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JUL.2020
SEXO: LIBERDADE OU CRIME? REPRODUÇÃO E SEXUALIDADE /// CULTURA
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Uma nova edição, com o mesmo conceito. A RESSONÂNCIA é para nós a plataforma ideal para partilharmos paixões, abrirmos olhos, e tornar cada um dos nossos leitores em membros ativos da sociedade, conscientes e que dão uso à sua voz. Nesta edição, levantamos as cortinas que tapam as conversas sobre crimes sexuais, o estatuto atual da prostituição, a eficácia da educação sexual e os métodos atuais, mas insuficientes, de contracepção. Baseamo-nos em informações locais, evidenciando situações que decorrem atualmente no nosso país e sobre as quais devemos estar informados. Há tanto para descobrir nesta edição e num momento em que os ciclos noticiosos parecem monotemáticos, convidamos o leitor a ler algo diferente do assunto que tomou conta das nossas vidas. Esta edição só foi possível graças ao esforço conjunto dos nossos colaboradores e equipa editorial, que se entregaram ao longo deste último ano a este projeto tão honesto, e que nos ajudaram a construir uma revista à distância. A eles, aos profissionais de saúde que trabalham na linha da frente desta pandemia e a si, o leitor, que faz o esforço valer a pena, dedicamos esta edição. Um dia voltará a pegar numa cópia física da RESSONÂNCIA, até lá encurtamos a distância através da tecnologia. Obrigada e até breve.
Carolina Moreira e Catarina Cardoso, Coordenação-Geral da Revista RESSONÂNCIA
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CRÓNICA 1 “A N D T H E R E ’ S A S P E C I A L K I N D O F S A D N E S S T H A T SEEMS TO COME WITH SPRING”
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FLORENCE + THE MACHINE , SOUTH LONDON FEVER
SEXO: LIBERDADE OU CRIME? VIOLÊNCIA SE XUAL NA UNIVERSIDADE DE LISBOA
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A BANALIDADE DO A SSÉDIO
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LEGALIZ AÇ ÃO DA PROS TITUIÇ ÃO
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GRANDE ENTREVISTA E N T R E V I S T A A A L E X A N D R E VA L E N T I M L O U R E N Ç O
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REPRODUÇÃO E SEXUALIDADE CO NTR ACE TIVO M A S CU LI N O
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E D U C A Ç Ã O S E X U A L : H AV E R Á E V I D Ê N C I A CIENTÍFICA?
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CULTURA PA R I S I S B U R N I N G • M E D S CE N E
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ASSÉDIO • CUR ARTE
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S I L H U E TA E S P E L H A DA • P L AT O N
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CRÓNICA 2 “ M A R , V I R T U D E E O I T E N TA”
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CRÓNICA 1
CAROLINA MOREIRA
“and there’s a special kind of sadness that seems to come with spring” Florence + The Machine, South London Fever
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a minha janela vejo o tempo passar. As flores estão mais bonitas que nunca. Os dias de sol são quentes e os de chuva nunca me incomodaram e trazem uma frescura agradável. As folhas das árvores adornam-se com o verde brilhante típico desta época do ano. Pela primeira vez em seis anos passei a primavera em casa, no Norte, longe da cidade. Na minha rua em Lisboa, assistia ao passar das estações pelo arvoredo da rua, pela cor das folhas – do verde ao amarelo, ao castanho, até que aos poucos já não havia nenhuma e o ciclo recomeçava. Na azáfama dos dias não lhe prestava atenção, os curtos finsde-semana ocasionais em casa não me davam tempo para apreciar como o tempo muda tudo. Este ano voltei a casa na mesma altura que as andorinhas, no início de Março, e todos os dias desde então perco uns curtos minutos para apreciar os sons dos pássaros, a quantidade e variedade deles que habitam ao nosso redor. Todas as manhãs, na minha corrida matinal, passo um terreno com flores a perder de vista e todas a vezes imagino-me lá deitada no meio das flores, como se não fosse mais que uma daquelas plantas e tudo o que preciso são raios de Sol e a ocasional chuva.
Enquanto os dias são longos e quentes, o Inverno parece tão longínquo mas de repente já é Natal. O tempo é cruel porque passa devagar o suficiente para nos fazer esquecer que passa tão rápido e que a nossa existência não é mais que um piscar de olhos do universo. Não terei tempo para aprender e viver tudo o que gostaria, para tal seriam necessárias várias vidas bastante longas. Tempo é dinheiro e o segundo compra o primeiro, quer seja pela possibilidade de fugir aos transportes públicos ou contratando ajuda nas lidas domésticas. A quem pode sobra mais tempo. É um luxo como qualquer outro. Refletir sobre estas coisas não vai fazer abrandar os segundos, perder tempo a escrever sobre a passagem do tempo é contra produtivo. Mas, e apesar de não parar o relógio, pensar sobre isto fazme parar a mim, nem por uns momentos. Parar para olhar para a janela e ver o tempo passar nas flores do jardim. Hoje são bonitas e daqui a uns dias já não estão aqui. Perder tempo para ganhar tempo é um jogo viciado que nunca vamos ganhar mas que faz parte da condição humana jogar. E a vida continua, as horas passam e os pássaros cantam. E eu? Aqui estou, a olhar pela janela.
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EX
LIBERD
DADE OU CRIME?
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SEXO: LIBERDADE OU CRIME?
B R U N A P A U L I N O A LV E S
Violência Sexual na Universidade de Lisboa A
história não é nova. Virar a cara a comentários de natureza sexual, ignorar toques não consentidos em festas, ir para casa em grupos por ter medo ou sentir insegurança nos parques de estacionamento. Se parece familiar, então não serão estranhas as conclusões do estudo “Violência Sexual na Academia de Lisboa: Prevalência e Perceção dos Estudantes”.1
Desenvolvido entre 2018 e 2019 pelo Centro de Estudos da Federação Académica de Lisboa, com a “cooperação observante” da APAV, Quebrar o Silêncio e UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta, este estudo envolveu 995 estudantes, com idades compreendidas entre os 17 e os 30 anos, com uma média de 21 anos. Apesar de a amostra incluir inquiridos de todas as áreas formativas, predomina a área da Saúde (25,93%). Através de um inquérito constituído por 18 perguntas, a temática da violência sexual foi “analisada quanto a três dimensões” - a perspetiva da violência sexual, ou seja, compreender o que, segundo o estudante, constitui ou não violência sexual, a perceção de segurança, sobretudo relacionada com os campus universitários e, finalmente, a prevalência, isto é, a frequência de episódios de violência sexual no contexto académico. [1] https://www.tsf.pt/Galerias/PDF/2019/12/vslisboa.pdf
O paradigma do ensino superior como uma “experiência de exploração, de emancipação, de consumo de álcool, drogas e atividade sexual em concomitância com a integração em novos grupos sociais” estabelece um cenário de risco - um terço dos estudantes universitários da área metropolitana de Lisboa já foi vítima de violência sexual física pelo menos uma vez e são muito poucos os que denunciam as agressões. Apesar de uma esmagadora maioria reconhecer situações de contacto físico como violência sexual, nomeadamente “envolver-se com outra pessoa, sem o seu consentimento” (97,69%), “coagir outra pessoa a consumir substâncias (álcool ou drogas)” e ter relações sexuais com ela (91,16%) ou até mesmo “alguém adormecer enquanto está numa relação sexual e a outra pessoa dar continuidade à relação” (82,11%), ainda existe alguma discordância em “contextos que envolvem comentários sexuais indesejados, persistência, pressão psicológica e verbal”. Não obstante da sua criminalização em contexto nacional, 62,41% dos estudantes não considera violência sexual “uma pessoa dizer um piropo a outra pessoa” e 65,5% admite que já foi vítima de “comentários provocatórios de natureza sexual” pelo menos uma vez.
VIOLÊNCIA SEXUAL NA UNIVERSIDADE DE LISBOA
No cenário digital, os inquiridos não percepcionam “enviar um sms com um comentário sexual, sem contexto” (28,54%) nem “pedir fotografias dos genitais do(a) seu(sua) companheiro(a) quando numa relação afetiva” (73,47%) como episódios de violência sexual. Todavia, mais de um terço assume ter recebido “comentários, fotografias e/ou vídeos de carácter/conteúdo sexual indesejado”. Particular à área da saúde, 22,41% dos estudantes não acham que um(a) docente tocar “nas mamas de um(a) aluno(a) enquanto explica um procedimento médico e/ou outro” se caracterize como violência sexual. São 32%, os que afirmam já ter passado por momentos que envolveram, a “simulação de atos e/ou movimentos sexuais”, sem consentimento, e 29,2% presenciou “situações de atos exibicionistas de genitais”. Quase um terço dos estudantes registaram que “já alguém acariciou, beijou ou se esfregou nas partes íntimas e genitais, contra a minha vontade” e 14,1% assumem que já “foram coagidos(as) com vista a praticar atos sexuais”. Para as mesmas questões, quando se verifica incidência, aumenta a probabilidade de acontecerem múltiplas vezes. Adicionalmente, este estudo esclareceu uma das principais preocupações dos universitários - a sua insegurança nos trajetos, quer na ida, quer no regresso das instituições. Somente 14,27% confirmam ter experienciado insegurança “dentro da instituição de ensino”, mas muitos já sentiram medo ao serem abordados no parque de estacionamento da instituição (93,27%) e na paragem de autocarro/ metro (40,8%) quando iam ou voltavam da instituição de ensino.
