Sobre o ensaio

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CÁSSI O E. VIANA H ISSA ADRIANA MELO

SOBRE O ENSAIO Tu és a história que narraste, não o simples narrador. Carlos Drummond de Andrade

I O PONTO E A PAUSA: LUGAR SEM MAPA

ADRIANA MELO: Começo pela pausa, o ponto fértil que você menciona em A mobilidade dasfronteiras, 1 numa belíssima relei­ tura de "O ensaio como forma",2 de Adorno. O ponto final do ensaio representaria o lugar de origem, do nascimento da reflexão e �as palavras que a representam. Uma pausa apenas, em vez da pretensão de um acabamento definitivo. Um silêncio eloquente. O eterno devir da linguagem, dos conceitos de um mundo perma­ nentemente em construção. Espaço de algo a ser continuamente experimentado e, portanto, transmutado, transcriado. Lugar sem mapa cujo percurso, desenhado e redesenhado por um incessante devir, redefine trajetórias de partida e de chegada, aproximando fim e início, desordenando e desalojando significados cultu­ ralmente construídos e estabelecidos. Significações impostas e repetidamente recitadas durante séculos por uma cultura fundada no pensamento moderno, ela qual a "cultura acadêmica" não escapou, acabando, ainda, por compor parte do coro. Gênero, por excelência, da experimentação, da liberdade da criação, lugar-texto onde a subjetividade e a poesia são bem­ -vindas, por isso mesmo o ensaio não é considerado científico,


ainda que sua natureza seja definida como híbrida, misto de ciência e arte. Trata-se de um texto em que se trabalham minu­ ciosamente os conceitos do mundo dos saberes, dos projetos de pesquisa, com uma espécie de "concessão" à linguagem, que aí. nesse gênero, estaria livre das regras rígidas dos textos acadêmicos convencionais, como o artigo, por exemplo. Tal "concessão_ inviabiliza completamente, p01tanto, do ponto de vista do tradi­ cional modelo acadêmico moderno de ciência, a inclusão desse gênero na pretensamente objetiva e sisuda família dos textos ditos científicos. Basta folhear os novíssimos manuais de produção de texto científico para constatar a ausência desse gênero em suas páginas. No máximo da concessão, se aceita nas faculdades de letras, nas subáreas de literatura, um ensaio como trabalho final de curso ou uma disse1tação-ensaio, uma tese-ensaio, afinal a literatura é a1te, não é ciência. Apesar disso, quando se trata de fazer crítica literária, recomendam algumas academias, ainda que de letras, que o texto seja "científico". As ciências, pluripartidas. adjetivadas em humanas, naturais, exatas e seus múltiplos desdo­ bramentos, não admitem até hoje a legitimidade do ensaio no mundo da produção acadêmica. CAss10 E. VIAKA HissA: Agradeço a generosa leitura que faz do rrieu trabalho. As suas anotações me motivam a repensar ideias desse exercício que, mesmo sem o consultar - porque, ainda que passado tanto tempo, não o reli com o necessário cuidado de quem deseja se reencontrar -, tenho a sensação de que, por outros caminhos, intuitivos, sempre a ele me recorro, noutros escritos, para que o estenda, ilumine as ideias nele contidas. Os pontos são como pausas que, na música, por exemplo. são representados pelo silêncio. Não há música sem silêncio ou texto sem pausa, sem o silêncio eloquente, como você diz. No texto ainda há a musicalidade e o ritmo que, sem pausa, perdem a sua existência. Sobre o último ponto, sinto que é encaminhado mesmo para dizer que é preciso estabelecer uma pausafinal. Uma contradição que, de fato, é, aparentemente, o derradeiro golpe em todas as pausas, até nas invisíveis, naquelas que, também, são criadas pelo leitor que interpreta, reescreve. A partir daí, nos entregamos ao pensamento ainda mais livre e aberto, e nos dirigimos às trajetórias que sequer estão visíveis nos escritos para os quais se encaminha um ponto final. Reescrevemos o livro, não exatamente 252


como leitores, e tampouco como escritores, mas como sombras ou fantasmas elos nossos próprios pensamentos que poderão ter lá ficado, armadilhados ao ponto final. Tenho, inclusive, pensado . mais, a partir daí, servindo-me dos textos que escrevo. Não é sem motivo, por exemplo, que o livro Saberes ambientais tem a pretensão de formalizar a continuidade de algo sem fim, iniciado ao desfecho de A mobilidade dasfronteiras. 3 Trata-se, portanto, nesse caso, da expressão da nossa incompletude que se expressa por diversos caminhos de pensamentos e de escritos. Admitir isso, no meu entender, é já admitir que o ensaio seja mesmo o gênero que poderá mais bem servir aos meus desconfortos, às minhas ausências de convicção em processos sobre os quais nos dizem que deverão encontrar o irremediável limite. É bastante rica a analogia que você constrói e que nos auxilia a discutir a questão: o ponto final é lugar sem mapa. O lugar sem mapa é, contudo, aquele cuja existência só faz sentido enquanto movimento na direção de cartografias. Ponto e lugar, andarilhos. É lugar-movimento em busca daquilo que o faria existir como lugar em mapa. Mas não há cartografias que o acolha, pois ele é movi­ mento, fronteira em si. O ponto final, a pausa, é a expressão do movimento e, como tal, encontraria apenas cartografias moventes. É mesmo daí que emerge a ideia do movimento criativo, fértil. Faz-me pensar em outros pontos que não são assumidamente finais. Falo, aqui, dos pontos que distribuímos ao longo do texto de modo a permitir, também, compreensibilidades: a nossa, sobre o que pensamos, ao ler o que escrevemos; a do outro, o que nos lê e nos observa os pensamentos - ele, o outro, e a sua interpretação, tão necessários ao texto quanto nós mesmos. Nessa situação, o ponto ocupa um lugar nessa cartografia textual com um significado e um propósito bastante específicos: ele nos permite caminhar na direção da exatidão, como nos escreve, por exemplo, Italo Calvino. 4 Imagina-se que a mais dura e exata de todas as ciências teria dificuldades de admitir tal situação. Porque há uma incompreensível confusão que se faz entre a ex:atidão elas palavras e a pretensa exatidão da ciência tida como mais exata. É necessário ser preciso, na escrita, pouco importa se o que produzimos é arte ou ciência, até mesmo quando desejamos expressar o exato, o seu oposto, ou a ambiguidade. Os pontos, em um texto, são como as palavras, são repre­ sentações e têm funções em nossas vidas. Talvez até pudesse interessar que se pensem as pausas como o que dá sentido às 2 53


