconstrução, menos de 10% beneficiam a economia haitiana; 4) o isolamento dos haitianos nas decisões estratégicas que os afetam, tendo em vista que privilegiam os estrangeiros para os trabalhos mais elementares; e 5) se priorizam as ONG com ações humanitárias de pouco impacto, ao invés de grandes projetos estratégicos. No entanto, mesmo diante desse quadro desanimador, as últimas palavras do haitiano Jean Garry são definidoras da essência lutadora do seu povo: existe um conjunto de movimentos de mulheres, campesinos, universitários, territoriais etc, que, com suas ações e o devido tratamento pelo Estado e pela importante ajuda humanitária internacional, podem fortalecer as iniciativas de democracia participativa. Chalmers, da Papda, enfatiza que os desafios são muitos, mas também há muita força. Uma força cultural própria.
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Automeca já foi o maior acampamento, mas hoje tem menos de cinco mil pessoas morando lá.
Automeca, um acampamento de solidariedade
FOTO: ERMANNO ALLEGRI
Por Adriana Santiago
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Olhares curiosos e laços de todas as cores nos cabelos. Fardinhas passadas e impecavelmente limpas. Nas vielas poeirentas, uma trança bem feita embeleza um cabelo revolto. Mechas azuis, unhas vermelhas. As haitianas são vaidosas desde pequenas e, por isso, em todo o país é fácil avistar salões de beleza em quase toda esquina. E não seria, então, diferente em um dos 758 acampamentos que atualmente servem de morada para 519 mil pessoas desabrigadas. Automeca era o maior acampamento na época do terremoto e chegou a ter 15 mil pessoas em suas barracas de lona. Porém, atualmente “só” tem cerca de mil famílias. Algo em torno de 4.500 pessoas continuam lá. O número diminuiu porque estavam acampados em dois terrenos particulares, um ao lado do outro, porém um dos proprietários, munido de pequenas indenizações e uma grande dose de ameaças, conseguiu que toda aquela população maltrapilha abandonasse o local e fosse novamente procurar outros acampamentos. Muitas vezes, para viver de forma mais insalubre. Ainda quando Automeca era gigantesco e perigoso, porque lá se escondiam muitos marginais que agiam em Cidade Soléil, o bairro mais violento de Porto Príncipe, trabalharam algumas ONG e instituições, como a Cruz Vermelha Internacional e a Organização Internacional para Migrações (OIM), além de outros serviços da Organização das Nações Unidas (ONU). O líder dos acampados, Dominique Kene, lamentou que estas ajudas internacionais atuassem por conta própria, porque não conheciam as reais necessidades da população, além da situação de emergência. Tal atitude provocou muito sofrimento aos haitianos. Contudo, destaca que existem organizações não governamentais (ONG) que conhecem um pouco mais o terreno e fazem um trabalho próximo da realidade haitiana.
Construindo a sua própria resistência Sem escola e sem emprego Falam que os jovens também se organizam em comitês, com ênfase na formação profissional e escolarização, contudo não tem escola para todos, e esta, quando existe, é distante e/ou particular. Porém, em Automeca, como já foi dito, é possível ver crianças perfeitamente vestidas para as suas escolas, com seus tradicionais fitilhos nos cabelos. Uma contradição bonita que mostra a força do haitiano, que mesmo sem condições de trabalho, se esforça para pagar uma escola digna para seus filhos. É surpreendente ver crianças rigorosamente fardadas surgindo entre as barracas de lonas velhas, rasgadas, claustrofóbicas, amontoadas umas nas outras. Os pequenos, muitas vezes, saem desviando e pisando na lama com seus sapatos engraxados, são cenas que angustiam, mas trazem esperança. As escolas públicas que ainda existem são muito longe do local e, como todos são muito pobres, não têm condições de pagar pela escola e nem pelo transporte. Os líderes dizem que, no acampamento, há professores e formadores. Embora, à primeira vista, não seja detectada qualquer estrutura improvisada para funcionar uma escola ou oficina profissionalizante. Dominique, por sua vez, insiste em dizer que os jovens foram treinados por ONG para assumir funções diversas, mas o desemprego impera a olhos vistos, em Automeca, as ruelas estão apinhadas de jovens desocupados em plena terça-feira de dezembro.
