A eternidade da maçã
Freud e a ética
3ª edição
A ETERNIDADE DA MAÇÃ
Freud e a ética
Flávio Ferraz
3a edição
A eternidade da maçã: Freud e a ética
© Flávio Ferraz
Editora Edgard Blücher Ltda.
1ª e 2ª edições – Escuta, 1994
3ª edição – Blucher, 2024
Série Psicanálise Contemporânea
Coordenador da série Flávio Ferraz
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenador editorial Rafael Fulanetti
Coordenação de produção Andressa Lira
Produção editorial Luana Negraes
Preparação de texto Bárbara Waida
Diagramação Negrito Produção Editorial
Revisão de texto Maurício Katayama
Capa Leandro Cunha
Imagem da capa iStockphoto
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Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Ferraz, Flávio
A eternidade da maçã : Freud e a ética / Flávio Ferraz. – 3. ed. – São Paulo : Blucher, 2024. 200 p. (Série Psicanálise Contemporânea / coord. de Flávio Ferraz)
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2298-9
1. Psicanálise. 2. Freud, Sigmund, 1856-1939. I. Título. II. Série.
24-3604
CDD 150.195
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
1. Ética, moral e consciência moral: questões da filosofia
O conceito de consciência moral, tratado neste estudo sob o prisma da psicanálise, tem origem na filosofia. Mais precisamente: é um conceito pertencente ao campo da ética, e, como tal, é um tema exaustivamente abordado pela filosofia desde seus primórdios.
Seria quase impossível, aqui, fazer um rastreamento significativo, ainda que sucinto, do tratamento que a consciência moral recebeu em tantos séculos de especulação filosófica.
Pode-se, porém, fazer um breve apanhado de algumas questões, tanto semânticas como propriamente filosóficas, imprescindíveis para o desenvolvimento deste trabalho. Os termos ética e moral possuem, ao menos etimologicamente, o mesmo significado. Ética tem origem no grego ethikós e moral, no latim mores, mas ambos os termos se referem a costume.
No entanto, costuma-se atribuir significados diferentes a tais termos. Começando pelo uso mais corrente na língua portuguesa, encontram-se, no Novo dicionário da língua portuguesa (Ferreira, 1986), as seguintes definições:
• Ética: “estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem
2. Julgamento moral e desenvolvimento cognitivo
A questão do julgamento moral envolve, decididamente, o desenvolvimento cognitivo. Se aqui examinarei a consciência moral pela ótica da teoria psicanalítica, privilegiando o lado afetivo que a envolve, isso não quer dizer que não reconheça o fato de que um julgamento moral pressupõe determinada capacidade cognitiva como condição necessária. Pode-se lembrar, nesse sentido, o pensamento de Dewey (1908/1981) a respeito dessa vinculação do juízo de valor à capacidade cognitiva:
Uma pessoa normal não presenciará um ato de desusada crueldade sem imediata reação de desaprovação; sobrevêm, imediatamente, ressentimento e indignação. Uma criança reagirá nesse sentido quando alguém faz sofrer uma pessoa de quem gosta. Um adulto, porém, poderá reconhecer que o indivíduo que está infligindo o sofrimento é o médico, que está fazendo o que faz no interesse do próprio paciente. A criança considera o ato pelo que ele imediatamente se lhe apresenta e acha-o mau; a outra pessoa interpreta-o como elemento num
3. A psiquiatria e os “distúrbios morais”
A problemática que envolve os indivíduos com “distúrbios” relativos ao comportamento moral ocupa, há muito, a atenção da psiquiatria. Na literatura psiquiátrica encontram-se inúmeras referências clínicas a pacientes cuja problemática envolve a “deficiência” de sentimentos éticos e morais, em uma escala tão ampla que abrange desde casos de crianças que apresentam comportamento antissocial em casa ou na escola até os casos dos psicopatas mais célebres, conhecidos criminosos bárbaros que matam a sangue frio com requintes de tortura, chegando mesmo ao extremo das práticas canibais.
