O Peregrino

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John Bunyan

O Peregrino

SĂŁo Paulo, 2017

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O peregrino The Pilgrim's Progress © 2017 by Editora Ágape Ltda. coordenação editorial Rebeca Lacerda tradução Beatriz Bellucci

revisão Fernanda Guerriero Antunes Patrícia Murari Ana Lúcia Neiva

preparação Thiago Fraga Deborah Stafussi

ilustrações Alexandre Santos

coordenador editorial Vitor Donofrio

editorial Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

gerente de aquisições Renata de Mello do Vale

diagramação Rebeca Lacerda

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Bunyan, John O peregrino / John Bunyan ; tradução de [Beatriz Bellucci]. -Barueri, SP : Ágape, 2017. Título original: The Pilgrim’s Progress 1. Ficção inglesa 2. Ficção cristã I. Título II. Bellucci, Beatriz 16-1444

CDD 823

Índice para catálogo sistemático:

1. Ficção inglesa: Ficção cristã 823

editora ágape ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1112 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.editoraagape.com.br | atendimento@agape.com.br

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Deste mundo ร quele que estรก por vir, revelado sob a semelhanรงa de um sonho de John Bunyan.

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APOLOGIA DO AUTOR A ESTE LIVRO Quando, no início, peguei a pena em minha mão, Para escrever, não compreendia Que eu, absolutamente, faria um pequeno livro. De tal modo, que eu havia começado A fazer outro; o qual estava quase concluído, quando Antes que eu percebesse, comecei este. E assim foi: eu, escrevendo sobre o caminho E a corrida dos santos nesta era do Evangelho, De repente, vi­‑me envolvido numa alegoria Sobre sua jornada e o caminho para a glória, Em mais de vinte coisas que coloquei no papel. Isto feito, mais vinte surgiram em minha mente, E novamente começaram a se multiplicar, Como fagulhas que voam de brasas ardentes. Mas então, pensei eu, se vocês reproduzem­‑se tão rapidamente, Vou colocá­‑las de lado, com medo de que vocês, por fim, Venham a se mostrar ad infinitum,* e devorem O livro que estou escrevendo. E foi o que fiz; mas ainda sem a ideia De mostrar ao mundo minha pena e tinta De tal modo; só pensava em fazer Não sabia o quê; não me comprometi A agradar ao próximo; não, eu não; Fiz para satisfazer a mim mesmo. *  Sem fim. 7

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Despendi apenas tempo vago Nestes meus rabiscos; minha única intenção Ao fazê­‑lo era desviar minha atenção De pensamentos piores, que me fazem agir de maneira errada. Assim, coloquei a pena no papel, com prazer, E rapidamente minhas ideias estavam em preto e branco; Por ter agora meu método até o final, Esforcei­‑me e tudo surgiu, e então escrevi Tudo no papel; até que finalmente se formasse, Por toda a extensão, a grandeza que se vê. Bem, quando finalizei a obra Mostrei­‑a a outros, para ver Se a condenariam ou justificariam. E alguns disseram “deixe­‑a viver”; outros, “mate­‑a”. Alguns disseram “John, publique”; outros, “não o faça”. Alguns disseram “parece bom”; outros, “não”. Vi­‑me numa difícil situação, sem compreender Qual era o melhor a se fazer: Afinal, pensei, como todos estão divididos, Vou publicar; e assim ficou decidido. Pois alguns deles assim o fariam, Embora outros nessa situação optassem por não publicar: Para provar, então, qual conselho tinha sido o melhor, Pensei ser bom colocá­‑los à prova. Pensei, ainda, que se eu rejeitasse Aqueles que se agradariam da obra; Eu não sabia, mas poderia acabar privando­‑os Daquilo que para eles seria um grande deleite. Para os contrários à publicação, Disse­‑lhes, não quero ofendê­‑los; 8

