(…) O papel da Kallaikia é fundamental para a nossa entidade e, como tal, vimos agora apresentar este terceiro número, em que, como nos dous anteriores, tentamos combinar o estudo e a divulgaçom de assuntos de atualidade (neste caso, o primeiro centenário da Revoluçom de Outubro, que se comemora neste ano), com outros atinentes a diversas disciplinas das ciências sociais e naturais com umha ótica galega.
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Tampouco queremos deixar de dedicar umha especial lembrança a dous companheiros que neste ano nos deixárom. Trata-se do companheiro Miguel Urbano Rodrigues, velho amigo da Galiza e colaborador no nº 1 da Kallaikia, que faleceu no passado mês de maio; e do nosso saudoso companheiro e membro fundador da Associaçom de Estudos Galegos (AEG): o inesquecível Joám Paz Lopes, John, que nos deixou no mês de junho. Ele sempre ficará connosco na lembrança, como militante exemplar da causa lingüística e nacional galega.
Em nom poucas ocasions descobrimos com surpresa elementos patrimoniais galegos ocultos atrás da ignoráncia ou da ocultaçom. Atrevemo-nos a dizer que o caso das pinturas murais de Filipe Velho Pinheiro no Casino Ferrolano constituem um dos casos mais flagrantes destes esquecimentos.
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É muito emotivo, para quem viveu a dinámica de classes própria da capital de Trasancos nas últimas décadas, entrar no local de que falamos, ligar a luz lateral e iluminar o olhar com esta gigantesca alegoria ao Hino Galego que o pintor mugardês das Irmandades da Fala elaborou altruistamente durante 11 anos (1925-1936). Nesse espaço central da cidade, por onde fluíam as manifestaçons do convulso final do século XX, é nitidamente identificado como o “bunker” da reaçom mais estridente do Ferrol militar e franquista. Todo isto acrescenta incredulidade e surpresa a quem entra pola primeira vez nesse lugar escuro e encontra tam monumental obra onde menos se espera.
Para eles dous, a nossa homenagem e dedicatória deste novo número da nossa revista, que também é vossa.
A Geografia, a Biologia, a História e, novamente, a criaçom literária e as artes plásticas, voltam a ter espaço nestas páginas.
Tojos, castinheiros, pinheiros, carvalhos... toda a vegetaçom galega vai harmonizando um conjunto de mais de 80 metros quadrados onde se pode apreciar o “raio transparente do plácido luar”, o Santo André de Teixido ou o monograma do próprio casino. Filipe, fundador da "Sociedade de Amigos da Paisagem Galega" nascera no Seixo (Mugardos) em 1886 e dedicou toda a vida ao relato pitórico da paisagem galega. Relacionou-se com Castelao, Asorei, Souto Maior... e foi nomeado membro da Real Academia Galega em dezembro de 1928. A Revista Kallaikia pretende, com este número, contribuir para tirar Filipe e a sua obra mais relevante do esquecimento.
Mural de F. Velho Pinheiro no Casino Ferrolano. Entre os anos 1925-1936 Foto: Lucía Mato López
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apresentaçom Para o Miguel e o John… Um ano de criaçom e divulgaçom artigos O mar da Galiza · A Geografia Radical · 100 anos da Revolução de Outubro, centenário de uma longa caminhada · 1917-2017 Cronologia Russo-Galaica no Centenário do Outubro Bolxevique · Socialistas e anarquistas na Galiza. Encontros e desencontros na emergência da maré proletária · In Memoriam conto Alma recomendaçons 8º Relatório transfronteiriço Espanha-Portugal · Reboquismo e dialética galeria Mural de Filipe Velho Pinheiro no Casino Ferrolano ·
Revista Kallaikia nº 3 Edita: Associaçom de Estudos Galegos (AEG) Galiza, dezembro de 2017 aestudosgalegos@gmail.com www.aeg.gal É permitida a reproduçom de qualquer parte desta revista, sempre referindo expressamente a fonte. Diagramaçom: SETEDOUS agência para a comunicaçom Impressom: SACAUNTOS Imagem da capa e ilustraçons interiores: Filipe Velho Pinheiro. Fotos de Lucía Mato López. Agradecemos a colaboraçom do Casino Ferrolano. Depósito Legal: C-1854-2016 ISSN 2530-4593
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ÍNDICE Índice COlaboradoras Apresentaçom Artigos O mar da Galiza (Joám Luís Ferreiro Caramês) [p. 12] A Geografia Radical (Catarina Cortiças Leira) [p. 43] 100 anos da Revolução de Outubro, centenário de uma longa caminhada (Filipe Diniz) [p. 80] 1917-2017 Cronologia Russo-Galaica no Centenário do Outubro Bolxevique (Maurício Castro e Eliseo Fernández) [p. 105] Socialistas e anarquistas na Galiza. Encontros e desencontros na emergência da maré proletária (1870-1936) (Carlos Velasco) [p.128]
In Memoriam (Marisa Vilas) [p. 139]
Conto Alma (Séchu Sende) [p.147]
Recomendaçons 8º Relatório transfronteiriço Espanha-Portugal (Joám Lopes Facal) [p.157] Reboquismo e dialética. (Maurício Castro) [p. 161]
GALERIA Mural de Filipe Velho Pinheiro no Casino Ferrolano Fotos de Lucía Mato López. [p. 7, 11, 42, 127, 146, 156]
In memoriam Joám Paz Lopes, John Miguel Urbano Rodrigues 2
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ComitÉ de redaçom
Maurício Castro Lopes - Carlos Garrido Rodrigues - Beatriz Bieites Peres - Paulo Painceiras Rico Raquel Paz Lopes
Conselho de redaçom
Jorge Rodrigues Gomes - José A. Souto Cabo - José M. Dias Cadaveira - Paulo Valério Árias - Joám López Facal - Dores Valcárcel Guitiám - Joám Luís Ferreiro Caramês - Helena B. Sabel - José A. Corral Iglésias - Afonso Mendes Souto.
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COLABORADORAS Maurício Castro Lopes (Ferrol, 1970)
Docente de Português na Escola Oficial de Idiomas de Ferrol, autor ou co-autor de obras divulgativas, como a História da Galiza em Banda Desenhada (1995), Manual de Iniciaçom à Língua Galega (1998), Manual Galego de Língua e Estilo (2007) ou Galiza Vencerá! (2009). Participante no grupo promotor do primeiro Centro Social reintegracionista em defesa do galego, aberto pola Fundaçom Artábria em Ferrol no ano 1998. Membro fundador do sítio informativo online Diário Liberdade em 2010. Entre 2007 e 2015, membro da Comissom Lingüística da AGAL. Na atualidade, membro da Comissom Lingüística da Associaçom de Estudos Galegos (CL-AEG) e do Comité de Redaçom da Kallaikia, revista de estudos galegos.
Catarina Cortiças Leira (Ferrol, 1987)
Licenciada em Geografia pela Universidade de Santiago de Compostela e Técnica Superior em Química Ambiental. Tem feito algumas traduções do castelhano e adaptaçons de galego para português. Escreve relato curto e poesia, com a publicação recente de Bilhete de ida (2017) após ter participado no “Verbas Migradas” da Associação Cultural “Patio de Butacas”. É uma desempregada mais, mas ocupada a tempo completo em reinventar o passado, improvisar o presente e viver o futuro.
Filipe Diniz (Lisboa, 1947)
Arquitecto, foi membro dos órgãos nacionais da Associação dos Arquitectos Portugueses e do Conselho de Delegados quando a Associação passou a Ordem dos Arquitectos. É colaborador regular do “Avante!”, órgão central do Partido Comunista Português, e responsável pela revista do Sector Intelectual da ORL do PCP, “Caderno Vermelho.” Membro do colectivo de Editores do sítio web odiario.info. Participou na organização dos 2º e 3º Encontros de Serpa “Civilização ou Barbárie.”
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Joám Luís Ferreiro Caramês (Ferrol 1962)
Licenciado em Biologia pola USC. Deu aulas para FOREM de cultivos marinhos e para FORGA de formaçom ambiental. Realizou três campanhas de observador em barcos de pesca para o IEO (Instituto Espanhol de Oceanografia), duas em Terranova e umha no Oceano Índico. É membro da SGHN (sociedade galega de história natural), sócio fundador da Associaçom Reintegracionista Artábria e membro da Conselho de Redaçom da Kallaikia, revista de estudos galegos. Trabalha como biólogo na Confraria de Pescadores de Baralhobre desde 2005 e é coordenador do Grupo de Trabalho Nacional de Pesca do BNG.
Carlos Francisco Velasco Souto (Tomeza, Pontevedra, 1958)
Professor titular de História Contemporânea na Universidade da Corunha. Investigador especializado em movimentos sociais da Galiza contemporânea, é autor de umha dilatada obra nesse campo. Nos últimos anos envolveu-se também em pesquisas e iniciativas relacionadas com a reconstruçom da nossa memória histórica democrática, tendo sido assessor científico do projeto interuniversitário As Vítimas, As Voces, Os Nomes e Os Lugares. Em 2011 desfrutou de umha estadia de investigaçom de três meses no IELT da Universidade Nova de Lisboa. Tem participado em diversos projetos de investigaçom e é membro do Conselho de Redacçom da revista Agália, assim como do Conselho Assessor Externo de Murguía. Revista Galega de Historia.
Joám Lopes Facal (Cee, 1940)
Cursou os estudos de engenharia na Escola Técnica Superior de Engenheiros Industriais de Madrid e os de economia nas Faculdades de Santiago e Madrid, Somosaguas. Doutorou-se em Ciências Económicas com umha investigaçom sobre a casa de banca compostelana de Olimpio Pérez. Possui o titulo de português pola EOI de Compostela. Desempenhou a sua actividade profissional em diversas empresas de Madrid e de Galiza. Foi também professor associado da USC. A sua militáncia política foi intensa mas breve, limitada a Esquerda Galega desde o nascimento do partido até a sua dezembro 2017 / KALLAIKIA
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extinçom. Foi deputado por este partido na III legislatura do Parlamento de Galiza. É presidente da Associaçom de Estudos Galegos (AEG).
Eliseo Fernández Fernández (Ferrol, 1967)
Licenciado em Documentaçom, é pesquisador da história dos movimentos sociais na Galiza, especializado na história do anarquismo e do movimento operário. Tem escritos diversos trabalhos nestas questons, sendo autor dos livros José López Bouza: do anarquismo ao republicanismo e Obreirismo ferrolán, e coautor de Unha biblioteca obreira: o Centro Obrero de Cultura (com Rafael Corrales Siodor), O anarquismo na Galiza: apuntes para unha enciclopedia e O movemento libertario en Galiza (com Dionísio Pereira). Tem participado na coordenaçom científica do “Congreso da Memoria” (Narón, 2003) e do “Congreso da Guerrilla” (Corunha, 2009), e também colaborou em inumeráveis iniciativas em volta da recuperaçom da memória histórica. Há tempo que desenvolve atividade militante em organizaçons libertárias como o grupo anarquista “Unión Libertaria” de Ferrol e o sindicato CNT.
Séchu Sende (Padrom, 1972)
Licenciado em Filologia Galego-Portuguesa. Professor de Língua Galega. Sociolingüista co-fundador da Cooperativa Tagen Ata. Escritor iniciado no Coletivo Poético Serán Vencello, fijo parte da geraçom dos 90, destacando como narrador no início deste século. Fundador do projeto editorial Letras da Cal. Criador do primeiro jogo de rol em galego, no Concelho de Compostela, em 2002. Cultiva a poesia, narrativa e teatro, além da ilustraçom.
Marisa Vilas (Noia, 1960)
Licenciada em História da Arte pola USC, formaçom em Egiptologia, boa conhecedora do Egito graças à arqueóloga Françesca Berenguer Soto; conhecedora da Língua Árabe, através da sua relaçom com os qurnawin, habitantes de Sheikh abd-elQurna (margem ocidental do Nilo, Luxor, Alto Egito). 6
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GALERIA
Mural de F. Velho Pinheiro no Casino Ferrolano. Entre os anos 1925-1936 Foto: Lucía Mato López
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APRESENTAÇOM
Para o Miguel e o John… Um ano de criaçom e divulgaçom
Com este terceiro número da nossa Kallaikia, completamos o primeiro ano de atividade. Tal como anunciamos na estreia, a modesta atividade da Associaçom de Estudos Galegos tivo nestes meses a revista como um dos referentes do seu trabalho coletivo e de comunicaçom com a sociedade à qual aspira a servir: a galega.
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Nom foi o único. O nosso site está ativo também há um ano, tendo servido de repositório de materiais de interesse para o cumprimento dos nossos fins associativos. Dous dicionários em formato digital estám lá disponíveis (o de vocabulário de Futebol e o de Basquetebol), assi como as ediçons digitais dos dous primeiros números da Kallaikia, e dos históricos Estudo Crítico (1983), Prontuário Ortográfico (1985), Manual Galego de Língua e Estilo (2007) ou o folheto História da Galiza em 50 datas (2016). Salientamos também o consultório online ‘Qual a dúvida?’, ou o espaço de Opiniom aberto a temas relacionados com a cultura galega. Todo disponível de maneira gratuita. Além disso, estes primeiros meses de atividade permitíromnos apresentar o imprescindível Compêndio Atualizado das Normas Ortográficas e Morfológicas do Galego-Português da Galiza (2017), atualizaçom proposta pola nossa Comissom Lingüística que serve para pôr em dia o padrom lingüístico galego e divulgá-lo entre os sectores do nosso povo comprometidos com a restauraçom completa do galego, também no plano escrito, com orientaçom reintegracionista e nacional. O objetivo da sua publicaçom é o mesmo que deu carácter fundante ao reintegracionismo prático lá no início dos anos 80 do século passado: situar a Galiza em pé de igualdade com Portugal, Brasil e restantes países lusófonos, como parte de um espaço lingüístico policêntrico no que di respeito aos respetivos padrons. Em definitivo, julgamos que, com toda a modéstia, iniciamos um caminho que já trouxo algumhas iniciativas de utilidade social inegável. Como dizíamos, o papel da Kallaikia é fundamental para a nossa entidade e, como tal, vimos agora apresentar este terceiro número, em que, como nos dous anteriores, tentamos combinar o estudo e a divulgaçom de assuntos de atualidade (neste caso, o primeiro centenário da Revoluçom de Outubro, que se comemora neste ano), com outros atinentes a diversas disciplinas das ciências sociais e naturais com umha ótica galega.
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A Geografia, a Biologia, a História e, novamente, a criaçom literária e as artes plásticas, voltam a ter espaço nestas páginas. Para além da variedade de temas e pessoas colaboradoras, sublinhamos o papel sobranceiro de autoras e autores da Galiza, junto à participaçom, nos três números até hoje publicados, de autoras e autores de países irmaos de língua (a brasileira Virgínia Fontes no nº 2 e o português Filipe Dinis neste nº 3). Tampouco queremos deixar de dedicar umha especial lembrança a dous companheiros que neste ano nos deixárom. Trata-se do companheiro Miguel Urbano Rodrigues, velho amigo da Galiza e colaborador no nº 1 da Kallaikia, que faleceu no passado mês de maio; e do nosso saudoso companheiro e membro fundador da Associaçom de Estudos Galegos (AEG): o inesquecível Joám Paz Lopes, John, que nos deixou no mês de junho. Ele sempre ficará connosco na lembrança, como militante exemplar da causa lingüística e nacional galega. Para eles dous, a nossa homenagem e dedicatória deste novo número da nossa revista, que também é vossa.
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Mural de F. Velho Pinheiro no Casino Ferrolano. Entre os anos 1925-1936 Foto: Lucía Mato López
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ARTIGOS
O mar da Galiza Joám Luís Ferreiro Caramês
A história e o presente da Galiza estám condicionados polo mar, muito para além do que o está qualquer outro povo da Europa. O nosso mar condiciona tanto a economia, como a demografia e a distribuiçom espacial da populaçom, e também a nossa forma de ser e a criaçom e desenvolvimento das nossas língua, alimentaçom e cultura. A presença do mar, a sua riqueza e produtividade e o clima por ele determinado som os principais responsáveis polo que hoje somos como povo. 12
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Joám Luis Ferreiro Caramês O mar da Galiza
1.- Caraterísticas da costa galega Antes de começarmos este ensaio, som precisos alguns dados para melhor compreendermos o porque dessa importáncia. O território da atual «comunidade autónoma» da Galiza é de quase 30.000 quilómetros quadrados e está situado no extremo ocidental do continente europeu, a umha latitude que vai (na sua costa) dos 41º 52’ aos 43º 48’, quer dizer, quase correspondente à metade entre o equador e o polo, e é por isso que temos «um pouco de todo», de espécies mais do norte e do sul. É importante termos em conta que nos achamos no oeste do continente e que à latitude em que estamos situados chega o ramo sul da Corrente do Golfo (que aquece toda a Europa) e permite que tenhamos um clima menos frio do que nos corresponderia, além de traguer até aqui espécies próprias de outras latitudes (no outro lado do Atlántico, Nova Iorque está a 40º 43’, quer dizer, ao sul da Galiza, e sofre uns invernos muito mais frios). Esta posiçom geográfica permite, além disso, que, durante quase meio ano, especialmente no verao, tenhamos ventos quase constantes do nordeste, que provocam o afloramento de águas profundas frias que venhem carregadas de nutrientes. Estes movimentos do mar som devidos ao efeito de Coriolis1.
1 O efeito de Coriolis é o efeito que produz a rotaçom da Terra sobre si própria, e que, no hemisfério norte, provoca o desvio à direita, o qual, no caso dos fluidos como o mar e no caso da costa galega, produz um movimento «de terra para o oceano», de modo que, para repor essa água, surge em direçom contrária água profunda fria e rica em nutrientes. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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O mar da Galiza Joám Luis Ferreiro Caramês
Ainda que o comprimento da costa galega linearmente medido seja de cerca de 350 quilómetros, o seu comprimento total é de quase 1200 km, o que representa 24,5 % de toda a costa peninsular do estado espanhol. Este comprimento da costa dá ideia da sua irregularidade e da existência das rias, forma peculiar do relevo costeiro, que tem muita importáncia na capacidade produtiva. Do mesmo modo que o cérebro apresenta circunvoluçons, a costa galega apresenta as rias, o máximo aproveitamento do espaço possível: será isto um indicador de que temos umha costa muito inteligente?2
2 Para se entenderem as reflexons que seguem, é preciso conhecer alguns dados sobre o pláncton. O pláncton é integrado por organismos que vivem nas águas e nom se podem deslocar por si mesmos, fora da massa de água em que estám. Divide-se fundamentalmente em dous grupos. Fitopláncton ou pláncton vegetal, que é a base da cadeia trófica ou alimentar no mar. Zoopláncton ou pláncton animal. Um importante detalhe: quando se di que a floresta do Amazonas é o pulmom do planeta, é falso, o verdadeiro pulmom do planeta é o fitopláncton marinho. Para que a vida no mar seja possível, tem que haver fitopláncton, e para este crescer, precisa de nutrientes, igual que os vegetais terrestres (especialmente, azoto e fósforo), que tenhem três vias fundamentais de chegar ao mar: através do processo de decomposiçom e mineralizaçom da matéria orgánica, por meio de achegas terrestres e, finalmente, por afloramento. No caso das achegas terrestres, na Galiza, a costa recortada e a grande quantidade de rios médios e pequenos permite umha maior achega de nutrientes que umha costa «reta». Os afloramentos seriam um «extra» que só se dá em poucas zonas do planeta. Nas costas normais a presença de nutrientes é elevada na primavera e baixa ao longo do verao. Na Galiza há afloramentos várias vezes, o que permite um crescimento do fitopláncton muito mais elevado. Estes afloramentos permitem umha produçom primária maior e, portanto, umha biomassa mais elevada do que umha costa similar, e podemos percebê-los quando encontramos nas praias, no verao, águas muito frias e transparentes. Mas isto tem umha contrapartida, pois provocam muitas vezes marés vermelhas, que só nos afetam a nós, porque a vida marinha nom se vê afetada. As condiçons geológicas e geográficas da Galiza, além da grande variedade de costas, desde arribas a costas arenosas e planas, criam umha grande variedade de ecossistemas, e portanto grande riqueza de espécies vegetais e animais, além de permitirem umha alta capacidade produtiva, geradora de grande riqueza que tem possibilitado o assentamento de elevada quantidade de populaçom na faixa costeira. A soma dos afloramentos, da grande superfície de costa e das temperaturas moderadas fam surgir umhas condiçons excecionais, que determinam nom só umha elevada produçom marisqueira e pesqueira, como também que estes mariscos e peixes sejam de umha alta qualidade.
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Joám Luis Ferreiro Caramês O mar da Galiza
2.- Situaçom atual Perante umha situaçom privilegiada como esta, num país normal, poriam-se todas as medidas para proteger o entorno marinho nas melhores condiçons possíveis, evitando a degradaçom e a poluiçom, tanto industrial como urbana, da agricultura e da pucuária, tentando ainda desenvolver o máximo possível a produtividade, protegendo as espécies autóctones de maior qualidade e de maior valor económico e, em qualquer caso, que a exploraçom dos recursos fosse feita sempre de modo sustentável, mas nom é esta a situaçom atual. As condiçons da costa galega som na atualidade bastante precárias em geral, conservando-se poucas zonas virgens. O nível de alteraçom e degradaçom é especialmente elevado nas rias, tanto a nível físico como biológico, e nalguns casos com alteraçons já irrecuperáveis. Podemos falar aqui de vários fatores que tenhem levado a esta situaçom: I. Alteraçons da linha de costa: Este tipo de atuaçons provocam fundamentalmente mudanças nas correntes marinhas, que modificam a estrutura tanto dos fundos marinhos como da própria linha de costa, erodindo e/ou depositando sedimentos que modificam a granulometria do substrato, fazendo desaparecer espécies ou comunidades inteiras, tanto de vegetais como de animais. As principais causas som: •
Infraestruturas viárias, em particular estradas e caminhos de ferro, construídas sobre o mar, e que nalguns casos provocárom zonas mortas pola perda de circulaçom de água, o que favorece a decantaçom do material em suspensom, degradando a qualidade dos fundos marinhos. Um exemplo claro disto som, na ria de Ferrol, o caminho de ferro que atravessa a ria e a avenida das Pias (apenas 330 metros de ponte para um total de algo mais de um quilómetro e meio).
•
Infraestruturas portuárias, normalmente os espaços portuários som ganhos ao mar com aterramentos, e ainda que oficialmente seja obrigatório um estudo oceanográfico prévio de correntes, demonstra-se depois que nom é real. Exemplos há sobejos por todo o dezembro 2017 / KALLAIKIA
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O mar da Galiza Joám Luis Ferreiro Caramês
país: o porto de Sada, que alterou as correntes de toda a zona sul-leste da ria de Ares; o porto de Cedeira, que cada ano deixa sem areia a praia ou o «porto exterior» de Ferrol, o que provocou a desapariçom das gorgónias (um tipo de coral) do canal da ria. •
Aterramentos para todo o tipo de usos, que na maioria dos casos som feitos em zonas de praias ou bancos marisqueiros, por serem zonas de menos calado, e portanto mais barato de cobrir com terra. Na ria de Ferrol, só nos últimos 100 anos, perdeu-se por aterramentos mais de 10 % da sua superfície. Grande parte das indústrias instaladas à beira do mar normalmente estám construídas parcial ou totalmente sobre aterramentos, que, além disso, se vam expandindo à medida que precisam de mais espaço.
II. Poluiçom industrial: Nom é a Galiza precisamente umha potência industrial, mas si que grande parte das indústrias instaladas em território galego som altamente poluentes e a maior parte destas estám á beira do mar. O exemplo mais claro é o do complexo ENCE-ELNOSA na ria de Pontevedra. Podemos falar do efeito da poluiçom industrial em dous tempos:
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•
Efeito a curto prazo ou imediato: dá-se na envolvente da sua localizaçom, provocado por alteraçons físicas e/ou químicas da água do mar, o que vai produzir a morte ou desapariçom dos seres vivos ali presentes, assi como cheiros, turbidez...
•
Efeito a longo prazo: Devido à presença de metais pesados, hidrocarbonetos e diversos poluentes químicos; a umha distáncia maior, os seres vivos que nom morrem imediatamente vam sofrer alteraçons no seu metabolismo, epitélios, órgaos internos, nos seus órgaos sensoriais e/ou na sua reproduçom. Ao se deslocarem, estendem os efeitos mais além do que as simples correntes marinhas podem fazer. Além disso, umha vez que a indústria desapareça, os depósitos sobre os fundos continuarám a poluir anos depois, a nom ser que se eliminem físicamente por meio de umha dragagem.
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Joám Luis Ferreiro Caramês O mar da Galiza
•
Questom especial e específica som os acidentes marinhos. Sabemos por própria experiência as conseqüências dos afundamentos de petroleiros ou doutros barcos com material perigoso e poluente (acidente do Cason). Sempre nos dim que é a posiçom geográfica da Galiza numha zona com alta densidade de tráfego marítimo e temporais freqüentes e intensos durante o inverno a causa principal destes accidentes, mas o que nom se di é que, no referente a medidas preventivas, pouco ou quase nada se tem feito, pois, se assi nom fosse, seria dificilmente compreensível tanto acidente. Mas, polo que di respeito às medidas paliativas em caso de algum contratempo, o exemplo mais claro tivemo-lo aquando do afundamento do Prestige: a reaçom do estado espanhol e do seu lacaio a Junta da Galiza foi a de negar, mentir e minimizar o impacto do desastre (depois de passear o petroleiro por toda a costa), ao mesmo tempo que milhares de pessoas com as suas próprias maos limpavam o fuelóleo. Por sinal, o Prestige continua afundado com fuelóleo no seu interior.
III. Poluiçom urbana: Este é provavelmente o problema que mais afetou e ainda afeta os bancos marisqueiros, e mais ainda quando está em combinaçom com aterramentos que dificultam o movimento do mar. Os despejos urbanos som conseqüência da falta de infraestruturas de depuraçom. O atraso na construçom das EDAR (estaçom depuradora de águas residuais) na Galiza é incompreensível, e, se tivesse um mínimo interesse na defesa do ambiente e na produçom marisqueira e pesqueira, deveriam estar construídas há tempo. A diretiva 91/271/CEE obrigava a que, a 1 de janeiro de 2006, todas as povoaçons costeiras de mais de 1500 habitantes tivessem que ter realizada a depuraçom integral das suas águas residuais, o que, evidentemente, na Galiza nom se cumpriu, e ainda hoje, em 2017, estám sem terminar em grande parte da Galiza. Aconteceu aqui o que nom aconteceu no resto do estado. No ano 2008, e posteriormente em 2013, publicava-se no B.O.E. a relaçom de zonas de produçom de moluscos do dezembro 2017 / KALLAIKIA
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O mar da Galiza Joám Luis Ferreiro Caramês
litoral espanhol (classificaçom zonas A, B e C)3, e em toda a costa mediterránea e atlántica sul, nom há umha única zona C, pois todas estám no norte, e destas, a Galiza tinha 76 % do total do estado em 2008, e ultrapassando os 81 % em 2013. Entre estas há que destacar a única «zona de exclusom» (contaminaçom superior a C) em todo o estado, e duas zonas «sem classificar», todas na ria de Ferrol. Hoje em dia, em 2017, nom há nem um só banco marisqueiro em toda a Galiza numha zona classificada como A. A existência desta situaçom é umha mostra do interesse que tem, tanto o estado espanhol como o governo da Junta da Galiza, responsáveis pola construçom das EDAR. A existência de importantes bancos marisqueiros em zonas C nom só provoca um grande prejuízo ambiental, como também causa a quase completa ruina das confrarias de Ferrol e de Baralhobre, e na ria de Ferrol, ainda hoje, mais de 50 % das zonas produtivas som C. Umha questom importante é que todas as EDAR da Galiza som de sistema unitário4, o que tem três efeitos adversos: por um lado, o custo de depuraçom dispara-se, ao ter-se que bombear água de chuva (água limpa), incrementando o custo energético; por outro lado, em caso de chuvas abundantes, por impossibilidade de bombeamento e por transbordamento, as aguas de chuva carregadas com matéria fecal som vertidas aos rios ou ao mar, e, finalmente, umha das questons das quais nunca se fala, é que o sistema unitário impede a chegada de água de chuva ao mar (só em casos de chuva abundante, nos quais se despeja água poluída com matéria 3 A água do mar classifica-se segundo a sua contaminaçom microbiológica em A, B e C. Esta classificaçom resulta de contar os indivíduos de Escherichia coli (bactéria fecal) presentes em 100 ml de vianda e de líquido intervalvar de moluscos. Assi, umha zona A teria menos de 230 indivíduos de E. coli, umha B, de 230 a 4600, e umha C, de 4600 a 46.000, e quantidades superiores som «zona de exclusom». O marisco de zona A pode-se consumir diretamente, o procedente de zona B precisa de passar por depuradora de mariscos, o procedente de zona C nom se pode consumir nem depurar, pois tem que passar previamente dous meses numha «zona de reparqueio» (A ou B). 4 O sistema unitário mistura águas fecais com águas de chuva, recolhendo todo em «tanques de tempestades» para ser enviado através de bombeamento à EDAR.
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Joám Luis Ferreiro Caramês O mar da Galiza
fecal). Trata-se, portanto, de um sistema ineficaz, com um alto custo de manutençom e que nom evita os despejos. O sistema necessário seria o de separativas5, já que este sistema permitiria que se mantivesse a chegada da chuva ao mar, o que é fundamental, pois as rias nom funcionam como um sistema oceánico aberto, e precisam das contribuiçons de água doce para manter o seu particular ecossistema, incluídas as mortandades masivas quando há chuvas muito abundantes que permitem a posteriori a «renovaçom». A poluiçom urbana tem três efeitos principais: •
matéria orgánica e diferentes materiais arrastados ou em suspensom que se depositam sobre o fundo, degradando-o e provocando a anulaçom da capacidade de sustentar vida por processos de decomposiçom anaeróbica e acidez.
•
Diferentes poluentes químicos, óleos, detergentes, restos de medicamentos...
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Contaminaçom microbiológica, pola chegada ao mar das bactérias fecais presentes nos excrementos (também é possível a presença de bactérias ou vírus causadores de doenças). Neste caso, os bivalves, que som animais filtradores, vam acumular as bactérias e os vírus, ao se alimentarem das bactérias fecais, as quais, ainda que nom afetem os bivalves, si impossibilitam o seu consumo por parte dos seres humanos.
IV. Introduçom de espécies alóctones, parasitas e perda das espécies próprias. Perante a situaçom de degradaçom dos bancos marisqueiros, a medida lógica seria a de os recuperar e regenerar, além de potenciar a recuperaçom das espécies autóctones, que som as mais bem adaptadas à costa galega, de 5 O sistema de separativas apanha só as águas fecais. Também som possíveis em zonas urbanas «tanques de tempestades», que captam os primeiros minutos de chuva (até meia hora), os quais lavam as ruas e, portanto, estám poluídos, e que, depois, deixam ir o resto aos rios ou ao mar.