A tentativa de estabelecer um conhecimento médico da mente criminosa sempre esteve presente entre as preocupações da psiquiatria, tendo sido ela frequentemente chamada aos tribunais para dar seu parecer sobre o diagnóstico psíquico de criminosos. No entanto, a nomenclatura que se utiliza para designar as tendências antissociais, associais ou criminais não se encontra plenamente uniformizada, e, evidentemente, a falta de consenso não atinge somente a nomenclatura: atinge a própria questão diagnóstica.
4. Psicanálise, ética e delinquência
Abordarei a questão da consciência moral – sua gênese, seu desenvolvimento, seus mecanismos de ação e, ainda, sua “patologia” – a partir de um levantamento sobre o tratamento dado a esse tema por Freud. No entanto, visto que um número significativo de autores psicanalistas há muito vem se ocupando dessa questão, torna-se necessário um pequeno inventário sobre ela dentro da literatura psicanalítica específica.
Algumas vezes a reflexão sobre ética, moral ou consciência moral aparece como o próprio objeto de exame, enquanto em outras tal questão é tratada por meio de um fenômeno que a ela toca de perto: as tendências antissociais ou algo equivalente. Por isso faz-se necessário um levantamento a respeito dessas “tendências” e outros termos afins que se encontram na literatura psiquiátrica e psicanalítica.
A respeito da consciência moral propriamente dita, encontram-se na obra de Freud várias referências a sua gênese e seu desenvolvimento, seja no indivíduo, seja na cultura. Para ele, o processo de formação de uma “barreira moral” na cultura é, em essência, o
5. Renúncia e culpabilidade: pedras fundamentais
Todo mundo, todos os segundos do minuto Vive a eternidade da maçã Caetano Veloso, “Pecado original”
Parece natural – ou mesmo óbvio – que eu comece esta análise propriamente dita com a seguinte indagação: haveria de fato uma contribuição da teoria psicanalítica de Freud para o campo da ética? E, se houver, onde estaria situada exatamente?
Minha resposta para essa questão – e isso também pode parecer óbvio, visto que já anunciei meu empenho em demonstrá-lo – é que a teoria psicanalítica, tanto a de Freud como aquela já desenvolvida e ampliada por seus seguidores, tem uma grande contribuição para o estudo da ética, quer seja pela via da investigação sobre a origem da consciência moral, quer seja pela via do exame da ética social. Se pensarmos o campo da ética como pertencente, ao menos originariamente, ao domínio da especulação filosófica, veremos que o enfoque psicológico vem acrescentar outro lado da questão, que se expressa não pela indagação do que seja a ética, mas pela investigação da forma como sua encarnação no indivíduo e na
6. Histeria, fantasia e norma: a ética da psicanálise
O conceito de fantasia aparece no pensamento de Freud sob formas nem sempre coincidentes: algumas vezes se entende por fantasia o devaneio ou o sonho diurno francamente consciente; outras vezes, entra em cena a fantasia inconsciente; e, outras vezes ainda, esse termo serve para designar a fantasia primitiva, ou protofantasia, ocasiões em que resvala para uma aplicação relativa à escala filogenética, quando se tenta compreender a realidade psíquica tendo como recurso eventos ocorridos no decorrer da história da espécie (Laplanche & Pontalis, 1967/1985).
Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, Freud (1911/1980b) se refere à atividade do fantasiar como uma espécie de funcionamento psíquico que se liberou do teste de realidade: inibida a descarga motora, por meio do processo de pensamento, resta uma área psíquica que não resiste ao apelo das fontes de prazer. Essa área, que não abandona o princípio do prazer, é justamente a fantasia, “que começa já nas brincadeiras infantis, e posteriormente, conservada como devaneio, abandona a dependência de objetos reais” (pp. 281-282).
7. A consciência moral na segunda tópica
Em meio à indiferença dos repolhos, das formigas que seguem seu trabalho, eis que a montanha de longe nos reprova, toda ferro.
