XXXII
MAR. 2021
O QUE CONTINUA A RESSOAR
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N u m p e r í o d o ex tr e m a m e nte a tí p i c o e i n é d i to n a s n o s s a s ex i s tê n c i a s , a R ES S O N Â N C I A d e c i d i u “ p a u s a r ” o m u n d o e r e c o r d a r a l g u n s d o s a r ti g o s q u e m a r c a r a m a r ev i s ta e a n o s s a c o m u n i d a d e e s t u d a nti l n o s ú l ti m o s a n o s . P r o c u r á m o s c o m p a r a r o m u n d o p r é - C OV I D c o m a a t u a l i d a d e , m a nte n d o u m e s p í r i to c r í ti c o s o b r e o q u e o f u t u r o n o s e s p e r a . A s s i m , e s ta e d i ç ã o (r e) p u b l i c a o s a r ti g o s q u e m a i s s e d e s ta c a m p e l a s u a p e r ti n ê n c i a a t u a l e i n c l u i u m p e q u e n o c o m e ntá r i o s o b r e o q u e m u d o u e o q u e p e r m a n e c e u i g u a l d e s d e a d a ta d e r e d a ç ã o d o s m e s m o s . E s te s c o m e ntá r i o s p r e te n d e m i n c i d i r n o p o r q u ê d o te m a a i n d a s e m a nte r r e l eva nte e q u e p e r s p e ti va ex i s te s o b r e o m e s m o p a r a o f u t u r o . C o nv i d a m o s o l e i to r a a c o m p a n h a r o q u e c o nti nu a a re s s o a r. D e d i c a m o s e s ta tr i g é s i m a s e g u n d a e d i ç ã o a to d a s e to d o s a q u e l e s q u e a o l o n g o d e s te s a n o s fo r a m c o n s tr u i n d o a R ES S O N Â N C I A . Ao s n o s s o s c o l a b o r a d o r e s , p e l o e m p e n h o, à d i r e ç ã o e d i to r i a l , p e l a d e d i c a ç ã o, a to d a s a s p e s s o a s e i n s ti t u i ç õ e s q u e tr a b a l h a m n o s b a s ti d o r e s p a r a to r n a r e s ta r ev i s ta u m a r e a l i d a d e e , e s p e c i a l m e nte , a o s n o s s o s l e i to r e s , p e l a e te r n a c u r i o s i d a d e e a p o i o, o b r i g a d o . Q u e r í a m o s ta m b é m d e i xa r u m a g r a d e c i m e nto e s p e c i a l a o D a n i e l M a c h a d o e a o D i o g o C a va l h e i r o, q u e ti ve r a m a “ i d e i a m a l u c a d e c r i a r a R ES S O N Â N C I A”, c o m o o s p r ó p r i o s e s c r eve r a m q u a n d o l a n ç a r a m e s ta r ev i s ta e m M a r ç o d e 2 0 0 2 . N a n ota e d i to r i a l d a 1 ª e d i ç ã o, l ê - s e: « M a i s d o q u e u m a m e r a l i s ta d e a ti v i d a d e s , p r e te n d e m o s q u e e s ta p u b l i c a ç ã o q u e h o j e i n a u g u r a m o s g a n h e v i d a p r ó p r i a e r e f l i ta a s v i vê n c i a s , o s p r o b l e m a s , a s a l e g r i a s e a s r e f l exõ e s d e q u e m e s t u d a n a FM L . Pr o b l e m a s p e d a g ó g i c o s , d o e n s i n o m é d i c o, d o e n s i n o s u p e r i o r, d a s o c i e d a d e e m g e r a l , c r í ti c a s l i te r á r i a s , c u l t u r a i s , d e s p o r ti va s , (q u a s e) t u d o te m e s p a ç o [n a] R ES S O N Â N C I A . É p o r i s s o f u n d a m e nta l q u e i n c l u a s n e s ta s p á g i n a s a tua “ressonância” pessoal sobre aquilo que consideres i m p o r ta nte . S e o c o n s e g u i r m o s , j á te r á va l i d o a p e n a . . . » Q u a s e 2 0 a n o s d e p o i s , a c h a m o s q u e va l e u d e f i n i ti va m e nte a pena. B r u n a A l ve s & Va s c o Lo b o C o o r d e n a ç ã o - G e r a l d a R ev i s ta R e s s o n â n c i a
CRÓNICA 1 ENCARCER ADOS LIVREMENTE
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REWIND XXI A G R A N D E P A N D E M I A : A LT E R A Ç Õ E S C L I M ÁT I C A S
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P O R T U G A L : U M C A S O D E S U C E S S O N O C O M B AT E À S DROGAS
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O A C O R D O D E P A R I S R E V I S I TA D O
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GRANDE REPORTAGEM P Ú B L I C O O U P R I VA D O : Q UA L A M E L H O R S O L U ÇÃO PA R A U M S I S T E M A D E SAÚ D E PA R A TO D O S ?
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PENSAR FORA DA CAIXA A I M P O R TÂ N C I A D A R E P R E S E N TA Ç Ã O D A D O E N Ç A M E N TA L E M Í C O N E S D A C U LT U R A P O P U L A R
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OS MEDIA COMO EDUCADOR MÉDICO
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CULTURA Q U E F I L M E E S TA M O S A V I V E R ?
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A PESTE : A INTEMPOR ALIDADE DO FL AGELO
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L E V A N TA - T E E A N D A
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CRÓNICA 2 CRÓNICA DE LEONOR CAROL A
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CRÓNICA 1
André Vares
Encarcerados Livremente P
ortas, escadas, paredes. Procurei-me. Perdi-me. Perdi-me. Procurei-me. Andava eu na subida infinita, decidido na chegada ao topo, nem perto nem longe deste, quando se fecharam portas, ergueramse paredes nunca vistas que já existiam, deu-se a quarentena. Até essa data já tínhamos por hábito viajar, íamos juntos, eu e ela. A partir daí, portas, escadas, paredes. Não me esgotou saber que não sabia o que iria acontecer, não me esgotou saber que era o início de uma época diferente para todos nós, esgotou-me ela, com a sua incessante mania de viajar livremente por caminhos que não exigem sair à rua, os caminhos escuros do meu ser. Esgotou-me a falta do falar e de me aproximar das pessoas que mais perto adoro ter. Esgotei-me eu. Ao início não me apercebi o quanto me poderia afetar esta nova forma de existir. Comecei por refugiar-me nos meios de comunicação digital, não eram suficientes, dediquei-me totalmente aos estudos, erro meu. Passou um terço do ano em que tudo o que vi foram portas, escadas, paredes. Sei que o mais certo teria sido arranjar formas de evadir, livros, filmes, música, mas a questão continuava, faltava o toque que pensei não precisar, até que me agoniei pela sua falta. Como se não bastasse ter-me perdido enquanto estava encarcerado com ela, assim que as portas voltaram a abrir e deixou de haver tantas paredes, talvez por estar fragilizado por um período que me trocou as voltas, deixei-me levar pelas doces palavras dele, eram fáceis de perceber, aconchegantes de se ouvir, reconfortantes. Cheguei ao ponto em que confiaria
nas suas ideias de forma cega, até que eventualmente a vida nos acorda para a vida e percebemos que nem sempre o que pensávamos ser seria. As portas estavam finalmente abertas, mas o meu coração desta vez queria ser encarcerado, apenas com o dele. Magoeime. Recuperei? Apesar de tudo, as portas não se abriram completamente, abriram-se aos poucos, da mesma forma que, aos poucos, fui retomando a liberdade. Sair da quarentena foi quase como recuperar uma parte de mim que ficou não esquecida, mas suprimida. Reencontrar quem ansiava ver, voltar a ter a possibilidade de ansiar por conhecer alguém, experimentar coisas novas, ser livre. Mesmo assim, sinto e sei que continuamos todos encarcerados, uns com os outros, livremente, porque pouco importa se há quarentenas ou não para estarmos juntos. Eu sou eu, ela é a minha mente e ele, um amor perdido que reservou uma cicatriz no meu coração. Somos um. Graças a este período, complementei partes de mim que nunca entenderia tão rapidamente noutras circunstâncias. Consigo, agora, não só imaginar, mas compreender que todos nós temos o nosso ela e ele encarcerados no nosso ser, mas isso não nos impede necessariamente de ser livres. Tornei-me mais sábio. Depois de tudo isto continuo sem estar perto ou longe do topo que todos buscamos, mas pode ser que esta sabedoria me leve mais perto. Uma coisa sei, eu sou eu e o topo é a felicidade.
