Grafias do sertão: travessias transdisciplinares Adriana Ferreira de Melo· Cássio Eduardo Viana Hissa..
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e etimologia controversa, a palavra sertão aparece nas primeiras cartas dos jesuítas no século XVI, utilizada para designar a área oposta àquela conhecida na época, o litoral colonizado. Desse modo, o interior do continente, como todo território desconhecido, foi preenchido de uma signi ficação ambígua, de atração e repulsa, lugar do maravilhos-o e do tenebroso, assim como foi o mar antes de se lançarem os reinos às grandes navegações. Tal significação foi utilizada para justificar as primeiras entradas nesse terri tório pelos jesuítas: lugar de riquezas, monstros, tentações e demônios, o ser tão era também, portanto, o lugar de almas evangelizáveis. Grafado pelo imaginário colonial, repleto de fantasias, o sertão foi se cons tituindo espaço de imprecisão, de extensões infinitas, imenso vazio, deserto, desertão - vocábulo do qual sertão seria derivado - a ser ocupado pelos inte resses e valores da Coroa Portuguesa. A vinda da família real para o Brasil, em 1808, fez despertar em diversos ci entistas, naturalistas, botânicos, pintores e desenhistas europeus um crescen te interesse pelo novo mundo que o país oferecia. Assim é que John Mawe, W Ludwig Von Eschwege, Spix e Martius, Saint-Hilaire, Richard Bmton, De bret, Rugendas, dentre muitos outros, nos fornecem, através dos registros de suas extensas viagens pelo interior do Brasil, um rico e minucioso painel dos costumes, das imagens e da culturà do sertão e do Brasil do século XIX. Desde a época colonial, o sertão vem sendo grafado por diversos cronistas, viajantes e escritores como Euclides da Cunha, os ficcionistas da segunda fa' Universidade Federal de Minas Gerais (Mestranda). ••Universidade Federal de Minas Gerais.
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se do modernismo, além de Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Tais grafias constituem um rico material de estudo desse espaço do desconhe cido, do vazio, do outro e do escuro, que permite o.seu preenchimento com a presença, do eu, da luz e da imaginação. Ao mesmo tempo, esse é um espaço de aridez e umidade, areias e veredas que criam os monstros, demônios e an jos das narrativas orais que se transformam no sertão e no mundo do sertane jo, homem capaz de hibridizar e, conseqüentemente, transformar ·o mito em mundo dito real. Produzido e organizado de formas diversas pela sociedade, o espaço esti mula também diversos olhares e discursos sobre os seus processos de estru turação. O discurso da Literatura, por exemplo, ao se ocupar das representa ções do espaço, muito pode contribuir para a ampliação das possibilidades do conhecimento socioespacial. Calvino (1988) já apontava c.om ênfase a importância da literatura para abordar problemas não solucionados, referentes à linguagem e aos discursos que circulam pela sociedade, como é o caso, também, daqueles desenvolvidos pelo conhecimento científico moderno. A ciência moderna é um saber que partilha discursos, de palavra hermética que pouco circula. Emergem as disci plinas, cada qual com o seu território demarcado a partir da definição de ob jetos e de métodos de análise supostamente particulares. Para além da emer gência das disciplinas, sublinha-se a magnitude do processo de fragmentação do saber: a ciência caminharia progressivamente para a hiper-especialização. Entretanto, para que a ciência moderna pudesse se constituir como tal, foi edificada contra os saberes populares, contra o senso comum, negando essas formas de conhecimento. Assim, a construção da ciência moderna implica o desenvolvimento de um discurso que pretende adquirir a supremacia sobre todos os demais: o das artes, o da literatura e da poesia, o das religiões, dentre tantos outros. O mundo é partilhado em objetos, cada qual pertencendo a disciplinas científicas aparentemente bem mais estruturadas para abordá-los. Tal partilha implica, entretanto, a fragmentação da palavra que lê o mundo. A ciência moderna, recortando