Contudo, num total de 995 inquiridos, 79,6% dos quais viveram “situações de importunação sexual verbal ou não-verbal”, quase 1 em cada 10 “nunca contou ou reportou uma situação de violência sexual” e, quando reportam, a “polícia é colocada como a principal fonte de denúncia (39,53%), seguida dos amigos (20,93%) e de familiares e amigos (13,95%)”. Mais de metade não se sentiram satisfeitos com a resolução e apoio prestado. Os universitários da academia de Lisboa também identificaram os agressores sobretudo como “conhecido(a)(s) (32,58%), colega(s) (23,29%) e pessoal não docente (16,74%)”. Tendo por base os resultados obtidos, a Federação Académica de Lisboa compôs um conjunto de recomendações, de entre as quais se destacam a “promoção de campanhas de sensibilização” para “educar e desmistificar os conceitos de assédio e violência sexual”, a “criação de metodologias de denúncia de casos” dentro das próprias instituições de ensino e a “implementação de medidas de segurança” como “iluminação e controlo nos estabelecimentos de ensino, nos campi, nas paragens de transporte público e, em particular destaque, nos parques de estacionamento”. Por fim, a FAL incita também a “realização de um estudo a nível nacional” e a “definição de políticas públicas de combate ao assédio e violência sexual”. A história não é nova. Quantos de nós se identificam? Quantos de nós até chegámos a preencher este inquérito? A única coisa que pode mudar são os leitores e, talvez, as escolhas que fazem com esta informação.
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SEXO: LIBERDADE OU CRIME?
RAQUEL MORGADO
A Banalidade Do Assédio H
oje, a expressão “banalidade do assédio” parece quase uma antítese, já que este assunto tem vindo, frequentemente, a ser-nos lembrado, tornando-se rastilho para diversas conversações. Mas, de uma vez por todas, o debate tem de dar frutos. O assédio não é, e nunca será, sedução. Assédio. Quando ouço a palavra assédio, a primeira coisa que sinto é empatia pela vítima. Como está ela agora? O que é que estará a sentir? O que posso fazer para a ajudar? Onde é que se encontra? Podia ter sido a minha amiga, irmã, mãe ou avó. Mas, e nunca nos esqueçamos disto, também podia ter sido o meu amigo, irmão, pai ou avô. Alguns segundos depois, a cólera chega. Passo a sentir raiva e frustração. Porque é que alguém se sente no direito de o infligir a outra pessoa? Mais tarde, já numa fase de reflexão sobre o assunto, penso em mais porquês. Tento arranjar explicações para esta crueldade gratuita. Por um lado, concluo que a sua prática está enraizada na nossa cultura, de tal forma que olhamos para os eventos de assédio aparentemente mais levianos quase de forma inevitável. Está tão consolidado que estes atos são frequentemente desresponsabilizados por quem os pratica, pelo núcleo envolvente da vítima e, até, pela própria vítima. Para ilustrar esta situação, podemos analisar a reação de Aimee, personagem da série Sex Education. [Aviso: segue-se um mini spoiler. Se não o quiserem obter, desculpem, saltem para o próximo parágrafo.] Pondo de parte algumas questões cinematográficas (para os que não
gostaram muito da série), Sex Education consegue, de forma muito clara, ilustrar isto mesmo. Ora pois, rebobinando, Aimee, entra num autocarro que a levaria até à sua escola e, após fazer um simples simpático contacto visual com outro passageiro, este assedia-a. Decide sair do autocarro, não sem antes os restantes passageiros manterem um olhar impávido e sereno, aparentemente indiferentes à situação. Aliás, se tivéssemos que melhor descrever esses olhares, conseguiríamos aí identificar uma ligeira repulsa, não para com o perpetrador da agressão, mas para com a vítima. Após ter chegado à escola, Aimee desabafa apenas o incómodo que foi ter sujado um dos seus favoritos par de calças. A sua amiga, Maeve Wiley, ao ouvir isto, fica extremamente preocupada. Aimee desdramatiza. Maeve acaba por convencê-la a reportar o sucedido na esquadra da polícia. Só aí Aimee começa a perceber que, talvez, não foi apenas uma viagem de autocarro com um pequeno percalço, foi algo mais grave que isso. Nos dias seguintes Aimee recorda aquele episódio que já começa a condicionar o seu dia-a-dia: não consegue entrar no autocarro, a presença do namorado lembra-lhe o agressor e, ao mínimo pormenor, relembra-se do sucedido. Será que, se a sua colega não a impelisse a pensar, Aimee teria mesmo percebido a magnitude do que se passara?
A BANALIDADE DO ASSÉDIO
Constato, também, que continuamos a considerar que o problema que pode afetar o vizinho nunca nos afetará. Este abuso não discrimina: não faz distinção de sexos, classes ou etnias. Discotecas, bares, restaurantes, transportes públicos, espaços familiares, ruas percorridas vezes sem conta, consultórios médicos, locais de trabalho ou até em casa. Páginas como “Falar sobre isso”, no Instagram e Facebook, põem a cru relatos que comprovam que pode acontecer em qualquer lugar, a qualquer um, e isso nunca será culpa da vítima.
O ASSÉDIO NÃO É UMA INEVITABILIDADE
Por fim, concluo que não, o assédio não é uma inevitabilidade. As alterações da legislação portuguesa para isso também têm contribuído. Há já quase cinco anos, o artigo 170º do Código Penal contempla os “piropos”, passando estes a terem relevância criminal, podendo culminar numa pena de prisão até três anos. Deixo, ainda, em aberto a questão da educação sexual nas escolas: não nos estaremos a esquecer do que é a sexualidade, restringindo a informação apenas a métodos contracetivos e ISTs? Será que um ensino mais integrativo, que não se refugiasse em tabus, poderia educar de uma forma muito mais abrangente e, simultaneamente, acabar com esta aura de segredo e mistério que apenas cultiva medo e vergonha nas vítimas? Esta é uma realidade difícil e que choca. Contudo, isso não nos iliba de a discutirmos, tendo em vista a sua erradicação. Os cidadãos merecem vestir o que que querem, não terem medo de percorrer os mais variados locais sozinhos, estarem confortáveis consigo mesmo, isto é, serem detentores da sua autodeterminação e, no fundo, livres. AÇÃO sobre esta questão apresenta-se, mais do que nunca, inadiável.
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SEXO: LIBERDADE OU CRIME?
ANTONIO LOPEZ
Legalização da Prostituição A
Prostituição é tão antiga como o Mundo, escrevia Francisco Inácio dos Santos Cruz no seu livro em 1984. De facto, desde os primórdios da Humanidade, passando pela Mesopotâmia e Egipto, que se utilizam nomes como acompanhante, alcoviteira, concubina, cortesã, meretriz, prostituta, puta, rameira, e todos eles, sem exceção, vêm acompanhados de uma conotação moralista depreciativa. A palavra “puta” tem a sua origem no latim “putida”, que significa pútrida, estando associada a apodrecimento e fedor. Curiosamente, nem sempre a prostituição foi vista desta forma. Se nos focarmos nos tempos anteriores ao Cristianismo, na Babilónia, por exemplo, a prostituição era vista como “Sagrada”. A mulher era requisitada para prestar um serviço sagrado nos templos, sendo tal ato considerado como uma forma de iniciação à vida amorosa e símbolo de fertilidade.1-4
No entanto, paulatinamente, a figura do casamento ganhou um predomínio patriarcal, no qual os homens eram vistos praticamente donos das esposas. Esta nova postura criou uma divisão na sociedade entre as mulheres “legítimas” e as que se prostituíam. No Cristianismo, e de forma semelhante no Islamismo, estas mulheres eram proscritas, carregando consigo uma cruz, uma ideia de pecado que as estigmatizava como mulheres “ilegítimas”. Passados alguns séculos, na Idade Média, a prostituição continuava a ser vista como repulsiva, embora fazendo parte do comportamento humano, e por isso tolerada. 1,2,4
Não sendo um conceito completamente estanque, à medida de que a sociedade se foi transformando, foi evoluindo a forma como é vista esta atividade. A prostituição é um tema fraturante, causando tanto repulsa como ao mesmo tempo, atraindo, mesmo fascinando muitas mentes devido ao facto de ser extremamente intrigante.1,2 Voltando à história, e focando-nos mais em territórios lusos, no século XIX português, a prostituição já era recorrente nas grandes zonas urbanas (Lisboa e Porto) ao ponto de em 1841 surgiu o primeiro grande estudo nacional sobre a propagação da sífilis entre as prostitutas, impulsionado pelo médico o Dr. Santos Cruz. Porém, a chamada época dourada apenas tem início em meados de 1850 e terminou por volta do ano de 1925. Durante esta época foram escritos inúmeros textos artísticos e estudos sociológicos e estatísticos sobre a esta atividade.1,2,4 No antigo regime, a prostituição estava regulamentada e tinha locais apropriados e licenciados para a sua prática, as chamadas casas de passe. Estas eram alvo de um controlo sanitário, sendo que a prática da prostituição fora dos mesmos era punida por lei. Após o 25 de Abril de 1974, procedeu-se à descriminalização tanto para quem recorria a esses serviços, como para quem os prestava. Na lei apenas está contemplada a criminalização para quem a fomente e favoreça, como, por exemplo, os senhorios que permitam a sua prática nos prédios
[1] Oliveira, M. (2017) A Prostituição no sistema jurídico português. Dissertação com vista à obtenção de Grau de Mestre em Direito Forense e Arbitragem. Universidade Nova de Lisboa [2] Prós e Contras Temporada 15 episódio 9 – “Legalização da prostituição” – disponível em https://www.rtp.pt/play/p3033/e279430/pros-e-contras [3] https://costelacritica.wordpress.com/2020/02/16/a-desumanizacao-dos-trabalhadores-do-sexo/?fbclid=IwAR0EjKZHLzCSMFEPIkJU1sh9MeSuvvEtR5NMqj__xBZDdBaXnWW2KmPMh5E (visualizado em 30/03/2020) [4] Ferreira, L. (2018) Prostituição em Portugal: Reflexão Acerca de Uma Possível Solução de Regulamentação no Ordenamento Jurídico Português. Universidade de Coimbra.