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maior qualidade e valor comercial. No entanto, esta nom foi, é claro, a maneira de atuar da Conselharia do Mar. Perante a degradaçom das zonas produtivas, optou-se por introduzir espécies alóctones, mais resistentes, ainda que sejam de menor qualidade e de menor valor económico, como, por exemplo, a amêijoa-japonesa (Ruditapes philippinarum), que foi introduzida de forma maciça pola Conselharia, sendo hoje a primeira espécie de bivalves em quilos capturados6. Também a ostra-do-Pacífico (Crassostrea gigas), introduzida inicialmente para engorde em bateias, e que finalmente está invadindo as rias do norte, por terem estas água mais quente, e deslocando a ostra-europeia (Ostrea edulis), a espécie autóctone de maior qualidade e valor comercial. Outra via de introduçom de espécies alóctones foi através da semente traguida de outras zonas do estado, da Europa ou mesmo de África ou da América. Por quê? Porque, apesar de ter a Galiza a capacidade de produçom marisqueira que tem, e precisar de hatcheries7 que podam fornecer a semente necessária no caso de ser preciso regenerar zonas degradadas ou depois de altas mortandades, nunca houvo nengumha iniciativa pública para as instalar no nosso país. Ao traguer semente foránea, em ocasions véu contaminada com larvas de outras espécies. Esta foi a forma de introduçom de algas como o Sargassum muticum (que está a causar graves problemas ao deslocar especialmente as laminárias, que formam zonas de alta biodiversidade, de reproduçom, e servem de alimento a muitas espécies de animais marinhos), moluscos como a Crepidula fornicata ou parasitas de todo o tipo que afetárom gravemente as espécies autóctones. A última delas, e a mais grave, é a Marteilia cochillia, que provocou a prática desapariçom do berberecho na ria de Arouça e continua a sua expansom para o sul, causando a ruina de muitas mariscadoras, com grave risco da sua extensom a toda a Galiza.
6 A amêijoa-japonesa e chamada também por alguns mariscadores eucalipto do mar, polo jeito como que foi introduzida, o seu crescimento e a sua baixa qualidade. 7 Centros de reproduçom e de obtençom de semente em condiçons artificiais.
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O dano causado evidentemente nom só é às espécies comerciais, que perdem terreno perante a expansom das invasoras, pois afeta todo o ecossistema marinho, deslocando muitas espécies autóctones e pondo em sério perigo outras muitas. A falta de predadores para as espécies alóctones fai muito difícil o seu controlo, ou, como no caso da Marteilia, o desconhecimento do seu ciclo vital torna muito difícil o seu controlo ou erradicaçom. V. Desenvolvimento turístico: O modelo de turismo desenvolvido polo governo galego, imitado do espanhol, é o do turismo de massas e, polo que respeita às costas e praias, está a fazer um grande dano ao litoral. A facilitaçom dos acessos para melhorar o deslocamento, e a conversom das praias e costas em zonas de serviços, está destruindo zonas costeiras, nom já urbanas ou semiurbanas, mas zonas que até agora se mantinham virgens ou eram refúgio de espécies animais e vegetais de escassa presença e em perigo de desapariçom. Neste capítulo tem especial importáncia o desenvolvimento espetacular do turismo de iates. O ente Portos da Galiza, dependente da Conselharia do Mar, dedica mais dinheiro a portos desportivos que a portos pesqueiros, o que indica com clareza qual é o interesse principal. Além disso, os marinheiros tenhem que ver como as quotas que a eles som aplicadas estritamente (nalguns casos, ridículas, esgotando as quotas de algumhas espécies em menos de um mês) nom existem para os pescadores desportivos, nem sequer o obrigatório descanso do fim de semana. VI. Perda de costa selvagem, de espécies, de bancos marisqueiros e de zonas de pesca: A soma de todos os fatores vistos até agora tem umha clara repercussom, que é a perda e degradaçom da qualidade tanto das águas costeiras como dos fundos e da linha litoral. Isto implica umha reduçom dos hábitats e das zonas de reproduçom necessárias para a vida dos seres vivos marinhos, repercutindo-se nom só na vida dentro das rias, como também nas espécies de peixes e até de mamíferos marinhos que vivem em toda a costa galega. É este um processo que, longe de parar, está a acelerar-se cada vez mais. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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VII. Aqüicultura: Na Galiza já há anos que desapareceu o que era o marisqueio tradicional, entendido como simplesmente ir à beira-mar apanhar marisco. Hoje em dia o marisqueio é umha atividade de semicultura, ligada a trabalhos como limpezas, regeneraçons, rareamentos... E no caso da cultura do mexilhom, é ainda mais claro. Umha vez que esta é umha atividade ligada ao setor e desenvolvida por ele, este deveria ser o modelo a seguir, aproveitando as espécies próprias, buscando a produçom sustentável, criando trabalho e riqueza e fixando populaçom à costa. Mas há umha outra aqüicultura, industrial, desenvolvida por empresas multinacionais com peixes carnívoros, que nada tem a ver com o setor, que nom gera riqueza aqui e que tem graves efeitos ambientais, como som as piscifatorias de rodavalho e as gaiolas de salmom (as quais, por sinal, fôrom instaladas na ria de Muros e Nóia com a oposiçom do setor, polo que a instalaçom se verificou de noite e com a escolta da guarda civil). A Junta da Galiza desenvolveu umha lei de aqüicultura que consolidava e expandia a aqüicultura industrial e acabava definitivamente com o modelo de marisqueio tradicional do nosso pais. Permitindo e priorizando a entrada da empresa privada, ou a conversom das confrarias e associaçons de marisqueio em empresas privadas. O 27 de janeiro de 2016, dia em que o mundo do mar tomou Compostela, marcou o final da lei de aqüicultura que tinha preparada o PP, mas nom terminou todo aqui. Este modelo de exploraçom dos recursos marinhos, que é o modelo da Uniom Europeia (UE), responde à aplicaçom do modelo capitalista de exploraçom dos recursos e o PP é o braço executor. Nom há tardar muito umha nova lei de aqüicultura, talvez com mais maquilhagem, mas com o mesmo conteúdo e objetivo: a exploraçom dos recursos marinhos para grande beneficio de poucas empresas, com um número reduzido de trabalhadores e trabalhadoras, e que torna o nosso litoral numha grande fábrica de marisco e de peixe barato, enquanto a questom ambiental, o desenvolvimento sustentável e a participaçom do setor ficariam só para as grandes declaraçons de intençons da UE. 22
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VIII. Destruiçom do capacidade produtiva, marisqueira e pesqueira tradicionais: A entrada na UE tivo e tem, em especial para Galiza, e nom só no mar, um elevado custo de destruiçom dos seus principais setores produtivos, em particular os primários. No caso do mar, o processo de desmantelamento da frota pesqueira foi contínuo desde a nossa entrada. A entusiasta aplicaçom por parte do governo espanhol das políticas pesqueiras comunitárias, começando polo princípio de estabilidade relativa, e continuando polas ajudas ao desmantelamento (que foi o maior pacote de ajudas para o setor), determinou que a frota galega fosse aquela que mais barcos e marinheiros perdeu de todos os países da UE. Umha mostra disto é que hoje há lotas na Galiza onde entra mais peixe em camions que em barcos. No marisqueio, as políticas de ir deixando que se perdam os barcos marisqueiros, e priorizar o turismo por diante da produçom, tivo um efeito brutal no setor, perdendo-se em 20 anos os dous terços dos postos de trabalho, o que, neste caso, é ainda mais grave, porque som as mulheres o grupo maioritário.
3.- O aproveitamento dos recursos marinhos O aproveitamento do mar na Galiza é parelho ao assentamento humano, como testemunha a presença de concheiros 8 em restos arqueológicos que remontam ao Paleolítico, mesmo no Courel, o que dá ideia nom só da atividade marisqueira, mas também da sua importáncia e da existência de comércio. Assi como a pesca foi sempre umha atividade económica importante em toda a zona costeira, o marisqueio até nom há muito foi umha atividade complementar. Do mar extraem-se também algas para estercar as leiras, e mesmo algumha espécie animal, como os patejos (caranguejo da espécie Polybius henslowii), foi utilizada também para fertilizar a terra, assim como, até há pouco, algumha espécie marinha hoje tam cotizada como o percebe. Do mesmo modo, tirou-se proveito da pesca, o que permitiu desenvolver umha importante economia. Ligada à atividade extrativa, desenvolveu-se umha importante indústria, estaleiros, aparelhos de pesca, conservas e congelados... 8 Os concheiros som pilhas de restos com acumulaçom de conchas, ainda que também apareçam restos de ossos e de cerámica, relacionados com o consumo humano. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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A Galiza é o país de toda a Europa cuja economia, de longe, maior dependência tem do mar, já que apresenta a maior percentagem de populaçom que trabalha no setor (com 0,5 % da populaçom da Europa, temos mais de 10 % das pessoas que trabalham no mar) e o maior peso no seu PIB, mas nom é reconhecido como tal na UE, em contraste com outros paises europeus. Por que? Isso é responsabilidade da UE ou do estado espanhol? Aqui intervenhem os dous, mas o estado espanhol está altamente interessado em que assi seja. De ser reconhecido como tal, teria presença própria nas mesas de negociaçom de quotas e nas negociaçons das políticas pesqueiras comunitárias, além de aceder a umha maior percentagem nas ajudas comunitárias para o setor. Assi quem negocia é o estado espanhol, para o qual o mar galego é umha cartada negociadora para obter contrapartidas noutros setores espanhóis. Todas as pessoas que realizam trabalhos de marisqueio e pesca fam parte de algumha das 63 confrarias, 4 cooperativas ou das 6 organizaçons de produtores que existem em todo o pais, sendo, de todas elas, as confrarias (um sistema organizativo herdado da Idade Média) o menos democrático de todos, e o que maior quantidade de pessoas engloba. Estas confrarias organizam-se na Galiza na federaçom de confrarias, as quais, contrariamente à distribuçom lógica por zonas de produçom ou rias, se distribuem por províncias. Assi, dam-se situçons surrealistas, como, por exemplo, a divisom da ria de Arousa (com gente que trabalha nos mesmos bancos, com as mesmas artes...) entre a federaçom da Corunha e a de PonteVedra, e o mesmo ocorre com a divisom na ria do Barqueiro, que segrega a Coruha de Lugo. Tanto a federaçom de confrarias como a maior parte delas individualmente, devido à sua configuraçom e forma de funcionamento, estám muito penetradas polas redes caciquis e de «favores» do PP, o que lhes permite ter um grande controlo, ao jogar com o dinheiro que vem da UE para ajudas ao setor, comprando vontades e votos. Na última lei de pesca aprovada no parlamento galego há menos de nove anos, nom se modifica em absoluto a estrutura das confrarias, mantendo um sistema organizativo que tam útil foi e é para o poder e bem pouco para o setor.
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3.1.- Marisqueio Ainda que durante muito tempo fosse umha atividade complementar que tem eliminado muita fame, na época atual, já desde os inícios do século passado, começa a tornar-se numha atividade profissional. A primeira espécie explorada de forma comercial foi a ostra, que foi extraída brutalmente até praticamente a sua extinçom, desde o século XVIII ao XIX, desaparecendo de muitas zonas da Galiza. O número de espécies exploradas é cada vez maior, precisando algumha delas de especializaçom tanto nos meios utilizados como na formaçom das pessoas que a esta atividade se dedicam. Um importante aspeto a ter em conta no marisqueio, especialmente no realizado a pé, é que a imensa maioria das pessoas que se dedicam a esta atividade som mulheres. E mesmo incluso no marisqueio de bordo há umha elevada percentagem das mesmas. Hoje a percentagem de mulheres no marisqueio a pé é de 75 %, devido à incorporaçom cada vez maior de homes, especialmente depois da crise, ainda que, há só 10 anos, se pudesse dizer que a presença masculina era marginal. No fim do século passado começa a regularizaçom da atividade de marisqueio, realizam-se cursos de formaçom, planos de marisqueio, começam a fazer-se amostragens nos bancos marisqueiros, planos de exploraçom e acompanhamento dos mesmos. O compreensível seria que a regularizaçom da atividade, a formaçom e profissionalizaçom do setor, a regeneraçom dos bancos marisqueiros, o controlo da produçom, o acompanhamento dos bancos, o maior conhecimento das espécies comerciais e a sua biologia e a coordenaçom com centros de investigaçom e com as universidades galegas permitissem umha melhoria nas condiçons de trabalho, melhoria de capturas sustentáveis polo incremento da produçom de espécies próprias, criaçom de mais postos de trabalho. Hoje o marisqueio deixou de ser umha atividade marginal, ou um complemento económico, para se tornar num ofício, mas é muito complicado poder viver desta atividade, especialmente do marisqueio a pé, além de ser um trabalho que tem um alto custo físico, demasiado elevado em proporçom aos ingressos obtidos. Para compreendermos melhor a situaçom do marisqueio hoje na Galiza, vamos ver qual é a sua situaçom atual e os fatores que o levárom a esta situaçom: dezembro 2017 / KALLAIKIA
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I. O número total de pessoas que se dedicavam a este trabalho no fim de 2016 era de 3799 , o número mais baixo da história, já que se regista umha queda continuada desde a organizaçom atual e a regularizaçom com as permissons de marisqueio (permex). Assi, por exemplo, no ano 2001, eram 6551, e inicialmente nos anos 90 do século passado ultrapassavam-se as 10.000. Se, além disso, vemos a distribuiçom por idades, a perspetiva é muito pior, pois, desse total, só há 187 pessoas menores de 30 anos, 5%, enquanto há 1843 pessoas maiores de 50 anos, 48,5%. Quer dizer, quase metade estám a 15 anos ou menos da idade de reforma. Por que está a ocorrer isto? Talvez nom há gente com interesse neste ofício? Nom, naturalmente que a há, pois, especialmente desde a crise, o número de pessoas que se apontam para obter permex é cada vez maior. A causa principal disto é a perda de bancos marisqueiros continuada no tempo no nosso pais, e, ainda no caso de nom se perder superfície, há um deterioramento dos bancos que reduz a capacidade produtiva. Já expliquei com anterioridade por que ocorre isto, mas, perante esta situaçom, a Conselharia do Mar deveria proteger os bancos marisqueiros e trabalhar conjuntamente com o departamento do Ambiente e Infraestruturas na construçom das EDAR no controlo de aterramentos e despejos, mas está totalmente ausente. Perante isto, a resposta é dedicar arredor de 1 milhom de euros anuais em concurso de projetos de regeneraçom, um remendo muito pequeno para o volume preciso, poir tal é como pôr um penso-rápido a umha pessoa a que lhe amputam umha perna. O que se revela evidente é que, quanta menor superfície, menor capacidade produtiva e, portanto, menos postos de trabalho. II. Mas, se atentarmos nos dados de produçom marisqueira na Galiza, estes nom baixam. Onde é que está o truque? O truque está em olhar a relaçom de espécies. As espécies autóctones mais valorizadas som, por ordem, a amêijoa-fina (Ruditapes decussatus) e a amêijoa-babosa (Venerupis corrugatus). •
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A amêijoa-fina é, de longe, a de maior valor comercial, e também é umha espécie que nom tolera muito as zonas degradadas, polo que a sua produçom baixou de forma continuada, de algo mais de 900 toneladas em 1998 para 380 em 2016.
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No caso da amêijoa-babosa também ocorreu o mesmo, já que, com um máximo de produçom em 1997 de 2710 toneladas, baixou para 923 t. no ano 2016. O mesmo aconteceu com a produçom de berberecho, a qual, depois da entrada da Marteilia na ria de Arouça e da expansom desse microrganismo, caiu a pique.
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Mas, nesta relaçom, falta ainda a espécie-estrela da Conselharia do Mar, a amêijoa-japonesa (Ruditapes philippinarum), amêijoa de origem asiática que foi introduzida em toda a Galiza por parte da Conselharia. A principal particularidade desta espécie é a alta resistência a ambientes degradados e poluídos, de modo que é capaz de crescer onde as outras nom podem. A conseqüência disto é o crescimento da sua produçom, sendo em 2016 o bivalve de maior produçom na Galiza, por diante do berberecho. Das 285 toneladas de 1997, passou-se para as 2618 de 2016, quer dizer, quase os 1000 %. Isto foi mais do dobro que a produçom da amêijoa-fina e da amêijoa-babosa juntas. E mais de 500 toneladas mais que o berberecho. Além de ser mais resistente à poluiçom, a outra particularidade, muito importante, da amêijoa-japonesa é o seu baixo valor comercial devido à sua baixa qualidade, aproximadamente metade do preço da amêijoa-babosa e um terço do preço da amêijoa-fina. Por isso, afinal o negócio nom é tam rendível.
III. A profissionalizaçom do marisqueio, como ocorre em outros muitos casos, realiza-se de acima para abaixo, e de forma asséptica. Todos os aparelhos e ferramentas utilizados no marisqueio fôrom concebidos polas pessoas que apanhavam o marisco e apresentam variaçons para cada zona, mesmo dentro da mesma ria. A esta circunstáncia se associa um conhecimento transmitido de geraçom em geraçom, do qual, ainda que poda incluir alguns erros, é fundamental aprender. Para umha pessoa obter o permex, umha vez selecionada, tem que fazer um cursinho, lecionado do mesmo modo em todo o pais, que versa as espécies, as artes, etc., mas esse curso nom tem em absoluto em conta as particularidades da cada zona, e é ministrado de forma exclusivadezembro 2017 / KALLAIKIA
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mente unidirecional, acontecendo que umha grande parte das pessoas que obtenhem o permex já tinham relaçom prévia com o marisqueio. Portanto, um cursinho que poderia contribuir para umha eficaz aprendizagem torna-se, de facto, num simples trámite para poder começar a trabalhar. Nom seria aconselhável que na ministraçom desses cursos participassem também pessoas que estám a realizar esses trabalhos na zona? Tal teria toda a lógica do mundo, mas para a Conselharia nom é assi. IV. Na maior parte das confrarias da Galiza, há assistências técnicas que realizam o trabalho de controlo dos bancos marisqueiros e da produçom, sendo o elo que liga as confrarias com os biólogos de zona e, portanto, com a Conselharia. As assistências técnicas fam um trabalho de acompanhamento dos bancos marisqueiros mediante amostragens, sendo as amostras enviadas para INTECMAR9, e também proporcionam dados de produçom, fam e executam projetos de regeneraçom, elaboram os planos de exploraçom... Som a base de todos os dados de marisqueio e pesca de toda a Galiza. Mas esta informaçom, na maior parte dos casos, morre em gavetas ou é infrautilizada. Som raros os casos em que se verifica colaboraçom ou troca de informaçom entre confrarias, conselharia, universidade e centros de investigaçom, desperdiçando-se desta forma muitas horas de trabalho e dinheiro público, dos quais se poderia tirar muito mais rendimento. Temos na Galiza dous centros do IEO (Instituto Espanhol de Oceanografia), que dependem do governo espanhol, e é portanto este que marca as diretrizes da sua atuaçom, na maior parte dos casos coordenada com outros centros do IEO no resto do estado, mas nom com os centros de investigaçom galegos ou com a própria Conselharia do Mar. Assi, é difícil tirar proveito, tanto em investigaçom como na utilizaçom dos recursos de que se disponhem. 9 INTECMAR, Instituto para o Controlo do Meio Marinho. Dependente da Conselharia do Mar, encarrega-se de analisar as amostras de biotoxinas e de poluiçom casuada por microrganismos, hidrocarbonetos, metais pesados e compostos organoclorados. É o organismo que classifica as zonas de produçom (A, B ou C), e realiza os fechamentos e as aberturas em funçom da concentraçom de biotoxinas.
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V. As condiçons de trabalho no marisqueio som especialmente duras, e nengumha das pessoas que desenvolvêrom esta atividade esta isenta de doenças derivadas de trabalhar em posiçons forçadas, submetidas à intempérie e à humidade. A lista de doenças própria deste coletivo é extensa, a começar polas articulares e de ossos. Tenhem na atualidade, depois de anos de luita, um coeficiente redutor10 de 0,1 (um mês por ano cotizado) desde 2004, coeficiente que parece baixo para o tipo de trabalho desenvolvido. Som excecionais os casos de pessoas que se dedicam a esta atividade que chegam à idade de reforma sem padecerem enfermidades associadas ao seu trabalho, e um número importante nem sequer chegam à idade de reforma, pois tenhem de deixar a atividade por impossibilidade física devido ao trabalho. VI. O furtivismo é um dos grandes problemas para o marisqueio, nom só polas perdas económicas ocasionadas, mas também por «introduzir» no mercado marisco sem condiçons sanitárias. O furtivismo causa problemas económicos diretos ao retirar dos bancos marisco que já nom vai ser apanhado por quem investiu dias de trabalho de limpezas, traslados, semeaduras... Também problemas indiretos, polo investimento em vigilantes e tempo perdido polas mariscadoras e mariscadores em vigiláncias, e polas situaçons de perigo físico para as pessoas, chegando-se nalguns casos às agressons ou à destruiçom de material de trabalho ou propriedades das confrarias ou dos sócios e pessoas que nelas trabalham. Mas nem todo o furtivismo é igual, nem pode ser tratado do mesmo modo, e assi podemos distinguir principalmente: •
Furtivismo ocasional, que é o realizado por turistas e/ou «veraneantes», que apanham marisco para o seu consumo próprio, mas que tem umha importáncia maior da que se poderia imaginar em zonas de freqüentadas no verao. Obriga a ter vigiláncias permanentes para evitar esta atividade.
10 O coeficiente redutor é um coeficiente que se aplica à cotizaçom da segurança social, em funçom da penosidade do trabalho, e que permite reduzir o tempo cotizado necessário para chegar à idade de reforma. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Furtivos habituais, os quais, quer seja por se acharem numha situaçom precária e acederem a um recurso fácil, quer por assim obterem um ingresso extra, exaustam os bancos marisqueiros. Há umha terceira possibilidade, que é a de alguns profissionais do marisqueio que extraem mais do topo permitido e o comercializam fora da lota, e, ainda que sejam poucos, dam má imagem à sua profissom, além do prejuízo ocasionado. O marisco extraído é comercializado seguindo duas vias diferentes, a venda direta à hotelaria, ou a venda a compradores de marisco legais que, depois, o inserem no circuito legal. Em qualquer dos dous casos, este marisco nom conta com garantias sanitárias e é perigoso para o consumo.
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Furtivos profissionais, som gente que fijo do furtivismo o seu oficio, e que normalmente estám organizados e especializados em algumha espécie, por exemplo os furtivos de vieira na ria de Ferrol. Tenhem também redes de compra, na restauraçom ou compradores profissionais de marisco.
Cada tipo de furtivismo requer de umha resposta particular, e a maior parte de trabalho de controlo nom deveria recair sobre as confrarias, como ocorre na atualidade. Na Conselharia os meios som limitados pola reduçom de pessoal, e a sua atuaçom limita-se a algum «golpe espetacular», tratando sempre o furtivismo como delinqüência, quando é preciso atuar de formas diferenciadas, segundo o tipo de furtivismo.
3.2.- Pesca Do mesmo modo que o marisqueio, a pesca é essencial no desenvolvimento humano no nosso país, assentamento de populaçom e crescimento, e desde muito cedo tem umha dimensom internacional, primeiro com exportaçons de peixe, e depois com a dispersom e exploraçom da atividade pesqueira galega por todos os oceanos do planeta. Já na época da colonizaçom romana havia fábricas de salga, o que dá ideia de que o peixe galego já era exportado há 2000 anos. Foi a sardinha a espécie mais importante na pesca do nosso país, e desde muito cedo havia exportaçom a Portugal, já que 30
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a Galiza oferecia melhores portos naturais e, portanto, a possibilidade de pescar mais dias. A atividade pesqueira sofreu umha modificaçom importante com a chegada dos «cataláns», que fôrom os principais desenvolvedores da indústria conserveira, de modo que, desde entom, foi parelho desenvolvimento de ambas (do mesmo modo que, mais adiante, a indústria dos congelados ficou ligada ao importante volume da frota galega e à sua presença mundial). A pesca hoje está altamente tecnificada, mas, apesar disso, e especialmente na pesca artesanal, o saber tradicional, o conhecimento da costa e das espécies de peixe que se capturam e o conhecimento, em geral, do mar som fatores essenciais na hora de virar o aparelho com mais ou menos peixe. Em geral, e também de novo como no marisqueio, a entrada na UE significou para a Galiza o final de um período de crescimento e o começo do declive desta atividade. A aplicaçom do principio de estabilidade relativa11, que limita as quotas de pesca para os barcos galegos, enquanto estabelece quotas para outros países que nom som pescadas. Com esse critério teórico, ainda que tenha havido ajudas para modernizaçom, a maior parte do dinheiro que chegou da UE dedicado à pesca usou-se para a destruiçom de barcos. Só o estado espanhol no momento da entrada na UE em 1986, tinha 52% da capacidade pesqueira dos países sócios, polo que a Galiza (que tinha, e tem, mais de 50% da frota espanhola) era a primeira potência pesqueira europeia. Mas hoje ocupamos o oitavo lugar. Há umha série de fatores que afetam a pesca em geral e que dependem fundamentalmente do papel de moeda de troca que o estado espanhol atribui à pesca galega e do servilismo da Junta da Galiza frente ao governo espanhol e da nula defesa do setor pesqueiro. I. A destruiçom de barcos tem graves efeitos no mundo pesqueiro, e nem tanto para os armadores (já que som estes que cobram das ajudas comunitárias a compensaçom por perderem capacidade de pesca), como, fundamentalmente, 11 O princípio de estabilidade relativa foi estabelecido para a entrada de Espanha e de Portugal na UE em 1986, repartindo as quotas de determinados pesqueiros entre os países que já estavam na UE e limitando, portanto, a participaçom das frotas portuguesa e espanhola. Este princípio ainda se aplica na atualidade. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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para os marinheiros, pois essa capacidade pesqueira diminuída traduz-se em postos de trabalho perdidos, e muitos marinheiros ficam sem trabalho e perde-se umha grande quantidade de trabalhos associados a essa atividade. II. A ausência da Galiza nas negociaçons com a UE para estabelecer as quotas de pesca em funçom dos TAC12 fai com que as quotas adjudicadas sejam em muitos casos ridículas e insuficientes para se manter umha atividade pesqueira minimamente rendível, ao mesmo tempo que se adjudicam quotas muito superiores a países extracomunitários que nalguns casos nem sequer chegam a usá-las. É vergonhoso que se descarregue peixe nas lotas em camions, enquanto os barcos estám amarrados por nom terem quota. O mesmo acontece quando há negociaçons internacionais com terceiros países ou com organismos pesqueiros, e um claro exemplo das conseqüências para a Galiza é a NAFO13. Em 1986 havia ali 45 barcos galegos (a totalidade da frota espanhola), mas na atualidade só restam 15 barcos. III. É verdade que a UE tem maior preocupaçom polas questons ambientais do que Espanha (o que nom é muito difícil), mas, muitas vezes, e no relativo à pesca, utilizam-se questons ambientais ou de recuperaçom de determinadas espécies para estabelecer TAC e quotas de pesca que pouco ou nada tenhem a ver com questons ambientais ou biológicas, mas si com critérios políticos. Nom é que sempre seja assi, mas si que se usa, e isto provoca jogos muito perigosos. No ano 2009 o estado espanhol quase duplicou a captura de sarda a respeito da quota estabelecida, e, teoricamente, para se evitar a sobre-exploraçom desta espécie, isso acarretou umha sançom para Espanha, mas a sarda continua a ser umha espécie mais que abundante. No tratado da NAFO é habitual apresentar relatórios alarmantes e reduzir as quotas, para, posteriormente, distribuir estas entre outros países. 12 Os TAC som os totais admitidos de captura, estabelecidos por espécie e em funçom do stock. A partir dos TAC adjudicam-se as quotas para cada estado. 13 Northwestern Atlantic Fisheries Organization, organismo que regula a pesca em águas internacionais situadas frente ao Canadá.
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IV. Um outro aspeto importante a mencionar quanto à distribuiçom de quotas de pesca é que na Galiza há na atualidade um total de 4424 barcos, com um total de 88.119 toneladas, dos quais 3931 som de artes menores, com 9463 toneladas, quer dizer, 88,8 % da frota galega corresponde a barcos de artes menores, e representam 10,7 % da tonelagem total de todos os barcos. Estas cifras dam ideia da imensa quantidade de barcos de artes menores, da pesca artesanal, e da sua pequena percentagem a respeito da tonelagem, e, portanto, da sua capacidade de captura, que nom se mediria só pola tonelagem, como também polo tipo de artes de pesca utilizadas. Os barcos de artes menores tenhem várias particularidades que há que destacar: •
Trata-se de barcos de pequeno tamanho com poucos marinheiros e/ou marinheiras, que em muitos casos som empresas familiares.
• Som aqueles que ma ior percentagem de mu l heres apresenta m. •
Distribuem-se ao longo de toda a costa, fixando populaçom nas zonas rurais.
•
O peixe chega a terra na mesma jornada de pesca, sem ter de ser submetido a nengum processo de conservaçom, polo que é muito fresco.
•
As artes que utilizam som muito mais respeitosas com o ambiente e mais seletivas, nom alteram os hábitats em que se utilizam e suscitam poucos descartes.
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Devido ao pequeno tamanho dos barcos e à quantidade destes, som aqueles que mais postos de trabalho geram, possibilitando umha maior distribuiçom da riqueza criada.