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Ana Gomes, Ana Manaças & Ana Sofia Mota
A Grande Pandemia: Alterações Climáticas Comentário de Maria Teresa Gouveia
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ndas de calor. Dengue. Ciclones. Asma. Vagas de frio. Melanoma. Secas. Depressão. Incêndios. Cancro do pulmão. Desnutrição. Malária. Enfarte. Cataratas. Acidentes. Diarreia. Alergias. Inundações. Refugiados. Estes são apenas alguns exemplos de consequências das alterações climáticas que afetam a saúde a nível global. O planeta sempre sofreu mudanças no clima, mas nunca estas foram tão rápidas e tão dependentes da atividade de uma única espécie. A temperatura aumenta, os glaciares derretem e os padrões meteorológicos adulteram-se, originando desastres naturais que provocam a morte a 60 mil pessoas por ano, a maioria em países em vias de desenvolvimento e com fraca resposta sanitária e humanitária, um número que quase triplicou desde 1960 (1). No momento em que esta reportagem é escrita, chega a notícia de que a Índia declara Estado de Emergência de saúde pública na capital, Nova Deli, devido à poluição atmosférica. Foram distribuídos 5 milhões de máscaras na cidade e estima-se que 700 milhões de indianos vivam expostos a níveis tóxicos de poluição(2). Ar puro. Água potável. Alimentação saudável. Abrigo seguro. Os principais determinantes de saúde ambientais e sociais estão em risco. O que podemos esperar desta Pandemia? A seguir, uma breve exploração de alguns dos maiores desafios das alterações climáticas à saúde das populações.
Ondas de calor Segundo a World Meteorological Organization uma onda de calor é um período superior a 5 dias em que a temperatura máxima registada ultrapassa a temperatura máxima esperada por mais de 5º C. Com as alterações climáticas as ondas de calor tornaram-se mais frequentes e mais intensas por todo o mundo. Apesar do aumento da temperatura ser global, as populações menos preparadas são as dos países temperados, onde as infraestruturas são principalmente desenhadas para reter calor durante o inverno(3). Os verões europeus têm se tornado cada vez mais severos, sendo registados recordes de temperaturas máximas na Europa Central durante o verão de 2019(4). Contudo, após a onda de calor de 2003, com mais de 70.000 mortes atribuídas por toda a Europa, tem havido uma maior preocupação dos governos em informar e proteger a população(5). Os mais afetados são os idosos, as crianças e pessoas dependentes nas atividades de vida diárias. De um ponto de vista socioeconómico, as pessoas que vivem isoladas ou com poucas condições, sem equipamentos de refrigeração, estão em maior risco de sofrer consequências negativas durante uma onda de calor(3). Durante as ondas de calor há maior afluência aos serviços de urgência, tanto por descompensação de doença de base, como por casos de insolação e desidratação em adultos saudáveis e ativos (como
A GR A NDE PA NDEMI A: A LT ER AÇ ÕE S CL IM ÁT ICAS
exemplo desportistas ou trabalhadores da construção civil)(3). Os sintomas de insolação mais frequentes são sudorese, alterações de estado de consciência e síncope; são sintomas inespecíficos que podem ser desvalorizados, especialmente pela população mais ativa. Além das altas temperaturas, as ondas de calor são ainda responsáveis por aumento das concentrações de poluentes atmosféricos, dos quais se destacam O3 e PM10 (partículas inaláveis de diâmetro inferior a 10 micrómetros)(6). Estes poluentes têm ação independente no agravamento de doenças respiratórias e vasculares, facilitando estados pró-inflamatórios e pró-trombóticos(7). Porém, durante ondas de calor e especialmente nos grandes centros urbanos, atuam sinergicamente com as temperaturas elevadas e a desidratação no aumento de sintomas tanto em pessoas saudáveis como em doentes. A Península Ibérica tem sido relativamente poupada das ondas de calor das últimas décadas, protegida pelas massas de água que a rodeiam. Todavia, Portugal tem uma população cada vez mais envelhecida, isolada e carenciada. Além de emitir alertas nos dias de maior perigo, a Proteção Civil cria também abrigos temporários de livre acesso em zonas mais carenciadas. Poluição Atmosférica e Alergias O atual aumento exponencial nos casos de reações alérgicas não é, de todo, independente das alterações ambientais das quais o nosso planeta é vítima. Com efeito, pensa-se que é esta a principal causa do emergente número de casos de alergias, bem como do agravamento das mesmas(8). Uma alergia é uma resposta exagerada do sistema imunitário a estímulos benignos externos do meio, mediada por imunoglobulinas E. Dentro do grupo das alergias mais frequentes, é de ressaltar a asma brônquica, doença que atinge cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo(9). Esta patologia caracteriza-se por uma inflamação dos brônquios, que leva à diminuição do seu lúmen e que se manifesta clinicamente por tosse, pieira e dispneia(10).
A poluição, nomeadamente a atmosférica, tem como causa relevante a emissão excessiva de gases resultantes da queima de combustíveis. Como exemplo significativo, distinguem-se as Diesel Exhaust Particles (DEPs), partículas derivadas da combustão do Diesel dos veículos motorizados. Estas partículas são constituídas por um carbono elementar central, que incorpora uma variedade de substâncias, nomeadamente hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, cetonas, álcoois, cicloalcanos, bem como aerossóis de origem orgânica que, por si só, já detém um carácter alergénio considerável(7). Agregadas às DEPs, estas substâncias químicas orgânicas, como as partículas em suspensão no ar (pólen), formam macromoléculas com potencial alergénio acrescido, tendo consequências consideravelmente piores do que aquelas que as partículas orgânicas isoladas, relativamente ao desencadeamento de reações alérgicas. Doenças Infecciosas A transmissão de doenças com origem hídrica e alimentar é largamente dependente das condições climáticas, uma vez que a precipitação influencia o transporte e disseminação de agentes patogénicos, enquanto a temperatura afeta a seu crescimento e sobrevivência. Também a ação humana, através da descarga imprópria de resíduos, contribui para potenciais ameaças à quantidade e qualidade da água e alimentos, comprometendo a segurança alimentar(11,12). O clima é ainda o grande responsável pelo perfil de distribuição das doenças infecciosas transmitidas por vectores. É provável que o período sazonal de transmissão e a distribuição geográfica de determinadas doenças alargue, como já ocorre na China com a Schistosomíase(1), uma parasitose dos climas quentes. A malária continua a ser um grande problema de saúde pública, matando mais de 400.000 pessoas por ano, sobretudo crianças africanas com menos de 5 anos. No Brasil, os casos de dengue aumentaram sete vezes em 2019. Estas são duas doenças transmitidas por mosquitos, Anopheles e Aedes, respectivamente, cujo ciclo de vida é extremamente sensível às condições climáticas, especialmente à temperatura e precipitação(1,11).
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Desastres Naturais As inundações e ciclones causam devastações que se traduzem em danos materiais e perda de vidas humanas, com um aumento significativo de casos de afogamento, trauma, acidentes e ansiedade generalizada(12). Metade da população mundial vive a menos de 60 km do mar(1). O aumento do nível médio das águas e a escalada de eventos extremos de natureza meteorológica destruirão casas, infraestruturas sanitárias e outros serviços de assistência às populações(1). As comunidades serão forçadas a migrarem, criando os chamados refugiados climáticos.
Surgem assim riscos associados à aglomeração de populações deslocadas e stress psicossocial(11). Concluindo, entre 2030 e 2050 as alterações climáticas serão responsáveis por 250.000 mortes adicionais por ano, 38.000 nos idosos por ondas de calor, 48.000 por diarreia, 60.000 por malária e 95.000 por desnutrição infantil(1). É urgente não só a criação de políticas, mas também tomar decisões individuais que visem suportar uma resposta global de saúde pública perante esta pandemia que poderá ser a última que a Humanidade enfrentará.