P R O S T I T UIÇÃO: P ER SIS T IR E S UB SIS T IR F OR A DA L EI. AT É QUA NDO ?
arrendados. Esta prática é chamada de lenocínio, e segundo o artigo 169 do Código Penal, este estabelece que “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício, por outra pessoa, de prostituição será punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. Se cometido mediante determinadas circunstâncias, especificadas na referida norma legal, a pena de prisão será de um a oito anos”. 1,2,4,5
É importante referir que existem vários modelos legais que regem a indústria do sexo como o modelo de criminalização completa (existente nos EUA, Irão, China), modelo de criminalização parcial/ abolicionista (ex. Portugal, Inglaterra, Itália), modelo nórdico (ex. Suécia, Canadá, Noruega), modelo de descriminalização (Nova Zelândia, Nova Gales do Sul) e o modelo de legalização (ex. Holanda, Alemanha, Estado do Nevada). 2,3,6,7
A situação que se vive hoje em Portugal é um poderoso anátema da incoerência (até mesmo hipocrisia) em que a nossa sociedade vive. Dando um exemplo concreto, não é proibido uma mulher vender sexo à beira da estrada de Coina, onde o único cuidado de higiene é um rolo de papel higiénico e onde está sujeita a ser roubada, maltratada e violada. Contudo, é proibida a existência de casas de sexo licenciadas, onde as mulheres podem ser controladas pelos serviços sociais, de saúde e pela polícia, estando muito mais protegidas. Dá que pensar, não?
Em suma, torna-se fundamental haver uma maior translação de preocupações para o bemestar e segurança das pessoas que vendem sexo. É importante deixar de se questionar, em primeiro lugar, a legitimidade da prostituição ou o seu simbolismo, para se passar a estudar quais as condições que levam as pessoas a praticá-lo, que condições lhes dão e tiram poder, e também quais as condições que os levariam a deixar o ramo. Torna-se urgente dar a voz a quem vive a realidade em primeira mão - os trabalhadores do sexo. Sim, é verdade que muitos destes não têm opção, liberdade de escolha em certo momento das suas vidas. Fazer campanhas de sensibilização, incrementar o ensino da educação sexual nas escolas, de forma a todos aprendermos a ter uma sexualidade saudável e a podermos partilhar, com afeto e em igualdade são também muito importantes. Mas, considerando que qualquer modelo de criminalização funciona como tendo por base a questão “o que pode ser tirado aos trabalhadores do sexo?”, porque não começarmos a mudar a perspetiva do problema, vendo o cerne da questão e o Estado tentar ver que condições podem ser dadas a estes trabalhadores para assim poder regulamentar a atividade de forma a proteger a saúde pública e a evitar a exploração sexual e o tráfico de mulheres, assim como a fuga aos impostos de uma atividade altamente lucrativa. 2,8,9
Múltiplos estudos referem que a prática da prostituição acarreta, com grande frequência, danos físicos e psíquicos às mulheres, e que se distinguem dos que possam ser inerentes a qualquer outra atividade laboral regular. Estes danos estão muitas vezes ligados à instrumentalização e coisificação da pessoa. É também importante realçar que os estudos indicam que 9 em 10 mulheres se pudesse escolher não seguiria o caminho da prostituição. A Drª Inês Fontinha, que colaborou muitos anos na associação “O Ninho”, uma associação que trabalha há mais de 50 anos na promoção humana e social de jovens e mulheres em situação de prostituição e de tráfico para fins de exploração sexual, tem dedicado a sua vida a esta causa, afirma que nunca conheceu uma mulher que lhe dissesse que queria ser prostituta e que nunca a prostituição lhe trouxe felicidade.2,6,7 A associação “O Ninho” refere também que é inaceitável tentar “branquear uma realidade de exploração e de violência, para legitimar o proxenetismo e transformá-lo num negócio legítimo. Para aceitar que existam pessoas que compram outras, nem que seja por uns momentos e que podem fazer delas, do seu corpo, da sua intimidade, o que quiseram, porque pagaram”.2,6,7
Despeço-me com uma citação de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”: “Para que a prostituição desapareça, são necessárias duas condições: que uma profissão decente seja assegurada a todas as mulheres; que os costumes não oponham nenhum obstáculo à liberdade do amor”.
[5] https://www.publico.pt/2017/12/15/sociedade/opiniao/legalizar-a-exploracao-da-prostituicao-1796092 (visualizado em 24/03/2020) [6] https://observador.pt/ opiniao/prostituicao-ou-trabalho-sexual/ (visualizado em 24/03/2020) [7] https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/associacao-o-ninho-conceito-de-trabalhosexual-serve-para-branquear-realidade-de-exploracao-e-violencia-342622?fbclid=IwAR12SgF25-vICcl1dAhOJzFmp3yzHyTDjlYfqTU9_8EpGro_nS_53VquvH8 (visualizado em 26/03/2020) [8] TEDxEstEnd - “What do sex workers want?” by Juno Mac – disponível em https://www.youtube.com/watch?v=VJRBx0JjM_M [9] TEDxSaltLikeCity – “What a sex worker can teach us about human connection” by Nicole Emma – disponível em https://www.youtube.com/watch?v=r7xLfeTytns.
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RAND
ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA
GR ANDE ENTR E VIS TA
CARLOS DANIEL SANTOS
Entrevista a Alexandre Valentim Lourenço N
esta edição a RESSONÂNCIA teve a oportunidade de conversar com o Dr. Alexandre Valentim Lourenço, reeleito no presente ano para mais um triénio como presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. O Dr. Alexandre Valentim Lourenço é Assistente graduado em Ginecologia e Obstetrícia, a exercer no Hospital de Santa Maria e possui décadas de experiência nas áreas de Saúde da Mulher, cirurgia ginecológica e infertilidade e é também Assistente convidado da Faculdade de Medicina de Lisboa. Apesar dos imensos compromissos que fazem parte das funções que desempenha, o nosso pedido de entrevista foi aceite com extrema simpatia e a entrevista decorreu telefonicamente, derivado da atual situação pandémica em que vivemos. É com imenso prazer que agora partilhamos com a comunidade académica a nossa conversa:
SAÚDE DA MULHER – A PERSPETIVA DE UM ESPECIALISTA Q: A Educação Sexual da população está intimamente ligada com a Saúde da Mulher. Nesta perspetiva, considera que a diminuição do número de Interrupções voluntárias da gravidez na última década, esteja ligada ao maior número de programas e iniciativas de Saúde Sexual e Reprodutiva na sociedade?