No compasso de espera O que vaza no discurso dessas lideranças é que estão sempre esperando, ou uma palavra do Estado ou outra das grandes ONG. Dizem-se prontos e organizados para o comércio ou outro tipo de atividade, mas admitem estar carentes de acompanhamento. Um exemplo é o projeto para retirar escombros e entulhos acumulados nas proximidades, mas que não tem qualquer incentivo. A proposta envolveria emprego para boa parte dos haitianos acampados em vários pontos da cidade. Automeca, pelo menos a metade que permanece, compõe uma organização maior com mais sete acampamentos: Parkolofica, Henfraza, Palaiss L`Ar, Houtgeorges, Basgeorges e Emmanuelbanfil. A ideia é que juntos tenham mais força e ganhos. Nos acampamentos, valorizam o fato de as mulheres manterem uma organização forte, porque buscam ações de empreendedorismo e microcrédito. O discurso do líder é bem
diferente na prática. O que se observa à primeira vista é que não há nada disso, o que se vê é muita gente ociosa e um microcomércio onde tem de tudo um pouco, com destaque para o carvão. As mulheres, quando procuradas, afirmaram que tiveram oficinas de artesanato e outras ações, mas que estas só funcionaram como ação terapêutica, mais até do que uma organização de economia solidária. O que se percebe é que há uma necessidade dos líderes de mostrar organização, mas, na verdade, é um aglomerado que se autoprotege. Quando perguntadas sobre o sofrimento feminino, pois as mulheres são consideradas por muitas organizações sociais locais como o alicerce do País, um círculo de mulheres se forma em torno de nós. Confessam que só esperam e esperam. Observa-se rapidamente que esperar é uma ação recorrente daquele povo sofrido. De olhos no chão, uma delas justifica: porque “temos força de trabalho, mas não temos possibilidade para sair desta situação sozinhas”. Explicam que a maioria está sem marido, elas próprias lutam para sustentar as crianças. “Aqui é como o inferno. Quando há chuva, cai água nas tendas e muitas têm que ficar com as crianças no colo a noite toda para protegê-las da água, e quando há calor, é outro problema”. A saúde é precária com muitos casos de febre, diarreia, anemia. Mas lá não há como tratar, a saúde não é pública. O que ainda salva são alguns postos de saúde (hospitais de campanha, de lona também) da ajuda internacional nos acampamentos vizinhos. Grande parte da saúde gratuita é mantida pelos Médicos sem Fronteiras e a Brigada Cubana. Dois anos depois do terremoto e nenhum hospital de alvenaria foi erguido.
Sem esperança de ajuda de fora A presidente do conselho de mulheres de Automeca, Luisimon Marie Nesline, é uma mulher forte, de semblante guerreiro, mas claramente com um olhar de pouca esperança na reportagem, ou em qualquer que seja a ajuda vinda de forasteiros. O olhar desafiador e sem muita fé nos resultados da conversa, contradiz a fala. Luisimon nos disse que tem perspectiva e força, mas não tem condições e organização fixa para acompanhamento de ações efetivas. “Nós já perdemos uma boa parte das mulheres que se organizavam em Automeca, porque foram para outros acampamentos”. As ações de incentivo ao comércio e ao microcrédito atribuídas pelo líder Dominique a elas, foram classificadas por Louisimon como paliativos, atividades
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Ao adentrar aquele mar de tendas, a visão de uma imensa cisterna é de encher os olhos. É fácil lembrar a tecnologia alternativa das cisternas de placas, que virou política do governo brasileiro para o semiárido, com o Programa Um Milhão de Cisternas. As cisternas fornecem água para uma família de cinco pessoas, que juntam água da chuva para consumir na seca. Água limpa, gratuita e de boa qualidade para aquelas famílias? Ledo engano. Era uma cisterna construída pela ajuda internacional sim, mas agora é abastecida e comercializada por uma empresa com água levada em um caminhão-pipa de La Plaine du Cul de Sac, que fica ao sul do País, cerca de 20 quilômetros de Porto Príncipe. Não há qualquer tratamento para
O líder dos acampados de Automeca é Dominique Kene. FOTO: FRANCISCA STUARDO
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Governo não dá nem a água
a água, ou teste para ver se é potável. A gestão da água é feita pela comissão organizadora. Na chave. E todos pagam um pouco pela água. Quem tem mais, dá mais e quem tem menos, às vezes nem contribui. Mas este é um instrumento de micropoder eficaz, pois não há assembleia dos moradores, o que pode culminar em uma relação de poder e opressão. Solidariedade sem interesse até existe na hora do sufoco, da emergência, mas depois de quase três anos, é quase impossível não usufruir dos micropoderes, como diria o filósofo francês Michel Foucault sobre a alma humana. O que se percebe nas ruelas de Automeca é gente ociosa, jogando dominó, mas não se vê gente bebendo ou aparentemente drogada. Enfim, mas a marginalidade existe no acampamento porque, para lá, foram os marginais e drogados de Cidade Soléil e outros bairros considerados os mais perigosos de Porto Príncipe. Parece que a prática de marginais se esconderem em acampamentos gigantescos é frequente, e não seria diferente em Automeca. As tendas são ainda praticamente todas doadas pela ajuda internacional, veem-se logotipos das Usaid, Unicef, ONU etc.. As tendas, depois de quase três anos, estão rasgadas, remendadas, reorganizadas com estruturas de madeiras para melhorar a circulação de ar, mas não são adequadas para famílias de cinco ou seis pessoas viverem até hoje. Insalubres, sem privacidade, sem higiene, milhares de pessoas vivem como animais. Até quando?