A ironia de um texto intitulado “A Grande Pandemia”, publicado no início de dezembro de 2019, não passa despercebida. Há 13 meses, a vida era diferente, com uma leveza inalcançável para a maioria de nós neste momento. Porém, mesmo quando o sol brilhava, existia uma grande nuvem cinzenta a ameaçar-nos: as alterações climáticas. Num ano marcado por algumas boas notícias, como a intenção do presidente dos Estados Unidos da América de regressar ao acordo de Paris, ou o ligeiro decréscimo momentâneo das nossas agressões ao planeta durante o confinamento de março, é importante relembrar que a luta não acabou. Desde mais refugiados, a novas doenças infeciosas, a consequências graves na nossa saúde, a mudança do clima tem um impacto tão grande em nós como nós temos no clima. E, perante a indiferença de quem mais podia fazer a diferença, para lidar com esta crise não podemos esperar por um novo Estado de Emergência.
(1) WHO (2019) Climate change and health. Consultado a 2 Novembro 2019, https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/climate-change-and-health; (2) Público. (2019). Poluição: estado de emergência de saúde pública declarado em Nova Deli. https://www.publico.pt/2019/11/01/mundo/noticia/nova-deli-distrubui-cinco-milhoes-mascaras-devido-niveis-toxicosar-1892166; (3) Kovats RS, Kristie LE. Heatwaves and public health in Europe. European Journal of Public Health 2016 Dec; 16 (6); 592–599; (4) Baker, Sinéad (25 July 2019). Europe is battling an unprecedented heat wave, which has set records in 3 countries and is linked to at least 4 deaths".Business Insider. Insider Inc.; (5) Robine JM, Cheung SLK, Roy SL et al. Death toll exceeded 70,000 in Europe during the summer of 2003. C. R. Biologies 2008; 331; 171–178. (6) Analitis A, Michelozzi P, D’Ippoliti D et al. Effects of Heat Waves on Mortality. (7) Epidemiology 2014 Jan; 25 (1); 15-22. (8) Anderson JO, Thundiyil JG, Stolbach A. Journal of Medical Toxicology 2012 Jun; 8 (2); 166–175. (9) Clark, T. (2000). Asthma. 3rd ed. London: Arnold. (10) Takano, H., & Inoue, K. I. (2017). Environmental pollution and allergies. Journal of toxicologic pathology, 30(3), 193–199. doi:10.1293/tox.2017-0028; (11) DGS (2019). Consultado 27 Outubro 2019, em https://www.dgs.pt/em-destaque/ dia-mundial-da-asma-3-de-maio-pdf.aspx; (12) WHO (2019). Climate change and human health - risks and responses. Summary.Consultado a 2 Novembro 2019, em https://www.who.int/globalchange/summary/en/index5. html; (13) Tavares, António. (2018). O Impacto das Alterações Climáticas na Saúde. Acta Médica Portuguesa. 31. 241. 10.20344/ amp.10473.
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Afonso Morais
Portugal: um Caso de Sucesso no Combate às Drogas Comentário de José Rodrigues 25 de Abril de 1974, dia da Revolução dos Cravos, marca o fim do Estado Novo. Vigente desde 1933, este regime ditatorial escudou o país de influências estrangeiras. Deste modo, não houve contacto dos portugueses com o fenómeno de emergência e experimentação de drogas, crescente à escala mundial. Aliado a esse isolamento, a ignorância acerca das mesmas e dos perigos associados levou a que a “abertura” do país a este nível fosse catastrófica. No espaço de alguns anos, o consumo de estupefacientes em solo nacional tornou-se uma epidemia. Estima-se que, na década de 80, um em cada cem portugueses tinham algum tipo de dependência de heroína. Aumentaram exponencialmente os casos de HIV, sendo que, entre 1993 e 2000, mais de 50% dos novos casos reportados eram atribuídos à toxicodependência e Portugal figurava no topo da lista dos países da União Europeia com maior rácio de casos de infeção por HIV. Com uma política criminalizadora até então, o dia 29 de Novembro de 2001 marca o ponto de viragem na abordagem portuguesa à problemática das drogas. Isto porque entra em vigor a Lei nº 30/2000, responsável pela descriminalização da aquisição, posse e consumo destas substâncias. Ressalve-se que a descriminalização se refere apenas a quantidades inferiores à necessária para consumo médio individual durante um período
de 10 dias e que esta não se associa à despenalização destes comportamentos. Assim, estes atos são encarados como uma contraordenação social. Se as autoridades apanharem alguém com fornecimento pessoal, os indivíduos ficam sujeitos a uma advertência, coima ou a comparecer perante uma comissão local, as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT). As CDT são equipas multidisciplinares que avaliam o consumo dos indiciados, bem como o risco de dependência e informam acerca de tratamentos, redução de danos e serviços de apoio disponíveis. Esta legislação, pioneira no mundo, dividiu a opinião pública. Chegou mesmo a ser repreendida por uma estrutura da ONU. Havia o receio de que estas medidas fossem entendidas como um incentivo ao consumo, levando ao seu aumento e das consequências inerentes. Tal cenário não se verificou. Na realidade, apesar do impacto inexistente nos padrões de consumo, assistiu-se a uma redução significativa do número de infeções por HIV em toxicodependentes e do número de overdoses. Houve também uma redução da carga destes casos no sistema judicial, com um aumento das contraordenações e uma diminuição dos processos crime. Assim, quase 17 anos depois da introdução da Lei da descriminalização do consumo, é possível afirmar com segurança que esta foi benéfica no combate às
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P OR T UGA L : UM CAS O DE S UCE S S O NO C OMB AT E ÀS DR OGAS
drogas. O sucesso tornou-a numa referência mundial pelo seu caráter inovador e resultados positivos, pelo que já foi citada como exemplo em vários artigos de órgãos de informação internacional. É, contudo, importante analisar cuidadosamente este caso de sucesso. Este deveu-se a uma mudança da mentalidade dos legisladores que reconheceram a dependência como um problema de saúde individual e pública, concluindo que a criminalização em nada contribuía para o tratamento dos indivíduos, nem diminuía os consumos. Há assim que distinguir duas componentes neste paradigma. A componente jurídica, responsável pela descriminalização – e não despenalização. E a componente social, que se caracterizou pela mudança de mentalidade que alterou a perceção acerca dos consumidores de drogas, uma vez que estes deixaram de ter o estigma de criminosos, passando a ser vistos como doentes com direito a ajuda. É ainda de referir o investimento na prevenção e reinserção. Fruto da simbiose destes dois componentes reside o sucesso por detrás da estratégia portuguesa.
QUAL O FUTURO DO COMBATE ÀS DROGAS? Podemos estar satisfeitos e orgulhosos com o trajeto português no combate às drogas, mas não podemos dar a batalha como ganha. Com o mercado de drogas ilícitas a migrar para o meio digital, é preciso arranjar estratégias eficazes para o deter. Existe também a necessidade de reforçar a aposta em medidas de redução de risco, tais como “salas de chuto”, tema que vem a ser debatido há já alguns anos. Por último, é importante referir que se tem vindo a verificar um aumento do consumo de cannabis e o tema da legalização da marijuana começa a surgir com maior frequência. Foi publicado na Acta Médica Portuguesa um artigo de revisão que conclui, “tendo por base uma perspetiva de saúde pública”, que o debate sobre a “legalização responsável e segura do uso de cannabis em Portugal deve ser aberto e promovido”. Estará na altura de voltar a inovar?