Nom é compreensível que os barcos deste tipo estejam submetidos às quotas de pesca estabelecidas para toda a frota. Um barco de pesca industrial tem umha capacidade de pesca imensamente maior, similar à de dúzias de barcos de artes menores, o que provoca que as embarcaçons menores fiquem sem quota de pesca, às vezes sem sequer começar a pescar, por aquela ter sido esgotada polos grandes navios. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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V. Para terminarmos de falar sobre o disparate das quotas, diga-se que a Galiza, entre as comunidades autónomas do Cantábrico, sai claramente prejudicada quanto à participaçom na quota atribuída ao estado espanhol. Por exemplo, a respeito da distribuiçom de quota de sarda no ano 2014, ao estado espanhol correspondeu 4% do total do TAC, do qual a Escócia levou 42 %, e as ilhas Feroé (que nem sequer som sócias da UE, e com menos habitantes que Ferrol), 12,6 %. Desses 4 %, que fôrom umhas 40.000 toneladas, à Galiza, com 153 barcos, correspondeu 24,86 %, enquanto a Euskal Herria, com 69 barcos, 48,11 %. Seria muito complicado explicar aqui por que se chegou a esta situaçom, mas o governo basco sempre defendeu os interesses da sua frota, enquanto o galego deixava fazer a Madrid. VI. Outro fator importante é o controlo dos portos e, portanto, da pesca descarregada. Na Galiza autonómica, nem todos os portos estám sob o controlo da Junta, antes acontecendo que os portos mais importantes e que geram maior volume de negócio, tanto em pesca como no resto de produtos, estám em poder do estado, sendo alguns deles umha espécie de protetorado que escapa ao controlo da Conselharia. VII. Num pais com 10% de todos os trabalhadores e trabalhadoras do mar de toda a Europa, o lógico seria ter um serviço de salvamento à altura das necessidades, mas este serviço sofre umha grave deterioraçom, fruto das políticas de privatizaçom do PP, reduzindo a sua capacidade de atuaçom, com o risco que acarreta em vidas humanas. 8. 3.3.- Aqüicultura Entendendo a aqüicultura como cultivo do mar, a sua prática seria um passo lógico a dar no mar, como ocorreu na terra no Neolítico com o desenvolvimento da agricultura e da pecuária. Mas, diferentemente desse processo, a capacidade atual de transformaçom do ser humano é imensamente maior e na atualidade o capitalismo selvagem tenta apropriar-se de todos os recursos, e os marinhos nom iam ser umha exceçom. Na Galiza podemos falar de três tipos de aqüicultura: 34
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I. Piscicultura, que na atualidade está praticamente monopolizada por multinacionais, e quase só com monocultura de rodavalho. As multinacionais do setor tenhem os seus olhos postos na nossa costa polo seu potencial, e se até agora nom se expandírom mais, nem ocupárom mais espaços naturais virgens da nossa costa, nom foi pola Conselharia do Mar, que deu toda classe de facilidades, mas pola mobilizaçom, tanto dos profissionais do mar como da populaçom em geral. A lei de aqüicultura do PP, a se converter em realidade, praticamente lhes deixaria a costa livre para o seu uso. II. Cultura do mexilhom. Na metade do século passado começou na Galiza a cultura do mexilhom em bateia, tendo um grande desenvolvimento, e tornando o nosso país no segundo produtor mundial de mexilhom. Como sempre, isto foi levado adiante pola iniciativa da gente do mar, já que a administraçom sempre foi a reboque. Mas isto mudou neste século, umha vez que alguns bateeiros galegos, com apoio de pessoas da Conselharia do Mar, se deslocárom ao Chile para montarem ali bateias como as galegas. A permissividade da Junta, a ánsia dos conserveiros por obterem mexilhom mais barato e, finalmente, os enfrentamentos no próprio setor bateeiro na Galiza provocárom umha queda de preços que dificultou, e muito, a sobrevivência deste sistema de cultura. Para isto contribuiu também a modificaçom da etiquetagem das conservas, por iniciativa da ANFACO14, medida proposta ao parlamento europeu polo PP que determinou a eliminaçom da obrigatoriedade de se indicar a origem do produto e o seu nome científico. III. Hoje, o marisqueio de bivalves na Galiza, ainda que nom se poda considerar estritamente aqüicultura, si é um sistema de semicultura. O PP, na sua lei de aqüicultura, tinha previsto a possibilidade da privatizaçom dos recursos marisqueiros, e nessa distribuiçom entrariam tanto as atuais associaçons de produtores como a empresa privada, abrindo a possibilidade de industrializaçom e controlo dos recursos marinhos galegos por parte do grande capital. 14 ANFACO. Asociación Nacional de Fabricantes de Conservas de Pescado. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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3.4.- Outras atividades relacionadas O mundo do mar move ao seu redor umha ampla gama de atividades, entre as quais destacamos: I. Redeiras. Esta atividade é desenvolvida integralmente por mulheres, e ainda que hoje as redes já nom sejam elaboradas artesanalmente, si é precisa a sua intervençom para a reparaçom e montagem dos aparelhos. II. Conserva. Este é outro trabalho nem que a imensa maioria som mulheres. Agora mesmo o número de empresas da conserva no nosso pais desceu muito, fundamentalmente pola deslocaçom da produçom para países do terceiro mundo. Haveria que incluir aqui também a indústria dos congelados e a transformaçom de produtos do mar. III. Os estaleiros. Já praticamente desaparecidos os carpinteiros de ribeira, ficam ainda no nosso pais pequenos e medianos estaleiros que dam serviço à construçom e reparaçom de todo o tipo de embarcaçons, bateias, etc. IV. A fabricaçom de aparelhos de pesca e material necessário para o desenvolvimento das atividades de pesca e marisqueio, desde nassas até sondas e radares move umha grande variedade de empresas. A todas estas haveria que somar muitas mais, transporte, distribuiçom... O mar cria atividade e gera riqueza muito mais além da própria beira-mar. 4.- Há futuro Apesar da utilizaçom do mundo do mar na Galiza como moeda de troca no seio da UE (para beneficiar outros setores de interesse para o governo espanhol) e apesar da expropriaçom dos recursos e da sua entrega ao capital e às multinacionais, cabe sermos otimistas, já que há capacidade para revertermos em grande parte a situaçom e recuperarmos os ecossistemas marinhos e a sua capacidade produtiva.
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I. Há partes da costa irrecuperáveis, como aquelas que ficárom sepultadas baixo aterramentos, mas essas som as menos. É possível recuperarmos a maior parte da costa, e umha vez recuperada a própria natureza encarrega-se do resto. Há nas rias toneladas de sedimentos provocados pola açom humana, em grande parte formados por matéria orgánica, deitados no mar por anos de despejos urbanos sem depurar que é preciso eliminar, e também os ocasionados pola atividade industrial. É preciso, porque se quigermos recuperar o hábitat originário, e com ele as espécies vegetais e animais próprias desse ambiente, temos de eliminar o que nom é próprio. Sempre se nos di que tal é caro, ou perigoso, mas a resposta a isso temo-la no BOE de 22 de setembro de 2011. Nesse texto é licitada em 79 milhons de euros por parte do Ministério do Ambiente a dragagem da baía de Portmán (Múrcia), cheia de resíduos mineiros muito poluentes, com o objetivo de se recuperar umha praia (nom se trata de umha recuperaçom produtiva, para além da turística). Portanto é possível, só é preciso ter vontade. Também é possível, e portanto deve fazer-se, a eliminaçom e/ou modificaçom de infraestruturas e aterramentos que causarem grave dano ao meio marinho. II. É preciso chegar à cota zero de poluiçom. Nom se podem permitir indústrias altamente poluentes, especialmente no interior das rias, que destruem o meio marinho e ponhem em risco a saúde e a vida de todos os seres vivos, incluindo os seres humanos. Para se eliminar a poluiçom urbana, é precisa a criaçom de EDAR com separativas que eliminem de vez os despejos de resíduos fecais ao mar, e isso pode-se fazer através da transformaçom das atuais ou criaçom de novas, onde for necessário. Um pais desenvolvido e que, além disso, tem uns recursos marinhos como a Galiza nom pode continuar a lixar o mar. III. Com um meio marinho recuperado, é preciso assumir responsavelmente a exploraçom racional e sustentável dos recursos marinhos. É preciso erradicar ou limitar no possível as espécies alóctones presentes hoje, ao mesmo tempo que se potenciam e recuperam as espécies próprias, tanto as de interesse marisqueiro como o resto. Nom podemos entendezembro 2017 / KALLAIKIA
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der as praias como fábricas de marisco, mas si como um meio natural. Também seria precisso a criaçom de hatcheries para a recuperaçom das espécies autóctones. IV. Com umha costa recuperada e bancos marisqueiros produtivos, criariam-se postos de trabalho, que teriam que ser dignos, quer dizer, mediante a melhoria das condiçons de trabalho (formaçom em ergonomia e melhoramento das técnicas de trabalho). Na formaçom das pessoas que se integrem na pesca e no marisqueio tem que haver presença das que trabalham na atualidade, que dem conta da sua experiência e transmitam as particularidades mais achegadas a cada um dos ambientes onde se vam integrar. Reconhecimento das doenças próprias do marisqueio e da pesca, melhoria das condiçons de segurança nos barcos, aplicaçom dos coeficientes redutores adequados para chegar à idade de reforma em condiçons físicas dignas. V. É possível e necessária a aqüicultura, mas esta tem de ser desenvolvida com a presença do setor, e nom de costas a ele. Integrada na produçom existente em cada umha das zonas, e nom para competir, antes para melhorar o resultado conjunto, sem pôr em risco a produçom natural, nem alterar espaços virgens de costa. VI. É preciso acometer o furtivismo como o problema complexo que é. A via policial e judicial som precisas para os grupos organizados, tanto de extratores como de compradores e os seus circuitos de venda. No caso de ser realizado por profissionais, devem ser as próprias organizaçons de produtores que sancionem e persigam esta conduta. É preciso formar consciência de que os bancos marisqueiros, ainda estando em praias turísticas, nom som um buffet livre, do mesmo modo que ninguém para numha leira a apanhar patacas ou repolos. É preciso tentar integrar no marisqueio, ou procurar umha saída social para os casos individuais. VII. Há que desenvolver um outro turismo, respeitoso com o meio natural e as pessoas, dado que a nossa costa nom é um resort hoteleiro com todo incluído, e nom se pode permitir 38
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todo. Também nom se trata de proibir a chegada de barcos de lezer, mas os portos desportivos nom podem ser feitos em qualquer local, nem se podem massificar até limites de ocupaçom de grande parte da linha de costa de vilas ou cidades, e, além disso, sempre tenhem de estar subordinados aos portos de profissionais, que devem ter as melhores condiçons. VIII. Todos os portos da Galiza tenhem de ser de propriedade galega e pública, para poderem desenvolver umha política adequada para os serviços prestados, e nom devem existir «portos francos», em que se cometem todo o tipo de ilegalidades. IX. A pesca artesanal tem de ter o papel que lhe corresponde e, portanto, sem que isso represente a exclusom da pesca industrial, deve ter preferência na hora de explorar os recursos do mar e deve estar isenta das quotas gerais de pesca. Tem de se estabelecer umha política de potências de motores, de cursos de formaçom, de medidas de segurança, etc., de acordo com o volume dos barcos e com as zonas onde trabalham. X. Embora alguns nom o tenham claro, a Galiza continuará a ser parte da Europa, ainda que nom pertençamos à UE, e só fora desta grande montagem do capital teremos capacidade para produzirmos. No entanto, quer esteja dentro, quer fora, como seria preciso, a Galiza tem de marcar presença e deter capacidade de decisom em todos os foros e mesas de negociaçom sobre a pesca e os recursos marinhos. XI. Os produtos do nosso mar som de alta qualidade, polo que é necessário que na etiquetagem das conservas ou de qualquer outro produto do mar, quer seja fresco quer processado, conste umha identificaçom clara da origem e da espécie. E a administraçom tem que pôr à disposiçom dos consumidores umha listagem de espécies e zonas de produçom de fácil consulta.
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XII. Todos os centros de investigaçom marinha da Galiza tenhem de estar ao serviço do povo galego, e, além de investigarem, tenhem de servir para a recuperaçom e para o conhecimento do meio marinho e das suas dinámicas e para colaborar com a pesca, com o marisqueio e com a aqüicultura na consecuçom da produçom sustentável. Em resumo, só podemos recuperar a nossa costa se tivermos o controlo sobre o mar: pode-se recuperar o mar, e devemos fazê -lo, mas, para isso, é necessário tomarmos consciência da situaçom atual e daquilo que queremos. É preciso termos vontade de o fazer, sem perdermos de vista o objetivo e a necessidade. E, finalmente, precisamos da capacidade de o fazer, mas isso só será possível se formos nós, e só nós, galegas e galegos, que podamos tomar as decisons sobre os nossos recursos. Como di o meu companheiro José da Corunha, nom podemos deixar que nos roubem mais mar.
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Joám Luis Ferreiro Caramês O mar da Galiza Fontes de informaçom B.O.E. D.O.G. D.O da U.E. Sítio internético da Conselharia do Mar: ww.xunta.gal/mar Sítio internético sobre a pesca na Galiza: www.pescadegalicia.gal Sítio internético do INTECMAR: www. intecmar.gal Sítio internético do Sigremar: ww3.intecmar.gal/Sigremar/
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Mural de F. Velho Pinheiro no Casino Ferrolano. Entre os anos 1925-1936 Foto: Lucía Mato López
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RESUMO A Geografia Radical é aquela que pretende fazer da Geografia uma ciência social cujo objetivo fundamental é acabar com as desigualdades socioeconómicas, partindo de uma análise do sistema económico imperante da que resultam fortes críticas ao sistema capitalista. Portanto, é preciso que os novos geógrafos estejam formados politicamente, tomando o marxismo como corrente principal. Nasce assim esta nova rama da disciplina em contraposição à Geografia Quantitativa que era considerada a Geografia ao serviço do poder e da globalização.
ANTECEDENTES Na segunda metade do século XX, dá-se uma renovação geográfica complexa, já que nascem muitas correntes e metodologias diferentes; mas todas têm uma coisa em comum: que rompem com a Geografia tradicional, pelo qual se pode falar de revolução geográfica; de facto, é denominada como Revolução Quantitativa da Geografia. - 43 -
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Como consequência da II Guerra Mundial, desaparecem as figuras dos velhos mestres das escolas alemã e francesa que desenvolveram a Geografia na primeira metade do século XX. Agora, os jovens geógrafos da América do Norte e da Europa têm uma tradição científica mais prática do que teórica, pelo qual procuram fazer da Geografia uma disciplina científica, tratando de definir o objeto de estudo e centrando-se no “espaço geográfico”, entendido este como algo abstrato e quantificável, já que a base de toda corrente científica é aquilo que pode ser quantificado. Assim, a região e a paisagem, que eram o centro da Geografia tradicional, vão passar a ser domínio de outras ciências (concretamente da Economia e das Ciências da Natureza). A Geografia tradicional insistia na descrição razoada da superfície terrestre que tinha escassa capacidade de demonstração, já que era muito subjetiva e interpretativa. Em 1953, o geógrafo alemão Fred K. Schaefer (1904-1953) publicou um breve trabalho intitulado Exceptionalism in Geography: a methodological examination (Annals of the Association of American Geographers, vol. 43), onde se falava de que a região ou a paisagem não podiam constituir o objeto da Geografia, uma vez que, na Geografia tradicional, estes conceitos apareciam como algo único, excecional e irrepetível; e dado que uma das características da ciência é a generalização através de leis, não pode existir uma ciência daquilo que é considerado único como a região. É por isto que a Geografia tradicional foi denominada de acientífica. Schaefer não viu sair do prelo o seu artigo, mas conseguiu que este fosse um ponto de partida para toda uma nova geração de geógrafos que procuravam fazer da sua disciplina uma ciência com as suas próprias leis geográficas. Ora, a nova Geografia, ou Geografia Quantitativa, também não foi capaz de resolver o problema da sua própria identidade. Acrescentou novos métodos de estudo e de análise, e reconheceu a importância da estatística; mas, ao mesmo tempo, omitiu, ou mesmo esqueceu, os aspetos teóricos. Ao quebrar a unidade existente, os diferentes ramos procuravam uma autonomia científica própria, o que fazia com que o objetivo ficasse cada vez mais esbatido, chegando-se assim à conclusão de que os métodos quantitativos têm de ser submetidos a técnicas de interpretação reflexiva, apesar de isto introduzir sempre certa subjetividade na análise. 44
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Depois disto, aparece um redescobrimento da paisagem e da região, mas também da importância do estudo das condições de vida, que já não vão depender das possibilidades oferecidas pela natureza –como tinha defendido, por exemplo, o geógrafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-1918), e sim da organização social, do sistema económico, das ideologias dominantes, da cultura de cada povo e das políticas de exclusão praticadas por algumas sociedades (quer dentro das próprias comunidades, quer com outras comunidades, etnias ou grupos). Em palavras de outro geógrafo francês, Max Derruau (1920-2004): “as possibilidades não estão na natureza, mas no ser humano socialmente organizado”. Este aparente retrocesso do pensamento geográfico converteuse afinal num verdadeiro avanço, por permitir uma aceleração das novas técnicas de análise. Certos ramos da nova Geografia, como a Geografia Radical ou a Geografia de Género, fixam os seus estudos nas condições de vida, mas apenas reparam superficialmente no território; chegando assim às denominadas “Geografias sem espaço”, que em si mesmas são um contrassenso A respeito do que sempre foi a Geografia. Principalmente as teorias formuladas pelas ciências sociais refletiam os valores e interesses das classes que controlavam os poderes económicos e políticos. Portanto, quando tratavam de interpretar e esclarecer problemas sociais, apenas era feito dentro da estrutura da sociedade capitalista, das suas limitações estabelecidas e tacitamente assumidas. Exemplo disto são a teoria dos lugares centrais de Walter Christaller (1893-1969), ou a teoria dos polos de crescimento de 1955, do economista François Perroux (19031987). Teorias que foram aplicadas num contexto social concreto de planificação física e regional e que não fazem outra coisa senão reproduzir as estruturas físicas, regionais e sociais já existentes, perpetuando assim o funcionamento dos mecanismos fundamentais da sociedade capitalista. Vamos falar aqui brevemente da trajetória de Christaller, para entendermos como a teoria formulada por este geógrafo alemão foi posta à disposição dos diferentes poderes políticos, entre eles do Partido Nazi, do qual Christaller começou a fazer parte em 1940. A sua teoria dos lugares centrais tenciona explicar a distribuição e dezembro 2017 / KALLAIKIA
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hierarquização dos espaços urbanos através de uma rede de áreas de influência, tomando a centralização como base natural da ordem. Fiel ao seu modelo, participou na organização do território da Polónia ocupada e na planificação dalguns assentamentos em diferentes regiões. Do ponto de vista territorial, a implementação desta teoria deu lugar à desaparição de diversas localidades que foram literalmente apagadas do mapa, assim como parte dos seus habitantes foram deslocados e assassinados nos campos de concentração. Mas estes factos não influíram na vida de pós-guerra de Christaller, já que acabou por fazer parte do Partido Comunista e depois do Social-Democrata. Do mesmo modo, participou na organização espacial da Polónia soviética e o seu modelo dos lugares centrais serviu de base para a planificação da República Federal da Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial.
A GEOGRAFIA RADICAL A Geografia Radical, também chamada de Geografia Crítica, aparece na década de 1960 e já mais fortemente representada na de 1970, no quadro das sociedades ocidentais desenvolvidas. Esta década é a culminação de uma etapa de crescimento económico constante que chega a alguns setores da população, os quais não tinha atingido com anterioridade. Contudo, ao mesmo tempo que se difundem os benefícios desse crescimento económico, começa-se a ter consciência de que não atinge todos por igual, especialmente dentro daqueles países economicamente mais ricos, onde há grupos sociais ou territórios que não são beneficiados por esse crescimento. Esta situação é agravada se comparada a nível mundial entre os países economicamente desenvolvidos e os países subdesenvolvidos, mormente quando os países africanos conseguem a sua independência e exigem maior igualdade. Há também consciência dos próprios limites do crescimento económico e dos seus efeitos muito pouco desejáveis, como é o caso das consequências ambientais. A explosão demográfica é uma ameaça para que referido avanço sustentado continue, mas o que vai pôr fim a esta etapa é um problema de recursos, concretamente a crise do petróleo de 1973.
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Todas estas inquietações vão dar lugar a uma série de movimentos de protesto nas sociedades desenvolvidas, tais como os movimentos pelos direitos civis, os protestos contra a Guerra do Vietname nos Estados Unidos, ou as revoltas estudantis universitárias. Isto vai transformar o modo como as ciências, incluída a Geografia, abordam os problemas sociais. Vão, assim, influir o âmbito do saber científico e no campo de ação das ciências sociais, onde surgem correntes críticas que põem em evidência alguns aspetos ou pontos fracos do dominante Neopositivismo Científico das décadas de 1940 e 1950, filosofia em que também se baseavam a Geografia Quantitativa e a Economia Clássica. Neste momento histórico, assistimos também a uma nova revitalização dos escritos de Marx, de quem a Geografia Radical toma influxo para abordar a relação existente entre a sociedade e a natureza, mas também das relações de trabalho, e tendo sempre em consideração os processos históricos que se evidenciam no espaço-tempo. Para esta nova visão da ciência, há que procurar posições filosóficas alternativas e, entre as possibilidades, estão múltiplas variedades e correntes com base no marxismo.
FRANKFURT SCHULE Neste contexto nasce a Frankfurt Schule, uma escola de teoria social interdisciplinar e neomarxista, cujos membros foram maiormente exilados aos Estados Unidos por causa da chegada do nazismo ao poder. Na Geografia, essas correntes críticas começam a se manifestar claramente a finais dos anos 60, quando aparecem dúvidas sobre a Geografia Quantitativa, relacionadas com o carácter global da mesma, de se as técnicas estatísticas refletem a realidade ou de se servem para a melhorar, mas também de se realmente tem uma utilidade social. Estas questões são manifestas da mesma forma nalguns dos protagonistas mais em destaque do auge da Geografia Quantitativa.
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Herbert Marcuse Falamos de Herbert Marcuse (1898-1979), filósofo e sociólogo judeu de nacionalidade alemã e estadunidense, por ter deixado pegada nas ciências sociais em geral, e na Geografia em particular.
Herbert Marcuse rodeado de estudantes da Universidade de Berlim (1967)
Orientou-se para um marxismo crítico, o seu pensamento foi marcado por fundamentos procedentes do marxismo e do freudismo. Criticou a sociedade industrial por ter um carácter repressivo e alienante com a classe operária, fazendo dela uma massa consumista, conformista e exploradora indireta das classes marginais dos países mais pobres. Do mesmo modo, critica os países comunistas por achar que também não foram capazes de conseguir uma verdadeira igualdade de condições para os seus cidadãos. Portanto, analisa a integração da classe trabalhadora na sociedade capitalista, mas questionando se a teoria de um proletariado inevitavelmente revolucionário poderia dar certo. Com as suas obras Eros and Civilization (1955) e One-dimensional man (1964), nas quais critica a sociedade capitalista, tornou-se eco dos movimentos estudantis de esquerda dos anos 60. Para ele, era fundamental a libertação do ser humano: havia que romper a obrigação do trabalho, tendo tempo disponível para o prazer.
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ANTIPODE. A RADICAL JOURNEY OF GEOGRAOPHY O ano 1969 é considerado o ano do início da nova corrente geográfica por ser quando aparece nos Estados Unidos a revista Antipode. A radical journal of Geography. Daí a denominação de “radical” que vai ser aplicada a esta nova Geografia. Esta revista continua hoje em dia em funcionamento, a fazer análises pouco convencionais das questões geográficas.
Capa da revista Antipode
A mesma foi considerada porta-voz de uma Geografia alternativa, que se preocupava com os problemas locais e regionais, factos que se demonstraram nos seus primeiros números, nos quais eram tratados temas como a expedição de Detroit, a deterioração do meio ambiente, produzido pelas companhias mineiras dos Apalaches e os seus efeitos sociais, ou o aumento da pobreza rural, e também urbana. Em 1974, no quadro de uma evolução e procura teórica, a revista considerou a necessidade de aprofundar no campo do marxismo e incentivar as investigações e contribuições dos países do terceiro mundo. Foi então quando esclareceu os seus objetivos e ganhou alguns leitores fora da América do Norte, mas também há que dizer que perdeu muitos dos primeiros leitores liberais, devido a ainda ficarem assustados pela palavra “marxismo”. Nesta mesma linha de atuação, que consiste em dar voz à Geografia Radical, também nasce a revista Hérodote na França, lançada por Yves Lacoste (1929) e Béatrice Giblin (1947), ambos preocupados com a geopolítica; portanto, não admira que a revista trate dezembro 2017 / KALLAIKIA
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principalmente problemas geopolíticos, como as rivalidades de poder existentes sobre os territórios. Estas revistas tornam-se o meio de informação e comunicação para os geógrafos que não faziam parte da Geografia institucionalizada, a qual estava controlada pela Association of American Geographers e que era altamente conservadora. Antipode Foundation está fortemente ligada com a organização das primeiras expedições geográficas e deste vínculo foi desenvolvida a União de Geógrafos Socialistas, de que falaremos a seguir.
UNIÃO DE GEÓGRAFOS SOCIALISTAS. EXPEDIÇÕES GEOGRÁFICAS A União de Geógrafos Socialistas (UGS) ficou constituída como tal em maio de 1974, tem a sua sede não oficial na Universidade Macfill de Montreal, na província do Québec. Os seus princípios e objetivos básicos foram apresentados deste jeito: “O propósito da nossa união é trabalhar para a reestruturação radical das nossas sociedades em base aos princípios de justiça social. Como geógrafos e como pessoas, contribuiremos para com este processo de duas formas complementares: I. Organizando e trabalhando para conseguirmos uma mudança radical nas nossas comunidades, II. Desenvolvendo a teoria geográfica, para contribuirmos para a luta revolucionária.”1 Trata-se de uma união sindical, uma organização livre de estudantes, geógrafos e não geógrafos, entregados à transformação progressista da sociedade. Portanto, não é uma organização política, nem uma associação de profissionais no sentido tradicional, 1 Mattson, K. (1978): Una introducción a la Geografía Radical. GeoCrítica, Cuadernos críticos de Geografía Humana, nº 13 (Barcelona: Universidad de Barcelona).
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senão que faz por representar uma grande variedade de opiniões enquanto apoia numerosas organizações políticas em escala local e internacional. Como se apontou anteriormente, protagonistas da Geografia Quantitativa vão ser postos em destaque nesta nova conceção da ciência. E, neste sentido, há duas figuras que podemos considerar chave para o surgimento e o desenvolvimento da Geografia Radical a partir da Geografia Quantitativa. Elas são Willian Bunge e David Harvey.
William Bunge William Wheeles Bunge Jr. (1928-2013) foi um geógrafo quantitativo, mas que contribuiu para as novas focagens da Geografia Radical. Foi muito conhecido pelo seu ativismo social e antimilitar nos Estados Unidos e no Canadá. Nos anos 60 e especialmente nos 70, começava a estar cada vez mais insatisfeito com o seu trabalho e com os múltiplos dados estatísticos, já que os seus primeiros livros foram realizados na área da Geografia Quantitativa. Apercebeu-se de que as suas obras serviram como um apoio mais para o avanço da maquinaria capitalista e de que não mostravam alguns aspetos da sociedade norte-americana, nem falavam sobre alguns territórios dos Estados Unidos. Territórios tão desconhecidos para os geógrafos e a sociedade como eram os subúrbios ou guetos negros das cidades que, em geral, eram lugares conflituosos. Para Bunge, a solução era realizar expedições a esses lugares e foi assim como organizou a sua famosa expedição a Detroit (referida anteriormente), concretamente a Fitzgerald, um bairro em processo de guetização e com uma forte repressão social. Desta exploração saiu publicado o seu livro Fitzgerald: Geography of a revolution (1971). Tratou de aplicar os seus conhecimentos geográficos a benefício e serviço da sociedade. Aplicou as técnicas quantitativas à análise social destes guetos e descreveu as condições de vida de Fitzgerald, mostrando as áreas sem parques, sem bibliotecas, sem educação escolar, etc., porque frequentemente eram as crianças da rua que guiavam Bunge. E assim foi que fez um mapa onde asdezembro 2017 / KALLAIKIA
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sinalou as áreas em que as ratazanas eram vistas com frequência e marcou com pontos os lugares concretos nos quais as crianças foram mordidas por estes animais.
Mapa das áreas onde as crianças eram mordidas pelas ratazanas
Portanto, não só ele tratava de ensinar métodos geográficos e como utilizá-los, como também aprendeu muito acerca do bairro, graças à vizinhança, e assim começou a arrecadar informações e a reconstruir a história do mesmo. Finalmente, este conhecimento coletivo dará lugar à luta para a conservação e a proteção do lugar que estava à mercê dos empreiteiros e proprietários que exerciam uma forte especulação sobre o solo. Em 1969, a expedição já estava mais menos concretizada e o essencial era a investigação em benefício da comunidade negra e a sua educação, mas também que esta aprendesse a investigar pela sua conta. Foi então quando foi criado o Detroit Geographical Expedition and Institute (DGEI), em colaboração com a Universidade de Michigan, onde era oferecido um curso sobre aspetos geográficos na planificação urbana. O programa era controlado pela comunidade e estava especialmente pensado para estudantes de bairros negros e deprimidos de Detroit, o que deu como resultado um plano de descentralização escolar para a cidade. O número de estudantes passou duns 50 alunos que havia no verão de 1968 até os quase 500 da primavera de 1970. Afinal, a Universidade de Michigan acabou com o financiamento e proibiu os seus professores que ensinassem no DGEI, os quais eram voluntários e davam as 52
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suas aulas gratuitamente. Foi o fim da expedição (1970), mas não só, já que Bunge também foi expulso da universidade por “expor as raparigas brancas à violação” e “querer reduzir a universidade a cinzas”, palavras que aparecem no seu expediente. Na verdade, fora incluído na “lista negra” junto a outras personalidades como Angela Davis ou Muhammad Ali, feita nesse mesmo ano pelo House Un-American Activities Committee (HUAC)2. Como consequência disto, e a fim de evitar a repressão política, viu-se na obrigação de emigrar para o Canadá.
Fragmento da lista negra feita pelo HUAC em 1970
Já no Canadá é contratado pela Universidade York de Toronto, onde organiza mais uma expedição ao bairro italiano Christie Pits que presentava problemas de marginação e degradação urbana. Esta foi denominada The Toronto Geographical Expedition, teve lugar entre os anos 1972 e 1975 e foi transcrita no livro The Canadian Alternative: survival, expeditions and urban change (1975). Também realizou outras expedições em Londres, Montreal ou o Quebec mas, finalmente, a radicalidade do seu compromisso fez com que tivesse de abandonar a universidade e acabasse trabalhando de taxista, profissão que ele achava muito interessante para qualquer geógrafo já que oferecia novas visões da cidade e uma maneira diferente de entender e observar a sua realidade social.
2 O HUAC foi um comité de investigação da Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos que foi criado em 1938 para investigar supostas deslealdades e atividades subversivas dos cidadãos, funcionários públicos e organizações suspeitas de terem ligações comunistas. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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David Harvey Outro exemplo é David Harvey (1935), geógrafo e teórico social britânico especialista em sociologia urbana e considerado na atualidade um dos maiores autores do pensamento geográfico. Politicamente de esquerda e pensamento influenciado por Karl Marx e Henri Lefebvre, compõe uma Geografia Urbana e Económica de contestação ao sistema capitalista e ao pensamento neoliberal, através da sua manifestação no espaço geográfico. Para Harvey, existe uma outra liberdade mais nobre a conquistar que a que nos está a oferecer o neoliberalismo, e também um outro sistema de governo que construir que aquele que permite o neoconservadorismo.
David Harvey, Festival Subversivo no Zagreb (2013)
Na sua obra Social justice and the City (1973), reflete a passagem da Geografia Quantitativa para a Geografia Radical. Esta obra é uma compilação de trabalhos de Geografia Humana, cuja primeira parte é formada por trabalhos quantitativos clássicos, mas a segunda compõe-se de enfoques socialistas, tratando de aplicar o marxismo na análise dos problemas humanos. Acha que os métodos geográficos existentes são incapazes de resolver as próprias contradições internas que tem a Geografia; e é por isso que começa a desvelar a sua postura radical e revolucionária, a mostrar um carácter ideológico da metodologia geográfica e a experimentar as possibilidades que o pensamento marxista consegue de oferecer ao geógrafo. No fim do seu livro diz: “A velha estrutura do capitalismo industrial, que noutra época foi uma força revolucionária capaz de mudar a sociedade, aparece atualmente como um obstáculo. A crescen54
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te concentração de investimentos de capital fixo, a criação de novas necessidades e demandas efetivas e um modelo de circulação que é baseado na apropriação e exploração, emanam da dinâmica interna do capitalismo industrial. Os modelos na circulação da mais-valia estão a mudar, mas não alteram o facto de as cidades – essas “oficinas da civilização” – estarem fundadas sobre a exploração da maioria por uns poucos. Da história herdamos um urbanismo baseado na exploração. O urbanismo genuinamente humanizador está ainda por construir. Fica para a teoria revolucionária procurar o caminho que vai desde um urbanismo baseado na exploração até um urbanismo apropriado para a espécie humana. E fica para a prática revolucionaria levar a cabo tal transformação.” 3 Para ele, a ênfase que a Geografia fazia sobre o “espaço” só servia para esconder o que realmente se passava nesse espaço, para ocultar os verdadeiros problemas derivados da exploração que o capitalismo exerce sobre a população. Assim, utilizará o marxismo para explicar as desigualdades. Neste campo, desenvolveu o conceito da “compressão espaçotempo”, sendo capaz de visualizar, no contexto da Globalização, a dinâmica de superação das distâncias, através das transformações técnicas e tecnológicas que foram capazes de acelerar os acontecimentos e os níveis de produção económica e de integração política. Quer dizer, a capacidade de aceleração que têm os acontecimentos globais, resultando em distâncias mais curtas, já que um sucesso que ocorre num determinado lugar tem um efeito social imediato sobre qualquer outro lugar do planeta. Temos de ter em consideração que as crises estão a ser espalhadas cada vez mais rapidamente e que também são mais profundas e, portanto, também são mais globais. Nas múltiplas entrevistas que lhe foram feitas nos últimos anos, tem defendido a postulação do crescimento zero, mas sempre fazendo uma distinção entre o desenvolvimento humano e o crescimento económico. Afirma que devemos caminhar para um projeto global que tenha a sua base no 3 Harvey, D. (1977): Urbanismo y desigualdad social. (Trad. González Arenas, M.) (Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A.). dezembro 2017 / KALLAIKIA
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desenvolvimento das capacidades humanas mas, sem um crescimento económico que continue a potencializar as desigualdades sociais, o que Marx chamou de “prosperidade humana” está a ser negada pelo capitalismo. Portanto, fala de uma “economia não capitalista, não é possível ter capitalismo com um crescimento zero, porque o capitalismo é sinónimo de crescimento, e deve incrementar-se para sobreviver; se não aumentar, há crise”.
