Revista Kallaikia nº 1 Edita: Associaçom de Estudos Galegos (AEG) Galiza, outubro de 2016 aestudosgalegos@gmail.com www.aeg.gal É permitida a reproduçom de qualquer parte desta revista, sempre referindo expressamente a fonte. Diagramaçom: SETEDOUS agência para a comunicaçom Impressom: SACAUNTOS Imagem da capa e ilustraçons interiores: Imaxen surreal de Galicia. Xaime Quessada. Cortesia da Fundación Xaime Quesada. Depósito Legal: ISBN:
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ÍNDICE apresentaçom Colaboradoras [p. 4] Apresentaçom e saudaçom iniciais [p. 8]
artigos A Irlanda: a grande beleza. O levantamento da Páscoa de 1916 [p. 11] As ‘Irmandades da Fala’ e a Galiza (nova) do primeiro terço do século XX [p. 39] Umha literatura para construir país: As “Irmandades da Fala” [p. 50] Internacionalismo operário em tempo de Irmandades [p. 64] Valorizaçom do critério da coerência sistémica para patentear a superior adequaçom da codificaçom reintegracionista no ámbito da estagnaçom e suplência castelhanizante do léxico galego [p. 77] Aproximaçom à situaçom lingüística do Quebeque [p. 102]
poemário Poder contar os dias (um disparo poético) [p. 117] Acordado morto [p. 118] Carta imaginária a um torturador [p. 119] Que a distáncia nom se torne silêncio [p. 120] Selvagem [p. 121]
contos Silvas, tojeiras, gesteiras [p. 122] Deisy [p. 123]
recomendaçons Imperialismo, fase superior do capitalismo [p. 126] Frouma de Ruivéns. O sonho que na tua língua mora [p. 129]
biografia
José Velo Mosquera, revolucionário puro e cavaleiro da utopia [p. 132]
GALERIA Imaxen Surreal de Galicia. Xaime Quessada [p. 10,38,61, 101,125] 2
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ComitÉ de redaçom
Maurício Castro Lopes - Carlos Garrido Rodrigues Beatriz Bieites Peres - Paulo Painceiras Rico - Raquel Paz Lopes
Conselho de redaçom
Jorge Rodrigues Gomes - José A. Souto Cabo - José M. Dias Cadaveira - Paulo Valério Árias - Joám López Facal - Dores Valcárcel Guitiám - José Luís Ferreiro Caramês - Helena B. Sabel - José A. Corral Iglésias - Afonso Mendes Souto.
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COLABORADORAS Maurício Castro Lopes (Ferrol, 1970)
Docente de Português na Escola Oficial de Idiomas de Ferrol, autor ou co-autor de obras divulgativas, como a História da Galiza em Banda Desenhada (1995), Manual de Iniciaçom à Língua Galega (1998), Manual Galego de Língua e Estilo (2007) ou Galiza Vencerá! (2009). Participante no grupo promotor do primeiro Centro Social reintegracionista em defesa do galego, aberto pola Fundaçom Artábria em Ferrol no ano 1998. Membro fundador do sítio informativo online Diário Liberdade em 2010. Entre 2007 e 2015, membro da Comissom Lingüística da AGAL. Na atualidade, membro da Comissom Lingüística da Associaçom de Estudos Galegos (CL-AEG).
José Alberte Corral Iglesias (Corunha, 1946)
Estudou Professorado Mercantil, Licenciatura em Ciências Económicas e jornalismo na U.C.V. de Caracas. Cofundador, em 1963, da Agrupaçom Cultural O Facho. Miliante de organizaçons clandestinas antifranquistas e anticapitalistas, o que o levou a fugir para o Chile de Salvador Allende. Autor de: Del Amor y la memoria, poesia em castelhano (1ªed. Ateneo de los Teques-Venezuela, 2ª ed. Emboscall-Vic); Palavra e Memória, poesia (Agal-Galiza- 2ª ed. em catalá em Emboscall-Vic), A carom da Brêtema, poesias (Agal-Galiza), Do lusco-fusco, relatos (Baia Edicións-Galiza), Detrás da palavra, poesia (Agal-Galiza), Buracos no espelho, relatos (Agal-Galiza), O livro de barro, poesia (ToxosOutos-Galiza), Janela Aberta, relatos (Através-Galiza), Gume de navalha, poesia (Emerxente-Galiza), A Pena do vigia, relatos (Guímaro-Galiza).
Henrique Da costa López (Ferrol, 1964)
Professor e escritor. Prémios Carvalho Calero: Mar para todo o sempre (1991), Sobre comboios, janelas e outras pequenas histórias (1993), Unha mada de doce relatos (2006). Finalista, com Ruiva mulher de esperança, no <<I Certame de Relato Curto, A.C.Cidade Vella>>: Muralla de Crescórnio (1989). Em coletâneas de relatos: Diálogo de xordos, em Longa lingua. Os contos da Mesa (2002); Ouro maldito, em Seis ferroláns (2003); Cabo do mundo, em Premios Pedrón de Ouro. Certame de Narración Breve M.R.Fi4
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gueiredo; e Soñaba, em En defensa do Poleiro. A voz dos escritores galegos en Celanova (2010). Escreveu os romances Os desherdados (2006), O prezo da tentación (2008), Entrada ao xardín do saber (2014); e o manual Ferroláns na Historia da Literatura Galega (2007). Articulista em revistas e periódicos (Agália, ANT, Ferrolanálisis, Columba, Ólisbos, Poesía Galicia, etc.). Colabora no Diario de Ferrol.
Uxío-Breogán Diéguez Cequiel (Madrid, 1978)
Doutor em História pola Universitat de Barcelona. Professor da Universidade da Corunha e diretor de Murguia, Revista Galega de História. Especialista na história do nacionalismo galego e nos movimentos sociais na Galiza contemporánea. Autor de diversas obras, como som: A Asemblea de Concellos de Galiza Pro-Estatuto (Fundación Alexandre Bóveda, 2002), Álvaro de las Casas. Biografía e documentos (Galaxia, 2003), Alexandre Bóveda nos seus documentos (Cátedra Alexandre Bóveda/Difusora de Letras, Artes e Ideas, 2010) ou Nacionalismo galego aquén e alén mar. Desarticulación, resistencia e rearticulación (Laiovento, 2015); coautor doutras, caso de Antón Moreda. Memória do exílio (junto Antom Santos; Asociación Galega de Historiadores, 2010) ou Síntese do movimento obreiro galego. Das orixes até 1984 (junto a Dionísio Pereira e Bernardo Máiz, Fundación Moncho Reboiras, 2010) ou As Irmandades da Fala (Laiovento, 2016).
Eliseo Fernández Fernández (Ferrol, 1967)
Licenciado em Documentaçom, é pesquisador da história dos movimentos sociais na Galiza, especializado na história do anarquismo e do movimento operário. Tem escrito diversos trabalhos nestas questons, sendo autor dos livros José López Bouza: do anarquismo ao republicanismo e Obreirismo ferrolán, e coautor de Unha biblioteca obreira: o Centro Obrero de Cultura (com Rafael Corrales Siodor), O anarquismo na Galiza: apuntes para unha enciclopedia e O movemento libertario en Galiza (com Dionísio Pereira). Tem participado na coordenaçom científica do Congreso da Memoria (Narón, 2003) e do Congreso da Guerrilla (A Corunha, 2009), e também colaborou em inumeráveis iniciativas em volta da recuperaçom da memória histórica. Há tempo que desenvolve atividade militante em organizaçons libertárias como o grupo anarquista “Unión Libertaria” de Ferrol e o sindicato CNT.
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Carlos Garrido Rodrigues (Ourense, 1967)
Doutor em Biologia pola Universidade de Santiago de Compostela e licenciado em Traduçom e Interpretaçom pola Universidade de Vigo. Estudioso da língua especializada, lexicógrafo e tradutor científico, Carlos Garrido é professor titular da Universidade de Vigo, onde leciona Traduçom de Textos Científicos e Técnicos Inglês/Alemám–Galego, foi membro da Comissom Lingüística da AGAL (2000–2015) e agora o é da Comissom Lingüística da Associaçom de Estudos Galegos (CL-AEG) e compujo, entre outras obras, Dicionário Terminológico Quadrilíngue de Zoologia dos Invertebrados (1997), Manual de Galego Científico: Orientaçons Lingüísticas (2000, 2010), Aspectos Teóricos e Práticos da Traduçom Científico-Técnica (2001), Léxico Galego: Degradaçom e Regeneraçom (2010) e A Traduçom do Ensino e Divulgaçom da Ciência (2016).
Carlos López Bernárdez (Vigo, 1958)
Professor de Língua e Literatura Galegas, licenciado em Geografia e História, secçom da História da Arte, e ensaísta de temas literários e artísticos. Tem publicado numerosos livros sobre crítica literária e arte galega contemporánea. Entre outros títulos, é autor de: Lorenzo Varela: Vida e obra, (2005); Breve historia da arte galega (2005); Do idilio á diáspora. Modernidade e compromiso na pintura galega de Castelao a Seoane (2012).
Joám Francisco Lopes Peres (Sam Mateu de Trasancos, Narom, 1962)
Funcionário da Junta da Galiza, licenciado em História, seçom História Contemporánea, estudante de Antropologia Social e Cultural, Guia Turístico da Galiza. Presidente da Associaçom de Amizade Galiza-Vietname.
Raquel Paz Lopes (Ferrol, 1981)
Licenciada em Filologia Francesa e Portuguesa pola Universidade de Santiago de Compostela e é professora de francês na Escola Oficial de Idiomas de Compostela. Em 2013 realizou umha estadia na Universidade McGill em Montreal. Fai parte parte da Comissom de Defesa da Língua na Asssociaçom Cultural A Gentalha do Pichel. 6
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Miguel Urbano Rodrigues (Moura, 1925)
Foi redator do Diário de Notícias entre 1949 e 1956, chefe de redaçom do Diário Ilustrado (1956 e 1957), antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal de O Estado de S. Paulo (1957 a 1974) e editor internacional da revista brasileira Visão (1970 a 1974). Regressado a Portugal após a Revoluçom dos Cravos, foi chefe de redaçom do Avante! em 1974 e 1975 e diretor de O Diário entre 1976 e 1985. Foi ainda assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1974-75), presidente da Assembleia Municipal de Moura em 1977 e 1978, deputado à Assembleia da República polo Partido Comunista Português (PCP), entre 1990 e 1995, e deputado às Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da Uniom da Europa Ocidental, tendo sido membro da Comissom Política desta última. Tem colaboraçons publicadas em jornais e revistas de duas dezenas de países da América Latina e da Europa e é autor de mais de umha dezena de livros publicados em Portugal e no Brasil.
Ramiro Vidal Alvarinho (Ferrol, 1973)
Atualmente residente na localidade de Santa Cruz de Oleiros. Militou no ambientalismo, na defesa da língua, na luita anti-repressiva e em diversas organizaçons da esquerda patriótica. Escreve poesia, relato, e artigo de opiniom. É desempregado e discapacitado. Na atualidade é Presidente da Associaçom Cultural Santa Cruz Aberta ao Mar.
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APRESENTAÇOM
Apresentaçom e saudaçom iniciais
Desde que surgiu a necessidade de ser criada umha entidade como a Associaçom de Estudos Galegos (AEG), vocacionada para o estudo e a divulgaçom científica do padrom galego e da nossa língua, com umha conceçom reintegracionista, logo se concluiu a necessidade de umha publicaçom própria orientada a esses mesmos objetivos. Kallaikia é a concreçom dessa ferramenta com a qual comunicarmos com o público galego, servindo ao mesmo tempo de espaço aberto para a produçom científica e artística, sempre com a Galiza como principal ponto de partida e de chegada. Julgamos, com esta iniciativa, estar a preencher um espaço necessário e nunca suficientemente atendido: o da produçom e divulgaçom teóricas, de teor inequivocamente científico e vontade transformadora no sentido que os nossos Estatutos estabelecem como próprios da AEG. 8
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Assim, os trabalhos relativos ao corpus e status da nossa língua terám um lugar permanente nas páginas da Kallaikia, mas também outras áreas das ciências sociais e naturais, assim como as artes, com umha perspetiva de inequívoco serviço à construçom nacional da Galiza. Isso nom significa que os conteúdos da nossa revista vaiam ficar restritos nas fronteiras galegas. Ao invés, afirmamo-nos como entidade e revista galega, como melhor forma de exercer, a partir deste canto da Europa ocidental, a verdadeira forma do universal, que sempre se expressa através da identidade nacional que a cada coletivo humano corresponde. Sendo a nossa vocaçom de estudo e divulgaçom, convidamos desde já as pessoas que nos leem para participarem no projeto que agora começa a andar. Desde a simples leitura, até a assinatura permanente, passando polo envio de trabalhos que julgarem de interesse, som muitas as formas de colaboraçom com a Kallaikia. Além do mais, fazemos questom também de favorecer a máxima divulgaçom da publicaçom da AEG por todos os meios possíveis, digitais e impressos. Agradecemos desde já a colaboraçom de todas as pessoas que escrevem neste primeiro número e a todos vós, leitores e leitoras, convidamosvos a tornar-vos desde já assinantes da Revista Kallaikia.
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Daniel Niebla e Amador Rey. Imaxen Surreal de Galicia Xaime Quessada.Off-set sobre lรกmina. 490x300mm. Akal Editor. 1977
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ARTIGOS
A Irlanda: a grande beleza. O levantamento da Páscoa de 1916 Joám Francisco Lopes Peres
A Revolta irlandesa de 1916 fijo cem anos 24 de abril. Aquele dia era umha segunda-feira da Páscoa. É assim que a celebraçom da efeméride coincide sempre com a data bíblica da qual o nome foi adotado. Um dado ilustrativo da importáncia que o facto religioso ganhou no conflito irlandês. Mas importáncia nom é substáncia. A substáncia é o domínio colonial que a Irlanda vinha sofrendo desde mais de setecentos anos. Umha potência situada na ilha do lado, Inglaterra, que fora capaz de erguer o Império británico, enorme extensom que na altura se estendia pola quarta parte da superfície terrestre. Um império que, auto-imbuído do seu papel civilizador, semeou exploraçom, dor, sangue e lágrimas; como o espanhol, como o francês, o russo ou o estado-unidenses. Como todos. Tam distintos e tam unidos nestas caraterísticas. Conn Hallinan, professor de Jornalismo na Califórnia, marxista e filho e neto de irlandeses, fala num magnífico artigo recente 1 dos aniversários como umha mistura entre mito e memória. É assim, ele mesmo confunde a data e situa o dia como 24 de março, em troca de 24 de abril. Mas acerta no fundamental, o colonialismo como doença, o nacionalismo como antídoto, o sacrifício de sangue como tentativa de remédio e a atual realidade da Naçom Irlandesa em que as divisons persistem. - 11 - outubro 2016 / KALLAIKIA
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A Irlanda: a grande beleza Joám Francisco Lopes Peres
Revolta da Páscoa: fracasso tático e vitória estratégica, podíamos resumir, numha frase nada original e utilizando a terminologia militar e política (tantas vezes iguais). Porém, há bem mais cousas: socialistas irlandeses a luitar a morte junto a republicanos, nacionalistas radicais, patriotas místicos e mulheres protagonistas e combatentes, textos políticos inéditos na sua terminologia até daquela. E também nom devemos separar esta sublevaçom da posterior guerra contra a metrópole de que foi o primeiro degrau, nem da guerra civil que foi o epígono. Última fase, mas nom derradeira, nunca há fim da História e na Irlanda menos do que em nengum lugar 2 . Hoje, o País ainda nom está unificado, nem sequer a celebraçom foi unitária. Os oficiais, Fine Gael, Fianna Fail e laboristas por um lado, o Sinn Fein em Belfast e outros pequenos grupos cindidos noutro lugar e data. Para nom falarmos dos unionistas do Nordeste, que odeiam qualquer mençom a umha data para eles infausta. Existe, porém, dentro do concerto das naçons, um Estado irlandês em forma de República, tam independente como qualquer outro. Um Estado que fai parte dos ditos PIGS, mas ainda assim goza de um alto nível de vida, longe das fames e misérias do passado, nom tam remoto. Invadida polas multinacionais norte-americanas como ponte com a U.E 3 , a Irlanda sofre duros cortes polo resgate da Troika, mas nom piores do que outros e, nom há dúvida, a realidade de um Estado próprio melhora as expetativas de justiça futura. Os Acordos de sexta-feira de Paixom 4 pudérom trazer a paz, que nom totalmente, mas ficam longe de resolver o conflito. A bandeira tricolor da República irlandesa, verde pola Erin, cor de laranja como concessom aos descendentes presbiterianos dos colonos emigrados da metrópole e da Escócia com o branco no meio como símbolo de paz, nom serviu para convencer os orangistas. A divisom persiste, quanto tempo e em que condiçons será cousa do futuro. Quanto a nós, vamos tentar fazer luz sobre como e porque foi que se chegou a isto. O que foi e o que é a Irlanda, Eire em irlandês, a luita pola independência, o nacionalismo, o supremacismo da poderosa minoria nortenha, e sobretodo essa rebeliom que Yeats qualificou como grande beleza. A relaçom afirmada e negada entre a Galiza e a Irlanda e as visons exteriores ao conflito som temas que haverá que deixar por falta de espaço. Mas, sem dúvida, há fontes para a informaçom e o debate sobre isto que o leitor saberá encontrar. De resto, se a leitura chegou até aqui mesmo, o que vem é fácil, pois há curiosidade, e sem curiosidade nom há História.
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Joám Francisco Lopes Peres A Irlanda: a grande beleza
O espaço e a sua história O caráter insular constitui umha caraterística sobranceira da geografia irlandesa. É a terceira ilha maior do continente europeu, com 89.015 km 2, para compararmos, um pouco maior do que o Portugal continental, que tem 84.431. Ainda assim, a proximidade com a ilha da Gram-Bretanha é evidente. O Canal de Sam Jorge a Sul separa-a do País de Gales e o canal do Norte da Escócia, no meio o mar da Irlanda fai-no de Inglaterra. Entre esta e Inglaterra há umha outra ilha, a de Man. Esta ilha, de algo menos de 600 km 2 e 80.000 habitantes, é umha das seis naçons da Liga Céltica. Mannin (Ilha de Man) Breizh (Bretanha), Kernow (Cornualha), Alba (Escócia), Cynru (País de Gales) e Eire (Irlanda), tem um caráter cultural e também cada vez mais político e económico. Apesar da sua latitude nortenha, a Irlanda tem um clima temperado, modificado pola corrente Norte-Atlántica, continuaçom da corrente do Golfo. O país é umha planície rodeada de montanhas de pouca altitude, o monte mais alto tem pouco mais de mil metros. As precipitaçons som abundantes, como na Galiza e, embora nom tenha zonas de influência mediterránica como o nosso país, apresenta umha gradaçom em baixa entre o Oeste e o Leste. Ainda que nom gele habitualmente, as suas terras, salvo exceçons, nom som muito apropriadas para a agricultura. Tem mais de 12.000 km 2 de pántanos cheios de turfa que se explora desde sempre. Aliás a especializaçom forçada polo colonialismo británico, com propriedade da maioria e das melhores terras dedicadas ao gado bovino, forçárom a monocultura da pataca polos pequenos propietários irlandeses, já que este era o único cultivo capaz de garantir a sua sobrevivência em terreios tam pequenos. A peste do míldio, em 1845, provocou mais de um milhom de mortos e a emigraçom forçada de mais dous. A memória desta grande fame permanece viva na Irlanda e, como veremos, tivo conseqüências na luita pola emancipaçom. Quatro som as regions históricas da Irlanda: Connachta, Laighin, An Mhumhain e Cuige Uladh, (Connacht, Leinster, Munster e Ulster em inglês). Esta última regiom histórica está dividida entre a República da Irlanda (três condados) e os seis pertencentes ao Império británico, conhecidos como Irlanda do Norte ou Ulster, ambos os dous termos inexatos. Como veremos mais tarde, as causas da separaçom nom fôrom as razons geográficas, culturais (era a zona do país mais gaeltacht, ou seja, com maior número de falantes de irlandês) ou históricas, nunca até 1920 foi comunidade distinta; mas sim foi a que sofreu com maior intensidade e profundidade a colonizaçom británica. outubro 2016 / KALLAIKIA
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A Irlanda: a grande beleza Joám Francisco Lopes Peres
A populaçom atual irlandesa nom chega a 6 milhons e meio de habitantes, por volta de 75 por km 2, a Galiza supera ainda os 90. Há um facto que alerta sobre o drama irlandês, que já comentamos: em 1820, a populaçom superava os 8.250.000 habitantes. Em 1916, aquando da Revolta, ultrapassava por muito pouco os 4 milhons 5. Felizmente, a República do Eire tem aumentado muito o seu nível de vida nos últimos anos, apesar da crise e do resgate, com as duras condiçons da Troika. Goza de umha renda média de 46.000 €, obscurecida por umha dívida de 107,54% do PIB, aumentou a sua esperança de vida até 81,4 anos e orgulha-se de ocupar no Índice de Desenvolvimento Humano o 6º lugar, à frente da antiga metrópole, com o mesmo índice que a Alemanha. Para o ano de 2014, de onde tiramos os dados, o Reino de Espanha ocupava o lugar 26. A Galiza, se fosse considerada, baixaria até o 27. Com todos os problemas passados e futuros, nom parece que a Irlanda e o seu povo se dessem assim tam mal com a independência. Hoje o nível de vida é superior no Eire do que nos seis condados do Nordeste. Sofrido povo, porém.
O CENTENÁRIO DA MuDANÇA1916-2016 CAUSAS DE mOrTE
pOpULAçOm
1911 2011
3,139,688 4,588,252
aumento
46%
mOrTES
1911
2014
16,1 mortes por 1000
6,3 mortes por1000
20%
80%
das mortes ocorrerom na fraixa dos 0-15 anos
das mortes ocorrêrom na faixa dos maiores de 65 anos
mOrTANDADE iNFALTiL (ate os 12 meses)
1911 2011
81 mortes por cada 1.000 nascimentos
3,7 mortes por cada 1.000 nascimentos
Gripe Tuberculose Diabetes Bronquite Coronárias Suicídio
1916
2014
712 6.471 239 4.164 5.373 68
27 25 474 22 5.779 459
1916
2014
Católico
92
60
Igreja da Irlanda/ Presbiterianismo
7
2
Civil
1
28
0,5
10
Outros
ESpErANçA DE ViDA Homens Mulheres
CASAmENTOS (em %)
1911
2014
53,6 54,1
48,3 82,7
2014 outros inclui outras religions e Humanismo
AUTOCArrOS
1911
2015
1915
2014
7,302
80.900
9.850
1.900.00
Dados referidos a Ilha da Irlanda
Dados referidos à República da Irlanda
193 vezes mais carros registados em 2014
Umha breve incursom pola história irlandesa é também imprescindível para entendermos a Revolta de 1916. Diferentes estudos genéticos explicam a ocupaçom da ilha a partir de distintas direçons. O professor de genética humana Byan Sykes, da Universidade de Oxford, no seu livro The Blood of the Isles, baseado no ADN de 10.000 pessoas voluntárias, tem estabelecida a tese de que desde 14
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Joám Francisco Lopes Peres A Irlanda: a grande beleza
há 6.500 anos a emigraçom teria sido desde o Norte da Península Ibérica para o conjunto das ilhas británicas. Também Spencer Wells 6 coincide na existência de um haplogrupo (R1b) que uniria a Europa atlántica. Semelha que o mito de Breogám, que tantas risadas tem produzido, descansa nalgum fundo de verdade, com alguns outros. Mas a história começa na Irlanda da mao do cristianismo, toda vez que os romanos nom pensárom que, no que eles chamárom Hibérnia, houvesse qualquer cousa de útil. E foi um britano, Patrício 7, quem o levou, primeiro vendido como escravo na ilha, para depois voltar com o evangelho na mao. Dim que utilizava o trevo de três folhas para explicar o mistério insondável da Santíssima Trindade, tam abundante nas terras irlandesas. Dim que por isso foi o símbolo da Irlanda, substituído agora na iconografia oficial pela harpa irlandesa de Brian Boru (Boroimhe) rei de Cashel. A Sam Patrício atribuía-se o livro de Armagh, em que aparecem textos em gaélico. Hoje sabemos que data de duzentos anos depois, de 808 ou 809. Som os primeiros textos em prosa gaélica. Manuscritos como este, ou o famosíssimo Livro de Kells, ou também o livro de Durrow, som patrimónios da humanidade. Nom há que esquecer tampouco a literatura oral exercida polos seanchai “narradores de contos”, assim como as sagas poéticas, mesmo conhecemos o nome de um dos poetas do século VI: Dallán Forgaill. Fôrom estes séculos umha autêntica Idade de Ouro para a Literatura irlandesa, mesmo Tomas Cahill, nova-iorquino, umha vez mais filho de irlandeses, defendeu a tese de que os irlandeses salvárom a cultura europeia 8 . Nos princípios do século X, Boroinhe (Brian Boru na traslaçom inglesa), rei de Caiseal Murrohan, no Munster, unificou o País. Sempre em combate com os vikings, que tinham ocupado grandes territórios sobretodo na área envolvente de Dublin. A unidade nom durou e diversos senhores feudais repartírom a ilha. A existência de um Ard Rí na hÉireann, que podíamos entender como Rei supremo da Irlanda, nom representava poder de facto, como costuma ser no primeiro feudalismo europeu. Cem anos depois da invasom normanda de Inglaterra e da derrota em Hastings do último rei saxom em 1066, ocorreu a da Irlanda 9. A disputa entre Rory O’Connor, rei de Connacht, considerado o derradeiro Ard Rí e Diarmuid MacMorrough, provocou a intervençom e conquista, que foi, do ponto de vista militar, continuaçom da do País de Gales. Henrique II, apoiado polo papado, estabeleceu o Senhorio da Irlanda, ratificado polo Tratado de Windsor de 1175. Nos dous séculos outubro 2016 / KALLAIKIA
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A Irlanda: a grande beleza Joám Francisco Lopes Peres
posteriores os senhores normandos integrárom-se na sociedade irlandesa “Hibernis ipsis Hiberniores” tam irlandeses mesmo como os irlandeses. Por causas compreensíveis, nem a monarquia nem o Parlamento inglês gostavam desta mestiçagem e no ano 1366 promulgárom os Estatutos de Kilkenny, que proibiam os casamentos mistos, o uso de roupas irlandesas, o uso do irlandês para nom nativos, e inclusive jogos irlandeses como o hurling. Pouco depois, em 1400, construírom a chamada English Pale, umha regiom fortificada de mais de vinte milhas de comprimento, com um enorme valado e várias fortalezas. Os muros atuais de Belfast tenhem avôs bem antiguos. Dublim e muitas vilas da área envolvente ficavam sob domínio exclusivo da coroa, defendidas contra o que denominavam inimigos gaélicos. Mesmo ainda hoje em dia o termo é utilizado no discurso contemporâneo irlandês para se referir ao Concelho de Dublim e cidades-dormitório, geralmente de forma crítica, como denúncia do centralismo capitalino. Em 1494, o Parlamento irlandês de Drogheda, que já nom era grande cousa, fica subordinado ao inglês pola Lei de Poyning 10 . Em 1541 é este Parlamento inglês que proclama Henrique VIII Rei da Irlanda, concluindo a Era do senhorio. A Reforma de Henrique VIII, secundada por Eduardo VII e Isabel I, nom foi aceite pola grande maioria do povo irlandês. Lembremos que o rei ou rainha era e é o cabeça da Igreja anglicana, portanto umha nom aceitaçom deste cesaropapismo é na realidade um ato de sublevaçom em si. É para nós um erro interesseiro, pois, ficar no mantra de que foi o conflito religioso o que provocou o político. Na verdade, um conflito nacional, anticolonial e político adotou formas de resistência religiosa, entre outras. Isto foi assim avant la lettre, nom necesitárom os povos de definiçons atuais na história para saberem quem era o inimigo. As duas rebelions de Desmond no Munster e a guerra dos Nove Anos (1594-1603) inaugurárom um período de conflitos sem trégua, dirigidos polos optimates gaélicos que buscárom e encontrárom o apoio dos Habsburgo ibéricos para a sua causa. Com a derrota de Kinsale e a chamada Fugida dos condes, finda a ordem gaélica. Os senhores irlandeses num erro de estratégia, procurárom agasalho num Império espanhol que já nom estava para mais guerras e que buscava a paz com Inglaterra. A partir daí, começa a colonizaçom do Ulster, até entom a regiom mais gaélica. Em 1607, confiscam-se as terras dos rebeldes. Muda a estratégia e nom se estabelecem grupos isolados, mas grandes concentraçons de colonos. E fai-se como umha joint venture británica. Para contentar o reino da Escócia, metade dos colonos eram desta nacionalidade. Os irlandeses só ficárom com umha quarta parte das terras do Ulster, com proibiçom expressa de compra ou aluguer sobre os três quartos restantes. Os Un16
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Joám Francisco Lopes Peres A Irlanda: a grande beleza
dertakes, pessoas abastadas de Inglaterra e Escócia, tinham o mandato de atrair arrendatários dos seus lugares de origem. Cada um possuía 3000 acres (12.000 km 2) tendo que receber 20 famílas no mínimo, que deviam ser de fala inglesa e religiom protestante. Os grémios da cidade de Londres recebêrom também a sua parte na beira do río Foyle, ali construírom o que chamárom Londonderry, confrontada na outra margem pola irlandesa Derry. A tentataiva de criar umha nova comunidade de defesa composta de súbditos británicos leais, triunfou até os dias de hoje 11. Umha rija e generalizada crise abrangeu a Europa de meados do XVII. Lembremos; coincidem a sublevaçom da Catalunha, a rebeliom de Portugal, a Fronda francesa, as revoltas de Nápoles e Sicília, o recrudescimento da guerra nos Países Baixos, a Guerra dos Trinta Anos... para o espaço británico, Trevor Royle 12 fala da Guerra dos Três Reinos (Escócia, Inglaterra e Irlanda); para nós o que se produz na Irlanda é primeiro um ataque aos colonos do Ulster e depois umha dura repressom e “pacificaçom” da Irlanda. Diferente radicalmente da Revoluçom que se produz na Escócia e sobretodo em Inglaterra. É verdade que os terratenentes gaélicos que restavam provocam as matanças 13 possivelmente como reaçom à Revoluçom inglesa, mas nom há nengum programa de mudança política. Na etapa chamada da Irlanda Confederada, os confrontos som resultado dos alinhamentos produzidos pola mesma Revoluçom inglesa e posterior guerra civil. Cromwell, lider do parlamento inglês e ditador de Inglaterra, esmagará a confederaçom realista. A importância do processo vem dada por situar no imaginário coletivo da populaçom colona do Ulster o temor e ódio à maioria católica e a sua vontade de resistir a ultrança, que chega até os dias de hoje, concretizada nas palavras de orde No surrender them, no surrender now. Seria porém um presbiteriano (calvinista) Wolf Tone, quem em 1791 publicaria o livro Argument on Behalf of the Catholics of Ireland e, junto a Grathan e outros, a reivindicarem a igualdade dos católicos e a derrogaçom da Lei Poyning. Umha visom radical e revolucionária fijo agromar o primeiro nacionalismo digno de tal nome na Irlanda 14 , Assim de maneira sincrónica com os Estados Unidos e a Revoluçom francesa, a Irlanda tivo o seu papel dentro das chamadas por Hobswan, entre outros, Revoluçons atlánticas; depois seguiriam o Haiti e a América espanhola. A Sociedade dos Irlandeses Unidos sonhava com umha sociedade sem divisons sectárias que atribuíam ao domínio británico e a umha República irlandesa com inspiraçom na de França. O seu símbolo será a Cláirseach (harpa) com o chapeu frígio em vez da coroa. A sua palavra de ordem, A igualdade é a nova força e será ouvida. Anos depois, o líder socialista e patriota irlandês situava os Irlandeses Unidos como os seus precursores 15. outubro 2016 / KALLAIKIA
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A contestaçom aos estalidos violentos de insurgência foi o estabelecimento da lei marcial e do terrorismo de estado. O brigadeiro Knox escreve ao general Blake: “Espero aumentar o confronto entre os orangistas e os Irlandeses Unidos”. Tratava-se de identificar a revoluçom como umha confabulaçom papista. Em 1785, os conservadores protestantes tinhamse agrupado na Ordem de Orange, lealistas e contrarrevolucionários; ao mesmo tempo, criava-se também o Colégio de Sam Patrício em Maynoth, que por sua vez garantiu a oposiçom da Igreja católica à revoluçom. Salvo poucas exceçons, os eclesiásticos vários nom apoiárom a revolta.