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psicossociais, iniciativas que não contribuem efetivamente para uma autossustentação. Mais de dois mil jovens e adultos em idade produtiva ainda permanecem em Automeca. A grande maioria sem emprego, e compartem tudo o que têm, porque a ajuda internacional oficial saiu de lá em 31 de março de 2010. O que se vê nas ruelas é venda informal de tudo, principalmente de comida (sem qualquer higiene) e de carvão cortado e vendido em sacos plásticos. Como o problema da energia é grande, o carvão serve para os lampiões, cozinhar e se aquecer à noite. Uma das ações mais interessantes no acampamento é o projeto “Eletricidade sem Fronteiras”, que coloca postes de iluminação solar nos acampamentos, principalmente próximos aos banheiros químicos, para evitar violência sexual durante a noite. É possível ver os postes não só em Automeca, mas em inúmeros acampamentos espalhados pela cidade. Para garantir a segurança os moradores criaram um comitê de coordenação que organiza o acampamento e, dentro dele, a comissão de segurança, de formação e de viabilidade econômica. Na de segurança, dizem que há mulheres, porque elas atentam para uma situação específica feminina, como a violência sexual. Quando perguntados, os homens negaram veementemente que existisse violência naquele acampamento, contrariando todas as notícias e relatórios que apontam Automeca como um dos locais de maior índice de estupros. As mulheres se calaram, mas não negaram. Ou seja, o sistema patriarcal é forte e opressor para as mulheres. Porém elas têm assumido cada vez mais postos de comando.
Construindo a sua própria resistência
Uma democracia participativa limitada Por Marie Frantz Joachim
De maneira geral, a democracia se concebe como o exercício pelas cidadãs e cidadãos do direito ao sufrágio, pela existência de um sistema multipartidário, do voto secreto e de eleições precedidas de debate público. Essa concepção de democracia reduz a participação das cidadãs e dos cidadãos em irem às urnas. Em outras palavras, a escolha de líderes através do voto, seria o único mecanismo que estaria disponível para as pessoas participarem dos assuntos de suas coletividades locais ou de seus países. As experiências de vários países da América Latina e da Europa, durante esta década, demonstram que uma outra forma de democracia é possível. Na verdade, as organizações sócio-políticas têm desepenhado um papel determinante no jogo político. As regras da democracia mudaram. O conceito de democracia tem evoluído desde então. Para traduzir o envolvimento e a participação popular na tomada de decisões sobre assuntos que lhes dizem respeito, utilizamos o termo democracia participativa. Esse termo, tal como é concebido , vai além da participação no dia da votação. Existe no Haiti uma expressão da democracia participativa e como ela se manifesta? É para essa questão que este texto tentará trazer uma resposta, com base em alguns instrumentos jurídicos, incluindo a constituição de 1987 e as práticas adotadas em alguns municípios do Haiti.
