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Imunidade irrisória
TEXTO Sayonara Lopes
Ouvindo Tim Maia, percebi como minha vida é feia. Sambei por todos os verbos que o cotidiano e o vulgar me ensinaram, deitei em colchões, chãos, mãos e abraços que me rasgaram o peito. Me arrependi de decisões que sequer foram de minha autoria. Chorei meu nascimento, mesmo anos depois de me acostumar com a respiração fora do útero. Mas só ouvindo Tim Maia, essa semana, percebi como minha vida é feia. Eu tinha por volta de meus 9 anos, quando duas obras vieram ao meu encontro, e nelas me encontrei. Sobre a primeira, pai me presenteou com um livro de capa vermelha sobre um dilema filosófico com porcos-espinhos que pessoa amargurada qualquer transformou em fábula infantil e, depois, transformou em sonhos ruins que me abraçavam pela madrugada. Era quase insistente, como eu lia esse livreto toda noite, antes de dormir, como se a ânsia por aqueles pesadelos me enriquecesse a energia de meninez. Enquanto pai me apresentava a dores ilustradas em aquarela, mãe as escondia de si mesma: ia de bares a cultos, e seu símbolo sinequanon era um lenço branco de tecido barato com o qual descia escadas escuras, enxugando suas lágrimas, suponho, de desespero com um requinte de desilusão. Um dia, vasculhando suas coisas, achei uma fotografia de seu nanico casamento, que trazia um poema de desamor no verso: “Se vais beijar como eu bem sei / Fazer sonhar como eu sonhei / Mas sem ter nunca amor igual ao que te dei”. Aquele pesar em frente e verso passou a ilustrar minhas afetações no banco pálido da escola católica, que me introduziu à misantropia. Anos depois reencontrei esses desatinos do acaso, devido a outros acasos desatinados. Esbarrei novamente com o paradoxo dos porcos-espinhos, destrinchando um livro de filosofia de meu autor mais estimado, e me senti personagem descartável de Clarice, devido àquela epifania que apenas me trazia mais incertezas. Não obstante, redescobri o poema que até então jurava ser de autoria de minha mãe, devido ao entalhe que teve à situação, numa coletânea de samba-canção. Essas armadilhas na parede da lembrança me fazem pensar. Quem será o maestro cego que me rege a vida? Até que ponto sou livre, se nasci condenada ao acaso? O acaso é, de fato, acidental? Ou eu estive fadada a ser o que sou? Por tempos, achei que o desespero já me havia apresentado ao desencanto, mas ainda são muitas as dúvidas que me afastam da imunização racional. Ouvindo Tim Maia essa semana percebi como minha vida é feia.
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Que beleza é sentir a natureza Ter certeza pr’onde vai E de onde vem Que beleza é vir da pureza E sem medo distinguir O mal e o bem Uh, uh, uh, que beleza! Uh, uh, uh, que beleza!