CONTROVÉRSIAS. DIFERENTES CORRENTES DA GEOGRAFIA RADICAL Os trabalhos de Bunge e Harvey, assim como de outros geógrafos radicais, deram lugar a começos dos anos 70 a controvérsias entre os defensores da velha Geografia Quantitativa e a nova Geografia, a Radical. Os geógrafos radicais reclamavam que os quantitativos só propunham reformas parciais e estes últimos afirmavam que as preocupações sociais que tinham os geógrafos radicais eram nobres, mas que estavam mal focadas ou mesmo que menosprezavam o papel das transformações que já se estavam a suceder. Por mostrar alguma delas, vamos falar da que teve lugar entre David Harvey e o geógrafo humano Brian Berry (1934), quem continuava a defender a Geografia Quantitativa. Berry fez uma recensão crítica acerca do trabalho de Harvey, onde afirmou que a obra dele era baseada em premissas doutorais não comprovadas, que podiam ter certo interesse para explicar a sociedade industrial, mas não a pós-industrial. A isto, Harvey respondeu que o que Berry pretendia era defender a posição de poder das classes dominantes, e que as soluções dadas pelos quantitativos só conseguiam consolidar a desordem do capitalismo. Por outro lado, também assistimos a um debate interno na própria Geografia Radical entre aqueles que são partidários da reforma, que acham que devem ser introduzidas melhorias; e aqueles que defendem a revolução, que pensam que as reformas ou melhorias o único que conseguem é consolidar o capitalismo que deve ser, portanto, substituído por outra ordem social. Assim, encontramos dentro da Geografia Radical dois grupos diferenciados: por um lado os liberais e, pelo outro, os radicais que são identificados com o marxismo e com o anarquismo, sendo este último grupo mais minoritário. 56
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No grupo dos liberais ou reformistas, estão os autores que propõem, fundamentalmente, aplicar as habilidades tradicionais do geógrafo (elaboração de mapas, interpretações cartográficas, emprego de dados estatísticos...) para melhorar as condições de vida da sociedade. O que fazem, essencialmente, é cartografar a desigualdade nas condições ou qualidade de vida das pessoas, para o qual utilizam indicadores sociais como: condições da vivenda, serviços sociais, sanitários, educação... Uma vez identificadas estas desigualdades, propõem soluções. Esta corrente é conhecida como a Geografia do Bem-estar e insiste e põe a ênfase, como o seu nome indica, no bem-estar da gente (“welfare”). Em palavras de David Smith, autor de Human Geography: a welfare approach (1977), “os geógrafos humanos, como os demais estudiosos, são filhos do seu tempo e reagem conforme o clima intelectual, social e político em que vivem”. Este grupo de geógrafos reconhece que o que está na raiz das desigualdades é o sistema económico capitalista, que deve ser reformulado. Nesta reforma o Estado protagoniza um papel fundamental, quer dizer, defendem a intervenção do Estado na economia mediante políticas de tipo keynesiano. Também reconhecem a utilização do marxismo para a análise dalguns aspetos da realidade, mas não mediante um papel exclusivo. Fundamentalmente analisam as desigualdades territoriais a diferente escala: mundial, estatal e local; propõem soluções alternativas; procuram uma sociedade territorial mais equilibrada, socialmente mais justa e onde os grupos humanos vivam em harmonia com o meio ambiente. A Geografia do Bem-estar pode ser entendida como uma versão socialmente comprometida da Geografia Aplicada, onde o único que muda a respeito da tradição geográfica anterior são os fins da investigação, já que a metodologia continua a ser a mesma. Não renegam de modo algum da quantificação como técnica. Acham que a sociedade pode ser mudada e reformada progressivamente a partir de dentro do sistema. À frente deste grupo reformista, encontramos os geógrafos que acham que a sociedade capitalista não é reformável a partir de dentro, que as reformas que tratam de aliviar as injustiças só dezembro 2017 / KALLAIKIA
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conseguem consolidá-las e, portanto, a sociedade capitalista tem de ser totalmente transformada, substituída. Para isto, há que conhecer bem os mecanismos de funcionamento da sociedade capitalista e, para este conhecimento, uma grande maioria encontrou que o marxismo era a ferramenta de análise mais útil. Começam por ler autores clássicos e é assim como os primeiros trabalhos dos geógrafos radicais tratam as conceções fundamentais dos principais teóricos do marxismo. No mundo anglo-saxónico, o marxismo quase não tinha tido presença nas ciências sociais e na Geografia a presença fora nula. O que procuravam, ao lerem Marx e outros autores, eram as referências ao “espaço”, porque era nesse conceito onde a Geografia podia fazer a sua contribuição. Mas havia também quem considerava que a divisão do conhecimento em diferentes ciências era algo reacionário e que, na realidade, a Geografia devia desaparecer como tal e ser integrada no conjunto de uma ciência social unificada. Esta posição minoritária aparece refletida em trabalhos como o de Michael Eliot Hurts Geography has neither existence nor future (1985). Rapidamente, vão descobrir, ao lerem Marx e os principais pensadores marxistas, que o “espaço” só aparece de forma secundária ou indireta, considerado como algo importante mas subordinado a outras ideias principais. O espaço é algo socialmente produzido, é um produto social e, portanto, o que importam são os processos sociais. Assim, os primeiros trabalhos de investigação apenas analisam as desigualdades sociais em termos gerais, sem terem muito em consideração o espaço em que estes desequilíbrios são produzidos. Posteriormente, vai ser analisado como uma confluência do natural e o humano onde são dados os processos históricos. Através da análise das relações de poder que são refletidas no espaço, vão ser vistos os diferentes conflitos espaciais e a base que tem o capitalismo: dominar o espaço é fundamental para dominar a sociedade.
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Henri Lefebvre A referência para estes geógrafos marxistas de primeira geração são alguns sociólogos, também marxistas, que manifestam uma determinada preocupação pelo espaço. Como por exemplo, Henri Lefebvre (1901-1991), considerado um humanista marxista hegeliano e mais próximo politicamente de Rosa Luxemburgo. Inicialmente, fixou o foco na crítica à quotidianidade da vida coletiva imposta pelas classes dominantes, já que é entendido que o dia a dia, a rotina que é estabelecida por quem está no poder, reproduz e perpetua as relações de dominação. As obras que seguem esta direção são : Critique de la vie quotidienne (1947), La vie quotidienne dans le monde moderne (1968) e Critique de la vie quotidienne, III. De la modernité au modernisme. (Pour une métaphilosophie du quotidien) (1981).
Henri Lefebvre (1971)
Contudo, também estudou os problemas da urbanização do território centrando-se no estudo do mundo urbano contemporâneo tomando a Sociologia como a teoria unitária do espaço: físico – mental – social. Este trinómio do espaço mostra como cada sociedade produz o seu próprio espaço no enquadramento de outros já existentes e históricos. Destacam La pensée marxiste et la ville (1972) ou La production de l’espace (1974).
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ESPAÇO FÍSICO
ESPAÇO MENTAL
ESPACIO SOCIAL
Espaço pericibido,é o mundo experimentado
Espaço concebido, representações da espacialidade
Espaço vivido, espaços de representação
Apesar de que Marx não prestou especial atenção ao fenómeno do espaço urbano, existem algumas referências como em Die Deutsche Ideologie (1932) onde Marx e Engels fizeram finca-pé na divisão capitalista entre o trabalho industrial ou comercial e o agrícola, dando lugar a uma crescente diferenciação entre o espaço da cidade e o do campo. Para Lefebvre, o espaço como tal é convertido numa mercadoria através da evolução do próprio capitalismo, o qual começou por produzir mercadorias em localizações concretas, para acabar por produzir espaço urbano propriamente como um novo produto. Isto não quer dizer que não tenha em consideração a sociologia marxista, mais sim trata de fazer uma reinterpretação, acrescentando o elemento urbano que Marx desmereceu. “O espaço tem de deixar de ser considerado como passivo, vazio ou carente de outro sentido, como os “produtos”, que se intercambiam, consomem, ou que desaparecem. Como produto, por interação ou retroação, o espaço intervém na produção em si mesma: organização do trabalho produtivo, transportes, fluxos de matérias-primas e da energia, redes de distribuição de produtos. (...) Não pode ser concebido de maneira isolada ou ficar estático. É dialético: produto – produtor, suporte das relações económicas e sociais.”4 A perspectiva marxista para as análises sociológicas da cidade terá o seu ponto culminante durante as décadas de 70 e 80 do século XX, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Tanto foi assim que se chegou à conclusão de que “o melhor urbanismo foi feito por marxistas, e o melhor marxismo por urbanistas”, em palavras do ensaísta e teórico urbano Andy Merrifield (1960), Metromarxism: a marxist tale of the city (2002). 4 Lefebvre, H. (1985). Tirado de Baringo Ezquerra, D. (2013): La tesis de la producción del espacio en Henri Lefebvre y sus críticos. Quid 16, nº 3 (119-135) (Buenos Aires: Instituto de Investigaciones Gino Germani de la Facultad de Ciencias Sociales).
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PRINCIPAIS LINHAS DE ESTUDO A começos dos anos 70, as principais linhas de atuação da teoria marxista são desenvolvidas numa série de trabalhos dos geógrafos radicais que incorrem, principalmente, em três aspetos:
Os problemas do imperialismo e do desenvolvimento Tem algum antecedente nos geógrafos anglo-saxões que antes dos anos 70 se tinham interessado pelo marxismo, principalmente por terem trabalhado em países subdesenvolvidos. São análises que julgam e reprovam as teorias da modernização económica que, em geral, diz que as sociedades atrasadas economicamente são as mesmas que se mostram contrárias à mudança, ao desenvolvimento; que essa apreensão às transformações é uma característica inerente a uma sociedade subdesenvolvida. Isto quer dizer que, como são atitudes consideradas intrínsecas, não têm porque ser explicadas, mas na verdade este subdesenvolvimento é consequência das situações desvantajosas dessas regiões ou sociedades fronte a outras. Os geógrafos radicais indicam que o subdesenvolvimento se produz de forma ativa devido às relações desiguais de intercâmbio entre países ricos e pobres, são os países ricos que conscientemente permitem e mesmo propiciam os desequilíbrios. De facto, este esquema pode ser encontrado tanto a nível mundial, como regional ou local.
Os contrastes económicos dentro dos países desenvolvidos Os contrastes económicos que se dão dentro dos países desenvolvidos entre diferentes regiões são vistos como uma consequência dos movimentos do capital, dos fluxos de investimentos. O capital procura sempre a máxima rentabilidade e para isso investe em determinadas zonas e desinveste noutras, levando a termo, por exemplo, processos de reconversão industrial que são traduzidos em territórios que afundem e outros que emergem.
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Doreen Barbara Massey Estas sucessivas fases de investimento nuns lugares e não em outros ficam refletidas na atual configuração regional simulando estratos geológicos. Esta metáfora foi pegada da obra de Doreen Barbara Massey (1944-2016) Spatial divisions of labour: social structures and the geography of production (1984). Esta geógrafa foi uma cientista social britânica envolvida na geografia marxista e feminista. A sua influência foi reconhecida em 1998, quando ganhou o prémio Internacional de Geografia Vautrin Lud, coloquialmente chamado o prémio Nobel de Geografia, ganho com anterioridade por David Harvey em 1995 ou por Milton Santos em 1994. Na sua rebelião particular como mulher, ao acabar os estudos universitários rejeitou continuar com a pós-graduação por considerá-la “elitista e masculina”.
Doreen Barbara Massey (2012)
Nas suas próprias palavras, tornou-se “responsável pela evolução de uma geografia radical que ressaltou o significado da organização geográfica do espaço”, o seu espaço geográfico não era neutro nem estático, mas “socialmente construído” através de processos de exclusão, onde o género, a classe social, a raça ou a etnia podem mudar a realidade de um mesmo lugar.
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Contribuiu para os estudos sobre a geometria do poder. A globalização implica o aumento das desigualdades tanto sociais como geográficas. O problema está na identificação do espaço físico com uma “comunidade”, já que as comunidades podem existir sem estar necessariamente ocupando um mesmo território (comunidades religiosas ou políticas, por exemplo, e mesmo uma comunidade de amigos ou a família). Por outro lado, os espaços também são vistos de formas diferentes por um mesmo grupo social, já que as pessoas ocupam diferentes posições dentro de qualquer comunidade, devido às suas próprias estruturas internas. Assim, um determinado lugar que seja de referência para um homem branco, pode não sê-lo de igual maneira para uma mulher ou uma minoria étnica dessa mesma comunidade. Existe, portanto, uma diferenciação social complexa, onde também encontramos disparidades nos graus de movimentos e nas comunicações. Já não é só questão de quem fiscaliza os espaços físicos de convivência das comunidades, senão de quem à sua vez domina a mobilidade que existe entre os mesmos e controla os acessos. Para ela, o problema regional estava em considerar que este era em si mesmo um feito geográfico, como se as regiões deprimidas fossem responsáveis pela sua própria condição. Fazia pois uma crítica à teoria da localização e da geografia económica do momento; a estrutura de produção do capitalismo reproduz a diferenciação espacial. O esperado seria que fossem geradas possíveis soluções com a capacidade suficiente para erradicar, ou pelo menos diminuir, as desigualdades tanto espaciais como de mobilidade, que são um efeito direto das exclusões sociais dadas nos diferentes lugares, melhorando assim a qualidade de vida das pessoas no conjunto da comunidade. “As formas nas quais as pessoas são situadas dentro da “compressão do espaço-tempo” são muito complicadas e variadas. Mas isto á sua vez, formula imediatamente questões de política. Se a compressão espaço-tempo é imaginada na sua forma mais social e diferenciada, então pode existir a possibilidade de desenvolver uma política de mobilidade e acesso. Parece que a mobilidade e o controlo da mobilidade refletem e reforçam o poder. Não se trata só de uma distribuição desigual, que umas pessoas podem mover-se mais dezembro 2017 / KALLAIKIA
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que outras, e que alguns têm mais controlo dessa mobilidade. Senão que a mobilidade e o controlo dalguns grupos podem debilitar ativamente a mobilidade já débil de outras pessoas. A compressão espaço-tempo dalguns grupos pode minar o poder de outros.” 5 Sempre se considerou feminista, mas isto se tornou muito mais visível após a sua passagem pela Universidade de Oxford, onde sofreu tanto opressão de classe como de género. Para ela, a perspectiva feminista era uma forma de fazer as coisas e é por isso que devia estar presente em qualquer trabalho: “eu quero feministas em toda parte, em física nuclear, em geomorfologia, em geografia humana, etc. Estudá-lo tudo como feminista, não só estudar as mulheres e o género”. Na sua obra Flexible Sexism (1990) criticou duramente a obra The condition of Postmodernity de David Harvey e Postmodern Geographies do geógrafo estadunidense Edward Soja (1940-2015) considerando que, apesar de terem contribuído muito e positivamente não deixavam de ser profunda e inconscientemente sexistas, segundo as próprias palavras de Massey, devido ao estilo e à construção dos textos, à falta do reconhecimento da literatura feminista e a que falam de uma política na qual apenas o capitalismo é considerado o inimigo. Mas a crítica não é feita só de um ponto de vista feminista, mas também tendo em consideração as minorias étnicas, as sociedades não ocidentais e a homossexualidade, já que as duas obras perpetuam o padrão universal: homem, branco e heterossexual.
A análise dos problemas urbanos Por último, damos também com estudos sobre as disparidades existentes no interior da cidade, diferenças entre bairros, equipamentos, serviços, etc. Falamos das desigualdades que eram dadas no meio edificado ou construído do qual falava David Harvey. Mais uma vez, estas diferenças também são consequência do movimento do capital, o capitalismo também procura obter a 5 Massey, D. (1994): A global sense of place. (Minneapolis: University of Minnesota Press).
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maior mais-valia dos seus investidores e localizá-los em determinados lugares. Quanto a isto, Harvey modificou parcialmente a teoria marxista da que partiu, assinalando que as configurações espaciais criadas pelo capitalismo num determinado momento têm certa rigidez, não podem ser modificadas assim tão fácil, já que uma vez que se tem investido num lugar não pode ser desperdiçado, há que ter em conta os investimentos já realizados, o que já foi feito, e tirar disso o maior rendimento possível. É no seu livro The limits to capital (1982) onde faz uma reconstrução da teoria marxista de Das Kapital, kritik der politischen Ökonomie (1867-1894).
Milton Santos Milton Santos (1926-2001), advogado e geógrafo brasileiro, estudou os problemas da globalização e dos países subdesenvolvidos. Internacionalmente já tinha certo reconhecimento desde a década de 1960, devido a que teve de emigrar após o golpe militar de 1964, mas foi a partir dos anos 80 quando a sua pegada começa a ser fortemente visível no seu próprio país.
Milton Santos
Nasce no Brasil um grupo de geógrafos em volta à figura de Milton Santos. Eles são a “geração de Fortaleza/1978”, comprometidos politicamente num clima de repúdio ao regime militar. Estes jovens geógrafos começam por se questionar a rigidez burocrática da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), invadindo as plenárias do encontro de Fortaleza de 1978, daí o seu nome. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Durante a sua época no exílio, diferencia-se da maior parte dos geógrafos marxistas em que ele explicava a expansão industrial como um fator fundamental da urbanização interior das regiões e não só como resultado da expansão das atividades comerciais. Criticava assim a geografia que se vinha realizando no Brasil desde 1970, facto que se aprecia na sua obra Por uma Geografia Nova (1978), onde procurava certa organização do espaço através de um planejamento justaposto com as ciências matemáticas, o que o fazia mais eficiente. Achava que a intervenção do Estado no planejamento do espaço só servia para atingir interesses geopolíticos e para a perpetuação do capitalismo como sistema mundial, ideia que compartia com Henri Lefebvre. Em relação a isto, critica a teoria dos polos de crescimento de François Perroux, que fala de um crescimento de intensidade variável em pontos ou polos que se expandem pelos diferentes eixos que estruturam a economia. Assim, um polo de crescimento que provoca transformações estruturais num determinado território pode dar lugar a um polo de desenvolvimento. Mas esta teoria não funciona bem assim, principalmente se falarmos de países subdesenvolvidos, já que a acumulação de riqueza, recursos, tecnologia, etc, num ponto privilegiado de qualquer país só consegue agravar a situação de pobreza e desigualdade noutras regiões do mesmo. Estas formas de planificação “importadas pelo Norte”, não conseguiriam funcionar no Brasil, havia que procurar outros modelos autóctones e abandonar essa “modernidade por imposição”. No seu livro O espaço do cidadão (1987) procura que a geografia contribua para a produção de um espaço que colabore na transformação para cidadãos de todos os habitantes do planeta, lutando contra a discriminação e pelo respeito a uma identidade diferenciada. Para ele, “os pré-juízos são os pais de uma inércia social à qual há que fazer frente com a ação”.
A GEOGRAFIA FEMINISTA Ainda que já existam diversos trabalhos na década de 1970, vai ser especialmente a partir dos anos 80 que vão ser introduzidos novos temas e investigações, mas vamos por em destaque um deles. O novo tema apareceu quando passaram de se preocupar 66
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só do lugar da produção a preocupar-se também com o lugar da reprodução: o lar. Surgiu então como elemento a ter em conta para os diferentes estudos a outra metade esquecida do género humano, as mulheres, cujo trabalho não é reconhecido e que são sujeitas a formas particulares de exploração que não são só exclusivas do capitalismo, mas também sob outras formações sociais em que entra em jogo o patriarcado. Será então quando aparecerá uma nova rama da Geografia denominada Geografia do Género ou Feminista que, como o seu próprio nome indica, preocupar-se-á com os problemas da mulher na sociedade, e que ultrapassa os limites da Geografia Radical. Em 1983, durante o congresso internacional do Institute of British Geographers (IBG) na Universidade de Durham, tem lugar uma palestra intitulada Women’s role in changing the face of the Earth, uma clara alusão crítica à obra Man’s role in changing the face of the Earth do geógrafo estadunidense Carl Ortwin Sauer (1889-1975), que trata diferentes temas relacionados com o impacto dos seres humanos perante a Terra e a ecologia. Dentro do IBG nasce um Grupo de Trabalho sobre género do qual sairá uma primeira publicação em 1984 com o título Geography and gender: an introduction to feminist geography. Com esta nova perspectiva, começasse-lhe a dar uma atenção muito maior, não só ao espaço em geral, como também aos espaços concretos em particular. As análises de territórios concretos são úteis para manifestar as desigualdades criadas pelo capitalismo. Até então, o espaço sempre fora considerado neutro e assexuado, mas agora o género converte-se numa variável mais para explicar os desequilíbrios territoriais e as desigualdades sociais. Os processos sociais e os espaços criados pelos mesmos têm uma importância equivalente, assim é como se começa a falar de processos socioespaciais, que são expressos de diferentes maneiras segundo os diferentes lugares e territórios. Propõe-se analisar o papel da mulher nas sociedades modernas em relação com o espaço geográfico, o meio ambiente, o desenvolvimento sustentável, a qualidade de vida, o trabalho, a educação, etc.
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E ainda que os movimentos feministas já possam ser encontrados no século XIX a partir da reinvindicação do direito da mulher ao voto e ao trabalho remunerado fora do lar, a Geografia Feminista nasce graças a uma crescente preocupação com a emancipação da mulher. Vão aparecer diferentes temáticas nos trabalhos relacionados com este novo enfoque: • Estudos que simplesmente reinterpretam conceitos, teorias ou metodologias geográficas desde a perspectiva de género. • Trabalhos de Geografia Urbana que, especialmente, tratam de explicar as consequências que as políticas urbanas têm no coletivo feminino. • Aparecem obras, dentro da Geografia Económica, orientadas para a relação das mulheres com o mercado de trabalho e as suas diferentes problemáticas: setor de atividade, salários ou conciliação da vida laboral e familiar. • Fazendo uma reinterpretação da Geografia Rural é mostrado o papel das mulheres no desenvolvimento em geral dos espaços rurais e na sua coesão social. Os róis da mulher dentro das explorações agrárias e pecuárias, na conservação do meio ambiente, etc. • Em relação à Geografia da População, a importância está na distribuição territorial de variáveis sociais e demográficas que medem a qualidade de vida das mulheres (envelhecimento, esperança de vida, maternidade, dependência). • Aparecem também trabalhos sobre sexualidade e identidade. • Por último, encontramos estudos relacionados com a perspectiva de género nos diferentes níveis educativos. Podemos afirmar que os primeiros trabalhos têm por finalidade denunciar as condições de marginalização e subordinação em que vivem as mulheres. Mas a intenção não é unicamente de denúncia social, já que o propósito é libertá-las do sistema, da opressão social e familiar. Posteriormente, a focagem mudou para estudar o papel da mulher na sociedade atual quanto ao sistema produtivo, como força de trabalho e a sua contribuição para o desenvolvimento sustentável, a ordenação do território, etc. 68
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Há uma série de trabalhos nos quais é apresentada uma relação mais ou menos direta entre o trabalho feminino e a subordinação como fenómeno social. De modo que é um tema central nos estudos da mulher e através do qual podemos encontrar diferentes tipos de trabalhos geográficos relacionados com diferentes movimentos feministas: • Feminismo liberal: reivindicam o direito a conquistar o mercado laboral, instituições educativas e meios de comunicação; dando por feito que uma melhor posição social e laboral da mulher é refletida numa justa repartição das tarefas domésticas. Criticado por entender que a mulher tem de aceitar uma sociedade competitiva e desigual e jogar com as regras de uma sociedade patriarcal. • Feminismo radical: a origem da subordinação feminina está na existência do domínio masculino sobre o seu trabalho, é considerado um fenómeno universal no tempo e nas culturas. A exploração das mulheres está amparada por umas regras sociais e instituições patriarcais que negam o aceso das mulheres a postos de poder ou responsabilidade. Libertar-se desse controlo leva a uma nova valorização da potencialidade laboral feminina. A família é mais uma fonte de opressão que impede que as mulheres consigam de maneira paritária o reconhecimento social e laboral de que gozam os homens, que são os principais beneficiados e promotores da exploração da mulher. • Feminismo socialista: o problema em última instância está nas relações de produção capitalistas, há que articular a luta feminista com a luta de classe. O objetivo é o fim do capitalismo e do patriarcado já que: • O capitalismo sustenta o patriarcado, são os homens que possuem e herdam a propriedade. • A economia capitalista projeta a imagem da mulher como simples consumidora de bens e serviços. • O capitalismo patriarcal confia em que as mulheres trabalharão sem receberem nenhuma remuneração económica; e que os homens fá-lo-ão por um salário baixo. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Porém, as novas investigações na Geografia Feminista tentam pôr o foco na relação entre o trabalho produtivo e o reprodutivo, nas relações de poder dentro da unidade doméstica e nos róis de género. “As mulheres reivindicam com ações coletivas a justa valorização da sua capacidade profissional ou tratam de influenciar as políticas do capital internacional. São heroínas da invasão e jogam um papel chave na consolidação dos bairros populares das grandes urbes ou na construção de uma nova vida na selva tropical. Não só organizam o trabalho, senão também tempo livre para elas mesmas ... a investigação tem a mulher como atora social.”6
Linda Margaret McDowell Nascida em 1949, Linda Margaret McDowell é uma geógrafa económica britânica, cuja obra está centrada na etnografia do trabalho e do emprego. O interesse das suas investigações está fixado nas conexões existentes entre a restruturação económica, o mercado laboral e as divisões de classe e género na Grã Bretanha. Esteve na vanguarda do desenvolvimento de perspectivas feministas em relação às mudanças sociais e económicas contemporâneas, e também do desenvolvimento de metodologias feministas e práticas pedagógicas, com numerosas publicações em revistas científicas feministas como Women’s History Review ou Signs: journal of women in culture and society. Seu livro mais conhecido é Gender, identity & place. Understanding feminist geographies (1999), onde analisa como as migrações e a globalização afetam aos relacionamentos sociais e à proletarização da mulher; esta obra é toda uma referência para a Geografia Feminista. Outra obra mais recente, Migrant women’s voices: talking about life and work in the UK since 1945 (2016) trata de explicar a vida e o trabalho de mulheres que migraram para o Reino Unido desde 1945 e durante 60 anos para trabalhar nas fábricas, hospitais, universidades... foram milhões a incorporarem-se à força de trabalho. Nasce assim uma sociedade multicultural em que as mulheres procuram um trabalho assalariado e fora do lar. A autora exem6 Karsten, L. / Meertens, D. (1992): La geografía del género: sobre la visibilidad, identidad y relaciones de poder. (Trad. Meertens, D.) Documents d’anàlisi geogràfica, 19-20 (181-193). (Amesterdão: University of Amsterdam).
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plifica também a mudança nos padrões de migração, as migrações pós-imperiais foram substituídas pelas da pós-guerra e depois diversificadas com migrantes de outras partes do mundo a medida que o século XX chegava a seu fim. Falamos agora mais uma vez do conceito de espaço, que tem uma especial importância quando falamos de geografia feminista. Na vida quotidiana, a mulher está mais orientada a um espaço local e a uma esfera privada, já que tem menor mobilidade que o homem e maiores restrições para abandonar o âmbito doméstico. Os homens utilizam o espaço como instrumento de poder, e a estruturação do mesmo só reforça o seu status de domínio sobre as mulheres, que deriva dos diferentes papéis que a sociedade atribui. Não é mais que uma manifestação explícita da situação de dominação–subordinação na qual os homens têm colocado as mulheres historicamente. Mas o contexto social começa a mudar e as transformações sociais e culturais vão afetar as mulheres de diferentes formas e em diversos aspetos: • • •
Transformações demográficas na redução da fecundidade e o aumento da esperança de vida feminina. As mulheres vão dispor de maior tempo para outras atividades.
Incorporação da mulher ao mercado laboral, que vai afetar à vida familiar e do lar. Aparece a separação do espaço público e privado. Acesso a níveis secundários da educação e à universidade.
• Lenta incorporação nos poderes políticos, postos diretivos, etc. Portanto, a Geografia Feminista, consiste em analisar e dar explicação à separação espacial e à segregação social a qualquer escala geográfica segundo o género. Dá-se um avanço epistemológico e também metodológico, já que esta visão mais interpretativa estuda as relações de género e as suas consequências na sociedade e no território. Atualmente trata-se de tornar as mulheres visíveis, mas também de valorizar o seu papel fundamental na sociedade. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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A GEOGRAFIA HUMANISTA Junto a estes novos temas, a Geografia Radical marxista também tem de fazer frente a críticas procedentes de fora. Estas vêm da Geografia Humanista e são feitas em relação à versão do marxismo que a maior parte dos geógrafos radicais toma como guia, o chamado “marxismo estrutural”, devido à importância dada às estruturas socioeconómicas que determinam de modo decisivo a conduta das sociedades humanas a nível global. A revolução não acontece quando a classe explorada quer, senão quando se dão as condições objetivas para a mudança. Parafraseando Marx “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sobre circunstâncias da sua escolha e sim sobre aquelas com as quais se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Assim os humanistas acham que o ser humano fica fora. É uma abstração irreal, como o chamado “Homus Economicus” da Geografia Quantitativa, representação teórica que seria capaz de processar de forma ajeitada a informação conhecida e atuar em consequência, comportando-se racionalmente ante os estímulos económicos. A solução dos geógrafos radicais é ir substituindo o marxismo estrutural dos inícios por um “marxismo historicista” que reconhece o existencialismo do ser humano e admite que existe certa liberdade de atuação, tanto individual como coletiva. Seria uma corrente mais crítica à hora de explicar as problemáticas sociais. Portanto, de algum jeito acabam por aceitar as críticas chegadas da Geografia Humanista.
