Os Direitos do Homem e a Liberdade Religiosa no Mundo
CONSCIÊNCIA E
LIBERDADE 2015
CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
OS DIREITOS DO HOMEM E A LIBERDADE RELIGIOSA NO MUNDO
27 2015
História da Liberdade e o Respeito pela Diferença Volume II
Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA
Consciência e Liberdade Edição Especial Volume II
OS DIREITOS DO HOMEM E A LIBERDADE RELIGIOSA NO MUNDO HISTÓRIA DA LIBERDADE E O RESPEITO PELA DIFERENÇA
Dois aniversários: 313-2013 – 1700 anos do Édito de Milão 1948-2013 – 65 anos da revista C&L
Berna, Suíça
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CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
Publicação Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº 27 – Ano 2015 Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Sede da Redação: Rua da Serra, 1, Sabugo – 2715-398 Almargem do Bispo Tel.: 219 626 207, info@aidlr.org.pt
Edição em Português:
Direção: Artur MACHADO Edição: Paulo Sérgio MACEDO Conselho de Redação: Artur MACHADO Maria Augusta LOPES Mário BRITO Paulo Sérgio MACEDO Rúben de ABREU
Gabinete de Redação
Email: info@aidlr.org Editor: Liviu OLTEANU Editor Assistente: Laurence NAGY Revisão: Shelley KUEHL
Comité de Redação
Harald MUELLER, juiz, Doutor em Direito, Alemanha Liviu OLTEANU, advogado, especialista em Direitos do Homem e Liberdade Religiosa, doutorando em Direito, Suíça Ioan Gheorghe ROTARU, jurista, Doutor em Filosofia e Doutor em Teologia, Roménia Tiziano RIMOLDI, reitor universitário, Doutor em Direito, Itália
Conselho de Especialistas
Heiner BIELEFELDT, relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião e de convicção, professor de Direitos do Homem na universidade de Erlangen Nuremberga, Alemanha – Michele BRUNELLI, professor na universidade de Bérgamo, cadeira UNESCO, Itália – Jaime CONTRERAS, vice-reitor da universidade de Alcala de Henares, Espanha – Ganoune DIOP, diretor adjunto de Public Affairs and Religious Liberty (PARL) e diretor das relações com as Nações Unidas em Nova Iorque e em Genebra, professor universitário, USA – Petru DUMITRIU, embaixador, delegado permanente do Conselho da Europa nas Nações Unidas em Genebra, Suíça – W. Cole DURHAM, diretor do Centro Internacional de Estudos do Direito e da religião na universidade Brigham Young, USA – Silvio FERRARI, professor de Direito e de religião na universidade de Milão, Itália – John GRAZ, Dou-
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tor em História das Religiões, secretário-geral da IRLA, USA – Sofia LEMMETYINEN, conselheira independente sobre a questão das religiões e das crenças no quadro da política estrangeira a EU, Bruxelas, Bélgica – Dwayne O. LESLIE, advogado, USA – Joaquin MANTECÕN, professor na universidade Cantábrica, Espanha – Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora na universidade Complutense, Madrid, Espanha – Juan Antonio MARTINEZ MUNOS, professor de Direito na universidade Complutense, Madrid, Espanha – Javier MARTINEZ TORRON, diretor da cadeira de Direito eclesiástico da universidade Complutense de Madrid, Espanha – Gabriel MAURER, vice-presidente da AIDLR, Suíça – Harald MUELLER, juiz, Doutor em Direito, Hanover, Alemanha – Liviu Olteanu, secretário-geral da AIDLR, advogado – Rafael PALOMINO, professor na Universidade Complutense, Madrid, Espanha – Tiziano RIMOLDI, Doutor em Direito, Itália – Ioan Gheorghe ROTARI, jurista, doutor em filosofia e doutor em Teologia, Roménia – Jaime ROSSEL GRANADOS, deão da faculdade de Direito na universidade da Estremadura, Espanha – Robert SEIPLE, antigo embaixador itinerante para a liberdade religiosa internacional no departamento de Estado americano, presidente da IRLA, USA – José-Miguel SERRANO RUIZ-CALDERON, professor de filosofia de Direito na universidade Complutense de Madrid, Espanha – Rik TORFS, reitor da universidade de Lovaina, Bélgica – Bruno VERTALLIER, doutor em ministério pastoral, presidente da AIDLR, Suíça.
Comité Consultivo Roberto BADENAS – Jean Paul BARQUON – Herbert BODENMANN – Dora BOGNANDI – Mário BRITO – Nelu BURCEA – Jesus CALVO – Corrado COZZI – Alberto GUAITA – Friedbert HARTMANN – David JENNAH – Tomas KABRT – Rafat KAMAL – Harri KUHALAMPI – Paulo Sérgio MACEDO – Reto MAYER – Tsanko MITEV – Carlos PUYOL – Pedro TORRES – Norbert ZENS Outras Edições: Gewissen und Freiheit (Alemanha e Suíça) Conscience et Liberté (França) Conscienza e libertà (Itália) Consciencia y libertad (Espanha) Savjest i sloboda (Croácia e Sérvia) © Novembro 2015 – Consciência e Liberdade
Tiragem: 750 exemplares Inscrição na E.R.C. nº 106 816 Depósito Legal: 286548/08 ISSN: 0874 – 2405
Distribuição gratuita. Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente
Execução Gráfica: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. Venda do Pinheiro
a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo Editor da Revista são submetidos à apreciação do Conselho de Redação.
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ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Uma organização não governamental detentora de estatuto consultivo junto das Nações Unidas, em Genebra, Nova Iorque e Viena, do Parlamento Europeu, em Estrasburgo e em Bruxelas, do Conselho da Europa, em Estrasburgo, e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.
SEDE ADMINISTRATIVA
Schosshaldenstr. 17, CH 3006 Bern, Switzerland Tel. +41 (0) 31 359 15 31 - Fax +41 (0) 31 359 15 66 Email: info@aidlr.org Website: www.aidlr.org Presidente: Bruno VERTALLIER Secretário-Geral: Liviu OLTEANU
COMITÉ DE HONRA
Presidente: Mary ROBINSON, antiga Alta-Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas e antiga Presidente da República da Irlanda.