Este artigo de maio de 2018 terminava lançando perspetivas sobre os próximos passos do combate às drogas em Portugal. As salas de consumo vigiado saíram do papel, por enquanto através de uma carrinha móvel em Lisboa que “estaciona” nas freguesias do Beato e de Arroios, sendo que a implementação de u n i d a d e s fixas em Lisboa e no Porto tem sofrido sucessivos atrasos. A alteração dos padrões de aquisição de drogas ilícitas, com maior preponderância do digital, tornou-se mais evidente durante a pandemia, de acordo com o Relatório Europeu sobre Drogas 2020, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), que demonstra também preocupação com o impacto e a sobrecarga a que os serviços de saúde dedicados ao acompanhamento de toxicodependentes podem vir a ser sujeitos. O uso terapêutico da cannabis foi aprovado em Portugal pouco tempo após a publicação do artigo (em junho 2018). Apesar da larga discussão, não houve (ainda) alterações relativamente à legalização do consumo recreativo. Em suma, muitas das premissas aquando da XXVII edição foram ultrapassadas pela realidade em constante mutação, apesar de outras se terem revelado mais perenes do que o expectável, num tema dinâmico e cativante quer para a sociedade civil, quer para a comunidade científica. SICAD. Relatório Anual 2016 - Situação do país em matéria de drogas e toxicodependência. 2017. [consultado 2018 março 18]. Disponível em: http://sicad.pt | EMCDDA. Portugal - Country Drug Report. 2017 [consultado 2018 abril 13]. Disponível em: http://www.emcdda.europa.eu/publications/country-drug-reports/2017/portugal_en | Baptista-Leite, Ricardo e Ploeg, Lisa. (2018). O Caminho para a Legalização Responsável e Segura do Uso de Cannabis em Portugal. Acta Médica Portuguesa, 31(2): 115-125 [consultado 2018 março 18]. Disponível em: http:// www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/article/view/10093/5321
REWIND XXI
Miguel Carvalho
O Acordo de Paris Revisitado Comentário de Rita Bernardo
“I was elected to represent the people of Pittsburgh, not Paris.”, disse Donald Trump a 1 de junho de 2017, enquanto discursava na Casa Branca. Foi com esta frase que Donald Trump anunciou a intenção dos Estados Unidos da América de abandonar o Acordo de Paris, nomeando diversos motivos para esta decisão, principalmente motivos económicos. E se muitos consideraram que o atual Presidente dos Estados Unidos iria mudar de opinião, especialmente após a intervenção dos CEO de várias das grandes empresas do país, estes viram essa sua esperança abalada no dia 4 de novembro de 2019, quando as Nações Unidas foram formalmente notificadas pela Administração Norte Americana da decisão de abandono desse acordo, iniciando-se definitivamente o processo de saída do acordo.(1)(2)(3) O Acordo de Paris foi assinado em dezembro de 2015 e foi um marco no combate às alterações climáticas, em grande parte por ter contado com a assinatura de 195 países – entre os quais a China e a Índia. Neste os países comprometiam-se a tomar medidas individuais e adaptadas à realidade de cada um para impedir uma subida da temperatura global média igual ou superior a 2 ºC relativamente à temperatura global média préindustrialização.(4) Considerado como um novo protocolo de Kyoto, este endereçou um dos principais problemas que levaram ao falhanço deste último, eliminando
a necessidade de vinculação legal ao acordo (e consequentemente ausência de punições). Ou seja, os países são encorajados a tomar medidas, não havendo qualquer obrigação legal para a sua tomada. Um dos mais fortes opositores a esta medida foi James Hansen, considerado como o pai da sensibilização para as alterações climáticas. Em entrevista ao The Guardian em Dezembro de 2015, este considera que todo o acordo foi uma fraude por vários motivos. Um dos principais é a ausência de qualquer punição económica contra as nações que não cumpram os objetivos na redução da emissão de gases de efeito estufa. Este defende a criação de uma taxa por tonelada de emissões de carbono, que iria aumentar todos os anos e que poderia atingir valores que, no caso dos EUA, chegariam aos 600 biliões de dólares.(5) Contudo, vindo do lado económico poderão vir diversas críticas – algumas das quais personificadas por Donald Trump e algumas das quais falsas. Estas passam por considerar que a adopção do acordo iria pôr em xeque a produtividade, crescimento e lucro das empresas, através da imposição da limitação das emissões de carbono. Esta situação acaba por influenciar, principalmente, as grandes corporações que exploram os combustíveis fósseis – grandes apoiantes de Donald Trump, num aparte. Contudo, esta crítica acaba por ser falaciosa, em grande parte porque algumas das maiores empresas dos EUA, como
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O AC OR DO DE PAR IS R E VISITADO
a Apple, a Microsoft e a Intel, apoiam o Acordo de Paris(3)(6) – tendo até, como referido anteriormente, tentado demover o presidente desta decisão. Outro motivo pelo qual esta crítica é falsa advém do facto de, ao limitar o crescimento das empresas que exploram os combustíveis fósseis, este acordo estimular o surgimento de novas empresas na área das fontes de energia alternativa, havendo uma passagem dos trabalhadores de uma indústria para outra, havendo virtualmente nenhuma perda.
Uma coisa é certa: esta decisão dos EUA poderá pôr em causa o Acordo de Paris, mas é preciso ter em conta que este acordo e as suas importantes falhas colocavam, por si só, o objetivo de impedir o aumento de 2 ºC em causa. Impõe-se desta forma a seguinte questão – será que o Acordo de Paris foi honesto na sua tentativa de evitar as alterações climáticas ou foi apenas uma forma de acalmar os ânimos da população cada vez mais preocupada com esses temas?
A principal limitação deste acordo advém de algo aparentemente óbvio para todos, mas não defendido abertamente pelo documento. A limitação das emissões é, por si só, insuficiente para limitar o aumento da temperatura média global. Como tal, é defendida pela comunidade científica a necessidade de se investir em fontes de energia alternativa. Em 2018, Bjorn Lomborg defendeu, numa entrevista à France 24 que o Acordo de Paris deixava 99% dos problemas ambientais por resolver, defendendo que este devia focar-se num objetivo essencial – tornar as fontes de green energy mais baratas que os combustíveis fósseis. Este afirma que é um objetivo difícil, mas que, se alcançado, conseguiria mudar o paradigma atual, condicionando um shift para a independência dos combustíveis fósseis e consequente redução da emissão dos gases de efeito estufa.(8)
“Today, the Trump Administration officially left the Paris Climate Agreement. And in exactly 77 days, a Biden Administration will rejoin it.” Este foi o tweet do Presidente eleito nos EUA, no dia 4 de novembro de 2020. Apesar da saída dos EUA do Acordo de Paris, o aumento do investimento nas energias verdes, refletiu-se na estabilização das emissões de gases de efeito de estufa naquele país.(8) Um estudo publicado na Nature revela que, durante os meses de confinamento, as emissões globais de CO2 diminuíram em média 17%, em relação ao período homólogo do ano passado (em virtude da diminuição no transporte terrestre e aéreo) – mesmo assim, basta recuar a 2006 para encontrar as mesmas cerca de 37 mil milhões toneladas de CO2.(9,10) A pandemia mostrou que os objetivos traçados em Paris em 2015 são alcançáveis – impõem-se mudanças nos hábitos de consumo, nas políticas e investimentos. (1) Holden, E. (2019). Trump begins year-long process to formally exit Paris climate agreement. The Guardian. Disponível em https://www.theguardian.com/us-news/2019/nov/04/ donald-trump-climate-crisis-exit-paris-agreement; (2) The Washington Post. (2017). Trump: 'I was elected to represent the citizens of Pittsburgh, not Paris'. Disponível em https://www. washingtonpost.com/video/national/trump-i-was-elected-to-represent-the-citizens-of-pittsburgh-not-paris/2017/06/01/11007d80-4707-11e7-8de1-cec59a9bf4b1_video.html; (3) Oliver, J. (2017). Paris Agreement: Last Week Tonight [Youtube]. HBO. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5scez5dqtAc; (4) Paris Agreement - Climate Action - European Commission. Disponível em https://ec.europa.eu/clima/policies/international/negotiations/paris_en; (5) Milman, O. (2015). James Hansen, father of climate change awareness, calls Paris talks 'a fraud'. The Guardian. Disponível em https://www.theguardian.com/environment/2015/dec/12/james-hansen-climate-change-paris-talks-fraud; (6) Shah, S. (2017). Apple, Intel, Microsoft and more commit to Paris Agreement on climate change. The Inquirer. Disponível em https://www.theinquirer.net/inquirer/news/3011437/apple-intel-microsoft-and-morecommit-to-paris-agreement-on-climate-change; (7) Global warming: 'Paris agreement will leave 99% of the problem unsolved'. (2018). [TV]. France 24. Disponível em https://www. france24.com/en/20181031-perspective-bjorn-lomborg-environment-paris-climate-agreement-green-energy-renewables; (8) https://www.scientificamerican.com/article/u-s-exits-parisclimate-accord-after-trump-stalls-global-warming-action-for-four-years/; (9) https://www.nature.com/articles/s41467-020-18922-7; (10) https://www.audubon.org/news/the-unitedstates-will-rejoin-paris-agreement-whats-next