A GEOGRAFIA ANARQUISTA Por último, resta falar de uma pequena parte dos geógrafos radicais que procuravam transformar totalmente a sociedade capitalista inspirando-se no pensamento anarquista. O escasso êxito desta corrente de geógrafos anarquistas é paradoxal se tivermos em consideração que os principais antecedentes da Geografia Radical foram Élisée Reclus (1830-1905) e Piotr Kropotkin (18421921), ambos geógrafos anarquistas. Na teoria anarquista clássica, sim eram importantes os problemas geográficos e as relações com o meio ambiente. Defendiam um equilíbrio entre cidade e 72
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campo, entre a sociedade humana e o meio e também a descentralização produtiva. Os laços entre a Geografia e o anarquismo são, portanto, evidentes. Com a publicação da revista Antipode e as novas focagens quantitativas das investigações, o anarquismo jogou um papel chave argumentando que a Geografia Radical devia adotar o seu comunismo libertário como ponto de partida. A publicação de um número especial nesta revista em 1978 pôs de relevo a influência que tinha o anarquismo na geografia, e vice-versa. Ao mesmo tempo, também a União de Geógrafos Socialistas publicou uma seção temática sobre o anarquismo fruto de um grupo de discussão que teve lugar na Universidade de Minnesota em 1976. Portanto, a geografia anarquista também aparece na década de 70 e ainda que, em pouco tempo, se estendesse por diversos países (França, Alemanha, Itália...) e tomasse características similares predominou o marxismo como visão global. Neste âmbito do mundo não anglo-saxónico, a Geografia criticada não era a Geografia Quantitativa, senão a Geografia Clássica, por ser considerada um “saber apolítico e inútil” em palavras de Yves Lacoste (1929), autor de La Géographie ça sert, d’abord, à faire la guerre (1976), onde a Geografia é mostrada como uma arma para a guerra, a geografia como instrumento do poder. Consideram que a Geografia Clássica oculta os conflitos sociais sob a falsa harmonia da região e a paisagem, e mostram maior interesse pelos problemas da política territorial. Outra peculiaridade, é que não há tantas citas dos marxistas clássicos, já que para estes não era um descobrimento recente, senão que o marxismo tinha certa tradição e, ainda que de maneira minoritária, esta tradição encontrava-se também na Geografia. Apesar deste interesse, os trabalhos enquadrados neste movimento anarquista são poucos e de carácter mais bem teórico. A procura de uma sociedade sem estado requer de um notável esforço intelectual para a construção de um território libertário, promovendo o cooperativismo e o apoio mútuo, os movimentos sociais decidem e não existe uma única visão ou proposta para o território. Autores como Myrna Breitbart ou Richard Peet (que também publicaram trabalhos sobre Geografia Feminista) aprofundaram na visão ácrata, descentralizadora e ética de Reclus e Kropotkin com dezembro 2017 / KALLAIKIA
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o seu conceito de ecologia social: o ser humano também pode autorregular-se e autogovernar-se, ao igual que a natureza faz. Existe uma compilação de trabalhos feita pela geógrafa estadunidense Myrna M. Breitbart que saiu do prelo em 1989 baixo o título Anarquismo y Geografia. Neste livro faz-se evidente a influência das ideias políticas de Elisée Reclus e Piotr Kropotkin, onde encontramos a “carta” que o geógrafo inglês Richard Peet (1940) escreveu a Kropotkin. Nesta compilação também aparece a obra de Jon Amsden Industrial collectivization under workers’ control: Catalonia, 1936-1939 (publicada pela primeira vez em 1978), que fala do anarcosindicalismo da Catalunha industrial e do controlo por parte da classe operária dos meios de produção; ou a obra da própria Myrna M. Breitbart Impressions of an anarchist landscape. Nessa “carta” fala-se da importância de voltarmos às estruturas sociais de cooperativismo e ajuda mútua de que falava Kropotkin: “escutemos a história, essa é a mensagem de Kropotkin, mas escutemos uma história correta, não uma ideologia. Só então poderemos descobrir quem e o que somos e como devíamos viver”. O autor considera que a Geografia Radical tem de recomeçar de novo, mas tomando como referencia a obra de Kropotkin, “a teoria anarquista é uma teoria geográfica”. A descentralização em que é baseada a anarquia do ponto de vista da liberdade individual serve para explicar a ideia de que é necessário alcançar uma evolução superior fundamentada no equilíbrio entre o espaço interior (o indivíduo) e o espaço exterior (a comunidade). “Convertemo-nos numa disciplina apropriada para justificar cientificamente os modelos de desenvolvimento social e espacial baseados na competição humana, no egoísmo humano e na desigualdade humana (...) Não assumimos a ânsia profunda de que a comunidade tenha sido o ponto principal da teoria dos povos, senão que, no lugar disso, assumimos as necessidades que o estado teve para reprimir essa mesma ânsia e mostramos como fazê-lo da forma mais eficiente. (...) Piotr Kropotkin: esquecemo-nos de que tu nos tinhas traçado uma geografia humana sintonizada com as necessidades do povo e não ao serviço da opressão humana. (...) Esquecemo-nos de que viveste, a tua existência é eliminada 74
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das nossas histórias geográficas, as tuas ideias foram massacradas por setenta anos de silêncio oficial.”7 Porém, o neoliberalismo da década de 80 começou a tomar o protagonismo económico e político do mundo, pelo qual os compromissos dos geógrafos anarquistas foram diminuindo e foram eclipsados pelos marxistas, feministas e novas críticas pós-estruturalistas.
CONCLUSÕES Podemos afirmar que, apesar das suas discussões internas, a Geografia Radical nascida no ambiente contestatário aparecido na década de 1960, questiona a neutralidade da Geografia feita até esse momento; denunciando que fosse uma ciência utilizada para os fins económicos e militares do momento baixo o sistema capitalista mundial. Procura-se fazer uma nova Geografia ao serviço de uma sociedade mais justa através de novas áreas de estudo como os desequilíbrios económicos e sociais dados a diferentes escalas (mundial, regional e local); e principalmente por meio do ordenamento espacial como chave para a correção dessas desigualdades, já que parece evidente que as injustiças e instabilidades ocorrem com maior incidência em determinados espaços. Em geral, trata-se de procurar novas metodologias e em desenhar uma teoria com a capacidade suficiente para analisar, explicar e achegar principalmente soluções práticas aos problemas sociais e territoriais. É assim como encontramos que as filosofias políticas e sociais do marxismo e do anarquismo são válidas até hoje em dia tendo em consideração as necessidades das sociedades atuais e a necessidade de assistirmos a um verdadeiro “arranjo” das estruturas socioeconómicas. O atual clima político e económico a nível mundial traduz-se numa forte alienação da população e em migrações maciças e forçadas que são resultado das estratégias levadas a cabo para conseguir o controlo espacial. Quem controla o espaço e as comunicações é quem tem o poder. Procura-se fazer da Geografia uma nova ciência que ajude a que uma mudança social seja dada a nível mundial, e quebrar assim 7 Peet, R. (1989): Carta a Kropotkin em Myrna M. Breitbart Anarquismo y Geografia (Trad. Pilar Marínez) (Barcelona: Editorial oikos-tau). dezembro 2017 / KALLAIKIA
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o paradigma de que as ideias científicas predominantes de cada época são sempre as ideias que a classe que governa tem. Portanto, é imprescindível conseguirmos a destruição da competitividade para lograrmos uma sociedade antiautoritária, já que a competitividade é dada segundo as regras estabelecidas e sempre favorece a uns poucos contra outros muitos. Ao mesmo tempo, parece evidente que não considerar o género como uma forma mais de desigualdade social e espacial, e deixar esta questão fora das investigações geográficas, debilita a sua própria capacidade explicativa. Dito com as palavras da geógrafa valenciana Maria Dolors García Ramón: “se não pões os óculos do género o patriarcado e as suas manifestações parecem naturais porque não vês a complexidade das relações do género no espaço que se esfumam e ficam num segundo plano borrento, irrelevante ou anedótico”. Portanto, esta Geografia Radical tem de ir da mão de qualquer luta que procure a liberdade de quem é dominado pelo sistema capitalista e de quem é esquecido pela geografia tradicional: a classe trabalhadora, as mulheres e os povos oprimidos. A Geografia sempre teve uma forte relação com outras disciplinas e é por isso que funciona como ponte ou nexo entre as mesmas, mas também entre os aspetos físicos e os humanos. É por isso que eu acredito que, qualquer que for a natureza do problema ou do tema a tratar, a Geografia torna-se uma ótima ferramenta de analise que, por desgraça, é normalmente esquecida. Ao esquecermos a geografia, esquecemos também o cenário de tudo aquilo que acontece no mundo. O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir (Milton Santos).
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100 anos da Revolução de Outubro, centenário do início de uma longa caminhada
Filipe Diniz
Este texto não deve ser lido como um texto académico, mas sim como um texto político. Uma informação prévia ajudará a compreender porquê. O primeiro convite para o escrever foi dirigido por Maurício Castro ao meu camarada Miguel Urbano Rodrigues. Miguel Urbano, cuja saúde estava já então debilitada, sugeriu o meu nome. E o que há de comum entre alguém como Miguel Urbano e quem escreve estas linhas é, antes de tudo, a partilhada condição e convicção de comunista. É enquanto tal que este texto é escrito.
Revolução de Outubro de 1917 transformou o mundo. É, até hoje, o mais importante marco de um processo histórico que, vindo de muito antes, se prolongará por longo tempo como possibilidade real, necessidade concreta e sentido de acção presente e futura para os trabalhadores e os povos de todo o mundo: o processo da passagem do capitalismo ao socialismo. 80
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Filipe Diniz 100 anos da Revolução
A sua repercussão mundial constituiu o mais importante acontecimento político, social, cultural, económico, científico do séc. XX. Sem ela não se teriam gerado as forças capazes de transformar numa desenvolvida nação-continente povos e nações anteriormente oprimidas pela velha Rússia, capazes de derrotar o nazifascismo, capazes de fazer frente à permanente agressão (política, económica, propagandística, militar, ideológica) imperialista e de fazer avançar a causa da paz, sem ela as massas trabalhadoras de todo o mundo não teriam alcançado tão importantes vitórias no campo dos direitos e das condições de vida, não se teria confirmado que poderá existir uma sociedade humana finalmente livre da exploração, justa e igual. E essa repercussão é ainda avaliável pelo enorme retrocesso que, em todos os aspectos e em todo o mundo, se verificou após a derrota do socialismo na URSS e em outros países de leste europeu. Não se celebra acriticamente este centenário: há tanto a aprender com os seus êxitos como com os seus insucessos e derrotas. A nova sociedade humana de que constitui o passo inaugural permanece inscrita no horizonte do que é historicamente possível, mas tal não significa que virá necessariamente a existir. Mas, a não existir, verificar-se-á aquilo que o sombrio quotidiano actual evidencia com cada vez maior nitidez: que “as leis naturais do capitalismo efectivamente conduzem à sua inevitável crise final, mas no final de tal percurso estariam a destruição de toda a civilização e uma nova barbárie” (Lukacs, 1923). A Revolução de Outubro e o processo de revolucionamento de toda a sociedade humana aí iniciado vai tão fundo que encontra até, entre os muitos obstáculos com que se defrontou e defronta, traços de uma natureza humana marcada por milénios de opressão, exploração, injustiça, desigualdade, de selvagem luta pela sobrevivência. A ilusão de um “homem novo” quase automaticamente gerado pela alteração radical das relações sociais de produção e pelas condições materiais de organização da sociedade humana desfez-se. Houve, é certo, fulgurantes vislumbres desses novos homens e mulheres, tanto na Revolução como na Grande Guerra Patriótica em que o povo, em Leninegrado, Stalinegrado e em tantos outros locais se ergueu como verdadeiro herói colectivo. Mas o colapso dessa ilusão veio reforçar, não enfraquecer, as condições dezembro 2017 / KALLAIKIA
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dos combates a travar: o revolucionamento, de cima a baixo, da sociedade capitalista não é uma tarefa sobre-humana, é a tarefa humana por excelência. Tal como a Revolução de Outubro o foi, ela será realizada - com a imensa força criadora do trabalho humano - pelos indivíduos organizados, tal como eles são, com todos os seus defeitos, limitações, qualidades e capacidades, incluindo a inigualável capacidade de sonhar. E apenas será realizada se tal organização, enquanto tal, for melhor e mais do que a soma dos indivíduos que a compõem: seja no plano político, teórico e ideológico seja no plano moral.
I. Cartaz de 1920. “Devemos trabalhar, mas com o rifle por perto”
Marco culminante na história da luta de classes Os ideólogos antimarxistas procuram denodadamente rejeitar a teoria da luta de classes (que, recorde-se, é anterior a Marx. Marx e Engels apenas demonstraram que a luta de classes constitui o elemento central do processo histórico). Todo o movimento histórico que conduz a Outubro de 1917 e toda a sua evolução posterior confirmam a justeza desse elemento central do marxismo-leninismo. A Revolução de Outubro culmina o surgimento de um novo sujeito histórico inteiramente autónomo do ponto de vista social, político, ideológico e organizativo: o proletariado, e em particular o 82
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proletariado industrial. Esse novo sujeito histórico surge do desenvolvimento do próprio capitalismo, é esmagadoramente maioritário na sociedade, tem o potencial de representar os interesses, direitos, reivindicações de todas as camadas não possidentes, de todos a quem a sociedade burguesa coarcta aspirações e liberdades.
Do capitalismo liberal ao capital monopolista, da autonomização do movimento operário ao triunfo do poder soviético A Revolução de Outubro e o projecto de uma sociedade comunista inserem-se numa muito longa tradição histórica. Nos primeiros tempos da Revolução Industrial ela recrudesce de forma mais persistente tanto como forma de uma utopia que sonha a igualdade primitiva de uma antiguidade idealizada, como de uma recusa da voracidade com que o capitalismo se vai apossando de toda a propriedade, em particular dos meios de produção, incluindo a própria terra. Ao longo de todo o século XIX os ideais de progresso e de libertação dos trabalhadores tornam-se indissociáveis da ideia da propriedade social, comum, dos meios de produção, da sua gestão por colectivos humanos organizados como comunidades igualitárias, e esses ideais se formulam sob a designação comum de socialismo. O acelerado processo de concentração de enormes massas operárias nos grandes centros industriais, trabalhando em condições de extrema exploração e degradação humana, traz consigo o desenvolvimento da consciência da necessidade de organização dos próprios trabalhadores. É uma primeira etapa de enorme dureza: a livre associação dos trabalhadores é proibida, criminalizada e reprimida. As lutas conduzidas pelas primeiras associações de trabalhadores assumem desde o início objectivos de carácter social, mas igualmente reivindicações de carácter político: o direito de voto, que a burguesia conquistara, continuava a ser negado aos não possuidores de propriedade, isto é, aos operários e outras camadas proletarizadas, às mulheres, aos indivíduos de diferente origem étnica.
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Os comunistas antes do Manifesto Intelectuais de origem burguesa, como Saint-Simon, Fourier, Robert Owen, desenvolvem uma importante actividade teórica na formulação dos critérios e princípios de uma sociedade socialista, que procuram levar à prática em comunidades organizadas segundo modelos que rompem com a desumanas formas de organização da produção e das cidades que a revolução industrial vinha desenvolvendo. A defesa da necessidade de uma organização da sociedade que não assente na alienação e na exploração do trabalho e a ideia de que essa nova sociedade exigirá formas de organização radicalmente novas virão a ter fundas repercussões no futuro.
Marx e Engels Karl Marx e Friedrich Engels são as duas figuras determinantes na elaboração da base teórica, política e ideológica do movimento revolucionário do proletariado industrial que culminará em Outubro de 1917. Trabalhando, como mais tarde sintetizou Lénine, sobre três fontes que são ao mesmo tempo três partes constitutivas da teoria marxista – a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês – formulam a teoria do materialismo histórico. A sua monumental obra teórica no plano da economia política analisa e identifica os traços essenciais da natureza do capitalismo e das suas leis de desenvolvimento, e no plano ideológico, filosófico e doutrinário, estabelece vigorosas polémicas com as correntes oportunistas que influenciavam o movimento socialista e operário. Têm uma importante acção organizativa, estabelecendo ligações entre grupos revolucionários de diferentes países e assumindo um papel preponderante na sua orientação política. O Manifesto do Partido Comunista, publicado em Fevereiro de 1848, é o texto fundador da intervenção autónoma da classe operária na luta política. Formula um verdadeiro libelo acusatório contra o capitalismo. Expõe uma nova visão da história e da evolução das relações sociais de classe, uma definição da relação dos comunistas com o conjunto do proletariado, uma crítica radical da ideologia e da moral burguesa, a demarcação do socialismo científico em relação às doutrinas do socialismo utópico, um programa e os objectivos essenciais para a acção revolucionária. O Manifesto torna-se, a partir do momento da sua publicação, o texto funda84
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mental para a acção dos revolucionários em todo o mundo. Nas décadas seguintes será traduzido em inglês, francês, dinamarquês, polaco, russo, castelhano, e rapidamente estará publicado e difundido em todo o mundo. Lança a palavra de ordem: proletários de todos os países, uni-vos! Efectivamente, o que passa a estar colocado à luta revolucionária é o confronto mundial entre a classe dominante, a grande burguesia industrial, e a classe que a industrialização capitalista, no seu implacável processo de revolucionamento das condições e das relações de produção, faz nascer a cada dia: o proletariado, que nada tem a perder senão as suas cadeias, mas que tem todo um mundo a ganhar. Tal como o capital não conhece fronteiras nem pátria, também para os proletários não existirão barreiras na sua luta comum e universal. Quando, em 1888, é composta a “Internacional”, ela consagra o internacionalismo na expressão, traduzida e cantada em todas as línguas do mundo: uma terra sem amos.
A Comuna de Paris A Comuna de Paris constitui o primeiro grande marco da luta revolucionária do proletariado. Pela primeira vez na história o proletariado actua como protagonista autónomo no confronto social e político, assume o poder, governa de acordo com os seus próprios interesses, programa e critérios de classe. Os seus antecedentes residem nas múltiplas contradições entre as diferentes forças sociais que, desde as revoluções de 1848, disputavam e assumiam o poder, e na rivalidade e nas disputas territoriais que se voltavam a agudizar entre as grandes potências capitalistas emergentes. Eclode em 1870 a guerra franco-prussiana. Derrotado o exército francês em Sedan, o II Império desmorona-se e a República é de novo proclamada, enquanto o exército prussiano avança e cerca Paris. A classe operária que, nomeadamente através da Associação Internacional do Trabalhadores (I Internacional), combatera tenazmente as tendências militaristas e as ameaças de guerra, acaba por ser quem assume a defesa da cidade e exige a continuação da luta. Os parisienses aptos a pegar em armas são integrados na Guarda Nacional, da qual os operários passarão a formar a grande maioria. O Governo Municipal, maioritariamente dezembro 2017 / KALLAIKIA
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composto por burgueses, e o povo armado rapidamente entram em conflito: para a burguesia a ocupação prussiana é um perigo incomparavelmente menor do que a existência de um proletariado em armas. O Governo, que fugira para Versalhes, procura liquidar a resistência de Paris. À tentativa de desarmar a Guarda Nacional sucede-se uma insurreição. O Comité Central da Guarda Nacional assume o Governo da cidade, a 18 de Março de 1871. A 26 de Março é eleita por sufrágio universal a Comuna, e esta é proclamada a 28. O Conselho Central da Comuna adopta medidas sem precedentes. Suprime o recrutamento e o exército permanente e substitui-o pelo povo armado. Decreta a separação entre a Igreja e o Estado, e estabelece a escola laica, universal e gratuita. Organiza-se de forma radicalmente democrática: os membros da Comuna são eleitos por sufrágio universal pelos conselhos municipais, e o seu mandato é revogável a qualquer momento por decisão dos eleitores. O mesmo sucederá com os generais da Guarda Nacional. Este modelo de organização do proletariado em classe dirigente será profundamente debatido e teorizado, nomeadamente por Lénine, e inspirará modelos e experiências futuras. Da Comuna os trabalhadores de todo o mundo herdarão a primeira experiência de tomada do poder e a letra do seu hino universal, a “Internacional”, escrita pelo poeta communard Eugéne Pottier durante este período. O Governo de Versalhes, que tenta contrapor a Assembleia Nacional burguesa à Comuna proletária, alia-se aos prussianos para a combater e para a violentíssima repressão que se segue. A burguesia, que reagira de forma brutal às revoluções de 1848, assume-se definitivamente como inimiga inconciliável do proletariado revolucionário.
Os partidos operários nacionais e a II Internacional No Congresso de Haia (1872) a A.I.T. definira uma orientação: a acção política e social organizada do proletariado, a constituição de partidos operários independentes em cada país. As três décadas seguintes até ao final do século verão nascer partidos que assumem a designação de socialistas, socialistas operários ou social-democratas em praticamente toda a Europa. O último, em 1893, é o Partido 86
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Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Na formação destes partidos predomina já a influência do pensamento marxista a cujos textos fundamentais se juntara “O Capital”, publicado em 1867. O marxismo cresce com o movimento operário, o movimento operário cresce com o marxismo. Em 1889 é reconstituída em Paris a Internacional Operária (II Internacional). O Congresso declara o 1º de Maio Dia Internacional do Trabalhador, e coloca para a comemoração desse dia a reivindicação comum da jornada de trabalho de oito horas.
I. Cartaz de 1919. “Trabalhadores. A Revolução de Outubro deu-lhe as fábricas”
A concentração da produção e do capital. O imperialismo, fase superior do capitalismo No decurso da segunda metade do século XIX o processo de desenvolvimento do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos prossegue, mas com um prolongado período de depressão a partir de 1873. Desenvolvem-se processos de reorganização próprios do capitalismo: falência de empresas e concentração da produção em unidades cada vez maiores, concentração do capital, crescimento e concentração da banca. Crescem exponencialmente o proletariado industrial e a concentração urbana. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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O ritmo de construção das grandes vias de comunicação e das grandes megalópoles capitalistas exige investimentos muito vultuosos na metalurgia, nas indústrias extractivas, nas indústrias químicas, na produção e distribuição de energia eléctrica, nos quais a banca adquire rapidamente um papel determinante. Formam-se cartéis, trusts, a concorrência transforma-se em monopólio. Formam-se grandes grupos monopolistas cujo papel se torna determinante no conjunto da economia. Fundem-se o capital industrial e o capital bancário, formando o capital financeiro. Os monopólios capitalistas partilham entre si os respectivos mercados internos e disputam os mercados externos. Crescem as rivalidades e as disputas territoriais entre as grandes potências capitalistas e os seus processos de expansão colonial. O desenvolvimento do capitalismo tem como consequências inevitáveis a opressão colonial e a guerra. A fase monopolista do capitalismo é inevitavelmente imperialista: a necessidade de lucro do grande capital monopolista exige a dominação à escala mundial. Como observa Lénine, em fins do século XIX e princípios do século XX [o capitalismo] tinha já terminado a “partilha” do mundo. Como essa partilha se revela desigual e insuficiente, só resta à burguesia o caminho da guerra.
A burguesia e a guerra, o proletariado revolucionário e a denúncia da guerra imperialista A dominação burguesa, que em diversos países tomara a expressão da guerra civil contra o proletariado, toma a expressão da agressão militar contra outros povos. Ao internacionalismo e à solidariedade de classe do proletariado a burguesia passa a contrapor o interesse “patriótico”, que uniria os exploradores e os explorados de cada país contra o estrangeiro. A guerra em nome do interesse nacional é o caminho do desenvolvimento e do progresso, a oposição do proletariado à guerra é antipatriotismo e traição. Esta intensa pressão ideológica, juntamente com algumas tendências com influência no movimento operário que abandonam a crítica radical do capitalismo, julgando encontrar nele potencialidades de compatibilização com o desenvolvimento social, criam condições para o enfraquecimento da oposição de classe ao caminho da guerra. 88
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No final do século XIX e no princípio do século XX travam-se conflitos militares entre adversários de ordem então secundária, ou com forças muito desiguais, na Ásia, em África, na América Central. Algumas travam-se entre as metrópoles coloniais e as burguesias oriundas da ocupação colonial. A guerra envolvendo as grandes potências industrializadas avizinha-se.
Lénine A corrente marxista tornara-se dominante no movimento operário. Mas outras tendências eram também influentes: correntes reformistas que, face a melhorias das condições de vida de certos sectores da classe operária e das camadas populares, admitiam que a sociedade capitalista podia ser constantemente melhorada através da introdução de reformas e sem o recurso à revolução; correntes anarquistas que, julgando embora combater o capitalismo, não compreendiam a natureza de classe da dominação capitalista, nem a necessidade da actuação política do proletariado no seu conjunto, enquanto classe e força social revolucionária. A resposta profunda e criadora a esta situação e aos novos problemas existentes é dada por Lénine, genial continuador da obra política de Marx e Engels. Tal como estes, é um pensador e um teorizador profundamente original, e um organizador e um homem de acção infatigável. Prossegue a análise marxista do desenvolvimento do capitalismo, caracterizando a fase imperialista entretanto atingida. Desenvolve a análise marxista acerca da natureza e do papel do Estado e do objectivo revolucionário da destruição de todos os mecanismos que, na sua estrutura, perpetuam a opressão e a exploração da imensa maioria. Combate as tendências oportunistas no movimento operário. Define as tarefas práticas e organizativas para a constituição e a acção de um partido revolucionário. Define, para as condições concretas da Rússia do princípio do século XX, a estratégia e a táctica, as alianças sociais e políticas necessárias para o triunfo da revolução socialista e para a sua consolidação.
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A Rússia czarista O czarismo russo era a reserva da reacção europeia antiliberal. Na sociedade russa permaneciam elementos estruturalmente pré‑capitalistas (monarquia absoluta e despótica, domínio dos grandes agrários, relações semifeudais nos campos) mas constituíra-se, já na época do imperialismo, um capitalismo industrial e bancário monopolista, estreitamente ligado ao capital estrangeiro. Formara-se uma classe operária fortemente concentrada em grandes centros industriais, nomeadamente na região de Petrogrado. Para além da classe operária, nas grandes cidades concentravase uma enorme massa de artesãos e pequenos comerciantes, cuja vida era tão difícil como a dos operários. As desigualdades sociais, económicas e culturais eram enormes, tanto nas cidades como nos campos. 28 mil proprietários possuíam tanta terra como 10 milhões de famílias camponesas. O império grão-russo, na sua enorme extensão geográfica, submetia e oprimia violentamente povos de diferentes nacionalidades, culturas e origens. Lénine compreende que só o movimento operário russo pode ser a força dirigente da revolução democrática, e desse modo contribuir também para gerar condições mais favoráveis para a passagem ao socialismo. A diversidade de correntes e interesses sociais presentes neste processo revolucionário implica que a força dirigente seja capaz de os articular e unificar do ponto de vista do interesse global da revolução. Na época do imperialismo, o capital monopolista tende a unir em torno de si os elementos do feudalismo agrário, da burguesia dependente, da pequena‑burguesia, e até os operários que consegue arrancar ao ponto de vista de classe. Reciprocamente, o movimento operário só pode ter êxito na condução do processo revolucionário se, além de exprimir os interesses de classe imediatos do proletariado, souber fazer‑se o intérprete e porta‑voz das exigências económicas e sociais dos camponeses, da pequena‑burguesia, dos elementos e sectores anti‑imperialistas da burguesia, e as aspirações de emancipação das nacionalidades oprimidas.
O Partido leninista, Partido de novo tipo A realização de uma larga aliança social favorável ao socialismo exige que o partido da classe operária se constitua como direc90
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ção política pela inteligência das condições globais da sociedade e pela capacidade de influir nela, o que implica dotar‑se duma organização centralizada e disciplina de acção. Lenine desenvolve estas concepções centrais no livro “Que Fazer?” (1902). Na base delas nasce, no II Congresso do Partido Operário Social-democrata da Rússia (1903), o bolchevismo, designação que assume a corrente leninista maioritária (bolchenstvo), em contraposição à corrente minoritária (menchenstvo). O partido leninista culmina a concepção, exposta por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, de que o projecto, não apenas de luta por objectivos a curto e médio prazo, mas de superação do capitalismo e de construção do socialismo contém como um elemento central a existência e acção não só de um novo partido, mas de um partido novo. Um partido independente dos interesses, dos objectivos, da ideologia das forças do capital. Um partido da classe operária, como sublinhou Engels, “constituído, não como a cauda de qualquer partido burguês, mas sim como partido independente, que tem o seu próprio objectivo, a sua própria política”. O bolchevismo inaugura, na história do movimento operário internacional, o partido de tipo novo, o partido revolucionário da época do imperialismo, instrumento histórico do proletariado na revolução democrática e da transformação desta em revolução socialista.
A revolução russa de 1905 e o seu impacto noutros países da Europa ocidental A revolução russa de 1905 é uma revolução democrática, mas tem características diferentes das anteriores revoluções democrático-burguesas. Em primeiro lugar porque a classe operária assume um papel dirigente e inteiramente autónomo, com os seus próprios objectivos, reivindicações e programa. Depois porque se, por um lado, a burguesia tomou de assalto as estruturas do aparelho de Estado e procurou partilhar o poder com o czar a partir daí, por outro lado a classe operária e os seus aliados, e sobretudo o POSD(b)R, tendo aprendido a lição da Comuna, lançaram-se de forma dezembro 2017 / KALLAIKIA
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criadora à tarefa de criar novos órgãos de poder verdadeiramente representativos das massas populares: os sovietes, de início apenas comités de greve e de solidariedade operária, mas que evoluem para estruturas embrionárias de poder, assumindo tarefas de administração e de comando militar. O amplo conjunto de classes e camadas que participa na revolução e a força das reclamações operárias e camponesas permitem que, num curto espaço de tempo, sejam alcançadas importantes regalias, e sejam realizadas profundas transformações políticas e sociais. A revolução de 1905, não tendo suprimido o poder czarista, acabou por ser derrotada por ele, apoiado pela reacção externa e interna.
A I Guerra Mundial Um dos factores que precipitou a Revolução de 1905 foi a derrota russa na guerra russo-japonesa (1904-1905). Nos anos seguintes prosseguem conflitos internacionais (Marrocos 1905-1906, e 1911; guerra nos Balcãs em 1911). Verifica-se um crescimento exponencial das indústrias militares, onde os grandes grupos monopolistas encontram não apenas novas fontes de lucro, mas também de inovação tecnológica e de incorporação de avanços científicos, nomeadamente na área da química e da metalurgia. Estruturam-se blocos e alianças militares. O movimento operário internacional alerta para a possibilidade da guerra e procura adoptar uma estratégia comum. Para a discutir, a Internacional realiza sucessivos congressos, em Estugarda (1907), Copenhaga (1910) e Basileia (1912). Nestes a guerra é definida como fruto e consequência do capitalismo. A Resolução adoptada em Estugarda impõe aos partidos socialistas o dever de mobilizarem as massas contra a guerra. Mas já na altura muitos dirigentes socialistas se mostravam identificados com as ideologias do “interesse nacional”. O eclodir da guerra acelerará a divisão da Internacional, e também a divisão interna em vários partidos socialistas e social-democratas. A I Guerra é a primeira guerra global. Nela participam todas as grandes potências, e a quase totalidade dos países europeus. As 92
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metrópoles coloniais mobilizaram as respectivas colónias. Embora os cenários de guerra fossem a Europa e o Médio Oriente, tropas oriundas de todos os continentes participaram neles directamente. As perdas humanas foram colossais. Só a batalha de Verdun provocou 1 milhão de baixas, ou seja, metade das tropas envolvidas. As consequências políticas foram ainda mais profundas e duradouras. Foi redesenhado mapa da Europa e o do Médio Oriente, partilhado entre as potências vencedoras. Mergulhou o capitalismo na crise: a derrota da Alemanha, significando a derrota da economia capitalista mais poderosa, enfraquecia o capitalismo europeu no seu conjunto. Acelerou as condições que conduziram ao triunfo da revolução bolchevique na Rússia.