MEMBROS
Jean BAUBÉROT, professor universitário, Presidente Honorário da École Pratique des Hautes Etudes, Sorbonne, França Beverly Bert BEACH, antigo Secretário-Geral e Secretário-Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos da América Francois BELLANGER, professor universitário, Suíça Heiner BIELEFELDT, Relator Especial da Nações Unidas sobre Liberdade de Religião e Crença, professor de direitos humanos, Universidade de Erlangen, Nuremberga, Alemanha Reinder BRUINSMA, autor, professor universitário, Holanda Jaime CONTRERAS, professor universitário, Espanha Alberto DE LA HERA, antigo Diretor-Geral dos Assuntos Religiosos, Ministério da Justiça, Espanha Petru DUMITRIU, Embaixador e Delegado Permanente do Conselho da Europa nas Nações Unidas, Suíça W. Cole DURHAM, Diretor do Centro Internacional para o Estudo da Lei e da Religião na J. Clark Law School, Universidade Bringham Young, Estados Unidos da América Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain Garay, advogado e investigador na Universidade Aix-Marseille, França John GRAZ, Secretário-Geral da International Religious Liberty Association, Estados Unidos da América
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Alberto F. GUAITA, Presidente da AIDLR, Espanha Pierre HESS, antigo Secretário da secção suíça da AIDLR, Suíça José ITURMENDI, Deão Honorário da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid, Espanha Joaquin MANTECON, professor universitário, antigo Diretor de Assuntos Religiosos, Ministério da Justiça, Espanha Francesco MARGIOTTA BROGLIO, professor universitário, Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, Representante da Itália na UNESCO, Itália Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Juan Antonio MARTINEZ MUÑOZ, professor universitário, Espanha Javier MARTINEZ Torron, professor universitário, Espanha Rafael PALOMINO, professor universitário, Espanha Émile POULAT, professor universitário, diretor de pesquisa no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, antigo membro do Conselho Constitucional, França John ROCHE, membro do Instituto, França Jaime ROSSELL GRANADOS, Deão da Faculdade de Direito, Universidade da Estremadura, Espanha Gianfranco ROSSI, antigo Secretário-Geral da AIDLR, Suíça Robert SEIPLE, antigo Embaixador da Liberdade Religiosa Internacional, Departamento de Estado, Estados Unidos da América Jose Miguel Serrano RUIZ- CALDERON, professor universitário, Espanha Mohammed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, Reitor da Universidade de Leuven, Bélgica Maurice VERFAILLIE, antigo Secretário-Geral da AIDLR, Suíça
ANTIGOS PRESIDENTES DO COMITÉ DE HONRA
Franklin ROOSEVELT, 1946 to 1962 Albert SCHWEITZER, 1962 to 1995 Paul Henry SPAAK, 1966 to 1972 René CASSIN, 1972 to 1976 Edgar FAURE, 1976 to 1988 Leopold Sédar SENGHOR, 1988 to 2001
ANTIGOS SECRETÁRIOSGERAIS DA AIDLR
Jean Nussbaum Pierre Lanarès Gianfranco Rossi Maurice Verfaillie Karel Nowak
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DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro ato governamental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito à obediência respeitosa e voluntária de cada indivíduo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a ação contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles.
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Número 28 – 2015
Edição Especial – 2ª parte Introdução Bruno Vertallier – A liberdade de consciência é uma liberdade não negociável....... 9 Editorial Liviu Olteanu – O respeito pela diferença ou tratar o outro como gostaria de ser tratado ............................................................................................................... 11 Capítulo I
A liberdade e a liberdade de religião: Figuras influentes no decurso da História André Chouraqui – MOSHÉ – Profeta da liberdade........................................... 18 Madame René Cassin – Buda e a liberdade de consciência e de religião ............. 22 Javier Perez de Cuellar – Confúcio e o seu ensino .................................................26 Pierre Lanarès – Jesus e a liberdade de consciência e de religião .......................... 32 Mohamed Talbi – Muhammad – Eu sou um dom de Misericórdia..................... 39 Ramin Jahanbegloo – Nos passos de Gandhi ......................................................... 43 Voltaire – Oração para que os Homens sejam tolerantes....................................... 47 Winfried Noack – Lutero e a liberdade religiosa ..................................................... 49 João Huss– Carta aos seus amigos de Praga .................................................................56 Jacques Delteil – Uma heroína da fé: Marie Durand ............................................. 59 André Maurois – Roger Williams e a liberdade religiosa ...................................... 62 Alexandre Soljenitsyne – Oração ........................................................................... 67 Gala Galaction – “Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união!” (Salmo 133) .................................................................................................................. 68 João Paulo II – Um apelo solene ............................................................................... 72 Hans Küng – Liberdade............................................................................................. 76 Beverly B. Beach – A Liberdade Religiosa – O que ela não é ....................................... 77
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Capítulo II
Liberdade, liberdade religiosa e tolerância – ou porque algumas tolerâncias religiosas são intoleráveis? Necessidade de uma educação sobre a liberdade religiosa E. James Vaughn – As relações interconfessionais: princípios de orientação e medidas práticas para uma coexistência harmoniosa ............................................... 84 Liviu Olteanu – A educação para os valores: a solução universal do pluralismo religioso conflitual. O papel da religião na promoção de uma cultura da paz no século XXI.................................................................................................................... 96 Harri Kuhalampi – Hannu Takkula – Liberdade de religião ou de convicção no contexto europeu .................................................................................................. 115 Tiziano Rimoldi – Igreja e Estado na Itália, em Portugal e em Espanha. O sistema piramidal............................................................................................................... 120 Denton Lotz – A Igreja Batista; porque creio na separação da Igreja e do Estado....130 Sergio Sierra – A liberdade religiosa segundo o judaísmo................................... 132 Capítulo III