a si própria, desafiou a complexidade, abando nando a filosofia, a literatura e as artes. A complexidade dos problemas enfrentados por qualquer campo do co nhecimento demanda a superação das fronteiras interdisciplinares edificadas pela modernidade. O ideal positivista de ciência - caracterizado pela busca da razão e pela negação do sujeito, da emoção, do sonho e da poesia - intensifica a crise dos saberes científicos modernos, culminando na reflexão sobre as fronteiras entre as disciplinas científicas e entre a ciência e a arte. A nova abor dagem, denominada transdisciplinar, questiona a rigidez das fronteiras inter-
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disciplinares, objetivando apreender a complexidade do mundo. "A comuni cação de textos e discursos dar-se-ia apenas através da interpenetração de epis temologias, da construção de uma epistemologia do complexo; dar-se-ia na prática, através da experiência dos próprios profissionais" (HISSA, 2002, p. 300). A despeito de não existir uma ciência denominada socioespacial, existem fragmentos do conhecimento socioespacial "dispersos e, muitas vezes, caren tes de um contexto de integração, de aproximação de discursos e de ruptura de fronteiras interdisciplinares" (HISSA, 2002, p. 285). O que se compreen de como conhecimento socioespacial absorve a literatura, já que ela assume e incorpora os mais diversos saberes, sendo disseminada através deles. Co nhecimento socioespacial: não há um núcleo, mas uma conjunção de saberes feitos de geografia, economia, literatura, sociologia, arte, psicologia e todas as humanidades. Entretanto, não se trata apenas disso. O conhecimento so cioespacial é a própria imagem da transdisciplinaridade que não significa ape nas a transposição dos limites entre as disciplinas científicas, mas também a transgressão das fronteiras edificadas pela própria ciência moderna. As ima gens socioespaciais evocadas pelo discurso literário, ainda que despretensio so, constituem-se em rico material de estudo das questões socioespaciais que, de um modo geral, estão dispersas nos interiores das diversas disciplinas cien tíficas. Essas próprias imagens são suficientes para estimular a reflexão sobre o contato �ntre diversos saberes: geográfico, popular, ecológico, filosófico etc. Num romance como o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, por exemplo, depara-se, com todos esses saberes, numa narrativa que revela as enormes possibilidades oferecidas pela literatura na interpretação da comple xidade do mundo: Sertão, - se diz -, o senhor querendo pr�curar nunca não encontra. De repente por si, quando a gente não espera, o sertão vem. Mas onde lá era o sertão churro mesmo, o próprio mesmo. [ ... ] Topar um vivente é que era mesmo grande rarida de. Um homenzinho distante, roçando, lenhando, ou uma mulherzinha fiando a estriga na roca ou tecendo em seu tear de pau, na porta de uma choça, de buriti toda. Outro homem quis me vender uma arara mansa, que a qual falava toda pa lavra que tem á. Outra velha, que estava fumando o pito de barro. Mas ela enro lou a cara no xale, não se ajuizavam os olhos dela. E o gado mesmo vasqueava: só por pouco acaso um boi ou vaca, de solidão, bicho passeado sem dono. [... ] Fal tava era o sossego em todo o silêncio, faltava rastro de fala humana. Aquilo me perturbava, me sombreava. (ROSA, 1986, p. 335) A multiplicidade de saberes com os quais trabalha a literatura e a flexibili dade das fronteiras entre real e imaginário, objetividade e subjetividade, tor nam viável e desejável a sua compreensão como forma de representação das questões socioespaciais. Cada campo do conhecimento traduz o espaço de