Dr. Alexandre Lourenço (AL): O número de interrupções voluntárias da gravidez pode não ter diminuído. O que aconteceu foi que, após a despenalização da interrupção voluntária da gravidez dentro dos prazos definidos, muitos hospitais não conseguiram responder à demanda exigida, e alguns deles acabaram por contratar empresas e clínicas licenciadas (algumas espanholas) para prestar este serviço de saúde. Sendo assim, a contabilização da prestação dos cuidados de saúde foi feita de forma
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A GR A NDE PA NDEMI A: A LT ER AÇ ÕE S CL IM ÁT ICAS
um pouco autónoma pelas instituições fora do território português. É importante também perceber a forma como olhamos para esta questão, pois os programas de contraceção em Portugal já eram bons no passado e continuam a ser uma parte essencial da formação e informação à população. Mas parece ter existido uma alteração comportamental da população, com base no que foi aprendido nos programas de Saúde Sexual e Saúde da Mulher implementados em Portugal, com especial enfoque nos adolescentes e na população de estratos sociais mais baixos e grupos populacionais não abrangidos pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente os imigrantes. Q: Atualmente, os comportamentos e a atividade sexual são cada vez mais precoces na população adolescente. Enquanto Ginecologista, como lida e aconselha uma paciente adolescente, no início da sua vida sexual? AL: Lidamos com muita naturalidade. Cada vez mais a atividade sexual é mais precoce. Há uns anos, foi realizado um estudo em várias escolas do país em que se abordou o início da atividade sexual. Verificou-se que em média esta se inicia aos 13 anos, sendo que não se registaram diferenças entre alunos da escola pública e da privada. Também há alguns anos eu próprio participei num estudo, com base em ações de formação na área de Saúde Reprodutiva em algumas escolas, onde, antes e depois da formação, fizemos uns inquéritos. Verificámos que havia muitos estigmas, mas com a educação e a formação estes tendem a desaparecer ao longo dos anos. É crucial o investimento na literacia dos adolescentes. É também importante reconhecer que grande parte da informação não é produzida por nós. Essencialmente há dois momentos em que ocorre: ou por um familiar na altura da menarca ou através dos colegas, sendo esta uma informação em que há menos possibilidade de controlar o que é transmitido. No entanto, as adolescentes podem apoiar a mudança dos seus comportamentos através da informação que está sempre disponível, na internet ou até em programas de televisão. Habitualmente, quando a adolescente vem a uma consulta de Ginecologia, já vem informada. Quando uma jovem adolescente no início da sua vida sexual vem à consulta de Ginecologia,
o meu conselho passa por recomendar que viva bem a sua sexualidade, que não a “desbarate” inconscientemente, mas que o faça num determinado contexto com a pessoa certa e na altura certa. Q: Ao longo da sua carreira de 32 anos, notou algum tipo de mudança de mentalidades na prática clínica, especialmente na sua área de especialidade, que comprovem que demos mais um passo em direção à verdadeira igualdade de géneros? AL: Só quando li a vossa pergunta é que me apercebi de todo o tempo que já passou. Fez-me lembrar que há precisamente 32 anos estava a presidir à Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Entretanto houve muita coisa que mudou na sociedade e também na especialidade de Ginecologia-Obstetrícia. Quando iniciei a minha carreira, exercia-se uma medicina que procurava responder aos problemas das doenças sexualmente transmissíveis (DST) muito graves, que matavam muitas pessoas. Ao longo das últimas décadas houve um aumento das ações de sensibilização para as DST, com a distribuição de preservativos gratuitamente pela população e os programas de rastreio para as DST e os cancros ginecológicos, o que levou a uma maior preocupação e conhecimento deste tipo de doenças e dos grupos de risco associados. Todas estas medidas trouxeram uma melhoria dos indicadores da saúde reprodutiva nestes 30 anos. Quanto à igualdade de género – registe-se que eu faço cirurgia de transsexualidade há 20 anos. Hoje, este tipo de atos é mais visível para a sociedade, mais frequente e mais fácil tecnicamente, mas fazemos exatamente o mesmo que fazíamos nessa altura, com algumas melhorias das técnicas cirúrgicas. A igualdade de género está cada vez mais na agenda, mas Portugal nunca foi um país muito marcado pela desigualdade entre géneros, embora essa desigualdade se note mais a nível social e económico. Q: Ainda nesse sentido, que outros desafios enfrenta um Médico Ginecologista (homem), na relação com as suas doentes? AL: Há algum estigma relativamente aos homens ginecologistas. Há mulheres que preferem homens ginecologistas e outras que preferem mulheres ginecologistas. Muitas mulheres sentem que,
GR ANDE ENTR E VIS TA
quando são observadas por médicos homens, estes tendem a valorizar mais os sintomas. Parece que os homens ficam mais impressionados com a descrição dos sintomas e então valorizam-nos mais. Nas mulheres muito novas ou nas mulheres mais velhas, já a observação ginecológica por médicos homens pode ser um problema, pois habitualmente estas mulheres preferem ser observadas por uma médica mulher. Os médicos homens especialistas em Ginecologia-Obstetrícia geralmente estão mais ligados às áreas cirúrgicas e de intervenção e, nessas circunstâncias, as mulheres já se sentem mais confortáveis. Eu trabalhei no Médio Oriente, no Dubai e em Abu Dhabi, e aí o estigma social é mais marcado. Um médico homem fazer uma observação ginecológica não é bem aceite, mas realizar uma cirurgia ginecológica já não há qualquer problema. Tendo em conta o seu papel na Ordem dos Médicos, gostaria de obter o seu comentário sobre algumas questões mais genéricas e que são do interesse da classe médica. Q: Em Dezembro de 2019, a Ordem dos Médicos (Região Sul) obteve a certificação no âmbito da norma ISO 9001:2015, que se refere à Gestão da Qualidade, garantindo assim que a Ordem dos Médicos (Região Sul) rege a sua atividade por processos, procedimentos e instruções de trabalho devidamente documentados e aprovados, visando o incremento da produtividade e da qualidade das atividades exercidas. Que medidas prevê o Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos para fomentar a certificação de unidades de saúde, na área da Gestão da Qualidade? AL: A Ordem dos Médicos tem mais de 80 anos e os processos de gestão de qualidade existem há muito tempo. O que conseguimos com a implementação deste novo Sistema de Qualidade foi fomentar a melhoria contínua na instituição. Nomeadamente em procedimentos administrativos, como é o caso da inscrição na Ordem dos Médicos, que antes exigia um número de idas às instalações de 3,2 vezes pelos jovens médicos, apenas para completar a inscrição. Depois da implementação deste novo sistema de qualidade, conseguimos reduzir este indicador para 1,2 vezes. Os processos de cada jovem médico são pré-analisados e quando este se desloca à Ordem vai apenas assinar alguns papéis. Conseguimos eliminar uma série de burocracias.
Relativamente às atividades desenvolvidas neste âmbito, o Conselho Regional do Sul tem-se dedicado a dar formação na área de auditoria clínica. Veja-se que normalmente os processos de gestão de qualidade nas unidades de saúde estão muito vocacionados para o processo de gestão da unidade e não para o indicador clínico, ou seja, estão mais direcionados para o tempo de espera do utente e satisfação do utente. No entanto, a qualidade clínica é essencial e também de extrema importância, como por exemplo os parâmetros de qualidade a serem cumpridos numa cirurgia. Habitualmente os médicos começam a contactar mais com a área da gestão de qualidade por volta dos 50 anos, que é quando começam a exercer funções de chefia. Posto isto, considero que se deve investir mais na gestão clínica no âmbito da qualidade, tanto no ensino pré-graduado como durante a formação de especialidade. PANDEMIA COVID‑19 – ANÁLISE SOBRE A QUALIDADE, FORMAÇÃO E IMPACTOS FUTUROS Q: Estará a qualidade dos serviços de saúde comprometida com a evolução da pandemia? AL: Completamente. Com a pandemia, a qualidade dos serviços de saúde está e vai ser comprometida. O que se pretende é que esta situação termine o mais rápido possível e que se possa voltar aos procedimentos clínicos, para que sejam recuperados os atrasos e adiamentos. É importante voltar o mais rápido possível à normalidade. Neste momento, os indicadores das unidades de saúde poderão estar suspensos, pois perante uma situação particular como esta houve processos de qualidade que foram ultrapassados ou arquivados, podendo influenciar negativamente os indicadores. Relativamente aos cuidados médicos, a doença SARS-CoV2 tem sido considerada prioritária relativamente a outras doenças com maior gravidade. Com isto, algumas pessoas não têm ido aos hospitais, para consultas de rotina e rastreios oncológicos por exemplo. Sendo assim, alguns processos da área da qualidade ficaram comprometidos. Veja-se o caso dos circuitos de verificação cirúrgica dentro do bloco
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SEXO: LIBERDADE OU CRIME?