Entrevista e documentos Rita Izsák – Uma profunda preocupação pela situação das minorias religiosas ... 140 José-Miguel Serrano Ruiz-Calderón – À luz do Édito de Milão (303-2013). Liberdade religiosa e minorias no mundo: entre equilíbrio e desafios ................. 157 A liberdade religiosa e as minorias religiosas: “Dialog Five” ou como desenvolver um quadro holístico – AIDLR, Berna, Suíça ...................................................... 160 Susana Sousa Machado – Do direito de o trabalhador observar períodos de guarda impostos pela religião que professa ............................................................. 169 Josias Bittencourt – Estado laico e liberdade religiosa: realidades e utopias ..... 183
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Introdução
A liberdade de consciência é uma liberdade não negociável Bruno Vertallier1 Caros leitores, A liberdade de consciência é um dos bens mais preciosos. É necessário ser-se privado dela, para sentir a medida do seu valor. Tal como a saúde, parece-nos normal tê-la até que sintamos a sua falta. Diz-se, então, que se deveria fazer “qualquer coisa” para a preservar. É assim que, quando se trata da saúde, é melhor prevenir do que curar; prevenir, porque não se encontra facilmente a liberdade de consciência quando ela se foi. Voltaire sabia da sua fragilidade e não cessava de o lembrar nos seus escritos sobre a tolerância. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa são praticamente indissociáveis porque estas liberdades tocam o âmago da pessoa e inscrevem-se no íntimo de cada indivíduo. Renunciar à liberdade de consciência, ou à liberdade religiosa, corresponde a trair-se a si mesmo, e sabe-se, de uma forma ou de outra, o que significa suportar o peso da traição. É como uma condenação à morte: é melhor desaparecer do que enfrentar os olhos dos outros, ou pior ainda, o seu próprio olhar ao espelho. Homens e mulheres resistiram a fim de não trair a sua consciência. Marie Durand é disso um exemplo: foi aprisionada trinta e oito anos na Torre de Constança, em Aigues-Mortes, por ter afirmado a sua liberdade de consciência e a escolha da sua crença. Outros foram enviados para as galés e aí pereceram, pela mesma razão de consciência. Hoje, muitos, sejam eles religiosos ou laicos, vivem esta opressão e permanecem firmes nas suas convicções com a mesma determinação. 1 Bruno Vertallier, doutor em teologia, presidente da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa; é autor de artigos sobre religião, ética e liberdade religiosa e participa, por todo o mundo, em conferências internacionais sobre liderança, assim como sobre a liberdade religiosa. O seu escritório encontra-se em Berna, na Suíça.
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Bruno Vertallier
A liberdade de consciência é uma liberdade não negociável. O direito à liberdade de consciência deve ser apanágio de toda a sociedade que se respeita e que respeita os seus cidadãos, sejam eles crentes, agnósticos ou ateus. A opressão e a privação da liberdade de consciência no seio de uma sociedade equipara-se a um crime contra a humanidade. A globalização do nosso mundo permite-nos estar informados dos abusos diários que resultam da violação do direito à liberdade de consciência e que são perpetrados em todos os setores da sociedade. O setor religioso é um dos exemplos flagrantes em que a intolerância cresce. Praticam-se numerosos abusos em nome de ideologias que perderam toda a visão humana e que se transformaram em ódio entre pessoas. Infelizmente, muitos jovens deixam-se enredar pelas seitas e guias espirituais de toda a qualidade. A responsabilidade dos que estão convencidos da liberdade de consciência e da liberdade religiosa é promover, junto dos jovens, os valores que elas exigem, a fim de facilitar uma tomada de consciência da tolerância que incarnam as suas dimensões eternas. O mundo político não está melhor preservado. A consciência dos cidadãos é desprezada por alguns responsáveis, por vezes em postos do mais alto nível dos Estados, por causa de comportamentos irresponsáveis que têm repercussões sobre a qualidade da liberdade de consciência dos cidadãos. Escolhas da sociedade resultam em desvios éticos e morais que nós, os cidadãos, somos incapazes de avaliar mas que terão efeitos devastadores sobre as futuras gerações. O setor económico não fica atrás quanto à ausência de consciência, e priva também numerosos indivíduos das suas próprias referências na sua liberdade de consciência. O que era considerado como um delito na prática das regras económicas deixou de o ser face ao poder das questões e a frouxidão das práticas. Muitos nessas circunstâncias perdem a sua consciência e a sua liberdade. Muitos preferem colocar a sua liberdade de consciência sob o alqueire em vez de tomarem a sua posição sem se darem conta de que, com isso, perderão a sua alma. O que era uma virtude – a liberdade de consciência – tornou-se numa ameaça. Caros leitores da revista “Consciência e Liberdade”, desejo-vos uma boa leitura marcada com o espírito da liberdade de consciência a fim de que a vossa coragem possa criar émulos. Boa leitura!
EDITORIAL
O respeito pela diferença ou tratar o outro como gostaria de ser tratado Liviu Olteanu1 A publicação que têm nas vossas mãos intitulada “História da Liberdade e o respeito pela diferença” é o segundo volume da trilogia “Os direitos do Homem e a liberdade religiosa no mundo: um novo equilíbrio ou novos desafios”. Trata-se de uma edição especial da revista Consciência e Liberdade publicada desde 2014 pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR). O primeiro volume recordava dois aniversários; os 1700 anos do Édito de Milão e os 65 anos da revista Consciência e Liberdade. Os três capítulos do primeiro volume foram consagrados aos temas seguintes: Capítulo 1: A história da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa traçada pela atual presidente Senhora Mary Robinson e antigos presidentes do Comité de Honra, responsáveis da ONU e antigos Secretários-Gerais da AIDLR. Capítulo 2: “Os direitos do Homem e a liberdade religiosa no mundo: um novo equilíbrio ou novos desafios” e as respostas dadas por altos responsáveis da ONU, embaixadores e universitários. 1 Liviu Olteanu, advogado, é o secretário-geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. É observador, representante permanente nas Nações Unidas em Genebra, Nova Iorque e Viena, no Parlamento Europeu em Bruxelas e Estrasburgo assim como representante no Conselho da Europa e na OSCE, onde intervém em nome dos direitos do Homem e da liberdade religiosa. Liviu Olteanu respeita profundamente os Homens de todas as denominações, religiões e crenças. Tem uma forte vontade de diálogo, da busca do equilíbrio e de honestidade na busca da dignidade humana. Insiste sobre a necessidade da tolerância e aceitação das diferenças assim como sobre a importância do respeito pela liberdade religiosa e de consciência para todas as pessoas.