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acordo com suas especificidades. Entretanto, a tradução, sob as referências da modernidade,carrega as marcas, lentes específicas, tomadas como proprie-dade de cada uma das disciplinas. Ler as diversas traduções do espaço, numa abor dagem transdisciplinar, é fundamental para a apreensão da complexidade das questões socioespaciais (MELO, 2004). Leitura integrada, do que é tecido junto, do que é feito de complexidade: como dispensar a literatura daquilo que se pode compreender como conhecimento socioespacial - feito de ciên cia, de arte, de saberes populares? A compreensão do espaço concebido por um imaginário social demanda uma reflexão sobre suas dimensões simbólica, ideológica, política e cultural. Estudar, portanto, as representações que os homens estabelecem sobre o seu espaço, a partir do discurso literário do romance, é uma maneira de consti tuir, reconstituir e compreender a cultura de um povo. Considerando a paisagem um elemento fundamental do espaço - resulta do da ação da cultura, ao longo do tempo-, um trabalho que pretende estudar as representações do espaço no discurso literário do romance não pode pres cindir da reflexão sobre essa categoria socioespacial, transdisciplinar por natu reza. Na paisagem está a escrita do sertão, grafado pela cultura, anunciado pe lo romance, lido pela ciência. Há que se considerar, entretanto, que o romance apresenta uma forma es pecífica de representação do espaço. A paisagem que o escritor constrói é de terminada pelo seu olhar e sua experiência do espaço, assim como aquilo que o leitor apreende é também resultado do seu olhar e de suas vivências. Por tanto, os valores simbólicos e subjetivos são imprescindíveis para a compre ensão do espaço, já que ele é a expressão do sentido que um determinado gru po social confere ao seu meio. Assim é que a representação de paisagens, mais que um exercício de des crição a partir da percepção de um determinado olhar, é um exercício de produ ção de sentidos. Mais que extensão de país (terra), mais do que a porção per ceptível do espaço, a paisagem é aparência e representação - a mediação entre o mundo das coisas e dos objetos e o mundo da subjetividade humana. Ela po de, portanto, assumir diferentes formas e significados, de acordo com o olhar, a emoção, o estado de espírito e a cultura do observador e do interlocutor. Para Guimarães Rosa,"(...) sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar" (ROSA, 1986, p. 17). O escritor parece ter antecipado a discussão realizada atualmente de que a percepção ou a des crição da paisagem, mais que um estado do lugar, expõe um estado da alma, do pensamento. Alma que "carece de ter coragem", além de muita sabedoria e astúcia para sobreviver ao "poder do lugar", às provas e aflições impostas por
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uma terra rude, cruel, áspera, árida e inóspita. Terra de escassez de recursos e de palavras, terra de guerra e solidão: O que era, no cujo interior o Liso do Suçuarão? - era um feio mundo, por si exa gerado. O chão sem se vestir, que quase sem seus tufos de capim seco em apraz e apraz, e que se ia e ia, até não-onde a vista não se achava e se perdia. Com tudo que tinha de tudo. Os trechos de plano calçado rijo: casco que fere faíscas - ca valo repisa em pedra azul. Depois, o frouxo, palmo de areia de cinza em-sobre as pedras. E até barrancos e marretes. A gente estava encostada no sol. Mas, com a sorte nos mandada, o céu enuveou, o que deu pronto mormaço e refresco. Tudo de bom socorro em az. A uns lugares estranhos. Ali tinha carrapato [... ] Que é que chupavam por miudinho o seu viver? (ROSA, 1986, p. 448) Sertão é universo. Sobre a sua natureza pode-se pensar que se trata de um todo coerente, apenas aparentemente contraditório. O sertão é complexo, ele conduz o pensamento para um sistema de idéias associadas, de imagens vivas em interdependência e de difícil apreensão. O sertão é um sistema complexo feito de representações interligadas que constitui um todo: preenche todos os interiores e, mesmo fornecendo a imagem do vazio, ocupa todos os espa ços subterrâneos. Sertão é conjunto, é relação de trato difícil. O sertão está em toda parte, ele é o todo. O sertão é o composto, feito de relações e de conjuntos. É aridez e vereda, nem uma, nem outra apenas. É a luminosidade e as sombras que se comple tam. O sertão é feito do complexo, é a emergência da obscuridade, da priva ção da, clareza. Feito