As feministas May Burke, Eithne Ní Chumhaill e Linda Kearns pisando umha bandeira unionista em Duckett’s Grove, Carlow, em 1921
Os rebeldes, que temem a infiltraçom e a espionagem, elaboram em segredo um plano para tomar Dublim, que fracassa no centro da cidade e triunfa nos subúrbios. O conflito estende-se e comentem-se atrocidades sem conta. Umha vaga de assassinatos sectários é planificada para provocar a desuniom. Enquanto os rebeldes executam lealistas sem um plano pré-estabelecido, os británicos enforcam e inclusive queimam vivos os prisioneiros, cuidando sempre de fazer abrolhar o aspeto religioso. Tone busca e obtém a ajuda francesa. Freta-se um barco que tenta desembarcar em Donegal. 18
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Som derrotados sem quase luita e, ainda assim, Tone desembarca, sendo capturado, e degola-se a si mesmo na prisom, ao nom lhe ser concedido o fusilamento como soldado. Os revoltosos da Páscoa conheciam a sua história, apesar de que os vencedores e os sectários procurassem esconder o verdadeiro caráter da tentativa. Ilustrados católicos, protestantes ou ateus fôrom usados polos padres e pastores como armas. A Igreja católica chegou a proclamar no centenário celebrado em 1898 que os irlandeses unidos luitaram pola Fé e pola pátria. Cousas veredes. A Irlanda, derrotada mais umha vez, entra no século XIX com umha mudança de status. A 1 de janeiro de 1801, entra em vigor o Ato de Uniom de 1800. A Irlanda passa a fazer parte do Reino Unido da Gram- -Bretanha e Irlanda. Esta medida foi aprovada polo Parlamento irlandês (no qual ficavam excluídos os católicos). A historiografia irlandesa fala de compra de votos por regalias, a inglesa mantém (acho que com razom nisto) que isto era prática habitual em toda a parte na altura. A Igreja católica hostil, como dixemos, à Revoluçom de 98, apoiou a Uniom, aceitando a promessa de emancipaçom católica, que foi incumprida. O artigo 4 do Tratado, que podemos entender com categoria constitucional no sistema británico, estipulava entre outras cousas a presença de 100 deputados irlandeses no parlamento comum. A maioria dos condados elegia parlamentares, dous ou um, segundo o tamanho, e 84 distritos mais pequenos perdiam qualquer representaçom. O juramento ao rei inglês como cabeça da Igreja excluiu os católicos contrários por princípio a tal fórmula. Nom seria até 1829, em que um líder moderado católico e irlandês, tomara posse sem se submete à jura. Era O’Connell, quem rejeitara a Revoluçom de 98 e a posterior de Emmet 16 , de 1803. Era partidário da luita por vias exclusivamente legais. As suas afirmaçons de que a liberdade da Irlanda nom merecia umha pinga de sangue som bem conhecidas. Mas como bom homem do romantismo, isso nom era impedimento para que matasse em duelo de honra 17. A sua posse inicia o fim da discriminaçom católica no ámbito parlamentar, apoiado por Peel, primeiro ministro británico. A medida nom foi completa, entre outras discriminaçons figurava a obrigaçom para os labregos irlandeses de manterem com os seus dízimos a Igreja da Irlanda (anglicana), por mais que fossem maioritariamente católicos. A conseqüência foi a chamada Tithe War (ou Cogadh na nDeachúna). A negaçom massiva ao pagamento levou em dous anos a Igreja da Irlanda ao déficit. Estabelecem-se listas de morosos Tithe Defauters. Paralelamente vinha sendo criada umha nova polícia, famosa até os nossos días, a Royal Irish Constabulary (RIC), controlada desde o também conhecido Castelo de Dublin, centro do poder inglês na Irlanda. Em 1835, numha das suas açons mais violentas, assassinam 17 pessoas e ferem 30 na execuçom de um dízimo no valor de 44 xelins. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Nom foi o único caso de mortes, também contestadas por sua vez polos labregos. O temor do governo británico a outra escalada levou a que, em 1839, o conflito se solucionasse com um êxito parcial irlandês. O’Connell, grande orador, vinha celebrando grandes comícios por diferentes lugares do País, o nome polo qual eram conhecidos di-nos muito: Monster Meetings. Em Tara, lugar no que Brian Boru, o grande rei, derrotou os vikings, tinha convocado o maior, que foi proibido. Ele desconvoca para nom desobedecer e evitar massacres. Esta aceitaçom privou-no da sua melhor arma e alheou-lhe apoios populares. Grande amigo e admirador de Bolívar, mas oposto à violência, tivo grandes erros contraditórios, como apoiar o governo británico na Guerra do Ópio. Católico praticante, porém, nom luitou só pola causa católica, luitou também pola emancipaçom judia, conseguindo em 1846 que se abolisse a obrigaçom de levar roupas diferentes. Umha das suas constantes foi advertir aos británicos que, se nom aceitassem as suas fórmulas, o povo daria ouvidos aos violentos . A Irlanda, contodo, tinha experimentado no século XIX um grande aumento de populaçom. Umha natalidade sem controlo e umha melhoria relativa da alimentaçom e a higiene eram a causa. Já comentamos a monocultura da pataca, a repartiçom desigual da propriedade, e a apropriaçom de todos os restantes excedentes polos senhores ingleses, normalmente ausentes. O laissez-faire do governo británico impediu qualquer medida paliativa quando o ataque do míldio, que ocorreu em muitos mais lugares da Europa, e os camponeses irlandeses (de longe, a maioria da populaçom) ficárom desamparados. A Grande Fame motivou a perda de entre 20% e 25% da populaçom total, segundo Kinealy, em The Gretat Calamity: The Irish Famine. Nom há unanimidade na historiografia, mas umha parte importante dos historiadores e historiadoras apoiam a tese de que também se tratou de um abandono criminal para dar cabo da “raiva irlandesa”. Admitir tal explicaçom converteria isto num autêntico genocídio 18 . A História pode e deve aproximar-se tanto dos factos como das causas e conseqüências. Às vezes, longe de brincadeiras pós-modernas, consegue-o. Mas como pode medir, mesmo contar as enormes quantidades de dor, de sofrimento? As mortes sem conta, o abandono da terra, a falta dela desde longe. A palavra para a grande fame é em irladês An Gorta -Mór, o antepassado comum indoeuropeu e a rotundidade da expressom fam desnecessária a traduçom. Em 1997, no monte Croagh Patrick, ergueu-se umha grande escultura, um barco com esqueletos. Cinco mil 20
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barcos atravessárom o Atlántico a fugir da fame, dos despejos e da cólera. Foi tal o número de pessoas que nom chegárom que se chamárom os navios caixom 19. E no meio destes desastres, os Young Irelanders, que abandonárom o pacifismo de O´Connell, sublevam-se, mobilizados pola desesperaçom da situaçom irlandesa e mais umha vez pola Revoluçom francesa de 1848 e as sublevaçons nacionalistas noutros países da Europa. Serám deportados à Austrália e outras colónias. Como pudo a Irlanda manter o seu empuxo nacional e como conseguiu ainda luitar pola sua emancipaçom? Pois foi. No interior, formando a Liga Irlandesa da Terra e o Partido Parlamentar. Com Parnell (descendente de ingleses), a luitar pola Home Rule (a autonomia), se bem sem abandonar a ideia da independência totalmente. As mudanças na política metropolitana ajudárom com a substituiçom do conservador Disraeli, polo liberal Glastone. Este introduziu o chamado voto australiano (secreto) que evitava o suborno e a intimidaçom. Parnell e companheiros desenhárom um partido organizado e disciplinado, o primeiro a pagar aos deputados polo seu labor 20 . O seu êxito foi tal que a Ordem de Orange se viu obrigada a criar um partido rival, o Unionista. Também aparecêrom a desuniom e a infiltraçom que motivárom, no fim de século, umha substancial perda de apoios e influência. No que atinge à luita social, a Irish Land League luitava pola reforma agrária. A arma foi umha nova tática, o boicote, sobretodo diante dos terratenentes absentistas. Boycott era o administrador do conde de Erne, que fruto dos seus desmandos foi submetido a umha campanha de ostracismo a todos os níveis, económico, social e, mesmo, os ferroviários negárom-se a levar nem um só produto dele nos comboios. Ao cabo tivo que fugir. O Times de London foi quem popularizou o termo (boycotting). Na diáspora, sobretodo nos EUA, os irlandeses começárom a organizar-se. A Irmandade Republicana Irlandesa era umha sociedade secreta por umha Irlanda independente e democrática. Ainda que nascida em Dublim, logo se organizou em Nova Iorque, na altura a cidade do mundo com mais irlandeses. Serám conhecidos também por fenianos. Tentárom ao princípio a luita política, mas ao serem reprimidos, adotárom em seguida a luita armada, preferentemente por meio do terrorismo 21.
Éiri Amach na casca (Revolta de PáscOa): Os factos e os/as protagonistas Até agora, tentamos dar umhas dicas imprescindíveis para conhecer a geografia e a história da Irlanda, e sobretodo, a sua enorme e mesmo espantosa (no sentido do nosso idioma, mas também no do espanhol) outubro 2016 / KALLAIKIA
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tradiçom de luita e resistência, armada ou nom. Sem esta tradiçom, é impossível entender os motivos que levárom estes homens e estas mulheres a umha empresa que pode semelhar desesperada ou inclusive anacrónica se nom conhecermos esses os seus antecedentes. Em 1910, a perda do Partido Liberal inglês da sua maioria forçou-no a depender dos votos do Partido Parlamentar Irlandês. Este pujo preço ao seu apoio, o tantas vezes tentado e nom conseguido estabelecimento do Home Rule (a autonomia). Em 1912, é aprovado polos Comuns, a cámara baixa e vetado polos Lores (o senado nobiliar) mas estes só tinham poder de veto suspensório dous anos, daí que em 1914 a lei fosse um facto. Os Orangistas e Unionistas manobram em 1913 e nom aceitam o autogoverno para os condados do nordeste onde som maioria 22 . Como sabemos, em 1914 estala a I Guerra Mundial e o Estatuto fica suspenso. Redmond, o lider moderado irlandês, chama a luitar dentro do exército británico, para defender a liberdade da Bélgica e Sérvia, mas também para competir com os unionistas na ajuda ao Império, com o fim declarado de tirar benefícios ao fim da guerra. Umha parte do nacionalismo irlandês nega-se a luitar no exército inimigo, mais ainda tendo em conta que, diferentemente dos unionistas, nom som enquadrados em unidades próprias. Há neste momento na Irlanda várias agrupaçons mais ou menos armadas que respondem a milícias dos diferentes partidos, seitas e organizaçons socialistas e feministas. Vamos estudá-las a seguir. Antes, vamos apresentar um novo agente político, o Sinn Féin, fundado em 1905 por Grifith. Declara a Ata de Uniom como ilegal, postula em princípio umha monarquia dual ango-irlandesa e será acusado pola RIC (Royal Irish Constabulary) de organizar o levantamento de 1916, em terminologia inglesa o Easter Rising. Como veremos, falsamente, se falarmos da organizaçom en si, nom assim de muita da sua militáncia. Em 12 de setembro de 1912, assina-se o chamado Pacto do Ulster (Ulster Covenant) 23 como reaçom à aprovaçom do Home Rule, este é o seu texto: BEING CONVINCED in our consciences that Home Rule would be disastrous to the material well-being of Ulster as well as of the whole of Ireland, subversive of our civil and religious freedom, destructive of our citizenship, and perilous to the unity of the Empire, we, whose names are underwritten, men of Ulster, loyal subjects of His Gracious Majesty King George V, humbly relying on the God whom our fathers in days of stress and trial 22
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confidently trusted, do hereby pledge ourselves in solemn Covenant, throughout this our time of threatened calamity, to stand by one another in defending, for ourselves and our children, our cherished position of equal citizenship in the United Kingdom, and in using all means which may be found necessary to defeat the present conspiracy to set up a Home Rule Parliament in Ireland. And in the event of such a Parliament being forced upon us, we further solemnly and mutually pledge ourselves to refuse to recognize its authority. In sure confidence that God will defend the right, we hereto subscribe our names. [CONVENCIDOS na nossa consciência de que o Autogoverno da Irlanda (Home Rule) seria desastroso para o bem-estar material do Úlster, assim como da totalidade da Irlanda, subversivo com as nossas liberdades civis e religiosas, destrutivo da nossa cidadania, e perigoso para a unidade do Império, nós, os abaixo-assinados, homens do Úlster, súbditos leais da Sua Majestade Jorge V, confiando humildemente no Deus em que os nossos pais nos dias de tensom e dificuldades tam confiadamente acreditárom, pola presente comprometemos-nos em solene Pacto, nesta época nossa ameaçada pola calamidade, a nos mantermos unidos na defesa, por nós e polos nossos filhos, da nossa apreçada posiçom de igualdade de cidadania no Reino Unido, e a usar todos os meios que se puderem encontrar necessários para derrotar a presente conspiraçom para instituir um Parlamento Próprio na Irlanda. E no caso de semelhante Parlamento nos ser imposto, adicionalmente comprometemo-nos mutua e solenemente a nos negarmos a reconhecer a sua autoridade. Na confiança certa de que Deus defenderá o correto, subscrevemos aqui os nossos nomes.] Foi asinado por 237.381 homens e 234.046 mulheres e guarda-se com elas no Escritório de Registo Público de Belfast. Para os Unionistas, é um documento de categoria constitucional. Chama a atençom que, ainda contrários na sua grande maioria ao voto feminino, incluíssem as assinaturas de mulheres. Em janeiro de 1913, cria-se a UVF, força voluntária do (para eles) Ulster, primeiro grupo paramilitar. Os seus líderes eram Carson, advogado e juiz3 de família milionária protestante e antigo membro, como quase todos eles, do Partido Conservador británico e James Craig, visconde de Craigavon, burguês proprietário de grandes destilarias nobilizado pola sua majestade británica. Possuía formaçom militar, combatera como oficial na Guerra Boer. O grupo em nova versom é um dos grupos outubro 2016 / KALLAIKIA
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paramilitares protestantes protagonistas nos anos sessenta e seguintes. Na altura de 1916, tem a prática totalidade dos seus membros a combaterem no Exército británico. Muitos deles morrerám polo Reino Unido na Batalha do Somme, em agosto do 16. Connolly, o líder socialista e sindicalista, no livro Nacionalismo e Imperialismo (Ed. Laiovento) e dentro de um artigo no Worker de 14 de março de 1914, explica bem o processo das milícias e as suas chaves: Durante dous anos, continuou este armamento, acompanhado de instruçom e organizaçom de tipo militar e nom se fijo nengum esforço para impedir a livre importaçom de armas, até que o exemplo dos Voluntários do Ulster começou a ser seguido noutras partes da Irlanda. O autor das notas estabeleceu o Exército Cidadao em Dublim em coordenaçom com o Sindicato Geral de Transportes e isto foi seguido polo estabelecimento do Corpo de Voluntários Irlandeses por toda a Irlanda nacionalista(...) O que fora livremente permitido quando os homens de Orange eram os únicos que se armavam, foi ilegalizado de imediato quando os operários organizados e os nacionalistas acordárom obter as mesmas armas. É óbvio que Connolly nom é um observador neutral, mas o confronto com outras fontes e a constataçom das datas nom deixa dúvida quanto à prelaçom temporária dos diferentes grupos armados e treinados militarmente. Ainda assim, também é verdade que o Exército Cidadao nom nasce só como reaçom aos paramilitares unionistas. O Irish Citizen Army (Arm Cathartha na hÉireann) nasce também como um grupo de guarda operária para defender os grevistas da polícia e organizar sabotagens, mas é evidente que Séamas O´Conghaile (o seu nome em irlandês) nom podia dizer certas cousas num artigo do Worker. O grupo armado tinha também o seu instrutor militar, Jack White, ao mesmo tempo que um outro camarada, James Larkin (chamado o grande Jim) era o número um do sindicato. Durante a grande greve de 1913-14 fôrom assassinados dous grevistas pola polícia, despedidos mais de quarenta e depois seguidos por trezentos. A acusaçom era a de filiaçom ao sindicato do transporte. Seguiu-se um lockout de mais de sete meses. Houvo contributos económicos de Inglaterra, mas quando, no início de 1914, Connolly e Larkin solicitam a extensom da greve solidária à Gram Bretanha, fôrom rejeitados polo TUC (as Trade Unions). A atitude da imprensa foi também muito agressiva, sobretodo com Larkin. O facto de Pádraig Pearse (feniano e um dos líderes do 16), a Condessa Markievick, Yeats (o poeta) e outros republicanos serem defensores até o fim dos operários provocou que se estabelecesse umha grande confiança e respeito entre eles. Nom iria 16 manter-se até o fim. 24
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A seqüência de imagens mostra a foto original (esquerda) do momento em que Padraig Pearse se rende ao Geral Lowe. Ao pé de Pearse (obscurecido) está a enfermeira O’Farrell. Na segunda foto a expressom nas caras dos soldados britanicos mudou-se. E na terceira imagem a enfermeira O’Farrell foi eliminada da cena. Imagens do Museu Nacional da Irlanda. Artes Decorativas e Historia /Kilmainham Goal
Larkin parte para os EUA, queimado temporariamente, e ali participa no sindicalismo até em 1919 ser expulso do Partido Socialista por bolchevique. Em 1927, será o primeiro comunista eleito no Dail irlandês. O I.C. A. será para Lenine o primeiro exército vermelho do Mundo 24 . Estes marxistas nom aceitavam em absoluto o quadro estatal británico, compreeendendo que a luita de classe estava comprometida por umha situaçom colonial que fazia com que a classe operária irlandesa fosse a mais pobre e atrasada das ilhas. Mas também pensavam que nom era a simples mudança de bandeiras no Castelo de Dublim o seu objetivo. A leitura do livro mencionado do Connolly, para mim ainda de tremenda atualidade, é altamente recomendável para o entender. Como sempre, se se quiger, mas também é importante mencionar aqui, ainda que seja sucintamente, a enorme atençom e respeito de Karl Marx para com a Irlanda. Muito conhecida e incontrovertível na sua clareza, oferece para mim umha enorme transcendência o facto de que caísse na conta de que o proletariado inglês perderia o seu papel revolucionário se nom aceitasse a liberdade e emancipaçom da Irlanda e a sua classe operária, subalterna da británica 25. Só um verdadeiro génio da sua categoria podia chegar a isso. Mais um contributo fundamental coopera no levantamento. O facto de as mulheres ficarem invisíveis no relato histórico nom responde, como sabemos, à sua nom presença nos factos, mesmo a nível de protagonismo. Quando no pequeno percurso na história irlandesa nom as mencionamos éramos conscientes desta circunstância, mas decidimos poupar a sua presença momentaneamente com o fim de chegarmos a esta parte do relato.
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Sim, é verdade que a Irlanda é o país dos “asilos de madalenas” criados em 1765 por Arablla Denny, e nom só a Irlanda, infelizmente. Também é verdade que umha parte do nacionalismo irlandês, a que rejeitou o alçamento e que historicamente coabitou com o colonialismo, estava instalada num falocratismo estúpido e arrogante, a tentar neutralizar o que para eles era umha humilhaçom. Assumiam que o leom británico, varonil, masculino e dominante e a Irlanda celta, feminina e dominada, para utilizar o velho rol poético, como umha catástrofe que havia que mudar com testosterona. Nom é que fossem piores do que o mundo que os rodeava naquele Império vitoriano e reacionário, nom, acontecia que era imperdoável, por nom serem capazes de elevar o nível de consciência irmanando-se com os oprimidos e, sobretodo, oprimidas. Connolly mais umha vez, homem que já procurava utilizar na linguagem termos inclusivos, dera no alvo quando afirmava que nom era só umha mudança de bandeiras, como também falava, referindo-se às mulheres, de escravas dos escravos... Mas fôrom, como nom, elas, mulheres irlandesas, que, prisioneiras de um enorme asilo de madalenas criárom os seus próprios mitos, as suas protagonistas e a sua filosofia de combate, social, político e ao cabo armado. Estavam ali desde sempre; a prelaçom de riqueza no matrimónio e nom de género até o cristianismo, a amazona Scáthach do Ulster que treinava os jovens guerreiros, a rainha Maeve de Connaught que detinha a soberania por cima do marido e dos seus múltiplos amantes, as conhospitae, mulheres administradoras da comunhom condenadas e esquecidas pola superestrutura da Igreja católica, Vallach, a maior das poetisas irlandesas, morta em 932, segundo registam os anais dos Quatro Mestres, Anne Bonny e Mary Read piratas no XVII, miss Aldworth a primeira mulher massona, estudada por Kirk MacNulty, Anne Devlin violada e torturada sem traicionar Emmett, que para mais tivo que ver o seu filho de nove anos morrer, preso com ela, as meninhas de Langollen que fugírom ao matrimónio para viverem juntas como namoradas, e tantas outras. O sufragismo irlandês correu em paralelo com o británico, houvo destacadas integrantes do WSPU, como Charlotte Despard, umha das encadeadas às grades de Wttsminster, posteriormente cindida para criar a Liga para a Liberade das mulheres, e integrante também da Cumann na mBam (Liga das mulheres) organizaçom paramilitar integrada (e subordinada) aos Voluntários Irlandeses, a milícia nacionalista. Helena Moloney cria com a atriz Maud Grone e as irmás Gore Booth, em 1903, um grupo Mulheres da Irlanda, que se definia nacionalista e sufragista. Em 1906 une-se outro grupo com Elisabeth O’Farrel, a sua companheira Julia Greenan. Outras destacadas militantes som a médica Kathleen Lynn e a sua companheira Madeleine French – Mullen. Editam também umha revista 26 . 26
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A I Guerra Mundial representou para as suffragettes, ao igual que para o movimento socialista, um severo golpe que provocou a rutura, ao confrontarem-se posiçons. É bem conhecido, no caso británico, a rutura entre Enmeline Pankhurst e as filhas. Enmeline apoia a guerra com a esperança de tirar benefícios e conseguir o voto após calarem as armas. Este mesmo confronto ocorre na Irlanda, mas aqui o que se passa é que vai ter lugar um facto que muda substancialmente as cousas dentro do campo do nacionalismo feminino. As posiçons favoráveis à guerra do Partido Parlamentar e dos setores mais moderados e confissionais do nacionalismo levam a que se formule dentro dos Voluntários, em setembro de 1914, umha escolha em que a maioria decide apoiar Desmond, o deputado e lider moderado. Tal nom acontece na Cumann, que decide pôr-se do lado dos 2000 que se oponhem à participaçom na guerra. Assim a Cumann antialistamento conserva o nome e consegue, pola via prática, romper, ao desobedecer a organizaçom em que estava integrada. O socialismo irlandês maioritariamente, ao contrário do inglês ou do alemám, é radicalmente contrário à participaçom na guerra. Temos mais um encontro político entre os diferentes atores coletivos do Easter Rising. É preciso assinalar também o facto de muitos destes homens e mulheres terem umha dupla ou mesmo tripla militáncia. Umha das Gore Booth, Countess Mankievicz, no seu nome de casada polo que é mais conhecida, milita nesta etapa no Exército Cidadao, Maud Gonne é secretária da Uniom de Mulheres Trabalhadoras da Irlanda, o mesmo ocorre com muitos dos homens. Temos de ter em conta que A Irmandade (os fenianos) é umha organizaçom secreta que se infiltra nos Voluntários e noutras organizaçons, de modo semelhante à massonaria. Esta infiltraçom da Irmandade nos Voluntários é vista pola maioria dos historiadores como o detonante do 16. MacNeill, líder dos Voluntários, opom-se à sublevaçom, secundado por Hobson e O’Rehilly. MaxNeil enviará umha circular no dia anterior desautorizando a açom, o que provocará o atraso de um dia, que passa para a segunda-feira e também em muita medida a extensom da revolta fora de Dublim. Hobson opom-se, ainda sendo feniano (da Irmandade) e O’Really acode ao combate quando estala a rebeliom, morrendo em açom no dia 29 de abril. O Exército Cidadao de Connolly, do qual Markievicz é tesoureira, estabelece paralelamente os seus preparativos e inclusive ameaça com sublevar-se só, se nom tiver mais apoios. A existência de um processo colonial prolongado com múltiplos episódios de resistência e vítimas incontáveis deixava claro quem era o inimigo para umha parte importante do povo irlandês. A imprensa da altura, tanto em Inglaterra como na Irlanda, e em geral a historiografia outubro 2016 / KALLAIKIA
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inglesa fala de umha facada nas costas. É verdade, mas também o é que a debilidade do inimigo é ocasiom a aproveitar para conseguir triunfos e objetivos longamente perseguidos, enquanto a inoperáncia e a paralisia ou a colaboraçom nom costumam conduzir longe. Assim o vírom as partes politicamente mais avançadas da Irlanda, os republicanos, os socialistas revolucionários e as mulheres organizadas. Também entra na lógica a procura de apoios entre os inimigos dos inimigos e aí a Alemanha era aposta clara. Desde setembro de 1914, os contatos sucedem-se, PlunKett viaja a Berlim. Ali coincide com Casement. As suas estratégias som distintas: enquanto Pumckett, poeta, esperantista e membro da Irmandade, postula o envio de armas imediato, Casement, que nom é da Irmandade e em princípio nom está a par dos preparativos, quer alistar os prisioneiros irlandeses contra os británicos. Nom tem muito sucesso, pois na altura os combatentes irlandeses no exército inglês som voluntários. Casement, que será o último executado do 16, no seu caso por enforcamento, era um anticolonialista convencido. Será objeto, aliás, antes do seu assassinato legal, de umha infame campanha sobre a sua homossexualidade e umha nada demonstrada pedofilia. Certa historiografia británica afirma que a razom de nom ter avisado antes Casement do que se cozia está no facto de ser protestante e nom terem confiança nele, mesmo Lawrence Sonhaus na sua monumental Historia completa da I Guerra Mundial entra nisto. Nós pensamos que nom foi esta a razom; mais provável o medo de que os británicos e a sua espionagem ou contra -espionagem desvendassem a intriga. De facto, vários dos protagonistas do 16 eram nom católicos ou de origem nom irlandesa, Clark era filho de um sargento británico, Markievicz nom nascera na Ilha, tal como Connolly. Pearse, o presidente proposto, era filho de um pedreiro inglês e de umha irlandesa, o que nom impediu que trabalhasse em prol do idioma sempre, com a inovadora propoposta sobre escolas gaélicas. Foi também objeto de pesquisa sobre a sua sexualidade. De facto há inclusive umha publicaçom sobre as sexualidades dos protagonistas do 16 e das protagonistas, centrando-se na sua homossexualidade masculina ou feminina, e também protestos pola nom aceitaçom desta realidade7. Para documentar a diversidade, diremos que outros, como Thomas MacDonagh, fôrom padres católicos. As armas prometidas e entregues fôrom poucas e para mais o barco enviado para o desembarco foi afundido pola marinha inglesa. Isto motivou duras discussons por parte dos conjurados sobre se continuarem ou nom. Casement desembarcou a partir de um submarino, sendo preso de imediato. Antes o Conselho Militar do IRB (a irmandade) reuniu-se com 28
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Connolly em janeiro de 1915, sendo aí convencido para unir forças. A tese de que o tivérom seqüestrado posteriormente é absurda. Para ocultar os preparativos diante dos ingleses e diante dos opostos à sublevaçom dentro dos Volunteers encobrírom os preparativos como unhas manobras de fim de semana. O secretismo que alimentou teorias da desconfiança era lógico, se levarmos em conta que a única possibilidade militar passava por manter tal segredo. Ainda assim, a espionagem inglesa tinha algumha ideia do que se preparava, sobretodo depois da captura do Aud, o barco alemám. O subsecretário para a Irlanda, Nathan, propujo assaltar o Liberty Hall (a sede dos sindicatos) para acabar com o Exército Cidadao e também assaltar por sua vez as sedes dos Volunteers. Quando a ordem se tornou executiva para a tarde de 24 de abril, o alçamento tinha começado. O Comité Insurrecional tem na altura sete membros, todos homens, mas autoriza a integraçom de mulheres combatentes e nom só auxiliares. De facto, Contessa Markiewicz vai ser a primeira mulher com cargo de oficial num exército (subcomandante) Também a doutora Lynn, ainda que ela nom combata com as armas, mas chefiando os serviços médicos. Há que dizer que nom todos os comandantes aceitaram esta ordem, como foi o caso de De Valera. O C.I estabelece-se no GPO a casa dos Correios, onde tomam prisioneiros alguns soldados británicos. Ali erguem a bandeira tricolor e umha bandeira verde com a inscriçom de “República da Irlanda”. A continuaçom, Padraig Pearse leu a Proclamaçom da República da Irlanda. Reproduzimo-la polo seu enorme valor histórico: Poblacht na Eireann O Governo Provisório da República Irlandesa ao povo da Irlanda. IRLANDESES E IRLANDESAS: Em nome de Deus e das geraçons mortas de que recebe a sua antiga tradiçom de nacionalidade, a Irlanda, por meio de nós, convoca os seus filhos à sua bandeira para luitar pola sua liberdade. Chegado o seu momento, em que os seus homens já fôrom organizados e treinados através da sua organizaçom revolucionária secreta, a Irmandade Republicana Irlandesa, e mediante as suas conhecidas organizaçons militares, os Voluntários Irlandeses e o Exército Cidadao Irlandês, e agora que a sua disciplina foi aperfeiçoada pacientemente, e despois de ter aguardado com firmeza o momento apropriado para se rebelar, agora, com o apoio dos seus filhos exilados na América e dos seus aliados na Europa, mais confiando primeiro na própria força, ataca com plena confiança na sua vitória. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Declaramos o direito soberano e irrevogável por parte do povo da Irlanda à propriedade da Irlanda e ao controlo sem ataduras dos destinos dos irlandeses. A longa usurpaçom desse direito por um povo e um governo estrangeiros nom aboliu tal direito, nem poderá ser abolido jamais, exceto pola destruiçom do povo irlandês. O povo irlandês reafirmou geraçom após geraçom o seu direito à soberania e liberdade nacionais: seis vezes durante os passados trezentos anos o reafirmárom com as armas. Afirmando-nos nesse direito fundamental e reafirmando-o umha vez mais diante do mundo inteiro, pola presente proclamamos a República Irlandesa coma un Estado Soberano Independente e comprometemos as nossas vidas e as dos nossos companheiros de armas à causa da sua liberdade, do seu bem-estar e o seu engrandecimento entre as demais naçons. A República Irlandesa vai encarregar-se disso e, pola presente, reclama a uniom entre todos os irlandeses e irlandesas. A República garante a liberdade religiosa e civil, igualdade de direitos e oportunidades para todos os cidadaos e declara a sua determinaçom de procurar a felicidade e a prosperidade de toda a naçom e de todas as suas partes, querendo a todos os filhos da naçom de igual jeito, e fazendo caso omisso das diferenças que fôrom fomentadas por um governo alheio, que no passado dividiu umha minoria do resto. Até que as nossas armas nos permitam alcançar o momento oportuno para estabelecer um Governo Nacional permanente, representativo de todo o povo da Irlanda e eleito polos votos de todos os homens e mulheres, o Governo Provisório constituído pola presente administrará os assuntos civis e militares da Repúlica em nome do povo. Pomos a causa da República Irlandesa sob a proteçom do Deus Altíssimo, a quem solicitamos que abençoe as nossas armas e rogamos que nengum que sirva a esta causa a desonre por cobardia, desumanidade, ou pilhagem. Nesta hora suprema, a Naçom Irlandesa deve, com o seu valor e disciplina, e a disposiçom dos seus filhos a se sacrificarem polo bem comum, provar-se merecedora do venerável destino a que está chamada. Assinado no nome do Goberno Provisório, Thomas J. Clarke, Sean Mac Diarmada, Thomas MacDonagh, P. H. Pearse, Eamonn Ceannt, James Connolly, Joseph Plunkett. 30
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Segundo relatárom as testemunhas, Connolly abraçou-se a Pearse e agradeceu a Deus (eram, ou diziam ser, crentes os dous) por ter vivido junto a ele aquele momento. Nesse mesmo momento, nascia o IRA (Irish Republican Army) e desapareciam as partes. Mas antes de seguir com o relato da batalha, por outra parte muito conhecido até os pequenos detalhes, cumpre analisar, embora seja brevemente, o documento de independência. O primeiro que encontramos som as únicas palavras escritas em irlandês no texto. A traduçom é “República irlandesa”, anunciava, acho, o papel posterior que ia ter o idioma próprio, formalmente primeira língua mas ao cabo língua cerimonial. E nom é que Pearse, Connolly e outras pessoas presentes nom fossem defensores da língua. Nom temos mais que olhar as palavras de Connolly no livro editado por Laivento, que já mencionamos 28 , Pearse dedicara a sua vida a ensinar e angariar dinheiro para o gaélico. Mas parece que, finalmente, fôrom outras as prioridades.
Declaraçom de Páscoa, em que se proclama a independência da Irlanda em dezembro de 1918
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Também a forma de estado aparece já no início: a república. Nom podia ser outra a posiçom e penso que no escrito anteriormente ficou claro. Mais a fórmula inclusiva de Irishman and Irishwomen nom tem precedentes em documentos desta categoria, sendo, sem dúvida, a primeira proclamaçom de independência que assume esta linguagem, polo menos em parte do seu relatório. Pensem que muitas constituiçons mais modernas, como a espanhola de 1978, nom o fam. Voltam a repetir a linguagem quando se fala da uniom entre irlandeses e irlandesas e do governo eleito polo conjunto dos homens e mulheres. É verdade que Cumann, que tinha achegado à batalha por volta de duzentas mulheres, nom é mencionada entre os grupos organizadores como também nom o som outros grupos, os Fusileiros Hibernios e os Fiannas, mas estes eram grupos muito pequenos. Esta república ia conceder o voto a toda a cidadania, lembremos que a metrópole nom aceitou tal cousa até 1928 (em 1918 só às mulheres maiores de trinta anos). O documento fora redigido nas caves do Liberty Hall e fora Connolly quem o entregou ao companheiro que ia editar, era tal a falta de meios que houvo que improvisar tipos. Há mais consideraçons interessantes no texto, a busca da felicidade, do bem-estar, igualdade de direitos e oportunidades, soberania irrevogável, sacrifício polo bem comum, refletem o pensamento social. Unidade de toda a naçom e de todas as suas partes confrontadas por interesse de um governo alheio (conflito no Nordeste), igualdade religiosa e igualdade civil, mas invocaçom a Deus em várias das suas partes e, como referente moral, em nome de Deus e das geraçons mortas. Um historicismo (Renan), mas também umha clara vontade de ser demonstrada pola luita e as rebelions passadas (nacionalismo italiano), a invocaçom às armas como garante de legitimidade, que nom é fruto da improvisaçom, mas do treino e da disciplina militar (exército nacional), a hora suprema como viragem histórica onde os povos devem ganhar o futuro (tam presente no heroicismo nacional, mas também no próprio Hino da Internacional). A luita militar ia começar de imediato e iam cair as primeiras vítimas. Por parte británica, um sargento de guarda diante do Castelo e por parte irlandesa Sean Connolly. Ao princípio, os planos dos alçados fôrom indo bastante ajustados ao previsto. Os quatro batalhons dos voluntários mais o exército cidadao ocupam os diferentes objetivos, exceto o Castelo, que pudo fechar as suas portas e evitou ser assaltado. Lembremos que o Castelo era o centro de poder británico em Dublim. Isto sem dúvida foi um grave revés. Ocupárom-se também edifícios altos e cavárom-se trincheiras nos parques. Os pontos fortes británicos, além do Castelo, fôrom a Trinity College, o Hotel Shelbourne e a Alfándega. Contavam 32
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com superior armamento e ainda que ao princípio nom tivessem grande vantagem em combatentes, pudérom ampliar o seu número, também contavam com canhons de grande calibre e inclusive com um canhoneiro, o Helga, que bombardeava a partir do rio Liffey. Os irlandeses, depois do escritório dos Correios, acupárom pontos fortes em Four Courts, Fábrica de Jacop, no parque Stephen´s na fábrica Boland ou no Liberty Hall, onde pensavam os ingleses que tinham o comando. Os irlandeses nom ocupárom tampouco a Estaçom de comboios Kings Brigde, ainda que a ameaçassem de posiçons na South Dublin Union. Assim os ingleses pudérom reforçar a guarniçom. A proporçom nos últimos dias da batalha chegou a ser de vinte contra um/umha a favor dos británicos. Umha das razons da derrota militar foi a escassa extensom fora de Dublim da luita. Só no condado de Meath, empregando métodos de guerrilha, houvo baixas sérias para o inimigo, também no Oeste em Galway houvo confrontos, em Cork, no Sul, fracassou polas contra-ordens de que já falamos. Porém, Cork seria zona de grandes factos na posterior guerra de 1922. No norte, só em Falls Road houvo batalha, já começava entom a resistência lendária deste bairro de Belfast. Os ingleses pudérom concentrar a força em Dublim e levar tropa para o lugar. Na periferia foi suficiente o labor da RIC para controlar a situaçom. Também a superioridade no armamento do exército inglês e o bombardeio ordenado polo general Maxwell, chefe británico. A situaçom dos irlandeses tornou-se insustentável, as baixas civis aumentárom. No sábado 29 de abril, a partir do novo quartel-general, ao qual tivérom que fugir desde o GPO, Pearse deu a ordem de se renderem todas as unidades. Pearse rendeu-se incondicionalmente perante o general de brigada Lowe. Envia para isso a enfermeira Elisabeth O´Farrell, que se negara com outras a abandonar a posiçom. Na imagem tomada pola imprensa, esta mulher, que estava ao lado de Pearse, é apagada da foto, só ficando ao lado do comandante irlandês umhas botas e parte de umhas pernas. A manipulaçom é cousa antigua. Ainda mais, Neil Jordan, no seu filme sobre Collins, persiste na mentira e substitui-na por um homem. O texto da rendiçom é o que se segue: Para evitar umha maior matança de cidadaos dublineses, e com a esperança de salvar a vida dos nossos seguidores que se encontram arodeados e numha desesperada situaçom de inferioridade, os membros do Governo Provisório presentes no quartel general outubro 2016 / KALLAIKIA
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decidírom render-se incondicionalmente, e os comandantes dos vários distritos da cidade e do condado ordenárom aos seus comandos que deponham as armas. Maxwell, que era o responsável do poder civil e militar pola declaraçom da Lei marcial, está decidido a dar um escarmento exemplar. Focaliza erroneamente a responsabilidade no Sinn Fein, o que ao cabo nom vai ser tam mau para esta organizaçom, e elimina e fuzila os sete membros do Diretório e mais outros 9 mais, entre eles e, em último lugar, a Casement, o único enforcado. Há mais condenas à morte que serám comutadas, como a de Constance Markiewicz, que se enfrenta aos juízes por nom serem capazes de lhe dar esse dereito à igualdade. Durante muito tempo foi um lugar comum que os revolucionários nom gozavam de muito predicamento entre o povo, e que inclusive fôrom insultados. Isto agora já está mais matizado. Um jornalista canadiano, Berresfort Ellis, que fora testemunha dos factos e que nom tinha simpatia pola Irlanda, documenta que se bem isso era certo nos bairros burgueses do centro, era muito diferente nos bairros da periferia, onde ele viu como os prisioneiros eram vitoreados. O que ninguém discute é o caráter revulsivo que esta epopeia tivo na luita irlandesa pola independência. Tom Barry, na sua obra A constitución da Irlanda contemporánea. Dias de guerrilla en Irlanda, editada em galego por Toxos Outos, começa o livro com o que para ele, entom um moço no exército británico de Oriente Médio, supujo a notícia de que uns compatriotas aceitaram o sacrifício polo país, sem que a propaganda negativa británica figesse outra cousa que fomentar a sua carragem e orgulho. Na página 19, expom a Declaraçom como um texto sagrado e com absoluta reverência. Muitos moços e moças irlandeses devêrom sentir o mesmo. Todo isto tivo que ver-se enormemente aumentado quando os británicos, desangrados pola guerra, tivérom que acudir à conscriçom obrigatória. Em 1918 a guerra produzira já tal esgotamento que nom tinha partidários em parte nengumha. A imprensa da altura é umha fonte limitada e muito parcial dos factos (como costuma acontecer), facto aumentado pola férrea censura a que estava submetida desde o 1914. Só a leve critica das condiçons de reclusom no campo de Frongoch, em Gales, por um diário de Cork, provocárom o fechamento do jornal. Se a história é quem julga os seus atores, que está por ver, os homens e mulheres de 1916 gozam das bênçons maioritárias na Irlanda e fora dela. Mesmo umha delegaçom británica assistiu ao centenário, nom sem polémica. No lado negativo, as mortes de destacados e prestigiosos dirigentes aplanou o campo para que alguns arrivistas tivessem mais fácil o 34
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caminho do poleiro, como ocorre tantas vezes. A vitória eleitoral do Sinn Fein nom seria possível em 1918, nem a Guerra de independência dos 20. Mas o que constatamos é que a grande maioria dos e das combatentes de 1916 som também perdedores da Guerra Civil posterior. A divisom da Irlanda e a perda para a República de umha parte do País, ainda nom resolvida, é conseqüência desta derrota. A luita por meios políticos continua. Todas as nossas simpatias som com a sua causa, que nom tem a ver com o respeito e admiraçom polo povo inglês, que também tem contribuído com grandes cousas para a história da humanidade. Um povo nom é um império, como bem sabia Connolly. Como a história da Irlanda e a sua luita de libertaçom nacional influiu no nosso país, também ocupou e ocupa diferentes especialistas do nosso país. Penso que mais um artigo sobre isto seria bom no futuro. Notas e referências [1] www.pif.org/terrible-beautyremembering-irelands-1916-easterrebellion/ [2] Guerra de independência irlandesa (1919-1921) conflito entre o IRA e o exército británico, acabou com o Tratado Anglo-irlandês que por sua vez provocou a Guerra civil (1922-1923) que confrontou o IRA e Cumnn na nBan às forças prótratado INA e Guarda com o apoio inglês. Wikipédia para mais dados. Está bem recolhido em português. [3] www.telesintese.com.br/senado-norteamericano-acusa-apple-de-sonegarimpostos-ceo-da-empresa-nega/ [4] Good Friday Agreement. www.dfa.ie Departament of Foreign Affairs and Trade. [5] O Eire ocupa 70.282 km 2, Northern Ireland (nome oficial) 13.843. Para a populaçom, 4.600.000 e 1.840.000. [6] Spencer Wells. Deep Ancestry: Inside the Genographic Project, 2006 (Nacional Geographic) [7] www.confessio.ie/etexts/confessio_ portuguese#01. Talvez fosse galês.