representações, ao verbo. É preciso pensar, com pausas, ao escrever. Do mesmo modo, é preciso pensar, quando se lê, para reescrever. Portanto, a pausa é um pressuposto e, desta maneira. deve mesmo ser assim compreendida, tal como você nos motiva a pensar, como o lugar do movimento. Poderíamos imaginar que todo o texto é iniciado por uma pausa: a página em branco, a primeira página, seria a representação da pausa ou de um ponto final que antecede a primeira palavra a ser escrita. No entanto, a página em branco, a primeira, é uma metáfora. A partir do instante em que se preenche tal primeira página, já se pode dizer que ela jamais foi a primeira. A primeira página, já escrita, é sempre a expressão de que houve uma anterior: a que nos motiva a escrever. Trata-se de uma pausa invisível, fé1til, que nos retira da inércia. Sinto falta de tudo isso, na ciência, na universidade. Percebo a presença de uma lacuna, de um vazio. Um desperdício de poder argumentativo, presente mesmo nas teses que rejeitam· o ensaio por julgarem-no gênero marginal, impreciso, subjetivo. em que há um excesso de presença do sujeito. MELO: Da mentalidade cientificista do século XIX não escaparam nem mesmo as artes plásticas e a literatura, com sua Escola Realista. Com formas, cores ou palavras, a ideia era docu­ mentar a realidade, como se ela fosse única, concebida talvez por um ser superior, onipotente, um Deus, aquele que pintava, escrevia, esculpia. Ou pelo menos nem mesmo as artes plásticas e a literatura pensaram escapar, com raríssimas exceções para artistas, como, por exemplo, Monet e escritores, como Machado de Assis e talvez muitos outros que nunca pudemos conhecer. A arte desejando ser ciência asséptica, objetiva, imparcial? Acreditando na morte do sujeito? Uma máquina de fazer arte? As ciências são capazes de produzir máquinas de fazer ciência? Uma ciência sem sujeito? No limiar do século XXI, quando, há muito, essas questões foram resolvidas nas artes, eis que nos deparamos ainda com uma ciência que insiste em exilar o sujeito e, no limite, desqualificar e desconsiderar a existência de determinados sujeitos: todos aqueles que, a despeito dos seus saberes, foram desautorizados a participar da produção da ciência compreendida de acordo com os paradigmas da modernidade. Uma ciência que não sabe de si o significado de seu nome? Se a modernidade representa para as artes .a consciência da insubordinação do sujeito, de sua condição inalienável, manifestada nas mais diversas linguagens, produtoras

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de sujeitos outros ou eus desconhecidos, para as ciencias ela representou o oposto disso. A postulação do inconsciente, 5 dentre muitos outros eventos nascidos ainda no século XIX, representa a impossibilidade do exílio do sujeito no texto, a ampliação da consciência de todo um modo de pensar o mundo segundo o qual não há como dissociar o sujeito de si, da linguagem, da vida. A consciência de que não nos conhecemos, ao mesmo tempo em que nos assujeita, confirma em nós a nossa condição de sujeitos inalienáveis, ce1tamente múltiplos, representados e revelados pela linguagem. O que não seria mediado pela linguagem? CÁss10 E. VIANA HissA: Talvez seja mesmo uma teórica linha divi­ sória, uma linha-limite e, quem sabe, uma linha-limite aparente­ mente desprovida de fronteira. Uma linha-limite feita de tempo, de história e de cronologias. Diferente de uma linha-cerca, uma linha-relógio. A que nos permite perceber a separação entre a arte e a ciência, circunstancialmente, através do exílio do sujeito. Entretanto, como você observa, percebe-se que há dissonâncias na arte. É bem correto, contudo, avaliar que há, também, ressalvas na ciência. O curioso é que as ressalvas contemporâneas na ciência fazem a maioria na arte desde muito tempo. São situações opostas, ainda que possamos perceber processos de canonização, também, no ambiente, já muito mercantilizado, da arte. Não há, contudo, uma máquina de fazer arte. Não há uma arte inumana. Não há, também, entretanto, uma ciência inumana. Contudo, o desejo, explicitado pela prática, é o de construir uma ciênda não somente distante da arte, mas, sobretudo, paradoxal­ mente, distante do sujeito que a produz. Decorre daí a construção de uma distância derivada: a que separa a arte-ciência do conhe­ cimento científico. A ciência é arte, mas, para que ela se afirme, constrói o discurso da negação da arte. O discurso não é convin­ cente. É artificial. A prática, do mesmo modo, é artificial. Porque o sujeito do conhecimento está no seu texto, mesmo que deseje a invisibilidade. Ele é a leitura do mundo que constrói para o seu leitor. Ele é a interpretação ou a representação do mundo por ele construída. A incompreensão do texto da ciência apenas atesta a incapacidade de comunicação ou de diálogo do sujeito do conhecimento. Trata-se, sobretudo, da manifestação da precariedade da formação do intérprete que se apresenta como alguém que, distante, produziu algo por ele denominado de análise. Ele apresenta um álibi, para o leitor: não se compreende

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porque se ignora o que se aborda e como se interpreta. A ciência moderna, portanto, ainda se recolhe em um argumento de poder que a todos desqualifica: para que seja científico, o texto da ciência não necessita ser compreendido. Reafirmo, aqui, a ideia a ser explorada: a ciência que nega a arte perde sabedoria e, consequentemente, capacidade argumentativa e poder de conven­ cimento. Como conceber uma ciência esvaziada de poder de convencimento? Estamos nos referindo à ciência, quando nos referimos a esse exercício que abandona a linguagem - por temer que a linguagem lhe retire a condição de ciência -, de modo incondicional, sem restrições, que lhe conceda melhores situações para interpretar e se fazer compreender? Não há ciência sem linguagem. Porque a ciência deverá ser a compreensão do mundo que permite a compreensão de muitos e, progressivamente, de muitos mais. Mno: Como se pudesse existir algo fora da linguagem. Ao erigir para si uma torre pretensamente refratária à subjetividade, à parcialidade, à proximidade, ao contato, a ciência moderna criou também uma língua distinta da língua das artes, por isso, não participou do debate sobre o mundo sob representação. Línguas intraduzíveis, torre de babel. Em contrapartida, neste tempo em que assistimos à radicalização ela modernidade, estaríamos assis­ tindo também finalmente à emergência ele uma nova ciência, a uma transição paracligmática. 6 O paradoxo é apenas aparente. pois o que se produz é a tradição da ruptura, para lembrar Octavio Paz.7 É nesse cenário de radicalização da modernidade. no que diz respeito aos modos de vida, que se produzem também as contradições, os limites a essa ordem e sua possibilidade de superação. A intensificação do desenvolvimento da técnica e ela ciência - essas, aliadas e alimentadas pelo progresso do capital - produziu a poderosa tecnociência, empresa a serviço de poucos e condutora de processos cada vez mais produtores de desigualdades sociais. Se, no século XIX, a ciência separou sujeito e objeto, no século XXI, a tecnociência, com suas próteses. inclusive de sensibilidade, ameaça alienar, e já aliena, não mais o sujeito, mas o próprio homem de sua condição humana. 8 �::. contramão dessa ordem hegemónica, insurgiria uma nova ciência.. capaz de reconhecer os sujeitos silenciados, ele restituir-lhes :i yoz, ele devolver-lhes a condição humana? Essa é uma busca n:: qual acreditamos. A própria modernidade, tal como o modo de