GRANDE REPORTAGEM REPORTAGEM REPORTAGEM REPORTAGEM REPORTAGEM REPORTAGEM REPORTAGEM REPORTAGEM REPORTAGEM
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GR ANDE R EP OR TAGEM
António Velha & Vasco Lobo
Público ou Privado: Qual a melhor solução para um sistema de saúde para todos? Comentário de Catarina Monteiro
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m 1946, foi aprovada a Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), na qual podemos ler: Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição económica ou social. Tanto o Banco Mundial como a OMS designaram a cobertura universal de saúde como um objetivo primário. Atualmente, a discussão no panorama político português tem sido marcada por diversas propostas antagónicas de remodelação da Lei de Bases da Saúde, legislação que estabelece o quadro do sistema nacional de saúde e, particularmente, do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Contudo, o debate rapidamente cedeu a simplificações e dicotomias, nomeadamente a do público vs. privado. Surge na opinião pública a perceção de que estamos perante uma bifurcação e que só podemos tomar um de dois caminhos. DIFERENTES SABORES DE SISTEMAS DE SAÚDE O que é um sistema de saúde? Genericamente, corresponde ao conjunto das organizações que prestam serviços médicos (hospitais, centros de saúde, etc.) e que providenciam o seu financiamento (governos, comunidades locais, companhias privadas de seguros, etc.). Dada a sua enorme variedade, os sistemas de saúde podem ser agrupados de várias formas:
1) Modelo Beveridge – baseado num serviço nacional de saúde, de acesso universal, providenciado e financiado pelo governo através do Orçamento de Estado; não exclui a existência de prestadores de saúde privados, que podem ou não receber financiamento estatal (ex.: Portugal, Reino Unido, países escandinavos, Espanha, Nova Zelândia, etc.); 2) Modelo Bismarck – baseado na segurança social, nomeadamente através de seguros obrigatórios (que revertem para “fundos de doença”, que qualquer contribuinte usa com base nas suas necessidades); o Estado vigia um sistema de contratos entre utentes, fornecedores de serviços e seguradoras (ex.: Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Japão e Suíça); 3) Modelo nacional de seguro de saúde – inclui elementos dos anteriores: os prestadores de cuidados são privados, mas o financiamento vem de um programa de seguro gerido pelo Estado, para o qual todos contribuem; não há objetivos lucrativos nos seguros (ex.: Canadá, Taiwan, Coreia do Sul, etc.). 4) Modelo out-of-pocket – não há um sistema de garantia de acesso universal a cuidados de saúde, sendo estes pagos diretamente pelos utentes; apresenta tendencialmente maus outcomes e é característico dos países em desenvolvimento (ex: África, Índia, China, América do Sul, etc.)
P ÚB L IC O OU P R I VA DO: QUAL A MELHOR SOLUÇÃO PARA UM SISTEMA DE SAÚDE PARA TODOS?
5) Modelo Semashko – diretamente controlado pelo Estado, que é proprietário de todas as infraestruturas, financiador de todos os procedimentos e alocador dos serviços à população (ex.: Rússia, Bulgária, Polónia, República Checa, etc.) Relativamente à natureza do financiamento dos sistemas de saúde, encontramos uma panóplia de métodos que inclui fundos governamentais, seguros de saúde ou sociais obrigatórios (financiados de forma pública, privada ou ambas), seguros de saúde voluntários (privados), fundos pessoais, ONGs e até corporações. No geral, cada país aplica vários destes métodos, diferindo na sua dominância relativa. E EM PORTUGAL? Segundo o relatório Health Systems in Transition, em 2010, a tendência de crescimento dos gastos públicos, que se verificava desde os anos 90, inverteu-se e deu lugar a um aumento da despesa privada. Em 2014, o setor público contribuía para 66,2% dos gastos em saúde (menor que a média europeia: 76,2%), e o setor privado para os restantes 33,8%, dos quais 5,4% provinha de seguradoras e 27,5% de gastos outof-pocket (taxas e co-pagamentos cobertos diretamente pelos utentes em produtos farmacêuticos, exames laboratoriais e imagiológicos ou, controversamente, taxas moderadoras) - este último está entre os mais altos a nível europeu e constitui um grave fator de inequidade.
No geral, o SNS oferece cuidados universais e compreensivos aos cidadãos e contratos com privados permitem ao SNS, como financiador, alcançar as necessidades dos utentes em testes laboratoriais, imagiologia, diálise e reabilitação. No entanto, os tempos de espera elevados permanecem um problema major, com impacto no acesso, equidade e proteção financeira (os utentes procuram no setor privado respostas que não alcançam no SNS), e poderão constituir a explicação para a magnitude de pagamentos sob a forma de gastos out-of-pocket. Recentemente, estes e os do setor privado têm aumentado, apesar da oferta de serviços no SNS não ter diminuído, o que sugere que cidadãos com maiores rendimentos se têm virado para os cuidados privados devido à insatisfação com o SNS. OS CAMINHOS ADIANTE Segundo o relatório Um Futuro para a Saúde, da Fundação Calouste Gulbenkian, o SNS é financiado de três formas principais: 1) receita de impostos; 2) co-pagamentos e taxas pagas pelos utentes; 3) subsistemas e sistemas privados de seguros de saúde.
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Segundo o relatório, há um consenso geral na população a favor da manutenção do financiamento do SNS pelos impostos, e da sua acessibilidade de forma equitativa e universal. A adoção de um sistema totalmente privado teria benefícios incertos e uma implementação excessivamente dispendiosa. A margem para aumentar os impostos gerais é reduzida, pelo que se sugere aumentar os impostos sobre os produtos pouco saudáveis e criar incentivos para comportamentos saudáveis. Quanto aos copagamentos, reconhecem-se as suas desvantagens: evidências indicam que reduzem a utilização dos cuidados de saúde, tanto os inadequados como os necessários, tendo um efeito negativo sobre os mais desfavorecidos. Além disto, quando elevados, requerem isenções para os grupos mais vulneráveis e levam os utentes com mais meios a optar por um seguro privado. Dada a sua natureza regressiva (ignoram os rendimentos do pagador), implicam um maior risco de famílias e cidadãos com menores rendimentos se confrontarem com custos incomportáveis.
um enquadramento político coerente”. O relatório da Gulbenkian sugere, assim, a adoção de uma abordagem pragmática, fazendo participar este setor, com fins lucrativos e não lucrativos, na sua missão de proporcionar serviços de qualidade, exigindo transparência e respeito pelos mesmos valores que o setor público. Na base desta iniciativa estará a criação de um Acordo Público-Privado que defina esse quadro legal, visando o benefício da população e dos doentes e não apenas do setor privado.
Os subsistemas de saúde (sendo o maior a ADSE, subsistema voluntário e pago, para funcionários públicos e os seus familiares) têm como principal vantagem a possibilidade de recorrer diretamente ao setor privado pagando uma reduzida quantia, sem aprovação prévia do subsistema. Isto resulta em maior utilização de recursos ao invés de melhor qualidade dos mesmos. Pela sua natureza, os subsistemas apenas estão ao alcance de pessoas com garantia de emprego, deixando tendencialmente de parte os mais idosos e os mais pobres, que comportam os maiores problemas de saúde e poderão não ter emprego. Dada a sua condição, também não conseguem comportar os planos de seguros privados, apenas disponíveis para quem tenha meios suficientes. Desta forma, o alargamento da ADSE é frequentemente apontado como potencialmente adverso para a sua sustentabilidade.
Em 1979, foi fundado em Portugal o SNS, estabelecido como um sistema universal do tipo Beveridge. Segundo o relatório Um Futuro para a Saúde, apesar das falhas que motivam a discussão sobre a reformulação da Lei de Bases da Saúde, reconhecese que temos um SNS funcional, com padrões elevados e profissionais qualificados, baseado na universalidade, equidade, solidariedade e no acesso a cuidados de saúde de qualidade. Existe, assim, uma base sólida para construir um sistema mais adaptado aos desafios presentes e futuros.: novas tecnologias, envelhecimento da população, aumento da incidência de doenças crónicas, alterações climáticas, resistências aos antimicrobianos, agravamento das desigualdades económicas, etc.