Democracia participativa e descentralização
Linguista, especialista em desenvolvimento local, descentralização e gênero. Tradução: Francisco José Nogueira
A Constituição de 1987 estabelece o princípio da democracia participativa. No último parágrafo de seu preâmbulo, afirma que a democracia participativa está implementada ou em construção no Haiti. Uma democracia que se baseia na descentralização, que por si só deve ser alcançada a partir das coletividades locais. Seguindo essa lógica, a descentralização é a base sobre a qual repousa a participação e a consulta. Claramente, a descentralização e a participação caminham lado
a lado e a organização pelas autoridades locais é fundamental para promover a participação das pessoas nas decisões importantes que afetam a vida nacional. A esse respeito, a Constituição prevê três níveis de coletividades locais : Seção Municipal (distrito), Município e Departamento, todos com orgãos executivos (Conselho de Administração de Seção Municipal, Conselho Municipal e Conselho Departamental) e com orgãos legislativos (Assembleia de Seção Municipal, Assembleia Municipal e Assembleia Departamental ). As Assembleias são consideradas como instâncias de participação. No entanto, excetuando as Assembleias de Seção Municipal , nenhum outro órgão deliberativo conseguiu se estabelecer nos últimos 10 anos, devido à interrupção prematura do processo eleitoral e da natureza ainda provisória do mecanismo responsável pela realização de eleições (Conselho Eleitoral provisório). No entanto, várias iniciativas, com base em textos legais, incluindo a Lei sobre a regionalização de 1982 e os decretos leis de 1986 sobre o funcionamento e a organização das coletividades locais, foram postas em prática para incentivar a participação das organizações da sociedade civil na tomada de decisões sobre os assuntos das coletividades É importante esclarecer, em primeiro lugar, o termo “sociedade civil” que, pelo seu caráter polissêmico, pode abrir a porta para várias interpretações. A sociedade civil baseia-se nas cidadãs e cidadãos como indivíduos que podem, individualmente ou em grupos, fora de qualquer organização ou partido político, mobilizar-se em ações de caráter técnico, econômico, cultural ou político, em relação aos eleitos, independentemente de sua hierarquia. A sociedade civil tem dois grandes campos de trabalho: a) mostrar as falhas dos eleitos que não respeitam os seus contratos e não assumem suas responsabilidades com relação às suas competências; e b) ser intermediária de soluções alternativas,
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Haiti por si O chamado da concha simboliza o ancestral toque para as batalhas que levaram o Haiti à sua independência. Ainda hoje os camponeses utilizam o instrumento em suas manifestações em defesa de seus direitos.
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FOTO: THALLES GOMES /MST
Construindo a sua própria resistência ou ser uma opção positiva também importante, propondo às autoridades soluções mais eficientes, que correspondam melhor às satisfações mais rápidas das necessidades das populações, portanto, apoiar positivamente as autoridades. Em ambos os casos, os membros de organizações da sociedade civil estão participando dos assuntos de seu país.
A experiência de participação No Haiti, essas organizações são um reservatório de boa vontade, voltada para uma mudança positiva da vida nas seções municipais e municipalidades. Elas são atualmente centenas de milhares de cidadãs e cidadãos dinâmicos e motores do desenvolvimento da sua comunidade, através de associações de pais e professores, produtores agrícolas, de defesa dos direitos das mulheres, direitos dos cidadãos, dos jovens. Elas estão presentes nos bairros das cidades e no campo. Elas normalmente são organizadas em torno de dois eixos principais: a) em setoriais (educação, saúde, agricultura, infraestrutura, etc); ou b) na defesa de direitos humanos (dos cidadãos, das mulheres, dos jovens etc). Elas são a base do funcionamento dos mecanismos estabelecidos em conformidade com os enquadramentos legais na matéria. Na verdade, no Haiti, durante a última década, sob a impulsão de projetos conhecidos como de “desenvolvimento local”, vários mecanismos de participação ou de consulta são criados sob diferentes nomes. Eles são encontrados sob o termo de Conselho de Desenvolvimento no Departamento de Nippes ou no de Artibonite, o Comitê Municipal de Consulta e Planejamento em Marmelade ou ainda os comitês executivos locais no Departamento do Nordeste. É preciso acrescentar as comissões municipais de consultas, que são consideradas como um desdobramento da estrutura de planejamento do Ministério de mesmo nome. É importante chamar a atenção para o fato de que, independentemente de sua denominação, são todas estruturas destinadas a fomentarem a participação ativa da população no processo de desenvolvimento. Elas incluem os membros de organizações da sociedade civil que representam vários setores de intervenção e autoridades eleitas. Claramente, esses últimos fornecem a maioria dos recursos humanos que consideram