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produção econômico que a eng1u, fabricando sua capacidade de reprodução e ocupação de espaços políticos, cria também as suas contradições que conduzem ambos, modernidade e modo de produção, ao seu próprio limite. A questão é que são elásticos os limites. A não ser no momento mesmo em que se manifestam num conjunto mais coeso, nunca se sabe qual é o derradeiro limite, aquele que vai se abrir em fronteira, passagem para novos espaços. Assistimos diariamente à intensificação da produção de limites dessa modernidade radicalizada e esses vão se acumulando, radicalizando também, assim, inadvertidamente, seu modo de existência no tempo-espaço contemporâneo. Progres­ sivamente, isso produz mais contradições, fabricando um barril de pólvora recorrente em todos os tempos/espaços. Pólvora­ -metáfora com seu poder de mimetismo e metamorfose ao longo do tempo. Volto ao ensaio. Estética de "perenizar o transitório", de "desafiar o ideal da certeza livre da dúvida", lugar-texto onde o "pensamento se liberta da ideia tradicional de verdade e, com isso, suspende o conceito tradicional de método", como quis Adorno, seria o ensaio o gênero mais apropriado ao registro das reflexões da ciência, ao contrário do que se propõe ainda hoje nas universidades. O ensaio seria, principalmente, o gênero mais apropriado a uma nova concepção de ciência, como você anuncia e denuncia em A mobilidade das fronteiras. 9 É preciso reconduzir Montaigne ao debate: Bem sei que me ocorre, não raro, falar de coisas que são melhor . e mais precisamente comentadas pelos mestres do ofício. O que escrevo resulta ele minhas faculdades naturais e não do que se adquire pelo estudo. E quem apontar algum erro atribuível à minha ignorância, não fará grande descoberta, pois não posso dar a outrem garantias acerca do que escrevo, não estando sequer satisfeito comigo mesmo. Quem busca sabedoria, que a busque onde se aloja; não tenho a pretensão de possuí-la. O que aí se encontra é produto de minha· fantasia; não viso explicar ou elucidar as coisas que comento, mas tão somente mostrar-me como sou. Talvez as venha a conhecer a fundo um dia, ou as tenha conhecido, se por acaso andei por onde elas se esclarecem. Mas já não as recordo. Embora seja capaz de tirar proveito do que aprendo, não o retenho na memória; daí não poder assegurar a exatidão de minhas citações. Que se veja nelas, apenas, o grau de meus conhecimentos atuais. 10

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Ciência, saber despretensioso, livre de certezas, multiplicador de dúvidas, ponto-pausa para reflexão, moto contínuo para novos estudos, pesquisas. De que universidade estaríamos falando? CÃss,o E. VIANA HrssA: Acredito que vivemos um período de tran­ sição epistemológica, e, em princípio, também poderia acreditar que os tempos são feitos de transição, ao longo ele toda a história, e tal situação bem reflete a nossa condição humana. A transição é transição para nós, tal como nós a desejamos e dela necessi­ tamos, assim como a interpretamos e a fabricamos historicamente. Percebemos a transição tal como a nós mesmos em movimento no contexto histórico em permanente desenho. Rabiscamos o movimento ela história no presente. Será incompreensível dizer que somos, simultaneamente, passados, presentes e futuros vividos e imaginados? Digo todos os tempos no plural porque selecionamos momentos em todos os tempos. Assim, contextu- · alizados, coletivamente, somos, ele alguma maneira, portadores de passados, de presentes sobre os quais transbordam futuros. O nosso discurso parece ser invadido por um toque ficcional? Vivemos o futuro no presente? Os historiadores, para que se percebam produzindo ciência, necessitam de distanciamentos temporais e, do presente, voltam os seus olhos para o passado. Assim, os historiadores convencio­ nais percebem as transições. Entretanto, a arrogante percepção analítica, dita científica, também produzida por muitos historia­ dores, está sempre irremediavelmente amarrada ao presente. A imagem que construímos do passado é condicionada pelo que vivemos no presente. Portanto, penso a existência, apenas, da história contemporânea. Não me convence o referido distancia­ mento e, tampouco, frente a tais argumentos, me conformo com a impossibilidade, proferida por historiadores, de produzirem a história do presente. Assim, não desenvolvo constrangimentos ao dizer que vivemos afronteira, ainda que tal situação poderia ser a de todos em todos os tempos. Entretanto, a fronteira vivida por nós poderá ser completamente distinta da fronteira vivida pelos medievais na passagem para o capitalismo. O que está em jogo é bastante diferente, como se sabe. A radicalização da crise produz, ao longo das últimas décadas, a construção histórica de um desejo que a todos passa a contaminar. A transição, po1tanto. não é apenas um processo histórico à parte ele nós. A transição é um desejo nosso porque é necessário, no mínimo, sobreviver_ 258


