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Dois tratados sobre poesia
TEXTOS Alessandra Bessa
Estou escrevendo agora e necessito de luz em meu interior, ao meu redor, da luz dos objetos e dos seres. A luz é uma chama presente que pode parecer inocente, mas guarda uma inteligência absurda.
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Tão absurda que pode cegar. Ser escritora é um desafio, pois nem tudo são flores. Já que precisamos enxergar muito… Além! E há um peso em tudo isso. Que muitos não conseguem carregar e desistem de ser aquilo que foram chamados pra ser.
Quando há luz, tudo pode ser visto, e isso engloba você e seus defeitos. Assim me veio a seguinte reflexão: no mundo, há três tipos de seres humanos - os seres comuns,que sentem a vida de maneira corriqueira, os psicopatas, que não possuem sentimentos e são capazes das piores crueldades, e, por fim, os artistas (poetas), que possuem uma sensibilidade extremada.

Quando as palavras se tornam frases e as frases se tornam textos tudo desemboca em uma outra dimensão. Uma vida é escrita através dos dedos do poeta, como uma dança sutil que dispara. O poeta, escritor ou o artista da palavra (como você quiser chamar) é aquele que sente que, em algum lugar, poderá extinguir a sua dor e a sua solidão: dormindo-a no papel e nas entrelinhas do espírito das letras escritas. Ele é capaz de experienciar diversas sensações, pois se veste de múltiplas identidades. Com essa dança, o poeta almeja “rasgar” a linha de conforto da humanidade com questionamentos existenciais e filosóficos sob o signo da beleza musical da imaginação. Desta maneira, reconhece a escrita como um lugar primordial. A compreensão do mundo sob a ótica da literatura, que é para ele a única liberdade. A morte como um transmutar de sentimentos e inquietudes: uma necessidade e um respirar. Já que o poeta “brinca” com o infinito e com a incoerência da loucura e da dor. O poeta é um labirinto desmensurado de palavras, sentimentos, lamentos, amores, dores, formas… E sobretudo de vazio… De vazio… Há quem diga que a música que vive no ser da poeta é triste. Mas, como toda música triste, é intensa e bela. Consciente e inconsciente do que é, ele escreve. Como uma necessidade e como um ser que é aglutinado ao ato da escrita. Condenado à escrita… Condenado à dor… Condenada a ser uma entidade texto no mundo concreto. E vai se apresentando em linhas poéticas. Um pouco de si e feito de letras. Um pouco de si no vazio das letras. Um

pouco de si na dimensão das pessoas. Um pouco de si no escuro das coisas exatas e inexatas. Um pouco de si nos códigos linguísticos. Que não representam nada, apenas miniaturas de um novo mundo-texto que talvez não seja ele, mas outra coisa. Mas que se torna um alguém que fala alguma linguagem desconhecida. Desconhecida até mesmo dele, que escreve o desconhecido. Porque a vida nunca foi dado a ser algo para o conhecer. Porque a vida, mesmo a vida criada pela poeta, não pode ser conhecida. A poesia existe, a poeta existe, existe a dor, existe a vontade, existe o amor, existe o caos. No entanto, nunca conheceremos o “grito” dessas cores. O grito emitido é ensurdecedor. E o universo não se apercebe. Não podemos escutá-los. A poeta sente e tenta dizer e desabrocha em sua intensidade: um sentir e um criar. Um alguém chamado poema. Que não é ela e não é ninguém. É um poema. Que como um ser, é dado a labirintos e complexidades, das quais resvalam entre as substâncias da vida e da incompreensão. O que isso quer dizer? Que os artistas sofrem, no entanto, podem viver as mais incríveis emoções transmitidas pelo olhar que possuem sobre a natureza das coisas. Tudo pode virar poesia. Tudo pode virar pintura. Tudo pode virar música. Há quem diga que ser artista nesse mundo é o mesmo que se perder e navegar em um mundo de dor e solidão. De fato, muitas vezes, o artista acaba dando sua vida pela arte, pois a arte é imortal e transita através dos tempos. E o artista? O artista morre.
TEXTO Anônimo