[8] Thomas Cahill ; How the Irish Saved Civilization @GoogleBooks [9] www.yourirish.com/history [10] Drogheda. Cidade 54 quilómetros ao Norte de Dublim. Muitos anos depois, Cromwell relizaria umha enorme carnificina. Para a Pynigś Law; w w w.libraryireland.com/JoyceHistory/ Poyning.php [11] História criminal do governo inglês desde as primeiras matanças na Irlanda até o envenenamento dos chinas- Elias Regnault- Rio de Janeiro 1842. Em E-book. [12] Royle, Trevor (2004) The Civil war: The wars of the Three kingdons. [13] Willian Petty na sua obra fala de 37.000 protestantes massacrados, hoje rebaixa-se a 4/5.000. [14] Como muitos historiadores, consideramos o nacionalismo filho da Revoluçom francesa, nom anterior. [15] ...queremos, com os nossos precursores os Irlandeses Unidos de 1798... pág. 26 de Nacionalismo e socialismo. Laiovento. [16] A revoluçom de Emmett foi um intento de continuaçom da anterior do 98.
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A Irlanda: a grande beleza Joám Francisco Lopes Peres [17] É famoso um duelo a pistola em que O’Connell pudo acabar com o rival, para desgosto dos ingleses.
[28] Um artigo de protesta sobre a ocultaçom
[18] Tom Keneally, o autor da “ Schindler´s Ark” escreveu também The Great shame, sobre a vergonha da fame. Tem o livro um subtítulo sugestivo, And the Trimph of the Irishin the English speaking World
w w w.independent.ie/opinion/analysis/ ne w-er a-of-i nc lusion-yet-no-r isi ngtribute-to-fallen-gays-26387364.html
[19] www.educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/irlanda_fome2.htm#inicio
Livros
[20] Na altura, ao nom terem ordenado os parlamentários só podiam ser pessoas com a economia resolta. O salário parlamentar foi umha conquista e nom um atraso.
ALONSO, ROGELIO (2001) Irlanda del Norte. Una historia de guerra y la búsqueda de la paz. . Editorial complutense.
[21] Trunfou atualmente o uso pejorativo da palavra, sobretodo nos seis condados do Nordeste.
BRUCE GASTON.(2015) Uma história resumida da Irlanda. Smashwords.
[22] No livro de Connolly, há um magnífico artigo dedicado ao tema “ A partiçom da Irlanda” [23]w w w.web.archive.org/ web/20071010110448/ www.proni.gov.uk/ulstercovenant/ O famoso Kipling, como bom imperialista, dedicou-lhe um poema. [24] Este Carson é o mesmo que acusou Wilde de sodomia, que foi condenado e cumpriu cárcere em Reading. [25] Recentemente o coletivo editor do Diário Liberade editou na Galiza a obra de Lenine Imperialismo. Fase superior do Capitalismo. Recomendamos a sua leitura, ainda para nom marxistas, pola sua clarividência e atualidade em alguns aspetos. [26] Na realidade, foi Engels casado com umha operária irlandesa quem o alertou. Depois Marx aprofundaria nisto e descobriria o papel subsidiário da classe operária da metrópole nos lucros coloniais. Cartas de Engels a Marx de 23-5-1856 e de Marxa a Engels de 30-11-1867. [27] Beann na hÉireann (Mulher da Irlanda) em inglês de preferência. A sua primeira editorial será “Liberade para a nossa
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naçom e completa aboliçom das desigualdades para o nosso sexo”
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SANTANDER, SO. Republicanismo y femineidad: Las mujeres del levantamiento de Pascua. Ponencia.Universidad Central de Venezuela. SONDHAUS, LAWRENCE.(2009) A primeira Guerra Mundial. História completa. Editora contexto (2009) VISAGO, ALESSANDRO (2009). Guerra irregular, Terrorismo , guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história. -
Informaçom na rede Muito interessantes as páginas da Biblioteca nacional da Irlanda e do próprio governo do Eire. As duas oferecem especiais sobre a Revolta da Páscoa com documentos e imagens inéditas. Ao mesmo tempo, nestes mesmos dias aumentou e melhorou amplamente a informaçom oferecida polas redes. www.gov.ie www.nli.ie w w w. i n n i s f r e e1916 .w ordpr e s s . com/2007/02/11/el-sinn-fein-de-1922guerra-civil-y-primera-escision/
Joám Francisco Lopes Peres A Irlanda: a grande beleza Página com artigos e opinions sobre Irlanda. w w w.defensa.gob.es/ceseden/Galerias/ destacados/publicaciones/docSegyDef/ fi c h e r o s / 0 1 2 _ R E F L E X I O N E S _ SOBR E _ L A _ EVOLUCION _ DEL _ CONFLICTO_EN_IRL www.academia.edu/8984743/Las_ideas_ nacionalistas_en_la_prensa_irlandesa_ el_Dublin_Penny_ Journal_y_el_Irish_ Penny_Journal_1832_-1841_ Na Revista do Ministério da Defesa do Reino de Espanha. www.arquivo.briga-galiza.info/principal. php?pag=ler&id=1262 Arquivo de Briga, organizaçom da juventude independentista galega w w w.rev istas.ucm.es /inde x. php / M A DR /a r t ic le /v ie wF i le / M A DR1010110 019A /32873 ALLEGUE, ALBERTO. Irlanda na revista Nós. Recomendado para quem quiger aprofundar no impacto na Galiza.
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Ponte Sampallo. Imaxen Surreal de Galicia Xaime Quessada.Off-set sobre lรกmina. 490x300mm. Akal Editor. 1977
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As ‘Irmandades da Fala’ e a Galiza (nova) do primeiro terço do século XX Uxío-Breogán Diéguez Cequiel*
* Universidade da Corunha Os primeiros anos do passado século XX remetem para um tempo de mudanças e de contrastes entre o velho, oitocentista, e o novo, por vir, por tecer, por modelar. Um tempo de mudanças que veria nascer projetos diversos na Europa toda, e no qual as tensons tinham como epicentro a questom nacional em grande medida. A tal ponto que naqueles inícios de século, nomeadamente por volta de 1914, estalaria a Primeira Guerra Mundial, ou Grande Guerra, arredor do conflito político, de escala europeia, arredor do domínio da Alsácia-Lorena (que enfrentava a França com a Alemanha...) e as tensons imperialistas que tinham como protagonistas as potências europeias e os Estados Unidos da América. - 39 - outubro 2016 / KALLAIKIA
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As ‘Irmandades da Fala’e a Galiza Uxío-Breogán Diéguez Cequiel
A Galiza nom ficaria ausente destas questons e dos debates que arredor das mesmas se desenvolveriam a nível internacional. A imprensa galega da altura assim no-lo revela, observando como o galeguismo político ou soberanismo galego do momento aproveitaria para amplificar as suas demandas em chave nacional.
A vertebraçom do galeguismo político: as Irmandades da Fala Ao longo da segunda metade do século XIX, diversas manifestaçons se desenvolveriam reivindicando-se o facto “nacional” galego. As e os ativistas que dérom lugar ao chamado ‘Rexurdimento’ seriam as e os mais relevantes porta-vozes das reivindicaçons patrióticas galegas, tendo como realidade fundacional o ‘movimento insurreto’ -segundo o qualificaria a imprensa da altura- capitaneado por Miguel Solís e Antolim Faraldo no ano 1846. Manuel Murguia, do ámbito historiográfico, ou Aurelio Aguirre, Eduardo Pondal ou Rosalia de Castro, do ámbito literário e poético, iriam ser centrais neste esforço. Esforço em que se iria (re)construindo um relato em chave nacional a partir do qual sonhar (e tecer) o futuro do País. Todo um processo que coalhará, em chave político-organizativa, na reaçom da Associaçom Regionalista Galega (Corunha, 1890-92), que comandaria o próprio Manuel Murguia e da qual fariam parte, entre outros, Alfredo Branhas e Salvador Cabeza de León. A estes esforços iriam somar-se outras geraçons de galeguistas e soberanistas galegos nos primeiros anos, praticamente na primeira década, do século XX. Aurélio Ribalta, a partir de Madrid, ou Antom Vilar Ponte, marinhao assentado na Corunha, seriam centrais ao respeito, chamando à unidade dos galeguistas numha única plataforma política e de açom social (que nom um partido político, embora sim a sua génese, como veremos). Um processo que nom se poderia entender sem o agir e a iniciativa dos irmaos Antom e Ramom Vilar Ponte. Concretamente, Antom Vilar Ponte publicava em 5 de janeiro de 1916 o folheto Nacionalismo Gallego (Apuntes para un libro), com a sublegenda Nuestra afirmación regional, marcando o início do tal processo. Neste folheto, o intelectual e jornalista, recém chegado da emigraçom cubana, apresentaria umha veemente defesa e reivindicaçom da língua própria da Galiza. Expunha o redator do diário La Voz de Galicia a necessidade de articular um movimento que defendesse a língua galega, a partir do reconhecimento da Galiza como “pátria natural” e “povo livre com personalidade histórica”, sendo umha necessidade imperiosa criar umha grande plataforma galeguista, que agrupasse todos os efetivos com que este ideário contasse. 40
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Uxío-Breogán Diéguez Cequiel As ‘Irmandades da Fala’e a Galiza
O texto condensava boa parte da tradiçom galeguista anterior, trazendo certas novidades, tais como a incorporaçom do termo ‘nacionalismo’, como sinónimo atualizado do que vinha denominando-se com anterioridade ‘regionalismo’, liderado em grande medida polo historiador Manuel Murguía. Saía do prelo aquele documento após um chamado que tinha feito o patriota galego Aurélio Ribalta, em defesa do Idioma e País Galego; tentando criar umha organizaçom que recolhesse e renovasse o substrato soberanista prévio. Tam só quatro meses depois, exatamente no dia 18 de maio daquele 1916, Antón Vilar Ponte convocaria no local da Real Academia Galega a reuniom constituinte do que se denominará num início, ao que parece por sugestom de Ramón Vilar Ponte, “Hirmandade dos Amigos da Fala”; dali a pouco comummente conhecida como Irmandade da Fala. Esta será a primeira organizaçom que, passando de ter o local como ámbito de atuaçom, adote dimensom nacional e junte homens e mulheres que sentiam a Galiza como Terra/Naçom própria, preocupados com a inferiorizaçom da língua e cultura galegas no próprio país, tentando dar umha resposta política a essa realidade. Conviveriam nas Irmandades membros integrados em diferentes partidos e sem adscriçom partidária, unidos polo anseio dumha Galiza reconhecida (e respeitada) na sua personalidade nacional. Esta nova agrupaçom patriótica salvará posiçons divergentes no relativo à questom religiosa, social e, em grande medida, política. Ora, nom podemos pensar que estamos a referir um partido político, e sim agrupamentos locais de caráter patriótico, onde o comum denominador era a defesa da identidade galega, materializada na luita pola normalizaçom e legalizaçom do idioma, assim como da reivindicaçom do facto nacional galego, da existência da Naçom Galega, ao longo dum processo histórico (apostando na ‘Autonomia’ da Galiza, a posse da terra para quem a trabalhasse -com a suspensom dos foros-, e a “soberania estética” da Galiza, entre outros aspetos bem inovadores e avançados para aquele tempo no atrasado sul da Europa...) ou a igualdade legal e civil entre homens e mulheres; de facto, frente à ideia de serem as Irmandades da Fala umha organizaçom só de homens, e sem sensibilidade feminista, há que lembrar que, para além da reivindicaçom da igualdade social e política de homens e mulheres, no seio destes agrupamentos patrióticos começariam a andar, três anos após o seu nascimento, as ‘Irmandades Femininas’ ou ‘secçons femininas’ das Irmandades –criando ‘bolsas de trabalho’ para mulheres emigradas, aulas de alfabetizaçom, et cetera…
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As ‘Irmandades da Fala’e a Galiza Uxío-Breogán Diéguez Cequiel
Seriam as Irmandades que inaugurariam o nacionalismo explícito, na linha do indicado; e fariam-no após terem celebrado a sua I Asambreia Nazonalista Galega em Lugo, no mês de novembro de 1918. Afirmavam daquela os irmandinhos, no seu manifesto assemblear, o que se segue: “...nós nomeámonos de hoxe para sempre nazonalistas galegos xa que a verba rexionalismo nom recolle todas as aspiracións nen encerra a intensidade dos nosos problemas...”.
Assistentes à I Asambreia Nazonalista de Lugo em 1918. Entre outros Ramón e Antón Vilar Ponte, Vicente Risco e Antón Lousada Diéguez
As Irmandades da Fala e a (re)organizaçom política do ‘galeguismo’. As Irmandades da Fala seriam integradas polos mais destacados valores da Galiza daquela altura. Entre outros, podemos e devemos lembrar os irmaos Vilar Ponte, Manuel Lugris Freire, Vicente Risco, Banet Fontenla, Manuel Iglesias Roura, Ramón Cabanillas, Salvador Cabeza de León, Galo Salinas, Lois Peña Novo, Ramón Outeiro Pedraio, Ugio Carré Aldao, Antóm Lousada Diéguez, Daniel Rodríguez Castelao, Armando Cotarelo, Jaime Quintanilla, Maria Miramontes, Ánxel Casal, Elvira Bao e os malogrados Lois Porteiro Garea e Johán Vicente Viqueira. A máxima 42
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Uxío-Breogán Diéguez Cequiel As ‘Irmandades da Fala’e a Galiza
referência teórica iria dá-la o ourensano Vicente Risco, autor da Teoria do Nazonalismo Galego, mudando parcialmente o paradigma assente, com anterioridade, por Murguia. Risco, para além do próprio livro que se publicaria sob o referido título. O relevo que darám as Irmandades à sua projeçom social, no que di respeito ao programa e ao ideário, daria lugar ao (re)lançamento do boletim/porta-voz A Nosa Terra (após a primeira etapa desta publicaçom, órgao de expressom do agrarismo galego em 1907), onde se iriam ler artigos de uns e outros caso de essa obra doutrinal de Risco. Através desta publicaçom, os militantes das Irmandades exporiam os seus postulados, teorizando arredor do problema nacional galego; doutrinando, aliás, os novos quadros que terá o nacionalismo daí para a frente. Daquela, a introduçom e evoluçom social do nacionalismo galego nom era, nem se aproximava, da que tinham os soberanistas irlandeses, escoceses ou galeses; ora, observariam um crescimento nada desdenhável. Nomeadamente as Irmandades iriam passar dos 200 aderentes no seu início, para 700 filiados dali a pouco; de 6 irmandades para 13, somando efetivos em 23 localidades, para além daquelas, como demonstrou o nosso colega Justo Beramendi. A Corunha e, gradualmente, Ourense, seriam as duas vilas em que esta organizaçom teria maior presença, por muito que esta ficasse longe, a inicios da década dos anos vinte do passado século, do apoio social desejável. E entre o ideário e imaginário patriótico galego do momento, o celtismo (e atlantismo) desempenharia umha funçom, enquanto adscriçom identitária, essencial; frente à adscriçom mediterránica de Espanha... Destacariam o filólogo Plácido Castro e o arqueólogo Florentino López Cuevillas na atualizaçom do discurso nessas questons e em chave abertamente política, iniciadas e socializadas polo historiador Manuel Murguia desde o último terço do século XIX.
Língua, educaçom, imaginário coletivo e questom social Entre as atividades das Irmandades, cumpre sublinhar a agitaçom popular em favor do idioma através de ‘meetings’ e encontros em salons, teatros e na própria rua. Igualmente, aos irmandinhos ou irmancinhos deve-se a elaboraçom dum ‘Vocabulário Galego-Castelán’, com um amplo glossário e umha série de expressons populares, muitas delas, diga-se de passagem, na atualidade desaparecidas. O dicionário temos que enquadrá-lo na preocupaçom (e debate) arredor das normas de ‘unificazón do idioma galego’, que veríam a luz década e meia depois da fundaçom das Irmandades.
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Neste labor de recuperaçom da língua galega para todos os ámbitos de uso, defendendo a unificaçom com o português (que teria ligaçom direta com a proposta de ‘Federaçom da Galiza com Portugal’ -entendendo que historicamente faziam parte dum todo ambas as realidades, a partir da raizeira do velho Reino Suevo da Galiza...), as Irmandades incentivárom o ensino monolíngüe em galego, dando lugar, por exemplo, às Escolas de Insiño Galego (sic), da mao de Maria Miramontes e Ánxel Casal, na Corunha. Seriam especialmente críticos com um sistema educativo em que o professorado procedia de fora do País e marginalizava a língua própria da Terra, imprimindo no imaginário coletivo galego um sentimento de clara inferioridade frente ao espanhol (e a Espanha), que esse professorado normalizava no País, como língua superior, do saber e da ciência: “Os nenos das nosas aldeas e vilas falan galego... e nos seus beizos de anxeliños é unha música a dozura d’ista nosa fala melosiña.... Os mestres, que xeralmente non son da Terra, descoñecen a nosa fala, despréciana, aborrécena e fan que os nenos, que por eles se guían, vaian pouco a pouco esquecéndoa, mirándoa como unha lingua despreciábel”.
Primeira capa d’A Nosa Terra, 1916
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Aliás, cando moços universitários ponhem em andamento no ano 1923 o Seminário de Estudos Galegos, tendo como finalidade promover o conhecimento científico da Galiza e em galego, os membros das Irmandades nom duvidarám em dar cobertura à iniciativa, legitimando-a e ocupando a direçom da mesma (foi o caso dos catedráticos Armando Cotarelo Valledor e Salvador Cabeza de León, primeiro e segundo presidente da instituiçom em 1923 e em 1925, respetivamente). Convite que aceitará, dando-lhe cobertura, a mocidade nacionalista do momento (ao pouco, quadros centrais do nacionalismo na seguinte década).
A lingua será central no discurso político das Irmandades da Fala
Da mesma forma, as Irmandades da Fala procurariam também obter umha incidência político-institucional com voz própria para o País. Nesta linha, promoverám um trabalho eleitoral através do qual conseguiriam a primeira ata dum vereador municipal nacionalista. Assim foi que o jurista Lois Peña Novo sairia eleito pola Cámara Municipal da Corunha, no quadro das municipais de fevreiro de 1920, ficando Antón Vilar Ponte a ponto de conseguir a segunda ata para o nacionalismo da altura. Nesse momento, as Irmandades fixam (e socializam) datas de referência no calendário galego: 26 de abril, ‘Mártires de Carral’; 25 de julho, ‘Dia da Galiza’, 17 de dezembro, ‘Perda da independência’ da Galiza (em lembrança do assassinato do Marechal Pero Pardo de Cela, nobre galego, por ordem da rainha Isabel de Castela em 1483)... Estas datas enquadravam-se na necessária socializaçom de marcos históricos encaminhados à criaçom de outubro 2016 / KALLAIKIA
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um imaginário coletivo patriótico, em definitivo, de umha consciência nacional galega. Nesa consciência e imaginário, estaria especialmente presente a defesa e valorizaçom do mundo rural e das classes populares no seu conjunto (frente a um mundo urbano de forte castelhanizaçom...). O próprio facto de tomar o cabeçalho A Nosa Terra como publicaçom própria, quando este vinha de ser em 1907 o órgao de expressom dos agraristas de Solidariedade Galega, representava toda umha declaraçom de princípios. Boa parte dos primeiros quadros das Irmandades da Fala foram referentes do movimento agrarista (é o caso de Manuel Lugris Freire, Uxio Carré Aldao, Galo Salinas ou o próprio Murguia...). Uniam a “causa galega” com a reivindicaçom de um rico mundo rural, no qual o galego era o idioma de referência normalizado. Além disso, valorizavam a classe operária que era monolíngüe em galego e que luitava polos seus direitos no mundo urbano (procedendo maioritariamente do rural). Realidade a partir da qual nom nos deve surpreender a relaçom entre o advogado Lois Porteiro Garea e o líder operário José Pasín, anarquista compostelano, como tem estudado Dionísio Pereira, ambos membros fundadores da Irmandade da Fala compostelana. Da relaçom entre ambos, as páginas d’A Nosa Terra dam fé: “Dixo Luís Porteiro [Garea] no seu elocuentísimo discurso do noso mítin de Santiago que ô obreiro Xosé Pasín (...) débelle moito Galicia. Traballa arreo polo rexurdimento da raza (...). Un mestre no senso da organización. Gracias a el Compostela vaise vendo bloqueiada por sociedás agrarias. Pasín e moitos outros obreiros composteláns van espertando na concencia das multitudes o sentimento d’unha Terra redimida. Van facendo un povo livre sóbor dos cimentos do enxebrismo”. E é que boa parte dos integrantes das Irmandades da Fala tinham umha clara consciência popular e de clase. O que levaria a que Ramón Vilar Ponte impulsasse em 1918 a criaçom do “Sindicato da Construción” de Viveiro, junto a Atadell, tal como na Corunha aconteceria com Xosé Calviño, destacado militante anarquista, ou com o socialista Xaime Quintanilla, ativo das Irmandades da Fala primeiro em Compostela e despois em Ferrol. Realidade que na V Assembleia das Irmandades (1923) daria lugar ao acordo de criar umha organizaçom sindical galega, ficando responsabilizados a tal fin, como coordenadores, o próprio Ramón Vilar Ponte, César Parapar Sueiras e Calvinho. Iniciativa que nom deve estranhar, dado que as Irmandades da Fala com epicentro na Corunha se nutriam de todo um substrato e tradiçom galeguista prévia, netamente progressista e republicana, com Manuel Murguia à cabeça, à qual dariam umha nova etapa até os inícios da década de 1930. 46
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A transformaçom das ‘Irmandades da Fala’ no ‘Partido Galeguista’. Ao final da década de 1920 a Ditadura de Miguel Primo de Rivera meteria água e com ela a monarquia borbónica, pola cobertura que Alfonso XIII lhe dera. A partir da queda de Primo de Rivera e o seu sistema em 1929 a esquerda republicana, e nom só, acentuariam o seu agir, procurando um novo tempo. Aquela realidade daria lugar, após as eleiçons municipais de 1931, à proclamaçom da II República espanhola. A Galiza entrava numha nova etapa da sua história, realidade que veria bem nítida o galeguismo. Aconteceu que, diante desta tessitura, o nacionalismo galego reflexionaria intensamente arredor do seu modelo organizativo e da sua presença social. Cumpria ajustar a realidade organizativa aos tempos que estavam a se alicerçam. Nesta ordem de cousas, entre 5 e 6 de dezembro de 1931, ia desenvolver-se em Ponte Vedra a VII “Asambreia Nazonalista” das Irmandades da Fala. Da mesma fariam parte figuras como Daniel R. Castelao, Alexandre Bóveda, Lugris Freire, Ramón Outeiro Pedraio, Víctor Casas, Ánxel Casal, Plácido Castro ou Salvador Mosteiro. A importáncia da referida assembleia viria dada polo facto de os seus asistentes tomarem a decisom de criar o Partido Galeguista (PG), organizaçom que ficaria conformada, com organismos de direçom e responsabilidades eleitas democraticamente no próprio ato, no qual se daria lugar ao ‘Conselho Nacional’ do partido. Na prática, as Irmandades da Fala reconvertiam-se naquele PG. As figuras centrais destas ‘Irmandades da Fala’ reconvertidas no PG seriam Alexandre Bóveda, no plano organizativo, e Daniel R. Castelao no ámbito da agitaçom social junto Ramón Suárez Picallo, Antón Alonso Ríos, Ramón Otero Pedrayo ou Álvaro de las Casas. Outras figuras seriam de relevo, fazendo parte igualmente do Conselho Nacional, como no caso de Plácido R. Castro, que passaria a ser desde março de 1931 o “Conselheiro 2º” (vice-presidente) do grupo corunhês do Partido Galeguista; capitaneado por Víctor Casas, que seria “Conselheiro 1º”. Com Plácido R. Castro, por certo, aquele nacionalismo trabalharia arréu as relaçons internacionais, sendo formalmente e na prática quem ocuparia a representaçom do PG nos seus “assuntos exteriores”. Sem dúvida, era o militante da organizaçom galeguista mais formado neste ámbito, desenvolvendo-se tanto em galego, como em inglês, para além do espanhol. Teorizará incasavelmente arredor de estar a Galiza presente nos debates que arredor da questom nacional estavam a ser dados no ámbito europeu. Nesta ordem de cousas, indicaria este ativista num artigo publicado em A Nosa Terra, diante do Dia da Pátria do 1932, que girava arredor da questom nacional versus Estado espanhol [=Hespaña] e o ámbito internacional, que: outubro 2016 / KALLAIKIA
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“(…) os mais fondos conflictos da política internacional relacionánse con probremas de minorías e de autonomías, que hoxe eisisten na maioria dos Estados de todol-os continentes, aínda despois do trunfo recente de numerosos movimentos nacionalistas. A solución dos probremas d-iste caraiter é unha das etapas indispensabres na loita da pacificación do mundo –ceibando aos povos que se sinten asoballados, e debilitando ao mesmo tempo os grandes Estados imperialistas e militaristas. (…) debe Hespaña resolver os seus próprios probremas autonómicos denantes de pretender intervir como mediadora nos preitos alleos”. Nesta ordem de cousas, e nom por acaso, a Galiza estaria representada da mao do PG e a figura de Plácido R. Castro no ‘IX Congresso de Nacionalidades europeias’. Um encontro celebrado na localidade suíça de Berna, entre 16 e 18 de setembro de 1933 e adscrito à ‘Sociedade das Naçons’ (com o tempo, ‘Naçons Unidas’). Fôrom exatamente quinze as naçons representadas nesta cimeira e umha delas foi a Galiza mercê, como marcamos, do PG.
As páxinas de A Nosa Terra dariam eco à relevante nova, tal como outros meios, por exemplo El Pueblo Gallego. Neste meio, afirmaria Plácido R. Castro, por volta do 30 de setembro daquele ano, que: 48
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“Por vez primeira na sua historia Galiza concorreu con personalidade própria a un Congreso internacional. (…) foi acollida Galiza no Congreso de Nacionalidades europeias e admitiuse a declaración presentada pola sua delegación que di: O Partido Galeguista, partido nacional dos galegos, representado no parlamento español polos deputados Otero Pedraio, Castelao e Suárez Picallo, declara solemnemente (...) que conta con mais de dous millóns de almas e habita a totalidade do territorio de Galiza, é unha nación ben definida, que se diferencia claramente dos outros povos que habitan España. A sua orixe, a sua historia, o seu idioma, e os seus costumes xustifican esta diferenza dunha maneira absoluta”. Do Partido Galeguista, iria afirmar-se, através de A Nosa Terra, que este marco visibilizava a Galiza no palco internacional, de modo oficial, e que afortalava ortalecia a uniom entre as naçons sem Estado do ámbito europeu, assim como na Península Ibérica em particular. Neste ámbito, junto às naçons basca e catalá, o galeguismo vinha de impulsionar o “Galeuzca” naquele próprio ano de 1933. Ora, o PG indicaria que a luita pola conquista da soberania da Galiza tinha que ser obra do povo galego, sendo esa ‘oficializaçom’ do facto nacional umha cobertura à política do galeguismo, na liña das Irmandades: “Non vai pois Galiza buscar nin agardar do congreso unha axuda política pra resolver problemas que temos de solucionar nós mesmos. Vai si procurar o apoio moral da opinión internacional, a forza que dá a cooperación con movimentos afins, a defesa contra posíbeis opresons futuras dun reaccionarismo español unitario. (…) Quer universalizar a Galiza no doble senso de facer que a Europa a coñeza e de coñecer mellor a Europa, e manter relacións con todol-os movimentos semellantes ao noso, dos que tanto podemos adeprender”. Portanto, o trabalho que desenvolverám as Irmandades da Fala, até finais de 1931, e o roteiro que marcarám a partir da ‘VII Asambreia Nazonalista’ de dezembro daquele ano, estava a dar os seus frutos viçosos. O balanço do agir das Irmandades da Fala foi altamente positivo, significando a primeira etapa de um processo constante de amadurecimento, quer político quer organizativo, assim como social do nacionalismo galego desde a sua irrupçom explícita, do que o Partido galeguista seria a resultante maciça.
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Umha literatura para construir país: As “Irmandade da Fala” Henrique da Costa
NOTAS PRELIMINARES O processo de gestaçom das Irmandades da Fala, nascidas primeiramente com o nome de Irmandade dos Amigos da Fala, sobrevém após elas terem andado um longo percurso, porquanto bebem já das fontes do provincialismo oitocentista. Com posterioridade, será quando o provincialismo se converta em regionalismo, o qual se inclinará por umha natureza quer mais liberal, quer mais tradicional, quer mais federal, pois ham de ser as três faces em que este chega a ser exprimido. Mas a atividade ulterior dos sindicatos agrários, nascidos entre 1907 e 1912 (Acción Gallega, fundado em 1910 polo padre Basílio Álvarez, e Solidaridad Gallega) desempenhará também um papel fundamental. O desmoronamento da fidalguia a partir da década de 30, a consolidaçom de umha pequena burguesia industrial e financeira e, além do mais, o deslocamento da populaçom do campo para as cidades, com o conseqüente nascimento do proletariado, e umha vez os foros cheguem a desaparecer, haverám de traguer consigo toda umha série de mudanças. 50
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Destarte, a tal Irmandade dos Amigos da Fala vai ser constituída na Corunha na sede da Real Academia Galega em 17 de maio de 1916. Entre os seus assinantes contará com velhos militantes regionalistas e outras pessoas que acudiram ao chamado dos irmaos Vilar Ponte. Com antecedência, Aurélio Ribalta, prosista e poeta ferrolano residente em Madrid, tinha já feito um chamado em defesa da língua galega, em 1915, através da revista Estudios Gallegos. Foi este facto, porventura, o que acabou por incentivar a criaçom da Liga de Amigos do Idioma Galego. Por meio da imprensa, reclamava-se a defesa, dignificaçom e fomento da língua galega. Ulteriormente a esta data, acontecerá que as Irmandades da Fala se estendam por todo o território galego (Santiago, Ferrol, Betanços, Vilalva, Monforte...), de cujo facho, o do ideário galeguista, se farám eco as páginas do periódico A Nosa Terra. Depois, na assembleia de Lugo (1918), definirám-se as bases políticas do grupo: autonomia integral de Galiza e federaçom ibérica de povos, oficializaçom e dignificaçom da língua da Galiza e da sua cultura, e a programaçom de umha política económica diferenciada que permitisse resolver os problemas sociais do país. No entanto, será em Monforte (1922) onde se dará umha viragem definitivamente radical na atuaçom das Irmandades. Decide-se abandonar a linha política e passa-se a abraçar logo umha linha de índole mais culturalista. Mas do que sim nom se pode fazer questom em ambos os casos é de que as Irmandades da Fala, como parte do seu código identitário, se venham a proclamar nacionalistas de um jeito definitivo.
A CRIAÇOM LITERÁRIA O verbete “Irmandades da Fala”, e apesar de contar com amplo predicamento e extensom temporal mais ou menos clara entre teóricos e críticos da literatura, nom é bem nem grupo literário propriamente dito nem tampouco corrente estilística nengumha, caso pretendamos fazer umha classificaçom rigorosa e científica. Os seus principais esforços centráromse em tentar cultivar os géneros literários que menos se tinham trabalhado até ao momento. A normalizaçom lingüística por um lado, além da procura de umha normalidade literária, figérom com que boa parte da criaçom literária fosse orientada ao trabalho na prosa —atinente ao campo da narrativa curta sobretudo— e, se calhar, numha maior medida ao teatro. A poesia, bem que mal, já tinha sido de sempre o género mais cultivado, daí o esforço em tentar escritores que aderissem a estoutras propostas menos bem-sucedidas mas, por essa mesma razom, muito mais necessárias. Com este propósito virám a nascer diferentes coleçons de novelas, as quais se haverám de dedicar à ediçom de narrativa breve. E no campo teatral, entrementres, já nom será tanto o da ediçom de textos em si, mas a criaçom de umha escola de teatro cuja funçom terá de ser a de formar, outubro 2016 / KALLAIKIA
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fomentar e divulgar a criaçom dramática e atoral. Assim pois, de ambas as facetas, quer a narrativa, quer a teatral, falaremos com maior pormenor de seguida.
2.1. A POESIA Neste campo, é Ramom Cabanilhas o autor certamente auroral que o impregna tudo, fora do que venham a ser depois os grupos das vanguardas propriamente ditas. Antom Vilar Ponte, coetáneo e homem das Irmandades, tem qualificado o de Cambados como “Poeta da Raça”, dado o seu Da Terra asoballada (1917) se erigir como um poemário de incontestável alento patriótico. Tratou-se ele de um poeta cívico que abraçou a causa agrarista e mesmo brindou várias composiçons ao sindicato agrário Acción Gallega. Contudo, também tem cultivado outras facetas de destaque. Trabalhou as diversas dimensons da ‘saudade’, quer nos poetas galegos, quer nos portugueses; fijo poemas inspirados na tradiçom religiosa, como O bendito San Amaro (1925); ou alentados polo mundo céltico e as sagas artúricas, tal como Na noite estrelecida (1926); e debruçou-se, ainda, para a poesia intimista, pois assim acontece com A rosa de cen follas (1927), tomado o título de um verso de Rosalia de Castro. De maneira genérica podemos resumir a produçom poética deste período em dous grandes blocos. Aquele que segue as linhas continuadoras do séc. XIX, quer a social-patriótica, que vincularemos à esteira de Curros Henríquez; quer ao costumismo paisagista; quer ao intimista, ligado a umha certa vertente rosaliana, muito parcial e mesmo tergiversada da de Padrom. Eis Leiras Pulpeiro, López Abente, Francisca Herrera Garrido, Aurélio Ribalta, Nicolau Garcia Pereira, Álvarez Limeses, Crecente Vega, Noriega Varela ou o próprio Cabanilhas que citávamos antes. E o segundo dos blocos, o pré-vanguardista, que bebe já nas fontes do pré-rafaelismo inglês, do modernismo hispánico de Rubén Darío, do simbolismo francês ou do saudosismo português de Teixeira de Pascoais; e é nesta segunda vertente que ressaltamos o próprio Cabanilhas e alguns outros dos nomeados.