operatório, em que a lista de verificação de cirurgia foi alterada, para incluir e excluir passos que eram dados anteriormente. Veja-se também o que acontece com as taxas de acidente vascular cerebral (AVC) e enfarte agudo do miocárdio (EAM) que entraram nas vias verdes dos hospitais durante a pandemia. A taxa de evolução do EAM ou do AVC nos primeiros 120 minutos, que vai desde o início das primeiras queixas e o início do tratamento, diminuiu para metade. E isto não quer dizer que haja menos EAM ou AVC na comunidade, mas se temos menos pessoas nas vias verdes (que comprovadamente melhoravam os resultados clínicos), podemos aferir que teremos mais mortes, mais complicações ou mesmo um aumento da incidência de doenças avançadas, ligadas ao EAM e AVC. Verificámos isso em Março/Abril deste ano, em plena pandemia. Foi publicado na revista científica da Ordem, a Acta Médica Portuguesa, um trabalho que aponta para um excesso de mortalidade durante esses meses, em que se registaram 1250 mortes a mais do que em igual período do ano anterior. Em condições normais temos em média cerca de 8000 mortes por mês. Ter 1250 mortes a mais significa que não foi só a SARS-CoV2 que contribuiu para este aumento, mas também as outras doenças que não foram tratadas. Uma situação deste género não existia há mais de 20 anos, desde a epidemia do sarampo, em que muitas crianças morreram e outras passaram por situações de saúde graves. Nessa altura analisámos a situação, incorporámos a doença no sistema de saúde e implementou-se um sistema de vacinação contra o sarampo em fases mais precoces do Plano Nacional de Vacinação. Vamos ter de fazer o mesmo com agora. Nos próximos anos poderemos ter situações pandémicas de outras doenças que vão impactar no sistema de saúde de alguma forma. Q: O plano de ação definido para o presente mandato na Ordem dos Médicos – Região Sul contemplava várias medidas, no entanto, com o impacto da pandemia por COVID‑19 no SNS e na vida quotidiana da sociedade, quais as novas ações previstas e qual a sua priorização? AL: O mandato vai ficar muito afetado. Durante os meses de confinamento pararam as ações realizadas para o exterior. O mostrEM, evento em
que recebemos os jovens médicos nas instalações da Ordem para que possam tirar dúvidas e colocar questões aos colegas especialistas, sobre as diversas especialidades, habitualmente acontece em Maio e este ano será reagendado para os meses de Outubro ou Novembro, sendo que pensamos fazêlo num modelo completamente digital. Também os moldes em que habitualmente é feito o Juramento
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de Hipócrates vão ter de ser repensados, de forma a poder receber presencialmente cerca de 600 novos médicos. Não fará sentido fazer o juramento digitalmente, mas fazê-lo numa Aula Magna cheia com 3000 pessoas também não fará. Todas as ações para grandes eventos de grupo vão ser alteradas. Nesta fase, vamos investir mais nos cursos de formação à distância, o que não é novidade. Os cursos que fizemos há 2 anos, para orientadores de formação, já tinham uma componente digital de cerca de 40 horas. No entanto, as ações políticas, de influência com a nossa participação continuam a ser realizadas, com todos os cuidados e as medidas de segurança devidas, tais como as visitas a centros de saúde e hospitais, ou a participação em audiência solicitada pelos órgãos do Governo, que temos feito através de videoconferências. Q: Como é que se pode minimizar o impacto da falta de médicos no SNS? AL: Primeiro, importa salientar o facto de, durante esta pandemia, não ter havido falta de médicos. Tivemos até cerca de 5.000 médicos a inscreverem-se voluntariamente para prestar serviço fora do seu horário normal de trabalho. No entanto, constatámos que os médicos estavam a executar um determinado número de tarefas e funções que não lhes competiam, como é o caso do Trace-Covid, em que a inserção de dados epidemiológicos em computador está a ser feita pelos médicos, o que é absolutamente desnecessário. Mas eu estou mais preocupado com a falta de médicos no SNS em geral. Temos muitos médicos em Portugal, somos um dos países da OCDE que mais médicos tem por 1000 habitantes (3º ratio mais alto). Note-se que em Portugal não temos desemprego médico, e creio que uma das razões é porque os médicos estão a executar tarefas que não lhes competem. Vejamos que 30 a 40% do trabalho de um médico, neste momento, é dedicado a preencher requisições e a fazer trabalho administrativo. Eu trabalhei na Suécia há 25 anos e, já nessa altura, as funções administrativas de um médico eram bastante reduzidas. Havia técnicos que auxiliavam e faziam esse trabalho e o médico fazia o trabalho
de avaliar o doente, falar com o doente e tomar decisões clínicas. Em Portugal, atualmente, fazemos esse trabalho em 5 minutos e depois estamos 20 minutos a preencher papéis. Havendo uma desburocratização, nós teremos médicos mais que suficientes para o nosso trabalho no SNS. Note-se que, do universo global dos médicos em funções no SNS, 12.000 são internos das especialidades, o que representa quase metade de todos os médicos do SNS. Devo também salientar que temos mais de 20.000 médicos fora do SNS por opção pessoal, devido às melhores condições oferecidas pelo sistema privado de saúde, que já representa 30 a 40% da saúde em Portugal. Como é que posso ter mais médicos no SNS? Reestruturando a carreira médica, pagando melhor aos médicos e melhorando as condições de trabalho nas instituições de saúde. Nós formamos cerca de 1700 especialistas por ano em várias especialidades e, ao fim de 1 ano e meio, após a conclusão da especialidade, muitos destes médicos já estão fora do SNS, como acontece, por exemplo, na especialidade de Anestesiologia. Estamos a formar 100 anestesiologistas por ano, número que possivelmente suplanta as necessidades. No meu hospital, ainda este ano, vão entrar nove médicos para esta especialidade e a previsão é que quatro destes médicos fiquem no hospital, mas ao fim de dois anos já só estará um. Note-se que o hospital oferece um contrato de trabalho em que a remuneração ronda os 1.500€, enquanto que o serviço privado oferece três vezes mais e também oferece uma perspetiva de carreira e desenvolvimento profissional que não é possível obter no sistema de saúde público, onde se fazem urgências atrás de urgências. Enquanto não forem resolvidos os problemas estruturais será difícil fixar muitos médicos no SNS. Os médicos que formamos são muito bons, com excelentes capacidades e conhecimentos científicos e de investigação, e muitos deles facilmente arranjam programas de internato fora do país. Neste momento estamos a perder a nata dos nossos médicos para outros países e, paradoxalmente, estamos a contratar médicos estrangeiros. Os médicos que se pretendem diferenciar na carreira não veem atrativos para isso no SNS e recorrem a vagas médicas no estrangeiro para o conseguir. Enquanto isto, existem profissionais a executar atos médicos, sem preparação, sem conhecimento, e que
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em caso de complicação não sabem o que fazer. E esta é uma das principais funções da Ordem, estar na primeira linha da denúncia e da correção destes problemas que afetam a saúde dos portugueses. Q: Quais as repercussões que esta pandemia trará num futuro próximo, para os médicos já em funções e para os novos médicos que irão ser formados já este ano? AL: Vejo o futuro com alguma preocupação. Antes da pandemia, nos últimos anos, sempre que entrava nos hospitais e visitava a sala dos médicos, via grande parte dos mais novos ligados aos computadores, a verem análises e exames, a prescreverem exames. Há 25 anos, via os médicos nas enfermarias, a palpar o doente, a falar com o doente e a fazer outros atos médicos. Neste momento, o trabalho administrativo tem suplantado contacto com o doente. A relação médico-doente tem de ser preservada. A pandemia trouxe a necessidade de fazer consultas telefónicas e avaliações de doentes à distância. Tenho conhecimento de algumas situações em que este tipo de atuação não funciona, porque falar com o doente, palpá-lo, olhar para ele e perceber que existe uma outra pergunta que quer fazer, isso não se faz à distância. E se isso não se faz à distância para médicos experientes, é muito difícil sê-lo feito por estudantes ou internos da especialidade.
passe da sua função humanista para ser apenas um técnico de saúde que executa um exame, com uma prescrição, de acordo com um protocolo. Isto deveria, na verdade, deveria ser feito por outras profissões e será num futuro próximo feito também pelos sistemas de inteligência artificial. Porém, a capacidade de integrar e de obter informações que não estão nos exames é sempre do médico e é essencial para se fazer uma boa medicina. Considero que a compensação da falta de formação clínica, fruto da pandemia, vai ser feita durante a formação específica. Muitas das competências clínicas que não foi possível adquirir nos 3 meses em que as atividades clínicas foram suspensas podem ser recuperadas nos 2 ou 3 anos seguintes, nomeadamente no ano comum e nos primeiros anos da especialidade. No entanto, essa recuperação pode ser um bocadinho mais trabalhosa, por exemplo nas técnicas cirúrgicas. Eu estou mais preocupado é se este sistema se repercute nos próximos 2 ou 3 anos, com formas diferentes de ensinar medicina, especialmente na medicina prática. As adaptações que vamos fazer têm de ser muito cautelosas, algumas delas são benéficas, mas outras têm de ser compensadas.