Estamos fabricando a transição ao longo dos últimos 50 anos. A radicalização da modernidade nos movimentou na direção da fronteira e das utopias transformadoras ou da transição. Você registra que, no momento, assistimos à radicalização da modernidade. Sucumbimos: sentimo-nos mais atraídos pelas promessas da modernidade do que rejeitamos o modo de viver que nos desabriga. Isso significa que, com a radicalização do terror, também emerge um modo de viver que produz perplexi­ dades e que nos faz perceber, com claras imagens, entre nós, a barbárie, o pânico, a indiferença, o fascismo social para, aqui, novamente, utilizar uma irretocável expressão de Boaventura de Sousa Santos. 11 Levamos adiante a expectativa dos sucessos individuais e nos preparamos permanentemente para uma compe­ tição que se dá entre todos. Não percebemos que a destruição do outro é a nossa destruição. Poderíamos afirmar, contudo, que à intensificação da radicalização conservadora corresponde a inten­ sificação da crise e da proximidade da transformação. Há sinais de transformações, mesmo que elas sejam processadas a uma velocidade inferior àquela referente à radicalização conservadora, e ainda que seja mais perceptível a hegemonia conservadora a fazer sombras em nossos desejos e movimentos. Há motivos para se pensar assim. Você diz que já se dissemina a sensação de alienação do homem da sua condição humana. É como se estivéssemos em um estado de permanente guerra. Deveria ser mais importante perceber que estamos em guerra contra nós próprios, com o nosso modo de viver. Precisamos da pausa para reconstruir a vida e para fabricar utopias. É preciso pausa que nos permita pensar e cultivar a dúvida. A recondução de Montaigne ao debate é a reconclução da sabedoria que se constrói a partir da qualificação da dúvida. É como se substi­ tuíssemos Descartes por Montaigne ou, mais precisamente, é como se conferíssemos a Montaigne, finalmente, o que jamais poderia ter sido de Desca1tes. Nesse sentido, o trecho de texto que encaminho é representação do que penso acerca do ponto que se discute: Penso que hoje somos mais tributários de Montaigne do que de Descartes. Vivemos em um ambiente descentralizado, fugaz, centrífugo, que nos aproxima cada vez mais da necessidade de uma "epistemologia" como a de Montaigne. Mas não o reco­ nhecemos, porque Michel de Montaigne não produziu uma filosofia passível de se transformar em doutrina. O pensamento 25 9


de Montaigne não produziu doutrina - portanto, não produziu poder. Permaneceu como se fosse uma corrente fraca do pensa­ mento ocidental. Ou como uma corrente subterrânea, que nos acompanha - como desejo inconsciente - sem que a razão se aperceba dela. 12

É desejo nosso e exatamente por tal motivo que se caminha nessa direção. Há aberturas, já, para isso. Não apenas nas huma­ nidades, nas ciências humanas ou sociais, mas em todas as áreas do conhecimento já identificaIT,los personagens que, sujeitos do conhecimento, autores paradigmáticos, nos apresentam um inovador, crítico e criativo modo de interpretar o mundo perfei­ ta mente compatível com um novo modo de viver. É uma potência que se dá nas minorias que me faz crer na livre e aberta ideia de universidade que, como sempre tenho dito, resiste a partir dos seus interiores, através de territórios de criatividade, de reflexão. e de crítica: territórios de resistência. Ainda quanto a Montaigne, poderíamos reafirmar que o gênero de escrita interpretativa que mais está adequado à transição anunciada é o ensaio. Trata-se da palavra aberta à dúvida, ao erro, ao acaso, pleno de eu e vivências, repleto de cotidianos. Isso já havia sido discutido por muitos, e já faz muito tempo, como, por exemplo, por Blaise Pascal (1623-1662): "A maneira de escrever de Montaigne e de Salmon ele Tultie é a mais eficiente, a que melhor se insinua, a que fica na memória, e é a mais citada, porque se compõe toda de pensamentos surgidos das conversações ordinárias ela vicla." 13 Talvez, também por tal razão, o gênero ensaístico esteja mais próximo da ciência que se quer plena de vida, de mundo, do cotidiano elas pessoas: uma ciência mais prática, também, e, sobretudo, repleta de sabedorias e de experiências que jamais poderiam ser desperdiçadas como são na universidade moderna. 14

II DA LIBERDADE, DA IMAGINAÇÃO E DA IMPROVISAÇÃO ADRIANA MELO: Na contramão da racionalidade imposta pelo pensamento da ciência moderna, seria a liberdade ela criação, elo improviso, ela imaginação a ponte a transpor o abismo dos 260


limites pretensamente racionalizantes do texto, a transformá-los em fronteiras, lugares de contato, da forma como você vem desen­ volvendo há muito esses conceitos. Sem limite, não há fronteira. É, portanto, precisamente este limite, a impossibilidade de desvin­ cular a linguagem da imaginação, a despeito do que acreditou o racionalismo cientificista do século XIX, a sua própria condição de transcendência, de transposição: de obstáculo à ponte, ele limite à fronteira, abertura. O ponto final do texto é, pois, a represen­ tação elo limite que se transforma em fronteira, o aparente limite que carrega em si a sua essência de fronteira. O desejo de razão pura, ponto-limite, transforma-se em ponto de passagem a partir elo exercício da criatividade, da improvisação, da surpresa, da incompletude, efervescência ela viela. Como a pausa que suspende a narrativa e alimenta o desejo de conhecer o novo, o inusitado, o incerto, o obscuro onde tudo pode tomar qualquer forma e função ou não ter forma ou função alguma. Imagina-se o mapa sem traçá-lo, pois o primeiro traço cartográfico ela escrita já se desloca, muda ele direção, dissolve-se para ele novo se escrever e, assim, infinitamente, de múltiplas formas, como as histórias elas Mil e uma noites. É a sedução da incerteza que garante a vida elo texto, sua fertilidade. Seduzir, cio latim seducere: "levar para o lado", "desviar elo caminho". "O extremo desse desvio (ou sedução) se chama poesia", nos diz Leyla Perrone-Moisés. 15 Há linguagem mais exata, mais precisa, mais rápida, tal como Calvino define a rapidez, 16 que a linguagem ela poesia? Entretanto, ela seduz, desvia-nos elo caminho. A exatidão da linguagem poética não se confunde com a fixidez, com o estático. Na palavra poética, o ponto é móvel e nos mobiliza: desviando-nos elo caminho, convoca-nos a visualizar novos caminhos. Não há um caminho a seguir, não há um mapa. O contínuo e infinito percurso requer leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consis­ tência, valores que "só a literatura com seus meios específicos nos pode dar". 17 Se há um ideal ele ciência, o gênero ideal ele seu registro é o ensaio, com sua linguagem híbrida, capaz ele conciliar leveza com densidade, multiplicidade com concisão, precisão com imprecisão, complexidade com clareza, simplicidade com consistência, ciência com arte. A ideia da legitimidade do ensaio no mundo da produção acadêmica, uma das teses fundamentais que você desenvolve em A mobilidade das fronteiras, deveria ser mais difundida, assim como a da inclispensabiliclacle da literatura, ela ficção, da poesia, na construção ela ciência, ela vida. 261