2.2 O ENSAIO Até esse momento, o ensaio tinha girado à roda do elemento étnico: queria ser ligado com a celticidade, ao tencionar ser ele o vínculo de caráter diferenciador que nos teria singularizado, enquanto povo, a respeito dos restantes povos peninsulares. Mas agora, e totalmente ultrapassada esta fase, há de ser o da defesa e difusom da língua em que se vaia nuclear a produçom deste período. As ferramentas lingüísticas de que se carecia, quer dizer, dicionários e gramáticas, fora resolvido de jeito pragmático: umha acaída escolha entre léxico culto e científico. Joám Vicente Biqueira 52
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converteu-se, se calhar, no aluno mais avantajado, criador de um estilo muito moderno e atual. A sua formaçom, herdeira da Institución Libre de Enseñanza, além dos estágios feitos em cidades alemás e francesas, animárom-no a publicar ensaios divulgativos sobre a realidade galega e o seu futuro. Sentiu verdadeira preocupaçom por achegar a ortografia do galego para o português, e publicou junto com Risco o “Plan pedagóxico prá galeguización na escola”, com umha defesa acesa por um ensino nacional galego. Em conclusom, a linha que predominará no ensaio desta época centrará-se na teorizaçom a respeito do nacionalismo, de um ponto de vista essencialmente culturalista e tradicional. Os nomes dos irmaos Vilar Ponte (tanto António como Ramom), Vicente Risco, Lousada Diéguez, Lois Peña Novo, Lois Tobio ou o próprio Joám Vicente Biqueira, serám os que mais destaquem como cultivadores do género. Por enquanto, teremos ainda o ensaio histórico, com umha reformulaçom do celtismo oitocentista (virado agora para o atlantismo), e o interesse também quer pola pré-história, quer polo séc. XIX. Depois disto, e no que ao ensaio se refere, pode chegar a ser confundido logo com a atividade iniciada polo Seminário de Estudos Galegos (1923), cujos eixos temáticos divergirám entre o ensaio etnográfico e folclórico, o geográfico, o literário, o filosófico, etc., quer dizer, atenderá-se agora a umha maior multidisciplinaridade. Nom esqueçamos, além disso, que o SEG é claramente conseqüência do labor que já tinha sido iniciado com antecedência polas Irmandades.
2.3. A NARRATIVA O período que abrange de 1919 a 1930 será o que venha a consolidar a prosa literária galega com a criaçom de coleçons: quer distribuídas junto com a venda de certos jornais, quer vendidas quinzenal ou mensalmente em livrarias. Tal foi o caso do suplemento “Terra, a nosa!”, do jornal corunhês El Noroeste, em que Vicente Risco se deu a conhecer como narrador com Do caso que lle aconteceu ao Dr. Alveiros (1919). Viriam depois “Céltiga” (1922), dirigida a partir de Ferrol por Jaime Quintanilha Martínez, e onde arrancou Castelao com a sua primeira obra narrativa, Un ollo de vidro. A coleçom “Lar” da Corunha, que se estende de 1924 a 1927, e foi dirigida por Leandro Carré Alvarelhos, chegou a tirar quarenta títulos, destacando-se, entre eles, Pantelas, home libre, de Ramom Otero Pedraio; A trabe de ouro e a trabe de alquitrán e O lobo da xente, de Vicente Risco; e Estebo, de José Lesta Meis. É preciso assinalarmos ainda a coleçom “Alborada” de Ponte-Vedra, a qual publicou, entre outros títulos, Maliaxe, de Luís Amado Carvalho. Em linhas gerais, podemos dizer que os homens da coleçom “Lar” —a mais prolífica delas, fora da editora Nós, e que aqui deixaremos à outubro 2016 / KALLAIKIA
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margem— estivérom vinculados ao setor corunhês das Irmandades. Também figérom parte desta coleçom autores ligados ao setor ourensao do nacionalismo, isto é, do grupo Nós. E ainda, afinal, outros que o estivérom ao Seminário de Estudos Galegos depois. O que quer dizer, em conseqüência, que o papel impulsionador da coleçom “Lar” tem sido fulcral para o desenvolvimento do processo narrativo das Irmandades da Fala. A narrativa que andou de a cavalo entre os séc. XIX-XX, a sua antecessora pois, tinha-se somado à ideia, por umha parte, do costumismo (punha-se em destaque aquilo que for mais enxebre); e a este respeito temos Pé das Burgas (1896), de Francisco Álvarez de Nóvoa; ou umha ideia mais marcadamente populista, cuja finalidade era a didática, como no caso do Lugris Freire dos Contos de Asieumedre (1909). Mas há de ser António López Ferreiro, no entanto, quem inicie mais a sério o caminho da romancística, para se destacar na temática do romance histórico com títulos como A tecedeira de Bonaval (1894), O castelo de Pambre (1895) e com O niño de pombas (1905). Mas a aposta verdadeiramente comprometida, aquela que vinha a corresponder com umha nova visom atualizadora da narrativa galega, correria a cargo dos homens da geraçom das Irmandades. Foi criada, no fim de contas, toda umha empresa editora para potenciar o romance em língua galega, chegando a distribuir e difundir as tais obras num circuito, onde custou ser valorizada e até pudo ser vista como um produto exótico. Propositadamente, os ditos romances nom ocupavam umha extensom além das 50 páginas, a trama costumava ser singela e, nomeadamente (facto este que as converte num produto diferencial a respeito dos finisseculares), estavam ambientados num contexto urbano e moderno, mesmo podendo chegar a ser fantásticos. Asssim pois, e quanto aos eixos temáticos, tentase desde umha reconstruçom ficcional da nossa História, passando pola reflexom sobre a cultura própria e a interpretaçom do presente coletivo, até a incorporaçom de temática nom galega, a re-escrita de temas populares ou a prosa didática com intençom criativa. Um caso excecional, se calhar, fosse o representado por Lesta Meis, emigrante em Cuba. Com umha prosa singela, tanto de léxico quanto de sintaxe, e ambientaçons rurais, conquanto tampouco nom deixe de aparecer a emigraçom a Cuba, o seu registo é verista, quase documental. Tanto Manecho o da Rúa (1926) como Estebo (1927) som editados em “Lar”. Este último é, contrariamente aos demais romances desta época, muito longo pois conta com quase 300 páginas. Em ambos se dá umha gabança à vida na terra natal, sem excluir no seu desenvolvimento as dificuldades da vida do camponês nem a realidade da emigraçom a América.
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2.4. O TEATRO Os antecedentes do teatro que se realize no tempo das Irmandades estarám marcados pola criaçom da chamada Escola Rexional de Declamación, nascida em 1903. Homens procedentes do regionalismo, como o ator Eduardo Sánchez Minho, o escritor Galo Salinas e o multifacetado Manuel Lugris Freire tornarám-na possível, mas nom sem problemas de vulto. Existem, contudo, umha série de traços que singularizam estes homens e que fam com que entronquem com facilidade com a evoluçom da etapa posterior do teatro das Irmandades. Pertenciam à chamada Cova Céltica, colaboravam na Revista Gallega, estavam vinculados à Liga Gallega e comprometidos com Solidaridad Gallega, aderiram à Academia e integrarám-se, a partir de 1916, no que haverám de ser as estruturas políticas, culturais e teatrais do nacionalismo das Irmandades da Fala (Conservatório Nacional de Arte Galega e a Escola Dramática Galega). Salinas fará um chamado a todos os escritores galegos para que lhe enviem as suas peças, forem impressas ou inéditas, com a única condiçom de estarem redigidas em língua galega. Autores como Ugio Carré Aldao, Cubeiro Pinhol ou Martelo Paumám responderám rapidamente ao chamado. A Escola Rexional de Declamación, além da difusom do ideário regionalista, pretendia ser um teatro estável de repertório ao serviço da formaçom de atores. Mas esta iniciativa tam digna de louvor acabou por morrer com celeridade. O género teatral terá que aguardar até 1915, ano em que começam a funcionar os coros folclóricos e populares por diferentes pontos do país, para se ver reativado. Quer dizer, além da música e da dança, estas agrupaçons acabam por incluir o teatro dentro das suas atividades quotidianas. Destarte, o coro Toxos e Froles de Ferrol foi o primeiro em incluí-lo como atividade estável da sua programaçom. Dito coro nascerá em 1914, por imitaçom do de Ponte-Vedra, Aires d’a Terra, fundado en 1883. Os ecos regionalistas e agraristas ainda subjazem nos seus fundadores, após terem acudido alguns simpatizantes de Ferrol ao comício agrarista de Rodrigo Sanz celebrado em Redes em 1914, em que falará em galego. Ao calor deste fervoroso encontro, Lois Amor Soto, Emiliano Balás, Ugio Charlom e outros procurarám o apoio de muitos galeguistas do país para conseguirem financiaçom para a criaçom de um coro. Bem aginha, vários autores darám-se a conhecer através dele, convertendo-se em verdadeiros impulsionadores de umha dramaturgia nacional, além de se preocuparem com que o seu teatro seja eminentemente didático e popular. Estamos a falar de Manuel Comelhas Coimbra, de Ugio Charlom e Sánchez Ermida, de Emiliano Balás e de Jaime Quintanilha. A vocaçom galeguista do coro percebe-se desde os seus inícios. A causa das Irmandades é defendida e difundida através do Toxos e Froles, outubro 2016 / KALLAIKIA
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que percorre Galiza para espalhar a música popular e o teatro, com obras dos devanditos autores e outros mais. A primeira das peças representada será O zoqueiro de Vilaboa, de Nan de Alhariz, bosquejo de zarzuela que será encenada no teatro Jofre de Ferrol o 29 de maio de 1915. Fora de programa, Ugio Charlom e Manuel Sánchez Ermida, surpreendem o público com um diálogo cómico em que ridicularizam todos aqueles que se envergoham da sua língua nativa. Tratará-se da peça Mal de moitos, um “parrafeio” de dous atores tam só —eles mesmos—, tarefa em que se haverám de especializar até escrever um total de seis peças, todas com umha forte carga reivindicativa. Os eixos temáticos do quadro de declamaçom som continuadores dos do teatro do séc. XIX. Denuncia-se nele o atraso económico da Galiza, fala-se da emigraçom e do papel hegemónico da fidalguia e do clero sobre as classes populares. Afinal, um teatro muito em sintonia com as teses do agrarismo, e em que as personagens mais populares e humildes saíam vitoriosas em tramas por vezes do mais inverosímeis e amiúde claramente maniqueias. Prado ‘Lameiro’, pola sua parte, vincula-se ao coro Ruada de Ourense, sendo autor de catorze obras de ambiente rural e costumista, de humor com toques de sainete, embora também exista nele sátira contra os exploradores. Ou outros autores, de igual jeito ligados aos coros, fôrom Henrique Labarte Pose, José Trapero Pardo, Leandro Carré Alvarelhos, Jesus Sam Luís Romeiro ou Antom Vilar Ponte; ora tampouco nos devamos esquecer d’O chufón (1915), umha das comédias mais célebres do nosso teatro, de Jesus Rodríguez Pérez, peça em dous atos em que se plasma um casamento por interesse com umha ambientaçom rural de bastante plasticidade. Contudo, o empuxo essencial e definitivo para o teatro desta época nom tem dúvida que se virá a dar umha vez sejam criadas as Irmandades da Fala. E nom se tratará de umha questom menor, bem ao contrário, o teatro tem de ser umha arma político-ideológica ao serviço da causa nacional a fim de levantar consciências. A língua torna-se no critério básico e absoluto para a consecuçom do seu propósito, de modo que ficam fora plasmaçons da realidade galega em que poda caber qualquer expressom (quer diglóssica, quer em espanhol com temática “agalegada”) em língua espanhola. Simultaneamente, as editoras que se preocupárom com editar novela curta, também editarám peças dramáticas. A partir deste momento evidencia-se umha ambiçom estética nos autores, mas também um afám de universalizaçom que calha com o espalhamento geográfico que se fai do teatro para chegar a circuitos nom estritamente urbanos. Som convocados prémios e começam a ser freqüentes as conferências sobre teatro, sobretudo nos primeios anos da década de vinte. Assim pois, e com data de 22 de abril de 1919, nasce o Conservatório Nacional de Arte Galega. 56
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O teatro rural e costumista ficara já um bocado desfasado, de modo que se começam a recriar outros aspetos mais singulares de Galiza, ora por vezes de umha perspetiva histórica, ora social ou cultural mas, finalmente, tratando temáticas muito mais universais. Desde os inícios, a trajetória e direçom do Conservatório Nacional de Arte Galega correrá sob a encomenda de Fernando Osório (1919-1922). De facto, a peça Unha anécdota, do autor português Marcelino Mesquita, virá a inaugurar esta nova etapa. Osório tinha desempenhado o cargo da direçom no Teatro da República em Lisboa, daí a encenaçom de dramaturgos portugueses por parte do Conservatório. Isto estará em sintonia com a ideia da criaçom de um córpus de liteatura dramática culta e moderna, ligado às propostas europeias mais vanguardistas. A peça de Ramom Cabanilhas, A man de Santiña, achega por vez primeira personagens fidalgas nesse processo de modernizaçom e universalizaçom de que estamos a falar. As mudanças produzidas, porém, nom estivérom isentas de polémica. A representaçom de Donosiña, de Jaime Quintanilha, em que “impudicamente” se sucediam abraços e beijos entre adúlteros, nesse típico triángulo amoroso do melodrama ou da comédia burguesa, nom foi do agrado de parte da concorrência. A inexistência de condena moral às tais relaçons extraconjugais pudo indignar certa parte dos membros do Conservatório. E, além do mais, trouxo consigo o confronto direto daquela parte dos tais membros que continuavam renitentes ao afám universalista e modernizante em que se embarcaram, e que agora incluía também traduçons ao galego de clássicos universais e autores de grande reconhecimento por aqueles anos como Yeats, Strindberg ou Maeterlinck. A rutura que se estava a fraguar no Conservatório Nacional de Arte Galega acabará-se por produzir em 1922, ano em que o nacionalismo galego entre em crise (Antom Vilar Ponte adere às teses culturalistas de Vicente Risco) e as Irmandades fiquem finalmente dissolvidas. Fernando Osório deixa a direçom e Leandro Carré Alvarelhos fará o revezamento dele, passando a se chamar agora Escola Dramática Galega. Produz-se umha evidente involuçom pois regressa-se aos já tripados caminhos do costumismo, porquanto se começa com a encenaçom de Filla...!, como homenagem a Galo Salinas, e com O corazón dun pedáneo, do próprio Leandro Carré. A respeito do conflito de que estamos a falar, é preciso assinalarmos alguns factos de vulto para compreender o que irá ser o teatro doravante. O labor de Antom Vilar Ponte centrava-se em tentar guiar, através das páginas d’ A Nosa Terra, os dramaturgos por meio de recensons de obras e autores que se inclinavam polo naturalismo e o teatro histórico com visos outubro 2016 / KALLAIKIA
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de epopeia e ares vindicativos. Vicente Risco, pola sua parte, explorava as tendências do teatro europeu contemporáneo. E Cotarelo Valledor tinha umha maior preocupaçom pola pureza da língua dramática. Mas no entretanto, o que decerto estava a acontecer era que nos certames teatrais convocados durante estes anos se estavam a premiar os dramas de natureza ruralista. Avelino Rodríguez Elias fazia fincapé na necessidade da existência de empresários que financiassem umha companhia, e Leandro Carré incidia em que se fazia precisa umha melhoria na formaçom de atores. A questom, na verdade, nom era tam simples como pudesse parecer, era muito mais profunda, ideológica mesmo, ao ponto de Leandro Carré nom ter estreado ainda O Mariscal, de Cabanilhas e Vilar Ponte, apesar de estar escrito desde 1922. A partir de umha série de conferências realizadas na Corunha em 1923, véu a conhecer-se com mais pormenor toda esta polémica a que nos estamos a referir. O diretor da Escola Dramática Galega afirmava ser A man de Santiña, de Ramom Cabanilhas, a peça teatral que marcava a nova tendência do teatro galego. Jesus Sam Luís Romeiro aproveitou a palestra para atacar Vicente Risco e, fundamentalmente, o teatro de Jaime Quintanilha. Galo Salinas, o velho regionalista, véu a corroborar as teses que com antecedência vinhera a propor Leandro Carré. Porém, há de ser um home da nova geraçom, Álvaro das Casas, quem vaia traguer as novidades, concordando com Vilar Ponte na necessidade do teatro histórico e em prescindir das convençons do teatro comercial; embora advogasse também por algo absolutamente inédito até ao momento, como era o teatro poético e em verso, em concordáncia com as últimas tendências das vanguardas. Em 1929 edita A morte de lord Staüler, um drama poético e histórico em três cenas, ambientado no tempo das luitas dinásticas entre Pedro I de Castela e a casa dos Trastámara, que lembra as grandes tragédias de Shakespeare, ligando-se deste jeito à conceçom propagandística e ideológica dos homens das Irmandades. A ditadura de Primo de Rivera tinha conseguido que nom houvesse teatro galego de qualidade durante vários anos. Rafael Dieste, em 1925, di que hai falta de bons atores e de boas obras. Vilar Ponte, por sua vez, fala da possibilidade de se fazer um teatro baseado nas lendas populares, ao estilo dos folk-dramas do teatro irlandês, mas para um público popular, e também a de um teatro íntimo, ao estilo de Strindberg, para um público minoritário e culto. O caso é que neste contexto haverám de nascer umhas das melhores obras do teatro galego: O Mariscal, de Antom Vilar Ponte e Ramom Cabanilhas, e A fiestra valdeira, de Rafael Dieste. Vítor Casas, seguindo nesta linha, afirma desde as páginas de El Pueblo Gallego, que pode citar oito peças certamente boas deste período: Trebón, de Cotarelo Valledor; Mareiras, de Lugris Freire; O pecado alleo, de Leandro Carré; Do58
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nosiña, de Jaime Quintanilha; A man de Santiña, de Ramom Cabanilhas; O Mariscal, de Cabanilhas e Antom Vilar Ponte (redigido em prosa por Vilar Ponte e versificado por Cabanilhas); María Rosa, de López Abente; e O fidalgo, de Jesus Sam Luís Romeiro. A ditadura de Primo de Rivera, conquanto atuasse autártica e autoritariamente, foi capaz de permitir na sua legislaçom elementos de índole regionalista. Aproveitando esta fenda, a Liga de Amigos de Santiago véu a convocar uns Jogos Florais em 1924. O prémio da comédia ficara deserto, enquanto o de drama fora ganho por O bufón d’El Rei de Risco. Contudo, passara este bastante despercebido, mesmo para A Nosa Terra. Mas o certo é que o verdadeiro momento em que já o teatro das Irmandades começa a ser outra cousa bem diferente, vai ser, de umha vez por todas, quando se abra aos homens da revista Nós, homens de umha visom claramente europeísta e atentos às inovaçons. Teatro dentro das correntes modernistas, simbolistas ou expressionistas, mesmo ao “teatro de arte”, como o tem definido Castelao, e que eclodirá na escrita do antedito O bufón d’El Rei, de Risco, d’A lagarada, de Otero Pedraio ou d’Os vellos non deben de namorarse, de Castelao. Regressemos, no entanto, ao teatro de Cabanilhas novamente. A man de Santiña (1919) foi a peça inaugural do Conservatório Nacional de Arte Galega. Segundo Carvalho Calero, trataria-se de um conto de fadas moderno, traçado de um otimismo rosado, cuja açom se desenvolve num paço. Narra-se umha história de amor, embora o que mais nos poda interessar há de ser a adesom do autor aos pressupostos políticos das Irmandades: igualdade de direitos da mulher, luita contra o caciquismo, redençom dos foros, cooficialidade do galego, etc. Cabanilhas e Vilar Ponte quigérom achar em Pardo de Cela, na rebeliom dele contra o poder dos Reis Católicos, elementos heroicos que dessem um valor mítico à nossa história, de modo a obviar propositadamente a faceta de senhor feudal e desapiedada para com os seus súbditos, e a sua atividade contra os irmandinhos. Ao nacionalismo interessava-lhe umha construçom literária do mito ao serviço da dignificaçom do país, de modo que a verdade histórica ficaria anulada em prol da verdade da lenda. A trama situa-se no Valadouro, no castelo de Pardo de Cela, e nos preparativos da traiçom. Elvira, umha criada, deixará entrar os castelhanos para apresarem o Mariscal. Este ficará confinado nos calabouços de Mondonhedo para a sua execuçom. Consegue-se-lhe o indulto real, mas nom se chega a tempo de evitar a execuçom. A vertente alegórica política, ainda que também religiosa, fai-se evidente: relacionamo-la com a paixom de Cristo através do beijo, do dinheiro, da prisom, da execuçom e da traiçom propriamente.
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Seguindo nesta mesma linha, Armando Cotarelo Valledor escreve Hostia (1924), teatro histórico que recolhe a figura do herege Prisciliano. Centra-se nos últimos momentos da vida do heresiarca galego, quem aguarda a sua execuçom na cadeia de Tréveris, e cuja decapitaçom tenta ser evitada por Prócula perante o imperador. A revitalizaçom da história de Galiza, convertendo Prisciliano em herói nacional, é aqui o que se procura. O restante teatro seu é de ambientaçom marinheira (Mourenza, Beiramar); de paço (Sinxebra); e rural (Trebón e Lubicán). Os homens de Nós tentam um teatro de qualidade, ajustado às necessidades da cultura galega e benévolo com o teatro em formaçom. Na peça O bufón d’El Rei de Risco (1928) tenciona-se dar um profundo caráter lendário e um sentido trágico, especialmente no desenlace. A açom dramática consiste na disputa amorosa entre o nomeado bufom e Guindamor, ambas as personagens namoradas da rainha Iolanda. E n’A lagarada (1929), de Otero Pedraio, é impossível deixar de ver a Valle-Inclán nesse eixo temático de avareza, luxúria e morte, junto com a degradaçom das personagens, que roça o esperpento. O autor fala-nos de umha farsa para ser lida, a qual se desenvolve durante a vindima no Ribeiro, rodeado de um ámbito de violência e de licenças dionisíacas. A tragédia envolve-se de elementos realistas mas fantásticos também, mesmo simbólicos, cujo epicentro está no assassinato. Um caso à margem de quantos vinhemos a nomear é o de Rafael Dieste. Envolvido neste tira-puxa entre “tradicionalistas” e “inovadores” que lá acima falávamos, publicará A fiestra valdeira (1927) na tipografia de El Eco de Santiago. O tema que nesta peça dramática se visa vai ser o da identidade, muito próprio do teatro de Pirandello. O velho marinheiro enriquecido no Brasil, que agora se fai chamar de Dom Miguel, quer que lhe fagam um retrato em que apareça o porto visto da janela da sua casa. A sua mulher e filha, polo contrário, querem que saia de fundo um jardim versalhesco, pois é mais elegante e senhorial. Eis o assunto que encerra o conflito: o debate entre a personalidade que o liga ao seu mundo marinheiro, à sua vila natal, ou o que o desliga finalmente, de modo que o conduz ao novo e alheio das riquezas e das aparências. Na resoluçom do conflito, em que também intervenhem os marinheiros da vila como sorte de coro, consegue-se reintegrar Miguel à condiçom perdida.
CONCLUSONS Umha vez acabado de estudar este interessante período, além dalguns dos factos mais sobressalientes do ponto de vista literário, podemos tirar algumhas conclusons que tentem enquadrar definitivamente o que vinhérom a ser as Irmandades da Fala. Devemos antecipar, no entanto, tudo 60
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quanto estivemos a dizer a propósito de nom ser bem nem grupo literário propriamente dito nem tampouco corrente estilística nengumha, caso pretendamos fazer umha classificaçom rigorosa e científica. E embora tudo isso, eis as principais conclusons que talvez possamos tirar a este respeito: Os limites temporais que se possam estabelecer sobre o assunto tratado nom som exatamente fechados. Nasce com a primeira Irmandade, a da Corunha, em 1916, mas a atividade literária tende a ser logo confusa com a da revista Nós (1920) e a do Seminário de Estudos Galegos (1923). Contudo, tanto os homens da geraçom Nós quanto os do SEG tampouco podem ser entendidos sem a existência das Irmandades ou, o que é o mesmo, estas outras duas propostas som apenas conseqüência da primeira. O esforço maior, do ponto de vista dos géneros literários, tem-se feito com a novela e com o teatro. O papel ideológico-cultural ao respeito deve-se-lhe ao órgao de expressom das próprias Irmandades, quer dizer, A Nosa Terra: Nasce toda umha atividade editorial para a publicaçom das novelas: mormente “Céltiga” (1922) e “Lar” (1924). Ambas, igualmente, também publicarám pecinhas de teatro. O nascimento do Conservatório Nacional de Arte Galega (1919), dirigido por Fernando Osório, com a ideia da criaçom de um corpus de liteatura dramática culta e moderna, ligado às propostas europeias mais vanguardistas; de cuja rutura nascerá a Escola Dramática Galega, que se produz em 1922, ano em que o nacionalismo galego entra em crise, e Leandro Carré Alvarelhos fará o revezamento dele, para regressar aos ultrapassados caminhos do costumismo. Numha certa medida, é a partir de 1923, já dissolvidas as Irmandades e com o ciclo de conferências sobre o teatro que se celebram na Corunha, que se poda datar a mudança para um teatro diferente ao que tinha havido até esse momento. Visa-se também a necessidade de que exista um empresariado autóctone que apoie e financie os projetos, quer editoriais, quer de encenaçom teatral (lembre-se a este respeito o que fica dito acima por parte de Avelino Rodríguez Elias). Afinal, a evoluçom desde as teses mais costumistas e ruralistas —quer para a novela, quer para o teatro—, passando para a temática histórico-lendária com a finalidade da construçom de mitos que afiancem umha idiosincrassia firme, até a busca da universalidade em diálogo com diversas correntes estéticas europeias, serám os esteios em que a produçom literária galega desta época se vaia querer consolidar. outubro 2016 / KALLAIKIA
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A procura, por fim, de um código lingüístico ajeitado, de umha língua literária que fixaria umha norma supradialetal, é também a pedra angular em que assentará a base de todos os homens das Irmandades da Fala. O género do ensaio foi testemunha destes argumentários, nomeadamente didáticos no que a Joám Vicente Biqueira respeita, quem à parte de recomendar o achegamento ortográfico do galego ao português falava já, em linhas gerais, da galeguizaçom do ensino. <<A nossa língua é o caminho de ouro da nossa redençom e do nosso progresso: sem a língua morreremos como povo, e nada significaremos jamais na cultura universal.>> Antom Vilar Ponte
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Os Galegos. Imaxen Surreal de Galicia Xaime Quessada.Off-set sobre lรกmina. 490x300mm. Akal Editor. 1977
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Internacionalismo operário em tempo de Irmandades Eliseo Fernández Fernández
A criaçom das “Irmandades da Fala” foi considerada como o início do nacionalismo moderno na Galiza, superando o provincialismo e o regionalismo do século XIX, no que atinge tanto a aspetos organizativos como a umha maior definiçom ideológica. Foi, evidentemente, o resultado dumha evoluçom que tivo lugar no contexto do fim do império colonial ultramarino espanhol, mas também no da apariçom de novos movimentos populares como o socialismo e em paralelo a um processo de articulaçom constitucional e parlamentar que tinha o republicanismo como força mais avançada. 64
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Eliseo Fernández Fernández Internacionalismo operário
Aquelas primeiras décadas do século XX em que nascem as Irmandades fôrom umha época convulsa a nível internacional, marcada pola consolidaçom dos movimentos socialistas e polos conflitos gerados na expansom colonialista que finalmente levárom à explosom da I Guerra Mundial. Apesar da sua reduzida implantaçom, o movimento operário galego nom ocupou um papel marginal naquele contexto, apoiado na riqueza das suas relaçons internacionais e na mobilidade do operariado emigrante galego. Cumpre lembrar que, se bem a Galiza podia ser considerada periférica numha visom geográfica com centro em Madrid e circunscrita a um ámbito espanhol, os portos de Vigo e da Corunha (como também Cádis, Lisboa ou Porto) eram, ao invés, espaços fundamentais numha mundializaçom precoce, que tinha as viagens transoceánicas como fios invisíveis que uniam o novo e o velho mundo. Já no século XIX fora possível constatar a atividade dalguns galegos nos novos movimentos sociais que estavam a surgir na Europa e América: foi o caso do corunhês Ramón de la Sagra, envolvido na elaboraçom das teorias socialistas em seus anos de vida em Paris, em contacto com Proudhon, Engels e Marx. De la Sagra mesmo publicou obras de carater socialista como “Organisation du travaill” ou “Banque du peuple”, sendo esta última um percurso polas teorias que sustentavam esta experiência e algo da sua história, pois Ramón de la Sagra tomara parte nela, junto com Pierre Joseph Proudhom. Na mesma linha podemos situar também o ortigueirês José María Salas Quiroga, que naquela altura publicou em Madrid um livrinho sobre as ideias socialistas de Louis Blanc, o que lhe valeu um processo judicial. Do ponto de vista prático, houvo também outros galegos implicados em experiências internacionais ligadas ao socialismo e às novas correntes, como o republicanismo mais radical: foi o caso de Esteban Ruiz Pons, de Padrom, e Leonardo Sánchez Deus, de Compostela, que estivérom comprometidos na luita pola independência de Itália, fazendo parte da “Legión Ibérica” que apoiou Garibaldi na altura de 1862 1. Anos mais tarde, o ferrolano Adolfo Vázquez Gómez também transitou as vias dum republicanismo próximo do socialismo, ligado à sua militáncia massónica, atuando em Lisboa, Buenos Aires e Montevideu; e o veterinário Federico Díaz Palafox, militante republicano ativo nos primeiros grupos internacionalistas de Ferrol na década de 1870, passou temporalmente polo exílio no Porto, depois da insurreiçom republicana de 1872 na cidade dos estaleiros.
Um movimento transnacional À medida que foi avançando o século XIX, a participaçom de galegos no movimento operário internacional deixou de estar protagonizada por elementos da intelectualidade mais avançada, para tomar um caráter mais outubro 2016 / KALLAIKIA
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Internacionalismo operário Eliseo Fernández Frnández
proletário e muito mais claramente ligado à militáncia nas organizaçons operárias. As dificuldades para a atividade reivindicativa na Galiza figérom com que muitos militantes das primeiras organizaçons operárias criadas na década de 1870 e 1880 tomassem o caminho da emigraçom, ou entom tivessem de se exilar de maneira forçada. Nos países de destino, muitos daqueles emigrantes militárom também nas organizaçons operárias e contribuírom com a sua experiência para um movimento que partilhavam com o operariado daqueles países e emigrantes das mais diversas nacionalidades. Um exemplo disso foi o compostelano Juan Bautista Pérez, que na década de 1880 estivera ativo no sindicalismo ferrolano, tendo sido redator do jornal “La Unión Obrera” e, como conseqüência dos problemas causados pola sua militáncia, tivo de emigrar para a Argentina em 1889. Na cidade de Buenos Aires, Juan Bautista Pérez fijo parte do grupo anarquista “El Cosmopolita” e participou na organizaçom sindical dos carpinteiros, mas a sua atividade chamou a atençom da polícia, que o detivo e expulsou da Argentina em novembro de 1889. A sua deportaçom foi umha das primeiras que o governo argentino aplicou contra os militantes operários, vindo inaugurar um dos métodos repressivos mais utilizados polos estados de todo o mundo na tentativa de frear ou sufocar o ativismo das classes operárias. A expulsom nom detivo Juan Bautista Perez e, na altura de 1904, o compostelano estava em São Paulo e, ali, animava a publicaçom do jornal anarquista “O amigo do povo”, em abril de 1902, em colaboraçom com operários portugueses, italianos e brasileiros. A figura de Juan Bautista Pérez é ilustrativa de como a emigraçom e a deportaçom constituíam parte da vida do movimento operário e tinham como conseqüência a mobilidade de muitos organizadores operários, o intercámbio de experiências e a difusom das ideias e práticas das diversas correntes socialistas. A expulsom de operários galegos sem qualquer abrigo legal chegou ao seu grau máximo em Portugal, na altura de junho de 1894, quando quase trezentos padeiros galegos de Lisboa fôrom expulsos do país luso com motivo da greve que tinham feito na capital lisboeta, em protesto por algumhas medidas da Cámara Municipal que iam em prejuízo da classe. A maioria deles eram padeiros originários do sul da província de Ponte Vedra, que tinham sido separados das suas famílias e conduzidos num transporte militar com direçom a Vigo. Em poucos anos, a prática da deportaçom foi adotada por inúmeros países e, na maioria deles, a emigraçom galega foi alvo de novas leis dirigidas à expulsom dos estrangeiros chamados de perniciosos: A Ley de Residencia (ou Ley Cané) na Argentina em 1902, ou a Lei Adolfo Gordo, no Brasil em 1907, fôrom algumhas daquelas disposiçons aprovadas. Em conseqüência, a Argentina e o Brasil fôrom os países em que a expulsom de estrangeiros foi mais comum, ainda que também outros países como 66
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Eliseo Fernández Fernández Internacionalismo operário
Cuba praticassem com regularidade a deportaçom de militantes operários, sem ter estabelecido umha normativa específica para o assunto. A paranoia criada pola vaga de atentados anarquistas e pola atividade violenta dalgumas agrupaçons foi aproveitada também polos governos para envolver, sob a nota de agitadores, homens e mulheres que só tinham cometido o delito de participarem em greves, agitaçons operárias e movimentos reivindicativos de todo o tipo. Afinal, era mais o temor à crescente implantaçom das organizaçons operárias, visível desde o início da comemoraçom do 1º de maio desde a década de 1890, que levou muitos governos a utilizarem medidas repressivas, como as leis de deportaçom. Para reforçar a aplicaçom da repressom sobre o movimento operário, as autoridades contavam também com o auxílio da ciência, por meio da chamada antropologia criminal defendida polo médico italiano Cesare Lombroso, quem na sua obra L’Uomo delinquente (1876) defendia a existência de criminais natos que estavam geneticamente destinados a se converterem em delinqüentes. Em obras posteriores, como Gli anarchici, Lombroso misturou anarquistas, pobres, desempregados, prostitutas, grevistas e marginais num tótum revolútum de pessoas perigosas para a ordem social; contra esta malta de gente era que o estado tinha o direito e o dever de se defender com todos os meios a seu dispor, o que vinha justificar qualquer forma de repressom, incluindo a detençom e deportaçom de ativistas sociais. Pola sua parte, o pensador libertário viguês Ricardo Mella refutou as teorias de Cesare Lombroso no seu livro Lombroso y los anarquistas (1896), negando a relaçom entre anarquismo e qualquer patologia psiquiátrica e demonstrando o escasso conhecimento que Lombroso tinha do movimento anarquista, e criticando também a legitimaçom da ordem social existente que resultava das teorias lombrosianas 2. Do mesmo jeito, a revista argentina Criminologia moderna de Buenos Aires, que partia das mesmas teorias de Lombroso, matizava também algumha das suas conclusons, mesmo publicando um artigo em 1900 em que um emigrante galego (originário de Tojosoutos-Lousame) chamado Bernardo Bargo Gómez, relatava a sua vida de emigrante virado para a delinqüência e finalmente regenerado socialmente por meio do estudo e a militáncia nas ideias avançadas 3. Nas primeiras décadas do século XX, foi moeda corrente a expulsom de militantes operários, especialmente nos países latino-americanos: a partir de 1902 na Argentina, depois de 1907 no Brasil e de 1911 em adiante em Cuba. Um elemento comum a aquelas deportaçons foi o grande número de militantes de origem galega entre os expulsos, ao ponto de só outras nacionalidades como a italiana estarem à mesma altura na Argentina e Brasil, do mesmo modo que destacou também o número de portugueses no Brasil, asturianos na Argentina ou canários em Cuba. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Internacionalismo operário Eliseo Fernández Frnández
Aquele movimento forçoso dos militantes mais comprometidos na atividade reivindicativa favoreceu a expansom do movimento operário nos diferentes países: o padeiro de Silheda Adrián Troitinho foi expulso da Argentina em 1902 e passou por Barcelona e Galiza antes de se estabelecer definitivamente em Montevideu, onde foi um dos mais importantes militantes operários. O arousano Julio Camba foi expulso com Troitinho e, por alguns anos, foi um destacado agitador anarquista em Madrid, onde publicou o jornal “El Rebelde”, antes de se converter num afamado jornalista e escritor. O viguês Antonio Loredo foi expulso também de Buenos Aires e foi dar a Barcelona, onde participou de jeito muito ativo nas organizaçons anarco-sindicalistas até a sua morte em 1918; a ele se atribui a denominaçom da cidade de Barcelona como “La Rosa de Foc”. Severino Chacón foi expulso de Cuba em 1911 e estabeleceu-se na cidade da Corunha, onde foi um destacado líder das operárias da Fábrica de Tabacos. Houvo militantes que fôrom expulsos de vários países, como foi o caso de Antonio Filgueira Vieites, expulso da Argentina em primeira instáncia, depois de Cuba com o Serverino Chacón e, finalmente, do Brasil em 1914. Aquele movimento tivo repercussons na Galiza também, com o retorno de militantes como Ricardo Alfonsín, José López Bouça (ambos anarquistas expulsos da Argentina), Francisco Pérez ou o próprio Antonio Filgueira Bieites (socialistas expulsos de Cuba), que contribuírom para consolidar o ativismo sindical em localidades como a Corunha ou Ferrol.