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No entanto, se seus irmãos disso se agradam, Abstenham­‑se de julgar, até que o vejam. Se vocês não o querem ler, fiquem à vontade; Alguns amam a carne, outros preferem o osso. Sim, para tornar isso menos doloroso, O que fiz foi, então, adverti­‑los: Posso não escrever de tal forma? Com tal método também, e sem perder Meu final, teu bem? Por que não posso assim fazer? Nuvens escuras trazem água, enquanto as claras nada trazem. Ainda, escuras ou claras, se suas gotas de prata Decidem cair, a terra, ao produzir frutos/colheitas, Louva as duas, e não as critica, Mas aprecia os frutos que juntos são gerados; Antes, mistura os dois, para que em seu fruto Não sejam distinguidos um do outro; são suficientes Para alimentá­‑la bem; mas, quando farta, Ela vomita os dois, anulando sua bênção. Você vê os meios que o pescador usa Para pegar o peixe; que esforço ele faz! Observe como ele lança mão de toda a sua sagacidade; E também de suas armadilhas, linhas, anzóis, ganchos e redes. No entanto, há peixes que nem anzol nem linha, Nem armadilha, nem rede, nem motor podem pegar. Para encontrá­‑los, é preciso apalpá­‑los, e também encantá­‑los, Caso contrário, não serão pegos, faça o que fizer. E como o caçador planeja capturar a ave De diversas formas! Tantas que nem é possível mencionar. Suas armas, redes, arapucas, luzes e sinos: Ele rasteja, avança, levanta; sim, quem pode nomear 9

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Todas as suas posturas? Mas nenhuma delas Fará com que ele compreenda as aves que lhe agradam. Sim, ele precisa pipilar e assobiar para pegar esta aqui; Mas se o faz, aquela outra ave ele perderá. Se uma pérola se alojar na cabeça de um sapo, E também for encontrada na concha de uma ostra; Se coisas que nada prometem contêm Algo melhor que ouro; quem irá desdenhar; Que há um sussurro sobre isso, ali para ser visto, Que eles podem encontrar. Agora, meu pequeno livro (Embora sem todas aquelas ilustrações que fazem um ou outro homem pegá­‑lo com as mãos) Mas há aquelas coisas que o distinguem Do que em ideias ousadas, mas vazias habita. “Bem, ainda não estou completamente convencido De que este seu livro irá vingar, quando lido por completo.” Por que, qual é o problema? “É sombrio.” E daí? “Mas não é real.” O que é isso? Sei bem Que alguns homens que usam palavras forjadas, sombrias como as minhas, Fazem a verdade reluzir, e seus raios brilhar. “Mas eles querem solidez.” Diga, homem, o que tem em mente. “Eles afogam os fracos; as metáforas nos cegam.” A solidez, de fato, torna­‑se a pena Daquele que escreve coisas divinas ao homem: Mas devo eu querer solidez, porque Falo em metáforas? Não eram as leis de Deus, As leis do Evangelho, que em tempos passados eram transmitidas 10

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Por tipos, sombras e metáforas? Entretanto, relutará Qualquer homem calmo ao criticar Com eles, para que não seja culpado ao atacar A sabedoria sublime! Não, antes ele se humilha, E procura descobrir o que, por pinos e laços, Por bezerros e ovelhas, por novilhas, e por carneiros, Por pássaros e ervas, e pelo sangue de cordeiros, O que Deus lhe falou; e feliz estará ele Ao encontrar luz e graça nessas coisas. Mas não se adiante muito, portanto, para concluir Que eu quero solidez – que sou rude; Todas as coisas sólidas em aparência nem sempre são sólidas; Todas as parábolas não a nós desprezam, Para que não recebamos as coisas mais dolorosas levemente, E das coisas boas, nossa alma não seja privada, Que minhas palavras sombrias e nebulosas retenham A verdade, assim como os cofres que o ouro guardam. Os profetas usaram muitas metáforas Para mostrar a verdade: sim, quem assim considera Cristo, seus apóstolos também, verão claramente, Que as verdades até hoje estão encobertas. Estou com medo de dizer que as sagradas escrituras, Que, com seu estilo e frase, colocam no papel toda a sagacidade, Estão completamente repletas de todas essas coisas, Figuras sombrias, alegorias? Entretanto, brotam Deste mesmo livro, este brilho e estes raios De luz, que transformam nossas noites mais escuras em dias. Vamos, que aquele que me critica olhe para a sua vida agora, E encontre ali linhas mais sombrias que em meu livro 11