“Vejo o futuro com alguma
No que toca ao impacto que a pandemia teve no 5º e 6º ano do curso de Medicina, no ano de formação geral e nos primeiros anos da especialidade, receio que o resultado seja desastroso. A informação que tenho das faculdades de medicina é que para o ano vão modificar o ensino e passar a ter aulas teóricas e teórico-práticas à distância, mas o meu receio é que não haja aulas práticas. Neste momento, para adquirir competências muito específicas, é necessário contacto com o doente, falar com ele, perceber quando é que o doente nos está a ocultar informação. E isso não se faz à distância. Olharmos para os olhos do doente, e ver que ele está a hesitar quando está a dar uma resposta, permite-nos reformular a pergunta e obter mais informações. Agora, estas competências poderão demorar mais tempo a adquirir, o que pode fazer com que o médico
Q: A dedicação dos médicos ao SNS durante esta pandemia, terá reforçado a sua importância para o próprio SNS? AL: Começámos a receber palmas em público. Há uns meses algumas pessoas acusavam os médicos de serem maus profissionais e até de criminosos. Notese que os ordenados dos médicos não aumentam há 12 anos, mas de repente, no Parlamento, diz-se que tem que se pagar melhor aos médicos. Isto é uma modificação grande, que resultou da valorização do trabalho dos médicos durante a pandemia. Contudo, não fizemos nada de diferente, fizemos o melhor que sabíamos, tratámos dos doentes, esforçámonos, com é próprio do nosso carácter muito humano, não nos preocupando com a nossa vida pessoal e com o nosso dia-a-dia, e pusemos a nossa profissão ao serviço do doente, o que acontece há 3000
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anos. Fizemos o que sempre fazemos, mas talvez de uma forma mais evidente e avassaladora para a opinião pública. Tivemos médicos a ficar doentes e a morrer, para que as pessoas pudessem ter os melhores cuidados de saúde possíveis. Esta imagem da dedicação médica foi valorizada. Houve 5000 médicos que deram o seu nome para trabalharem para além do seu horário normal. Esta dedicação não se verificou em nenhuma outra profissão. Isto é a causa hipocrática em todo o seu esplendor. Será que esta importância ficou reforçada? Ficou. Percebeuse que todos os profissionais são importantes, os médicos, os enfermeiros, todos, mas quem trata e salva os doentes são os médicos e isso tem de ser dito. Às vezes havia a noção de que os médicos não estariam a fazer grande coisa nos hospitais e que os enfermeiros e outras profissões fariam a maior parte do trabalho, mas o que vimos neste momento é que outras profissões bloquearam em determinados locais e ficaram à espera da nossa liderança, que não foi nem dos políticos nem dos economistas, nem dos gestores, a liderança foi dos médicos. Houve médicos que disseram “sim” e ajudaram todas as outras profissões a minorar o impacto da pandemia. Isso é muito importante, para que todos os estudantes de medicina e os novos médicos percebam que a sua função é prioritária e crucial. Q: Que conselhos daria aos estudantes e médicos recém-formados? Ou seja, o que aconselharia ao seu eu mais novo, agora, com a sabedoria acumulada de 32 anos de carreira? AL: Diria que há várias coisas importantes, e uma delas é uma característica que às vezes se perde, a humildade. Nós temos de saber que nada sabemos quando acabamos o curso. Eu todos os dias aprendo algo novo. No dia em que dissermos, “eu já sei tudo”, nunca mais evoluímos e aí outras profissões vão ultrapassar-nos. Esta é uma profissão que não termina com o diploma, todos os anos temos de aprender mais e evoluir. E para isso são precisas três coisas que os meus velhos mestres me diziam: dedicação aos doentes, empenho e humildade. Nós não podemos virar as costas a uma pessoa que precisa de nós ou dizer que não estamos presentes ou não atendermos o telefone, ou dizer que o nosso horário acaba à uma, quando sabemos que a pessoa precisa de nós. No dia em que deixarmos de fazer isso, as pessoas vão procurar outras alternativas. E
as alternativas são tecnicamente e cientificamente muito piores do que nós. E também há o reverso. Nós somos muito bons, temos de perceber isso e por isso temos de nos empenhar sempre em pôr a ciência e a capacidade técnica ao serviço do nosso humanismo. Nunca deixar de querer fazer melhor. Aconselhovos a que continuem a ter projetos de longo prazo. Não sacrifiquem uma carreira de 40 anos por um imediatismo de 2 ou 3 anos. Não vejam só protocolos, percebam o doente, percebam a doença. O protocolo apenas é uma norma de orientação e nós temos que ter o conhecimento para saber quando é que ele se aplica e quando é que ele não se aplica e o que é que se faz em cada ocasião. E pensem sempre a longo prazo, tenham a consciência que a medicina vai mudar muito nos próximos anos, por exemplo vai ser introduzida a medicina digital, a inteligência artificial (IA), o Big Data, tudo isto resultará em que deixemos de fazer algumas coisas que fazemos agora. Os programas de avaliação de imagem, na radiologia, na neurorradiologia e na dermatologia fazem diagnósticos de imagem, recorrendo a IA, muito próximos da nossa capacidade e às vezes melhor. Com isto parece-me que um dos grandes papéis que vamos desempenhar vai ser o de sermos conselheiros do doente, onde iremos integrar a ciência e os conhecimentos que possuímos para ter uma noção dos mecanismos de doença e assim podermos corrigi-los.
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Contracetivo Masculino A
década de 60 foi marcada por múltiplas alterações sociais, demográficas e legais – o Movimento dos Direitos Civis, a Guerra do Vietname e as manifestações anti-Vietname, Woodstock e a explosão das drogas e experiências psicadélicas1. Contudo esta década foi marcada por outra droga e pela revolução que ela trouxe: a “pílula”. Descrito como um dos principais avanços médicos do século XX, a pílula associou-se ao movimento da libertação feminina e amor livre2. Inicialmente condenada pela Igreja Católica – levando mesmo a ameaças por parte do Cardeal Patriarca Cerejeira e congelamento das contas da Associação para Planeamento da Família3 – e envolta em múltiplos mitos4, esta acabou por se tornar o método contracetivo mais utilizado em Portugal5. Na mesma altura em que a pílula foi desenvolvida, a OMS criou um grupo de trabalho para a investigação de possíveis métodos de regulação da fertilidade masculina6 – algo que se tinha tornado cada vez mais desejado com o crescimento do movimento feminista e luta pela igualdade dos género7. Contudo, desde então nenhum método foi aprovado no Ocidente, continuando o homem a depender do preservativo e da vasectomia para controlo da sua própria fertilidade. Será falta de pesquisa, ou algo mais?
Contrariamente ao considerado pela generalidade da população, a investigação avançou na segunda metade do século XX, com várias opções consideradas, das quais a que mais se distinguiu foi a “pílula masculina”, uma combinação de testosterona com progestagénios6. Mas se é certo que a investigação avançou no século XX, esta não foi livre de recuos, como a perda de interesse na pílula masculina nos anos 80 por dúvidas quanto ao seu perfil de segurança, perceção de um pequeno mercado para o produto e eventual conflito com os métodos contracetivos femininos produzidos pelas mesmas companhias6; ou o abandono do glossipol, quer por dúvidas quanto ao perfil de segurança quer por uma putativa atitude “machista” por parte do governo brasileiro e até do público feminino8. Mas se a população podia ser contra no século passado, esta não é a realidade do século XXI. Num estudo de 2005, mais de metade de uma população de 9.000 homens mostrava-se interessado num método contracetivo masculino8; e num estudo publicado em janeiro de 2019, 1/3 de uma amostra de 1646 homens estariam disponíveis a tomar uma eventual pílula masculina9, o que aparenta demonstrar um desejo por parte dos homens em serem ativamente envolvidos no controlo da fertilidade do casal.
CONTRACETIVO MASCULINO
E a realidade é que novos métodos estão em desenvolvimento, quer hormonais (como uma nova versão da pílula masculina), quer não hormonais (como o recurso a jock straps modificados que aumentam a temperatura testicular)9. Destes claramente que se terá de destacar um gel que administra topicamente androgénios e progesterona denominado NES/T, que num estudo publicado em publicado em 2019 revelou boa eficácia contracetiva sem o surgimento de efeitos adversos graves10. Na realidade, a maioria dos estudos de métodos contracetivos hormonais não demonstrava efeitos adversos graves, sendo que os achados mais comuns relatados foram acne, aumento de peso, alteração da líbido e distúrbios do humor11,12, efeitos estes que
foram associados à descontinuação de um ensaio clínico com hormonas injetáveis em 20167. Esta decisão é, ainda hoje, muito criticada por ativistas feministas, que consideram que existem dois pesos e duas medidas no que toca à aceitação dos efeitos adversos de contracetivos femininos versus a não aceitação de efeitos igualmente ou menos severos dos contracetivos masculinos7. Contudo, o maior obstáculo não são os efeitos adversos, nem a sociedade e a cultura. O maior obstáculo é a falta de investimento e interesse da indústria farmacêutica na contraceção masculina13. Se é certo que existem mecenas que lutam pelo desenvolvimento de novos métodos8, a maioria da indústria farmacêutica apresenta um desinteresse pelo tema, quer por não considerar que estes irão apelar aos homens, quer por considerar que o investimento nestes métodos não terá retorno económico, algo cada vez mais posto em causa por previsões que estimavam um valor de mercado de 24 biliões de dólares até 2024, com crescimento de 6% ano até 10 anos, se qualquer método eficaz for aprovado até 202313. É certo que um método de contraceção masculina eficaz está para chegar há cerca de 50 anos, mas com a terceira década do século XXI prestes a começar, torna-se cada vez mais premente dar resposta às necessidades de paridade no controlo da fertilidade dentro e fora de um casal.