Quanto ao setor privado, a concorrência pode melhorar a qualidade e os tempos de espera nos serviços, desde que cumpridos uma série de prérequisitos respeitantes à liberdade e informação do consumidor e à regulação do setor, apesar de se levantarem questões acerca da continuidade de cuidados e colaboração entre prestadores. Em 2010, a OMS recomendou a Portugal que se esclarecesse e regulamentasse o papel do setor privado “através de
Finalmente, o relatório adverte contra alguns pontos fulcrais: • O fenómeno de “procura motivada pela oferta” – criar novos serviços aumentará a procura, sejam necessários ou não. • Os modelos de pagamento por ato praticado – que incentivam atividades em vez de outcomes, aumentando os custos. CONCLUSÃO
Neste contexto, é relevante considerar o desgaste da crise financeira de 2008 sobre a robustez do nosso serviço de saúde. Até agora, demonstrou extraordinária resiliência, não tendo sofrido decréscimos nos rankings de eficiência. No entanto, um relatório recente elaborado para o Gabinete de Conselheiros de Política Europeia prevê que as desigualdades crescentes (em parte consequência da crise financeira) se tornarão o maior desafio a enfrentar pela Europa, à medida que a fase aguda da crise se dissipar.
P ÚB L IC O OU P R I VA DO: QUAL A MELHOR SOLUÇÃO PARA UM SISTEMA DE SAÚDE PARA TODOS?
Não existe um modelo ideal para um sistema de saúde. Dependerá sempre do contexto nacional mas, genericamente, os modelos europeus baseados na solidariedade apresentam os melhores outcomes, conforme a última avaliação do Commonwealth Fund.
A arquitetura financeira não garante a viabilidade do sistema de saúde, mas uma deficiente arquitetura financeira pode destruí-lo. As reformas na saúde deverão antecipar as desigualdades entre os cidadãos, e ser implementadas de forma progressiva, avaliando outcomes e impactos sobre todos os envolvidos.
“A saúde constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, religião, credo político, condição económica ou social”. Este é o ponto de partida para uma discussão que, atentando na realidade portuguesa, conclui que o SNS tem qualidade, universalidade, equidade e solidariedade no acesso a cuidados de saúde. Um ano volvido e numa atualidade pandémica que já não esconde a deficitária economia as autoridades políticas estão mais atentas à importância colossal de um SNS bem financiado para dar resposta eficaz às necessidades da sociedade. Porém, e num tempo de saturação das fileiras públicas, a cooperação com o setor privado adquire destaque neste debate de longa data. A própria Lei de Bases da Saúde refere que “de forma supletiva e temporária podem ser celebrados acordos com entidades privadas...” e, este ano, o governo aprovou o alargamento da ADSE. Estarão estas medidas a folgar “a joia da coroa portuguesa" para termos um Sistema de Saúde robusto ou é este o princípio do fim da saúde equitativa, justa e solidária...
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Carolina Moreira
A Importância da Representação da Doença Mental em Ícones da Cultura Popular Comentário de Antonio Lopez
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á histórias que sabem a casa, histórias para as quais voltamos vezes e vezes sem conta. Todos temos livros cujas folhas já se começaram a soltar de tanto que foram folheadas e livros ou séries que conhecemos tão bem que somos capazes de imitar os diálogos na perfeição. Os seres humanos precisam de se sentir inspirados e de encontrar personagens nos quais se sintam reflectidos. Precisamos de heróis. Podemos encontrá-los no nosso grupo de relações mais próximo, em amigos ou familiares, ou em seres humanos reais extraordinários que admiramos, mas há algo nas histórias de super-heróis que nos atrai. Talvez porque nos queremos sentir como eles, ter a sensação de que podemos ser maiores que nós mesmos e que a nossa vida tem um propósito especial. Precisamos destas histórias para fugir à nossa realidade e precisamos delas para construir uma melhor realidade. Os superheróis infiltraram o nosso quotidiano, deixaram a penumbra do nicho nerd e habitam agora na nossa cultura popular. Mas engane-se quem acha que super-heróis são uma criação dos tempos modernos. Se lhes retirarmos a capa e o “super”, vemos que eles existem na cultura ocidental desde que esta nasceu. Segundo Plutarco, Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), dormia com
uma cópia da Ilíada debaixo da sua almofada, da mesma forma que hoje em dia uma criança tem uma banda desenhada do seu herói preferido à cabeceira da cama. A influência de Aquiles nas atitudes e escolhas de Alexandre é quase palpável, as inúmeras coincidências das suas biografias são uma evidência da importância dos nossos ídolos na forma como lidamos com as mais diversas situações. Os heróis, para além de serem um elemento comum ao longo da História da humanidade, vão evoluindo ao ritmo da nossa própria evolução. Cada cultura tem os seus ídolos, adaptados à necessidade da época e das pessoas que vão influenciar. Uma criança britânica do século XII, que crescia a ouvir histórias do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, poderia aspirar depois a tornar-se um cavaleiro da ordem dos templários, destinado a lutar nas cruzadas e a imitar os seus heróis. Um dos mais adorados superheróis modernos, o Capitão América, surge em 1941, ainda antes do ataque a Pearl Harbor, mas acabou por ter um papel importante no espírito de patriotismo que se propagou por todo o povo americano e lhe deu um sentido de união durante os anos de conflito. Não interessa em que momento da história ou local do planeta nos encontremos, existe sempre um superherói a servir de inspiração a milhares.
A IMP OR TÂNCIA DA R EP R E SENTAÇÃO DA DOENÇA MENTAL EM ÍCONES DA CULTUR A P OPUL AR
Assistimos hoje a uma nova época de ouro dos super-heróis. Na linha da frente desta revolução cultural está a Marvel, cujas personagens podem ser resumidas nas palavras de Stan Lee: “I just tried to write characters who are human beings who also have superpowers” Estas personagens são um espelho para a humanidade, têm defeitos e falhas, sofrem e erram. Os criadores de entretenimento, respondendo ao pedido do público por mais diversidade e profundidade nas personagens e tocados por um novo sentido de responsabilidade social, perceberam como usar as suas obras para educar a audiência e combater o estigma de certos temas. Em particular, a doença mental está a deixar de ser um assunto a evitar pelos autores. Aliás, muitos têm escolhido representar, de forma até bastante respeitável e correta, alguma forma de doença mental nas suas personagens. Os super-heróis deixaram de ser apenas uma versão perfeita e melhorada do ser humano. Um dos melhores exemplos pode ser encontrado no filme Homem de Ferro 3 (2013), em que Tony Stark, o mais seguro de si de todos os heróis do universo da Marvel, sofre de ataques de ansiedade severos. Além disso, esta personagem luta com problemas de alcoolismo e tendências narcisistas, tão bem retratados na banda desenhada Demon in a bottle (1979). Ele reconhece os seus problemas e procura ajuda psiquiátrica. Nada disto o impede de ser um superherói, apenas o torna mais humano e complexo, pelo que há uma certa empatia do público para as batalhas que este trava contra os seus “demónios interiores” e
milhares de pessoas podem ver representadas as suas lutas diárias num grande ecrã. Outra personagem que é um óptimo exemplo é Jessica Jones, uma heroína que vive com stress póstraumático causado por uma relação abusiva e que se refugia no álcool, até encontrar formas mais saudáveis de lidar com a sua doença. Muitas pessoas vítimas de relações tóxicas têm nesta heroína um exemplo de alguém que encontra coragem para aceitar o seu diagnóstico e não se deixar definir por ele. O maior erro que se costumava (e costuma) incorrer é a associação da loucura à maldade, caracterizando muitos dos vilões como loucos, e usar esse termo como sinónimo de doença mental. Apesar de alguns erros ainda cometidos, a doença mental deixou de ser exclusiva dos vilões e deixou de ser vista como um defeito dos super-heróis, mas antes como mais uma adversidade que eles podem, com a devida ajuda, ultrapassar. Ter um super-herói, amado pelo público, que sofre de distúrbio de ansiedade, não o torna fraco, torna-o humano. Normalizar, sem banalizar, é o grande objectivo. A representação importa, é através dela que podemos educar o grande público e dar a oportunidade a que todos, independentemente das adversidades pessoais, se sintam incluídos e aceites em sociedade. Se os heróis, versões melhoradas da humanidade, vivem com doença mental e mesmo assim salvam o universo, também qualquer um de nós é mais do que a sua doença e é capaz de ser a melhor versão possível de si mesmo.