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Ele não encontrou; sim, e que ele saiba, Que em seus melhores escritos há também linhas piores. Que nos levantemos diante de homens imparciais, Para um pobre homem eu ouso arriscar dez, Que encontrarão sentido nestas linhas Muito melhor do que suas mentiras em santuários de prata. Venha, verdade, mesmo que envolta em panos, Informe o julgamento, retifique a mente; Agrade o entendimento, faça a vontade. A memória também preenche Com aquilo que agrada a nossa imaginação; Da mesma forma que nossos problemas tendem a se aquietar. Palavras sensatas, eu sei, Timóteo deve usar, E recusar as fábulas antigas; Mas, embora sombrias, Paulo não proibiu em lugar nenhum O uso de parábolas, em que foram escondidos Aquele ouro, aquelas pérolas e pedras preciosas, que eram Dignos de ser procurados, com o máximo cuidado. Deixe­‑me acrescentar uma palavra mais. Oh, homem de Deus, Você está ofendido? Você preferiria que eu Tivesse abordado esta questão de outra maneira? Ou que eu tivesse sido mais claro nessas coisas? Três coisas vou propor; e depois as apresentarei Àqueles que são melhores, como convém. 1. Descobri que a mim não foi negado o uso Deste meu método, porque não abuso Das palavras, coisas, leitores, nem sou rude Ao lidar com figuras ou similitudes, Na aplicação; mas o quanto eu puder Buscarei o avanço da verdade, de um jeito ou de outro Negado, disse eu? Não, tenho a permissão 12

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(Exemplo também, e daqueles que têm Agradado mais a Deus, por suas palavras ou atitudes, Do que qualquer outro homem que hoje vive) Assim, para expressar minha disposição, para declarar Coisas que são excelentes para Ele. 2. Acho que os homens, tão altos como árvores, escreverão Na forma de diálogo; contudo, nenhum homem os despreza Por assim escrever. De fato, se violarem A verdade, malditos serão, bem como a técnica que usaram Com essa intenção; mas que a verdade seja livre Para que ataque a mim e a você, De forma que agrade a Deus: por que quem é que sabe, Melhor que Ele, que nos ensinou a arar, A guiar nossas mentes e penas para os seus planos? E Ele faz as coisas simples guiarem para o divino. 3. Acho que as sagradas escrituras, em muitos lugares, Assemelham­‑se a este método, em que os casos Contam uma coisa para revelar outra: Posso, então, usá­‑lo sem que nada sufoque Os raios dourados da verdade: não, por este método ela pode Lançar seus raios tão reluzentes como o dia. E agora, antes de largar a minha pena, Mostrarei o valor do meu livro; e então Confiarei você e ele às mãos Que fazem o forte cair, e o fraco se levantar. Este livro delineou diante dos seus olhos O homem que busca o prêmio eterno: Mostra­‑lhe de onde ele vem, para onde ele vai, O que deixa por fazer; e também aquilo que ele faz: 13

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Ainda lhe mostra como ele corre, e corre, Até chegar ao portão da glória. Mostra, ainda, quem partiu pela vida a toda velocidade, Como se fosse obter a coroa imperecível; Aqui você também pode ver a razão pela qual Seu esforço é em vão, e como loucos eles morrem. Este livro o transformará em um verdadeiro viajante, Se permitir que ele o guie; Ele irá levá­‑lo à Terra Santa, Se compreender as suas orientações. Sim, ele fará os indolentes ativos; E os cegos verão coisas maravilhosas. Você quer algo raro e proveitoso? Ou você veria a verdade em uma fábula? Você se esqueceu? Você se lembraria Do Ano­‑Novo até o último dia de dezembro? Pois então leia minhas fantasias; Elas irão grudar como carrapicho, E podem ser confortadoras aos desamparados. Este livro é escrito em tal dialeto E pode afetar a mente de homens desatentos: Pode parecer novidade, mas não contém nada Senão os esforços sensatos e sinceros do Evangelho. Você quer se livrar da melancolia? Você quer prazer, mas longe da loucura? Você quer ler enigmas, e suas explicações? Ou quer se afogar na sua contemplação? Você gosta de carne? Ou prefere ver Um homem nas nuvens, ouvindo­‑o falar com você? Você quer estar em um sonho, mas sem dormir? 14

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Ou prefere num mesmo momento rir e chorar? Você se perderia sem dano algum? E depois se encontraria sem encanto? Você quer mesmo ler, sem saber o quê, E sem saber se será abençoado ou não, Ao ler as mesmas linhas? Oh, então, venha, E leia o meu livro, com a mente e o coração juntos. John Bunyan