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Liviu Olteanu
Capítulo 3: A liberdade e a liberdade religiosa, os 1700 anos de história desde o Édito de Milão, com o regresso à História. Como promover a liberdade e a paz no mundo e qual o papel das religiões? O terceiro volume será publicado em 2016 sob o título “Liberdade religiosa, tolerância e minorias religiosas”. Este presente volume tem como título “História da liberdade e respeito pela diferença”. A que chamamos nós “diferença” e porque é tão importante compreender bem as diferenças do Outro? Antes de mais, por “diferença” entendemos uma qualidade ou uma forma de estar diferente ou diversa, uma forma de disparidade ou divergência, um desacordo, uma diferenciação ou uma singularidade. A diferença tem numerosos sentidos do qual um que é positivo: é uma herança cultural, religiosa e filosófica. Depois, convém refletir sobre as diferentes perspetivas da história de liberdade e do respeito pela diferença. Diferentes perspetivas em matéria do respeito pelas diferenças 1. Penso que se compreende melhor o que é a liberdade quando se faz um regresso à História, mas também é necessário ter sabedoria para olhar o futuro, questionar como tratamos ou compreendemos os outros, como consideramos as religiões, as convicções, as culturas, e tentar compreender porque é tão importante respeitar as diferenças do Outro. 2. Considerando os conflitos religiosos, étnicos e raciais que existem em tantas regiões do mundo, podemos dizer com o professor Thomas Plante, que quando as tensões e os conflitos explodem entre as pessoas, grupos e religiões, a causa é uma falta de respeito percetível por parte de uma pessoa ou de um grupo perante outro. 3. Para compreender o Outro que é completamente diferente de nós, devemos aprender a conhecer a sua cultura, a sua religião, as suas convicções, os seus costumes e as suas tradições. Isso pode ser um desafio. Mas é o que permitirá estabelecer e manter o entendimento nas nossas relações e, ao mais alto nível, a paz no mundo. 4. O respeito pela diferença começa com o reconhecimento dos direitos, da dignidade e das perspetivas de tudo, em cada um, fazendo valer a delicadeza e tratando os outros como gostaria de ser tratado.2 Este é de facto o princípio de Jesus e a regra de ouro da Bíblia: “E como quereis que os homens vos façam, da 2 http://www.psychologytoday.com/blog/do-che-right-thing/201303/are-you-strong-enough-aggressively-respect-everyone.
O respeito pela diferença ou tratar o outro como gostaria de ser tratado
mesma maneira lhes fazei vós também”.3 Há sempre mais a aprender sobre a cultura e a religião do Outro: basta, para isso, passar tempo com uma pessoa e conversar com ela sobre as suas origens, os seus costumes, a sua religião e as práticas que lhe estão ligadas. 5. O respeito pela diferença implica também a aceitação das coisas com as quais não estamos de acordo; respeitar as diferenças individuais não significa estar sempre de acordo. 6. Procuremos aquilo que podemos ter em comum e baseemo-nos nas semelhanças para construir a unidade, sabendo contudo, que a unidade jamais deve ser confundida com uniformidade. 7. Cada um entre nós é como o cubo de uma roda. Ele constrói relações e amizades à sua volta que lhe darão a força necessária para o bom funcionamento da comunidade e o respeito pelas diferenças. Pôr em ação, na diversidade, uma rede de relações fortes ajudará a aproximar dos outros e a resolver os problemas que têm em comum.4 Como mencionei no Palácio das Nações em Genebra, a 10 de junho de 2014, por ocasião de uma manifestação organizada pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa – e cofinanciada pela Conselho da Europa e as delegações permanentes do Uruguai, do Canadá, da Espanha e da Noruega (acrescentarei aqui que fui muito sensível ao apoio político que nos foi dado, o que agradeço calorosamente às delegações e embaixadores da ONU) – estou convencido que os governos, diplomatas, responsáveis religiosos, universitários e organizações não-governamentais podem efetivamente cooperar ao nível regional, nacional e internacional para promover a tolerância e o respeito pelas diferenças do Outro, a sua diversidade, a sua religião ou as suas convicções, sem jamais deixar de defender a dignidade humana e o princípio da liberdade religiosa para todos. Para evitar a fragmentação entre as diferentes abordagens – da ONU, da UE, do COI (Conselho Ecuménico das Igrejas), do OSCE, da OCI (Organização de Cooperação Islâmica) ou de outras abordagens nacionais – sobre a liberdade de religião, o professor Heiner Bielefeldt, relator especial da ONU sobre a liberdade de religião ou de convicção, sublinhou a necessidade de uma coordenação entre todos os atores implicados no domínio dos direitos do Ho3 Lucas 6:31 4 Um estudo da Universidade de Kansas: Building relationships with people from diferent cultures.