A emigraçom galega frente ao colonialismo As guerras para a manutençom das colónias em Cuba, Porto Rico e Filipinas colocavam a classe operária galega numha complexa situaçom. De umha parte, eram homens das classes populares da Galiza, tanto do ámbito urbano como do rural, que muito provavelmente iriam combater os independentistas em Cuba, Porto Rico e Filipinas, ao serem chamados ao serviço militar obrigatório. De outra parte, muitos homens e mulheres galegas estavam emigradas naqueles países, e umha boa parte deles simpatizava com a luita pola independência, ou era indiferente à mensagem unitarista espanhola. Finalmente, ainda que nom existisse na Galiza um discurso que defendesse francamente o independentismo, alguns dos problemas que padeciam as colónias ultramarinas eram semelhantes aos que a Galiza sofria, como conseqüência do centralismo do Estado espanhol. Em conseqüência, a postura do operariado galego diante das guerras coloniais foi de oposiçom e mesmo houvo algumhas mostras de apoio ao independentismo. Já no primeiro congresso operário realizado em Cuba em 1892, os trabalhadores ali representados tomárom um acordo em que apoiavam o independentismo cubano: “seria absurdo que o home que aspira à liberdade individual se opugesse à liberdade coletiva de um povo, 68
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ainda que a liberdade a que esse povo aspira seja a liberdade relativa consistente em se emancipar da tutela doutro povo”. Esta declaraçom, que fixava o apoio do operariado cubano à luita pola independência, foi tomada no Centro Galego de Havana e foi causa da suspensom daquele comício operário. Como conseqüência, muitos militantes operários integrárom as filas das tropas independentistas e muitas sociedades operárias de tabaqueiros da Flórida e Nova Iorque (com importante presença galega) apoiárom economicamente o independentismo cubano. Com o início da guerra, os socialistas, partindo dumha postura moderada, rejeitavam a incorporaçom a filas na Galiza, argumentando que os operários nom tinham de ir à guerra se os ricos nom o faziam. Por sua vez, o jornal da Corunha El Corsario, que tinha como correspondente permanente na ilha o corunhês Santiago Iglesias Pantim (depois líder socialista em Porto Rico), rejeitava a participaçom da classe operária na guerra e mesmo exprimia certa sintonia com os independentistas, aplaudindo a sua dignidade e sentido comum ao rebelarem-se contra quem pretendia dominá-los e explorá-los 4. Neira Vilas tem reivindicado os numerosos galegos que combatêrom nas filas dos insurretos no seu livro Galegos que loitaron pola independencia de Cuba 5. O historiador e politólogo de origem irlandesa Benedict Anderson explorou as relaçons que se estabelecêrom entre o internacionalismo anarquista e o anticolonialismo radical através do seu livro Under Three Flags: Anarchism and the Anti-Colonial Imagination. O pensador mais relevante do século XX na investigaçom das origens do nacionalismo e autor do transcendental Imagined Comunities situava em Paris o centro da oposiçom internacional ao colonialismo espanhol, onde se levavam adiante campanhas de propaganda que lembravam as torturas de Montjuich e os abusos coloniais em Cuba, Porto Rico e Filipinas; Anderson destaca que foi ali onde foi feito o conluio do independentista antilhano Ramón Emeterio Betances com o anarquista italiano Michelle Angiolillo, que levou à morte do político espanhol Antonio Cánovas del Castillo. Mesmo depois da independência, um tabaqueiro com origem familiar em Ribadeu, Luís Várzea, defendeu das páginas do jornal El Nuevo Ideal a necessidade para Cuba de umha nova independência, também do anexionismo estado-unidenses, que nos anos da chamada intervençom ameaçavam com prolongar a subordinaçom do povo cubano a potências estrangeiras. Naquela altura, o interesse de certa burguesia cubana e das autoridades estado-unidenses foi o de tentar dividir a classe operária entre peninsulares e cubanos, feito que nom tivo sucesso polo trabalho solidário da militáncia operária cubana e das suas organizaçons. É interessante lembrar também que um dos operários anarquistas envolvidos em atividaoutubro 2016 / KALLAIKIA
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des militantes junto a Luis Várzea foi Secundino Delgado, tempo depois considerado como o pai do independentismo canário.
Do local para o internacional, do internacional para o local O movimento operário tivera um primeiro ponto culminante em 1864 com a fundaçom da I Internacional, mas muito cedo, em 1872, a organizaçom dividiu-se entre os partidários do marxismo e do anarquismo e, daí para a frente, a atividade das sociedades operárias estivo dirigida a tentar tecer e destecer um novo organismo internacional operário. Naquele contexto, houvo múltiplas tentativas de constituir novos organismos nos diferentes níveis territoriais, que viriam a se relacionar federativamente com outros organismos, para a constituiçom de organizaçons operárias potentes e duradouras; umha tarefa que as diferenças ideológicas e a repressom das autoridades tornavam enormemente complicada. Nesse contexto, o operariado emigrante e a sua mobilidade (voluntária ou forçada) fôrom dalgum jeito um agente facilitador da comunicaçom entre as organizaçons proletárias de todo o mundo. Na Galiza, o movimento operário padeceu os mesmos problemas, pois inicialmente os primeiros núcleos internacionalistas criados na década de 1870 estavam unidos à Internacional e à sua Federación Regional Española mas, depois da divisom da AIT, a organizaçom cindiu-se também na Galiza entre a anarquistas e marxistas. Em 1888, o aparecimento da Unión General de Trabajadores levou a que sociedades operárias de localidades como Ferrol, Corunha e Vigo trabalhassem para a reorganizaçom operária em chave marxista, sendo a Corunha o baluarte do anarquismo. Ainda assim, o início da comemoraçom da data do 1º de Maio a partir de 1890 representou umha aproximaçom do operariado de todas as tendências ideológicas e a ratificaçom do caráter internacional dum movimento que estava unido naquela data por reivindicaçons comuns, como a jornada de oito horas. Mas, paradoxalmente, a Galiza era também um país de destino para imigrantes originários de Portugal, que na sua maioria vinham trabalhar em obras públicas nas grandes cidades galegas. Em ocasions, fôrom organizaçons patronais galegas as que promovêrom a chegada de operários portugueses como fura-greves, como aconteceu em Compostela em abril de 1898, nas obras da universidade, provocando graves enfrentamentos entre operários galegos e portugueses. Mas foi essa mesma situaçom a que levou a sociedades operárias da Galiza e Portugal a estabelecer relaçons e realizar um Congresso Operário na cidade arraiana de Tui, em 18 de janeiro de 1901, do qual véu a surgir como organismo federativo comum 70
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a União Galaico-Portuguesa. A maior parte das sociedades que assistírom eram socialistas e recomendárom a integraçom das sociedades operárias galegas na UGT e das portuguesas na Federação de Associações de Classe recentemente criada. Ainda que os congressos continuassem fazendo-se em 1902 e 1903 em Viana do Castelo e Braga, respetivamente, a União Galaico-Portuguesa desapareceu sem chegar a coalhar entre o proletariado das duas margens do Minho. Naquele mesmo período, as sociedades operárias da Corunha, de tendência anarquista, desenvolviam umha enorme atividade reivindicativa e organizativa. A brutal represssom a umha greve a finais de Maio de 1901, com a morte de sete pessoas, tinha colocado a cidade da Corunha no mapa dos grandes acontecimentos trágicos do operariado internacional da época. Pouco depois, os anarquistas corunheses lideravam as tentativas de reconstituir as organizaçons federativas anarquistas, como o traslado do escritório dos restos da Federación Regional Española em 1905 para a cidade herculina. A iniciativa dos anarquistas corunheses era coerente com o predomínio entre eles das tendências dos anarquistas chamados de organizadores, maioritária na Península Ibérica e América Latina, frente à linha partidária dos atentados individuais que tivera certo sucesso nalguns países europeus. A vida desta federaçom na Corunha nom foi muito longa e a organizaçom acabou por se dissolver em junho de 1907, depois do fracasso da ideia lançada pola Federación Obrera Argentina de fazer um congresso internacional das federaçons operárias da linha anarquista. A reconstituiçom das organizaçons anarco-sindicalistas no quadro do Estado espanhol, depois do fracasso da Federación Regional Española, iniciou-se no ámbito geográfico da Catalunha, onde foi fundada a Solidaridad Obrera em Junho de 1907, depois dum processo de reagrupamento das sociedades operárias de diferentes ofícios e localidades, algumha delas de caráter socialista e republicano. Umha vez consolidada a organizaçom da Solidaridad Obrera catalá dérom-se os passos adiante para fazer umha federaçom operária a nível estatal, que concluírom em novembro de 1910, com a fundaçom da Confederación Nacional del Trabajo (CNT). Algumhas sociedades operárias galegas participárom na fundaçom da CNT, mas o processo continuou a ter um caráter autónomo e descentralizado, que se levou adiante em paralelo em diversos ámbitos, com a criaçom da Solidaridad Obrera da Andaluzia em 1908 e da Solidaridad Obrera da Galiza, num congresso efetuado em Vigo, em setembro de 1911. A fundaçom da Solidaridad Obrera da Galiza foi o resultado da colaboraçom do Centro de Sociedades Obreras de Vigo e da Federación Local Obrera da Corunha, mas fracassou na tentativa de estender aquele organismo a outras localidades galegas 6. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Por sua vez, no Brasil tinha lugar em 1906 a criaçom da Confederação Operária Brasileira, nos locais do Centro Galego do Rio de Janeiro. O facto de ser eleito o Centro Galego para fazer o congresso fundacional da central sindical brasileira tem muito a ver com a colaboraçom que, entre 1903 e 1922, houvo entre este centro dos emigrantes galegos e o movimento operário anarco-sindicalista brasileiro: naquele período, o Centro Galego foi utilizado dezenas de vezes como espaço para a realizaçom de obras teatrais, palestras e conferências de caráter libertário 7. O II Congresso da COB tivo lugar em setembro de 1913 noutro local de raiz galega, como era o Centro Cosmopolita do Rio de Janeiro, integrado na sua maioria por emigrantes galegos que trabalhavam no setor da hotelaria daquela cidade brasileira. Também em Portugal havia operários galegos envolvidos na vida política e social do país luso, como José Amoedo ou o empregado hoteleiro Felício Rodríguez, que mesmo participárom na proclamaçom da República Portuguesa, em outubro de 1910. Raul Brandão relata nas suas memorias a participaçom de José Amoedo (assinalado por ele como líder do Grupo “Lix”) naqueles factos, entre outros galegos: “Alguém que esteve de manhã na Rotunda afirma que os revolucionários não passam de quinhentos. Entre eles populares esfarrapados, galegos e mulheres da feira de Agosto” 8. Também na organizaçom sindical portuguesa destacárom militantes como Luis Plaza, que estivera no congresso fundacional da CNT e também no da Solidaridad Obrera da Galiza, e na altura de 1912 mantinha umha pequena livraria na Casa Sindical de Lisboa, ao tempo que publicava obras de caráter social para o público português. Luis Plaza foi detido em 1912, no assalto à Casa Sindical, com um numeroso grupo de operários e sindicalistas, entre os quais estava também o empregado hoteleiro galego Luciano Gil Montes; tanto um como o outro tivérom um importante papel no período que foi desde o Congresso Sindicalista de Lisboa, em maio de 1911, até a criaçom da União Operária Nacional, no Congresso de Tomar em 1914. Como Luciano Gil Montes, fôrom muitos os galegos que estivérom envolvidos na Associação de Classe dos Empregados de Hoteis e Restaurantes de Lisboa, que publicárom o jornal A Defeza entre 1910 e 1924, e que luitárom de jeito maciço contra os proprietários dos cafés lisboetas para conseguirem salários dignos para a sua classe. A contestaçom contra outra guerra colonial foi o detonante do movimento da Semana Trágica que abalou a cidade de Barcelona em 1909. Milhares de pessoas protestavam contra a vontade do governo de enviar reservistas à guerra de África, muitos deles operários e pais de família. A declaraçom de greve geral a 26 de julho de 1909 paralisou a cidade por 72
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umha semana e deixou um rasto de explosons e igrejas queimadas em toda Barcelona e redondezas. A repressom foi fortíssima e afetou muitos operários galegos que militavam sindicalmente na Catalunha, como foi o caso do viguês já mencionado, Antonio Loredo, considerado como um dos líderes do movimento. No quadro daquele movimento repressivo, as autoridades espanholas ilegalizárom numerosas escolas libertárias e mesmo julgárom sumariamente o pedagogo Francisco Ferrer Guardia, como líder do movimento da Semana Trágica, quem foi fusilado a 13 de outubro de 1909. Afinal, a repressom contra o ensino laico e o assassinato de Francisco Ferrer erguêrom novamente em todo o mundo os protestos contra a chamada inquisiçom espanhola, com manifestaçons nas grandes cidades da América Latina e Europa, nas quais intervinhérom numerosos galegos ali emigrados. Entre os sindicalistas galegos que tivérom umha atuaçom mais destacada naquela época estivo o corunhês José Suárez Duque, que tivo de ir embora da cidade da Corunha depois do assassinato do patrom metalúrgico Miguel Muñoz Ortiz, em 1906. Após passar algum tempo em Gijom, onde participou na publicaçom do jornal Tiempos Nuevos, foi para Paris, onde colaborou nalgumha das mais importantes publicaçons anarquistas da época, como era Les Temps Nouveaux. Aliás, José Suárez Duque intervéu no congresso sindicalista internacional que tivo lugar em Londres em 1913, levando a representaçom de treze sociedades operárias corunhesas a aquela tentativa de reorganizaçom do anarco-sindicalismo europeu. As tentativas constantes de reagrupar o movimento operário internacional e o consenso de todas as correntes socialistas na rejeiçom à guerra saltárom polo ar com a declaraçom de guerra em 28 de julho de 1914, que deu início à I Guerra Mundial. Há quem assinale a quebra do internacionalismo, concretamente na data de 4 de agosto de 1914, quando o Parlamento alemám votou os créditos de guerra, com o apoio de boa parte dos deputados da social-democracia. Além disso, a maior parte dos sindicatos e partidos socialistas dos países em conflito apoiou também os seus governos no transcurso da guerra. Foi precisamente umha pequena agrupaçom local criada para reunir as sociedades operárias anarco-sindicalistas, o Ateneo Obrero Sindicalista de Ferrol, a que quijo reafirmar os princípios pacifistas e antimilitaristas do movimento operário internacional. Em 26 de fevereiro de 1915, este ateneu convocou um congresso internacional pola paz, ao qual chamárom a participar às sociedades operárias de todo o mundo, que teria lugar nos dias 29 de abril a 1 de maio do mesmo ano. Na comissom organizadora de congresso, havia militantes que tinham chegado expulsos da Argentina, como José López Bouça, e também imigrantes que tinham ido trabalhar a Ferrol, como o onubense Miguel D’Lom. outubro 2016 / KALLAIKIA
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O congresso efetuou-se clandestinamente, polos impedimentos das autoridades espanholas (que expulsárom os delegados portugueses e brasileiros depois da primeira sessom) e nele as sociedades operárias de toda a Península Ibérica reafirmárom as suas posiçons antibelicistas. Aliás, o congresso decidiu dar os passos para criar umha nova Internacional, que por alguns meses tivo residência em Ferrol, e estreitar os laços do proletariado de Espanha e Portugal, com a criaçom dumha chamada Federación Sindical Ibérica, que nom tivo concreçom. O único acordo que tivo conseqüências práticas foi o de animar as sociedades operárias a refundarem a CNT, que permanecia inativa desde a greve geral declarada em 1911. E alguns meses depois, em outubro de 1915, um dos artífices do congresso de Ferrol, Antonio Filgueira Bieites, como o anarquista Astrojildo Pereira (depois fundador do Partido Comunista Brasileiro), organizárom no Rio de Janeiro umha réplica do congresso ferrolano, o Congresso Internacional da Paz de Rio de Janeiro, que contou com a participaçom de sociedades operárias latino-americanas e que também nom tivo muito sucesso no aspeto prático das suas resoluçons. Para concluir esta revissom da emigraçom galega no movimento operário internacional, cumpre nom esquecer que também mulheres galegas como Juana Rouco Buela 9 tivérom umha importante militáncia em Buenos Aires, Barcelona e Montevideu. Do mesmo modo, a ferrolana Amalia Fraguela destacou na organizaçom do proletariado feminino na sua cidade natal, fundando o grupo anarquista feminino “La Antorcha” e depois, na altura de 1914, em Barakaldo, aonde chegara com vários emigrantes de Ferrol e onde fundou o grupo anarquista feminino “Luz y Armonía”.
O internacionalismo operário e as Irmandades da Fala A classe trabalhadora galega nom estivo completamente ausente do nascimento do nacionalismo galego: Antón Villar Ponte publicou em Março de 1916 o livrinho Nuestra ‘afirmación’ regional: apuntes para un libro e a primeira ediçom daquele texto fundamental para a criaçom das Irmandades tirou-se na Tipografia Obrera Coruñesa, sustentada cooperativamente polos tipógrafos ligados ao anarco-sindicalismo corunhês 10. O texto concluía com umha interessante citaçom do português Teófilo Braga, que vinha chamar à organizaçom política do nacionalismo: “A Galiza perde a sua existência política, e por tal ato apaga-se a sua cultura”. Muito pouco tempo depois da publicaçom do livrinho, nascia na Corunha a primeira das Irmandades da Fala.
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Eliseo Fernández Fernández Internacionalismo operário
Além da proximidade dos irmaos Vilar Ponte com a classe operária corunhesa, cumpre lembrar a figura do médico corunhês Jaime Quintanilla, quem já na altura de 1910 militara nas filas socialistas em Madrid, passou polo republicanismo e depois defendeu as ideias anarquistas em Compostela, na altura de 1912. Já em Ferrol, foi um dos integrantes mais ativos e presidente da Irmandade de Ferrol. Apesar do caráter burguês da maioria dos membros das Irmandades, as cumplicidades com o movimento operário estavam também nos grupos teatrais proletários como “Brisas Futuras” de Compostela ou o da Agrupación de Dependientes de Comercio, de Lugo, que incluírom no seu repertório obras do incipiente teatro galego, como Mal de muitos ou O fidalgo, junto a obras clássicas do teatro mais social. Mas nem sequer estas cumplicidades, nem a presença de Quintanilha, impedírom que as diferenças entre a militáncia operária e os galeguistas saíssem à luz no comício eleitoral nacionalista que tivo lugar em Ferrol a 8 de fevereiro de 1918: os membros da Irmandade e propagandistas catalanistas fôrom recebidos com um sonoro protesto, gritos de amnistia, vivas à Conjunçom Republicano-Socialista e cantos da Marselhesa e da Internacional, a tal ponto que o comício tivo de se suspender, diante da impossibilidade de os oradores se fazerem ouvir 11. Os tempos em que o internacionalismo operário e o nacionalismo galego chegassem a convergir dalgum jeito ainda nom eram chegados, por mais que pouco tempo depois, em outubro de 1921, houvesse notícias da publicaçom do jornal Tempos Novos em Buenos Aires, que se anunciava na imprensa operária como semanário anarquista escrito em galego 12. NOTAS [1] Ermida Meilán, Xosé Ramón. «Leonardo Sánchez Deus: do Banquete de Conxo ás milicias garibaldinas» in Terra e Tempo. [Consultado a 12-04-2016] [2] Girón, Álvaro «Los anarquistas españoles y la criminología de Cesare Lombroso», in Frenia, vol. II-2-2002.
[5] Neira Vilas, Xosé. Galegos que loitaron pola independencia de Cuba. Sada: Ediciós do Castro, 1998. [6] Só em 1922 tivo lugar finalmente a agrupaçom galega das sociedades operárias anarco-sindicalistas da Galiza na Confederación Regional Galaica da CNT.
www.revistaaen.es/index.php/frenia/article/ viewFile/16379/16225
[7] https://marquesdacosta.wordpress.com/ artigos-do-npmc/memoria-anarquista-docentro-galego-do-rio-de-janeiro-milton -lopes/
Consultada em 20-04-2016
Consultada em 20-04-2016
[3] Criminologia moderna. Buenos Aires, Janeiro-Fevereiro de 1900.
[8] Brandão, Raul. Memorias.
[4] El Corsario. A Corunha, 14-03-1895.
www.docs.paginas.sapo.pt/raulbrandao/ Memorias_II.pdf Consultada em 22-04-2016
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Internacionalismo operário Eliseo Fernández Frnández [9] Ainda que nascida em Madrid em 1889, Juana Rouco Buela era filha dum operário galego. [10] Nom se pode descartar que o seu contacto na Tipográfica Obrera fosse o tipógrafo Nicolás Trabadela, diretivo da Asociación Tipográfica nas primeiras décadas do século, que em 1917 era membro das Irmandades na Corunha. [11] El Correo Gallego. Ferrol, 09-02-1918. [12] La Antorcha. Buenos Aires, 28-10-1921.
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Valorizaçom do critério da coerência sistémica para patentear a superior adequaçom da codificaçom reintegracionista no ámbito da estagnaçom e suplência castelhanizante do léxico galego Carlos Garrido
«A opulencia de hum Reyno naõ só consiste na abundancia das riquezas, senaõ tambem na affluencia das palavras.» Rafael Bluteau, 1712, Vocabulario Portuguez e Latino: 2
1. Introduçom Desde o século xvi até aos nossos dias do século xxi, o léxico da variedade galega do galego-português, tal como ele é usado na língua espontánea e na língua culta da esmagadora maioria dos seus utentes, acusa, junto com outros males, umha absoluta incapacidade para se enriquecer autonomamente de maneira significativa (mediante a incorporaçom au- 77 - outubro 2016 / KALLAIKIA
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Valorizaçom do critério da coerência Carlos Garrido
tónoma de elementos lexicais [significantes e significados] que venham complementar o contingente vocabular medieval) e umha maciça penetraçom de elementos lexicais castelhanos que suprem as correspondentes lacunas expressivas (v. Esquema). Estes dous fenómenos de degradaçom lexical —denominados, respetivamente, estagnaçom e suplência castelhanizante (Garrido, 2011; Comissom Lingüística da agal, 2012: 101–145)—, os quais detraem notável idiomaticidade e funcionalidade à nossa língua, som devidos, por um lado, à subordinaçom sociocultural do galego, ao isolamento cultural da comunidade galaicófona a respeito das variedades socialmente estabilizadas do galego-português e à correlativa imposiçom sociocultural na Galiza da potente e estruturalmente próxima língua castelhana durante o mencionado período de cinco séculos; por outro lado, tal degradaçom lexical também tem ficado a dever-se à fraqueza do movimento cultural e político galeguista, atuante desde a segunda metade do século xix, e à deficiente e ineficiente orientaçom da teoria e da praxe lingüísticas que tenhem sido hegemónicas, sobretodo desde meados do século xx, no seu seio. De facto, nessa orientaçom deficiente e ineficiente (para umha cabal regeneraçom formal e funcional do galego) da teoria e da praxe lingüísticas da corrente hegemónica do movimento galeguista posterior à Guerra Civil Espanhola (Isolacionismo) pode enquadrar-se, claramente, a resposta codificadora dada pola Real Academia Galega e polo Instituto da Lingua Galega (rag-ilg) aos processos degradativos da estagnaçom e da correspondente suplência castelhanizante historicamente padecidas polo léxico galego, resposta que consiste numha geral e passiva aceitaçom de castelhanismos suplentes, caprichosa e tacanhamente pontuada por escassas soluçons —sempre idiomáticas e funcionais em galego— convergentes com as variedades lusitana e brasileira da língua e imprudentemente salpimentada com vistosos neologismos de invençom, sempre antieconómicos e freqüentemente disfuncionais (Garrido, 2010; Garrido e Riera, 2011: 28–41) 1.
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Carlos Garrido Valorizaçom do critério da coerência
ESQUEMA: PROCESSOS DEGRADATIVOS DO LÉXICO GALEGO séc. XVI - XXI VARIAÇOM G. SEM PADRONIZAÇOM (1) GALIZA:
A
A1 A2 A3 A4 A5
PT. + BR.:
A
A
GALIZA:
A B
PT. + BR.:
C
A
A b
B C
A
GALIZA:
A
PT. + BR.:
GALIZA:
A B
C
GALIZA
PT. + BR.:
VARIAÇOM G. SEM PADRONIZAÇOM (2)
SUBSTITUIÇOM CASTELHANIZANTE Castelhano: B
A
B (B’) A
EROSOM
A
A
ESTAGNAÇOM
PT. + BR.:
SUPLÊNCIA CASTELHANIZANTE GALIZA: PT. + BR.:
Castelhano: B Neologia autónoma: A
B A
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Valorizaçom do critério da coerência Carlos Garrido
No contexto do indispensável debate entre Isolacionismo e Reintegracionismo —tradicionalmente escamoteado, numha formulaçom racional e objetiva, ao conjunto da sociedade galega por um poder político até agora sempre detentado na Galiza polo nacionalismo espanhol—, revelase de grande importáncia (polas suas notáveis implicaçons formais e funcionais) a ponderaçom das vantagens e desvantagens relativas das três estratégias neológicas fundamentais que podem pôr-se em prática em resposta à estagnaçom e suplência castelhanizante padecidas polo léxico galego, ou seja, a neologia castelhanizante (i. é, consagraçom no galego culto dos numerosos castelhanismos suplentes que já ocorrem no galego espontáneo e, ainda, incorporaçom ao léxico galego normativo de mais castelhanismos), a neologia solidária com o luso-brasileiro (i. é, expurgaçom de castelhanismos suplentes e preenchimento das lacunas expressivas determinadas pola estagnaçom mediante a coordenaçom lexical com as variedades lusitana e brasileira da língua) e a neologia de invençom (i. é, expurgaçom de castelhanismos suplentes e preenchimento das lacunas expressivas determinadas pola estagnaçom lexical mediante a instauraçom de novos elementos lexicais [significantes e significados], de modo a surgirem soluçons que nom coincidem nem com o castelhano nem com o luso-brasileiro). Esta análise comparativa —que, quando naturalmente orientada para a consecuçom da máxima regeneraçom formal e funcional do léxico galego, nom pode deixar de patentear a nítida superioridade de umha estratégia baseada na constante coordenaçom lexical com o luso-brasileiro (Garrido, 2011: 385–674)— tem sido esteada, principalmente, no critério da idiomaticidade (grau de naturalidade ou funcionalidade com que encaixam no sistema lexical galego as correspondentes soluçons), o qual singulariza como especialmente indesejável a estratégia da neologia castelhanizante 2, e no critério da economia comunicativa, o qual assinala como irrelevante a neologia castelhanizante e singulariza como especialmente indesejável a estratégia da neologia de invençom 3. No entanto, no presente trabalho propomo-nos salientar e glosar um outro critério ponderativo, menos conhecido que os dous antes mencionados, que também assinala com grande clareza a superioridade da coordenaçom lexical com o luso-brasileiro e que se manifesta estreitamente vinculado aos critérios da economia comunicativa e da vantagem sociolingüística, ou seja, o critério da coerência sistémica. Por conseguinte, a seguir, dedicamos a segunda secçom do presente artigo à exposiçom da natureza e da potência argumentativa do critério da coerência sistémica, e fazemo-lo analisando, conforme este critério, e ainda conforme os critérios de idiomaticidade, economia comunicativa e vantagem sociolingüística, os méritos e deméritos de cada umha das três estratégias neológicas fundamentais (v. supra) aplicadas a dous casos concretos de estagnaçom e suplência castelhanizante bem eloqüentes 4. Aqui 80
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Carlos Garrido Valorizaçom do critério da coerência
cumpre declarar que esta exposiçom se baseia na experiência docente do autor, quem todos os anos letivos realiza com os seus alunos umha análise ponderativa encaminhada a delinear a melhor estratégia neológica para a língua de chegada nas aulas de traduçom técnico-científica de inglês e de alemám para galego, e, em conseqüência, que a exposiçom trabalha com o pressuposto (infelizmente necessário) de os recetores da argumentaçom ignorarem (quase) por completo a constituiçom lexical e gramatical das variedades lusitana e brasileira e a sua natureza fundamentalmente galego-portuguesa. Nem será preciso dizer que o objetivo último deste trabalho consiste em reforçar e divulgar o arsenal argumentativo, com clara aplicaçom pedagógica, utilizável na explicaçom e promoçom da estratégia codificadora reintegracionista.
2. Exposiçom de dous casos de estagnaçom e suplência castelhanizante e aplicaçom do critério da coerência sistémica à avaliaçom das correspondentes estratégias neológicas fundamentais Por critério de coerência sistémica, aplicado à ponderaçom dos méritos relativos das três estratégias neológicas fundamentais (v. supra), entendemos a avaliaçom do grau em que a execuçom de cada estratégia neológica permite configurar o sistema lexical galego, na sua totalidade, como um conjunto de natureza uniforme, em que os seus elementos se revelam côngruos, harmónicos entre si. Neste ponto, deve esclarecer-se que a lógica de aplicaçom do critério da coerência sistémica repousa no facto de os elementos lexicais e as estruturas morfossintáticas (gramaticais) fundamentais, de surgimento anterior ao século xvi, serem coincidentes, com poucas exceçons, em galego, em lusitano e em brasileiro. Os dous exemplos de estagnaçom e suplência castelhanizante aqui focalizados, pertinentes tanto para a linguagem corrente como para a linguagem especializada, correspondem à designaçom em galego do elemento químico de número atómico 8 (subsecçom 2.1) e à designaçom em galego da porçom ántero-superior do encéfalo (subsecçom 2.2).
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2.1. A designaçom em galego do elemento químico de número atómico 8 2.1.1. Notícia histórica sobre o conceito e a sua designaçom O elemento químico de número atómico 8, gás que integra o ar da atmosfera terrestre numha proporçom próxima a 21%, foi isolado pola primeira vez em 1772 polo químico sueco Carl Wilhelm Scheele, quem, numha publicaçom tardia (1777), que nom lhe havia de dar a prioridade da descoberta, o denominou (em alemám) ar de fogo (pola sua vinculaçom com a combustom). Em 1774 consegue isolar este elemento o químico inglês Joseph Priestley, recorrendo a umha experiência que descreve numha publicaçom do ano seguinte, que lhe dá a prioridade da descoberta, e na qual o elemento é designado (em inglês) como ar desflogisticado (denominaçom que se insere na errada «teoria do flogisto», que devia explicar o processo de combustom). Também no ano 1775, o químico francês Antoine Laurent de Lavoisier consegue, por fim, compreender cabalmente a participaçom deste elemento nos processos de combustom e, em 1777, no tratado intitulado Sur la combustion en général, atribui-lhe o nome (em francês) de ar vital, em alusom à sua indispensabilidade para a vida; já em 1779, Lavoisier renomeará o elemento, em francês, como oxygène (voz composta polos radicais gregos oxy- ‘ácido’ e -gène ‘que engendra’), na falsa conceçom de este elemento ser componente constante dos ácidos (Trueb, 2005: 306–307). Será, de facto, a partir do vocábulo francês oxygène, cunhado por Lavoisier em 1779, que na Europa as diversas línguas, ou modalidades lingüísticas, de cultura, socialmente estabilizadas, através de decalque semántico (p. ex., al. Sauerstoff) ou, com mais freqüência, através da naturalizaçom de empréstimos variavelmente adaptados (p. ex., cast. oxígeno, ingl. oxygen, it. ossigeno), vaiam estabelecendo, com demoras relativamente pequenas, a sua própria denominaçom. Assim, em luso-brasileiro (variedades lusitana e brasileira do galego-português), a denominaçom deste elemento abona-se por escrito, pola primeira vez, em 1836, no Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza, compilado em Paris por Francisco Solano Constâncio, sob a forma (ainda desprovida de acento gráfico e com inclusom de um y etimológico) oxygeneo, a qual, em 1858, já surge como oxygénio (v. dicionário Houaiss: s.v. “oxigênio”) e hoje em dia se grafa oxigénio (Br. oxigênio) 5.
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2.1.2. Notícia onomásica respeitante ao galego Portanto, o conceito (no início, exclusivamente científico) ‘elemento químico (de número atómico 8) componente do ar que participa na combustom e é indepensável à vida’ e a sua designaçom surgem, com o isolamento e descriçom desta substáncia por parte de vários químicos europeus, só no fim do século xviii, altura histórica em que o galego leva padecendo três séculos de efetivo afastamento da escrita e dos usos formais e em que ainda lhe faltam quase dous séculos para poder conhecer algum uso científico (embora este seja, mesmo hoje, relativamente raro). Deste modo, o galego nom pudo habilitar autonomamente (em coordenaçom com as suas variedades normalizadas lusitano e brasileiro) na altura própria qualquer denominaçom para denotar esse conceito (estagnaçom lexical), e porque, desde entom, e até hoje, essa situaçom de paralisia ou autismo cultural nom tem podido ser eficazmente corrigida (v. supra), na fala espontánea do galego contemporáneo, para se preencher a correspondente lacuna expressiva, é que se utiliza a soluçom imposta pola única língua que na Galiza leva séculos funcionando como verdadeiro idioma de cultura: o castelhanismo (corrompido) osígheno (suplência castelhanizante por parte do cast. oxígeno). Frente a este caso de estagnaçom e suplência castelhanizante manifestado na fala espontánea do galego contemporáneo, na presente altura o isolacionista Dicionario da rag responde propondo o uso, no galego culto, da soluçom osíxeno (secundariamente, desde a reforma normativa de 2003, também oxíxeno) 6, ou seja, o correspondente castelhanismo suplente, levemente retocado, enquanto que a codificaçom reintegracionista propom oxigénio, soluçom habilitada através da coordenaçom com o luso-brasileiro. Neste ponto, portanto, suscita-se-nos a seguinte questom: qual destas duas soluçons, osíxeno ou oxigénio, se revelará mais adequada em galego, para atingir a sua plena regeneraçom formal e funcional e para favorecer os interesses dos utentes de galego?