Peço licença à dura existência porque preciso contar ao povo surdo e à substância que sinto saudades da coisa que nunca conheci. Parece incoerência, mas é pura matemática — da mesma natureza mística do zero. Sinto saudades não do que você um dia foi — pois nunca foi — mas do que criei em mim. Eu concebi-o por inteiro, tudo ideia minha, mas não foi imaginação, foi dádiva divina. Era fruto da união do melhor com o pior da minha essência frágil, que nunca imaginei poder ser independente em algo metade meu, metade do mundo. Era questão de proporção, as coisas fluíam para o inconcebível. Algo que premonição, mas não posso dizer que já sabia. Isso seria alterar demais a realidade de que tanto fujo mas respeito, tal como respeito aos meus pais. De fato, não soube apreciá-lo num princípio, temo que não me compreenda como carinhosa, e por isso peço com muito amor e atenção: não é fácil ser hospedeiro de parasita. Dói em mim, no centro de algo oco porém vibrante, pensar tais palavras. Escrevê-las me é um

tiro a cada letra que forma a palavra que lhe define — e exemplifica com muita didática. Ai, que dor, perdão, meu filho, mas é a realidade: foi meu pior parasita. Contraio os olhos como se fossem cair lágrimas mas não consigo, estou seca. O tempo até oscilava, parecia passar algo como num progresso, era um presente expandido, mas eu sabia que o instante de agora era diferente do agora-depois, e fui aceitando a ideia de mantê-lo em meu ventre já comido pelo tempo. O risco que antes me fazia temer, agora me dava razão de viver, estava orgulhosa. Era de um orgulho secreto, todavia. Já tive outros exacerbados que terminaram na pior das frustrações. Comecei assim, numa alegria meio comedida, mas empolgante, que só os segredos guardados por uma pessoa podem proporcionar. Eu estava feliz por ter algo somente meu e dentro de mim, e isso me dava vergonha também. É que não tinha tempo para ser feliz, então era como pôr roupa nova na rua, sentia-me frequentemente olhada por ter um sorriso no rosto. Por isso, passei a caminhar como que com raiva, e muita pressa.
Isto foi bem no comecinho, logo depois de eu saber de tudo. O tempo roncou. Sentia que estava em mim e com muito conforto. Tentei proporcioná-lo da melhor estadia, meu ventre era hotel cinco estrelas. Acariciava-me a mim mesma como a você. Um delírio, vejo agora. À época ainda não tinha um rosto, seria demasiada confiabilidade no futuro, deste eu desconfio. Vivo no passado e tolero o presente, que me aprisiona. Não acredito nas promessas do futuro. Caminho a cada passo, um por um, pensados no instante, no momento que elijo acionar meus músculos e digo a mim mesma: adiante. Abomino a finalidade, por Deus! Como a abomino! O fim em si é cruel e tudo que o rodeia é sórdido, da pura maldade. Culpo a divindade, qual criou um fim para o que se começa — é e só pode ter sido coisa de religioso. Por isso, não acredito em Deus, mas na natureza e no seu místico. Aí não há finalidade: há processos, por meio de onde somos presos pela eternidade. É no âmago de existir que habita a cobra que lhe pica e trai (ao homem, não a si meu filho, você foi puro), disso vem o processo de redenção que é sobreviver. Não quero dar passos, mas sentar-me e respirar por uns minutos, ou por toda a vida. Não almejo mais que o ar que respiro, estou cansada de lutar. Talvez seja por isso, sou fraca de essência, ou louca por querer mais que a subsistência a qual fui fadada. Da quinta semana em diante, já tão íntimos um do outro, toquei-o pôr minha epiderme. Eu sabia que estava ali, sob todas aquelas camadas de resistência do corpo jazia o melhor da


humanidade. Epiderme, derme, tecido subcutâneo, glândulas gordurosas e aquosas, músculos que pouco me serviam e suas fáscias, e por fim o tão organizado órgão, cujas três capas, perimétrio, miométrio e endométrio serviam melhor do que a mais luxuosa mansão da capital paulista. Como você podia ser tão rico, eu tão pobre! A deformação em mim fez-se então mais visível, à cada nova marca de estiramento do meu ser, já deformado, dava-lhe um traço ao seu rosto. Uma semana depois tudo estava bem, exceto pelo tempo que parecia não passar: era ansiedade por você, querido. Já podia vê-lo com diversos pedaços de um todo que deveria ser montado: os olhos cor de amêndoa, banhada em chocolate, porque assim seriam seus cílios, como chocolate; seus cabelos seriam cor de pôr-do-sol setentrional, de um vermelho alaranjado flamejante, com comissuras labiais caídas, que desce obliquamente em continuidade com a marca que as bochechas maiores do que o
necessário formariam um contorno de aspecto cansado, mas terno. Imaginei-o como neve congelada, brilhante e dura, pelo eterno inverno das montanhas mais altas. Então, fui concebendo a placenta que o protegia de meu mais profundo Eu, o que deveria assegurar o desabrochar de uma inocência, mesmo que de fundo doentio, no caos. Tudo era tão lindo, místico. Ouço o ônibus passar. Encaro a vida como vejo a paisagem que muda rapidamente conforme passa a máquina. Mamãe dizia: “alguns nascem para ser, outros para atuar”. Acredito que nasci para chorar. Há o grotesco na exceção, é imoral. Ah querido, pintava-o como a maioria, era Homem, mas no fundo queria algo distinto, mesmo que comedido e um tanto envergonhada, queria algo grandioso, espero que não seja pecado, mas queria que você fosse Jesus. Como sou descomedida! Se rezo dois terços completos e uma oração para São Marcos, tudo estará perdoado, deveria estar, tem que estar. Mas o desejo faz parte do homem, deve fazer das mulheres também. Deus que entenda, não lhe confio meus segredos. Se hoje rezo, por puro ato físico de rezar, com seus abrir e fechar de bocas, o faço por medo de que sua alma se perca por aí, se é que existe essa coisa de alma. Como me dói pensar demais no assunto, rezo por garantia. Na sétima semana, podia imaginar seu caráter e algo como uma ár