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mem e da liberdade religiosa. Esta é a razão pela qual a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa instaurou e propôs neste quadro histórico este quadro holístico sobre a liberdade religiosa. Capítulos e autores eminentes No primeiro volume desta trilogia “Os Direitos do Homem e a liberdade religiosa no mundo”, publicámos artigos de investigadores, de embaixadores e de representantes da ONU. Não podemos senão recomendar-vos, ainda, as reflexões informadas que foram desenvolvidas nos artigos escritos pelos embaixadores Laura Dupuy, Petro Dumitriu, Robert Seiple, ou ainda as observações do antigo secretário-geral da Nações Unidas Kofi Annan e do atual secretário-geral Ban Ki-moon, ou os de outros investigadores de renome. Publicámos igualmente nesse primeiro volume, uma excelente entrevista com Heiner Bielefeldt. Esta entrevista faz-nos recomendações de interesse prático e específico para os assuntos inter-religiosos. O seu título é “O ódio religioso: o maior desafio do século XXI”. Os quatro capítulos do segundo volume, “História da liberdade e o respeito pela diferença”, destinam-se a promover, em todo o mundo, os direitos do Homem, a paz e a compreensão entre os adeptos de diferentes religiões, convicções, filosofias e culturas. Para isso, fizemos, no primeiro capítulo desta revista, uma síntese da abordagem da liberdade exposta por eminentes personalidades que foram fundadores ou representantes de diferentes religiões, Igrejas, filosofias, culturas ou ainda modelos: Moisés, Buda, Confúcio, Jesus, Maomé, Gandhi, Voltaire, Lutero, Roger Williams, João Paulo II, Hans Kung, Bert Beach entre outros. No segundo capítulo, com o título “A liberdade religiosa: necessidade de educação e pluralismo religioso”, propomos artigos nos quais os autores avaliam certos modelos e sublinham a nossa necessidade de os ter: “As relações interconfessionais e o viver em conjunto em harmonia” de James Vaughn, “Liberdade de religião, ou de convicção, no contexto europeu” de Harri Kuhalampi e Hannu Takkula, “A Igreja e o Estado na Itália, em Portugal e em Espanha – o sistema piramidal” de Tiziano Rimoldi; Liviu Olteanu aborda um desafio no estudo “Um paradigma da UNESCO: a educação pelos valores e o pluralismo das religiões para uma cultura de paz no século XXI”. Neste capítulo, prosseguimos as investigações lançadas no primeiro volume “Os direitos do Homem e a liberdade religiosa no mundo: um novo equilíbrio ou novos desafios”. Enquanto que este volume comporta artigos sobre as perse-
O respeito pela diferença ou tratar o outro como gostaria de ser tratado
guições contra os cristãos, a dignidade do Homem, a liberdade religiosa segundo diferentes abordagens, da Igreja Católica, da Igreja Ortodoxa, e do Islão, o capítulo dois do presente volume publica artigos sobre o judaísmo, de Sergio Sierra, sobre os batistas de Denton Lotz, sobre a abordagem adventista (2ª parte) de Ganoune Diop. O terceiro capítulo começa com uma entrevista com a Srª Rita Izsak, relatora especial da ONU sobre as questões relativas às minorias. Nesta conversa, encontrarão a sua visão clara e sugestões práticas que ela apresenta como especialista da ONU no que concerne as questões relativas às minorias religiosas à escala mundial. Agradecemos à Srª Izsak pela sua longa entrevista que intitulámos “Uma preocupação profunda pela situação das minorias religiosas”. Publicamos igualmente, dois documentos e um artigo: o primeiro documento é um texto apresentado e submetido em março de 2014 pela AIDLR ao Conselho dos Direitos do Homem da ONU. Este texto propõe um quadro global sobre a liberdade religiosa e as minorias religiosas. Na linha deste projeto lançado pela AIDLR e que foi objeto de uma conferência na faculdade de direito da Universidade Complutense de Madrid em janeiro de 2014, o professor José Miguel Serrano escreveu um artigo breve, mas excelente: “À luz do Édito de Milão. Liberdade religiosa e minorias no mundo: entre equilíbrio e desafios”. Ele fez notar que as sociedades se medem pelo valor que concedem à religião. A 10 de junho de 2004, no Palácio das Nações em Genebra, a AIDLR organizou uma manifestação à margem de 26ª sessão do Conselho dos direitos do Homem cujo debate se centrava na liberdade religiosa e as minorias religiosas. Nessa ocasião a AIDLR expôs aos delegados da ONU a razão pela qual era necessário desenvolver o tema por ocasião do Congresso sobre a liberdade religiosa que teria lugar em 2015 em Genebra. O segundo documento, apresentado e submetido em agosto de 2014 pela AIDLR ao Conselho dos direitos do Homem da ONU é um apelo urgente à comunidade internacional, a fim de proteger os cristãos, as minorias religiosas e as pessoas inocentes no Iraque e na Síria. Conclusão – A atenção dada ao respeito reforça a compreensão e resolve os problemas O volume “História da liberdade e o respeito pela diferença” deseja ser uma voz que proclama que cada um dentre nós é, não apenas, uma pessoa de valor mas também uma pessoa que tem o direito de viver a sua cultura, a sua religião,
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Liviu Olteanu
as suas convicções, os seus dias sagrados e as suas cerimónias, segundo a sua consciência, os seus princípios, os seus desejos e a sua vontade, sob a proteção da legislação internacional sobre a liberdade religiosa, a saber, a Declaração dos Direitos do Homem, artigos 18 e 19, o Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, artigo 18, a Declaração da ONU de 1981, artigo 6. Também cada um dentre nós deve ser protegido e respeitado pelos governos, as comunidades e os responsáveis religiosos, as organizações internacionais e regionais e a sociedade civil. O respeito pela diferença começa logo que alguém reconhece a dignidade e as ideias de qualquer ser humano; a seguir ganha-se de cada vez que alguém despende esforços para construir a harmonia, que se insurge contra a falta de respeito por outrem, ou quando é testemunha de um tal ato; o respeito pela diferença encontra-se reforçada quando uma relação de confiança é estabelecida porque contribui para resolver os problemas. São muitas vezes as frustrações e os medos que levam à falta de respeito pelo outro, e quando o respeito desaparece, é toda a personalidade que é posta em causa. Aqueles que não respeitam as diferenças dos outros sofrem muitas vezes de problemas de personalidade, são intolerantes, e podem ser ditadores potenciais. A maior parte do tempo, a falta de respeito é expressa contra a religião ou as convicções do Outro, sobretudo contra as minorias religiosas ou os indivíduos que delas fazem parte. O embaixador Robert Seiple diz que os governos que negam às minorias a sua liberdade religiosa ou demonstram discriminação não podem garantir a segurança da maioria. Não tenhamos medo da diferença, atuemos como campeões do respeito pela diferença e a diversidade. É imperativo que instâncias como a ONU, a UE, o COE, a OCI, a OSCE, os governos, os parlamentos, os diplomatas os responsáveis religiosos, as Universidades, as ONG e outras organizações e sociedades civis saibam encorajar e promover o RESPEITO. Quando se dá uma atenção particular à cultura do respeito, então a harmonia entre os homens e, consequentemente, a paz no mundo estão reforçadas. Sejamos EMBAIXADORES da LIBERDADE do RESPEITO e da PAZ!