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2.1.3. Avaliaçom dos méritos relativos das soluçons osíxeno (neologia castelhanizante) / oxigénio (neologia solidária com o luso-brasileiro) conforme o critério da coerência sistémica (e critérios adicionais a ela associados) Som muitos os casos de disjuntiva entre umha soluçom neológica castelhanizante e umha soluçom neológica solidária com o luso-brasileiro em que o critério da idiomaticidade se revela decisório (sempre, em favor da coordenaçom com o luso-brasileiro, e em contra da neologia castelhanizante), como, por exemplo, o caso acima resenhado da disjuntiva neológica entre cobra e cobra-capelo para designarmos em galego as cobras tropicais extremamente venenosas que dilatam a regiom cervical quando se excitam (v. infra tb. o caso de cerebro/cérebro). No entanto, no caso em apreço, se o dicionário da rag propugesse como forma única ou preferente a castelhanizante oxíxeno, em vez da igualmente castelhanizante osíxeno, o critério da idiomaticidade revelaria-se inoperante, já que tam bem pode acomodar-se na estrutura ou no génio do galego a forma oxíxeno, decalcada do castelhano, como a forma oxigénio, incorporada a partir do luso-brasileiro; ora, como a forma efetivamente patrocinada pola rag é, na prática, apenas osíxeno (v. supra nota 6), a seguir vamos tecer, na alínea a), umhas breves reflexons sobre o défice de idiomaticidade desta soluçom castelhanizante, antes de analisarmos, nas alíneas b) e c), o critério da coerência sistémica e os critérios adicionais que lhe estám associados. a) Avaliaçom conforme o critério de idiomaticidade A forma oxigénio, solidária com o luso-brasileiro (e acompanhada, na mesma série, por óxido, oxidar e oxidaçom), encaixa perfeitamente, com plena naturalidade, na estrutura do galego, como o fam, em geral, todas as soluçons habilitadas através dessa estratégia neológica. Polo contrário, a soluçom osíxeno, que representa umha adaptaçom vulgarizante da forma castelhana oxígeno, nom se insere com naturalidade em galego, devido ao seu caráter plebeu e incoerente e, portanto, apresenta défice de idiomaticidade. Com efeito, dado o caráter culto, é até científico, do conceito ‘oxigénio’, e dada a tardia incorporaçom da sua designaçom à língua, o que se espera em galego é que o radical inicial (grego) do vocábulo, oxi-, nom perda, polo menos na língua cuidada, o seu valor fónico original /ks/ (cf. oxímoro no drag); ora, se se alegasse a naturalidade de que, em galego, a denominaçom do oxigénio, pola sua freqüência de uso relativamente elevada no discurso nom especializado, apresente umha «relaxaçom fónica» trasladada à grafia (cf. italiano ossigeno) —o que parece pouco convincente 84
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(cf. complexo no drag)—, entom, a rag ainda teria de explicar a crassa incoerência de propor, junto com osíxeno, as soluçons da mesma série óxido, oxidar e oxidación (e nom ósido, osidar e osidación), as quais (sobretodo, óxido!), nom apresentam na linguagem corrente umha freqüência de uso e umha realizaçom fónica claramente diferentes da designaçom do oxigénio (cf. italiano ossido, ossidare, ossidazione)! 7. b) Avaliaçom conforme o critério da coerência sistémica Para determinarmos qual das duas soluçons focalizadas, osíxeno ou oxigénio, enquanto representantes das estratégias neológicas castelhanizante e solidária com o luso-brasileiro, respetivamente, suscita no léxico galego (maior) coerência sistémica, neste caso podemos tomar como referência o vocabulário geral, em primeiro lugar, e o vocabulário do respetivo campo semántico, em segundo lugar. Assim, no quadro do vocabulário geral, consideremos, por exemplo, um enunciado do galego espontáneo contemporáneo (numha manifestaçom o mais genuína possível) como o seguinte, que se propom como representativo da configuraçom lexical geral e que, para efeitos argumentativos, se transcreve na norma rag-ilg (ex. 1b) e acompanhado dos enunciados equivalentes em «português» (ex. 1a) e em castelhano (ex. 1c): [Ex. 1a] «Para respirarem oxigénio, as minhocas e algumas lesmas sobem à superfície da terra quando chove muito.» [Ex. 1b] «Para respiraren osígheno [= osíxeno, oxíxeno], as miñocas e algunhas lesmas soben á superficie da terra cando chove moito.» [Ex. 1c] «Para respirar oxígeno, las lombrices y algunas babosas suben a la superficie de la tierra cuando llueve mucho.» Observa-se neste enunciado representativo que, deixando de parte as divergências ortográficas (sempre «artificiais», e que podem ser superadas com relativa facilidade) e as eventuais divergências fónicas (naturais em línguas muito estendidas, e que nom delimitam comunidades lingüísticas diferentes no seio de idiomas extensos, como o inglês, o francês, o castelhano, o alemám, etc.), todas as palavras som comuns a «galego» e a «português» 8, exceto polo que di respeito à denominaçom do elemento químico gasoso, a qual, no enunciado espontáneo «galego», consiste na correspondente palavra castelhana (oxígeno), mais ou menos alterada, enquanto no enunciado espontáneo «português» tal denominaçom consiste numha soluçom habilitada autonomamente no seio da língua (oxigénio). Isto é assim porque neste enunciado todos os seus conceitos e palavras surgem com anterioridade ao início do século xvi (altura em que começa outubro 2016 / KALLAIKIA
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a estagnaçom e a suplência castelhanizante do léxico galego), exceto o conceito correspondente ao elemento químico gasoso, que, como vimos, só surge no fim do século xviii, polo que a sua designaçom no galego espontáneo se vê afetada pola estagnaçom e pola suplência castelhanizante. Por conseguinte, expurgar neste enunciado a forma osígheno (ou osíxeno ou oxíxeno) e incorporar, no seu lugar, a soluçom oxigénio (ou, na norma ortográfica rag-ilg, oxixenio) constitui, das três estratégias neológicas fundamentais, a única que serve para tornar, de umha maneira racional e respeitosa com a natureza do galego, o vocabulário deste enunciado coerente, pois ele, assim, passa a ter todas as palavras anteriores ao início do século xvi galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro) e todas as palavras posteriores ao início do século xvi também galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro). Já quanto ao vocabulário do campo semántico dos elementos químicos, a que pertence a denominaçom do oxigénio, tenham-se em conta, em primeiro lugar, as duas seguintes tabelas: Tabela 1: Designaçom dos elementos químicos conhecidos na Europa antes do início do séc. xvi Portugal
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Galiza (fala espontánea contemporánea) Denominaçom galega genuína
Eventual incidência de processos de degradaçom lexical
chumbo
chumbo
cobre
cobre
enxofre
arxofre ~ axofre ~ enxofre ~ xofre
estanho
estanho
---
ferro
ferro
---
mercúrio (+azougue)
mercúrio (+azougue)
---
ouro
ouro
---
prata
prata
substituiçom castelhanizante: ~ *plata
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substituiçom castelhanizante: ~ *plomo --substituiçom castelhanizante: ~ *azufre variaçom geográfica: arxofre ~ axofre ~ enxofre ~ xofre
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Tabela 2: Designaçom de umha amostra representativa de elementos químicos conhecidos na Europa só após o início do séc. xvi Portugal
Galiza (fala espontánea contemporánea, com incidência da estagnaçom lexical e da suplência castelhanizante)
árgon (séc. xx)
*argón (< cast. argón)
arsénio (séc. xvii)
*arsénico (< cast. arsénico)
azoto (+ nitrogénio) (séc. xviii)
*nitrógheno (< cast. nitrógeno)
crómio (séc. xix)
*cromo (< cast. cromo)
hidrogénio (séc. xviii)
*hidrógheno (< cast. hidrógeno)
oxigénio (séc. xviii)
*osígheno (< cast. oxígeno)
platina (séc. xix)
*platino (< cast. platino)
zinco (séc. xvi)
*zin(c) (< cast. zinc)
À vista destas tabelas, verificamos que todos os elementos químicos conhecidos na Europa antes do início do século xvi tenhem no galego espontáneo contemporáneo um nome comum com o luso-brasileiro (coincidência plena, todavia, obscurecida, mas nom suprimida, nalguns casos, como se aprecia na tabela 1, pola incidência dos processos degradativos da substituiçom castelhanizante e da variaçom geográfica sem padronizaçom), e que todos os elementos químicos conhecidos na Europa só após o início do século xvi recebem no galego espontáneo contemporáneo a correspondente denominaçom castelhana, fruto da estagnaçom lexical e da suplência castelhanizante. Por conseguinte, expurgar do campo semántico dos elementos químicos a forma osígheno (ou osíxeno ou oxíxeno) e incorporar, no seu lugar, a soluçom oxigénio (ou, na norma ortográfica rag-ilg, oxixenio) constitui, das três estratégias neológicas fundamentais, a única que contribui para tornar coerente, de umha maneira racional e respeitosa com a natureza do galego, a terminologia dos elementos químicos, pois ela, assim, passa a ter todas as denominaçons anteriores ao início do século xvi galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro) e todas as denominaçons posteriores ao início do século xvi também galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro). Em conclusom, é claro que a expurgaçom no galego culto dos castelhanismos suplentes (como osígheno, ou osígeno, ou oxígeno) e o preenchimento das correspondentes lacunas denotativas mediante a incorporaçom das respetivas soluçons luso-brasileiras (como oxigénio), contribui para suscitar, ou restaurar, no léxico do galego (culto) contemporáneo a coerência sistémica, e que, polo contrário, tal nom se consegue mediante a validaçom normativa de castelhanismos suplenoutubro 2016 / KALLAIKIA
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tes (como osíxeno ou oxíxeno), nem mediante a eventual introduçom de neologismos de invençom, c) Avaliaçom conforme os critérios da economia comunicativa e da vantagem sociolingüística No enunciado representativo do galego espontáneo proposto no anterior exemplo 1, a substituiçom da forma osígheno pola forma oxigénio (ou oxixenio) torna o enunciado galego totalmente (ou quase totalmente) coincidente com o correspondente enunciado luso-brasileiro, umha vez que, além do léxico, também as estruturas gramaticais fundamentais som comuns a galego, lusitano e brasileiro (v. nos enunciados do ex. 1 o infinitvo flexionado respirarem, a conjugaçom verbal de subir...), o que pode generalizar-se no sentido de que a expurgaçom de castelhanismos suplentes presentes no galego espontáneo (e culto) contemporáneo e a simultánea incorporaçom ao galego (culto) das correspondentes vozes luso-brasileiras suscita um elevado isomorfismo entre os léxicos de galego, lusitano e brasileiro. É evidente, entom, que, do ponto de vista da economia comunicativa, a nível social, compensa investir os esforços necessários para realizar tal expurgaçom de castelhanismos suplentes e tal incorporaçom de neologismos luso-brasileiros (a um ritmo adequado), já que tais operaçons suscitam para os utentes de galego, de forma imediata, umha riquíssima sintonia comunicativa no seio de umha comunidade humana internacional de cerca de 300 milhons de pessoas (Lusofonia ou Galaicofonia). Polo contrário, do ponto de vista da economia comunicativa, para os utentes de galego, nom acarreta qualquer retribuiçom significativa o esforço de expurgarem castelhanismos suplentes para os substituírem por soluçons da neologia de invençom, pois a proliferaçom destas leva ao isolamento comunicativo no contexto internacional, enquanto que a validaçom no galego culto dos castelhanismos suplentes, além de descaracterizar o galego, nada contribui para a comunicaçom internacional, pois o mero facto de terem cheio o léxico do galego culto de castelhanismos nom fai com que os galegos tenham melhor audiência em Madrid, em Buenos Aires ou na cidade do México (se nom renunciarem, também, ao léxico e à gramática fundamentais do galego [no enunciado 1, a minhoca, lesma, terra, chover, muito, ao infinitivo flexionado, à conjugaçom verbal tradicional...], os quais som essencialmente galego-portugueses, e nom castelhanos!). Umha vez constatado o efeito suscitador, ou restaurador, da coerência sistémica por parte da estratégia neológica de coordenaçom lexical com o luso-brasileiro, e, em conseqüência, também a sua superioridade do ponto de vista da economia comunicativa, surge como evidente, ainda, a superior adequaçom da neologia solidária com o luso-brasileiro para prestigiar notavelmente, a olhos de galegos e de foráneos, o conhecimento e o uso do galego, circunstáncia de vital importáncia nos tempos atuais, em que umha 88
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crescente proporçom da populaçom galega, vítima da orientaçom política hegemónica (supremacismo espanhol-castelhano), considera ser o galego, cada vez mais, um lastro inútil (no sistema educativo, na vida social...).
2.2. A designaçom em galego da porçom ántero-superior do encéfalo 2.2.1. Notícia histórica sobre o conceito e a sua designaçom O conjunto de órgaos do sistema nervoso central compreendido dentro do cránio (dos vertebrados) e, em particular, a sua porçom mais anterior, de grande desenvolvimento na espécie humana, e onde residem as funçons neurais superiores, como o controlo das açons voluntárias, a linguagem, o pensamento, a resoluçom de problemas, a memória, a orientaçom espacial e as atividades motoras aprendidas, designava-se em latim por cerĕbrum9. Durante a Idade Média, na Europa, os textos científicos eram escritos exclusivamente em latim, mas, progressivamente, de forma mais ou menos lenta, as diferentes línguas nacionais de cultura fôrom habilitando vozes vernáculas de caráter especializado, freqüentemente através de umha naturalizaçom mais ou menos acabada dos termos latinos, processo, este, que só viria a cobrar impulso durante o Renascimento (séculos xv–xvi) e a consolidar-se a partir da revoluçom científica do século xvii e do Iluminismo (séc. xviii). Por designar um conceito científico (primariamente, anatómico), a voz galego-portuguesa equivalente e descendente da latina cerĕbrum é, portanto, de génese relativamente tardia, de modo que as suas primeiras abonaçons escritas som só do século xv: ela surge, sob a forma celebro, três vezes no Tratado de Alveitaria, traduçom efetuada na Galiza entre 1409 e 1420 a partir de um texto latino de tema veterinário (De morbus equorum) composto no século xiii por Jordanus Rufus, ou Giordano Ruffo, da Calábria (Pensado Tomé, 2004); surge umha vez como cerebro e outra vez como çelebro no Sacramental (c. 1423), de Clemente Sanchez Vercial, um dos primeiros livros impressos no galego-português de Portugal e traduçom da correspondente obra castelhana; e surge umha vez, como çellebro, na Crónica do conde D. Pedro de Meneses, elaborada entre 1464 e 1468 10. Ora, como vemos, em galego-português a voz culta e científica equivalente e descendente da latina cerĕbrum no século xv ainda nom está consolidada, pois ela aí surge polimórfica, vacilante, sem que tenha cristalizado ainda a sua forma (e, possivelmente, também nom a sua acentuaçom, a qual, em qualquer caso, nom fica explicitada graficamente nos textos medievais). A definitiva fixaçom morfológica e prosódica da voz galego-portuguesa descendente da latina cerĕbrum verificará-se no ámbito luso-brasileiro (nom na Galiza), e, provavelmente, durante o século xvi, ou, em todo o caso, antes outubro 2016 / KALLAIKIA
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do início do século xviii, já que de 1712 é o Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau, no qual se regista, na página 249, um verbete encabeçado por «cerebro. Cèrebro» (aqui, o complemento do lema serve para explicitar que é na primeira sílaba da palavra que recai a intensidade da pronúncia, numha época em que a acentuaçom gráfica ainda era muito parca) 11. A definitiva cristalizaçom morfológica e prosódica do derivado galego-português da voz latina cerĕbrum, ou seja, cérebro, tivo de aguardar, com efeito, ao século xvi ou xvii devido a que é no Renascimento que a moderna ciência anatómica floresce, impulsionada, sobretodo, pola publicaçom, em 1543, do renovador tratado De humani corporis fabrica libri septem, de André Vesálio (1514–1564), obra baseada na dissecaçom de cadáveres humanos, que mostra com grande rigor a organizaçom interna do corpo e em cuja parte sétima, de facto, se ilustra em pormenor o encéfalo e o cérebro humanos (Schneider, 2015); além disso, é na Renascença, graças à atividade dos humanistas (conhecedores e tradutores das línguas clássicas, pensadores, juristas, literatos, gramáticos, cientistas) 12, e no período barroco e iluminista (racionalistas, empiristas) que o acervo de greco-latinismos designativos de conceitos eruditos engrossa enormemente em galego-português (mas com a completa exclusom do galego!), ao ponto de o galego-português se tornar na língua románica que, de facto, maior caudal de cultismos greco-latinos incorpora e usufrui no seu léxico (Piel, 1989: 14; Verdelho, 1994: 343).
2.2.2. Notícia onomásica respeitante ao galego Portanto, a designaçom (no início, exclusivamente erudita) do conceito científico ‘conjunto de órgaos do sistema nervoso central compreendidos dentro do cránio, ou, em particular, a sua porçom ántero-superior’ só surge em galego-português cristalizada na sua forma e prosódia definitivas, atuais (cérebro), no século xvi ou xvii, com o nascimento na Europa da anatomia moderna e com o labor de humanistas e empiristas portugueses, altura histórica, essa, em que o galego-português já se encontra na Galiza afastado da escrita e dos usos formais e em que ao galego ainda faltam vários séculos para poder conhecer algum uso científico (embora este seja, mesmo hoje, relativamente raro). Deste modo, o galego nom pudo habilitar autonomamente (em coordenaçom com as suas variedades normalizadas lusitano e brasileiro) na altura própria qualquer denominaçom para denotar esse conceito (estagnaçom lexical), e porque, desde entom, e até hoje, essa situaçom de paralisia ou autismo cultural nom tem podido ser eficazmente corrigida (v. supra), na fala espontánea do galego contemporáneo, para se preencher a correspondente lacuna expressiva, é que se utiliza a soluçom imposta pola única língua que na Galiza leva séculos funcionando como verdadeiro idioma de cultura: o castelhanismo cerebro (suplência castelhanizante por parte do cast. cerebro). Frente a este caso de estagnaçom e suplência castelhanizante manifestado na fala espontánea do galego contemporáneo, na presente altura 90
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o isolacionista Dicionario da rag responde propondo o uso, no galego culto, da soluçom cerebro, ou seja, o correspondente castelhanismo suplente, enquanto que a codificaçom reintegracionista propom cérebro, soluçom habilitada através da coordenaçom com o luso-brasileiro. Neste ponto, portanto, suscita-se-nos a seguinte questom: qual destas duas soluçons, cerebro ou cérebro, se revelará mais adequada em galego, para atingir a sua plena regeneraçom formal e funcional e para favorecer os interesses dos utentes de galego?
2.2.3. Avaliaçom dos méritos relativos das soluçons cerebro (neologia castelhanizante) / cérebro (neologia solidária com o luso-brasileiro) conforme o critério da coerência sistémica (e critérios adicionais a ela associados) A seguir vamos tecer, na alínea a), umhas breves reflexons sobre o défice de idiomaticidade en galego da soluçom castelhanizante cerebro, antes de analisarmos, nas alíneas b) e c), o critério da coerência sistémica e os critérios adicionais que lhe estám associados. a) Avaliaçom conforme o critério de idiomaticidade A forma cérebro, solidária com o luso-brasileiro, encaixa perfeitamente, com plena naturalidade, na estrutura do galego, como o fam, em geral, todas as soluçons habilitadas através dessa estratégia neológica. Polo contrário, a soluçom cerebro, castelhanismo suplente validado pola rag, nom se insere com plena idiomaticidade em galego, já que, neste, como modalidade lingüística neolatina conservadora, os eruditismos greco-latinos devem apresentar, em princípio e em geral, umha acentuaçom etimológica, acontecendo que a soluçom castelhanizante *cerebro mostra acentuaçom antietimológica. Com efeito, dado que o respetivo étimo latino, cerĕbrum, possui umha vogal breve na penúltima sílaba, a sua acentuaçom em galego, para se revelar etimológica, e conforme a regra da quantidade silábica (v. Garrido e Riera, 2011: 51–52), deve ser esdrúxula 13, ou seja, cérebro 14. b) Avaliaçom conforme o critério da coerência sistémica Para determinarmos qual das duas soluçons focalizadas, cerebro ou cérebro, enquanto representantes das estratégias neológicas castelhanizante e solidária com o luso-brasileiro, respetivamente, suscita no léxico galego (maior) coerência sistémica, neste caso podemos tomar como referência o vocabulário geral, em primeiro lugar, o vocabulário do respetivo campo semántico, em segundo lugar, e, finalmente, também os respetivos sinónimos outubro 2016 / KALLAIKIA
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(de diferente registo ou ámbito de uso). Assim, no quadro do vocabulário geral, consideremos, por exemplo, um enunciado do galego espontáneo contemporáneo (numha manifestaçom o mais genuína possível) como o seguinte, que se propom como representativo da configuraçom lexical geral e que, para efeitos argumentativos, se transcreve na norma rag-ilg (ex. 2b) e acompanhado dos enunciados equivalentes em «português» (ex. 2a) e em castelhano (ex. 2c): [Ex. 2a] «Por terem um cérebro tão desenvolvido, os golfinhos guardam lembranças e podem “falar” entre eles.» [Ex. 2b] «Por teren un cerebro tan desenvolvido, os golfiños gardan lembranzas e poden “falar” entre eles.» [Ex. 2c] «Por tener un cerebro tan desarrollado, los delfines guardan recuerdos y pueden “hablar” entre ellos.» Observa-se neste enunciado representativo que, deixando de parte as divergências ortográficas (sempre «artificiais», e que podem ser superadas com relativa facilidade) e as eventuais divergências fónicas (naturais em línguas muito estendidas, e que nom delimitam comunidades lingüísticas diferentes no seio de idiomas extensos, como o inglês, o francês, o castelhano, o alemám, etc.), todas as palavras som comuns a «galego» e a «português» 15, exceto polo que di respeito à denominaçom da porçom ántero-superior do encéfalo, a qual, no enunciado espontáneo galego, consiste na correspondente palavra castelhana (cerebro), enquanto no enunciado espontáneo português tal denominaçom consiste numha soluçom habilitada autonomamente no seio da língua (cérebro). Isto é assim porque este enunciado é integrado na sua totalidade por conceitos cujas denominaçons cristalizam com anterioridade ao início do século xvi (altura em que começa a estagnaçom e a suplência castelhanizante do léxico galego), exceto polo que di respeito à denominaçom correspondente à porçom ántero-superior do encéfalo, que, como vimos, só cristaliza avançado o século xvi ou já no século xvii, polo que a sua designaçom no galego espontáneo se vê afetada pola estagnaçom e pola suplência castelhanizante. Por conseguinte, expurgar neste enunciado a forma cerebro e incorporar, no seu lugar, a soluçom cérebro constitui, das três estratégias neológicas fundamentais, a única que serve para tornar, de umha maneira racional e respeitosa com a natureza do galego, o vocabulário deste enunciado coerente, pois ele, assim, passa a ter todas as palavras anteriores ao início do século xvi galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro) e todas as palavras posteriores ao início do século xvi também galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro).
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Já quanto ao vocabulário do campo semántico dos componentes (órgaos) do corpo dos vertebrados (do ser humano), a que pertence a denominaçom do cérebro, tenham-se em conta, em primeiro lugar, as duas seguintes tabelas: Tabela 3: Designaçom no galego espontáneo contemporáneo de umha amostra representativa de componentes do corpo humano amplamente nomeados nas línguas vernáculas europeias antes do início do séc. xvi Galiza (fala espontánea contemporánea) Portugal
Denominaçom galega genuína
Eventual incidência de processos de degradaçom lexical
a bexiga (urinária) o coração
a beixiga (urinária) o coraçom
a coxa
a coxa
o cotovelo
o cotovelo ~ o côvado
o fígado
o fígado
a gengiva
a engiva ~ a gengiva
o joelho
o geonlho ~ o joelho ~ o jolho
a língua
a língua
o nariz
o nariz
o olho
o olho
o ouvido
o ouvido
o queixo
o queixelo ~ o queixo
o rim
o ril ~ o rile ~ o rinle ~ o rem ~ o rim
a veia
a ve(i)a
a virilha
a virilha
----substituiçom castelhanizante: ~ *o muslo variaçom geográfica: o cotovelo ~ o côvado substituiçom castelhanizante: ~ *o codo --variaçom geográfica: a engiva ~ a gengiva variaçom geográfica: o geonlho ~ o joelho ~ o jolho substituiçom castelhanizante: ~ *a lengua substituiçom castelhanizante: ~ *a nariz --substituiçom castelhanizante: ~ *o oído variaçom geográfica: o queixelo ~ o queixo substituiçom castelhanizante: ~ *a barbilla ~ *o mentón variaçom geográfica: o ril ~ o rile ~ o rinle ~ o rem ~ o rim substituiçom castelhanizante: ~ *o rinhom --substituiçom castelhanizante: ~ *a ingle outubro 2016 / KALLAIKIA
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Tabela 4: Designaçom no galego espontáneo contemporáneo de umha amostra representativa de componentes do corpo humano (também microscópicos) amplamente nomeados nas línguas vernáculas europeias só após o início do séc. xvi Portugal
Galiza (com incidência da estagnaçom lexical e da suplência castelhanizante)
cérebro (séc. xvi-xvii)
*cerebro (< cast. cerebro)
eritrócito (séc. xx)
*eritrocito (< cast. eritrocito)
esterno (séc. xvii)
*esternón (< cast. esternón)
indicador ‘dedo’ (séc. xx)
*índice (< cast. índice)
medula (séc. xvi)
*médula (< cast. médula)
mento (séc. xix)
*mentón (< cast. mentón)
neurónio (séc. xix)
*neurona (< cast. neurona)
omoplata (séc. xvii)
*omóplato (< cast. omóplato)
pálpebra (séc. xvii)
*párpado (< cast. párpado)
À vista destas tabelas, verificamos que todos os componentes do corpo humano amplamente nomeados nas línguas vernáculas europeias antes do início do séc. xvi tenhem no galego espontáneo contemporáneo um nome comum com o luso-brasileiro (coincidência plena, todavia, obscurecida, mas nom suprimida, nalguns casos, como se aprecia na tabela 3, pola incidência dos processos degradativos da substituiçom castelhanizante e da variaçom geográfica sem padronizaçom), e que todos os componentes do corpo humano amplamente nomeados nas línguas vernáculas europeias só após o início do século xvi recebem no galego espontáneo contemporáneo a correspondente denominaçom castelhana, fruto da estagnaçom lexical e da suplência castelhanizante. Por conseguinte, expurgar do campo semántico dos componentes do corpo humano a forma cerebro e incorporar, no seu lugar, a soluçom cérebro constitui, das três estratégias neológicas fundamentais, a única que contribui para tornar coerente, de umha maneira racional e respeitosa com a natureza do galego, a terminologia anatómica, pois ela, assim, passa a ter todas as denominaçons anteriores ao início do século xvi galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro) e todas as denominaçons posteriores ao início do século xvi também galego-portuguesas (coincidentes com o luso-brasileiro). Além disso, quando a disjuntiva neológica cerebro/cérebro se formula para o galego no quadro da sinonímia, é claro que só a incorporaçom ao 94
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Carlos Garrido Valorizaçom do critério da coerência
galego da segunda soluçom, harmónica com o luso-brasileiro, contribui para suscitar ou restituir a coerência sistémica. Com efeito, o sinónimo de cérebro disponível no galego espontáneo contemporáneo, próprio da língua popular (e da culinária!), é miolos, e miolos, de facto, também fai parte do luso-brasileiro, mas nom do castelhano, em que a denominaçom equivalente é a muito diferente sesos 16. Portanto, se o galego coincide com o lusitano e com o brasileiro em utilizar a voz antiga e popular miolos, a coerência sistémica demanda que também o galego coincida com o luso -brasileiro na utilizaçom do seu sinónimo, moderno e erudito, cérebro! 17 Em conclusom, é claro que a expurgaçom no galego culto dos castelhanismos suplentes (como cerebro) e o preenchimento das correspondentes lacunas denotativas mediante a incorporaçom das respetivas soluçons luso-brasileiras (como cérebro), contribui para suscitar, ou restaurar, no léxico do galego (culto) contemporáneo a coerência sistémica, e que, polo contrário, tal nom se consegue mediante a validaçom normativa de castelhanismos suplentes (como cerebro), nem mediante a eventual introduçom de neologismos de invençom, c) Avaliaçom conforme os critérios da economia comunicativa e da vantagem sociolingüística No enunciado representativo do galego espontáneo proposto no anterior exemplo 2b, a substituiçom da forma cerebro pola forma cérebro torna o enunciado galego totalmente (ou quase totalmente) coincidente com o correspondente enunciado luso-brasileiro, umha vez que, além do léxico, também as estruturas gramaticais fundamentais som comuns a galego, lusitano e brasileiro (v. nos enunciados 2a e 2b o infinitvo flexionado terem, a conjugaçom verbal de poder...), o que pode generalizar-se no sentido de que a expurgaçom de castelhanismos suplentes presentes no galego espontáneo (e culto) contemporáneo e a simultánea incorporaçom ao galego (culto) das correspondentes vozes luso-brasileiras suscita um elevado isomorfismo entre os léxicos de galego, lusitano e brasileiro. É evidente, entom, que, do ponto de vista da economia comunicativa, a nível social, compensa investir os esforços necessários para realizar tal expurgaçom de castelhanismos suplentes e tal incorporaçom de neologismos luso-brasileiros (a um ritmo adequado), já que tais operaçons suscitam para os utentes de galego, de forma imediata, umha riquíssima sintonia comunicativa no seio de umha comunidade humana internacional de cerca de 300 milhons de pessoas (Lusofonia ou Galaicofonia). Polo contrário, do ponto de vista da economia comunicativa, para os utentes de galego, nom acarreta qualquer retribuiçom significativa o esforço de expurgarem castelhanismos suplentes para os substituírem por soluçons da neologia de invençom, pois a proliferaçom destas leva ao isolamento comunicativo no contexto outubro 2016 / KALLAIKIA
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internacional, enquanto que a validaçom no galego culto dos castelhanismos suplentes, além de descaracterizar o galego, nada contribui para a comunicaçom internacional, pois o mero facto de terem cheio o léxico do galego culto de castelhanismos nom fai com que os galegos tenham melhor audiência em Madrid, em Buenos Aires ou na cidade do México (se nom renunciarem, também, ao léxico e à gramática fundamentais do galego [no enunciado 2b, a ter, desenvolver, golfinho, lembrança, falar, eles, ao infinitivo flexionado, à conjugaçom verbal tradicional...], os quais som essencialmente galego-portugueses, e nom castelhanos!). Umha vez constatado o efeito suscitador, ou restaurador, da coerência sistémica por parte da estratégia neológica de coordenaçom lexical com o luso-brasileiro, e, em conseqüência, também a sua superioridade do ponto de vista da economia comunicativa, surge como evidente, ainda, a superior adequaçom da neologia solidária com o luso-brasileiro para prestigiar notavelmente, a olhos de galegos e de foráneos, o conhecimento e o uso do galego, circunstáncia de vital importáncia nos tempos atuais, em que umha crescente proporçom da populaçom galega, vítima da orientaçom política hegemónica (supremacismo espanhol-castelhano), considera ser o galego, cada vez mais, um lastro inútil (no sistema educativo, na vida social...).
3. Conclusons Como fica patente nas linhas anteriores, o critério da coerência sistémica pode utilizar-se com grande vantagem, junto com o mais conhecido e igualmente eloqüente da idiomaticidade, para mostrar de modo convincente a superior adequaçom da codificaçom lexical reintegracionista no ámbito da estagnaçom e suplência castelhanizante padecidas polo léxico galego. De facto, o critério da coerência sistémica apresenta especial pregnáncia, especial potência argumentativa e pedagógica, polas seguintes caraterísticas, evidenciadas no presente trabalho: a) Introduz a perspetiva cronológica, histórica, histórico-política, histórico-social e histórico-cultural na análise da constituiçom lexical do galego (terminus ad quem do enriquecimento lexical autónomo e terminus a quo da estagnaçom lexical e correspondente suplência castelhanizante na Galiza: início do século xvi), sempre tam interesseiramente escamoteada polo Isolacionismo (ainda hoje o Dicionario da rag nom contém qualquer informaçom histórica sobre as vozes nele propostas; umha mínima honestidade intelectual encheria até ao escándalo da etiqueta «origem no castelhano» as notícias etimológicas dos elementos lexicais modernos nessa obra propostos!).
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b) A sua efetivaçom positiva, tal como só acontece com a neologia solidária com o luso-brasileiro, surge estreitamente vinculada à efetivaçom positiva dos critérios da economia comunicativa e da vantagem sociolingüística, tam pertinentes em relaçom aos interesses comunicativos dos utentes de galego e ao prestigiamento e à sobrevivência sociais da nossa língua na atual Galiza. c) Patenteia a natureza irracional e incoerente e o caráter lesivo para os interesses dos utentes de galego da codificaçom lexical isolacionista, irracionalidade e incoerência que, para pormos o ramo a este artigo, queremos salientar transcrevendo a seguir o princípio quarto da «Introdución» às Normas Ortográficas e Morfolóxicas do Idioma Galego, da rag e do ilg, na prática (e no drag!) tam escandalosamente desprezado polos seus proponentes: As escollas normativas deben ser harmónicas coas das outras linguas, especialmente coas romances en xeral e coa portuguesa en particular, evitando que o galego adopte solucións insolidárias e unilaterais naqueles aspectos comúns a todas elas. Para o arrequecemento do léxico culto, nomeadamente no referido aos ámbitos científico e técnico, o portugués será considerado recurso fundamental, sempre que esta adopción non for contraria ás características estruturais do galego. As escollas deben decidirse de acordo cun criterio de coherencia interna, a fin de que o galego común non resulte arbitrario e incongruente. («Introdución» das NOMIGa, rag-ilg, 2003: 12) NOTAS [1] Obviamente, consideramos resposta codificadora da rag e do ilg frente à estagnaçom e correspondente suplência castelhanizante do léxico galego, em primeiro lugar (prescriçom lexical propositiva), o conjunto de elementos lexicais que, nas sucessivas ediçons do Di(c)cionario da Real Academia Galega (penúltima ediçom, impressa, do ano 1998; ediçom mais recente, exclusivamente internética, que incorpora novidades de forma contínua, a partir de 2012), designam conceitos que na Europa começam a circular com posterioridade ao século xv, e, em segundo lugar, os usos lexicais plasmados em todos os textos normativos ou institucionais da rag e do ilg (prescriçom lexical pragmática). Além disso, mais abaixo con-
signaremos umha disposiçom codificadora adicional da rag e do ilg neste ámbito, que introduz umha significativa contradiçom ou incoerência. [2] Considerem-se, por exemplo, as seguintes soluçons neológicas castelhanizantes propostas polo dicionário da rag, que se revelam, a diferentes níveis, nom idiomáticas em galego: *alerxia [a acentuaçom natural, etimológica e coerente com a da voz enerxía, é alerxía!], *bombilla ‘lámpada’ [este sufixo diminutivo -ilha, próprio do castelhano, nom é patrimonial em galego!], *cobra ‘cobra-capelo, naja’ [decalque do castelhano assaz disfuncional, porque a voz patrimonial cobra designa em galego-português todos os ofídios!]), *silicona [voz berrantemente cacofónica em galego!].