[1] Alleyne, A., 2016. ‘You Say You Want A Revolution’: 9 Moments That Defined The ‘60S. [online] CNN. Disponível em: <https://edition.cnn.com/style/article/yousay-you-want-a-revolution-victoria-and-albert-museum/index.html> [2] Bridge, S., 2007. A history of the pill. The Guardian, [online] Dísponivel em: <https://www. theguardian.com/society/2007/sep/12/health.medicineandhealth> [3] Associação para o Planeamento da Família. s.d. História | Associação Para O Planeamento Da Família. [online] Disponível em: <http://www.apf.pt/quem-somos/historia> [4] Grigg-Spall, H., 2019. Nine Major Myths About The Pill – From Cancer To Weight Gain. [online] The Guardian. Disponível em: <https://www.theguardian.com/society/2019/feb/25/nine-major-myths-about-the-pill-from-cancer-to-weight-gain> [5] Maia, A., 2015. Pílula: A Invenção Que Nasceu Há 63 Anos E É Rainha Em Portugal. [online] Diário de Notícias. Disponível em: <https://www.dn.pt/portugal/pilula-a-invencao-que-nasceu-ha-63-anos-e-e-rainha-em-portugal-4377885.html> [6] Reynolds-Wright, J. and Anderson, R., 2019. Male contraception: where are we going and where have we been?. BMJ Sexual & Reproductive Health, 45(4), pp.236-242. [7] Donegan, M., 2019. It’s Time For Men To Step Up And Share Responsibility For Birth Control. [online] the Guardian. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/jun/05/male-birth-control-step-up-responsibility>. [8] Extance, A., 2016. What Happened To The Male Contraceptive Pill?. [online] The Guardian. Disponível em: <https://www.theguardian.com/society/2016/jul/23/what-happenedto-the-male-contraceptive-pill>. [9] Kalia, A., 2019. Pills, Gels, Customised Jockstraps: Are We Any Closer To A Male Contraceptive?. [online] The Guardian. Disponível em: <https://www.theguardian.com/society/2019/apr/29/pills-gels-customised-jockstraps-are-we-any-closer-to-a-male-contraceptive>. [10] Anawalt, B. et al, 2019. Combined nestorone–testosterone gel suppresses serum gonadotropins to concentrations associated with effective hormonal contraception in men. Andrology, 7(6), pp.878-887. [11] Behre, H. et al, 2016. Efficacy and Safety of an Injectable Combination Hormonal Contraceptive for Men. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 101(12), pp.4779-4788. [12] Devlin, H., 2019. Male Contraceptive Could Be Near As Trial Of Gel Begins. [online] The Guardian. Disponível em: <https:// www.theguardian.com/society/2019/jun/22/male-contraceptive-could-be-near-as-trial-of-gel-begins>. [13] Sitruk-Ware, R., 2018. Getting Contraceptives For Men To The Market Will Take Pharma’s Help. [online] STAT. Disponível em: <https://www.statnews.com/2018/05/11/contraceptives-for-men-pharma/>.
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Educação Sexual: Haverá Evidência Científica? A
julho de 2009, foi aprovada na Assembleia da República o regime jurídico que prevê a implementação obrigatória da educação sexual nas escolas. Por todo o país, passou a ser imposta a aplicação do pilar mais controverso do Projeto de Educação para a Saúde, já elaborado desde 2007.
Ainda assim, os principais indicadores revelam que o programa de educação sexual nacional é ainda insuficiente. Em 2018, o número de nados-vivos de mães adolescentes tem vindo a descer, encontrando-se ainda acima dos 2000 por ano, segundo o INE.1 Por outro lado, os adolescentes portugueses continuam a ser os que menos utilizam consistentemente o preservativo na média europeia, segundo o ECDC.2 A incidência de HIV tem vindo a disparar nos últimos anos na população mais jovem, constituindo o novo maior grupo de risco em Portugal.3 Sendo Portugal um dos países com legislação mais completa sobre educação sexual nas escolas, será que esta é realmente eficaz? Modelos Educativos Os programas de educação sexual não são todos iguais, pelo que a sua eficácia não deverá ser analisada em conjunto. Por todo o mundo, são utilizados essencialmente três modelos: abstinência-exclusiva, sexual-biológico e sexual compreensivo. O primeiro foca-se na valorização da abstinência como único método que deverá ser praticado, discriminando negativamente qualquer outra prática. O segundo foca-se em defender todos os métodos que previnem IST e a gravidez, abordando os temas físicos e biológicos da sexualidade. O terceiro engloba não apenas os componentes do modelo anterior, mas também os aspetos sociais e emocionais ligados à sexualidade. Utiliza também uma perspetiva não autoritária, oferecendo informação com a melhor evidência possível e deixando ao aluno a decisão do comportamento mais acertado.4,5 A avaliação da eficácia dos vários modelos, por terem bases ideológicas diferentes, mostra-
se bastante difícil, por pretenderem outcomes diferentes. Se por um lado modelos focados na abstinência procuram reduzir o número de parceiros sexuais e atrasar a idade de início de relações sexuais, modelos compreensivos valorizam a utilização do preservativo independentemente do número de parceiros e a diminuição dos índices de discriminação de pessoas LGBT. Ainda assim, a gravidez na adolescência e a incidência de ISTs (Infeções Sexualmente Transmissíveis) são objetivos comuns a qualquer formador de educação sexual. 4,5 Todas as principais entidades de orientação de educação sexual (UNESCO, ECDC, OMS, CDC) recomendam a utilização do modelo de educação sexual compreensivo, por mostrarem maior evidência na diminuição da incidência anual de ISTs e gravidez na adolescência (redução de aproximadamente 50%). Por outro lado, reduzem com maior eficácia o número de parceiros sexuais (redução de 22%) e
EDUCAÇÃO SE X UA L : H AV ER Á E V IDÊNCI A?
conseguem atrasar mais eficientemente a idade de início de relações que os modelos focados na abstinência (13 vs 16 anos).5–7 Mesmo comparando o modelo compreensivo com o modelo sexual-biológico, para além de refletir melhor reconhecimento das várias dimensões da sexualidade (como os direitos LGBT, violência no namoro ou integração da componente emocional da relação sexual), o primeiro revela mais taxas de adesão ao preservativo e melhor capacidade de retenção de conhecimentos a médio e longo prazo.5 Quem dá a formação? Em Portugal, os formadores poderão variar entre os pais ou encarregados de educação, quando a educação sexual se dá principalmente no domicílio, os professores encarregados pela educação sexual ou Organizações não-governamentais (ONG) que se disponibilizam para dar formações nas escolas. O modelo doméstico tem como principais contrapartidas a grande heterogeneidade de conhecimentos entre os pais, que habitualmente não tiveram adequada formação, podendo não ter capacidade para discutir os assuntos da sexualidade ou encontrar algum receio em abordar temas controversos com os filhos. Do mesmo modo, também os professores designados nas escolas poderão não ter formação suficiente na área da educação sexual para transmitir eficazmente as informações adequadas. Frequentemente, o professor designado para lecionar a educação sexual na escola encontra-se relacionado com a área das ciências naturais, o que o leva a adotar tipicamente o modelo sexual-biológico de educação sexual e não o modelo compreensivo.8 Por outro lado, as ONG frequentemente têm melhores ferramentas de ensino teórico e prático. No entanto, vários estudos multicêntricos, como o de Martinel et al em Espanha4, revelam que nas escolas com maior participação externa, verificou-se menor envolvimento comunitário, sendo a educação sexual mais esporádica e incoerente. A não adoção de um modelo bioecológico na escola (envolvendo professores, alunos mais velhos e/ou encarregados de educação) poderá comprometer a eficácia da formação. Sabe-se hoje que o maior determinante
para os comportamentos sexuais nos adolescentes é a pressão social do ambiente onde se encontram, pelo que os modelos com maior eficácia são aqueles em que o formador consegue mostrar a vantagem social dos melhores comportamentos na hierarquia de grupo (um par, um professor confiável, um encarregado de educação).5,9 Também a forma como o conteúdo é exposto revela-se uma ferramenta-chave no processo de educação. A revisão da literatura verifica que, nos temas mais controversos, a educação nãoformal, através de dinâmicas que quebrem a hierarquia tutor-tutorando, tem maior evidência de retenção de conteúdos fulcrais a médio e longo prazo, comparativamente com educação formal, cuja eficácia é maior para temas formais teóricos (matemática, literatura). A dificuldade na quebra desta hierarquia leva a que muitos professores utilizem um estilo de educação formal, muitas vezes com pouca eficácia.9 Educação Sexual em Portugal A utilização de um modelo de educação sexual compreensivo, bioecológico, não formal que aceite qualquer adolescente, negociando bilateralmente as práticas sexuais, e em que este sinta que a sua comunidade o poderá apoiar no esclarecimento de dúvidas no início da sua atividade sexual é o que tem maior evidência para a redução de comportamentos sexuais de risco. Este é também o modelo advogado pela lei 60/2009, Portaria nº 196ª/2010, que define os conteúdos da educação sexual para cada ciclo. 4,5,7,8 Ainda assim, o grau de implementação do programa nas escolas é bastante baixo, o que poderá explicar a ineficácia do mesmo em termos de indicadores. Muitos professores e pais não têm formação específica para lidar com os temas sobre os quais se sentem menos confortáveis, não os lecionando. A problemática agravou-se desde 2012, em que foram extintas as Áreas Curriculares não disciplinares (Formação Cívica, Área de Projecto e Estudo Acompanhado), que eram habitualmente utilizadas para lecionar estes temas.4 Nem sempre a melhor evidência tem maior aplicabilidade prática. Esta é a maior barreira à eficácia da educação sexual no séc. XXI.