Toda ficção baseia-se naquilo a que chamamos realidade e toda "realidade", por sua vez, tem como base a ficção de cada um de nós e da coletividade de um tempo-espaço específico no qual estão presentes nossas formas de ver e experimentar o mundo. Leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consis­ tência, propostas de Calvino para a escrita deste novo milênio cuja velocidade cada vez mais intensa, uma das imposições da radicalização da modernidade, exige narrativas simultaneamente breves e múltiplas ou rápidas e consistentes. Um dos paradoxos dessa radicalização das condições e comportamentos da moder­ nidade é a incompatibilidade da rapidez da escrita e da viela com a pressa imposta como modo ele vida pelos fluxos cada vez mais vertiginosos, de capitais, produtos, comportamentos e sujeitos, produzidos pela tecnociência. CÃss10 E. VIANA H1ssA: A impossibilidade, o limite, de desvincular a linguagem ela imaginação, como mesmo se adianta, é a fron­ teira que permite pensar a ciência como arte que se desenvolve a partir ela abertura que arrasta limites burocráticos, corporati­ vistas e normativos. O que divide é precisamente o que religa. Reconheço, desde já, a insistência que se apresenta, nos textos, como uma repetição: a ciência é a arte que se obriga a negar a sua condição de arte de modo a permitir que a percebam como ciência. Entretanto, o renegado caráter de arte da ciência, em determinadas circunstâncias, insidiosamente, deixa-se mostrar no texto, ora através do sujeito que se mostra, ora no método que ele utiliza para compreender o mundo. Assim, todo aparente limite, como as pausas, provoca o movimento que habita a fronteira. É um movimento feito de criatividade, de improvisação, de intuição imaginativa. Não sei se poderíamos pensar exatamente nesses termos: um movimento que nos leva a conhecer o novo. Talvez, redesenhar novamente, sempre noutros termos, a partir do referido movimento, sempre a se refazer através do que já está posto. Esse exercício criativo deveria seduzir e convencer, a partir do poder da linguagem que não se pode desperdiçar. Seducere. é precisamente do que necessita a ciência para dese­ nhar argumentos, para construir a interpretação convincente, a que desloca, fascina, encanta. A linguagem poética é a que desloca com rapidez, com aquele movimento inesperado, que seduz. Entretanto, a ciência moderna julga-se com o poder de explicar a 262


realidade e de predizer: digo como é a realidade e para onde vai o seu futuro. "Para mim, o importante é compreender. Para mim, escrever é uma questão de procurar essa compreensão, parte do processo de compreender (. ..)." 18 A ciência deveria tomar para si o propósito de compreender o mundo, no sentido em que Hannah Arendt emprega a palavra: "(. ..) espaço onde as coisas se tornam públicas, (...) o espaço onde a pessoa vive e que deve parecer apresentável. Onde surge a arte, claro." 19 São ideias estranhas ou rivais: se penso a ciência como a compreensão do mundo, como se pode conceber a existência coerente desse conhecimento que dispensa ser compreendido? As perspectivas são muito diferentes: a de realidade explicada; a de vida e de mundo compreendidos, lidos, interpretados, representados, criados. Será preciso poten­ cializar a utilização da linguagem de modo a permitir uma ciência verdadeiramente crítica: a arte de criticar o mundo e que (re) significa cada de um de nós - em termos políticos, éticos e esté­ ticos - em todos nós. Desta vez, ainda me sirvo de um trecho de Octavio Paz que fortalece os nossos argumentos: A crítica é, sobretudo, um ato de amor. Por isso não é uma ciência, é uma arte que se conhece através do amor. Um conhe­ cimento que é, por isso mesmo, uma recriação, uma reinvenção elo texto. A crítica é ciência e é arte, é conhecimento e recriação. Seu fundamento, sua origem, é o prazer. Quando esse prazer se transforma em paixão, nasce a grande crítica que se converte em verdadeira literatura. Alguns grandes escritores modernos foram excelentes críticos . Entre os de língua espanhola lembro três: Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez e Jorge Luís Borges. 20

A legitimação do ensaio no mundo acadêmico é o movimento de qualificação da linguagem que potencializa argumentos. A literatura deve ser convincente, assim como o cinema, as artes plásticas. A linguagem literária é a da sedução e a do convenci­ mento. Como conceber que a linguagem científica não seja a da sedução e a do convencimento? No mundo acadêmico estamos nos referindo às teses que, antes de tudo, devem convencer. As características por você mencionadas, ao pensar em Calvino, estariam presentes, também, nas teses científicas. Não se trata, contudo, de transformar a ciência em literatura. Não se trata da referida transformação que suprimiria a ciência e, tampouco, do fortalecimento da percepção utilitarista da ciência em relação à literatura. Trata-se de se habituar à escrita que produz imagens

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necessárias à representação do que se deseja argumentar. A pers­ picácia e sensibilidade de Gonçalo M. Tavares: a metáfora é "o instrumento de uma linguagem não lógica [que) pode tocar (. .. ) coisas que a linguagem lógica não toca".21 Entretanto, a ciência moderna exclui a metáfora como se excluísse a impossibilidade da prova (como se o propósito fosse mesmo provar e não inter­ pretar, compreender). "Ao colocar-se a linguagem metafórica fora da ciência exclui-se um conjunto de soluções possíveis e, portanto, um conjunto de problemas." 22 Trata-se de reaprender a utilizar a linguagem, o que parece ser difícil.23 Trata-se, pois, de se aprender a utilizar o recurso da linguagem para construir deslocamentos rápidos, argumentos convincentes e sedutores. "Aprende, pois a utilizar metáforas, caro cientista. Não sejas incompetente." 24 Concordo plenamente com a leitura da questão que nos oferece Gonçalo M. Tavares. Penso como você. Mas manifesto dúvidas com relação à suposta e inevitável lentidão absoluta da escrita. Penso muito mais a alternância de ritmos, parênteses impostos por movimentos exteriores à escrita, interrupções provocadas por incertezas ou mesmo por um lapso ele inspiração que, por sua vez, não nos bate à porta sem qualquer motivo. A imaginação e a inspiração, tal como a intuição, chegam até nós porque estamos sempre a convidá-las, e tal chamado é feito de paciente obstinação, de um imperativo desejo de escrita, de representação e de interpre­ tação de coisas que nos incomodam. Há tempos ele lentidão, o de encontrar palavras para representar ideias. Mas há tempos de rapidez. Nesse sentido, concordo com Maria Filomena Molder, no que se refere ao pequeno trecho de uma entrevista: O pensamento dá-se bem com a palavra. Não me encontro entre aqueles para quem as palavras não chegam e, em contrapartida, estão convencidos de que há outras coisas que chegam. A palavra nasce na nossa boca, um dos lugares íntimos do nosso corpo, e, ao mesmo tempo, solta-se, expandindo-se, criando correntes de energia, e, como se não bastasse, é imediatamente um esforço compreensivo e expressivo. 25