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PRIMEIRO ESTÁGIO Caminhando pelo deserto

deste mundo, che‑ guei a um certo lugar onde havia uma caverna,* e ali me deitei para dormir; e tive um sonho. Sonhei e, veja só, vi um homem vestido com trapos, em pé em determinado lugar, de costas para a sua casa, com um livro na mão, carregando um grande fardo (Is 64:6; Lc 14:33; Sl 38:4). Olhei para ele e o vi abrir o livro e lê‑lo. E, enquanto lia, chorava e tremia. Não con‑ seguindo mais se conter, ele se desmanchou em lágrimas e disse: “O que devo fazer?” (At 2:37, 16:30; Hc 1:2,3). Neste estado, portanto, foi para casa e se conteve ao máxi‑ mo, para que sua mulher e seus filhos não notassem sua angús‑ tia. Mas ele não conseguiu ficar em silêncio por muito tempo, porque seu sofrimento só aumentava. Então, finalmente, abriu o coração para a esposa e os filhos, e começou a falar. – Oh, minha querida esposa e filhos de minhas entranhas, eu, seu querido amigo, estou angustiado em razão de um far‑ do muito pesado que tem me consumido. Sei que nossa cida‑ de será queimada com fogo do céu, e nessa temerosa devasta‑ ção, eu, você, minha esposa, e vocês, queridos filhos, seremos miseravelmente destruídos, a menos que exista uma forma, o que desacredito, de escapar e nos livrarmos disso. Nesse momento, o anúncio gerou pânico. Não porque eles acreditassem no que haviam escutado, mas porque achavam que algum tipo de loucura havia penetrado na mente dele. Entretanto, com o anoitecer, eles tinham esperanças de que o

* Cadeia de Bedford, na qual o autor foi preso por conta de sua consciência. 17

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sono o acalmasse, e, assim, logo o colocaram para dormir. Mas a noite foi tão perturbadora quanto o dia para ele. Em vez de cair no sono, o homem se pôs a chorar e suspirar. Ao ama‑ nhecer, quiseram saber como ele estava. Disse­‑lhes que estava cada vez pior. Voltou a alertá­‑los, mas a família se mostrava irredutível. Pensaram em curar sua enfermidade sendo seve‑ ros e grosseiros com ele. Ora o ridicularizavam, ora o repre‑ endiam e o desprezavam. Por essa razão, o homem começou a se isolar em seu quarto para orar por eles e lamentar­‑se, e também para compadecer­‑se com o próprio sofrimento. Ele andava solitário pelos campos, lendo ou orando. E foi assim que passou o tempo por alguns dias. Certo dia, eu o vi lendo seu livro (como de costume) en‑ quanto caminhava pelos campos, mas parecia muito angus‑ tiado. Enquanto lia, se desmanchava em lágrimas, como já havia feito antes, e perguntava: “O que eu devo fazer para me salvar?” (At 16:30,31). Vi também que olhava para um lado e para o outro, como se quisesse correr. Contudo, permanecia imóvel porque, como percebi, ele não sabia que caminho seguir. Vi então um ho‑ mem chamado Evangelista aproximar­‑se dele e perguntar: – Por que está chorando? – Senhor, percebi, por meio deste livro aqui, que estou con‑ denado à morte e, depois disso, irei a julgamento (Hb 9:27). E creio que não estou disposto a fazer a primeira coisa ( Jó 10:21,22) e nem preparado para a segunda (Ez 22:14). – Por que não está disposto a morrer, já que sua vida é repleta de males? – perguntou Evangelista. – Por que temo que este fardo que carrego em minhas costas me afunde mais que o sepulcro, e que eu venha a cair em Tofete (Is 30:33). E, senhor, se eu não estou pronto para ir para a prisão, não estou pronto para ir ao julgamento e depois para a execução. Pensar nessas coisas me faz chorar – respondeu o homem. 18