competentes e representativos e aos quais eles delegam tais comitês ou comissões de trabalho. Os Conselhos de desenvolvimento, as comissões setoriais de trabalho ou de defesa de direitos reivindicam, com muito vigor, seus papéis de liderança única no processo de implementação de planos de desenvolvimento. Eles participaram na identificação de problemas da população, na seleção e validação de projetos que possam resolver seus problemas e, em seguida, na hierarquização e priorização desses projetos e no acompanhamento de sua execução. É para eles a definição precisa e clara do seu perímetro de responsabilidades, em que eles não querem qualquer intrusão. É, na verdade, o perímetro de trabalho e de responsabilidade das organizações da sociedade civil, trabalhando em estreita colaboração com as autoridades eleitas. As experiências que se fazem, atualmente, em várias municipalidades do Haiti, incluindo Gros Morne e Saint Michael de l’Attalaye, no Departamento de Artibonite, e Bombardopolis no Departamento do Noroeste, são exemplos. As autoridades locais eleitas desses municípios, seguindo a crítica de organizações da sociedade civil sobre a opacidade observada na gestão da coisa pública, tomou um conjunto de disposições para a participação e consulta. Ao fazer o diagnóstico participativo, passo preliminar no desenvolvimento de planos de desenvolvimento municipais, autoridades locais têm mantido reuniões em que as pessoas são incentivadas a fornecerem informações sobre características gerais das suas comunidades, potenciais oportunidades e os pontos fortes e as limitações (freios, barreiras, riscos de desastres naturais) do meio. Ao fazê-lo, as populações se apropriam melhor de seu território e acordam com os seus representantes uma nova visão sobre a evolução possível de sua coletividade. Deve-se dar ênfase na importância da sensibilização, sob a liderança de autoridades eleitas, para garantir a representação de todos os setores nesse diagnóstico. Em Bombardopolis, os atores locais foram convidados de acordo com a sua sensibilidade para os workshops que foram projetados para coletar e validar os elementos do Plano de Desenvolvimento Municipal por tema e por área de abrangência.
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Haiti por si É importante ressaltar que, apesar dos esforços positivos representados por essas experiências, elas permanecem limitadas e frágeis, na medida em que o contexto geral do Haiti continua dominado por um poder autoritário e vertical que deixa pouco espaço para a participação. Os processos políticos, muitas vezes, não são credíveis e, assim, comprometem os direitos das cidadãs e cidadãos a escolherem seus líderes. Os mecanismos de participação são em grande parte emanados dos operadores dos projetos de desenvolvimento que são limitados no tempo. Qual é a perenização possível das experiências em curso? As Prefeituras podem inserir uma linha no seu orçamento que possa promover o funcionamento dessas estruturas? As organizações da sociedade civil, por mais entusiastas que possam ser, dado o seu nível de vulnerabilidade, são capazes de contribuir financeiramente para a sua própria participação nesses mecanismos? O fato é que a vontade política é crucial para a manutenção e a eficácia dessas estruturas de participação. É importante encontrar a fórmula certa para promover a articulação entre as instâncias responsáveis pelo cumprimento das três funções: a decisão (Conselho Municipal), apoio a construção do desenvolvimento (Conselho de Desenvolvimento) e controle (Assembleia Municipal e Seção Municipal).
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Essas experiências mostram que a participação pública é, aparentemente, efetiva, e vai além do dia da eleição. Regularmente, as pessoas da sociedade civil se reúnem com seus representantes eleitos para discutirem tudo que possa dificultar o processo de desenvolvimento e, em conjunto, encontrarem soluções. Os testemunhos recolhidos, muitas vezes, descrevem os efeitos da participação em uma comunidade. Participando dos assuntos da municipalidade, a sociedade civil tem denunciado, através das colunas de jornais locais, qualquer ação desonesta que tenha impedido o avanço das atividades em prol do desenvolvimento. E as mulheres, em tudo isso? O slogan do movimento feminista “No mujer, no democracia” parece ter ressoado com os autores dos decretos de 2006, que concedem o papel de tesoureira às mulheres dentro dos conselhos de desenvolvimento. Esse é um arranjo que forçou organizações mistas da sociedade civil a proporem candidatas e a votarem em mulheres para os conselhos. No entanto, para analisar corretamente, podemos nos questionar se essa disposição tem um desejo real de incentivar a participação das mulheres ou apenas usar o clichê de uma certa inclinação para a gestão financeira que lhes dá a sociedade patriarcal.
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Participação superficial ou real?