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Penso na espontaneidade da palavra, na situação da escrita a representar pensamentos. Entretanto, há mesmo alternâncias que são perfeitamente compatíveis com o tempo da vida e com determinadas situações de parênteses. Penso mais assim e, de modo algum, na condição absoluta da lentidão ao longo de todo o processo que se refere à escrita de um texto. ADRIANA Mao: Sim, nada é absoluto. A lentidão à qual me refiro não é fixa, estática, mas da ordem do movimento, da busca, do processo que alterna pausas, pontos e palavras. Então também nesse ponto concordamos. A lentidão não dispensa a rapidez. Ao contrário, faz dela parte de si, de seu corpo, seu nome. Para mim, a lentidão é mais: ela está para o amor, para o substantivo, aquilo que nomina, assim como a pressa está para o verbo, a ação. Evidentemente, o amor não exclui o verbo. Ambos, substantivo e verbo, dispõem do poder da lentidão e da rapidez. Esta última, por sua vez, não exclui a pressa. O verbo é múltiplo, mas no lugar da rapidez, deixa quase sempre preponderar a pressa. A pressa é, por natureza, antiartesanal e, para mim, nenhuma estética pode ser comparada àquela gerada no processo amoroso que se constrói progressiva e coletivamente, com o corpo, o encontro, o diálogo. Ainda que seja exercida por e para um sujeito apenas, a produção a1tesanal é sempre resultado de uma coletividade, além de se destinar a uma coletividade. Escrever é ter a pretensão de dizer aquilo que ainda está germinando. Do meu ponto de vista, isso vale para qualquer tipo de texto. A escrita é um contínuo exercício de amor cultivado ao pensamento e à linguagem, que se faz artesanalmente no encontro com o outro, na festa e também nos momentos de isolamento e de silêncio. Toda escrita pede momentos de não escrita. Entretanto, continuamente se escreve, ainda que as condições demandadas para esse exercício sejam distintas para cada sujeito. Há quem só consiga escrever no silêncio da clausura monástica e quem necessite da festa, do encontro, do diálogo com o outro, com os micos diferente ou igualmente nomeados, disseminados no mundo. De qualquer forma, esse é um processo que exige lentidão, atitude que a máxima latina "apressa-te lentamente", retomada por Calvino, traduz com maestria, complementada pelo breve conto chinês que ele narra para fechar seu ensaio sobre a rapidez:

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Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsé estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsé disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. "Preciso de outros cinco anos", disse Chuang-Tsé. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsé pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu. 26

CÃss10 E. VIANA HlssA: Sim, a pressa ela hipermodernidade trans­ forma os tempos modernos de Chaplin em pálida recorrência, e a imagem do sábio artesão de ideias cede lugar ao operário que se aliena, inclusive na universidade. Pode-se pensar a presença ela arte em todas as práticas. Entretanto, pode-se negar a arte em todas as práticas, nos interiores elas mais diversas práticas artís­ ticas. Seria a lentidão, aquela medida pela ampulheta, que nos dirá o que é preciso para fabricar a arte? Poder-se-ia pensar que a lentidão elo artesão ele palavras não é feita apenas de relógio, não mesmo, mas ele história. A lentidão sobre a qual refletimos agora, talvez, pelo que parece, seja muito mais feita ele sabedoria cultivada através de ritmos ele tempos que, com a viela e com os cotidianos, se transformam e se alteram. As suas notas ainda me fazem pensar, novamente, e, talvez, noutros termos, a produção ele textos em série que nega toda a ideia ela supostamente lenta sabedoria do artesão. Refiro-me, aqui, novamente, à produção ele dissertações e de teses na universidade moderna e ocidental. Prazos pressionam a leitura, a reflexão e a escrita. Imagina-se, aqui, que a ampliação ela rapidez da produção - que nos levaria à ideia da ampliação da produtividade - resul­ taria da velocidade de leitura, reflexão e escrita. Há um óbvio equívoco. A rapidez da produção de teses e ele dissertações é o elogio da indústria - incapaz de zelar pela qualidade - e a negação não exatamente ela lentidão, mas da sabedoria, elo aprender a fazer, intrínseca ao exercício ele encantar as palavras, de buscar palavras que representam ideias e de construir argumentos. A pressão em prol da rapidez é o movimento que nos retira a concentração, a motivação, o prazer, a paixão pelo que se cria. A pressão em prol ela rapidez transforma a pressão em velocidade insuportável que nos subtrai o movimento necessário à criação, à

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leitura elas coisas, à arte ele interpretar. A pressão ainda é uma voz que diz: não será preciso muito tempo porque não necessitamos de muitas palavras. Os equívocos se multiplicam, pois, quanto menos palavras, quanto mais concisão, exatidão, de mais tempo necessitamos. Assim, a produção ele textos em série produz poucas palavras e, além disso, sem sentido. Nas teses, não há tese. Afinal, não se faz uma tese, um texto, qualquer texto, como você diz, a partir ela absurda analogia matemática que ainda nos traz a voz ela pressão: a exatidão do texto corresponderá a um número exato de palavras e de páginas previamente definido. A produção em série retira ela cena o artesão e o encantador ele palavras. ADRIANA MELO: Experimentamos, na contemporaneidade, a percepção ele um tempo hiperaceleraclo pelas microeletrônicas e pelas nanotecnologias que progressivamente virtualizam partes elo mundo e elas relações sociais. As residências são transformadas em microfeudos tecnologizaclos, ele onde não há mais necessi­ dade de sair para quase nada, já que se tem tudo ao alcance do mouse: bancos, pizzarias, restaurantes, cafés, farmácias, museus, cinema, jornais, revistas, livros, praças, bibliotecas, teatros, correios, encontros, lugares, conversas etc. Não às margens, mas ao longo de toda a extensão desse mundo virtualizado, sobre­ vivem evidentemente lugares não atingidos pela viltualização das relações sociais: sertões contemporâneos, feitos ele cidades­ -campo desconectados da ordem econômica global virtualizante onde a manutenção de tradições culturais costuma ser associada à lentidão e ao atraso. No veloz mundo virtualizado, perde-se o tato, o contato, encontro psicofísico compa1tilhado com o outro. Substitui-se progressivamente o humano, as relações sociais, pelos infinitos e cada vez mais complexos objetos técnicos fabricados por um mercado ele produzir desejo de consumo ilimitado com promessa ele felicidade individual garantida. Atividades como a leitura de um livro impresso, a ti-oca ele reflexões escritas, um encontro com um amigo não encontram mais espaço.no tempo hiperacelerado pelos novos objetos técnicos. A sensação gene­ ralizada é a de que não há tempo. Não há lugar para a criação de vínculos, para o exercício da solidariedade, da experiência compartilhada. Ao estudar as mutações contemporâneas do tempo, Olgária Matos diz que vivemos uma patologia do tempo:

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A determinação das atividades pela lógica elo acúmulo e acrés­ cimo do capital resulta no sentimento de não mais se ter tempo - sentimento este presente, paradoxalmente, também entre os desempregados -, de onde sua organização institucional ser a figura mais eminente da alienação e da dominação pelo mercado mundializado, pois nesta circunstância cada um perde o sentido e o mestrado do tempo de sua vida. Eis porque Benjamin, em seu ensaio "A imagem de Proust", escreveu que na contempora­ neidade não há mais tempo para se viver grandes amores, que "as rugas e marcas em nosso rosto são assinaturas das grandes paixões que nos estavam destinadas. Mas nós, os senhores, não estávamos em casa." Este absenteísmo atesta um não engaja­ mento, o não empenho "na criação de valores espirituais". Sem laços estáveis, produz-se um déficit simbólico no indivíduo e na sociedade, uma vez que valores dependem ele um espaço comum de experiências compartilhadas, tal como Benjamin as indica em seu ensaio "O narrador". Déficit simbólico corresponde à espacializaçào do tempo e a sua mensuração abstrata, a sua patologia, visto que determina o decréscimo das faculdades cria­ doras e fantasmáticas elos indivíduos submetidos a oscilações do mercado, à insegurança e ao medo.27

Numa linha semelhante de pensamento, Maria Rita Kehl aponta a depressão como um sintoma social do modo de vida contemporâneo ocidental, que produz o esvaziamento do sujeito: A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosa­ mente, a teia ele sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI. Por isso mesmo, os depressivos, além ele se sentirem na contramão cio seu tempo, veem sua solidão agravar-se em função elo desprestígio social de sua tristeza. Se o tédio, o spleen, o luto e outras formas de abati­ mento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o risco de ser discriminados como doentes contagiosos, prntadores da má notícia da qual ninguém quer saber. "Entre nós, hoje em dia, o blues não é compartilhável", escreve Soler. "Uma civilização que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo se em última análise esta se limite à conquista do mercado, uma tal civilização não pode amar seus deprimidos, mesmo que ela os produza cada vez mais, a título de doença cio discurso capitalista." 28

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Nesse tempo acelerado, extremamente suscetível à patologi­ zaçào, ao esvaziamento da criatividade, à subtração da imagi­ nação, da liberdade e da condição humana do homem, em que valores como rapidez se transformam em pressa, leveza em supeificialidade, exatidão em objetividade estéril, como produzir a pausa da escrita, a pausa vital, a pausa da imaginação, da cria­ tividade, da improvisação na formação dos sujeitos? CAss10 E. VIANA H1ssA: Quem escreve cria apausa em si, não apenas no texto que escreve. A pausa no texto é também uma represen­ tação da pausa que criamos em nós. Somos o nosso texto, o que escrevemos e o que lemos, assim como o que ouvimos. O texto é uma representação nossa em nosso contexto. No contexto feito de velocidade recusada por quem escreve e que deseja a pausa em si, penso no que está prestes a envolver o sujeito da escrita. Talvez este seja o primeiro movimento do sujeito a criar. Ele se retira e fabrica o silêncio, o intervalo, a pausa, e se vê diante da página em branco. Ele se retira e fabrica a solidão, para encontrar sensibilidades e palavras das quais se liberta para se expressar. Entretanto, está em movimento o que é motivado pelo movimento de algo qualquer. Não há o movimento de criação que não seja impulsionado por algum movimento que lhe antecede. Talvez seja mesmo este o movimento: o que nos fabrica, em nosso inte­ rior, a pausa e o silêncio - no ruído - e a solidão no contexto da multidão em pressa. É ritmo. É este mE:smo o movimento: o que nos permite tecer o vagar. Penso que a pausa em nós é o primeiro movimento que contraria aquilo que nos obstrui. No mundo virtualizado, que também caracteriza a radicalização da modernidade, ainda há situações que nos retiram a saúde das coisas em nós. Vivemos, a pa1tir de então, uma ampliação das nossas incapacidades, como uma exaltação das nossas incom­ pletudes, e das dificuldades de roubar tempos, de nos retirarmos em nós mesmos. Somos roubados pela velocidade, o que nos provoca algo que se aproxima da paralisia. Experimentamos as artificialidades em nossos cotidianos, o que provoca ·ruídos em nossas sensibilidades. Diante disso, ainda mais, é preciso criar esses movimentos de retração que nos devolvem o vagar das coisas ou o nosso vagar nas coisas. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto, consigo expressá-lo através de questões. Qual é a natureza do ensaísta, do poeta, do escritor? De onde vem a sua intuição, o seu quase instinto, que o compele aos 269


movimentos descritos? De onde vem a sua capacidade criativa? Se a sua capacidade de improvisar, de criar, decorre do domínio, o que poderemos dizer acerca da sua entrega ao risco e à aven­ tura de rejeitar controles, de experimentar a ausência de domínio para, assim, descortinar fronteiras e aberturas para a imaginação? É uma questão de pequena fração de tempo e lá se vai a palavra que escapa e encontra o seu lugar de expressão. Virá cal segundo ponto, esse mistério, o da paciência? É o que nos diz Orhan Pamuk: "o segredo do escritor não é a inspiração - pois nunca fica claro de onde ela vem-, mas a sua teimosia, a sua paciência. A adorável expressão turca 'cavar um poço com uma agulha' me parece ter sido criada pensando nos escritores." 29 É também ele que nos diz algo acerca do referido primeiro ponto: "(...) o desejo de recolhimento é o que nos impele à ação." 30 Articula-se, aqui, o primeiro ao segundo ponto e, assim, a primeira dúvida à segunda. Pamuk não parece estar seguro: "(. ..) tantos anos depois, sei que esse descontentamento é o traço básico que transforma uma pessoa em um escritor. Para tornar-se escritor, paciência e empenho não bastam (...)." 31 É exatamente isso. De onde se origina o movimento e como se formam as capacidades e os desejos de recolhimento à procura do vagar? É bom estar em dúvida: "a pessoa, antes, precisa sentir[-se] compelida a evitar multidões, as outras pessoas e os assuntos da vida ordinária de todo dia, recolhendo-se e ficando em silêncio."32 Está, aparen­ temente, desenhada a pintura, o retrato. Entretanto, repentina­ mente, há traços, em Pamuk, que confundem quem nos lê com o propósito de aprender um caminho reto: Escrevo porque só consigo participar da vida real quando a modifico. (. ..) Escrevo porque adoro o cheiro do papel, da caneta e da tinta. (. .. ) Escrevo porque é um hábito, uma paixão. (. . .) Escrevo para ficar só. (...) Escrevo porque todo mundo espera que eu escreva.33 É ainda ele que nos traz Montaigne ele volta ao debate: O precursor desse tipo independente ele escritor - que lê o próprio livro até se satisfazer, que, escutando apenas a voz da própria consciência, discute com as palavras dos outros; que, ao entrar em conversação com seus livros, desenvolve pensamentos próprios e mesmo um mundo pr6p1io - foi certamente Montaigne, nos primórdios da literatura moderna. 34