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Valorizaçom do critério da coerência Carlos Garrido [3] Considere-se, por exemplo, o caso do neologismo engalar ‘levantar o voo umha aeronave, descolar’, proposto polo dicionário da rag e criado «no laboratório» por ampliaçom semántica do dialetalismo engalar ‘levantar o voo as aves’. Aqui, a questom é que o processo em virtude do qual os galegos, hoje, passarám a utilizar em galego engalar para se referirem a umha manobra dos avions é extremamente oneroso, e inútil do ponto de vista da economia comunicativa: com efeito, para tal, os galegos devem investir na criaçom de «laboratórios neológicos», cujos técnicos cunhem, com esforço, neologismos como engalar ‘descolar a aeronave’, devem realizar o esforço de aprenderem a palavra e o esforço de a usarem, mas, em contrapartida, a retribuiçom comunicativa de tanto esforço é desprezável, porque, com o uso de engalar ‘descolar’, o que os galegos conseguem é isolar-se comunicativamente, enquanto a utilizaçom alternativa da soluçom luso-brasileira de(s)colar (complementar de aterrar), e a de outras soluçons solidárias, suscita para o galego umha riquíssima e emancipadora sintonia comunicativa com umha comunidade internacional de c. 300 milhons de pessoas que falam variedades do galego. [4] Como se verá, nestes dous exemplos, selecionados pola especial clareza com que os critérios de coerência sistémica, economia comunicativa e vantagem sociolingüística testemunham a superioridade da coordenaçom neológica com o luso-brasileiro (e a correlativa inferioridade da neologia castelhanizante e da neologia de invençom), o critério da idiomaticidade apenas subtilmente testemunha a inferioridade da neologia castelhanizante, mas, em qualquer caso, nom deixa de o fazer. [5] Outro elemento terminológico da Química introduzido em luso-brasileiro, em galego-português, no século xix, e também sob a influência da obra de Lavoisier, é o sufixo nomenclatural -eto, incorporado em 1801 (através, inicialmente, do termo sulfureto, derivado do lat. sulfuretum) por Vicente Coelho de Seabra (1764B1804), professor da Universidade de Coimbra e sócio da Real Academia das Sciencias de Lisboa, no quadro da traduçom que ele publicou das regras de nomenclatura química de Guyton de Morveau, Lavoisier, Fourcroy e Berthollet
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do ano 1787 (v. Jerosch Herold, 2006). [6] Embora a forma oxíxeno seja mais correta que osíxeno (v. infra), para o atual dicionário da rag, osíxeno é claramente a forma preferente, e oxíxeno a secundária, umha vez que só s.v. “osíxeno” este dicionário inclui a correspondente definiçom, enquanto que s.v. “oxíxeno” o consulente é remetido para o verbete “osíxeno”. Por tal motivo, e porque, de facto, osíxeno é a forma de longe mais utilizada nos textos galegos produzidos conforme o padrom isolacionista, a partir de agora referiremo-nos exclusivamente a osíxeno como soluçom patrocinada pola rag e polo ilg. [7] Na realidade, a forma osíxeno parece ter sido originalmente promovida no padrom isolacionista da rag e do ilg polo desejo de se evitarem grafias como exixir ou oxíxeno, em que a duplicaçom do xis seria exigida polo aberrante banimento nas normas isolacionistas da letra jota e das seqüências ge e gi, etimológicas e internacionalizantes. Deste modo, poderia dizer-se que os codificadores isolacionistas resolvêrom sacrificar a natural realizaçom fónica culta destas palavras (cf. Pt+Br exigir, oxigénio; cast. exigir, oxígeno) em benefício de um abuso «menos rechamante» do grafema xis. [8] Salvo pola existência de pequenas variantes geográficas, que estám presentes tanto em Portugal como na Galiza (p. ex., ocorrência de quando e de muito em território galego). [9] Num uso correto e rigoroso (científico), o vocábulo atual derivado em galego-português (e em castelhano) do lat. cerĕbrum designa, unicamente, a porçom ántero-superior do conjunto de centros nervosos incluídos no cránio (porçom integrada polo telencéfalo [córtex cerebral, disposto nos dous hemisférios cerebrais, e gánglios da base] e polo diencéfalo [epitálamo, tálamo e hipotálamo]), porque, com o desenrolar da ciência anatómica, no sentido geral de ‘conjunto de centros nervosos compreendidos no cránio’, véu a utilizar-se o termo de origem grega encéfalo. [10] De cerca de 1318, um século anterior ao Tratado de Alveitaria galego, é o Livro de
Carlos Garrido Valorizaçom do critério da coerência Alveitaria de Mestre Giraldo, autor pertencente ao scriptorium de D. Dinis (Verdelho, 1994: 340–342; Del Río Riande, 2010). No entanto, este Livro de Alveitaria, surgido através de traduçom para galego-português de duas obras compostas em latim (De morbus equorum, de Giordano Ruffo [a fonte do Tratado galego], e Mulomedicina, de Teodorico de Bolonha), muito significativamente, deixa em latim, cerebrum, aquilo que, no Tratado de Alveitaria, já surgirá em vernáculo como celebro ( José António Souto Cabo, com. pessoal). [11] Segundo Verdelho (1994: 346), «O Vocabulário do teatino [de Rafael Bluteau] pode ser tomado como um ponto de referência, na história da língua portuguesa, para o processo de aportuguesamento geral e sistemático, das terminologias modernas científicas e técnicas. De certo modo, é o início da utilização do português como uma língua de escolarização científica e técnica.». [12] Nos campos da Medicina, Farmácia e Botánica, no século xvi notabilizam-se em Portugal Amato Lusitano (1511–1568), autor (em latim) das Centúrias de Curas Médicas e dos Comentários ao tratado grego de Dioscórides De materia medica, os quais incluem um glosário terminológico em galego-português e noutras línguas vernáculas (Borges, 2015), e Garcia de Orta (c. 1501– 1568), quem, em ligaçom com as expediçons portuguesas ao Oriente, redige (em galego -português) a farmacopeia Diálogos dos Simples e Drogas (1563). [13] Por sinal, também o inglês cerebrum e o alemám Cerebrum (ou Zerebrum) apresentam, conforme a etimologia, acentuaçom na primeira sílaba (v. Shorter Oxford English Dictionary, s.v. “cerebrum”; Duden – Deutsches Universalwörterbuch, s.v. “Zerebrum = Cerebrum”). [14] De facto, a rag, na mais recente ediçom do seu dicionário, transformou em monólito e em petróglifo os termos que, na ediçom anterior do seu dicionário (1998), constavam, respetivamente, como monolito e petroglifo, alegando, para tal (e com razom!), que, nesses casos, som as formas esdrúxulas (diferentes do castelhano e convergentes
com o luso-brasileiro) as etimológicas! Mas esse é, também, justamente, o caso de cérebro, que a rag continua a ignorar! [15] Salvo pola existência de pequenas variantes geográficas, que estám presentes tanto em Portugal como na Galiza (p. ex., ocorrência de guardar em território galego). [16] A voz galego-portuguesa genuína miolos surge hoje no galego espontáneo porque, em contraste com cérebro, é umha voz de origem e cristalizaçom precoces (1.ª abonaçom: séc. xiv, altura anterior ao início da estagnaçom e da correspondente suplência castelhanizante na Galiza) e pertence à esfera do léxico popular, que pudo persistir na fala rural e coloquial durante séculos, sem se ver afetada pola erosom (que determina a desapariçom na Galiza dos elementos lexicais de caráter culto gerados em galego antes do início dos Séculos Obscuros). [17] Um caso paralelo ao de miolos/cérebro é o de queixo (voz antiga e popular) e mento (voz moderna e culta): v. supra tabelas 3 e 4.
Bibliografia citada Borges, Ana Margarida. 2015. «Léxico científico português nos Comentários de Amato: antecedentes e receção». Em A. M. Lopes Andrade, C. de Miguel Mora e J. M. Nunes Torrão (org.): Humanismo e Ciência: Antiguidade e Renascimento: 251– 273. Editora da Universidade de Aveiro. Aveiro. Consultável em: <http://dx.doi. org/10.14195/978-989-26-0941-6_10> [consulta: 30.3.2016]. Comissom Lingüística da agal. 2012. O Modelo Lexical Galego. Fundamentos da Codificaçom Lexical do Galego-Português da Galiza. Através Editora. Santiago de Compostela. Del Río Riande, María Gimena. 2010. «El surgimiento de la prosa científica en Portugal: el Livro d’Alveitaria del Mestre Giraldo. Em P. Civil e F. Crémoux (org.): Actas del xvi Congreso de la Asociación Internacional de Hispanistas. Consultável em: <http:// cvc.cervantes.es/literatura/aih/pdf/16/
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Valorizaçom do critério da coerência Carlos Garrido aih_16_2_036.pdf> [consulta: 30.3.2016]. Garrido, Carlos. 2010. «Estratégia para a habilitaçom em galego do léxico especializado e culto». Em Comissom Lingüística da agal: Por um Galego Extenso e Útil. Leituras da Língua de Aquém e de Além: 105–143. Através Editora. Santiago de Compostela. Garrido, Carlos. 2011. Léxico Galego: Degradaçom e Regeneraçom. Edições da Galiza. Barcelona. Garrido, Carlos e Carles Riera. 22011. Manual de Galego Científico. Orientaçons Lingüísticas. Através Editora. Santiago de Compostela. Jerosch Herold, Bernardo. 2006. «O papel dos professores e investigadores universitários na tradução científica». Actas do ix Seminário de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa. Ciência e Tradução. Fundação para a Ciência e a Tecnologia/ União Latina. Lisboa. Pensado Tomé, José Luis (org.). 2004. Tratado de Albeitaria, de Jordanus Ruffus de Calabria (1409–1420). Introduçom, transcriçom e glossário de José Luis Pensado Tomé; revisom para o prelo e ediçom em apêndice de Gerardo Pérez Barcala. Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en Humanidades. Santiago de Compostela. Piel, Joseph-Maria. 1989 (1976). «Origens e estruturação histórica do léxico português». Em J.-M. Piel: Estudos de Linguística Histórica Galego-Portuguesa: 9–16. Imprensa Nacional/Casa da Moeda. Lisboa. Schneider, Martin. 2015. «Andreas Vesalius – Von der galenischen zur modernen Anatomie». Naturwissenschaftliche Rundschau, 1/2015: 20–24. Trueb, Lucien F. 22005. Die chemischen Elemente. Ein Streifzug durch das Periodensystem. S. Hirzel Verlag. Estugarda. Verdelho, Telmo. 1994. «Tecnolectos». Em G. Holtus, M. Metzeltin e Ch. Schmitt (org.): Lexikon der Romanistischen Linguistik. Vol. vi, 2, Galegisch, Portugiesisch: 339355. Max Niemeyer. Tubinga.
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Xunio Bruto pasa Orio Lethes (do olvido). Imaxen Surreal de Galicia Xaime Quessada.Off-set sobre lรกmina. 490x300mm. Akal Editor. 1977
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Aproximaçom à situaçom lingüística do Quebeque Raquel Paz
Inserido no Canadá, o Quebeque é um país em que som faladas diferentes línguas. A língua maioritária é o francês, seguida do inglês e de línguas algonquinas, inuítes e iroquesas. O francês é a única língua oficial do Quebeque, mas o Quebeque nom é o único território canadiano onde se fala francês, já que segundo o organismo oficial de estatísticas canadiana, Statistiques Canada, 4,2% da populaçom canadiana do exterior do Quebeque teria o francês como língua materna 1._ Os francófonos estariam divididos entre as províncias do Novo Brunsvique e Ontário, territórios do que foi a Nova França. A província exterior ao Quebeque onde o francês tem umha presença mais relevante é o Novo Brunsvique, com 32,5% do total dos habitantes com o francês como língua materna em 2011. 102
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Raquel Paz Aproximaçom à situaçom lingüística
O Quebeque é um território de grande extensom, com mais de um milhom e meio de quilómetros quadrados e algo mais de 8 milhons de habitantes. A maior densidade populacional concentra-se no sul e, de facto, metade dos habitantes do Quebeque moram na área urbana de Montreal. A capital, a cidade de Quebeque, é mais pequena e só conta com 800.000 habitantes. As margens do rio Saint-Laurent, onde ficam as vilas de Quebeque e Montreal, conhecêrom a conquista francesa e haviam de ver ainda umha nova conquista, desta vez, dos británicos. O francês que ocupara o território e que assimilara a populaçom autóctone continuaria a ser a língua da maioria da populaçom quebequense, mas tornava-se a língua minorizada. Haverá que esperar até o século XX para que o Quebeque tome consciência da sua identidade e para que reaja perante a presença do inglês e a sua evoluçom nos espaços urbanos. O caminho da política lingüística no Quebeque principiará também em meados do século passado, com a Revoluçom tranqüila de fundo. Os governos que se sucedêrom naqueles anos entendêrom a importáncia que a questom lingüística estava a atingir e é de facto possível entender a história política do Quebeque se observarmos as leis lingüísticas que se sucedêrom. As diferentes experiências legislativas nom estivérom isentas de polémica, tanto no Quebeque como no Canadá, e ainda hoje continuam a ser objeto de intensos debates nos meios de comunicaçom. A última lei promulgada data de há quase 40 anos e, apesar de conhecer algumhas transformaçons na sua história, continua ainda vigente e os seus princípios parecem permanecer atuais. A pergunta que surge é entom que conseguírom sessenta anos de proteçom consciente e ativa da língua. Umha breve passagem pola história do Quebeque desde a chegada dos franceses até a promulgaçom da última lei sobre a língua servirá para entendermos algo melhor a situaçom lingüística no Quebeque. Sem pretensons de análise histórica, nem sociolingüística, este texto pretende simplesmente achegar umha outra realidade de conflito lingüístico.
Contexto A história do Quebeque é a história de umha colonizaçom, como em tantos outros lugares da América, violenta e assimiladora. Jacques Cartier, um bretom de Saint-Malo, realizou três incursons no atual golfo de Saint-Laurent e navegou polo rio do mesmo nome até o território da atual vila de Montreal. A primeira das viagens de Cartier, em 1534, tinha como objetivo a pesquisa de um canal em direçom ao Pacífico, canal que outubro 2016 / KALLAIKIA
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Aproximaçom à situaçom lingüística Raquel Paz
evidentemente nunca encontrou. Também nom conseguiu se enriquecer com os minerais que ele pensava serem diamantes e que, no entanto, eram só quartzo. A ausência de lucros que pagassem as viagens além-mar fijo com que o interesse de França decrescesse e só no início do século seguinte os franceses tornárom a vista para o continente americano. Em 1608, Samuel de Champlain fundará a vila de Quebeque no território de Stadaconé, onde já chegara Cartier anos antes. A vila de Quebeque será o cenário do confronto que iniciará toda a história lingüística quebequesa atual, já que foi ali onde culminou a nova colonizaçom do Quebeque. A Guerra dos Sete Anos (1756-1769), um conflito a nível mundial, enfrentou, entre outros, a Gram-Bretanha e a França, que combatêrom na América do Norte pola supremacia colonial. Os británicos derrotárom os franceses na emblemática Batalha das Planícies de Abraám, em 1759. Era a rendiçom da vila de Quebeque, à qual se seguiria pouco depois a de Montreal. Os franceses acabariam por ceder os territórios na América do Norte, mui custosos para a sua defesa, no Tratado de Paris de 1763. Começava assim umha era de coabitaçom de francês e inglês. Os franceses passárom a ser, depois da conquista británica, umha maioria minorizada, que nom detinha o poder político nem económico. Os relacionamentos com a antiga metrópole ficam suspensos e o silêncio do francês no Quebeque inicia o seu andamento. Durante o século XIX, os francófonos do Quebeque, inspirados polas ideias da Revoluçom americana, começárom a reclamar mais representaçom política, umha vez que a administraçom colonial e a burguesia comerciante controlava o poder executivo e legislativo. As chamadas Revoltas patriotas de 1837 e 1838 tivérom um forte caráter liberal, nacionalista e anticolonialista. A história que se segue está marcada pola Declaraçom da Confederaçom Canadiana de 1867 e o começo do despertar da populaçom francófona (Canadianos franceses, segundo a denominaçom da altura), que começará a reclamar mais representaçom política e mesmo a independência.
Maiorias e minorias A distribuiçom e evoluçom demográfica dos falantes de inglês e de francês é um tema que preocupou e continua a preocupar as pessoas interessadas pola língua no Quebeque. 104
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Se bem na província do Quebeque o francês é a língua que conta com um maior número de falantes, é a língua que gerou todo um movimento de defesa na segunda metade do século XX. Segundo os últimos dados demolingüísticos publicados pola Office québécois de la langue française (OQLF), em 2011 o francês era a língua materna de 78% do conjunto da populaçom do Quebeque e, no entanto, o inglês é só a língua materna de 7,7% da populaçom 2. A priori, estes dados permitem alimentar grande optimismo a respeito da saúde do francês no Quebeque, mas a observaçom da distribuiçom dos falantes no território quebequense anuncia umha situaçom um pouco diferente. Assim pois, a percentagem favorável ao francês é um dado do conjunto do Quebeque que nom se mantém para a vila de Montreal. Ali, as pessoas que contavam o francês como a sua língua materna em 2011 atingiam só umha percentagem de 47% e os anglófonos ultrapassavam os 16,6%. É verdade que a presença de umha outra língua materna é muito mais relevante em Montreal do que no conjunto do Quebeque (32,3% em Montreal face a 12,3% em todo o território quebequense). As análises governamentais dos dados estatísticos insistem na estabilidade da situaçom lingüística com escassas mudanças nos últimos anos, mas se bem no conjunto do Quebeque o número de pessoas com língua materna francês ou inglês nom variou essencialmente, é significativo observar como no núcleo urbano de Montreal a queda de pessoas com o francês como língua manterna foi de 5,3% nos últimos 20 anos e, no entanto, a evoluçom negativa do inglês fora só de 1,3% no mesmo período 3. A justificaçom para essa mudança encontra-se no aumento de pessoas que tenhem umha outra língua materna, imigrantes que se concentram eminentemente em Montreal. Esta informaçom justifica que um dos pontos de atençom da política lingüística quebequense fosse a francesizaçom dos imigrantes para o controlo demográfico da populaçom.
A Lei 101 A política quebequense da língua francesa é marcada de jeito notável pola Charte de la langue française, lei promulgada em 1977 e mais conhecida como Lei 101. Esta lei marcou um ponto de inflexom no que respeita à consideraçom da língua francesa no Quebeque e ao seu estatuto no conjunto do Canadá.
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As reivindicaçons nacionais datavam já no século XIX, com as Revoltas patriotas, mas será na segunda metade do século XX quando estas reclamaçons nacionais se acelerem. Os anos 60 som a época da Revoluçom tranqüila (traduçom francesa do termo dado por um jornal de Toronto de Quiet Revolution), que supom umha rutura em diversas frentes: social, política e lingüística. A Revoluçom tranqüila começou um processo que conscientizaçom da necessidade de tomar conta do país, de valorizar os recursos próprios. Umha das açons mais emblemáticas desta época foi a nacionalizaçom de HydroQuebec em 63, companhia elétrica até a altura em maos privadas. Nesse contexto, a língua passou a ser considerada um capital de grande valor no campo social e político. Se bem no final dos anos 60 ainda nom havia umha legislaçom lingüística canadiana que protegesse o uso do francês, os diferentes governos quebequenses pugérom já em andamento algumha medida de controlo lingüística no ensino, ao regular a presença do francês no ensino primário. Ao mesmo tempo, durante os anos 50 e 60, produziu-se um avanço, embora lento, do inglês, nomeadamente no ámbito escolar. Esta situaçom estava ligada à confessionalidade do ensino, já que naquela altura, a instruçom pública, sob a autoridade religiosa, tinha duas vias, umha católica, de língua francesa e umha protestante, de língua inglesa. Se bem é verdade que o direito à escolha de umha escola primária da parte de pais e maes era feita em base à religiom, o sistema fazia com que a língua fosse um fator importante na seleçom. As escolas católicas eram estritas e só permitiam o acesso a católicos. Todavia, as escolas protestantes eram muito mais permissivas e acolhiam tanto protestantes como católicos. Deste modo, os protestantes de língua francesa viam-se abocados a enviarem as suas crianças a escolas de língua inglesa. Este sistema é o primeiro dos fatores de anglicizaçom da populaçom imigrante no Quebeque. Os quebequenses francófonos demorárom algum tempo a compreender o impacto que este sistema teria na evoluçom da demografia lingüística do país. Naquele primeiro momento, ainda nom se falava de promulgar leis lingüísticas, já que, de facto, nom havia nengumha lei lingüística no Canadá. Do ponto de vista jurídico, a única garantia que a constituiçom canadiana oferecia para a escolha da escola das crianças estava ligada à confessionalidade das mesmas e já se mencionou com anterioridade o vínculo entre religiom e língua. A consciência da existência de um problema ligado à educaçom tornou-se visível na década de 60, com a língua como um dos fatores que 106
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mostravam umha problemática social de caráter mais profundo e ligada à chegada de novos habitantes. As primeiras medidas de controlo do emprego do francês vinhérom das comissons escolares, verdadeiros órgaos de governo local para a educaçom, aos quais a Constituiçom canadiana concedia a potestade de gerirem os recursos educativos. Umha destas comissons, a de Saint-Léonard, pujo em funcionamento um sistema de ensino bilíngüe no ano 63, a pedido dos pais imigrantes que reclamavam mais presença do inglês no ensino católico. Saint-Léonard é um bairro de Montreal que conheceu um aumento populacional significativo nos anos 50 e 60, com umha percentagem notável de imigrantes de origem italiana. Tal e como menciona Jean-Claude Corbeil (2007: 127) de 1956 a 1968, este bairro passou de 2.500 para 25.000 habitantes, dos quais 30% provinha da Italia. O suposto bilingüismo do ensino primário era tam fictício quanto na realidade, 70% do ensino desenvolvia-se em língua inglesa. Nos anos sucessivos, apesar dos esforços das comissons escolares por introduzir o francês de jeito pouco agressivo, as tensons fôrom em aumento e a comunidade de Saint-Léonard parecia tornar-se progressivamente anglófona. Os comissários responsáveis, perante a perspetiva da anulaçom do francês pola força demográfica da comunidade nom francófona, decidírom abolir as aulas bilíngües e torná-las aulas monolíngües em francês. Diante da hostilidade manifestada pola vizinhança, as comissons escolares hesitárom e demorárom um ano a aplicar a lei que suprimia o inglês. Finalmente, em junho de 1968 foi decretado que o francês passaria a ser a única língua de ensino dos primeiros anos de escolarizaçom, sendo esta umha medida de aplicaçom progressiva. Na volta às aulas do curso de 68, o conflito acelera-se e o confronto atinge toda a opiniom pública quebequense. O choque representam-no por um lado a Saint Leonard English Catholic Association of Parents, apoiados polas minorias anglófonas do Quebeque e por grupos de pressom do Canadá nom francófono e por outro polo MIS, Mouvement pour l’intégration scolaire, que controlava a comissom escolar no poder. Depois de umha manifestaçom violenta e um apelo à boicotagem da parte dos pais da comunidade italiana, a situaçom tranqüiliza-se no início do curso, com umha percentagem importante de pais italianos que levam as suas crianças à escola em francês (60%) e o resto que som conduzidos à Protestant School Board em troca de um contributo económico de 25$CAN por mês. outubro 2016 / KALLAIKIA
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O conflito de Saint-Léonard ficou circunscrito a esta comunidade ou, no máximo, à vila de Montréal. Porém, a sua repercussom foi de grande envergadura para o devir das políticas lingüísticas quebequenses, pois o governo se apercebeu da importáncia da língua e do delicado que era intervir nas questons relativas a esse tema. Nom obstante, obviar o problema nom parecia umha via possível e por isso o primeiro-ministro do Quebeque na altura, Jean-Jacques Bertrand, promete umha lei sobre os direitos da minoria anglófona que dará lugar ao projeto de lei conhecido como bill 63, apresentado à Assembleia nacional a 23 de outubro de 1969. Esta lei nom solucionava os problemas lingüísticos quebequenses e, embora reconhecesse a importáncia da escolarizaçom em francês para todas as crianças, estabelecia também a liberdade de escolha da língua para todos os pais. As tensons sociais nom farám mais do que aumentar por volta da questom lingüística, com umha clara divisom da opiniom pública. A liberdade de escolha da língua de ensino por parte dos pais, foi considerada como um atentado direto ao status da língua francesa. A maioria da populaçom francófona rejeitava que a minoria anglófona chegasse a ter o mesmo peso jurídico que a maioria de língua francesa. O perigo era sentido como próximo, nomeadamente em zonas urbanas como Montreal, onde a imigraçom tinha mais relaváncia. Perante as divergências e as manifestaçons suscitadas pola bill 63, as mudanças no texto começárom a suceder-se, mas o texto inicial com algumhas mudanças será na Assembleia nacional em novembro de 1969 e será chamado Loi pour promouvoir la langue française au Quebec ou lei 63. Curiosamente, a lei que fora projetada no governo de Jean-Jacques Bertrand, da Union Nationale, partido de corte conservador e nacionalista, fosse aprovada polo recém eleito governo do liberal Robert Bourassa. O espírito nom coercitivo da lei está patente em todo o texto. A liberdade de escolha fica clara no artigo segundo da lei, quando se fala da língua das aulas do ensino primário: « Ces cours doivent être donnés en langue française. Ils sont donnés en langue anglaise à chaque enfant dont les parents ou les personnes qui en tiennent lieu en font la demande lors de son inscription.» 4 [Essas aulas devem ser lecionadas em francês. Serám lecionadas em língua inglesa a cualquer criança cujos pais ou pessoas responsáveis figerem a petiçom no momento da inscriçom.] Em definitivo, a lei 63 nom mudara quase nada no que di respeito ao estatuto do francês no ensino, que até entom parecia ser o campo onde os 108
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afrontamentos se viviam de maneira mais aguda. Se calhar, o mais relevante desta lei foi o impulso para a Office de la Langue Française. Esta instituiçom nascera em 1961 com uns objetivos circunscritos à correçom e o enriquecimento lingüístico, mas será durante os anos 70 quando será dotada de mais competências. A lei 63 previa já as funçom de agente de promoçom da língua francesa, nom só no ámbito de ensino, como também no empresarial. Além disso, acordava-se fazer da Office o cerne da pesquisa lingüística para todo o Quebeque. Na época da lei 63 estará a trabalhar a Commission d’enquête sur la situation de la langue française et sur les droits linguistiques au Québec ou Commission Gendron, polo nome do seu presidente, Jean-Denis Gendron. Esta comissom fora convocada polo governo de Bertrand. A inquietaçom social em torno do conflito lingüístico, as altercaçons de Saint-Léonard e outras manifestaçons públicas que reclamavam mais presença do francês na universidade levara o governo a organizar durante a década de 60 umha série de comissons de pesquisa 5 que alertárom sobre a evoluçom da situaçom do francês no Quebeque. Gémar (2002: 312) resume assim a funçom que tivera cada umha destas comissons: «D’une commission à l’autre, on note un changement de perspective, une progression dans l’appropriation du domaine linguistique. Le rapport Parent est la prise de conscience : il sonne le réveil des Québécois et de leur gouvernement. Le rapport Laurendeau-Dunton est un sévère avertissement au gouvernement canadien sur la dynamique linguistique amorcée au Québec; (…) Que fera maintenant le Québec sur son propre territoire ? C’est la Commission Gendron qui est chargée de répondre à cette question.» [De umha comissom para a outra, nota-se umha mudança de perspetiva, umha progressom na apropriaçom do ámbito lingüístico. O relatório Parent é a tomada de consciência: é o despertador dos quebequenses e do seu governo. O informe Laurendeau-Dunton é umha severa advertência para o governo canadiano sobre a dinámica lingüística encetada no Quebeque; (…) Que fará agora o Quebeque com o seu próprio território? A Comissom Gendron será a encarregada de dar resposta a esta pergunta.] A Commission Gendron publicará o resultado do trabalho de vários anos em 1972 e este estará organizado em três partes bem diferenciadas, «a língua do trabalho», «os direitos lingüísticos» e «os grupos étnicos». outubro 2016 / KALLAIKIA
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O mundo empresarial quebequense da década de 70 era essencialmente anglófono, polo menos na sua elite. O governo de Bourassa, desde o início do seu mandato como primeiro-ministro, assumiu a tarefa de tornar o mundo da empresa no Quebeque mais francófono. Bourassa agiu de jeito muito amável com os quadros e dirigentes das empresas quebequenses, ao tratar de persuadi-los do interesse de francesizar as empresas. A comissom Gendron tratará de analisar o impacto das tentativas de Bourassa e o resultado nom pode ser mais elucidador para a situaçom do francês: 41% dos francófonos e 32% dos anglófonos achavam que nom era possível progredir com o francês, segundo os dados de Corbeil (2000: 150). Porém, umha percentagem nada desprezável de francófonos (71%) e 47% dos anglófonos pensava que era possível implantar o francês como língua do trabalho. No que di respeito ao estatuto das línguas do Quebeque, no relatório da comissom Gendron aconselhava-se o governo que figesse do francês a língua dos quebequenses e que, de facto, proclamasse umha lei em que o francês fosse a única língua do Quebeque. O quadro legislativo lingüístico posterior, a Loi sur la langue officielle (Loi 22) aprovada em 74, seguirá, de facto, algumhas das indicaçons do relatório da comissom Gendron. A maior novidade desta lei é a proclamaçom do francês como única língua oficial no seu primeiro artigo. Contodo, o avanço real na política lingüística será escasso e, de novo, o espírito do texto legislativo deixava umha margem notável à escolha da língua em ámbitos tam relevantes como o ensino. Desta vez, o governo estabelecia um teste de conhecimento lingüístico (ou melhor, de falta de conhecimento do francês), como caminho para aceder ao ensino em inglês. Esta medida foi mal assumida polos setores francófonos da sociedade, que pressentiam que esse obstáculo seria facilmente contornável. Por sua vez, os anglófonos sentírom que o governo liberal nom devia legiferar sobre a língua oficial sem fazer nengumha alusom ao inglês. A Lei 22 duraria tanto como o governo de Bourassa. Nas seguintes eleiçons que se convocárom, em novembro de 1976, o Partido Quebequense conseguiu a vitória e René Lévesque passou a ser o primeiro-ministro do Quebeque. O programa do Partido Quebequense continha a reforma da Lei 22 que seria encarregada a Camille Laurin, quem se rodearia de umha equipa de especialistas, como Guy Rocher, Fernand Dumont, David Payne ou Henri Laberge. Eles estám na origem da Lei 101. Um primeiro documento será difundido para a populaçomquebequense conhecer o situaçom da elaboraçom da lei, La politique québécoise de la langue française. Este documento, publicado em 1977, será enviado aos lares do país e nele expressa-se claramente a necessidade de umha legisla110
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çom que proteja o francês. O início do texto de Laurin (1977: 6) apoia-se nos resultados das comissons de pesquisa que tinham sido desenvolvidas nas décadas precedentes: «Ce qu’ils ont découvert sur eux-mêmes n’a rien de réjouissant: les francophones, comme leur langue, sont dominés et menacés dans leur existence; les correctifs qui reposent uniquement sur la bonne foi, la bonne volonté sont impuissants à enrayer le danger.» (O que descobrírom sobre eles próprios nom é em absoluto regozijante: os francófonos, igual que a sua língua, estám dominados e ameaçados na sua existência; os corretivos que se baseiam unicamente na boa fé, a boa vontade, nom tenhem o poder de contrariar o risco.) Várias factos apresentados justificavam a promulgaçom de umha lei coercitiva: a evoluçom demográfica no Quebeque favorável à populaçom anglófona, a presença massiva do inglês no mundo da empresa e dos negócios, a relaçom desfavorável entre inglês e francês no Canadá e a qualidade do francês. A respeito deste último ponto, seria preciso mencionar o debate sobre o francês falado no Quebeque, com traços particulares a respeito do francês da metrópole europeia. A variante quebequense evoluíra de jeito paralelo ao francês da Europa, a causa de umha isolaçom cultural que durara 300 anos. A estigmatizaçom do francês do Quebeque durante o século XX está ligado ao status social da língua, isto é, o valor e o prestígio social do seus locutores, tal e como indica Elke Laur (2002: 149-150). A aprovaçom da lei terá lugar a 26 de agosto de 1977, sob o nome de Charte de la langue française. A lei haverá de definir o período de governo de Lévesque e a política lingüística no Quebeque até os nossos dias. A lei estabelecia que o francês era a língua oficial do Quebeque. Indicava-se que os quebequenses contavam entre os seus direitos lingüísticos, o de comunicar no ámbito público, mas também na empresa (art.2 e capítulo VI) e também como consumidores tinham o direito de serem informados e atendidos em francês (art.5) 6. Estas medidas eram de suma importáncia, mas aquelas que tivérom, e que continuam a ter, mais visibilidade som as relativas ao ensino, por um lado, e à publicidade e rotulaçons, por outro. O ensino, que tinha sido talvez o desencadeador das maiores tormentas lingüísticas no Quebeque, sofreria umha mudança essencial. Estabelecia-se o acesso ao ensino em inglês para aquelas crianças cuja mae ou pai tinham sido escolarizados em inglês. Havia também medidas transitórias que permitiam continuar a escolarizaçom em inglês para aquelas crianças que já integraram umha escola anglófona. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Esta restriçom fazia com que o ensino em inglês ficasse circunscrito à populaçom anglófona ou aos canadianos instalados no Quebeque. No entanto, os imigrantes eram obrigados a escolarizarem as suas crianças em francês. A obrigaçom de empregar o francês na publicidade, nos cartazes e mesmo nos nomes comerciais tivo um grande impacto na paisagem lingüística das vilas quebequenses, nomeadamente em Montreal, aliás, a cidade onde o inglês tinha mais presença. A Lei 101 mudou muitas aspetos da sociedade quebequense; segundo Jean-Claude Corbeil foi o texto legislativo que mais profundamente transformou a sociedade quebequense (2000: 188). Elke Laur (2002: 148) menciona três dimensons em que a lei 101 tratara de incidir: a situaçom sociodemográfica, a situaçom socioeconómica e o aspeto sociolingüístico. O contexto em que se desenvolveu o projeto de lei que depois seria aprovado fazia temer que um número cada vez maior de imigrantes se somassem à língua inglesa e que este facto vinhesse a arrebatar a vantagem numérica de que gozavam os francófonos. Por sua parte, o interesse dos imigrantes pola integraçom na sociedade anglófona estava motivada pola superioridade económica em que se situavam os anglófonos. O inglês tinha, em definitivo, umha quota superior de capital real e portanto, simbólico. A Charte tratou de incidir em todos esses aspetos ao mesmo tempo, com resultados desiguais.