[1] INE. Nados-vivos de mães adolescentes (N.o) por Idade da mãe anual. Base de dados INE. https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0001541&contexto=pgi&selTab=tab10&xlang=pt. [2] ECDC. Prevalence of male condom as the main contraceptive method among women in Europe in 2018, by country. statista. https://www.statista.com/statistics/1063543/condom-use-in-europe/. Published 2018. [3] Martins H, Aldir I. Infeção VIH e SIDA Em Portugal.; 2019. [4] Rocha AC, Leal C, Duarte C. School-based sexuality education in Portugal: strengths and weaknesses. Sex Educ. 2016;16(2):172-183. doi:10.1080/1468181 1.2015.1087839 [5] Education CS, Foster ASP. Why Support Comprehensive Sexuality Education? 2010. [6] Dehne KL, Riedner G. Sexually transmitted infections among adolescents: The need for adequate health services. World Heal Organ. 2005;9(17):170-183. doi:10.1016/S0968-8080(01)90021-7 [7] Montgomery P, Kerr W. Review of the Evidence on Sexuality Education. 2007:1-73. doi:10.1370/afm.648. [8] UNESCO. Facing the facts: the case for comprehensive sexual education. 2012;(21):1-26. [9] Gravata A, Castro R, Borges-Costa J. Estudo dos fatores sociodemográficos associados à aquisição de infeções sexualmente transmissíveis em estudantes estrangeiros em intercâmbio universitário em Portugal. Acta Med Port. 2016;29(6):360-366. doi:10.20344/amp.6692
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CULTUR A
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J O S É M I G U E L G O N Ç A LV E S
BURNING Paris is burning é um documentário realizado por Jennie Livingston, que segue a vida da comunidade LGBTQ+ na cidade de Nova Iorque durante os anos oitenta. Este documentário é um trabalho de grande importância, não só pela forma como abre o mundo desta comunidade, mas também pela forma como esta é retratada. A câmara assume um papel neutro, não julga as dificuldades destas pessoas nem a forma como vivem, mostra-nos, de forma honesta e real, as suas vidas.
sentimento de pertença que existia, o segundo dá nos uma visão completa do que aquilo realmente é, um escape. A ostracização, o racismo, a prostituição, o roubo (como grande parte não possuía fontes fixas de rendimento, recorriam ao roubo como forma de arranjarem roupa para os balls), a SIDA e a situação precária de habitação de muitos dos participantes, mostram-nos realmente a importância destes balls: eram a única forma que possuíam de ser verdadeiramente eles, sem quaisquer medos.
Durante os anos oitenta, em Nova Iorque, no meio da comunidade LGBTQ+, houve o crescimento e apogeu da ball scene. Um ball era uma competição em que os participantes se vestiam, de acordo com várias categorias, e mostravam ao júri a forma como encaravam o tema, não só através da roupa, mas também através do desfile, o voguing. Este era baseado na revista de moda Vogue, os participantes tentavam imitar as poses dos modelos nas capas, enquanto criavam os seus próprios movimentos, sendo uma forma de expressão pessoal.
Outra coisa que nos ressalta logo é o conceito de chosen family: dentro da ball scene os participantes dividem-se em Houses, e cada House possui um líder (mother, a mãe que gostariam de ter). Podemos ver que não é apenas uma equipa ou um nome que partilham, é uma família que dá apoio quer emocional, quer financeiro.
O documentário é constituído por dois tipos de filmagens distintas: filmagens dos balls, e entrevistas de figuras proeminentes. Enquanto que o primeiro conjunto nos mostra a alegria, o envolvimento e o
Em termos gerais, é um documentário essencial a todos os que se interessam pela temática porque, não só mostra de forma realista a evolução que a luta LGBTQ+ teve, mas, também demonstra a importância de vivermos a nossa verdade sem medos e sem sentimentos de culpa, porque a normalidade não existe e o que interessa é sermos felizes à nossa maneira.
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assedio assedio assedio assedio assedio assedio assedio
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ASSÉDIO
Ilustração de Ricardo Sá Pereira, CurArte
SIL HUE TA E SP EL HADA
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Fotografia de [autor anรณnimo]
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S O FI A C A RVA LH O
Silhueta Espelhada C
ontemplo a tela tingida de tons esverdeados e ouço a chuva a embater nas vidraças do meu quarto... é cedo ainda. Na mesa de cabeceira tenho uma máquina fotográfica que observa e acompanha a minha juvenil paixão por fotografia de retrato. Quando me levanto observo a minha silhueta espelhada e começo por refletir sobre a liberdade da minha mente, consciente da possibilidade de que estarei livre para escrever o que quiser... E devaneio sobre Fotografia de Nu pelo seu teor controverso e sensível. Esta é a oportunidade dos fotógrafos transformarem algo que muitos pensam ser obsceno em arte. Viajei no passado para relembrar algumas obras antigas. No início, deparei-me com uma estátua feminina, Vénus de Willendorf. No período renascentista vivi o processo de pintura de O Nascimento de Vénus, de Botticelli. Procedi na minha viagem mental, onde encontrei a revolucionária fotógrafa Anne Brigman, cujo portfólio de Fotografia de Nu representa a liberdade da alma e a emancipação do medo das mulheres da época. Linhas e formas que ganham vida na sua mais pura beleza e autoexpressão. E atualmente, qual será a verdadeira motivação do fotógrafo?
Entendo um fotógrafo de Fotografia de Nu como um escultor que procura abrir a cortina que se interpõe muitas vezes entre ele e o sujeito a ser fotografado. À parte da anatomia do corpo humano, o fotógrafo movido por esta arte tenta capturar momentos espontâneos da pessoa em questão e procura incentivá-la a vestir o seu carácter da forma mais elegante. Mas, como se sente o sujeito fotografado? Será que está confiante? A abstração do meio envolvente é um dos grandes desafios, o sujeito pode-se sentir livre e despido de preconceito, pode estar refugiado nos seus pensamentos do eu e o outro, sendo o primeiro a criticar-se, ou pode ser um escape para se sentir bem com ele próprio. Será que a fotografia tem impacto independentemente do sentimento? Regresso de volta à minha silhueta. A minha máquina fotográfica continua na mesa de cabeceira, assim como a minha paixão.
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CRÓNICA 2
SANTIAGO RIBEIRO
“Mar, Virtude e Oitenta” A
prendemos, ainda na escola primária, que o Homem é o único animal racional que habita o nosso azul planeta e, até prova em contrário, o universo. No entanto, há situações que nos fazem duvidar desta premissa e questionar se haverá entre os Sapiens Sapiens uma subespécie racional, em minoria, face à demais irracionalidade, patente na restante espécie. Se coubesse ao comum mortal definir o peso ou a gravidade de determinada situação, não chegariam os dedos de várias mãos para aferir a quantidade de vezes que a humanidade já teria sido extinta, acompanhada, também, da destruição de toda e qualquer forma de vida, ou do próprio planeta, deixando os restantes astros a orbitar inertes e estéreis para sempre, ou até que a física e a química elementares determinassem um novo começo. Porventura, terá sido esta vontade catastrófica que levou ao fim dos dinossauros. Um deles achou que uma rocha vinda do espaço acabaria com todos eles, acreditou nisso com tanta força, que acabou por acontecer, para seu próprio arrependimento. Adoro expressões idiomáticas. Adoro a forma como um pouco da chamada sabedoria popular dá um twist alegre, um toque de humanidade, a qualquer texto, conversa ou até canção. No meio é que está a
virtude, diz a tal sabedoria popular, que reforça com nem oito nem oitenta e ainda, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Se sabedoria popular é, como tal, senso comum, parece deveras estranho que os irracionais oitos e oitentas pareçam soterrar, ou inundar, toda a racional virtude, que apesar da minoria, poderia, em situações de catástrofe iminente, impor-se. Para os menos atentos, fica aqui claro que se faz referência à tendência mundial do momento, a COVID-19. Ainda assim, apesar de não se projetar uma mortalidade ao nível da peste negra, seja pela menor gravidade do “Corona”, ou pela melhor qualidade dos cuidados de saúde, há que ter “2 dedos de testa” e zelar pela saúde de todos com o sentido de responsabilidade que, muito mais que um direito, deve ser um dever, fazendo questão de ter sempre olho na ameaçada economia. Não será preciso ficarmos em isolamento até 2025, altura em que todo e qualquer vírus teria já sucumbido e, com ele, a própria sociedade, mas também que não se inundem já as ruas e as praias na tentativa de salvar uma economia que ainda estava a recuperar do último abalo financeiro, à custa de vidas humanas. É uma balança difícil de equilibrar, um pau de dois bicos, que promete espetar quem for descuidado. Há que ser racional, pelo bem comum e pela virtude, que é o meio.
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D I R E Ç ÃO E D I T O R I A L
PROPRIEDADE
Ana Drumond
Editorial Section of Associação de Estudantes da
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Faculdade de Medicina de Lisboa
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JUL. 2020