Porque precisamos de heróis? Carl Jung também se questionava há já meio século. Propunha ele que todos nós herdamos uma coletânea de imagens, ideias e pensamentos, inconscientes a que chamou de arquétipos. Estes refletem experiências comuns que todos os humanos compartilharam ao longo de milhões de anos de evolução, e o objetivo principal destes é preparar-nos para estas experiências. Apelando aos nossos heróis (ou demónios), e não as suas “exaltações pop”, foi a sua imperfeição que moldou a nossa história. Descobrimos que não precisamos de ser perfeitos para fazer o heróico, mas muitos de nós continuam o caminho abrasivo em busca da perfeição que nos deixa em cacos. No fundo somos todos um pouco quebrados, mas é importante lembrar que até o lápis de cera mais quebrado ainda tem a mesma cor. Somos um produto inacabado vivendo na era da “Edição”, mas nenhum filtro será perfeito o suficiente para conseguirmos ser os heróis que queremos ser…
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Joana Cabrita
Os Media Como Educador Médico Comentário de Anamélia Almeida
Assistimos ao papel crescente dos meios de comunicação na sociedade em geral, sobretudo no que toca a conteúdo de rápida apreensão, como o que é veiculado através da internet. Contudo, para além do mundo online, também o tradicional “pequeno ecrã”, a rádio, as revistas e jornais são responsáveis por muito daquele que é o nosso conhecimento em determinadas matérias. A saúde não é exceção. Se, no passado, grande parte do que os utentes dos serviços de saúde conheciam acerca das doenças e seus tratamentos era fornecido pelo contacto com profissionais da área, nomeadamente médicos e enfermeiros, atualmente o panorama mudou. A medicina paternalista deu lugar à medicina partilhada. Cada vez mais o profissional de saúde é confrontado com informação prévia pesquisada de forma autónoma pelo doente. E aqui surgem diversas questões: Qual a veracidade do conteúdo que o utente encontra? Que impacto pode ter na relação médico-doente essa informação, quando não corresponde à prática médica mais correta e efetiva no contexto atual? Em 2007 foi publicado na Acta Médica Portuguesa um artigo da autoria de Silvina Santana e A. Sousa Pereira, que procurava analisar a forma como os cidadãos portugueses utilizavam a internet para questões de saúde ou doença, as características dos utilizadores e os efeitos reportados pela sua utilização no relacionamento com os profissionais de saúde.
Através da aplicação de questionários a uma amostra populacional, os investigadores perceberam que, em vários dos utilizadores da internet, a informação encontrada os levou a colocar perguntas ao profissional de saúde. O artigo concluía que “apesar de não contestar a importância do profissional de saúde enquanto fonte de informação, a Internet começa a tornar-se uma importante fonte de informação nesta área para os Portugueses, sendo de prever um aumento na procura de serviços de saúde disponíveis na Internet, o que provavelmente terá implicações na relação médicodoente”. Para além disso, deixava em aberto o seguinte: de que modo se poderá saber como cidadãos com diferentes capacidades e experiências educacionais utilizam a informação obtida na Internet? Uma tese de mestrado desenvolvida em 2006 (por Lídia Ferreira, do ISCTE-IUL) fez um levantamento de perceções dos médicos portugueses face a esta temática. Debruçando-se sobre a influência da internet no utente, a autora enumera os vários fatores que levam à necessidade de informação pelo mesmo, nomeadamente: o reconhecimento de um problema; o interesse na procura de solução; a avaliação das soluções possíveis; a experiência relativa a uma das soluções; e a adoção de uma solução. Já nesta altura se compreendia que o utente exige cada vez mais informação sobre o seu estado de saúde, bem como a sua participação na decisão do processo de tratamento. Este estudo concluiu que a troca
OS MEDIA COMO EDUCADOR MÉDICO
de informação entre médico e utente parece ter-se tornado mais ampla, uma vez que o conhecimento do utente é mais abrangente, o que parece originar uma aproximação informal na relação entre ambos. Esta alteração pode ter consequências ao nível da relação de confiança, uma vez que pode parecer que o utente está a confrontar a autoridade do médico. De acordo com os resultados deste estudo, o utente deveria ser reeducado, de forma a compreender que a informação na Internet pode ajudar a contextualizar ou a ter uma noção da sua patologia, mas nunca deverá este meio ser utilizado para o tratamento de uma doença. O autodiagnóstico e automedicação resultantes da interpretação da informação seriam dois riscos a eliminar com esta reeducação.
Num artigo publicado em 2015, no Expresso, é ainda relembrado o fundamental no meio de tantos porquês: a importância de saber pesquisar, ou seja, a literacia em saúde. Está provado que doentes bem informados têm melhores resultados clínicos e menos complicações. Contudo, se olharmos para resultados de inquéritos de literacia em saúde recentes, facilmente se percebe que grande parte daqueles que procuram informação não o faz da forma mais correta. Apesar dos benefícios inerentes à utilização dos media pelos cidadãos, importa relembrar que os riscos são reais e incluem a propagação de informação errada, desatualizada e que constitua motivo de alarme para o utente. Porém, existe algo que é indiscutível – o médico da atualidade tem que ser capaz de lidar com os vários aspetos relacionados com a propagação de informação sobre saúde pelos media, quer sejam positivos ou não.
Mais que reflexivo e intemporal, o artigo escrito por Joana Cabrita, em 2016, faz todo sentido diante do cenário pandémico enfrentado no último ano, onde nos deparamos com uma grande quantidade de informações disseminadas numa alta velocidade que mudavam constantemente, consoante o conhecimento científico avançava, o que nos faz repensar a importância da confirmação da veracidade de notícias que consumimos e partilhamos no nosso dia a dia. Cabe aos Media, bem como a toda população, a responsabilidade de veicular notícias fidedignas, de acordo com as diretrizes científicas, que promovam corretamente a literacia em saúde.
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CULTUR A
Mariana Bettencourt
Que Filme Estamos a Viver? H
ouve um tempo em que, na nossa mente, a palavra pandemia se encaixava razoavelmente bem em dois tipos de histórias: as que eram reais, mas antigas e, por isso, já estrategicamente arrumadas e embaciadas, e as do mundo da ficção. De repente, vimo-nos imersos numa realidade alternativa, sem saber ao certo como a encarar. Pandemia era uma coisa incerta, numa caixa selada, à deriva, atravessando mares ou oceanos, aguardando pelo momento em que pudesse chegar ao seu destino e espraiar-se: assim ao modo de Nosferatu (1922) que, depois de uma longa viagem de barco, se ergue do caixão, revelando dezenas de ratos, que escapam, portadores da peste – o filme fazia, assim, alusões à gripe espanhola. É reconhecida a frequência com que filmes de géneros vários retratam o tema da disseminação das doenças. Então, que filme é este, agora? Há alguns mais à ponta da língua, como Contagion (2011), World War Z (2013), I Am Legend (2007), Twelve Monkeys (1995), ou Resident Evil (2002-2017). Vê-los, ou revê-los, é atualmente uma experiência diferente, repleta de comparações: não tanto pelos zombies ou cenários pós-apocalípticos, mas sim pelo modo como a propagação do vírus é retratada e os comportamentos ou ações humanas que emergem em consequência (até mesmo nos fatos futuristas vs o vestuário e a máscara que agora usamos). Já noutros, como Bird Box (2018), a doença que se alastra pela humanidade é em parte metafórica, com relação a conceitos como o desespero, loucura e cegueira – essa última, é elemento igualmente presente em Blindness (2008). Em dois outros títulos,
infeções fora do controlo estão por detrás de uma corrida desenfreada contra o tempo, numa contagem decrescente que se encarrega de reter as personagens e o fôlego do espectador: Train to Busan (2016) e 28 Days Later (2002). A lista de filmes e séries abrangidos por este tema é longa. Porém, este novo mundo não foi feito somente da doença física. À semelhança de Night of the Living Dead (nas versões de 1968 e 1990, por exemplo), houve um quê de “ficar fechado em casa, observando a infeção a acercar-se”. Tal fenómeno colocou-nos à prova, num quotidiano de novos horários e espaços de trabalho – filmes como Cat on a Hot Tin Roof (1958), August: Osage County (2013) e Juste la fin du monde (2016) apresentamnos famílias em conflito, quando confrontadas com o confinamento temporário numa casa. Citar The Shining (1980) poderá ser um extremo, talvez. Porém, a curiosidade e engenho humano sobrepõem-se, como prova Rear Window (1954), em que se poderia dizer que os binóculos e a máquina fotográfica são um meio de transporte para o exterior, ou mesmo Four Rooms (1995), onde cada quarto encerra os inquilinos e narrativas mais estranhas. Quer tenhamos encarado a solidão olhando as estrelas, como WALL•E (2008), como o protagonista de Her (2013), ligando-se ao computador, ou como em Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2004), passando revista às memórias, aqui estamos. Sobreviventes, testemunhas em primeira mão do guião de 2020, que ficará na História, e não só.
