panorama
Criança da escola de música do convento franciscano da cidade de San Ignacio de Velasco
M 72 revista família cristã
Texto e fotos Paulo Maia
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As Missões Jesuítas de Chiquitos estão localizadas ao nordeste da Bolívia, a pouco mais de 200 quilômetros da cidade de Santa Cruz de la Sierra
á certas realidades que estão tão distantes de nós, tanto geograficamente quanto temporalmente, que se pode cair no esquecimento. Essa pode ser uma das sensações vividas por muitos dos visitantes de uma região boliviana conhecida por Chiquitanía, antiga redução jesuíta, que guarda, ainda hoje, marcas de um modelo de evangelização audacioso, radical e comprometido com a realidade do povo. A continuidade das reduções jesuítas na Bolívia se dá com a própria Chiquitanía, o patrimônio material e imaterial dos Jesuítas. O nome Chiquitanía provém de chiquitos, “pequenos” em espanhol, nome dado pelos colonizadores espanhóis devido à impressão que lhes causara o tamanho das portas das casas dos nativos, pois eram muito pequenas, em proporção ao tamanho da casa. Isso chamou a atenção dos colonizadores que imaginaram se tratar de povos pequenos, chiquitos, mas logo entenderiam que o tamanho da porta era uma proteção contra animais grandes, uma vez que toda a região chiquitana era parte da vegetação que hoje chamamos amazônica. No entanto, mesmo sa-
bendo do motivo de as portas serem pequenas, os colonizadores mantiveram o nome chiquitos, e consequentemente a região passou a ser chamada de Chiquitanía. Com o avanço da colonização foram organizados vários povoados nessa região. Dos que se mantiveram até hoje como cidade e que fazem parte da região chamada Chiquitanía constam San José de Chiquitos, Concepción, San Ignacio de Zamucos, San Miguel, San Ramón, San Rafael, San Javier, San Ignacio de Velasco, Santiago de Otuquis e San Ignacio de Moxos, sendo que este último se encontra numa região mais distante e é a única cidade para a qual voltaram os Jesuítas depois de sua supressão em 1767. Nas demais cidades, as paróquias, em sua maioria, estão hoje sob a responsabilidade dos Franciscanos. Como é bem conhecida, a ação dos Jesuítas se deu por meio de um grande aglomerado de etnias bem organizadas, com um projeto de evangelização, ritos e diversas práticas religiosas bem próprios. Além disso, também desenvolveram um projeto de urbanização e economia importantes, historicamente conhecidos como Reduções Jesuítas.
Missões de Chiquitos
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Nova construção da Igreja de San Miguel em que se procurou manter o estilo original
A preservação − Contrariamente à experiência no extremo sul brasileiro, pois das Reduções restaram poucos sinais do que representaram na colônia portuguesa, na Chiquitanía foram preservados não só os povoados, como até hoje se conserva o mesmo projeto urbano de distribuição de ruas e organização espacial das atuais cidades. Mas a região chiquitana impressiona também por manter a mesma arquitetura das Igrejas, alguns ritos religiosos, a música barroca e seu artesanato também barroco. E no caso destes últimos, tanto a música, como o artesanato, são caracterizados por um barroco internacionalmente conhecido como Barroco Chiquitano, dada à sua especificidade da expressão barroca. Atualmente se pode dizer que o
Igreja de San Miguel, visão do presbitério para a entrada da igreja 74 revista família cristã
legado Jesuíta foi conservado tanto em seu aspecto material, sobretudo na arquitetura de suas Igrejas, quanto imaterial. Neste último caso, pode-se evidenciá-lo num modo de fazer suas atividades, tanto religiosa como artística e artesanal. E tal evidência provoca uma pergunta: o que houve de tão particular nessas reduções jesuítas que permitiu um certo nível de fortalecimento sociocultural e conservação de alguns costumes da primeira evangelização latino-americana? Há um consenso entre os historiadores das reduções e da Chiquitanía que diz respeito ao tipo de evangelização ali realizado. Apesar das várias controvérsias a respeito da evangelização jesuíta no período colonial espanhol e português, é indiscutível que houve uma evangelização cuja aplicação e vivência bíblico-teológico se aproximou consideravelmente da experiência que os povos nativos viviam naturalmente. Uma dessas práticas comuns aos nativos trata-se do seu gosto pela música, e dizem alguns historiadores que não só se trata de gosto musical, senão uma facilidade de afeiçoamento e prática da arte. Eram dados à música e à dança, e, com muita agilidade, aprendiam a produzir outros tipos de arte, como a escultura, por exemplo. Os Jesuítas compreenderam essa realidade já presente na cultura autóctone e a partir disso adaptaram sua compreensão teológico-catequética para aquilo que os chiquitanos entenderam e acolheram como algo partilhado entre duas expressões culturais tão distintas, o cristianismo. Desse modo, foi implementada uma ação evangelizadora encarnada na experiência do povo chiquitano. Os frutos dessa “ousadia cristã” resultaram em que posteriormente esse
povo ajudou os Jesuítas a seguir com sua ação evangelizadora entre outros grupos étnicos. E uma vez realizada essa “conquista jesuítica”, o passo seguinte significou a unificação do idioma, dada à grande diversidade de povos distintos aglomerados na Chiquitanía, com idiomas de raízes bem distintas umas das outras. Com isso se convencionou como idioma local o chiquitano, ainda falado até hoje, embora já bastante escasso entre sua população, na maioria septuagenária, que com seu idioma materno levará consigo a memória de uma cultura que nos remete às primeiras experiências da formação do povo latino-americano.
As oficinas de artesanato em madeira são o resgate da cultura das Missões Jesuítas
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