Após a Lei 101 A Lei 101 tornou-se a partir do momento da sua entrada em vigor num totem cultural para a sociedade quebequense. A profusom de debates ocupou e ocupa ainda hoje os meios de comunicaçom e o espaço público em geral. Multitude de análises tratárom de avaliar a influência na evoluçom lingüística dos últimos 40 anos. Umha análise sociolingüística demorada seria precisa para poder avaliar os aspetos mais salientáveis em que incidira esta lei; nom obstante, aqui só se indicarám alguns dados extraídos das sondagens sociolingüísticas realizadas polo governo quebequense, que podem ajudar a entender a situaçom actual da língua no Quebeque e a sua evoluçom nos últimos anos. Como se mencionou com anterioridade, de acordo com o relatório dirigido por Yulia Presnukhina (2016), o francês era e continua a ser a língua materna e de uso habitual de umha maioria da populaçom quebequense. Porém, é preciso lembrar que os dados nom eram tam esperançosos para a vila de Montreal, maior espaço urbano do Quebeque, já que ali o recuo do francês nos últimos anos fora mais importante do que o do inglês, que se mantinha num equilíbrio constante. 112
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Raquel Paz Aproximaçom à situaçom lingüística
A estabilidade lingüística do inglês é chave para entender a sociedade quebequense e as políticas lingüísticas encabeçadas pola Lei 101. Os dados de Montreal alertam para umha situaçom que continua a justificar todos os esforços que se levárom avante nos últimos 40 anos, umha vez que a populaçom anglófona de Quebeque nom modificou os seus contextos de uso e a escolarizaçom em inglês foi-se perpetuando sem grandes variaçons. A minoria anglófona demonstrou ter a capacidade, os recursos e o controlo sobre suficientes espaços de poder como para contornar a Lei 101. O compartimento estanque em que moram alguns dos anglófonos de Montreal é significativo, nomeadamente no que respeita ao sistema educativo, que inclui o ensino universitário, pois das quatro universidades de Montreal, umha é bilingüe, a Universidade Concordia, e umha outra é anglófona, McGill. A crise de Saint-Léonard e outros debates que se sucedêrom revelárom a influência da populaçom recém instalada no Quebeque e que tinha umha língua diferente do inglês e do francês. Saint-Léonard mostrou que estes imigrantes preferiam a escolarizaçom em inglês para as suas crianças, pois viam nesta alternativa o caminho para a integraçom e o sucesso profissional. A Lei 101 permitiu encaminhar para o ensino em francês o alunado cujos pais e maes tinha umha língua diferente do francês ou inglês (também chamados «alófonos»), mas é salientável ver como na etapa de ensino pré-universitário, para a qual nom se previa a obrigatoriedade do francês, há também umha evoluçom no número de alunos de língua nom francesa ou inglesa, tal e como se indica no informe La langue d’enseignement au cégep do Conseil supérieur de la langue langue française de 2011 onde se indica que a proporçom de alófonos inscritos nos centros de ensino pré-universitário (CEGEP) aumenta regularmente. Nom obstante, umha dupla constataçom alerta de novo para a situaçom do francês: se bem parece aumentar ligeiramente o número de alófonos que passam do ensino secundário para o CEGEP anglófono (64,2% em 2009) muito poucos alófonos, menos de 0,5% em 2007, passárom do ensino primário em inglês para o pré-universitário em francês. As razons desta transferência som múltiplas, mas o Conseil supérieur de la langue incide nas perspetivas universitárias e laborais ligadas à escolha do inglês. Os anos em que a Lei 101 estivo vigente permitem obter informaçons sobre o impacto da escolarizaçom em francês da populaçom alófona na sua vida adulta e, segundo as análises realizadas por Catherine Girard-Lamoureux (2004: 32), o uso do francês como língua pública predominante é marcado pola freqüentaçom de umha instituiçom escolar francófona. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Aproximaçom à situaçom lingüística Raquel Paz
Embora a importáncia em termos quantitativos da populaçom exógena seja pouco relevante para o conjunto da populaçom, tal e como di Michel Paillé (2002: 65): «la Charte de la langue française s’applique depuis 1977, 100 600 adultes scolarisés en français plutôt qu’en anglais ne peuvent compter que pour 1,7 % de la population adulte du Québec en 2001». (a Carta da língua francesa aplica-se desde 1977, 10.600 adultos escolarizados em francês e nom em inglês só somam 1,7% da populaçom adulta do Quebeque em 2001). É, portanto, umha vitória simbólica mais do que estatística. Mas os valores estatísticos nom chegam para mesurar a evoluçom da situaçom lingüística na sociedade quebequense e para avaliar o impacto social e político que a legislaçom lingüística tem tido no conjunto do Quebeque. Michel Paillé, demógrafo da OQLF resumiu-no nestes termos (2002: 66): «Espérer trouver dans les effets de la scolarisation en français des enfants des immigrants la panacée à nos problèmes démographiques tant généraux que linguistiques reviendrait à donner à la Charte de la langue française une mission qu’elle n’avait pas. Ce serait confondre notre politique linguistique, aussi efficace soitelle dans le milieu scolaire, à une politique de population.» [Esperar encontrar nos efeitos da escolarizaçom em francês das crianças dos imigrantes a panaceia para os nossos problemas demográficos, tanto gerais como lingüísticos, implicaria dar à Carta da língua francesa umha missom que nom tinha. Seria confundir a nossa política lingüística, por muito eficaz que ela for no meio escolar, com umha política de populaçom.]
Conclusons A história do francês no Quebeque é a do colonizador colonizado. O francês tornou-se língua minorizada, embora maioritária e tivo que iniciar um caminho de luita pola sobrevivência. Os territórios francófonos do Canadá eram umha ilha num oceano anglófono e, apesar de todo, conseguírom desenvolver umha política lingüística que atingiu um certo equilíbrio entre inglês e francês. Nesse caminho, as línguas autóctones fôrom dolorosamente afastadas do campo de jogo lingüístico. O século XX fijo acordar a consciência nacional quebequense, que estava fortemente ligada à língua; o anglófono seguia a ser um estrangeiro. E os quebequenses sentírom que umha nova colonizaçom se advinha e que aliás, se colocava do lado do ocupante. A identidade nacional em risco, decidem agir e procuram as ferramentas para se aferrarem ao seu país.
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Raquel Paz Aproximaçom à situaçom lingüística
Agir para fazer com que a língua contribua para a consciência nacional de todo um país nom é simples. Tenhem sido aplicadas medidas para integrar a nova populaçom na francofonia, decretando o francês como a língua da empresa, dos negócios. Umha língua quebequense, algo mais livre de preconceitos perante a língua da metrópole. NOTAS 1 Dados referidos ao ano 2011 (https:// www12.statcan.gc.ca/census-recensement/2011/as-sa/98-314-x/2011003/tbl/ tbl3_1-3-fra.cfm) 2 Os dados procedem do último relatório publicado pola OQLF e dirigido por Yulia Presnukhina (2016) que oferece informaçons da situaçom lingüística do ano 1996 até 2011. 3 Statistique Canada disponibiliza na Internet dados relativos à situaçom lingüística. Acessível em <https://www12.statcan.gc.ca/ census-recensement/2011/as-sa/98-314x/98-314-x2011003_1-fra.cfm> 4 O texto da lei está disponível no site do Office québécois de la langue française http://www.oqlf.gouv.qc.ca/50ans/images/ Bill_63.pdf 5 Em 1961 fora convocada a Commission royale d’enquête sur l’enseignement dans la province de Québec ou Commission Parent e em 1963 a Commission d’enquête sur le bilinguisme et le biculturalisme au Canada ou Commission Laurendeau-Dunton. 6 O texto da Charte de la langue française é acessível em linha (http://www2.publicationsduquebec.gouv.qc.ca/dynamicSearch/ telecharge.php?type=2&file=/C_11/C11. html)
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Aproximaçom à situaçom lingüística Raquel Paz McAndrew, M. (2002) «La loi 101 en milieu scolaire : impacts et résultats» in Revue d’aménagement linguisitique - Hors série: 69-81. Paillé, Michel (2002) «L’enseignement en français au primaire et au secondaire pour les enfants d’immigrants : un dénombrement démographique», in Pierre Bouchard e Richard Y. Bourhis (ed.) (2002) L’aménagement linguistique au Québec : 25 ans d’application de la Charte de la langue française: 5167, Les publications du Québec, Québec. Plourde, M. e Georgeault, P. (dir.) (2008) Le français au Québec. 400 ans d ’histoire, Fides, Montreal. Presnukhina, Yulia (dir.) (2016) Indicateurs de suivi de la situation linguistique au Québec: portrait démolinguistique 1996-2011, Office québécois de la langue française, Montréal. Sarrazin, M-C. (2002) « L’évolution de la situation linguistique au Québec : Le regard porté par une enfant de la loi 101 » in Revue d’aménagement linguisitique - Hors série: 133-144. St-Germain, C. (1980) La situation linguistique dans les écoles primaires et secondaires, Conseil supérieur de la langue française.
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POEMÁRIO
RAMIRO VIDAL
poder contar os dias (um disparo poético) Ser o pam e a espada das geraçons poder contar os dias ser a pólvora e a flor ser o mel guardado ouro ancestral primário essencial poder contar os dias contra o tempo e contra o ferro ser a música, ainda, das gentes poder sentir-te fortaleza campo fértil poder contar os dias habitar a tua palavra farta fresca e protetora fruto, caminho e, enfim, casa
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Poemário Ramiro Vidal
Acordado morto (Me gusta recorrer las tumbas/buscando en las lápidas mi nombre) Numha manhá sentim nom ser dono do meu corpo contemplei-me desencaixado trás o derradeiro estertor inerte, numha paz sobrecolhedora vencido, náufrago no mar das trevas Na alba contemplei o meu último retrato na paz da minha cama no silêncio da minha morada antes da minha partida na amanhecida que já nunca mais vim Deixade que durma, nom interrompades esse instante perfeito Já alheio à angústia do último segundo fugido da agonia Gosto de ver-me alheio, sucumbido, na paz final neste quadro sem retorno nestas luzes antes de que o vosso pranto rompa a estampa
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Ramiro Vidal Poemário
Carta imaginária a um torturador Nom lembro tanto o teu rosto como sofro ainda o teu alento e o que nunca mais desaparece é o ódio enfermo dos teus olhos Repasso a dor infligida e cada seqüência e palavra e queria responder-che aquilo que nunca puidem ninguém me envia nem me paga ordena-me a história pertenço à dignidade devo-me à memória tenho consciência e honor antes do que chefes e carné por isso deves saber que cada golpe que me deche foi a tua própria derrota pois nom curache a minha rebeldia e só fermentache o ódio no meu sangue fica sabendo que a penumbra das vossas tovas já nom me causa medo nem angústia apenas, simplesmente, um nojo indescritível polo demais, fica tranqüilo...pois nom tens nome que ocupe a minha mente nem rancor mereces, só a certeza de que a tua espécie está condenada
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Poemário Ramiro Vidal
Que a distáncia nom se torne silêncio Que a distáncia nom se torne silêncio que o ar nom engula a tua voz que a terra nom apague a tua imagem só continua habitando-me só necessito a lembrança de cada poro o bálsamo de cada palavra e que a flor de cada ano continue forte desafiando a geada perene fresca sonora
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Ramiro Vidal Poemário
Selvagem Nascido neste mesmo chao filho da terra e o sol todos os dias tributo a minha dança de formas únicas ao mar e ás estrelas esculpo a minha rebeldia o meu tempo é umha cançom o meu fruto umha homenagem os meus braços som bandeiras e os meus pés som áncoras titánicas que seguram a terra eu custodiarei as idades do bosque eu serei confidente do teu passo eu seguirei explodindo em cores na passagem dos ciclos.
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CONTOS
José Alberte Corral Iglesias silvas, tojeiras,gesteiras Silvas, tojeiras, gesteiras, e outro diverso mato devoram a estreita corredoira que conduz a umha pequena aldeia abandonada num dos vales na aba da Serra do Eixo. Nada e ninguém transita por ela. A chuva e o vento do inverno destrui em devagar e incessantemente todo resto que diga algo de humano, a natureza selvagem fai-se dona do seu, depois de séculos domesticada. Percorrê-la de novo naquela tarde de julho, faise-lhe longo, triste; senom fosse polo chiar dos passarinhos, poderia-se dizer que só a morte habitava em todo aquele lugar. Passaram alguns anos desde que Gerardo abandonara o lugar onde nascera e se criara, daquela ainda ficaram quatro famílias, que também com o tempo se foram. O sol pruía-lhe, ainda bem que trouxera um chapéu para se proteger, com os anos perdera cabelo e ia convertendo-se num careca. Nas meninhas a tristura agitava-se traguendo-lhe imagens e lembranças. Ao enxergar Pena Súrvia, vê-se de pequecho, nom levantando muito mais dum palmo e indo com as ovelhas ao monte; e nos meses da primavera contemplando a erva-andorinha, o chorim, a urze, a chorima, e outras flores silvestres. Ou quando agarrado à mao da sua mae baixava à feira, para ele era um acontecimento, umha festa; afinal sempre lhe mercava umha vara de rosquilhas de anis. Estava diante das ruínas da casoupa onde nascera, hoje umha casarelha; só ficava algo da parede sul. Percebeu que entre todo aquele mato que inçava a pequena horta ainda se mantinham em pé duas maçairas. Demorou a mirada por todo o que lhe arrodeava, só a morte e o abandono abrangiam o que antes fora a sua aldeia. Ao longe, a serra dura e imutável dominava toda aquela desolaçom. Tinha a certeza de que o lobo e demais fauna selvagem tornaram a ocupar todo aquele território. Chegou-lhe aos ouvidos o cantar do regato que corria ao pé da horta, voltaria a lontra a tomar as suas ribeiras? Abrindo-se caminho com umha vara de castinheiro para se ajudar a caminhar, entra no que fora a sua casa. De súpeto distingue entre os entulhos e cachotes, no chao, os restos do camiom de madeira que lhe fizera o seu pai, e bota-se a chorar. 122
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Cruzo la calle Marx, la calle Freud; ando por una orilla de este siglo, despacio, insomne, caviloso, espía ad honorem de algún reino gótico, recogiendo vocales caídas, pequeños guijarros tatuados de rumor infinito. Eugenio Montejo
DEISY Deisy morava perto da cafetaria onde tinham acordado encontraremse. Polo contrário, ele tivo que fazer dous transbordos de carrito por puesto; quando entrou no café, estava-o aguardando. Ao entrevê-la, observou nos seus olhos pardos, amendoados, a alegria da sua apariçom. Achegou-se, mas foi incapaz de fazer nengum aceno de contente, nom porque nom estivesse feliz de a descobrir. Na passada noite bebera de mais, estivera tam embriagado que ia de tropeços com os poucos móveis do seu apartamento, até trousara antes de se deitar. Tinha que mudar e pôr-se à risca com a bebida, acabando com as saídas noturnas. Já diante dela tendeu-lhe a mao; e ela sorriu, o seu olhar expressava todo o que precisava e nom a queria perder. Ansiava acreditar de novo nas palavras dançarinas do amor e do desejo, na ingenuidade do olhar emprenhado de ternura. A opçom que tomara num período da sua vida, plasmara-se numha existência errante. Conhecia a desesperança e ouvira todas as palavras à morte, estava afeito a perigos e sobressaltos. Desde aquela acostumava olhar a realidade como umha paisagem inacabada, aprendera que som as perguntas as que abrem o caminho, mas é a ternura o sustento anímico da existência; sem paixom e sem racionalidade, nengumha liberdade é possível. Sempre exteriorizara um grande desrespeito polas obsessons que obnubilam a maioria da gente; o consumismo desaforado, a importância de aparentar ser aquilo que nom som... Enfim, mesquinhezes. Estavam juntos, um frente ao outro, no meio deles, os cafés. Os dous eram como restos afundados dum naufrágio à procura da praia naquela cidade voraz, ídolo subjugado polo mais bárbaro capitalismo. Reconheciase nos olhos enchidos de bondade e luminosos de Deisy. Apagavam aquele barulho de vozes desafinadas que enchia o universo acústico daquele lugar; observou a contra-capa do livro de poemas que portava, era um de Ludovico Silva, e sorriu. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Deisy José Alberte Corral Iglesias
Falárom sobre a oportunidade de ir a um recital de polos margariteños. Pagou o consumo e saírom. Mentres se achegavam ao local onde se ia produzir o concerto dérom um curto passeio. Gostache? inqueriu Deisy. Estivo bem, mas apreciava-se que eram amadores, respondeu-lhe ele. Se queres imos tomar algo? Observou o linda que era, o seu sorriso alegre; a harmonia do seu corpo embalava-lhe. A blusa realçava-lhe uns seios dondos, perfeitos, e umha melena curta, preta, acarinhava-lhe umha pele canela e delicada. Nom mui longe, no bulevar próximo, havia diversos bares e cervejarias, e encaminhárom-se cara ali. Acomodando-se numha das mesas da esplanada, a mulher pediu um batido de ananás, e ele acompanhou-na com umha cerveja bem fria. O lusco-fusco pendia cara a noite, as ruas cheias de transeuntes retornando às suas casas, os faróis dos carros acesos anunciavam-na. Os passaros tinham emudecido, procurando o abeiro da escuridade. Reparo que gostas da poesia de Ludovico? Sim, e nom só da poesia; considero que é um dos melhores ensaístas do País. Se fosse francês estaria traduzido a quase todos os idiomas. Lim poucos livros tam poéticos e dramáticos como “In vino, veritas”, respondeu ela. - Certo, pertence à parte dumha geraçom que apostou todo por mudar este absurdo que é o capitalismo. Fôrom aniquilados, e os poucos sobreviventes resistem mais mal que bem, apostilou Walter findando o comentário. - Nom coincido plenamente contigo, “In vino, veritas” é um poemário onde o desejo de ser é devorado por umha finitude de morte. Manifesta-se dum jeito transversal. Talvez seja que a derrota, ainda assumida, é umha castraçom; umha negaçom da liberdade, já que esta precisa ser expressada tanto na açom como na reflexom. Continuárom a conversar sobre a literatura latino-americana; em particular, a venezuelana. Decatou-se que era umha grande conhecedora da poesia latino-americana; o que lhe indicou que também ela era poeta. Extensas fileiras de ónibus ateigadas de gente derregavam-se pola avenida como querendo abandonar a jeira. O despertador soara às seis da madrugada. Já em pé, no pequeno apartamento dela, mentres Deisy tomava um banho, ele preparava o almorço. Os dous tinham que ir aos seus respetivos trabalhos. 124
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Os Irmandiños. Imaxen Surreal de Galicia Xaime Quessada.Off-set sobre lámina. 490x300mm. Akal Editor. 1977
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RECOMENDAÇONS Porque recuperar Lenine em 2016?
O imperialismo, fase superior do capitalismo Vladímir Ilitch Ulíanov, Lenine Diário Liberdade 2016
Estamos, talvez, diante da primeira ediçom mundial comemorativa dos 100 anos de umha das principais obras do grande teórico e prático da revoluçom socialista. Nom que nom existissem ediçons na nossa língua (havia várias portuguesas, brasileiras e mesmo umha galega de 2004, publicada num volume intitulado Socialismo e independência, junto a outros muitos trabalhos do autor (Compostela, Abrente Editora). Porém, correspondeu ao Diário Liberdade, site informativo de ámbito galego-luso-brasileiro, a honra de apresentar esta cuidada ediçom ilustrada por quem escreve estas linhas. Para além do aspeto estético, o assunto de fundo é o interesse que um ensaio divulgativo sobre economia e política situado em 1916, em plena I Guerra Mundial, pode manter em 2016. Porém, a dúvida fica logo resolvida se tivermos em conta a vigência do essêncial da descriçom com que o autor, Vladímir Ilitch, populariza a caraterizaçom do imperialismo, como fase culminante do capitalismo, e que a seguir vamos resumir muito esquematicamente. Para já, estamos diante de umha obra em que se afirma com total firmeza e razom que, em 1916, já existe umha economia mundial. Isso, que alguns propagandistas da “globalizaçom” propagárom nas últimas décadas como sendo umha novidade do nosso tempo, é na verdade um facto com mais de um século de vigência, como Lenine nos mostra nesta obra. A partir daí, o autor descreve em cinco traços fundamentais a natureza económica –e nom só política— que definem o imperialismo como nova fase do capitalismo, de dimensom mundial:
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Maurício Castro Lopes Porque recuperar Lenine em 2016?
1. A concentraçom da produçom e do capital, hegemonizada por monopólios que nom anulam a concorrência consubstancial à Lei do valor capitalista, mas que a situam num patamar superior, muito acima dos espaços nacionais e do livre cambismo oitocentista. 2. A fusom entre o capital bancário e o industrial, com predomínio do primeiro, como mecanismo imprescindível para o impulso da acumulaçom de capital que exige o processo reproduçom alargada do mesmo, já descrito por Karl Marx. 3. A exportaçom de capitais, e nom simplesmente de mercadorias como até aí acontecia, e que abre umha dialética entre centro e periferia mais complexa do que aquela vigente em tempos do “puro e simples” colonialismo. 4. A repartiçom do mundo entre as grandes potências, com predomínio monopolístico e financeiro por parte das mesmas. 5. A culminaçom desse processo de repartiçom, que nom implica o final do mesmo, ao continuar a funcionar a concorrência e nom se atingir um único monopólio por parte de umha única potência mundial. A partir daí, sucedem-se as disputas e reordenamentos do panorama mundial de disputa entre os capitais. Essa caraterizaçom do fenómeno imperialista tem servido de quadro de discussom sobre a sua correçom, revisom ou contestaçom, mas parece clara a sua utilidade na hora de compreendermos nom só a situaçom do mundo em 1916, mas a atual. Nom que nom tenham acontecido importantes mudanças no desenvolvimento capitalista nestes 100 anos transcorridos, mas a natureza da “fase superior capitalista” tem indubitáveis traços comuns que permitem afirmar que continuamos nessa mesma fase do desenvolvimento histórico capitalista. Assim, a concentraçom produtiva e o sucessivo surgimento de monopólios que se enfrentam no cenário internacional aparece hoje como umha realidade diante dos nossos olhos. Isso nom anula a concorrência nem derivou, ao invés das previsons de Karl Kautsky, para um “ultraimperialismo” com um único monopólio e umha progressiva ascensom do socialismo por via parlamentar para tomar conta do processo de maneira pacífica. O predomínio parasitário-financeiro aparece claramente como caraterizador da economia mundial, o que tampouco anula a evidência de ser o capital industrial o sustento material do processo de acumulaçom, mas pom em maos do capital financeiro mecanismos que, como a dívida, tenhem possibilitado alavancar esse processo constante de acumulaçom mundial durante o último século, se bem com cada vez maiores dificuldades, como vemos em crises tam profundas como a atual. outubro 2016 / KALLAIKIA
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Porque recuperar Lenine em 2016? Maurício Castro Lopes
Nom é preciso assinalar a importáncia que na economia mundial atual atingiu a exportaçom de capitais como via de expansom capitalista, ligada com a contradiçom centro-periferia que correntes como a teoria marxista da dependência tenhem analisado desde a década de 60-70. Quanto à repartiçom do mundo em áreas de influência, recursos energéticos e outras forças produtivas em disputa, basta verificar a persistência da guerra como mecanismo de confronto, pilhagem e concorrência extrema entre estados como representantes dos diferentes capitais em pugna. Porém, cabe salientar como, ao invés do que sucedia em 1916, os conflitos bélicos tenhem alastrado para as periferias, embora nos últimos anos a própria Europa volte a ser palco de guerras, a mais recente na Ucránia. Em definitivo, e para além de aspetos que puderem ser questionados, a teoria do imperialismo proposta por Lenine mantém umha substancial utilidade na hora de compreender o que aos nossos olhos aparece como processo caótico de confrontos disfarçados de aparência cultural, religiosa ou puramente política. Da mesma forma, a exposiçom que Lenine fai no Imperialismo, fase superior do capitalismo, sobre a crescente socializaçom produtiva que as grandes economias implicam, leva o autor russo a concluir que essa dinámica interna do próprio capitalismo aproxima esse modo de produçom dos seus próprios limites históricos. Daí que apele à necessidade de integrar as luitas anti-imperialistas como umha nova componente da luita revolucionária que complete a superaçom desse sistema mundial, mediante a socializaçom da propriedade. A obra que comentamos, publicada como folheto e dirigida à formaçom dos magros contingentes revolucionários que resistírom à capitulaçom das direçons nacionais da II Internacional em 1914, inclui outras categorias úteis e vigentes na atualidade. Referimo-nos à de “aristocracia operária”, apontada já por Marx e Engels para se referirem ao aproveitamento indireto que as camadas superiores do proletariado inglês tiravam da exploraçom colonial da Índia e mesmo da Irlanda. Em 1916, Lenine expom a categorizaçom dessa aristocracia cooptada pola burguesia como obstáculo para o avanço da estratégia revolucionária no seio das organizaçons de classe. Parece evidente estarmos diante de mais um aspeto em que esta “obrinha” mantém algumha vigência para nós, vista a degeneraçom generalizada das direçons das esquerdas, especialmente nos centros do capitalismo mundial (mas nom só). E escrevemos “obrinha” assim, entre aspas, porque por trás do que nom passou de um folheto (181 páginas na ediçom galega do centenário), tem por trás dous anos de estudos profundos da questom 128
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Maurício Castro Lopes Porque recuperar Lenine em 2016?
por parte do autor. O testemunho desse processo está hoje disponível nos chamados “Cadernos sobre o imperialismo”, com mais de 800 páginas de estudos que dariam como resultado o livro que aqui comentamos e que, mais ainda por fazermos parte de um povo dependente como a Galiza, ferventemente recomendamos. Maurício Castro Lopes
Frouma de Ruivéns. O sonho que na tua língua mora Jorge Rodrigues de Gomesende Edicións Redelibros 2015
A atitude e a experiência vital e intelectual é decisiva para entender o livro de relatos que acaba de publicar Jorge Rodrigues de Gomesende, que se manifesta num sentimento de “erradicaçom” dum presente sentido como incompleto a causa da violência imposta por um destino político e cultural adverso, sendo o homen —escritor— levado a um «estranhamento» que é a essência da sua condiçom. Este aspeto é um dos que ligam os diferentes protagonistas dos relatos de Frouma de ruivéns, para os quais a realidade que os rodeia –a cidade, o ambiente social e político, a culturaé a que se exila, a que se torna incompreensível, esquiva, a que foge, a que se fai ontologicamente estrangeira. Para superar este sentimento surge desde o início o sonho, esse sonho que «mora na língua», que aparece já mencionado no título desta coleçom de relatos, conformando-se como o autêntico fío condutor do livro. O sonho organiza e dota dum sentido global as recorrências temáticas que imos achar nas diferentes narraçons, esse fundo onírico, como se dumha melodía musical se tratasse, vai permitir que as variaçons temáticas —todas entre o mito e a história do nosso país— mantenham umha profunda homogeneidade estilística e emotiva. Entendido como um todo, Frouma de ruivéns está dominado pola conceçom dum tempo dilatado, com muito de circularidade e transbordamento, e trabalhado com umha sintaxe elaborada desde umha cuidada e medida paixom. O narrador cria universos que navegam entre seitas iluminadas —esse desacougante retorno dos baluros de «O sonho dos baluros»— e outubro 2016 / KALLAIKIA
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Frouma de Ruivéns Carlos López Bernárdez
realidades labirínticas que às vezes nos enleiam como tupida aranheira, um cosmos que tem esteios firmes nas terras da experiência vital -o norte dessa Galiza bracarense que ele menciona- e em que o mítico, o paisagístico, o simbólico e o vivencial som tratados com enorme liberdade e em que a mulher ocupa um lugar bem relevante. As referências culturais, estéticas, artísticas e simbólicas som constantes em Frouma de ruivéns, mas nunca afogam a capacidade de comunicaçom e a compreensom. Neste sentido, cumpre lembrar que a multiplicaçom de soluçons narrativas é um facto moderno que obriga o escritor a umha escolha, fai da forma umha conduta e provoca umha ética da criaçom literária. No caso dos relatos de Jorge Rodrigues de Gomesende, o interesse e o emprego dos referentes oníricos e simbólicos nom se converte em algo hermético mas numha construçom aberta, permeável e polissémica, mas firmemente enraizada numha cosmovisom e numha tradiçom, de que se sente partícipe, continuador e renovador. O autor alterna ao longo de todo o livro o tom discursivo com momentos de gozo voluptuoso da palavra. Estamos perante umha narrativa do nosso presente, tecnicamente mui pensada e medida que quer mergulhar o leitor nas zonas obscuras —bem numerosas— do nosso passado histórico e cultural, com umha Galiza que, como a lagoa de Antela, fica mergulhada no sono da história e que apenas o sonho do escritor é quem de fazer agomar. Firme nas suas convicçons narrativas, Jorge Rodrigues de Gomesende aposta na cultura vivenciada, no simbolismo, na tradiçom (céltica, medieval...) e na modernidade, mas sobretodo numha atitude de elaboraçom dum discurso sólido e sem fissuras, na construçom dum universo ético e estético, de sólidos alicerces e com a linguagem como valor permanente, nom apenas como valor instrumental, mas como totalidade, como razom e veículo de comunicaçom ao mesmo tempo. O relato funciona, entom, como autoconhecimento, traduçom e reflexom sobre o mundo, como mediçom da condiçom humana e como umha procura de sentido, mesmo espacial, revelando-se a obra como um lugar, um sujeito e um ponto de vista. O próprio título, Frouma de ruivéns, é umha declaraçom de fé na vida e na linguagem, palavras escolheitas pola sua ligaçom afetiva ao autor —eis o personagem que coleciona palavras do conto «Oferenda»— e pola sua formosura, tenhem algo de fetiches íntimos que acabam tendo um sentido para o leitor à medida que se vai adentrando no conjunto dos relatos. Há muitos momentos na obra de Jorge Rodrigues de Gomesende em que a subtileza de que fai alarde para ligar o vital e o cultural é de enorme 130
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Carlos López Bernárdez Frouma de Ruivéns
intensidade, inserindo de jeito natural a leitura da poesia de Ricardo Carvalho Calero, a contemplaçom dum quadro de Urbano Lugris ou umha consulta erudita na Fundaçom Penzol, dotando os relatos do que poderíamos definir como um familiar estranhamento. Neste tipo de momentos, o escritor condensa criativamente os referentes da cultura erudita e popular e das artes plásticas, construindo umha obra que sem renunciar à tradiçom, muito polo contrário, reivindicando-a a cada passo, renova a linguagem, dotando dumha nova profundidade as velhas palavras da tribo, que já nom tenhem a funçom de simplesmente comunicar, mas que imponhem um além da linguagem -esse sonho ilimitado- que é ao mesmo tempo umha tomada de partido polo valor da palavra e da vida. Carlos López Bernárdez
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BIOGRAFIA
José Velo Mosquera, revolucionário puro e cavaleiro da utopia Miguel Urbano rodrigues
José Velo Mosquera foi um revolucionário de uma pureza e autenticidade raras. Escrevi num dos meus livros que não conheci alguém que se lhe assemelhasse pela personalidade. Era um Quixote moderno, mas diferente do herói imortalizado por Cervantes. Em Janeiro de 1961, ao chegar ao «Santa Maria» após uma viagem tormentosa, senti quando trocamos o primeiro abraço uma grande empatia com aquele galego alto, magro, desengonçado, ossudo, que me sorria e irradiava carater e fraternidade. 132
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Miguel Urbano Rodrigues José Velo Mosquera, revolucionário puro
No transatlântico, rebatizado como «Santa Liberdade», o comandante nominal era Henrique Galvão, mas apercebi-me logo que os comandantes reais eram dois galegos: Souttomayor e Velo, que usava o nome de guerra de Junqueira de Ambia. Galego da vila de Cela Nova, amava a palavra, tratava-a com amor. Fazia do gesto uma arma de persuasão. Era um comunicador, e, dotado de uma imaginação prodigiosa, recorrendo a metáforas e a parábolas, impressionava tanto os companheiros da «Santa Maria» que a maioria aderia ao seu discurso, por mais absurdas e inviáveis que fossem as suas análises e sugestões. Somente com o rodar dos meses me apercebi de que era um mitómano talentoso. Quando um mito o encantava, trabalhava-o com tamanha paixão que objetivos inatingíveis se tornavam parte integrante do seu ego. Sobre a grande aventura e o fim do chamado Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação-DRIL escrevi muitas dezenas de páginas. De Henrique Galvão e Soutomayor somente guardo péssimas recordações. Ambos, de revolucionários somente tinham a máscara. O livro de Soutomayor «Eu roubei o Santa Maria» é, aliás, uma impressionante coleção de mentiras de um aventureiro megalómano. Agora , quando a juventude estudantil da Galiza presta homenagem a José Velo, penso com emoção e saudade no amigo, no patriota galego, no cavaleiro do sonho para quem o sentido da vida era inseparável do combate pela revolução social. Após a entrega a Salazar do «Santa Maria», quando o governo de Jânio Quadros concedeu asilo político aos participantes no assalto ao barco, Junqueira - assim lhe chamei sempre - ficou instalado em minha casa. Escreveu então artigos sobre a fracassada aventura e deu entrevistas a influentes órgãos da comunicação social. Nos contactos mantidos com intelectuais progressistas de São Paulo e dirigentes estudantis anti salazaristas , favoráveis à independência das colonias portuguesas, Junqueira rapidamente adquiriu popularidade e prestígio. Intelectual culto, fora professor de Filosofia e Matemática em Caracas, onde residira anos como exilado. Era no grupo do «Santa Maria» o único que estudara clássicos do marxismo, embora Soutomayor tivesse militado no PCE.
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José Velo Mosquera, revolucionário puro Miguel Urbano Rodrigues
Tinha lido milhares de livros. Mas Marx, Kant, Newton, Einstein não bastavam para saciar a sua fome de saber. A sua cultura desarrumada refletia o espirito de um cavaleiro andante fora do tempo. Dizia ser marxista e leninista, mas não podia sê-lo. Paradoxalmente, desenvolvera uma conceção idealista da História, incompatível com o materialismo dialético. Como nacionalista galego tinha uma admiração enorme por Castelao. Na época, eu ainda não estava curado do esquerdismo, definido por Lenine de doença infantil do comunismo.
José Velo Mosquera (1916-1972)
Os companheiros do «Santa Maria» estavam instalados numa quinta alugada, próxima de São Paulo, teoricamente disponíveis para empreenderem novas tarefas ao serviço do DRIL. Concebi então um projeto louco. Iria à Guiné Conakry estabelecer contato com Amílcar Cabral, do PAIGCV, e os dirigentes do Movimento Popular de Libertação de Angola para oferecer a colaboração do DRIL na luta pela libertação da Guiné Bissau e de Angola. 134
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Miguel Urbano Rodrigues José Velo Mosquera, revolucionário puro
Dediquei ao tema alguns capítulos de um livro. Fui muito bem acolhido e escutaram com atenção a minha proposta. O presidente SekouTouré, que me recebeu cordialmente, prometeu facilidades para a instalação no país dos combatentes do DRIL. Mas o tresloucado projeto não tinha pernas para andar. De São Paulo recebi a notícia de que o grupo do «Santa Maria» tinha abandonado a quinta no Carnaval e se dispersara. O DRIL não existia mais. Ao regressar ao Brasil, encontrei Junqueira amargurado. Em Conakry eu tomara conhecimento pelo «Avante!» de que o PCP alterara a sua estratégia, criticando o desvio de direita, e defendia um «levantamento nacional e uma insurreição popular armada», ou seja uma linha revolucionaria que Álvaro Cunhal sistematizaria mais tarde no «Rumo à Vitória». Essa inflexão estratégica entusiasmou-me e, ao regressar a São Paulo, informei o responsável do Partido de que podiam contar comigo. Não aderi logo ao PCP, mas já me sentia comunista. Junqueira compreendeu a minha opção. Não ouvi dele uma censura ao adquirir a certeza de que eu não o acompanharia mais em aventuras utópicas. Mas, apesar disso, continuou a expor-me com frequência projetos fantásticos, miríficos, que concebia como concretizáveis. Foi um amigo maravilhoso, e o afeto granítico que nos unia era mais forte do que o abismo ideológico que nos separava.
O PATRIOTA GALEGO O conceito de pátria era nele revitalizado por uma aversão profunda por Castela e os castelhanos. Recordo que, ao chegar a São Paulo, me confidenciou que ao ver nas ruas e nos jornais tudo escrito na «sua língua» se comoveu. Sentiu-se numa gigantesca Galiza. Lamentava que a Galiza, em vez de se ter ligado a Portugal, caminhando fundidos pela História, tivesse sido conquistada, anexada e humilhada por Castela. Não perdera a esperança de uma aproximação cada vez mais profunda, íntima, dos dois povos irmãos, ramos de um tronco comum. outubro 2016 / KALLAIKIA
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José Velo Mosquera, revolucionário puro Miguel Urbano Rodrigues
Permaneceu em minha casa até Xovita, a sua companheira, chegar ao Brasil, vinda da Venezuela. Vítor, o filho de ambos, participara, com apenas 15 anos, no assalto ao «Santa Maria». Xovita era uma mulher galega que tinha os pés bem firmes na terra. Com o seu sentido prático convenceu-o a abrir uma pequena livraria. Eu visitava-o com frequência, discutíamos os grandes problemas da humanidade, e recordo que Junqueira, com os cotovelos apoiados no balcão, se inflamava quando principiava em voz baixa a dar-me notícias da Galiza, que o alegravam. Concluía que o espirito revolucionário do seu povo, segundo ele, se mantinha vivo. A imaginação e a fantasia suavizavam-lhe a tristeza de um exílio cujo fim não iria viver. Não esqueço que vendeu dezenas de exemplares de um livro meu que foi proibido e apreendido em l968 pelo governo do Brasil, então submetido a uma ditadura militar fascista. Morreu aos 55 anos, apos uma doença prolongada que o fez sofrer muito e lhe destroçou o corpo frágil. Não esqueci que na última vez que falamos, ao visitá-lo no hospital, se animou ao falar de um grande projeto revolucionário que tinha concebido… Foi sepultado com a bandeira galega, como tinha exigido. Escrevia um livro quando a morte chegou. O Vítor entregou-me o manuscrito. Transcorridos tantos anos ainda me dói o que aconteceu. Era uma reflexão sobre temas políticos e culturais. Não foi possível publicar no momento o seu trabalho porque estava redigido em galego, o que exigia adaptação ao português. Guardei o manuscrito. Um dia verifiquei que, tal como livros e documentos meus, tinha desaparecido. Estávamos no auge do terror policial e eu era muito visado pelas polícias políticas da ditadura militar. Hoje recordo-repito- com saudade e carinho o amigo querido, cavaleiro da utopia, mas um dos revolucionários mais puros que conheci.
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