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Filipa Dias
A Peste: A Intemporalidade do Flagelo Q
uem lesse a “A Peste” de Albert Camus e, porventura, desconhecesse a sua data de publicação, poderia muito bem achar que falava dos dias de hoje: sendo o livro de 1947, a relação entre o povo de Orão e a peste reflete a que hoje se estabelece entre o mundo no geral (mais nuns sítios do que noutros) e a pandemia da COVID-19. Baseado em acontecimentos reais, podemos dizer que a História, de facto, repete-se e não aprendemos com ela. Esta narrativa é-nos contada sobretudo à volta do Doutor Rieux, que relata a sua experiência, não como um indivíduo, mas como um coletivo do qual faz parte toda a população que estava atormentada com a doença. Defende que todos estavam assolados com o mesmo sentimento de exílio: a alienação à vida a que se tinham acostumado, a separação súbita dos que mais amam, a monotonia de haver um só assunto na cidade, a diminuição da esperança de um regresso a uma normalidade… Contudo, as pessoas não eram sensíveis ao impacto catastrófico da doença, não verdadeiramente. Incomodava quando esta provocava rupturas nos interesses pessoais e rotinas, de tal forma que insistiam em mantê-las mesmo que
fosse um imenso risco. A tragédia era percebida como algo distante, que toca ao outro e não a nós. Esta só se concretizava quando era o próprio, ou alguém que ama, a ser arrastado para o mesmo destino que “os outros”. “O flagelo não está à medida do Homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa e, de mau sonho em mau sonho, são os homens que passam, (…) pois não tomaram as suas precauções.” Ademais, surge uma outra perspetiva no romance, que é a de quem está na linha da frente a combater o flagelo com as próprias mãos. O coração que Doutor Rieux tinha “Servia-lhe para suportar as vinte horas por dia em que via morrer homens que tinham sido feitos para viver. Servia-lhe para recomeçar todos os dias (…). Como seria bastante esse coração para dar a vida?” Não havia mais vida para além do flagelo. Assim, aborda-se a abstração necessária para lidar com a morte e a sua impotência contra ela, sendo particularmente difícil para alguém que dedicou a sua vida a impedir que ela chegasse. O livro, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1957, lido à luz dos novos acontecimentos, tem um potente tom consciencializador. Reconhecemos o passado e o presente como algo que sentimos na pele, mas sobretudo porque abre os olhos para o futuro que se encaminha. No fundo, é partir de uma verdade ficcionada e aplicar na nossa realidade que nada tem de ficção.
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Miguel Henriques
Levanta-te e Anda À
medida que os anos passam, começamos a ganhar consciência da ciclicidade da nossa vida. Os altos são precedidos dos baixos, e os baixos, dos altos. Percebemos também que a vida gira à volta dos mesmos eixos - as relações amorosas, as relações familiares, de amizade, ambições profissionais e pessoais e experiências culturais. A certa altura concluímos também que tudo isto é influenciado pela perspetiva que se dá às diferentes experiências e desafios. A procura de uma nova perspetiva, que permita arranjar soluções, significados ou até mesmo uma mudança de prioridades, que contribuam para desbloquear o nosso caminho, é portanto um exercício que temos que fazer de tempos em tempos. Cada pessoa tem a sua própria maneira de realizar este processo. No entanto, venho aqui propor uma estratégia, que é por vezes sub-valorizada. É ela o contacto com a natureza e a aventura a que esta nos convida.
Foto: Miguel Henriques
A Natureza, pela qual todos cada vez mais fazem um esforço de conservar, é para já a maior constante que temos ao longo da nossa vida. A natureza muda, mas de forma bastante mais lenta que as nossas vidas, o que permite ser um espaço familiar mas também tão vasto, que é o sítio ideal para alguém se re-encontrar. A natureza não vem com condições, não nos exige nada para além daquilo que é um respeito básico pela sua conservação. Tudo o que precisamos para nele nos encontrarmos é andar. Andar por onde há estrada, mas principalmente por onde não a há, e por todo o sítio que a nossa vontade quiser. Ela não nos julga e não nos faz perguntas. Por isso, levanta-te e anda. Procura o maior espaço verde perto de tua casa e vai. Anda como se nada mais existisse, como se não houvessem outras responsabilidades ou preocupações. A natureza é parte integral da nossa existência neste planeta, e deve ser experienciada, sentida. Não fomos feitos para viver apenas rodeados de tijolo e cimento.
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CRÓNICA 2
Leonor Carola
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unca ninguém está à espera. Não parece real. E, de repente, ocupa a nossa vida, domina-a até. Os restaurantes fecham, os cinemas fecham, os estudantes vêm ter aulas para casa e os miúdos aprendem pela televisão. Paro e penso se isto está mesmo a acontecer. Num segundo sinto a emoção de estar a viver um momento histórico, no segundo seguinte pergunto-me o que é que isto significa a longo prazo. É este o nosso destino? Sermos escravos de uma rotina inevitável: do quarto para a cozinha, da cozinha para a sala e de volta ao quarto. Sair da cama é mais difícil. O sítio de estudo é o mesmo sítio dos convívios com amigos. É tudo uma mancha, onde os dias se misturam com as noites e não sabemos se é fim-de-semana ou não. Estamos presos dentro destas 4 paredes, mas tudo parece ruir lá fora. Somos estudantes de medicina. Chegámos até aqui porque queremos ajudar, queremos marcar a diferença. Mas chega o momento e não há nada que possamos fazer. Porque a melhor forma de protegermos aqueles que amamos é ficar em casa, por muito que nos custe, por muito que nos faça sentir impotentes. Vivemos uma altura onde a distância é uma forma de amor. Mas tenho saudades do abraço. Qualquer abraço. Ver os meus amigos na chamada zoom e não poder chegar a eles. Ver a avó e não poder apertá-la. Lembrar os abraços de capa negra e os momentos descompensados no Egas. Parece tudo uma realidade diferente. Noutra vida, em que tínhamos liberdade para tudo e nem sabíamos. Tudo se desvaneceu tão rápido, sem termos uma palavra a dizer.
E agora aqui estou. A única coisa que me resta é lembrar. Porque quanto mais fechada me sinto fisicamente, mais a minha cabeça viaja. Por tudo aquilo que pode vir, por tudo aquilo que passou, por todas as memórias queridas que guardo no coração. E, inevitavelmente, desejo voltar. A este mundo sem quadradinhos zoom, sem máscara, sem gel desinfetante na bolsa da mochila, sem cotoveladas em vez de abraços e sem 2 m de distância. É quase impossível não pensar naquilo que poderia estar a viver, mas não estou, porque chegou um vírus que decidiu pôr em pausa a vida. Mas o tempo não para, não faz pausa. E isso é frustrante. Mas ao menos vivo na certeza de que, quando podermos voltar à normalidade, sair de casa e carregar nos botões do elevador sem ter de desinfetar as mãos, os abraços vão ser mais apertados. Quando podermos voltar à normalidade, entrar na faculdade sem usar uma máscara, os sorrisos vão ser mais bonitos. Quando podermos voltar à normalidade, ver os nossos avós sem barreiras, o amor vai ser mais genuíno. E agarro-me a isto.
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XXXII
MAR. 2021