do múltiplo e do complexo, o sertão é factível de ser apreciado e temido sob um sem fim de ângulos: afastado, extremo, confim. O sertão é feito de esquinas, ângulos, encontros e distanciamentos, transições, fronteiras. O sertão longínquo é, contudo, a travessia constante. Sertão é fron teira, fazendo-se de limite, é passagem, ·abertura. Sertão, fronteira, transição é o espaço da mistura, da mestiçagem, do hibri dismo. O sertão, simultaneamente, é o estar e o não-estar, o pleno e o vazio. O sertão é o ser e o não-ser. O sertão é distante, mais além, inatingível e, to cado, contraditório, próximo é o que cada um carrega em si, como se nada fal tasse, como uma plenitude de vazio, tudo e nada. É o interior de cada um, o interior da humanidade. A sua natureza físico-biológica é apenas representa ção do que cada um carrega em sua condição humana. Híbrido: árido e úmido, interior e litoral, frágil e soberbo, deserto e pleno. Não há dicotomia, contudo. A mistura constrói o sentido do sertão. Ele é o deserto e a vida, simultaneamente, miragem e realidade, fim e sempre reco meço. É a aridez que reclama pela umidade, o sol que pede sombra. O sertão é a transição: física e biologia, homem e humanidade. · Grafar o sertão pelo verbo é procurar a representação da complexidade do
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mundo. Escrever o sertão é construir imagens sobre os interiores, subterrâne os feitos de complexidade. Adjetivar o sertão é procurar pela inexistente pala vra autônoma, pelo verbo independente. A qual linguagem recorrer, a qual saber? A representação do sertão é feita da mistura de verbos. Os sertões não são apenas vários, como são, sobretudo, feitos de tudo, de um todo comple xo. Sertões-sertão: encaminhar significados para a palavra é pensar no que é feito de mistura. Se não foi sempre assim, da história contemporânea emergem as invisibili dades, as complexidades inatingíveis pelos saberes feitos da estéril objetivida de, da vazia e impotente lente disciplinar fragmentada da hiper-especializa ção. Não há como ver o sertão, feito de armadilhas, interiores, vazios e sub terrâneos. Não há como grafá-lo com o verbo da ciência moderna, tal como a adjetiva Santos (1987, 1989, 1994, 2000). Os conjuntos complexos deman dam sempre leituras transdisciplinares. Atravessar o sertão com a palavra é uma travessia feita de grafias transdisciplinares. Para que seja saber, a ciência é, por natureza, transdisciplinar (MORIN, 1999a). Mas o que é a ciência, que percorre o seu curso no sentido da hiper especialização, senão a própria negação do saber? Ainda que tenha produzido conhecimento, elucidação, a ciência moderna, dedicada à distância para ver melhor, disseminou mais ignorância e cegueira. Não se vê o vazio do sertão e o interior dos homens. Não se elucida a natureza dos subterrâneos da huma nidade, da distância entre os homens. Como pode existir (para a ciência hiper especializada, disciplinar, fragmentada) o complexo feito de um sertão de to dos os cantos, feito do que está tecido junto? Como imaginar as veredas sem a aridez? O verbo da disciplina, a palavra do fragmento de saber, transforma do em vazio, é ponto perdido no deserto. O movimento da palavra transdisciplinar é tão estrangeiro como o sertão é desconhecido. A palavra híbrida, mestiça, feita da ciência e de todos os sabe res, é frágil e sutil. A palavra transdisciplinar é como a escrita rosiana que gra fa o sertão, partes feitas de um todo. Ciência ou literatura? Ciência e literatu ra. Todos os saberes residem fora de seus domínios. Todas as magistrais obras da literatura são leituras da complexidade (MORIN, 1999b). Da literatura emerge o valor cognitivo da metáfora, desprezada pela ciência convencional e pelos valores que conduziram à hiper-especi�lização. Uma metáfora desperta a visão ou a percepção que haviam sido convertidas em clichês (MORIN, 1999b, p. 96). Palavra mestiça, palavra substituta, a linguagem metafórica é a do saber que procura ler a complexidade e grafar as imagens do sertão.
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