CAPÍTULO
1 A liberdade e a liberdade de religião: Figuras influentes no decurso da História
MOSHÉ Profeta da liberdade1 André Chouraqui2 Cronologicamente, e pela sua importância histórica, Moshé é o primeiro inspirado da Bíblia, como Abraão permanece o modelo dos pais do pensamento bíblico. Não conhecemos Moshé, a não ser pela Bíblia: os relatos do Êxodo, de Levítico, de Números e de Deuteronómio descrevem-nos a epopeia do libertador do seu povo, que o arrancou da servidão egípcia. Este facto essencial – ser ele o fundador do seu povo e do pensamento de Israel – bastaria para nos fazer ver em Moshé um profeta da liberdade: ele enfrentou face a face, como homem livre, um tirano, Faraó, e obrigou-o a abrir as suas prisões de trabalhos forçados para libertar o seu povo. A libertação não se refere apenas a um ou a vários indivíduos, mas caso excecional, senão único, a todo um povo. Pela primeira vez, a liberdade tornou-se constitutiva da identidade do Homem e de povo. No entanto, isto seria reduzir o pensamento bíblico como o limite à noção de liberdade tal como a concebemos hoje. Isto está ligado, na consciência do Ocidente cristão, e desde o século XVI, às doutrinas filosóficas e políticas que se impõem e inspiram, a partir da Renascença. O Habeas Corpus nos países anglo-saxónicos, a aplicação que é feita na nova república dos Estados Unidos e em França a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Estes textos enraízam-se no pensamento político do mundo moderno um ideal de liberdade que está, aos nossos olhos, indissoluvelmente ligado à ideia que fazemos da civilização. Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas reunida em Paris universaliza este ideal proclamando a Declaração Universal dos Direitos do Homem; este texto estende a todas as nações da Terra e para cada homem o imperativo da liberdade. Este movimento do pensamento tem a sua origem, muito certamente, bem longe no pensamento dos profetas da Bíblia – e desde logo no de Moshé – que impregnou a cristandade desde as origens. Mas seria certamente fazer uma con1 Excerto do artigo publicado na revista C. e L. nº 40, 1990 da edição francesa. 2 Advogado, Doutor em Direito Internacional Público pela Universidade de Paris, pensador, escritor, autor da tradução, em francês, da Bíblia de Jerusalém, responsável pelos assuntos culturais assim como das relações internacionais e interconfessionais da capital de Israel. André Chouraqui era o homem da fé e do diálogo, tão firme nas suas convicções judaicas como aberto à compreensão do Outro.
Moshé, Profeta da liberdade
fusão que reduziria um ou outro dos dois movimentos de pensamento. O século XIX tinha a tendência de confundir os profetas da Bíblia com os publicistas da Revolução. Gambetta com Isaías, Proudhon com Jesus (…). Os profetas viviam num contexto geográfico, histórico e espiritual bem diferente daquilo em que o nosso se tornou. (…). Para eles a liberdade não é um conceito filosófico ou um ideal político abstrato como veio a tornar-se para o Ocidente contemporâneo. (…) Será que o pensamento de Moshé, tal como nos é apresentado na Bíblia, nos apresenta uma solução? Para a usarmos de forma eficaz, devemos separar-nos dos hábitos do Ocidente, onde o nosso pensamento se forma e exercer a nossa liberdade de consciência, imaginar um universo onde o homem – na sua glória ou crucificações – deixaria de ser o centro de um universo o qual, nos nossos dias, ele ameaça a sobrevivência. É verdade que Moshé é o profeta da liberdade, o miraculoso libertador do seu povo. Mas não é em nome dos direitos do Homem, que ele reivindica a liberdade, que ela cumpre a sua missão. Ele baseia a legitimidade da sua ação e a sua eficácia sobre IHVH, Elohim. Estes nomes (…) constituem a mensagem essencial do pensamento mosaico e o fundamento bíblico não só da liberdade de consciência e dos direitos do Homem, mas ainda de toda a realidade visível ou invisível. (…) IHVH deriva de uma raiz que significa Ser. IHVH é o Ser que era que é e que será. (…) Elohim é a forma plural de Eloah, donde deriva Alá a divindade do Islão. Elohim deriva de Ail, o Carneiro, símbolo do poder. Estes dois nomes são objeto dos quatro primeiros mandamentos do decálogo: “Eu, IHVH, o teu Elohim, te fiz sair da terra de Misraïm, da casa dos servos. Não terás outros Elohim diante de mim. Não farás para ti nem escultura nem qualquer imagem (…) Não te prostrarás diante delas (…) (…) Não usarás o Nome de IHVH, o teu Elohim, em vão”. A importância do Nome é capital. Biblicamente, é a única palavra da Bíblia que foi objeto de uma especial revelação a Moshé, libertador de Israel e que dá, neste Nome, a chave da sua libertação. Historicamente, este Nome marca uma rutura com o mundo dos ídolos. Pela primeira vez na História, o Homem escapa das portas fechadas da idolatria, para aceder à transcendência do Ser. Elohim deixa de ser um ser criado, animal, planta, objeto ou ideia, para se tornar uma realidade única e transcendente, criadora de todo o universo, pai da humani-