Carlos Drummond de Andrade, “Tentativa” (1979)
A preocupação com a metapsicologia de uma consciência moral aparece bem cedo no trabalho de Freud, seja por meio da constatação da censura operante no sonho, seja pela descrição do mecanismo de autorrecriminação presente na neurose obsessiva. A vinculação dessa consciência moral a uma parte integrante do aparelho psíquico, que viria a ser chamada de supereu, somente ocorreu, explicitamente, em “O eu e o isso” (Freud, 1923/1980a), o que não impediu que sua essência conceitual perpassasse toda a psicanálise anterior a isso, como mostra Laplanche (1987): “a psicanálise viveu grande parte de sua experiência teórica e clínica com Freud –o essencial mesmo do tempo de sua fundação – sem utilizar a ideia de uma instância moral” (pp. 253-254). Acrescenta que, mesmo muito antes do advento da psicanálise, o homem já localizara essa
8. O supereu e a psicopatologia: a “doença moral”
O inteiro mundo interior, originariamente delgado como algo retesado entre duas peles, separou-se e aumentou, adquiriu profundeza, largura, altura, na medida em que a descarga do homem para fora foi obstruída. Aqueles terríveis baluartes com que a organização estatal se protegia contra os velhos instintos de liberdade – os castigos fazem parte, antes de tudo, desses baluartes – acarretaram que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre, errante, se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o gosto pela perseguição, pelo assalto, pela mudança, pela destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: essa é a origem da má consciência.
Nietzsche (1887/1978)
O desenvolvimento do conceito de supereu por Freud veio mostrar que, além do atributo de ideal do eu, a instância superegoica pode funcionar como uma consciência moral severa que tende a se posicionar contra o eu dentro da dinâmica do aparelho psíquico. É desse modo que se pode entrever, nos mecanismos atuantes em determinadas formas de psicopatologia, a presença de um supereu supermoral e violento, que se sacia apenas por meio da condenação
9. A civilização falida
Coisa bem uniforme, a espécie humana. A maior parte gasta grande parte de seu tempo trabalhando para viver, e o pouco que lhe resta livre pesa-lhe de tal modo, que procura todos os meios para desfazer-se dele. Oh, o destino dos homens! Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (1774/2019)
É sabido que Freud sempre se demonstrou pessimista quanto ao destino da maior das instituições da humanidade, e matriz de todas as outras, que é a civilização. Em várias oportunidades, tocou nessa problemática, quer reconstituindo o processo de fundação da civilização (Freud, 1913/1980a), quer demonstrando o quanto significa um conflito com os interesses individuais (Freud, 1908/1980a, 1930/1980), ou ainda mostrando que seus próprios pressupostos existenciais implicam um processo autodestrutivo (1930/1980, 1933/1980a). Civilização, para ele, era “a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar seus relacionamentos mútuos” (Freud, 1930/1980, p. 109).
10. Ética e caráter
O pensamento de Freud deu muitas pistas para uma compreensão psicanalítica da ética e da moralidade, especialmente dentro do que já tratamos, a saber, a gênese da consciência moral, assimilada tanto ao supereu individual quanto ao supereu cultural. Mas, quando se procura depreender de sua obra uma contribuição mais ampla à compreensão da ética da ação e da interação humanas, há que se colocar a pergunta: o que é que se encontra além da formação da consciência moral que faz com que um indivíduo aja em conformidade ou contrariamente a ela?
Para nos aproximarmos desse campo de investigação, faz-se necessário recorrer à noção de caráter, conceito que Freud desenvolveu em alguns momentos de seu trabalho ( 1908/1980c, 1915/1980e, 1916/1980, 1917/1980b, 1931/1980), mas que deixou sem uma sistematização mais fechada, ao contrário do que fez com a maior parte de seus conceitos mais importantes. Inversamente ao que fez em relação à psicopatologia, propondo sistemas diagnósticos que se esforçavam por recobrir todo o seu campo, Freud não fez em nenhum momento um quadro nosográfico caracterial que tentasse abranger as possíveis configurações do caráter.