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Perdem-se as bússolas e os manuais, e das cartografias escorrem os lugares e os seus nomes, as topografias, as legendas e as rosas dos ventos. Não há orientação que indique os caminhos, de modo retilíneo, da escrita fácil. A escrita clara, densa, exata, leve não se negocia, não está à venda, não está nos mapas. Ela é feita de uma história que se aprende, se experimenta, mas não se ensina. Após todos os trechos recolhidos, ainda há um que espalha o mistério por sobre a mesa de papéis vazios à espera de um movimento que não vem: O escritor que se recolhe e antes ele mais nada empreende uma viagem para dentro de si mesmo haverá de descobrir ao longo dos anos a regra eterna da literatura: é preciso ter o talento ele contar as próprias histórias como se fossem histórias dos outros, e contar as histórias elos outros como se fossem suas, porque isso é a literatura. Mas antes é preciso viajar pelas histórias e pelos livros de outros. 35

O mistério, entretanto, é disseminado a partir do depoimento de outros: "Sei exatamente o que escrever. Não escrevo enquanto não souber. Costumo escrever tudo de uma vez só. E aí vai relati­ vamente depressa, pois na verdade depende da minha rapidez de datilografar."36 As individualidades nos conduzem à diversidade de sensibilidades. Não há uma receita, ainda que cada desenho ele texto possa desejar dizer, para o outro, como é que ele se fez. Portanto, está fortalecido o segundo ponto. Mas não se trata do mistério da escrita ensaística, mas da viela. O talento: o que significa isso? Algo inato e autônomo? Digamos que não seja inato, pois me sinto compelido a pensar que não seja. Caso não seja inato, o talento é ainda algo pessoal, próprio elo sujeito que cria. Entretanto, na sua pessoalidade, o talento ainda se subor­ dina a um tecido cultural e histórico tal como os indivíduos estão mergulhados no contexto social. Ninguém lhes retira a condição ele indivíduos que fazem as suas trajetórias e rabiscam os seus caminhos de aprendera fazer. Além disso, a sua condição forta­ lece ou nega o contexto social e cultural. Pode ser assim, também. Esse segundo ponto interessa-me porque, assim como é necessário viajar pelo livro de outros, para que seja, este, um dos exercícios, dentre tantos, que nos conduz à criação, é também necessário admitir que qualquer criação, literária ou não, acadê­ mica ou não, está atravessada pelo exercício antropofágico. 271


Não existe um movimento que não seja estimulado por algum anterior. Não há uma criação que se inicie do zero. A página em branco, como sempre penso, é apenas uma metáfora. A liberdade concederia também ao texto da ciência a capacidade de fabricar imagens e de construir argumentos que, convencionalmente, estão muito distantes da pesquisa científica ordinária. A antropofagia é incompreendida. Não se sabe bem o seu significado. Não se sabe mais o que é escrever; tampouco ler. Falta tempo.

NOTAS 1

HISSA, 2002b, p. 159-166.

2

ADORNO, 1986, p. 167-187. 3 HISSA, 2008. • CALVINO, 1990. 5 Há que se lembrar que o século XX foi o momento "em que as forças e representações inconscientes deixaram o silêncio e a obscuridade a que foram relegadas no início da era moderna, e voltaram a ganhar um estatuto de discurso significativo (...) indicando que em sociedades organizadas em moldes diferentes ela racionalidade moderna, as produções do incons­ ciente teriam um outro lugar, reconhecido como lugar ele produção ele verdade; pensem no caso dos adivinhos na Antiguidade, ou elos xamãs nas sociedades indígenas, por exemplo. Ou dos pais e mães de santo do candomblé." KEHL, 2004, p. 104. 6 Ao afirmar que estamos no fim de um ciclo de hegemonia ele certa ordem científica, Boaventura ele Sousa Santos caracteriza essa ordem científica hegemõnica, traça os sinais da crise dessa hegemonia e o perfil de uma nova ordem científica emergente. SANTOS, 1987. 7

PAZ, 1994.

NOVAES, 2003. 9 HISSA, 2002a.

8

MONTAIGNE, 1972, p. 196. n SANTOS, 2007. 10

12

KEHL, 2004, p. 115. 13 PASCAL, 1984, p. 42. 14 SANTOS, 2000. 15

PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 13. 16 CALVINO, 1990.

17 18

CALVINO, 1990, p. 11. ARENDT, 2008, p. 33.

272


19 ARENDT, 2008, p. 50. PAZ, 2009, p. 53.

20 21

TAVARES, 2006, p. 112.

22

TAVARES, 2006, p. 113.

"Para o carpinteiro tonto os seus problemas são aqueles que ele consegue resolver com as ferramentas que sabe utilizar. Ele não começa por olhar em redor e detectar os problemas. Ele começa por olhar para ferramentas que sabe utilizar." TAVARES, 2006, p. 113. 24 TAVARES, 2006, p. 115. 25 MOLDER, 2004.

23

2

G CALVINO, 1990, p. 67.

27 28

29

MATOS, 2006, p. 1133-1134. KEHL, 2009, p. 22.

PAMUK, 30 P AMUK, 3' PAMUK, 32 PAMUK,

2007, p. 14. 2007, p. 18. 2007, p. 18. 2007, p. 18.

53 PAMUK, 2007, p. 34-35. PAMUK, 2007, p. 18. 35 PAMUK, 2007, p. 19. 36 ARENDT, 2008, p. 33.

34

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