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dade. Todo o pensamento profético emana desta tomada de consciência e da unidade transcendente do Ser, fonte de toda a libertação. (…) Considerando o conjunto dos escritos bíblicos, o Nome de IHVH Elohim aparece assim 11586 vezes, ou seja em média mais de 5 vezes por página. A Bíblia é assim, por excelência, o livro de IHVH Elohim e isso, tanto mais, certamente, que o Elohim que se revelou a Moshé é realmente único, no sentido em que não aparece em nenhuma outra parte fora da literatura bíblica. Tal é a essência da revelação mosaica e o fundamento irreversível dos ensinos proféticos, aqueles, aos quais Jesus entendeu permanecer fiel, vindo, não para abolir, mas para cumprir a Torah de IHVH. A consciência do Homem é livre, e apenas pode gozar da sua liberdade de consciência se aceder face a face com o próprio Ser, recebido e amado na sua essência tão misteriosa e tão prodigiosa que é inefável. O seu próprio Nome não seria pronunciado sem que o viole – isto é, destruísse – o mistério. É a partir do tete-a-tete do homem confrontado com o mistério do Ser que toda a revelação bíblica, incluindo o Novo Testamento, deve ser entendida. IHVH Elohim, paixão única dos profetas e dos apóstolos, é o Ser conhecido e recebido em todo o seu poder, todas as suas potencialidades, único e plural, fonte inesgotável de toda a realidade e de toda a vida. Para Ele a apenas para Ele, o homem sai do seu ego, liberta-se da noite da sua consciência, na iluminação sublime d’Aquele que é o Criador da luz. Um milénio depois de Moshé, os filósofos gregos chegaram, pelo raciocínio, a esta noção sublime e perturbadora em que se baseia toda a consciência e toda a liberdade. Não é o homem apenas que pode conquistar ou garantir a sua liberdade se ela não se baseia sobre uma realidade única, intuitiva e transcendente. A via filosófica reforça o património teológico e metafísico da herança mosaica. Os homens de todas as origens e de todas as religiões e ideologias podem aceder à liberdade de consciência segundo as vias que lhes são próprias mas nenhum dentre eles aí chega sem ter, perto ou longe, face a face com os seus reflexos, a iluminação do Ser que Moshé designa por um Nome misterioso e impronunciável: IHVH. Sem este Ser, vivendo em nós, toda a liberdade e toda a consciência acabam por se afundar nas trevas da servidão: Moshé e depois dele, todos os profetas e os apóstolos da Bíblia não cessam de nos ensinar, e a História antiga ou recente no-lo confirma através de factos da experiência quotidiana. (…) A revolução mosaica está inteiramente contida no Nome de IHVH Elohim, como o primeiro dos dez mandamentos o sublinha (Êxodo 20:3-17). Este Nome é a chave da liberdade humana, aquele que nos abre a porta “da casa da escravatura” é-nos precisado neste mesmo texto. (…)
Moshé, Profeta da liberdade
O que me parece (…) grave, é que com o Nome de IHVH Elohim, as nossas civilizações sacrificam também os valores de que este Nome dá a chave, não apenas a liberdade de consciência ou simplesmente a liberdade, mas ainda a vida do homem, o que nos nossos dias se chamam direitos, tão alegremente sacrificados por todo o lado, com a própria vida. Os ídolos continuam a reclamar sacrifícios humanos. Eles triunfam não só nas tradições da Bíblia onde tomam o lugar do Nome de IHVH Elohim pelos seus, mas ainda nos campos de batalha de nossas múltiplas guerras, nas poluições físicas e morais das nossas cidades, e mais terrivelmente ainda nos arsenais onde 100 000 bombas atómicas preparam abertamente a destruição do planeta. Na falta de eliminar IHVH Elohim nas traduções da Bíblia, tudo parece pronto para aniquilar o homem que Ele criou e a Terra sobre a qual ele vive. Eis o que Moshé, se ressuscitasse, poderia constatar com os seus olhos percorrendo o nosso planeta tão gravemente perturbado e que tem a urgente necessidade de um sonho que traga de novo ao respeito pelo Ser de que todo o Homem é filho.
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Buda e a liberdade de consciência e de religião1 Madame René Cassin2 Os budistas consideram Buda como um grande mestre da humanidade. Para nós, é o maior em sabedoria (panná) e em compaixão (karumá) qualquer que seja o grau de complexidade que o mundo venha a ter, a mensagem fundamental de Buda permanece sempre pertinente. (…) O ensino insiste especialmente sobre o aspeto prático da consciência, que leva o homem a procurar resolver os seus próprios problemas antes de procurar encontrar uma solução para os dos outros. Buda limita-se a cumprir o papel de autor ou de interventor de uma solução autêntica para um problema humano de uma enorme amplitude, que é o do sofrimento. Buda pretende não apenas conhecer a causa e o remédio, mas também ser capaz de os ensinar sem que isso represente uma dificuldade sobre-humana. A solução é universal e radical. Aplica-se ao sofrimento como tal, e não a qualquer forma de sofrimento. Nem a causa nem o remédio do sofrimento são tema de revelação. Buda simplesmente as descobriu raciocinando como tantos outros tinham podido fazer antes ou depois dele. Assim Buda aparece aos seus próprios olhos, e aos seus discípulos mais próximos, como médico dos males correntes da humanidade. A libertação budista – nibbána – está acessível a todos, não importa o momento, independentemente do que outorga o sistema de castas. Não requer nem o ensino de uma doutrina esotérica nem um laborioso programa de austeridade. Com efeito, Buda condena esta prática de pressão que é a austeridade, sendo ele mesmo oposto ao que é intelectual e que concerne um ensino não diretamente ligado às questões, segundo ele, urgentes, a saber, as que se relacionam com a vida e a morte, o sofrimento e a causa do sofrimento. (…) A doutrina original de Buda (…) está exposta nas Quatro Nobres Verdades (…) Não basta, contudo, conseguir uma apreensão abstrata e unicamente inte1 Excertos do artigo publicado na revista C. e L. nº 40, 1990, da Edição francesa. 2 Presidente do Comité Administrativo da Comissão Inter-religiosa Tailandesa para o Desenvolvimento, diretor do Instituto Santi Pracha Dhamma.