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– Se esta é a sua situação, por que continua aí parado? – disse Evangelista. – Porque não sei para onde ir. Então, ele lhe entregou um pergaminho com as seguintes palavras: “Fuja da ira futura” (Mt 3:7). O homem leu e, olhando para Evangelista, perguntou muito cuidadosamente: – Para onde devo fugir? Evangelista apontou o dedo para um campo muito vas‑ to e disse: – Você consegue ver aquela porta estreita lá longe? (Mt 7:13,14) – Não. – Você consegue ver aquela luz lá longe brilhando? (Sl 119:105; 2Pe 1:19). – Acho que sim – respondeu o homem. – Não a perca de vista, e vá diretamente até lá. Ali você encontrará a porta. Bata e lá lhe dirão o que fazer – disse Evangelista. Então, vi em meu sonho que o homem começou a correr. Ele ainda não havia se afastado muito quando sua esposa e seus filhos, ao vê­‑lo correr, começaram a gritar para que ele voltasse. Mas o homem tapou os ouvidos e continuou cor‑ rendo e gritando: “Vida! Vida! Vida eterna!” (Lc 14:26). Sem olhar para trás (Gn 19:17), correu para dentro da planície. Os vizinhos saíram para vê­‑lo correr ( Jr 20:10); e, enquan‑ to ele corria, alguns zombavam dele, outros o ameaçavam e outros gritavam para que ele retornasse. E, entre eles, dois estavam decididos a ir atrás dele para trazê­‑lo de volta à força. Chamavam­‑se Obstinado e Flexível. Àquela altura, o homem já havia se distanciado bastante; entretanto, eles estavam dis‑ postos a segui­‑lo, e logo o alcançaram. Então, o homem disse: – Vizinhos, por que vieram até aqui? – Para convencê­‑lo a voltar conosco – responderam. 19

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– De forma alguma – disse o homem. – Vocês moram na Cidade da Destruição, no lugar onde eu também nasci: é assim que vejo. E, se por acaso lá morrerem, mais cedo ou mais tarde, vocês se afundarão mais que o sepulcro, num lugar que arde com fogo e enxofre. Animem­‑se, bons vizinhos, e venham comigo. Obstinado: Como é? E deixaremos para trás nossos ami‑ gos e nosso conforto? Cristão: Sim, disse Cristão (pois esse era o seu nome), por‑ que todas essas coisas que vocês deixarão para trás não são abso‑ lutamente nada se comparadas ao pouquinho do que pretendo desfrutar (2Co 4:18). E se vocês vierem comigo, e nisso crerem, também desfrutarão. Porque lá, para onde estou indo, há abun‑ dância (Lc1 5:17). Venham comigo, e provem essas palavras. Obstinado: Que coisas são essas que você procura, que o fazem abandonar tudo para ir atrás delas? Cristão: Procuro uma herança que jamais irá perecer, macular­‑se ou perder valor (1Pe 1:4). Herança guardada nos céus para vocês (Hb 11:16), para ser dada, no momento apro‑ priado, àqueles que a buscam diligentemente. Leiam isso em meu livro, se quiserem. Obstinado: Ora, deixe este seu livro para lá. Você vai vol‑ tar conosco ou não? Cristão: Não, de jeito nenhum, porque já coloquei a mi‑ nha mão no arado (Lc 9:62). Obstinado: Então vamos, vizinho Flexível, vamos voltar para casa sem ele. Há muitas pessoas tolas e malucas, e, quan‑ do cismam com algo fantasioso, consideram­‑se mais sábias aos seus próprios olhos do que sete homens que respondem com bom senso. Flexível: Não o insulte. Se o que Cristão está dizendo é verdade, as coisas que ele está buscando são melhores do que as nossas. Meu coração está inclinado a seguir com meu vizinho. Obstinado: Não seja tolo também! Escute­‑me, e vamos voltar. Quem sabe para onde este maluco irá levá­‑lo? Vamos voltar. Seja prudente. 20

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Cristão: Não, venha com seu vizinho, Flexível. Vocês precisam ver as coisas de que lhes falei e muitas outras gló‑ rias. Se não acreditam em mim, leiam aqui neste livro, porque a verdade que aqui é apresentada é confirmada pelo sangue Daquele que a criou (Hb 9:17­‑21). Flexível: Bem, vizinho Obstinado, já tomei minha deci‑ são. Pretendo acompanhar este homem, e lançar minha sorte a ele. Mas, meu querido companheiro Cristão, você conhece o caminho até esse lugar desejado? Cristão: Um homem chamado Evangelista indicou­‑me o caminho. Disse­‑me para correr até uma porta estreita mais adiante, e lá receberemos instruções sobre o caminho. Flexível: Vamos então, bom vizinho. Então, os dois seguiram juntos. Obstinado: E eu voltarei para a minha casa. Não acom‑ panharei estes homens iludidos e enganados. Então, vi em meu sonho que, enquanto Obstinado vol‑ tava para casa, Cristão e Flexível seguiam pela planície, conversando. Cristão: Então, vizinho Flexível, como você está? Estou feliz por ter se convencido a vir comigo. Se Obstinado tivesse sentido o mesmo que eu a respeito dos poderes e terrores do que não pode ser visto ainda, ele jamais teria nos dado as costas tão facilmente. Flexível: Agora que estamos a sós, diga­‑me que coisas são essas, como desfrutaremos delas e para onde estamos indo. Cristão: Consigo facilmente concebê­ ‑las em minha mente, mas é difícil expressá­‑las com palavras. Contudo, já que deseja tanto saber, vou lê­‑las em meu livro. Flexível: E você tem certeza de que as palavras do seu livro são absolutamente verdadeiras? Cristão: Sim, com certeza, porque foram criadas por Aquele que não mente (Tt 1:2). Flexível: Muito bem, que coisas são essas, então? 21