A Revolução Russa de 1917, primeira revolução socialista vitoriosa O czarismo entrou na guerra ao lado da França e da Grã-Bretanha em 1914. O enorme exército de 20 milhões de homens, mal preparado e com uma retaguarda que previra erradamente uma guerra de curta duração, acumula derrotas durante os anos de 1915 e 1916. O bloqueio, a desorganização dos transportes e dos abastecimentos, o racionamento agravam duramente as já más condições de vida nas cidades e nos campos. A autocracia desagrega-se: enquanto os grandes industriais e comerciantes se organizam autonomamente para tirar partido dos abastecimentos militares, a classe operária e o povo organizam-se para resolver os seus próprios problemas, reorganizam sovietes, desencadeiam greves e manifestações, mobilizam-se contra a guerra e pelo derrube do czarismo. Mas não é a desagregação do poder que conduz à revolução. É a luta das massas, em cuja organização e direcção o POSD(b)R assume um papel determinante. Em 27 de Fevereiro de 1917, na sequência de um crescendo de greves operárias e de manifestações, da luta nos campos e da bárbara repressão cossaca em Petrogrado, estala a insurreição revolucionária, no decurso da qual dezenas de milhares de soldados amotinados se juntam às massas populares. O poder czarista é derrubado. Inicia-se o período da revolução democrático-burguesa, que tem como um dos seus traços característicos uma efectiva dualidade de poderes: de um lado a Duma do Estado da qual emana o Governo Provisório, hegemonizada pelos dezembro 2017 / KALLAIKIA
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representantes da burguesia, do outro os Sovietes de Deputados dos Operários e Soldados. São eleitos comités de fábrica cuja base proletária amplia a influência bolchevique, que assumem uma intervenção crescente não apenas na vida interna das fábricas e empresas, mas também um papel político. No exército e na marinha soldados e marinheiros revolucionários formam comités cuja autoridade supera a das hierarquias militares e em alguns casos as destitui.
I. Cartaz de 1918. “Mulheres, vão às cooperativas”
A dualidade de poderes é a expressão de uma dualidade política inconciliável: o Governo Provisório, traindo compromissos e afrontando o profundo sentimento popular que desencadeara a revolução, prossegue a guerra e procura preservar os esteios do poder czarista. Em Abril Lénine regressa à Rússia. Os bolcheviques lançam as palavras de ordem “nenhum apoio ao Governo Provisório”, “fim à guerra”, “todo o poder aos sovietes”. Na linha das teses contidas no “Que fazer?”, e das tarefas definidas nas “Teses de Abril”, Lenine defende que a questão política que se coloca ao proletariado é a da passagem da primeira etapa da revolução, através da qual a burguesia alcançara o poder, à segunda etapa, que entregue o poder ao proletariado e às camadas mais pobres do 94
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campesinato. As condições para a formação desse poder estavam em marcha: os sovietes. O socialismo substituiria o velho poder do Estado repressivo por uma república soviética, capaz de proporcionar às massas populares ilimitadas possibilidades de participação activa na direcção do Estado e na construção de uma vida nova. Perante o recrudescimento e a consciencialização do movimento popular, o Governo Provisório envereda pela via da repressão civil e militar. Em Petrogrado, a 4 e 5 de Julho, uma gigantesca manifestação popular pacífica é atacada à metralhadora por cadetes, oficiais e cossacos. Centenas de pessoas morrem na manifestação e nos confrontos armados que se lhe seguem. Na sequência destes acontecimentos, o Governo Provisório restabelece a pena de morte na frente de combate, a aplicar aos soldados desertores e aos que exigem o fim da guerra; proíbe a difusão da imprensa bolchevique entre os soldados, e proíbe que estes realizem reuniões, congressos ou comícios. É rompida a dualidade de poderes e, com ela, o período pacífico da revolução. A reacção russa, apoiada pelo imperialismo, prepara o golpe contra-revolucionário: a instauração de uma ditadura militar encabeçada pelo General Kornílov. São dissolvidas 59 divisões do exército - as unidades com maior espírito revolucionário – e são criados 33 batalhões de choque destinados às operações contra-revolucionárias. Para abater a Petrogrado revolucionária a burguesia manobra para a sua entrega ao exército alemão, retirando da defesa da cidade tropas e artilharia. Kornílov (apoiado por carros de combate ingleses) e o exército alemão convergem no ataque. Tal como sucedera com a Comuna, perante o perigo da revolução a burguesia imperialista suspende as suas rivalidades e conflitos (mesmo que estes assumam a expressão de uma guerra declarada) e une-se contra o inimigo de classe. Mas os sovietes, os sindicatos e os comités de empresa de Petrogrado organizam a defesa. Em três dias os destacamentos de Guardas Vermelhos atingem um efectivo de cerca de 15.000 homens. As guarnições de soldados e marinheiros aliam-se à resistência revolucionária. Em dois dias Kornílov é derrotado e preso.
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A luta contra a tentativa de golpe de Kornílov é um ponto de viragem na revolução russa. Entre as massas populares, no Exército, na Armada, reforça-se a confiança na linha bolchevique, que rapidamente se torna maioritária nos Congressos de Sovietes de Petrogrado, de Moscovo, de Kiev e de outros grandes pólos operários. Cresce o papel dos Sovietes na definição e na administração de políticas. À medida que se reduz a sua base de apoio o Governo Provisório torna-se mais instável, com constantes alterações na sua composição. Aproxima-se a crise revolucionária: os de baixo já não querem continuar a viver como até aí, os de cima já não podem continuar a viver como até aí. O fim da dualidade de poderes tornara inevitável o confronto armado com a contra-revolução. A reacção apoiara o motim de Kornílov. As forças revolucionárias passaram à organização da insurreição popular. Em Setembro Lénine, exilado na Finlândia, regressa a Petrogrado, mantendo-se na clandestinidade. Os destacamentos de Guardas Vermelhos são reforçados e armados, consolida-se uma estrutura unificada de comando. Por decisão do Soviete de Petrogrado foi criado Comité Militar Revolucionário, integrando bolcheviques e socialistas-revolucionários de esquerda. Estruturam-se a rede de abastecimentos e as comunicações. O Governo Provisório procura, pelo seu lado, reunir forças para conter a insurreição. Mas a sua política retirara-lhe todo o apoio popular, e o prosseguimento da guerra voltara contra si a grande maioria do exército e da marinha. A própria burguesia monopolista, reconhecendo a fraqueza do Governo, está mais voltada para a procura um novo Kornílov. Quando a insurreição é desencadeada, a 25 de Outubro (7 de Novembro no calendário gregoriano) basta pouco mais de meiodia para que o Governo Provisório seja derrubado e para que o Soviete de Petrogrado declare a vitória da Revolução.
O impacto mundial da Revolução de Outubro Repercussão mundial A vitória da Revolução na Rússia, momento de viragem sem precedentes na história mundial, teve de imediato uma enorme re96
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percussão mundial. A notícia da revolução, o papel dos comunistas como vanguarda revolucionária, o nome de Lénine, a palavra soviete adquirem um significado universal. Para além dos trabalhadores, também um grande número de destacados intelectuais manifesta o seu entusiasmo e a sua adesão à revolução soviética. A Revolução de Outubro desencadeia um poderoso movimento de libertação anticolonial. Desde logo nos países submetidos à dominação czarista, cujo direito à autodeterminação é imediatamente proclamado pela revolução, e mais tarde confirmado no histórico Congresso Bolchevique do Povos Orientais realizado em Baku, em 1920.
O poder soviético Nos dias de hoje, em que a burguesia procura uma reescrita total da história do século XX, a historiografia burguesa trata a Revolução de Outubro como um “golpe de estado”, contra toda a evidência dos factos. Em primeiro lugar a insurreição foi preparada a partir dos órgãos mais representativos e democráticos existentes: os sovietes. É certo que a iniciativa envolveu aspectos conspirativos e secretos, como seria inevitável. Mas toda a movimentação e preparação popular foram visíveis e de massas: tanto o povo como o Governo Provisório souberam que a insurreição estava em marcha. O Governo (contando com a participação directa dos embaixadores dos Estados Unidos e da Inglaterra, nomeadamente) procurou reunir forças que se lhe opusessem e a esmagassem. O povo preparou-se para nela participar quando fosse desencadeada. Em segundo lugar, não se tratou da tomada do aparelho do poder. Tratou-se da sua substituição por uma forma de organização do estado radicalmente diferente. Tratou-se de substituir a natureza de classe do poder. Pela primeira vez na história o proletariado tomou o poder nas suas próprias mãos, e moldou-o criativamente aos seus critérios e objectivos. Na altura da insurreição estava reunido, desde 23 de Outubro, o II Congresso de toda a Rússia de Sovietes de Deputados dos Operários e Soldados. Em 649 delegados, 390 eram bolcheviques, 160 socialistas-revolucionários (entre os quais predominava a tendência de esquerda), 72 mencheviques e 27 de outros partidos e grupos. Isto significa que no Congresso existia uma esmagadora dezembro 2017 / KALLAIKIA
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maioria de delegados favoráveis ao fim da guerra, ao derrube do Governo Provisório e à passagem de todo o poder para os sovietes. A insurreição foi debatida pelo Congresso no próprio momento em que se desenvolvia. Os mencheviques trataram-na de “aventura”, mas a maioria do Congresso apoiou-a com entusiasmo. Na madrugada de 26 de Outubro, “apoiando-se na vontade da enorme maioria dos operários, soldados e camponeses, apoiando-se na vitoriosa insurreição dos operários e da guarnição de Petrogrado”, o congresso toma o poder nas suas mãos. Na noite do mesmo dia o congresso adopta decretos sobre a paz e sobre a terra, revoga o decreto sobre a pena de morte na frente de combate, pronuncia-se sobre a composição do Governo Soviético, presidido por Lénine, que terá a denominação de Conselho dos Comissários do Povo. Elege o Comité Central Executivo de toda a Rússia em cuja composição participam bolcheviques, socialistas-revolucionários de esquerda, socialistas ucranianos e outros.
O cerco imperialista e a guerra civil O imperialismo cedo compreendeu que a guerra que desencadeara fora um dos factores objectivos que mais fortemente contribuíra para o desenvolvimento de situações revolucionárias e para o triunfo da Revolução de Outubro. Mais ainda, compreendeu que a guerra contribuíra para essa situação por duas formas: pelos sofrimentos, tragédias e privações que provocara na vida de milhões de seres humanos, e porque, concentrando colossais efectivos no conflito, desguarnecera o papel repressivo contra as lutas populares e operárias que as forças armadas desempenhavam nos estados burgueses. O fim da guerra permitiu às potências vencedoras - França, Grã-Bretanha, Estados Unidos - impor condições humilhantes à potência imperialista rival, a Alemanha, e permitiu também à burguesia reorganizar as suas forças militares - vencidas ou vencedoras – para a repressão do surto revolucionário, e concentrar as suas forças na contra-revolução e no ataque ao poder soviético. Quando foi assinado o Tratado de Paz separada entre a Rússia e a Alemanha (Tratado de Brest-Litovsk, Março de 1918, representando aliás a imposição pela Alemanha de um clausulado duríssimo), a Inglaterra, a França, os Estados Unidos e o Japão decidiram acompanhar as medidas de bloqueio económico e político que tinham empreendido desde o triunfo da revolução com 98
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uma intervenção militar directa, iniciada a norte (Murmansk) e a oriente (Vladivostok). Formou-se um cerco total ao território russo: a norte, a leste e a sudeste, na frente europeia e nas fronteiras asiáticas. As forças imperialistas tinham naturais aliados na burguesia contra-revolucionária russa e na aristocracia latifundiária. Iniciou-se a guerra civil: de um lado o povo soviético, do outro a contra-revolução interna e externa. A guerra civil durou quase três anos, acrescentou à guerra anterior novas destruições e tragédias, obrigou o poder soviético a medidas drásticas para assegurar os abastecimentos (“comunismo de guerra”), mas a Rússia soviética saiu dela mais sólida e com melhores condições de defesa. Formouse o Exército Vermelho, que iria desempenhar um papel histórico determinante duas décadas depois. A derrota da contra-revolução implicou o reconhecimento tácito pelas potências imperialistas do poder soviético como seu interlocutor.
Revolução burguesa e revolução proletária Há quem pretenda estabelecer uma continuidade histórica entre a Revolução de Outubro e as revoluções burguesas que a antecederam, nomeadamente a Revolução francesa de 1789. E, do mesmo modo, estabeleça paralelos entre as respectivas evoluções, entre as características pessoais das principais personalidades envolvidas. Existem, é certo, possibilidades de leitura conjunta desses acontecimentos. Mas é sobretudo útil à reflexão política investigar, não as semelhanças, mas as radicais diferenças entre eles. Quanto mais não seja porque ajudam a compreender as complexíssimas dificuldades com que as revoluções socialistas se defrontam, várias das quais conduziram, afinal, à derrota da URSS. Derrota que não atinge o objectivo do socialismo, mas que surge sobretudo em consequência do abandono de traços essenciais daquilo sobre que a Revolução de Outubro assentou. Não ignorando, evidentemente, a incessante ofensiva e agressão capitalista e imperialista de que o primeiro Estado proletário foi alvo desde a primeira hora já anteriormente referida. Um aspecto essencial é sublinhado com excepcional lucidez por Georgi Lukács ainda na década de 1920: «É isto que constitui a mais profunda diferença entre as revoluções burguesa e proletária. A capacidade das revodezembro 2017 / KALLAIKIA
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luções burguesas avançarem com tão brilhante ímpeto é socialmente sustentada, pelo facto de elas beneficiarem das consequências de um processo económico e social quase concluído numa sociedade cuja estrutura feudal e absolutista foi profundamente minada politicamente, governamentalmente, juridicamente, etc. pela vigorosa emergência do capitalismo. O elemento verdadeiramente revolucionário é a transformação económica do sistema de produção feudal num sistema capitalista, de tal modo que, em teoria, este processo poderia verificar-se sem uma revolução burguesa, sem levantamento político por parte da burguesia revolucionária. […] Sem dúvida que também a revolução proletária seria também impensável sem que as suas premissas e pré-condições económicas não tivessem já sido geradas no seio da sociedade capitalista pela evolução do sistema capitalista de produção. Mas a enorme diferença entre os dois tipos de processo reside no facto de o capitalismo já se encontrar desenvolvido dentro do feudalismo, arrastando desse modo a sua dissolução. Em contraste com isto, seria uma fantasia utópica imaginar que alguma coisa tendendo no sentido do socialismo poderia surgir do interior do capitalismo excluindo, por um lado, as premissas económicas objectivas que o tornam uma possibilidade as quais, entretanto, apenas podem ser transformadas nos verdadeiros instrumentos de um sistema de produção socialista depois e em consequência do colapso do capitalismo; e por outro lado o desenvolvimento do proletariado enquanto classe. […] a concentração do capital em cartéis, trusts, etc. constitui, na verdade, uma premissa inevitável para a conversão de um modo de produção capitalista para um modo produção socialista. Mas mesmo a mais altamente desenvolvida concentração capitalista será ainda qualitativamente diferente, mesmo no plano económico, de um sistema socialista, e não pode nem «por si própria» transformar-se num nem uma tal transformação poderá ser conseguida por “meio de dispositivos jurídicos” dentro do quadro de uma sociedade capitalista” […]
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“Seria uma forma de pensar completamente anti-dialéctica e a-histórica a que considerasse que, partindo da proposição de que o socialismo apenas pode concretizar-se através da transformação consciente da totalidade da sociedade, concluísse que tal deve verificar-se de um só golpe e não como o produto final de um processo. Este processo, contudo, é qualitativamente diferente da transformação do feudalismo na sociedade burguesa.” (Lukacs, 1923)
I. Cartaz de 1920. “Literatura: caminho para o comunismo”
Estas palavras, escritas em polémica com Rosa Luxemburg, são de uma extraordinária lucidez. Ajudam a equacionar as dificuldades com que os revolucionários de Outubro se depararam, parte das quais não tiveram condições para resolver. Porque do que se tratava era de construir, sem o apoio de qualquer experiência anterior, não apenas uma nova organização económica e social, mas também todos os outros aspectos da vida colectiva, desde a cultura até ao papel das cidades.
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As Constituições de 1918 e 1936 Uma das observações que Lukács dirige a Rosa Luxemburg no texto referido diz respeito à crítica feita por ela a aspectos do desenvolvimento e institucionalização da Revolução Russa, entre as quais a “recusa de direitos civis à burguesia”. Efectivamente, a Constituição de 1918 não concede o direito de voto “aos que empregam trabalho alheio como forma de aumentar s seus lucros; aos que têm rendimentos que não resultam do seu trabalho: rendimentos de capital, rendas de propriedades”. E não o concede igualmente a “monges e clérigos de todas as denominações”, a “empregados e agentes dos corpos da repressão czarista”, a “membros da dinastia reinante”. Essas disposições - que aliás já não figuram na Constituição de 1936 - constituem, em parte, um voto censitário que é o inverso daquele em vigor nas democracias burguesas desse tempo. Voto que, por exemplo em Inglaterra, era nessa altura ainda reservado aos homens possuidores de propriedade. Mas o que, nesse aspecto, a Constituição de 1918 tem de profundamente significativo não são essas restrições, são os impressionantes avanços: o direito de voto aos 18 anos, igual para homens e mulheres sem restrição de religião, nacionalidade ou domicílio. Na Grã-Bretanha o direito de voto é nesse ano reconhecido a mulheres, mas apenas às que sejam proprietárias e tenham mais de 30 anos. Nos EUA, onde o direito de voto é longamente condicionado tanto por critérios que marcam a origem social (literacia, conhecimento da língua, propriedade) como por critérios de cidadania de carácter sobretudo racial (o Supremo Tribunal recusa em 1922 o direito de voto a pessoas de origem japonesa por “não serem suficientemente brancas”, e em 1923 conclui o mesmo em relação às de origem hindu), apenas em 1971 a idade para votar passa para os 18 anos. Mas é em particular no que se refere à organização do Estado e aos direitos dos trabalhadores que as Constituições de 1918 e 1936 marcam um poderoso contraste com as Constituições burguesas. A Constituição de 1918 determina a socialização, a nacionalização e a propriedade nacional da terra, dos recursos minerais e florestais, da água, dos meios de produção e da banca, colocando-os sob o controlo dos trabalhadores e do governo dos operários e camponeses. Proclama a paz e a condenação global da escravatura. Consagra o poder dos trabalhadores, assente nos sovietes urbanos e rurais. 102
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Filipe Diniz 100 anos da Revolução
Determina (como a Comuna de Paris) a separação entre a Igreja e o Estado e entre a Igreja e a Escola. Enquanto no resto do mundo a regra é a perseguição e a repressão à organização dos trabalhadores, constitucionaliza o dever de apoiar a organização dos trabalhadores e dos camponeses pobres e de proporcionar locais onde reúnam, devidamente “aquecidos e iluminados.” Enquanto no resto do mundo florescem o racismo e a xenofobia, garantem aos estrangeiros que vivem e trabalham na Rússia todos os direitos políticos dos cidadãos russos, e atribuem aos sovietes locais o direito de conceder a cidadania “sem formalidades complicadas,” o direito de asilo por razões políticas ou religiosas, direitos iguais para todos os cidadãos independentemente da raça ou nacionalidade. Enquanto nos EUA o direito à segurança social é longamente considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal, as reduções do horário de trabalho são consideradas pelo mesmo uma violação da “liberdade de contratação dos patrões.” Onde este tribunal considera que os patrões têm o direito de forçar os trabalhadores a não aderir aos sindicatos, que um salário mínimo para mulheres e crianças é desprovido de sentido, que os trabalhadores não poderiam fazer greve em solidariedade com trabalhadores de outra empresa. Onde, em 2014, uma proposta apresentada ao Congresso recomendando 3 semanas de férias pagas para trabalhadores com mais de três anos de serviço numa empresa com mais de 20 trabalhadores não obtém votos suficientes, a Constituição de 1936 consagra o direito ao trabalho e ao descanso, a jornada de trabalho de 7 horas, férias anuais pagas por inteiro. Consagra o direito à segurança social e à assistência de saúde gratuita. Consagra direitos iguais para homens e mulheres “em todas as esferas da vida económica, estatal, social, cultural, política” e, nos mesmos termos, para todos os cidadãos independentemente da raça. Consagra o direito de organização sindical e cooperativa, das organizações da juventude, de desporto, de defesa, das sociedades culturais, tecnológicas, científicas. Pode dizer-se: uma coisa é a letra das Constituições, outra coisa é a prática da sociedade. Certamente que, em muitos aspectos, essa diferença se verificou na URSS. Mas é igualmente inegável que a comparação com a realidade dos países capitalistas (e com a realidade da Rússia actual) ilustram um muito elucidativo contraste, que nenhuma reescrita da história poderá elidir. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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100 anos da Revolução Filipe Diniz
Um dos erros cometidos, não apenas na URSS mas por todos os que olhavam para a pátria de Lénine como um poderoso factor de esperança, foi julgar irreversível o caminho percorrido. A caminhada para o socialismo é muito mais árdua do que fora previsto e, pior do que isso, nem sequer o visível trajecto capitalista de crise em crise cada vez mais profunda assegura que essa perspectiva se torne nem mais próxima nem mais fácil. A história consolidou duas preciosas lições: uma, que derrotar o capitalismo é tarefa ainda mais dura do alguma vez fora imaginado; outra, que construir o socialismo, sociedade inteiramente nova e sem precedente, exige o movimento, a organização, a acção, a criatividade, a inteligência individual e colectiva de milhões de seres humanos. Conscientes de que a revolução será não o culminar de um processo mas o seu início. Permanece possível, e é certamente a única perspectiva que pode superar a barbárie. E, se a caminhada milenar da humanidade faz sentido chegará, tal como chegou Outubro de 1917.
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1917-2017 Cronologia Russo-Galaica no Centenário do Outubro Bolxevique Texto introdutório: Maurício Castro Tabela cronológica: Maurício Castro Eliseo Fernández
Poucos eventos históricos mantenhem tanta vigência um século depois de acontecidos como a Revoluçom de Outubro; e isso, apesar da sua implosom, há mais de 25 anos, o que para muitos viria questionar a viabilidade de um projeto de civilizaçom de novo tipo como o que o socialismo soviético parecia estar chamado a liderar. Porém, os anos passárom e, confirmada a subsistência das destrutivas contradiçons internas do capitalismo, a experiência iniciada em 1917 em terras do antigo Império Czarista continua a representar um espectro que o sistema mundial dominante ainda teme e esconjura por todos os meios possíveis. - 105 -
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Para compreendermos o motivo, devemos recuar umhas décadas atrás de outubro [novembro] de 1917, para conhecer a obra do máximo teórico do socialismo científico: Karl Marx (sem esquecermos o contributo do seu camarada Friederich Engels). Contrariamente ao que costuma afirmar-se, a teorizaçom de Karl Marx nom estivo orientada para a descriçom do projeto comunista. Ele nom era um adivinho e nom poderia, portanto, descrever umha nova sociabilidade ainda inexistente. O barbudo alemám foi, si, o máximo estudioso do modo de produçom vigente, realizando a crítica mais profunda, elaborada e acertada do capital.
“Todo o que é sólido desmancha no ar” Afirmando a historicidade e, portanto, a caducidade de todo modo de produçom, Karl Marx deixou claro que também o domínio do capital nom iria ser eterno. O próprio desdobramento da lógica interna desse sistema irá conduzi-lo à sua própria negaçom e superaçom, protagonizada pola classe social surgida ao seu interior e objetivamente interessada em quebrar as cadeias de exploraçom com que é obrigada a sustentar o domínio burguês. Apesar de ter sido interpretado de modo teleológico, o marxismo estabelece só a possibilidade dessa superaçom revolucionária, nom a sua inevitabilidade. Dentro do esquema marxiano, poderá ser o máximo desenvolvimento do sistema, com a socializaçom da produçom, que permita ao proletariado assumir o protagonismo histórico que lhe corresponde, impondo a socializaçom da propriedade dos meios de produçom e a recuperaçom da relaçom metabólica entre o ser humano e a natureza, que as relaçons de produçom capitalistas quebrárom.
“Umha revoluçom contra o Capital” Assi avaliou o revolucionário italiano António Gramsci a tomada do poder polo Partido Bolxevique. A Rússia nom cumpria as condiçons apontadas por Marx, representando um capitalismo atrasado e dependente. No entanto, nom era no centro do sistema que a revoluçom eclodia, mas no “elo mais fraco da cadeia imperialista”. Isso explicaria as imensas dificuldades que condicionárom o processo revolucionário, o que, junto à derrota doutras tentativas 106
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europeias (Alemanha, Itália, Hungria…) restringiu o alcance do que Lenine concebia como início de um imparável processo de revoluçons no coraçom do sistema e no mundo. O cerco militar e económico imposto logo desde o início contra o nascente poder dos sovietes nom impediu importantes conquistas para os povos da URSS, que nas décadas seguintes se vírom obrigados a enfrentar umha guerra civil com massiva participaçom estrangeira (1918-1921, quase 3 milhons de mortes), a invasom nazi-fascista (1941-1945, mais de 26 milhons de mortes soviéticas) e umha longa Guerra Fria com a louca corrida de armamentos a devorar enormes recursos (1945-1991). Contodo, a Uniom Soviética, construída sobre a derrota de um império em profunda crise, converteuse na segunda potência mundial e levou os seus povos a atingir altas quotas de desenvolvimento nas mais diversas áreas, impensáveis fora do modelo planificado de transiçom para o socialismo. Nom só a guerra permanente de desgaste do capitalismo mundial contra a experiência soviética, mas também os erros e incapacidades do próprio modelo, minado pola conjugaçom de contradiçons internas e externas, levou ao seu esgotamento e esclerotizaçom. Umha cruenta “guerra civil” interna, como nunca antes tinha acontecido, afogou o partido em violência nos anos 30. A substituiçom do proletariado como nova classe dirigente por umha burocracia que iria gerando os seus próprios interesses viria a cristalizar na objetiva necessidade de conversom em nova burguesia, processo simbolicamente culminado em 1991, com a substituiçom da bandeira vermelha, do alto do Kremlin, pola tricolor czarista da “nova” Rússia capitalista.
Com erros e acertos, fundamental para compreendermos o que hoje somos Nom é o objetivo destas linhas realizar umha avaliaçom histórica e política da experiência soviética. Conformamo-nos com dar a conhecer de maneira resumida aquele processo revolucionário nos seus primeiros anos, como marco fundamental da história da emancipaçom humana que sem dúvida constitui. Que as condenas e esconjuros contra o comunismo se mandezembro 2017 / KALLAIKIA
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tenham quando a maioria de estados transicionais do chamado “campo soviético” caírom novamente do lado capitalista é a melhor confirmaçom da vigência do projeto revolucionário encarnado na teoria crítica de Karl Marx e nas experiências históricas socialistas. Desde a Comuna de Paris até a Revoluçom Cubana, passando polo Outubro Vermelho. No caso da Galiza, a experiência soviética protagonizada polo Partido Bolxevique e polos povos do antigo Império Czarista representa um património particular: o novo Estado soviético trouxo as propostas mais avançadas até a altura para os conflitos nacionais no seu interior. Nom que a questom nacional fosse resolvida, mas si fôrom apontadas linhas de açom para esse objetivo, baseadas no reconhecimento efetivo do direito de autodeterminaçom. Foi só na medida que essas linhas fôrom desviadas das pretensons originais é que a resoluçom definitiva da questom foi impedida. Oferecemos a seguir umha cronologia histórica dos factos históricos significativos acontecidos na Terra dos Sovietes e na Galiza, desde a última década do século XIX até o fim da Nova Política Económica (NEP).
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Cronologia da Revoluçom Russa (1890-1928)
Cronologia Revoluçom Russa
Galiza
1890
Greve geral na Corunha pola jornada de 8 horas
1892
Visita a Galiza do socialista de origem ferrolana Pablo Iglesias
1894
O que será derradeiro czar, Nicolau II, acede ao trono imperial russo após a morte do pai, Alexandre III.
1895
Funda-se em Sam Petersburgo a Uniom de Luita pola Emancipaçom da Classe Operária, antecedente do partido revolucionário marxista russo.
Eleiçom do primeiro vereador socialista na Galiza, Francisco Fernández García, polo bairro de Esteiro em Ferrol.
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1897
1898
Início da chamada “Guerra das trainhas”, pola introduçom do cerco nas fainas pesqueiras frente ao tradicional jeito. O Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) realiza I Congresso.
1900
O anarquista viguês Ricardo Mella vai a Paris ao Congresso Revolucionário Internacional como representante do operariado galego.
1901
I Congresso Operário Galaico-Português em Tui. Depois dum confronto na greve dos consumeiros da Corunha em que morre um operário, a guarda civil reprime a greve geral e causa a morte de quatro homens e tres mulheres o 31 de maio.
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Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
1902
II Congresso Operário GalaicoPortuguês em Viana do Castelo. Fundaçom do “Centro de Estudios Sociales Germinal” na Corunha.
1903
1904-1905
II Congresso do POSDR incorpora direito de autodeterminaçom nacional ao seu programa. Divisom entre Bolxeviques e Menxeviques.
Greve de peixeiras na Corunha polos tributos sobre o peixe desembarcado III Congresso Operário GalaicoPortuguês em Braga.
Guerra imperialista russo-japonesa polo domínio da Manchúria e a Coreia. Derrota russa.
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1905
I Revoluçom Russa, conhecida polo nome de “Ensaio Geral”. Janeiro: “Domingo Sangrento” com milhares de mortes pola repressom da política czarista contra a manifestaçom pacífica sobre o Palácio de Inverno. Protestos, manifestaçons, motins, greves… Junho: Motim da tripulaçom do encouraçado Potemkin com apoio da populaçom de Odessa. 2.000 vítimas mortais pola repressom. Outubro: Greve geral. Formaçom do Soviete de Petrogrado. Dezembro: repressom contra o Soviete.
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A Corunha converte-se em sede do Comité da Federacom Regional de Sociedades de Resistência de Espanha. A “Guerra das trainhas” acaba com a derrota do jeito.
Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
1906
1907
Eleiçons ao Parlamento (Duma). Reforma do regime para Monarquia Parlamentar. Revolta popular continua, com a criaçom de novos sovietes (conselhos operários). Forte repressom e dissoluçom da Duma. Fim da Monarquia Parlamentar e volta da autocracia. Início da fase de refluxo.
A conseqüência da greve da construçom da Corunha, é executado o Presidente do Patronato Miguel Muñoz Ortiz.
Criaçom das organizaçons agrárias da “Solidaridad Gallega” e “Unión Campesina”, de tendência anarquista, na Corunha e arredores.
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1917-2017 Cronologia Maurício Castro - Eliseo Fernández
1908
Constituiçom do Diretório Antiforista de Teis, organizaçom agrária da área de Vigo. Assembleia Agrária de Monforte, com participaçom da “Solidaridad Gallega”, “Unión Campesina” e Diretório Antiforista de Teis.
1909
1910
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Confronto entre a Guarda Civil e populares em Oseira em abril, que causa a morte de sete pessoas. Criaçom de grupos artísticos vanguardistas, com crescente influência cultural nos anos seguintes e adesom ao movimento revolucionário.
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Proclamaçom da República em Portugal, com exílio de monárquicos na Galiza, que preparam incursons pola fronteira galega.
Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
1911
Criaçom da “Solidaridad Obrera” da Galiza, de carácter anarco-sindicalista, num congresso operário em Vigo. Nascimento do “Centro Obrero de Cultura” em Ferrol.
1912
Criaçom em Ferrol do grupo anarquista feminino “La Antorcha”.
1913
Greve geral em Ferrol de perto dum mês contra os abusos dos chefes nos estaleiros, seguida por umha greve geral na Corunha.