11. Abraham: a cleptomania à luz da teoria da libido
Karl Abraham foi um dos mais importantes psicanalistas da primeira geração e, ao contrário do que ocorreu com boa parte de seus contemporâneos, não se afastou das linhas mestras representadas pelas ideias básicas de Freud, o que de modo algum diminui o mérito de sua capacidade criativa. A ele se creditam descobertas cuja autoria praticamente se divide com Freud, como aquela do desenvolvimento das organizações libidinais. Freud dedicava a Abraham uma rara estima, manifestada com vigor no necrológio que escreveu ao amigo falecido precocemente (Freud, 1926/1980c).
Abraham se dedicou ao estudo de muitas questões centrais da psicanálise. Contudo, sua contribuição à investigação das organizações libidinais pré-genitais e de suas relações com as perturbações mentais e com a formação do caráter foi um dos pontos de maior destaque de seu legado teórico.
Dentro do estudo detalhado que empreendeu dos estágios de desenvolvimento da organização libidinal, deixou contribuições de grande interesse para a compreensão psíquica da tendência antissocial, expressa particularmente pela cleptomania. Mas a questão da tendência antissocial em sua obra não se restringiu às
12. Melanie Klein e a psicanálise da criança
A linha de desenvolvimento teórico que Melanie Klein inaugurou na psicanálise, tendo como base a análise infantil, foi de importância fundamental para o progresso de uma psicologia do desenvolvimento propriamente psicanalítica. Descrevendo a vida mental do bebê e a partir dela deduzindo uma série de mecanismos, a psicanálise kleiniana foi ao encontro da gênese e do desenvolvimento da consciência moral, ampliando, com a utilização de conceitos próprios, a teoria freudiana já expandida pela pesquisa de Karl Abraham, mestre e analista de Melanie Klein.
Para examinar o tratamento dado à consciência moral e às tendências antissociais por Melanie Klein, há que se recorrer aos pontos fundamentais de sua obra, que assinalaram suas diferenças em relação a Freud e marcaram o que de mais próprio e inovador existiu em seu pensamento. Trata-se de questões relativas ao complexo de Édipo precoce e à concomitante formação do supereu infantil, em um primeiro plano, e, em um segundo, do estabelecimento dos conceitos das posições depressiva e esquizoparanoide.
Melanie Klein formulou uma teoria do complexo de Édipo bastante diferente da de Freud. Para ela, a vivência do conflito edípico
13. Winnicott: “privação e delinquência”
O tratamento de pacientes que apresentam conduta criminal como manifestação psicopatológica sempre constituiu um desafio para a psicanálise, que nem sempre o aceitou como pertinente a seu domínio. Dentre os psicanalistas que se preocuparam em estudar a delinquência e as tendências antissociais, Winnicott foi um dos que mais se destacou.
Winnicott foi influenciado pela psicanálise de Melanie Klein, da qual utilizou conceitos importantes. Apesar disso, desenvolveu uma obra bastante pessoal e inovadora, que rompeu em muitos aspectos – alguns deles essenciais – com preceitos importantes da tradição kleiniana.
A noção de posição depressiva, postulada por Melanie Klein, teve grande importância na obra de Winnicott, principalmente em suas ideias sobre a gênese das tendências antissociais. Embora questionando a procedência do nome que Klein dera a esse conceito (Winnicott, 1966/1987, 1968/1989), utilizou-o na descrição dos estádios do desenvolvimento do bebê. É assim que certas características da posição depressiva aparecem na obra de Winnicott (1950/1982, 1963/1987) assimiladas ao conceito de estádio da
Neste livro, como o leitor apreciará, Flávio Ferraz atravessa cuidadosamente as produções freudianas, destacando aquelas que, autonomeadas ou não, permitem entender como a psicanálise contribui para o campo da ética; ou melhor, que conceitos psicanalíticos estão a compor o sujeito psíquico da consciência moral. Uma aproximação especial à ética, sem necessariamente fazer filosofia.
– Marlene Guirado
série
Coord. Flávio Ferraz