vore oval, de uma espécie distinta, algo novo e revolucionário, com raízes que se lançavam num movimento radial do centro de meu órgão-gerador-de-vida e centrifugamente entrelaçavam-no. Nunca havia sido tão animal, era a natureza no seu auge. Comeria uma bomba por você ou por mim, éramos a mesma substância. Se fosse mulher, algo que não queria que fosse, digo bem, chamar-seia Paloma. Belíssima Paloma! Se fosse homem, qualquer um seria o nome perfeito. Era primavera quando completamos a 12ª semana: houve o fim. Não de causa, mas de término de situação. Nem lutar eu pude — estava nua em minha cama, as duas despidas, dormindo no mais profundo sono. Tão desatenta! No estado entre sono e vigília: o paraíso. Deparei-me ensanguentada, com todos os tons de vinho que a córnea humana pode captar, que iam do centro mais vermelho-intenso à periferia de um rosa debilitado, absorvido pelo ar. Era o universo absorvendo o que lhe pertencia. Estava rodeada pelo tribunal que parecia julgar-me culpada pela tentativa de vida, e que seria pago com a pior das mortes: a da vida que nunca chegou a existir. Fiquei imóvel pelo susto de ver meu corpo decompondo-se em líquidos de odor ferroso, talvez por simples asco, talvez por decepção. Então vi um borrão que mais parecia a parte do ovo da galinha que não como por nojo. Não,
não poderia ser você! Não deveria! Não era, de forma alguma, da maneira que o imaginava, mais parecia com um peixe, dos mais assustadores. Como fui iludida por todo esse tempo, que nem mais tem data, mas sei onde está: é hoje, ontem, amanhã ou sempre: o presente está expandido, não tem diferença. Ainda estou deitada, não pude mover-me além do raio que me prende ao círculo da eternidade. Estou encarcerada por um crime e devo permanecer aqui até a rendição dos meus maiores pecados, é questão de reflexão. Embora tudo, eu te amei, meu anjo. Lamento que não pôde ver nem as guerras dos seus irmãos, nem o mar que abraça os continentes, ou a terra que pouco dá de comer aos pobres, nem mesmo respirou o chumbo que sai do coração civil, foi um processo são o seu, livre de humanidade. Aqui ainda deitada, só sei que os milissegundos correm e dão caráter de velocidade ao presente estagnado porque o sangue já secou e está quase preto. A vida é tão frágil e estúpida nesses preâmbulos de existência. Da sua passei a ter a minha. Agora já não nos resta nada. Eu não chorei, nem choro: há certo alívio. Não mais existe um ser dentro


de mim. Nem mais tenho alma, estou oca. Por mais que a solidão me pegue aqui deitada, entre cadáveres e hemácias, nunca fui capaz de rompê-la em plenitude, solto um riso que ecoa pelo quarto como o grito da criança ao nascer, aquele grito de afirmação da existência, que define o caráter de um homem. Entonei-o com graça e força por você. Não foi um choro qualquer de criança, ou um choro de parente em velório, foi gargalhada para a eventualidade da vida. É da mais grande hilaridade como tudo acontece e depois deixa de acontecer. Nascem baratas e mosquitos por toda a parte, mas e você? É tudo coisa de probabilidade. Lembro-me que logo depois de descobrir que lhe teria, fui ao médico e o senhor me disse: “há cinquenta por cento de chances de ser menina, os outros cinquenta menino e alguma outra possibilidade de dar aborto, então espera para contar aos outros que está grávida”. A esta última parte mal me atentei. Só prestei atenção na probabilidade de ser menino, o que com o tempo fui alterando, como mentira que se torna verdade, e já estava perto de noventa — ou algo assim. Como eu era ingênua, deveria haver dado-lhe mais atenção. Pensei que tudo se resolveria na oração.