1914
Entrada do Império Russo na I Guerra Mundial.
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1915
Significativas vitórias austríacas e alemás contra a Rússia. O czar assume diretamente a direçom militar.
Congresso Internacional contra a Guerra em Ferrol, organizado polo “Ateneo Obrero Sindicalista”, congrega sociedades operárias de toda a Península Ibérica e da pé ao renascimento da CNT.
1916
Grave impacto económico da guerra. Queda do comércio exterior e da produçom, com quase 15 milhons de mobilizados.
Criaçom das Irmandades da Fala. Manifestaçom em Nebra-Porto Doçom contra um gravame, atacada pola Guarda Civil, que causa a morte de cinco mulheres e um homem. Comícios operários e greve geral contra a carestia da vida, organizados pola CNT e a UGT. Criaçom da “Unión Tabacalera”, sociedade operária das tabaqueiras da Corunha.
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Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
1917
Janeiro: Manifestaçom em Petrogrado comemora Domingo Sangrento de 1905.
Fevereiro de 1917 (Calendário Juliano)
Março de 1917
(Calendário Gregoriano)
(....)
Revoluçom de Fevereiro leva à abdicaçom do monarca imperial russo, Nicolau II. Insurreiçom de Petrogrado contra a guerra e polo fim do regime autocrático mobiliza dezenas de milhares de pessoas em manifestaçons, motins, greves e outros protestos. Constitui-se o Soviete de Petrogrado (devido aos esforços dos “menxeviques”, dos socialistasrevolucionários, dos socialistas populistas e dos “trudovki”).
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(...) Fevereiro de 1917 (Calendário Juliano)
Março de 1917
(Calendário Gregoriano)
Nos dias seguintes, será formado um Governo Provisório, após um acordo entre o Soviete e a Duma (que tinha constituído um comité provisório, em seguida transformado em governo provisório).
Abril
Lenine volta à Rússia do exílio em Zurique. Partido Bolxevique defende “paz, pam e terra” em oposiçom ao Governo Provisório.
Maio
Trostsky volta à Rússia do exílio na América. Reorganizaçom do Governo Provisório. Kerensky novo ministro da Guerra. Deserçons em massa.
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Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
Junho
Eleiçons municipais: vitória do Partido Social-Revolucionário de Kerenski.
Motim em Vigo pola saída de carros de farinha para Portugal.
Primeiro Congresso dos Sovietes da Rússia. Grandes manifesfaçons nas principais cidades (Petrogrado, Kiev, Moscovo, Riga...). Julho
Crescimento da oposiçom popular ao governo provisório e da influência bolxevique nas ruas. Kerensky, novo primeiro-ministro, restabelece a pena de morte e posterga a convocaçom de uma Assembleia Constituinte. Repressom contra o Partido Bolxevique. Exílio dos principais dirigentes.
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Agosto
Tentativa fracassada de golpe sob a liderança do general Kornilov.
Greve geral em todas as cidades galegas convocada pola UGT e a CNT. Um morto nos confrontos em Ourense.
Setembro
Trostsky é eleito presidente do Soviete de Petrogrado. Em outubro, o Soviete cria o Comité Militar Revolucionário, para defender a capital da contrarrevoluçom.
Tumulto em Viveiro polo embarque de ovos para Bilbau.
Criaçom do “Proletkult” (Cultura Proletária).
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Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
Outubro
Soviete de Petrogrado cria o Comité Militar Revolucionário com Trotsky à frente. Insurreiçom armada organizada polos bolxeviques: tomada do Palácio de Inverno, sede do Governo Provisório, por trabalhadores, soldados e marinheiros armados.
Início dumha vaga de expulsons massivas de militantes operários de Cuba, muitos deles galegos, que chegam ao porto da Corunha.
Trostsky anuncia fim do Governo Provisório; Kerensky foge para o exílio. Congresso de Sovietes torna-se a suprema instáncia do novo governo, exercido polo Soviete dos Comissários do Povo, sob a presidência de Lenine. Novembro
Promulgam-se decretos sobre a paz, a terra, as nacionalidades e o controlo operário da produçom.
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1918
Moscovo nova capital. Adoçom do Calendário Gregoriano. Assunçom do modelo federal para as “repúblicas nacionais e soviéticas”. Março: Paz de Brest-Litovsk com cessom territoriais à Alemanha. Independência da Finlándia, Polónia e Ucránia. Maio/junho: início da intervençom estrangeira e da guerra civil (1918-1920). Julho: Aprovase a primeira constituiçom da “República Socialista, Federada e Soviética Russa”.
1918-1919
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Tentativa revolucionária alemá, finalmente derrotada.
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Dous jovens mortos em Ferrol e outras sete pessoas assassinadas em Sedes-Narom em protestos pola carestia dos produtos de primeira necessidade. Tumultos na Corunha, Betanços, Pontedeume, Melide, Castro Caldelas, Carvalhinho e Foz, com protagonismo feminino. I Assembleia Nacionalista em Lugo.
Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
1919
Ruas e janelas ocupadas pola arte gráfica política (ROSTAS) no período 1919-1921, com Malevich e Maiakóvsky. Dziga Vertov lança o manifesto “Nós”, discutindo as relaçons entre palavra e imagem.
Declínio das mobilizaçons pola carestia da vida depois dos tumultos de Tui, Corunha, Santiago e Ribeira. Confronto entre populares e Guarda Civil em SofamCarvalho, em que morrem quatro mulheres.
Março: Fundaçom da III Internacional. Março-Agosto: Efêmera revoluçom conselhista húngara. 1920
Agosto-outubro: fim da guerra com os “brancos” e da intervençom direta estrangeira.
Operários dos jornais da Corunha negamse a publicar anúncios para recrutar furagreves e declaram a greve, seguida dum lock-out patronal que paralisa a imprensa da cidade por três semanas.
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1919-1920
Experiência insurgente libertária no sul da Ucránia (Makhnistas). Biénio Vermelho na Itália: experiência conselhista em Turim.
1921
Fevereiro: Insurreiçom de Kronstadt esmagada polo poder bolxevique. Março: Adoçom da Nova Política Económica (NEP), que procurava estimular a iniciativa privada e reativar a economia.
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Atentado mortal contra Nicasio Pérez, presidente do patronato em Ferrol, na seqüência de umha greve de descarregadores e descarregadoras.
Maurício Castro - Eliseo Fernández 1917-2017 Cronologia
1922
Formaçom da URSS (1ª Constituiçom ratificada em 1924, pouco depois da morte de Lenine). Stalin torna-se secretário-geral do Partido Comunista. Criada a Associaçom dos Artistas Revolucionários da Rússia, que defende o retorno ao figurativismo e a afirmaçom de umha espécie de realismo heróico que antecipa o “realismo socialista”.
1923
1924
Maiakóvsky organiza a “Frente de Esquerda das Artes”, articulando Rodchenko, Stepanova, Lavinsky, Lyubov e Popova, entre outros.
Constituiçom da “Confederaçom Regional Galaica” da CNT em Vigo. Revolta popular em SobredoGuilharei, contra o pagamento dos foros, na seqüência do “Congresso Regional Agrário” de Tui. Som mortas três pessoas Fundaçom da Irmandade Nacionalista Galega Criaçom da “Federaçom Patronal Galega” Criaçom da primeira organizaçom comunista na Galiza, em Ponte Vedra A Ditadura de Primo de Rivera dificulta a atividade de sociedades operárias de tendência anarco-sindicalista e comunista
Morte de Lenine.
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1917-2017 Cronologia Maurício Castro - Eliseo Fernández
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1925
Início da pugna na direçom contra a Oposiçom de Esquerda. Trotsky é destituído do Comissariado de Guerra. Eisenstein filma “O Encouraçado Potemkin”.
1927
Novembro: Trostsky é expulso do Partido Comunista (exilado no Cazaquistám em 1928 e banido no ano seguinte).
Greve nos estaleiros de Ferrol
1928
A NEP é abandonada: implementa-se o primeiro “Plano Qüinquenal”. Iniciase a transformaçom da URSS de um país eminentemente agrário em industrial e potência militar.
Apariçom de “¡¡¡Despertad!!!”, jornal da “Federaçom Regional Marítima” em Vigo e porta-voz oficioso da CNT
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Mural de F. Velho Pinheiro no Casino Ferrolano. Entre os anos 1925-1936 Foto: Lucía Mato López
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Socialistas e anarquistas na Galiza. Encontros e desencontros na emergência da maré proletária (1870-1936)
Carlos F. Velasco Souto
É sabido que o associacionismo operário galego foi configurado, ao longo dos finais do século XIX e primeira metade do XX, em torno de duas correntes principais, socialismo e anarquismo, a que viria sumar-se apartir da década de 1920, o comunismo. No entanto, nom é tam conhecido do público afeiçoado a ler destas questons, como tampoco dos operários conscientes em geral, o capítulo das desavenças a presidir na maior parte do período referido o relacionamento entre elas; desavenças que, aliás, haviam dificultar consideravelmente e a longo prazo a unidade de açom no seio da classe proletária. 128
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Carlos F. Velasco Souto Socialistas e anarquistas na Galiza
De facto, os episódios relativamente freqüentes de colaboraçom pola base entre militantes socialistas e libertários nom devinhérom em autêntica convergência antes de 1917. De maneira que, como mal menor, ambas as correntes acabárom por efetuar umha espécie de repartimento geográfico do território galego em zonas de influência, visando consolidar os respetivos sindicatos e tecidos associativos anexos (ateneus libertários, casas do povo e centros obreiros socialistas) no aguardo, ou nom, de tempos melhores. Mesmo depois de 1917, houvo os seus mais e os seus menos até bem entrada a etapa da República. Fagamos agora, e antes de mais nada, um pouco de história para situarmos as origens desse desencontro.
Uns inícios relativamente conflituosos: a luita por um espaço social próprio Por mais que os primeiros passos da classe operária na Galiza remetam para a segunda metade do século XVIII, momento em que começa a andar a construçom naval no complexo militar-industrial de Ferrol, teria de transcorrer quase um século antes de o proletariado galego, escasso em número e com apenas presença nuns poucos núcleos urbanos, se constituir em classe para si, quer dizer, num estrato social coeso, com consciência de si próprio e provido tanto de referentes ideológicos como de modelos organizativos autónomos a respeito de outras classes. Foi no mal chamado de sexénio revolucionário (1868-1873), nomeadamente em 1871, que surgiu na Corunha a primeira Federación Local Obreira filiada à AIT na sua versom ácrata. No ano seguinte, logo a seguir da ruptura com o republicanismo federal, a pioneira organizaçom herculina já virara cinco, ganhando presença em Ponte Vedra, Ferrol, Ourense, Lugo e Vigo1. Dez anos volvidos, em 1982 e após vários anos de clandestinidade decorrentes da implantaçom da I Restauraçom Borbónica, as três organizaçons sobreviventes (as da Corunha, Lugo e Vigo) enqua1 Até 1872 o incipiente e ainda imaturo movimento operário galego fora a reboque do republicanismo federal de feitio pequeno-burguês. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Socialistas e anarquistas na Galiza Carlos F. Velasco Souto
dravam novecentos e catorze trabalhadores de diversos ramos: 636 na primeira, 8 na segunda e 270 na terceira (Moreno, 1990: 21-114)2. Mais tardio é o enraizamento do socialismo na nossa terra. A primeira agrupaçom do partido de Pablo Iglesias a ser fundada foi a de Ferrol, em 1891, acompanhada logo a seguir polas de Santiago e Corunha (minoritária esta última face à FLO de cariz libertário). De pouco mais tarde data a agrupaçom viguesa, com o decorrer do tempo a mais nutrida e importante na Galiza (González, 1992:25). Como se bota de ver, o predomínio anarquista ou anarco-sindicalista foi claro nos primeiros anos, para se ir equilibrando pouco a pouco com a influência das hostes socialistas contra a virada do século. Em qualquer caso, o tal equilíbrio nom era sinónimo de entendimento mútuo —salvo nos episódios de colaboraçom antes aludidos— nem muito menos de convergência, como de coexistência tolerada nom isenta de relutância. Assim sendo, uns e outros dedicárom-se com maior ou menor empenho a construir e afortalar os seus respetivos sindicatos naquelas cidades, vilas ou comarcas em que contavam com mais apoio social, ou onde a sua mensagem —às vezes mesmo por ter sido a primeira a chegar— era melhor acolhida que a da concorrência. Umha vez consolidados esses bastións, já haveria tempo de negociar ou chegar a acordos com o incómodo parceiro de luita e de trabalho. E como é que ficou configurado esse “mapa sindical” ou geografia do do associacionismo operário galaico? Mais ou menos do jeito seguinte (som dados já bem serôdios, da década de 1930). O anarco-sindicalismo era claramente maioritário na cidade da Corunha (a sua praça principal) e mais as suas redondezas, bem como em Tui e boa parte do litoral marinheiro onde, a partir dos anos vinte —nomeadamente em vilas como Marim, Cangas e Moanha— o Sindicato da Indústria Pesqueira cenetista afastou os socialistas da direçom do sindicalis2 Da perspetiva atual pode parecer surpreendente que fosse A Corunha a cidade a concentrar o meirande número de operários conscientes organizados, considerando que as trabalhadoras da Fábrica de Tabacos ficárom de fora deste primeiro gromo organizativo. Mas debe levar-se em conta que a fasquia militar da construçom naval ferrolana dificultava grandemente, na altura, a filiaçom sindical. Quanto a Vigo, nom era ainda a populosa urbe industrial que desabrocharia com o abrente do século XX.
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mo de classe que até aí detiveram (Pereira, 2011: 103, 113; Gonzalez, 2006: 46-47). Também era considerável a pegada libertária na capital compostelana e na linha do caminho de ferro OurenseZamora (por sinal entre Correchouso e a Gudinha). O socialismo, de por parte, dominava através da UGT o movimento operário em Vigo, em Ferrol (aqui em menor medida, fazendo face a a umha concorrência a cada vez maior da CNT), Monforte, Betanços e inicialmente, antes da emergência comunista, Ourense e Ponte Vedra. E por falarmos do comunismo, lembremos que nom seria até à etapa republicana que socialistas e ácratas tivessem que fazer um espaço a essa terceira corrente que, com relativa rapidez, alastrou nos ambientes proletários das cidades de Ferrol, Vigo, Ourense e Ponte Vedra para, a partir daí, estender a sua influência às contornas rurais das duas últimas e rural-marinheiras das duas primeiras, sem esquecermos o importante pólo de Val d’Eorras. A razom desta singular partilha espacial do mundo do trabalho assalariado na nossa terra tem a ver com a retesia inevitável por conseguir implantaçom nas principais concentraçons operárias, fossem vilas ou cidades, para mais contando com tam limitados efetivos numéricos3. Daí que sucessos como o aparecimento de umha minoria socialista na Corunha (onde o predomínio da FLO anarco-sindicalista foi sempre esmagador) por volta de 1891/92; a hegemonia socialista em Ferrol no trecho final do XIX sobre um associacionismo libertário de raízes mais antigas; ou, algo mais tarde, a ferrenha decisom dos marinheiros da pesca industrial de Vigo-Bouças de se enquadrarem na Confederaçom Regional Galaica cenetista numha urbe absolutamente controlada pola UGT no que ao mundo do trabalho dizia respeito; todos estes acontecimentos e mais outros similares, digo, gerassem tam azedas controvérsias na 3 Ainda na década de 1930, o número total de trabalhadores assalariados da indústria e os serviços nom ultrapassava os 140 000 (ou uns poucos milheiros mais se adicionarmos os marinheiros da frota motorizada), dos quais uns 90 000 sindicalizados, cifra decerto nom irrelevante mas situada muito longe das grandes concentraçons proletárias de Bilbao, Barcelona e mais urbes da Espanha industrializada na altura (Pereira 1992). E que imos falar a respeito dos primeiros momentos do agromar obreirista, quando o número de operários sindicalmente enquadrados nom chegava nem a mil? dezembro 2017 / KALLAIKIA
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altura4. E daí, igualmente, a dificuldade para coexistirem numha mesma cidade ou vila sociedades operárias do mesmo ofício e diferente orientaçom. Com certeza nom davam os vímbios para tanto cesto, nom quedando outra, na mor parte dos casos e mesmo ao arrepio da vontade de mais de um, que a convivência no seio de umha mesma organizaçom sob o predomínio de umha das ideologias: socialista ou anarquista5. E onde assim no foi, isto é, ali onde primou a coexistência, as relaçons fôrom amiúdo tensas. Até os hábitos de sociabilidade é que iam por separado, debruçando-se as sociedades viradas para o socialismo nos “centros obreiros” e “casas do povo”, e nos ateneus libertários as adscritas à esfera anarco-sindicalista6.
4 Tais controvérsias eram a miúdo expressadas em comícios públicos, bem como através de polémicas na imprensa proletária, caso de El Corsario da Corunha e El Obrero de Ferrol.
5 Assim, por exemplo, em Ferrol nom foi até à década de 1920 que aparecérom sociedades paralelas no mesmo ofício, acompanhando a criaçom da CRG da CNT e ao compasso da recuperaçom por parte da corrente libertária da influência de massas que, desde os finais do século XIX, perdera em favor da UGT. Na Corunha, as cousas estavam claras. O sindicalismo da UGT nunca conseguiu penetrar nos ramos laborais mais significadamente proletários, devendo conformar-se com os ofícios de escritório, “colo branco e gravata”, como diziam os seus oponentes da FLO. O grémio dos tranviários e ferroviários, de sempre ligado à orbita socialista em todo o território galego e espanhol, foi umha das poucas exceçons. Quanto a Vigo, como foi dito, o controlo da UGT era asobalhante mesmo nos operários de terra das instalaçons portuárias. Tam só os trabalhadores de mar adentro é que fugiam a esse controlo. 6 Devo a informaçom recolhida nos parágrafos precedentes à amabilidade do meu colega Eliseo Fernández.
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Confluência e novo afastamento Este ambiente de colaboraçom esporádica pola base e retesias no topo, de convivência obrigada versus coexistência pacífica consensuada ou voluntariamente assumida, de experiências compartilhadas no posto de trabalho tingidas de mútuas desconfianças, nom desanuviou até 1916/17, com o galho da corrente unitária surgida em volta das greves gerais desses dous anos7. Contudo, o fracasso da segunda delas (abortada polo governo conservador de Dato e fortemente reprimida), unido ao esfarelamento da unidade de ofício em muitos ramos, deu pé a novas desavenças que se haviam prolongar durante o período da ditadura de Primo de Rivera (1923-1929)8. Esta última, como é sabido, perseguiu sanhudamente o anarco-sindicalismo, enquanto tentava atrair a UGT à orbita governamental para se assegurar a sua colaboraçom. E por mais que a moderaçom e bom senso da Confederaçom Regional Galaica da CNT (fundada, justamente, em 1922) lhe garantissem a sobrevivência na legalidade, contrariamente à maioria das outras regionais, nem por isso a diferença de trato, abertamente discriminatório em favor da UGT e os socialistas, deixou de gerar irritaçom e genreiras nas hostes libertárias9. Voltamos pois a umha fase de relativo afastamento, embora estejamos a precisar de conhecimentos mais sólidos e afinados do período em questom para poder calibrar na sua justa medida a dimensom da retesia. 7 Um relato da preparaçom conjunta da greve de 1917, segundo o testemunho do coordenador do seu comité organizador para todo o território galego, o veterano sindicalista compostelano Luís Pasín, em Pereira (2012: 194-197). O planejamento da açom incluía a provisom de armas e explosivos visando mesmo o assalto ao quartel de Santa Isabel em Santiago. 8 De maneira um tanto irónica, o referido esfarelamento da unidade veu propiciado polo reforçamento do associacionismo sindical produzido ao compasso da ampla vaga de mobilizaçons contra a carestia de subsistências por mor da I Guerra Mundial, bem como polo crescimento dos setores industrial e de serviços nessa mesma conjuntura bélica. Para rentabilizarem no respetivo favor esse ressurgir societário, UGT e CNT dêrom em concorrer entre elas, fazendo rachar o ambiente unitário predominante até daquela nas sociedades de ofício (Pereira, 1992: 18-19).
9 Apesar de nom ser declarada ilegal, a CRG tivo de aturar diversas investidas repressivas da ditadura a mirrar consideravelmente os seus efetivos, cousa que nom aconteceu na mesma medida à UGT. (Pereira, 1994: 39-43). dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Seja como for, nos alvores da República a cousa estava brava, mália a disposiçom favorável dos anarco-sindicalistas galegos à constituiçom de alianças obreiras com a UGT. A sua atitude inicialmente nom beligerante para com o regime de abril (em que a participaçom dos socialistas, lembremos, era fulcral) logo mudou e assim, no decurso do biénio 1931/32, foi ostensível a postura negativa da CRG face à política de conciliaçom laboral promovida polo Ministério de Trabalho (na altura presidido por Largo Caballero), nomeadamente no tocante à participaçom em jurados mistos e mais organismos de arbitragem10; postura que acarretou um novo distanciamento a respeito de umha UGT de cheio comprometida na implementaçom de tal política. O certo é que, questons de método e estratégia sindicais à margem, as acusaçons de favoritismo desemboçado do governo para com a UGT, procedentes dos meios cenetistas, nom parecem ter carecido de fundamento, levando em conta que Largo Caballero era umha figura cimeira tanto do PSOE quanto da devandita central sindical, e considerando, assim mesmo, que ao moderantismo reformista do governo republicano acaía muito melhor um sindicato como a UGT, alinhado com a sua política e a que doadamente podia ter de mao11, do que a esgrévia e afouta CNT. Em qualquer caso, um ambiente rarefeito desses era o pior que podia haver se o que se pretendia era aliciar umha frente operária pola base a desenvolver umha política unitária e coesa nos diversos conflitos laborais abertos ao socaire da crise económica mundial. E o resultado foi o que tinha de ser em tais circunstâncias: cada um polo seu lado e discrepâncias profundas na hora de negociarem com o patronato, tal como aconteceu no caso referido da Companhia dos Tranvias e tantos outros. 10 Foi o que aconteceu, à guisa de exemplo, na Companhia dos Tranvias da Corunha —e cito este caso por tê-lo investigado diretamente— com o galho da negociaçom das primeiras Bases de Trabalho no setor. O peso inteiro da iniciativa sindical partiu do sindicato ugetista Unión de Obreros y Empleados Tranviarios de La Coruña, visto o afastamento da Seçom Tranviária do cenetista Sindicato de la Industria del Transporte de La Coruña y su radio, igualmente com representaçom entre os trabalhadores da Companhia (Velasco, 2014: 43-46). 11 Porém, anos volvidos, seria o próprio Largo Caballero, presidente do Conselho de Ministros durante um trecho da guerra, que reclamasse o concurso da CNT nos governos que ele presidiu, entre outubro de 1936 e maio de 1937.
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Pior iriam ainda as cousas quando, a partir de 1933, a hostilidade dos libertários para com a República fosse em aumento, radicalizando as suas posturas e provocando, já em 1934, um revezamento geracional na direçom da CRG, encarnado num feixe de militantes novos, mália que experimentados, crescentemente influídos por umha FAI até daquela quase inexistente em território galego. Nom parecia este, certamente, o contexto mais acaído para a promoçom de novos achegamentos à UGT. Porém, o que o doutrinarismo nom facilitava, acabárom por impô-lo o siso e mais a lucidez diante dos condicionamentos do meio social galego, que nom davam, era claro, para manter interminavelmente retesias no seio do (exíguo) obreirismo organizado e, muito menos, para encarar com visos de êxito a brutal repressom e contra-ofensiva patronal desencadeadas polos governos reacionários do Biénio Negro (1934/35). Ajudou nesse sentido a desilusom, e progressiva radicalizaçom também, do tandem PSOE-UGT perante o rumo a cada dia mais retrógrado e autoritário do regime republicano, agora em maos da direita burguesa e pró-monárquica. De maneira que, já desde os inícios de 1934 —e seique aqui com anterioridade a outras zonas do Estado— começárom a se produzir iniciativas para aprofundar na necessária unidade de açom entre as hostes socialistas e anarco-sindicalistas. Fruito desse novo espírito, como do subsequente abandono da estratégia de confronto direto com a legislaçom laboral de inspiraçom republicano-socialista por parte da CRG, foi a participaçom desta, de setembro de 1934 em diante, em reunions de caráter negociador a par dos anteriormente doestados jurados mistos e a direçom de diversas empresas, entre as quais a anteriormente mencionada Companhia dos Tranvias12. Nom havia passar muito tempo sem que o pendor unitário fosse posto a prova, reafirmando a sua imperiosa necessidade. Foi em outubro desse mesmo ano, por ocasiom da insurreiçom operária em que, na Galiza, os libertários aderírom a um planejamento insurgente onde a 12 Velasco (2014: 47). De todos os jeitos, algumha cousa devia ter de especial o convívio entre ugetistas e cenetistas nesta empresa, a julgar pola invulgar participaçom conjunta deles todos na greve geral política de dezembro de 1933, dirigida contra a formaçom do governo radical-cedista. Com efeito, os tranvias herculinos deixárom de circular com normalidade durante quase umha semana, fazendo-se eco os seus trabalhadores adscritos a umha e outra corrente de umha açom reivindicativa em que o sindicalismo ugetista no seu conjunto, em Espanha e na Galiza, nom participou. E notese que ele era mesmo maioritário na Companhia dos Tranvias (Ibidem). dezembro 2017 / KALLAIKIA
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a iniciativa coubo dessa volta aos socialistas. O saldo repressivo foi medonho, mas serviu ao menos para dar solidez à frente operária. No meio do desastre mesmo dir-se-ia que se enxergavam novos tempos em que a confluência podia dar rendimentos.
Unidade de açom alargada… antes da devastaçom A conjuntura propícia para essa confluência viria dada pola conformaçom da Frente Popular. Mas, entretanto, um novo agente tinha feito apariçom no cenário sindical e trama organizativa da classe trabalhadora galega: O comunismo. Dado o percurso vital mais breve desta corrente em relaçom a socialistas e libertários, a frente de conflito para com elas foi mais reduzida13. Por outra parte, ao carecer os comunistas de força suficiente como para montar os seus próprio sindicatos, salvo na sua tentativa inicial de argalhar a CGTU, acabárom por se integrar maioritariamente na UGT e só muito residualmente na CNT. E isto val tanto para os “ortodoxos” do PCE quanto para os “heterodoxos” do POUM, também com presença significativa na Galiza por mais que numericamente reduzida (Pereira, 1998: 69-77). Seja como for, uns e outros conseguírom hegemonizar nalgumhas comarcas, vilas e setores concretos as estruturas sindicais ugetistas, dotando-as de umha meirande radicalidade, consistência e afouteza, como se botaria de ver nom apenas na manutençom da conflitualidade como na organizaçom da resistência ao golpe de estado de julho do 36 (Velasco, 2006). A implantaçom do comunismo foi feita nalguns ramos do mundo laboral em inevitável concorrência com os socialistas, as mais das vezes (como no metal, as ferrovias ou o âmbito do ensino, nomeadamente na Galiza meridional) e, mais localizadamente, com os libertários, caso das conserveiras e atadeiras da Ria de Vigo, hegemonizadas na margem sul polo PCE e pola CRG na margem norte morracense. Mas setores houvo onde o avanço do novo projeto ideológico-organizativo se produziu com menos dificuldade, na base de umha sólida urdime entretecida desde abaixo. Talvez o caso mais rechamante seja o do associacionismo campesino nas 13 Segundo Víctor Santidrián (2002: 61), o PCE bota a andar na nossa terra em 1923, mália existirem aqui comunistas sem vencelho orgánico desde 1920.
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províncias de Ourense e Pontevedra, onde as respetivas Federaçom Campesina Provincial e Federaçom Agrária Comarcal levárom o carimbo do PCE praticamente desde o início (em Ourense, a partir de abril de 1936; em Pontevedra desde os anos vinte) afastando os socialistas de qualquer aspiraçom ao controlo do setor (Santidrián, 2002: 139, 163-167). Da consistência alcançada pola corrente comunista em território galaico, bem como da sua proclividade às alianças unitárias com as restantes forças obreiristas no trecho final da República é elucidativa a inclusom de um membro do PCE na candidatura da Frente Popular pola província de Pontevedra em fevereiro de 1936, resultando eleito deputado14. Nom houvo tempo para muito mais. O golpe de estado militar-fascista de 1936 arrastou-nos a todos a umha voragem de perseguiçom e morte de que nom pudérom recuperar-se por bem anos. Alguns, caso dos socialistas, praticamente até à Transiçom Política de 1975-81. Outros, como os libertários, reduzidos a quase nada após a desarticulaçom e esmendrelhamento do seu aparelho clandestino em 1947-48. Com algo mais de fortuna, os comunistas que, condenados ao silêncio logo a seguir da extinçom da guerrilha, conseguiriam no entanto se reconstituir a partir dos princípios da década de sessenta. Em tais circunstâncias, pouco espaço ficava para a açom unitária. Se acaso, os últimos ecos desta, carregados de determinaçom e heroísmo, fôrom vividos durante o período de esplendor da resistência armada contra o franquismo, por volta de 1946/48. A história posterior, a dos encontros e desencontros no pós-franquismo é já outra, de caraterísticas diferentes num contexto que pouco tem a ver com o que aqui abordámos.
14 O espírito unitário, ao menos a respeito dos socialistas, já tivera ocasiom de se manifestar na realidade bem antes, com o galho da celebraçom de um comício conjunto em abril de 1934, em Pontevedra, com participaçom do PSOE, PCE, UGT, Federaçom Local Obreira, Federaçom Comarcal Agrária e mias as Juventudes socialistas e comunistas (González, 2006:45). dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Socialistas e anarquistas na Galiza Carlos F. Velasco Souto Referências bibliográficas GONZÁLEZ PROBADOS, M. (1992): O socialismo na II República (1931-1936). A Corunha-Sada, Eds. do Castro. I. GONZÁLEZ PROBADOS, M. (2006): A UGT na Galiza Republicana (1931-1934. Distribución cuantitativa e xeográfica. A Corunha-Sada, Eds. do Castro. II. MORENO GONZÁLEZ, X. M. (1990): “A Primeira Internacional en Galicia (1868-1874)”, em X. R. Barreiro e outros: O movemento obreiro en Galicia: catro ensaios. Vigo, Xerais, pp. 21-114. III. PEREIRA, D. (Coord.) (1992): Os conquistadores Modernos. Movemento obreiro na Galicia de anteguerra. Vigo, Ed. A Nosa Terra. IV. PEREIRA, D. (1994): A CNT na Galicia. Santiago, Eds. Laiovento. V. PEREIRA, D. (1998): Sindicalistas e rebeldes. Vigo, Ed. A Nosa Terra. VI. PEREIRA, D. (2011): Loita de clases e represión franquista no mar 818641939). Vigo, Eds. Xerais. VII. PEREIRA, D. (2012): José Pasín Romero: memoria do proletariado militante de Compostela. Santiago, Fundación 10 de marzo. VIII. SANTIDRIÁN ARIAS, V. M. (2002): Historia do PCE en Galicia (19201968). A Corunha-Sada, Eds. do Castro. IX. VELASCO SOUTO, C. F. (2006): 1936. Represión e alzamento militar en Galiza. Vigo, A Nosa Terra. X. VELASCO SOUTO, C. F. (2014): Serviços públicos, luita de classes e negociaçom coletiva na Galiza do século XX. As relaçons laborais na Companhia dos Tranvias da Corunha (1903-2005). Santiago, Instituto Galego de Historia.