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Cristão: Existe um reino perpétuo para ser habitado e uma vida eterna para nos ser dada. E para sempre habitare‑ mos nesse reino (Is 65:17; Jo 10:27­‑29). Flexível: Bem, e o que mais? Cristão: Coroas de glória nos serão dadas; e vestimen‑ tas que nos farão brilhar como o sol no firmamento do céu (2Tm 4:8; Ap 22:5; Mt 13:43). Flexível: Parece­‑me muito agradável. E o que mais? Cristão: Não haverá mais choro e nem tristeza. O Se‑ nhor daquele lugar enxugará dos nossos olhos toda lágrima (Is 25:8; Ap 7:16,17; 21:4). Flexível: E teremos companhia? Cristão: Estaremos com os serafins e querubins (Is 6:2; 1Ts 4:16,17; Ap 5:11), criaturas que ofuscarão nossos olhos. Também nos encontraremos com milhares e dezenas de milhares que foram para lá antes de nós; ne‑ nhum deles é maldoso, mas todos são amáveis e santos, vivendo sob o olhar de Deus, na presença de sua aceitação eterna. Resumindo, veremos os anciãos com suas coroas de ouro (Ap 4:4), veremos as santas virgens com suas harpas de ouro (Ap 14:1­‑5), veremos homens que pelo mundo foram esquartejados, queimados, devorados por animais e afogados nos mares, por causa do amor que tinham para com o Senhor do lugar ( Jo 12:25), e todos estão bem e revestidos de imortalidade, como uma veste (2Co 5:2). Flexível: Esse simples relato já é suficiente para arrebatar qualquer coração. Mas desfrutaremos dessas coisas? Como tomaremos parte nisso? Cristão: O Senhor, o governador do país, deixou regis‑ trado neste livro (Is 55:1,2; Jo 6:37; 7:37; Ap 21:6; 22:17); a condição é a seguinte: se essas coisas verdadeiramente dese‑ jarmos, Ele nos concederá de graça. Flexível: Bem, meu bom companheiro, alegra­‑me ouvir essas palavras. Vamos apressar nossos passos. 22

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Cristão: Não posso ir tão rápido quanto gostaria, por causa deste fardo pesado que carrego em minhas costas. Então, vi em meu sonho que, assim que finalizaram a con‑ versa, eles se aproximaram de um pântano muito enlameado, localizado no meio da planície. Desatentos, ali ambos caíram. O nome do pântano era Desânimo. Eles ficaram atolados ali por um tempo, sujando­‑se inteiramente de lama. E Cristão, por causa do fardo que carregava nas costas, começou a afundar. Flexível: Ei, vizinho Cristão, onde você está agora? Cristão: Sinceramente, não sei. Flexível começou a ficar irritado e disse raivosamente ao seu companheiro: “É esta a felicidade de que tanto fala? Se o início de nossa jornada já está sendo tão difícil, o que podemos espe‑ rar daqui até o fim? Se eu conseguir continuar com minha vida, você poderá ficar com minha parte deste maravilhoso lugar”. E, com isso, ele fez grande esforço e saiu do lamaçal, pela margem do pântano que ficava mais perto de sua casa. Foi embora e Cristão não o viu mais. Cristão ficou atolado no Pântano do Desânimo, sozinho. No entanto, esforçou­‑se para conseguir sair pela margem do pânta‑ no mais distante de sua casa e mais perto da porta estreita. Mas não conseguiu sair por causa do fardo pesado que carregava nas costas. Porém, vi em meu sonho um homem, cujo nome era Auxílio, aproximar­‑se dele, perguntando­‑lhe o que fazia ali. Cristão: Senhor, um homem chamado Evangelista orientou­ ‑me a seguir este caminho em direção à porta estreita, para que eu pudesse escapar da ira futura. E, ao ir para lá, aqui caí. Auxílio: Mas por que você não procurou as pegadas? Cristão: Estava tão apavorado que fugi pelo caminho mais próximo, e caí aqui. Auxílio: Dê­‑me a sua mão. Cristão esticou a mão para que Auxílio o tirasse dali (Sl 40:2). Ele o colocou em um local seguro e o orientou em direção ao seu caminho. 23