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In memoriam
Marisa Vilas
No século XIX um templo egípcio foi arrasado para construir umha fábrica de açúcar. No século XXI um formoso palácio foi igualmente demolido porque, aparentemente, estorvava a contemplaçom dum templo egípcio. Nada há mais vinculado ao tempo do que a História, pois esta é, basicamente, tempo transcorrido. E, nesse devir, as desapariçons de formosas obras realizadas pola humanidade fôrom inevitáveis e mesmo necessárias para nom obstruir a evoluçom. Mas algumhas som absurdas e inúteis e só são explicáveis pola ilimitada cobiça humana. Destas últimas desapariçons imos falar. - 139 -
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In memoriam Marisa Vilas
Armant, Alto Egito, 1869. O vice-rei do Egito Muhammad Ali, dentro dum plano de melhoramento destinado a industrializar o país, decidiu a construçom dumha fábrica de açúcar en Armant, que continua a funcionar na atualidade. Nom tivérom escrúpulos em utilizar como pedreira as nobres ruínas dum templo dedicado ao deus Montu que ainda subsistia en dignas condiçons, a julgar polos desenhos realizados pola expediçom napoleónica para a Description de l’Egypte em 1798:
Também disto dá fé a gravura do pintor escocês David Roberts em 1838:
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Marisa Vilas In memoriam
Mas quando a viajante inglesa Amelia B. Edwards visitou Armant em 1873 a fábrica já levava quatro anos em funcionamento. Amelia perguntou polo templo, mas o que encontrou foi que a máxima atraçom de Armant era a fábrica de açúcar, de que se sentiam orgulhosos. E assim o relatou no seu livro de viagens “Mil milhas Nilo acima”: “…despois da ceia recebemos a visita de protocolo do Bey…o Bey de Armant é umha personalidade mui importante nestes lugares. É o governador da vila, assim como superintendente da fábrica de açúcar; tem mando militar, possui o seu palácio e jardins perto e o seu vapor privado no rio… O Bey deu-nos conta detalhada dos trabalhos na fábrica e enviou o seu portador de pipa por umha presa de cana fresca e alguns anacos de açúcar moreno e sem refinar… As suas respostas às nossas perguntas sobre as ruínas fôrom desalentadoras de mais. Havia tempo que desaparecera qualquer vestígio do grande templo; enquanto que do pequeno mal ficavam em pé algumhas colunas e parte da muralha. Havia mui pouco que ver e nom pagava a pena o passeio… Despois convidou-nos a visitar a fábrica de açúcar… e pouco despois foi-se…”
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In memoriam Marisa Vilas
O templo de Armant na atualidade:
Foto: Marisa Vilas
Quando o turismo era o motor do Egito, Armant, apesar de estar à beira do Nilo, ficou afastada e convertida numha vila triste ao nom ter nengum reclame digno de atençom. A ausência do templo fijo-lhe pagar a fatura e som mui poucos os que se achegam ali. Poderia ter conservado ambos, templo e fábrica, mas as prioridades mandárom e nom se pensou além disso e, o que é pior, o sacríficio do templo de Montu nom serviu para aprender dos erros. Luxor, 2009. As circunstáncias mudárom e as prioridades tamém. Mas os erros irreparáveis continuam a ser os mesmos. As autoridades culturais egípcias e o seu máximo expoente naquel momento, Zahi Hawass, apostou polo faraónico até o ponto da cegueira. Já nom se derrubavam templos para levantar indústrias porque os templos eram a indústria, quer dizer, arrasava-se todo o demais. O objetivo era agora converter o Egito num grande parque temático, num grande cenário faraónico que nom devia ser perturbado pola presença doutro tipo de construçons, ainda que tamém fossem obras de arte ou fragmentos de história, mas ao nom ser faraónicos nom tinham direito à sobrevivência. 142
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Marisa Vilas In memoriam
Há uns anos, o 3 de setembro de 2009, um belo edifício do século XIX, chamado “A Casa do Paxá”, foi demolido sem piedade, apesar de estar catalogado como património histórico nacional. Situado em plena Corniche da cidade de Luxor, à beira do Nilo, era umha formosa construçom palaciana com os muros pintados de rosa-salmom e realizada nese estilo indefinível conhecido como “colonial”. O seu pecado foi estar demasiado perto do famoso templo de Luxor, tam perto que teria perturbado a sua visom aos turistas empoleirados na coberta das barcaças que sulcavam o Nilo nom há muito. Velaí umha imagem da “intromissom” do palácio na vista do templo de Luxor:
Foto: Marisa Vilas
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In memoriam Marisa Vilas
Outra, da beleza do edifício que já nunca mais será tal:
Foto: Marisa Vilas
E outra de como pagou o seu atrevimento umha das ousadas construçons:
Foto: Jane Akshar, Luxor news
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Marisa Vilas In memoriam
Há 2.000 anos, a civilizaçom faraónica morreu; há 1.600 que deixárom de se utilizar a língua sagrada e a escrita hieroglífica. Em todo esse tempo até hoje, no Egito continuárom a acontecer cousas, continuárom sobrepondo-se civilizaçons que fôrom deixando a sua pegada, tam dignas e respeitáveis como as faraónicas, com o mesmo direito a serem conservadas e com a mesma obriga de fazê-lo. A história do Egito nom terminou com os faraós. A corrente industrializadora levou pola frente o templo de Armant. O fluxo turístico acabou com a Casa do Paxá. No primeiro caso escandalizamo-nos, botamos as maos à cabeça contemplando a magnitude dum desastre que poderia ter sido facilmente evitado. O segundo, o atual, demonstra que nom aprendemos nada.
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Mural de F. Velho Pinheiro no Casino Ferrolano. Entre os anos 1925-1936 Foto: Lucía Mato López
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CONTO
Alma
Séchu Sende
Estava a misturar a realidade com a ficçom. A realidade: ela a fazer vibrar as cordas vogais. A fantasia: falar para os ouvidos dum espírito. A alma de sua mae. Figera entrar a fantasia no mundo real. Ou, de algum jeito, convertera em fantasia a própria realidade. Como podia estar ela, umha pessoa lógica, realista, descrente, a falar com a alma de sua mae morta? Supostamente, pensou, alguém que fai o que estou a fazer eu deveria estar num centro psiquiátrico. Umha vez dei com umha mulher a falar sozinha ao meu lado num semáforo, sabes, mamá. Num semáforo como este, dixo ao baixar do autocarro, com o aeroporto de Orly na olhada. - 147 -
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Alma Séchu Sende
Mostrou os dous bilhetes, dous bilhetes, e o seu passaporte ao controlador na bicha de embarque. Olhou o passaporte com indiferença. E a outra pessoa?, perguntou o home como esperando que alguém aparecesse por detrás. - É minha mae. Viajo com ela. Viajo com a alma de minha mae. - Desculpe? - Por favor, som eu quem se deve desculpar. Sei que isto é um pouco estranho… Minha mae morreu há três dias e justo antes de morrer pediu-me que acompanhasse a sua alma de volta ao lugar onde nasceu. Sei que esta situaçom é um pouco… Nom sei como defini-la… extraordinária. Mas prometim-no à minha mae no seu leito de morte. - Vaia… Ehem. A alma de sua mae? - Ahá. - Ehem, tenho que consultá-lo. Aguarde, por favor. Num momento estou de volta. De ali a quatro minutos regressou, apressando o passo, polo túnel que comunica com o aviom. Vinha acompanhado dum home duns sessenta anos, de quase dous metros, magro, preto. - Olá, chamo-me Eva. Boa tarde. - Olá, eu som o comandante Nunes, -falou-lhe em português-. Assi que viaja com a alma de sua mae… - Ahá. - E ela, está aquí? Agora? - Pois… Que quer que lhe diga? Sei que todo isto é… - Nom, por favor, nom se preocupe, som angolano e tenho um grande respeito por todas as crenças. Minha mae mesmo é umha pessoa muito animista. Compreendo, compreendo. - Já, bem, eu nom som crente, sabe. E até há três dias nem sequer sabia que minha mae acreditava nestas cousas. Só estou a cumprir o seu último desejo, voltar ao lugar… - Sei, sei, estou informado, …ao lugar onde ela nasceu. É umha história fantástica! Bem, desculpe: parece umha 148
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Séchu Sende Alma
história fantástica! Bem-vindas à nossa aeronave. Nom há problema nengum, podem passar. Que tenham umha boa viagem. Deixou sentar a sua mae ao lado da janela e, Estou cansa, mamá, ela ficou a dormir logo que o aviom alcançou as primeiras nuvens. Acordou com o tlin tlin da campaínha que anuncia que vai falar o comandante. E falou: - Chegamos à Galiza. Dentro de quinze minutos tomaremos terra. -Mamá, eu nunca fum mui faladora. Sempre foi assi, tu bem o sabes, desde sempre. A Olga e a Sónia, si, elas aprendêrom a falar e a falar e falavam e falavam… Quando era umha nena cheguei a invejá-las. Até que um dia me dixeche Nom te preocupes, Eva. Sabes, para elas tamém chega a ser um problema: Nom podem deixar de falar. As palavras que a ti che faltam a elas sobram-lhes. Lembras isso? Eu devia ter treze ou catorze. Tu tamém foche sempre umha mulher de poucas palavras. Quando falávamos por telefone nunca sabia quem ia pronunciar menos palavras, se tu ou eu. Olá, que tal todo, mamá? Bem e tu? Vamos levando? Que tal a cadeira? Melhor… Pois. Pois. Um abracinho, mamá. Umha aperta. Muac. O último dia que te acompanhei no hospital… Lembras? Aquela noite sentim que necessitava falar contigo, sabes. Quando cheguei ao quarto queria contar-che muitas cousas. Tinha a intençom de che contar a minha vida inteira… Havia já tantos silêncios entre nós que… Lembras, cheguei, sentei, colhim-che a mao e perguntei-che Que tal? Dói-che? E tu dixeche que nom com o teu sorriso, em silêncio. E quando ia começar a falar, a falar…, fechache os olhos e adormeceche. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Alma Séchu Sende
Tlin, tlin. Era o comandante,: - Boa tarde mais umha vez. O sol está a pôr-se e saem as primeiras estrelas. Hoje foi um prazer atravessar o céu. Obrigado. Despois dumha pausa, deixou de falar em francês e acrescentou em português: Bem-vindas à casa. Boa viagem e sorte. Até sempre. E dez minutos mais tarde chegavam à cafetaria do aeroporto. Todas as mesas estavam ocupadas. Nom havia onde sentar. - Preciso dum café, sussurrou à sua mae. - Pois podes sentar aqui… Se nom che importa compartilhar mesa. Eu tenho que ir-me dentro de dous minutos. Falara umha mulher nova, duns trinta anos, com o cabelo recolhido e olhos negros. - Vaia, é que… - Senta, mulher, nom mordo. - É que… Sentiu a olhada de sua mae, intensamente cravada na sua nuca. Por um segundo procurou umha saída, umha escusa. Mas aquele sorriso era demasiado insistente. - É que nom estou só, tamém está minha mae. - Naturalmente, vai vir agora? - Si, vem. Já está aqui. Sentou e baixou a voz. Vás pensar que estou tola. De facto, nem sequer eu consigo explicarme a mim mesma esta viagem. Acompanha-me o espírito de minha mae. Ou, antes, eu acompanho a alma de minha mae... A alma de minha mae está sentada aqui. A rapariga olhou o lugar vazio abrindo muito os olhos. E despois voltou a olhar para a Eva.
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- Como? - Som umha mulher que nom crê em superstiçons, dixo Eva, som agnóstica, ateia, e apostatei da igreja católica aos vinte e três anos. Penso que o único mundo que existe é o que estamos a viver e que despois nom há nada. Nada. E aínda que pareça o contrário, nom estou desequilibrada. Bem, nom mais que a média. Mas nunca entrei na consulta dum psiquiatra e nom estou sob os efeitos de nengumha droga. - Ahá… - No seu leito de morte, prometim a minha mae que acompanharia a sua alma até o lugar onde nasceu. - Ahá. -Vaia. - E tua mae, daquela, está aqui? - Si. - Ahá. Uff. -… - Sabes…? - Eva.. - Eva, há três anos contárom-me umha história sobre um home que, na sua cama, agoniando, pediu à familia que, quando morresse, por favor, metessem na caixa o seu violino, com ele. Toda a vida tocara o violino e nom queria que a morte os separasse. Morreu, e quando a família pegou no violino para lho pôr nos braços ao defunto sentírom que pesava de mais. Estava cheio de feixes de bilhetes de 500 euros! - Vaia… pois agora tés outra história que contar. A da louca que viajava com o espírito de sua mae… - Vaia, e que tal a viagem? - Estamos aproveitando para falar… - Ahá…Vaia! dixo olhando o seu relógio de pulso. Sabes, encantaria-me ficar mais um bocado contigo, convosco…, mas tenho que me ir… Trabalho na loja de souvenirs. E já chego tarde. Mui tarde! dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Ergueu-se com as faces encarnadas, sorrindo com os olhos cheios de luz. Bem-vindas! Dixo à Eva caminhando polo corredor. E quando estava já a uns vinte metros voltou-se e berrou: + - Chamo-me Lila, se voltares e nom estou, pergunta pola Lila! E falamos! Olhárom as estrelas enquanto aguardavam polo autocarro, que as levou ao centro de Compostela. Dous bilhetes, por favor. A última vez que estivera na cidade, Eva tinha dezasseis anos. Entrárom num hostalzinho na zona velha. Um quarto duplo, por favor. Subírom. Eva deixou a mochila acima da cama e saírom à rua. Nom estavam ali para fazer turismo mas tinha um bocado de fame e queria aproveitar para passear polas ruas de pedra. Nom deixava de sentir aquela sensaçom, cada vez mais intensa: sentia-se acompanhada. Caminhava devagar por baixo das arcadas da Rua Nova e, de vez em quando, virava-se a olhar o vácuo como se fosse dar, realmente, com a olhada de sua mae. Mas estava tranqüila. - A última vez que estivem aqui... Lembras? Vinhemos enterrar a avoa, comentou olhando cara adiante. E de volta paramos a dormir aqui. Tu estavas mui triste. Nunca te vira chorar antes. Entrárom num restaurante. - Tenho muita fame, sussurrou, piscando um olho para sua mae. Sabes, há muito tempo que nom saía a cear com alguém… Si, si, já sei, essa era a tua pergunta preferida: E que tal de amores? Sabes que nunca me sentim bem falando do tema… Nom me foi demasiado bem, mamá, nunca tivem sorte. Sempre fum um pouco covarde para falar, para falar de qualquer cousa. E sobre isso… Si, mamá, como todo o mundo, eu tamém estivem mui namorada e fum mui feliz e despois…, despois cheguei a ser mui infeliz... Passa-lhe a quase todo o mundo. Nom, tu nunca soubeche como se chamava, quem era… Si, no apartamento de Rue des Plantes. Durou três anos. Muito, mamá. Rompeu-me o coraçom. 152
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Séchu Sende Alma
Há seis anos. Si. Si, era umha mulher. Ela e as outras que quigem dumha ou doutra forma. Mulheres, si. Mulheres como nós as duas. Nom, agora vivo sozinha, estou sozinha. Só espera por mim a rapariga que conhecim na cafetaria do aeroporto. Fôrom para o hotel em silêncio. Boa noite, mamá. Obrigadinho pola viagem. Clic, e apagou a luz. Chegárom à estaçom de autocarros um quarto de hora antes que o seu saísse. Tirou dous bilhetes na cabina da empresa... - Dous bilhetes?, perguntou a condutora do autocarro. - Si, dous bilhetes. - E o outro passageiro? - É passageira. É minha mae. Ainda que seja umha história demasiado longa para contar-lha em vinte segundos. Tem seis pessoas esperando a subir e mais de trinta assentos baleiros. Assim que, por favor, tenha os dous bilhetes, paguei por eles, som válidos, estou cansa e quero sentar. Se quere, despois conto-lhe a minha história... Sentou, ou sentárom, atrás da condutora, Eva deixou o assento da janela à alma de sua mae. E pujo-se a falar com a mulher que guiava o autocarro, que tamém tinha umha história que contar: - É umha história real, eh… Em Bertamiráns tivem um vizinho com que me dava mui bem. Era um comunista da velha escola, e morreu aos oitenta e pouco. Tinhalhe muito carinho. Morava no 1º A e eu no 2º B. A sua mulher ainda vive. Seu filho saiu-lhe da ultradireita, era da Falange, si, agora deve ter cinqüenta ou assim e o tipo saiu-lhe falangista ao pai, o tipo mais vermelho que conhecim. Cousas da vida. Pois quando estava a morrer, o velho pediu umha última vontade ao filho... E que lhe pediu? Que lhe cantasse a Internacional! - E sabes que? O filho cantou-lha. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Alma Séchu Sende
E a condutora do autocarro começou a trautear a cançom... Tararara rará E Eva continuou a cantar a letra, que a chofer trauteou em voz baixinha, ao começo. Logo fôrom subindo a voz, como num filme, como o momento dum climax, com voz mui alta, alegremente: Em pé as escravas da terra, em pé as que nom tenhem pam; a nossa naçom forte berra, o triunfo chega em vulcám. Quebremos o jugo do passado, povo de servas ergue já, que o mundo vai ser transformado e umha ordem nova vai reinar. Juntemo-nos todas, é a luita final, o género humano forma a Internacional. Eva ajudou a sua mae a descer do autocarro. - Aí estám os castanheiros. Olha, a fonte. E alá, atrás dessa urbanizaçom, deveria estar o mar. A chave continuava onde tinha que estar e entrárom na casa de janelas azuis. Fôrom em silêncio de quarto em quarto, olhando as fotos antigas, a cheirar a fechado. A torneira da cozinha estava partida, nom havia luz, a humidade comia as paredes... Ao pouco saírom. Caminhárom entre as ruelas, entre as casas fechadas. Algumhas caíram. A outras faltava-lhes pouco. Percorrêrom todas as ruas, de acima para baixo, do souto até a eucalipteira, da velha escola até o moínho, da oficina de chapa e pintura até o cadáver do trator vermelho, do canastro de pedra até o canastro de bloco e uralita, do prado onde morrera aquele neno picado polas abelhas até a porta da sua casa. A aldeia estava abandonada.
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Quando chegárom à Fonte dos Melros, olhou o céu, azulíssimo. - Adeus, mamá. Eva olhou através do ar a água da fonte e escuitou a água falar. Eva dixo: Quero-te. E botou a caminhar pola estrada, sozinha. Tinha que dar com alguém que consertasse a torneira da cozinha, e a luz, e comprar pintura...
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Mural de F. Velho Pinheiro no Casino Ferrolano. Entre os anos 1925-1936 Foto: Lucía Mato López
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RECOMENDAÇONS Três olhadas sobre Portugal 1.- A fronteira de ar de Galiza e Portugal
8º Relatório transfronteiriço EspanhaPortugal Observatório Transfronteiriço Espanha Portugal (OTEP) Maio 2017
A publicaçom do relatório periódico nº 8, de maio de 2017, polo Observatório Transfronteiriço Espanha-Portugal (OTEP), relativo ao tránsito fronteiriço, é umha boa ocasiom para comprovarmos a fortaleza dos vínculos entre a Galiza e Portugal. A fronteira de ar que nos une, do Penedo dos Três Reis (Ermesende/Samora, Mesquita/Ourense, Moimenta/Vinhais) até Santa Trega, mede 296 quilómetros: 24 % dos 1214 que delimitam a fronteira portuguesa com Espanha. Mais importante que o facto de compartilharmos quase a quarta parte do confim territorial português é o caráter poroso, aéreo antes, da raia galega que foi em tempos campo de confronto e titularidade disputada. Segundo os dados mencionados no relatório do OTEP, a Intensidade Média Diária, IMD, de veículos ligeiros nos postos fronteiriços galegos durante 2015 foi de 33.624, contra 27.920 no resto da fronteira com Espanha: 54,6 % contra 45,47 %. Ou, mais precisamente, 113,5 veículos por quilómetro na raia galega contra 21,6 na fronteira extragalega. Que os vínculos que permeiam o limes da Gallaecia Bracarense com a Lucense sejam tam ativos nada tem de particular, por mais que tenham sido tanto tempo linha de confronto e vigia permanente. - 157 -
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8º relatório transfronteiriço Joám Lopes Facal
2.- Dous Portucales num só, duas Galizas que som só umha Afirmava Orlando Ribeiro que Portugal era um país mediterránico com cabeça atlántica. Nós poderíamos dizer que a Galiza é atlántica com pés mediterránicos. Mediterránicos som os vinhedos ourensanos e durienses. Comuns as feiras e a joldra plebeia. Somos galaico-compostelanos de raiz bracarense, Portugal quer-se lusitana e estremenha, mas a sua raiz camponesa transparece em Briteiros, cidade irmá da nossa Santa Trega de Icónio, que já foi venerada no seu santuário de Selêucia de Isáuria no século IV pola nossa virgem Egéria, nascida nesta estrema ocidental. Quando nos assomamos à barragem da Caniçada, onde se irmanam o Câdavo e o Caldo, nom cremos estar contemplando as Rias do miradoiro da Curota? Galizas há também duas que som umha. A Galiza subsidiária que adere por costume à ordem constituída e a Galiza memoriosa que teima em repassar o fio azul da história negada para encontrar origem e projeto. A primeira prefere apoiar o poder, a segunda reinventá-lo. A primeira é imobilista, a segunda projetiva e performativa.
3.- A permanente crise de identidade: do passadismo sebastianista ao futurismo europeísta em jangada de pedra A saudade portuguesa tem mais de histórica que a nossa, tingida sempre de sentimento telúrico, mineral e vegetal. Somos geografia tanto como história, revelam-no-lo os poetas, do mar de Vigo aos tesos do Courel. A saudade portuguesa afinca em Alcácer-Quibir quando abria o último quartel o século XVI, e também no impossível Império de Pessoa, fresco ainda o procaz Ultimato de Lord Salysbury:
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Joám Lopes Facal 8º relatório transfronteiriço
“São ilhas afortunadas, São terras sem ter lugar, Onde o Rei mora esperando. Mas, se vamos despertando, Cala a voz, e há só o mar.”
Mas agora somos Europa. Estamos em dívida com a matriz romana, céltica e germana que ficou nos confins do mar de Ocidente. Europa decretou por fim a abertura da fronteira de ar que se pretendia petulante alfándega para a inspeçom de tapetes e café. Um estrangeiro doméstico mesmo aí ao lado sem porquê.
O medo de existir que José Gil creu observar em Portugal é o invés dos façanhosos azulejos que admiramos no Palácio lisboeta dos Marqueses da Fronteira. Obra “para inglês ver”, aponta a ironia portuguesa. Trabalhar para o inglês, dizemos nós para aludir ao trabalho sem remuneraçom. dezembro 2017 / KALLAIKIA
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8º relatório transfronteiriço Joám Lopes Facal
Agora que o inglês parece querer retirar-se ao paraíso impossível da saudade imperial, talvez tenha chegado o momento de renunciar a todo o protetorado, deixar aberta a fronteira de ar e aparelhar de novo os barcos da fortuna rumo afora. Ian Gibson, hispanista dublinês convicto, opina que umha república federal ibérica seria a soluçom mais idónea para arbitrar a concórdia neste pequeno continente de sangues, etnias e culturas misturadas que denominamos Península Ibérica. Bom momento para a proclama agora que anda todo revolto pola questom catalá e a inquietaçom que prende na gente quando ecoam sinos de identidade excludente. A República Ibérica, federal ou confederal, nom é, por sinal, ideia nova. Navega mesmo em jangada de pedra de Saramago, onde viaja Maria Guavaira ao encontro da sua casa na costa galega. O abalo na consciência coletiva espanhola por causa do movimento centrífugo que ensaia a Catalunha é compreensível; nom assi o excesso de dramatismo. Está bem que venha a lembrá-lo umha voz británica, ou irlandesa, para sermos mais precisos. Afinal, da muralha de Adriano, lá no Norte, o Reino Unido nom deixa de ensaiar fronteiras: a Irlanda nasceu do último ensaio. Seja como for que o vejamos, o facto de sermos europeus de convicçom poderia estimular a imaginaçom de espaços políticos alternativos. Porque nom umha Benelux sul-ocidental? O Tratado de Alcanizes quando Portugal era ainda Reino e Espanha se confundia com Castela fica um pouco recuado. Alcanizes e Tordesilhas som cerimónias inaugurais que acabam ganhando corpo no lume da memória coletiva e mesmo no código genético incutido em geraçons de escolares. Em Espanha, fala-se agora da especificidade das naçons culturais. Bom princípio, ainda que despreenda forte saibo a eufemismo defensivo em tempo de soçobra. Cultural? Está bem, mas, o que pensar dumha naçom de cultura transnacional e mesmo transcontinental, irremediavelmente unida ao tronco que lhe dá sentido por umha subtil fronteira de ar? Joám Lopes Facal 160
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Maurício Castro Lopes Reboquismo e dialética
Permita-se-me iniciar esta pequena resenha com umha reflexom prévia em torno da utilidade que a reintegraçom do galego no seu ámbito histórico-lingüístico tem para nos dar de maneira direta e concreta.
Reboquismo e dialética. Uma resposta aos críticos de História e consciência de classe György Lukács Boitempo Editorial São Paulo, 2015
György Lukács é tido por um dos maiores filósofos do século XX, apesar da sua condiçom de comunista que se mantivo toda a vida do outro lado da Cortina de Ferro. Contodo, a sua obra é pouco conhecida na Galiza, devido precisamente ao carácter subsidiário do nosso mundo cultural em relaçom ao espanhol. De facto, a maior parte da obra do grande autor húngaro, nascido em Budapeste em 1885 e morto nessa mesma cidade em 1971, está longe de ter traduçons disponíveis em espanhol. A que para muitos é sua principal obra, Para uma ontologia do ser social, foi traduzida só para umhas poucas línguas do mundo, entre as quais a nossa, em ediçom brasileira da Boitempo Editorial. Som, ao todo, quase 2.000 páginas (duas mil!), incluindo os chamados Prolegómenos, que só podem ser lidos em línguas como o alemám, o inglês, o japonês e o italiano, além do galego-português. Queremos, com este exemplo significativo, sublinhar a importáncia de umha orientaçom adequada da nossa vida lingüístico-cultural, que permitiria que qualquer galega ou galego acedesse a um vastíssimo tesouro cultural formado polas produçons editoriais dos mundos hispano e galego-luso-brasileiro. Claro que, para isso, seria preciso nom só passarmos a en-
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Reboquismo e dialética Maurício Castro Lopes
sinar e aprender galego na sua forma escrita histórico-etimológica ou reintegracionista, mas também estabelecer os relacionamentos normalizados com Portugal e Brasil, que permitissem fazer circular com facilidade todo esse património. Na atualidade, nada disso acontece. Nem o galego é maioritariamente adaptado à escrita substancialmente comum do nosso mundo cultural, nem as instituiçons galegas mostram interesse nesses relacionamentos que tanto enriqueceriam o nosso povo. Daí que a obra que nesta ocasiom comentamos, sendo, no caso das línguas peninsulares, só acessível em galego do Brasil ou em castelhano da Argentina, fica difícil de consultar, a nom ser mediante a encomenda ao gigante sul-americano. Na verdade, a obra mais conhecida de Lukács entre nós é História e consciência de classe, provavelmente por ter sido traduzida para espanhol já desde 1969 em ediçom mexicana, com algumha circulaçom no Estado espanhol, e mais tarde em Barcelona no ano 75. Também o conteúdo original e inovador no campo do marxismo (escrita e publicada em 1923) a converteu num referente teórico na recuperaçom das raízes dialéticas do marxismo contra a degeneraçom positivista protagonizada naqueles anos por teóricos da II Internacional, como o velho Karl Kautsky, e por alguns teóricos do bolxevismo, como Nikolai Bukharine. A reivindicaçom do papel da subjetividade revolucionária e a crítica ao materialismo naturalista coincide com uns anos de ascenso revolucionário (o próprio Lukács participou da revoluçom conselhista húngara de 1919, que durante uns meses tomou o poder até ser derrotada pola reaçom). Frente ao economicismo de raiz natural-cientifista que irá também tomando conta da linha oficial soviética nos anos seguintes, coincidindo com o fim do ascenso revolucionário, Lukács revindica ainda o carácter social e a totalidade como “território da dialética”, reduzindo o papel da ortodoxia marxista à assunçom do método dialético como exigência.
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Maurício Castro Lopes Reboquismo e dialética
A receçom de História e consciência de classe por parte da ortodoxia soviética foi muito negativa, sendo acusada de “subjetivista” e “revisionista” por dirigentes soviéticos como Grigori Zinoviev e já referido Nikolai Bukharine, assi como polo filósofo soviético Abraám Deborin e o húngaro László Rudas. Para dizer a verdade, o próprio György Lukács irá renegar a partir dos anos 30 da sua obra mais conhecida, tal como Michael Löwy explica no prólogo do volume que resenhamos, devido ao seu pendor “idealista” na avaliaçom da “consciência” ou “subjetividade” revolucionária, segundo as suas próprias palavras. No entanto, durante décadas, ficou no esquecimento a existência deste texto de resposta aos seus críticos da sua obra de 23. Só no fim da URSS, o acesso aos arquivos da Comintern em Moscovo permitiu conhecer este Reboquismo e dialética, em que Lukács se defende dos ataques de Rudas e Deborin. Agora sabemos que Lukács tentou publicar essa resposta depois desses ataques em publicaçons da Comintern, em 1924. Referimo-nos à obrinha (polo seu tamanho reduzido) que comentamos, muito significativa na trajetória do filósofo húngaro, e que acabaria por ficar “perdida” sem chegar a ser publicada em vida de Lukács. A consciência de classe, a teoria do partido e a dialética da natureza som os principais temas abordados neste ensaio de resposta, que reafirma a importáncia da subjetividade na dialética do andamento histórico dos processos revolucionários. Daí partirá o título, que inclui um neologismo habilitado em galego-português como derivaçom do substantivo “reboque”: reboquismo seria qualquer cousa como o seguidismo ou a dependência em relaçom à marcha objetiva da história, com total prioridade sobre umha eventual intervençom consciente do sujeito. Lukács enfrenta assi o positivismo determinista de matriz kautskiana, que terá ampla difusom em nome do marxismo ao longo do século XX, ao ponto de chegar a popularizar-se a identificaçom entre marxismo e determinismo histórico. Que já na década de 20 detetasse essa deturpaçom e se reivindicasse a dialética e a importáncia da intervençom consciente no curso da história, fai de Lukács um representante da recuperaçom dezembro 2017 / KALLAIKIA
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Reboquismo e dialética Maurício Castro Lopes
da autenticidade do pensamento marxiano, frente às diversas deformaçons subordinadas à chamada ideologia do progresso. Em definitivo, este livrinho, descoberto e publicado nos anos 90 e agora traduzido para a nossa língua, apresenta-se como mais um contributo, tam antigo como atual, para o combate à esclerotizaçom sofrida polo potencial analítico e transformador da obra de Karl Marx. Um texto escrito há uns 90 anos por um dos grandes filósofos do século XX, fiel durante a sua longa vida ao estudo e divulgaçom da teoria revolucionária nom só no campo estritamente filosófico, mas também na teoria literária e na estética. Ainda crítico explícito das limitaçons das experiências socialistas do leste da Europa, umha sentença de György Lukács ficou para a história como definitória da sua atitude perante o confronto entre os dous mundos: “O pior socialismo é preferível ao melhor capitalismo”.
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