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Então se aproximou daquele que o havia tirado do pânta‑ no e disse: – Senhor, já que este é o caminho da Cidade da Destrui‑ ção até a porta distante, por que não arrumam este lugar para os pobres viajantes poderem seguir com mais segurança? – Este pântano lamacento não pode ser arrumado por‑ que por aqui afluem continuamente toda a escória e sujeira que acompanham a condenação do pecado. Por isso se chama Pântano do Desânimo. Conforme o pecador desperta para sua condição miserável, surgem em sua alma muitos medos, dúvidas e apreensões desalentadoras, que se juntam e se ins‑ talam neste lugar. E essa é a razão do péssimo estado deste solo – respondeu. – Não é da vontade do Rei que este lugar permaneça nes‑ tas condições tão precárias (Is 35:3,4). Seus operários, sob direção dos inspetores de sua Majestade, têm trabalhado há mais de 1.600 anos neste pedaço de terra para repará­‑lo. Sim, e até onde sei, aqui já foram absorvidas pelo menos 20 mil carroçadas e milhões de ensinamentos saudáveis, que são tra‑ zidos em todas as estações de todos os lugares sob o domí‑ nio do Rei (dizem que são os melhores materiais para ajeitar este lugar). Se fosse verdade, não estaria neste estado. Mas continua sendo o Pântano do Desânimo, e continuará sendo quando já tiverem feito tudo o que puderem. – É verdade que há, por ordem do Legislador, algumas pegadas seguras e sólidas que foram colocadas até mesmo no meio do pântano; porém, quando este lugar vomita sua imundície, o que ocorre durante a mudança de tempo, essas pegadas mal podem ser vistas. E quando podem, os homens, sentindo­‑se tontos, não as notam e ficam atolados, apesar de as pegadas estarem ali. Mas encontram um terreno bom quando adentram pela porta (1Sm 12:23). Então vi em meu sonho Flexível chegando à sua casa. Seus vizinhos foram visitá­ ‑lo. Alguns disseram que era 24

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sábio por voltar para casa, outros, que era louco por ter se aventurado com Cristão e os demais o ridicularizaram por sua covardia, dizendo: – Certamente, depois de decidir se aventurar, eu não teria sido tão fraco de desistir só por causa de algumas dificuldades. Envergonhado, Flexível se juntou a eles. Por fim, ele foi fi‑ cando mais confiante, já que todos começaram a ridicularizar Cristão pelas costas. E faziam o mesmo com Flexível. Enquanto Cristão caminhava sozinho, viu alguém ao longe atravessando o campo em sua direção e acabaram cruzando o caminho um do outro. O nome do cavalheiro era Sr. Sábio Para O Mundo e ele morava na Cidade da Diplomacia Profana. Ela era muito grande e situava­‑se próximo à de Cristão. O homem, ao encontrar­‑se com Cristão, e já tendo ouvido falar algo a seu respeito – pois a partida de Cristão da Cidade da Destruição foi muito comentada não apenas em sua cidade, visto que se espalhou para outros lugares –, já conhecia um pouco sobre ele. Observando sua árdua caminhada e vendo seus suspiros e gemidos, começou a conversar com Cristão. Sr. Sábio Para O Mundo: Para onde está indo tão so‑ brecarregado assim, bom companheiro? Cristão: De fato, um fardo pesado que sempre achei que toda pobre criatura carregasse! Pergunta­‑me para onde vou? Digo­‑lhe, senhor, que caminho em direção àquela distante porta estreita. Disseram­‑me que lá me informarão como po‑ derei livrar­‑me deste fardo pesado. Sr. Sábio Para O Mundo: Você tem esposa e filhos? Cristão: Sim, mas estou tão sobrecarregado que já não sinto alegria com eles como antes; é como se eu não os tivesse (1Co 7:29). Sr. Sábio Para O Mundo: Você me escutaria se eu lhe desse um conselho? Cristão: Se for bom, sim, porque estou precisando de bons conselhos. 25

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