Buda e a liberdade de consciência e de religião
lectual, destas propostas. Elas deveriam fazer parte da vossa vida. (…) Se não se considera o sofrimento como algo de concreto e de ameaçador, não se pode levar a sério a mensagem de Buda. O primeiro problema com o qual Buda se confrontou é o facto de que nós sofremos, sob muitos aspetos, na nossa vida humana. (…) As pessoas que têm uma atividade excessiva, que devem estar constantemente a pensar em qualquer coisa e agir sob pressão, recusam-se continuamente a viver esta experiência da verdadeira ansiedade, que está na base de tudo. Mas se examinamos a nossa vida interior, não podemos negar que restam muitas coisas que podem ter o nome de sofrimento. Se a palavra “sofrimento” é muito forte, o termo “insatisfação” pode ser um substituto para a palavra Dukka utilizada por Buda. Segundo a afirmação budista, jamais conheceremos a paz enquanto não ultrapassarmos esta angústia fundamental seguindo os passos de Buda. Há muito a dizer em favor de Primeira Nobre Verdade do sofrimento, mesmo que pareça uma banalidade. (…) Todas as pessoas sofrem. Mas nem todos estão conscientes desse sofrimento. O sofrimento é uma paixão. Ter consciência de que ela se trata de sofrimento não constitui uma paixão mas um certo conhecimento. (…) O conhecimento do facto pode ser um passo para a sua atenuação. (…) É impossível avançar se não se efetua esta primeira abordagem. Buda admite, igualmente, que o facto de saber que o sofrimento era universal constituía, em certa medida, uma diminuição do sofrimento. Quando um adolescente se dá conta que é um adolescente e que os seus sofrimentos são exatamente os mesmos que os dos jovens da sua idade, os seus sofrimentos tornam-se um pouco menos dolorosos. (…) Segundo a Segunda Nobre Verdade (Samudaya), (…) o sofrimento é o produto de “a) a avidez dos sentidos; b) a avidez da existência e c) a avidez da não-existência”. A nossa avidez é tão imperiosa e tão cega que Buda a compara à sede (tanhá). Quando temos sede, não nos podemos impedir de desejar, vivamente, a água e esquecemos tudo o resto; da mesma forma, a nossa avidez leva-nos a solicitar as coisas com insistência. Estas sedes ardentes são devidas à ignorância. Nós não conhecemos a verdadeira natureza da nossa existência e do universo em que vivemos. (…) À parte do sofrimento, todas as coisas são transitórias (aniccá) e no fim de contas, estão ligados ao “não-eu” (anattá). (…) Sendo nós mesmos efémeros, deveríamos procurar o caminho que nos leva à libertação. Meditando sobre o caráter transitório da nossa existência, deveríamos tentar descobrir o que brilha sobre nós – a Iluminação. Graças à sabedoria que deriva da meditação sobre o caráter transitório da vida, cada um pode con-
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seguir a Iluminação, seguindo o Nobre Caminho Óctuplo. E o Homem deve avançar no Caminho no meio de esforços pessoais a fim de conseguir a sua própria salvação (…). A vida é uma série de acontecimentos que se produzem e caiem no esquecimento. É um fluxo em perpétua mudança. Ele, Buda, rejeita a existência do ego individual. Segundo ele, conceber o ego do indivíduo como uma substância é uma ilusão humana. (…) Tudo é transitório. Aquilo que se chama “eu” consiste em cinco agregados: o corpo, o sentimento, a memória, o pensamento e a consciência. Desde que estes elementos são compreendidos como fazendo parte de um todo que se chamaria “eu”, constituem o sofrimento. Se não entendidos como “eu” são todos não-eu. Não há nada que possa ajudar esta apreensão. Nós somos o agregado que devem operar estas apreensões e não qualquer coisa de separado que fazia com que isso ocorresse. Nenhum dos agregados é real, são todos aparências vazias de substancialidade ou de realidade. (…) E isso é sempre um processo progressivo. Não pode haver futuro sem um futuro diferente, e não pode haver um futuro diferente sem uma dissolução, um desaparecimento ou uma decomposição, que, cedo ou tarde, intervirá inevitavelmente. (…) Segundo a sutta, Buda descobriu que o nascimento era a causa de sofrimentos tais como a degenerescência e a morte, e ele remonta a ligação até à ignorância. Depois examina de que forma a ignorância tinha dado lugar às ações volitivas (formação kármica) que, por seu lado, produziram a consciência e assim depois na cadeia de produção, até que chegue ao nascimento como causa da degenerescência e da morte. Trabalhando no sentido inverso, ele descobriu que a cessação do nascimento é a causa da cessação do sofrimento, e, no fim de contas, descobriu que a cessação da ignorância é a última causa da cessação de toda a cadeia. (…) Noutros termos, ele sonhou num caminho que leva à libertação, e, pela abolição da ignorância, ao desaparecimento do sofrimento. A Terceira Nobre Verdade é a certeza de que se pode ser completamente curado do sofrimento. (…) O remédio apenas está em nós. Devemos deixar de ter esta sede devida à ignorância. É o abandono, a renúncia, a libertação, o abandono desta sede ardente; é o desejo de não lhe dar mais asilo. (…) A Quarta e última Nobre Verdade descreve o caminho que leva a este estado ideal. É o Nobre Caminho Óctuplo ou o Caminho do Meio, a saber: (…) 1) A Compreensão justa consiste em seguir o ensino fundamental de Buda (…). 2) O Pensamento justo significa a aspiração a ultrapassar os desejos sensuais.
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A aspiração a não criar nenhuma inimizade, a aspiração à não-violência. 3) A Palavra justa significa não mentir mas dizer a verdade de forma admirável e útil a fim de incitar ao progresso espiritual. 4) A Ação justa quer dizer não matar, não roubar, não apresentar um comportamento sexual condenável. 5) Os Meios de existência justos significa que estes meios não devem ser nefastos tanto para si mesmo como para os outros. 6) O Esforço justo equivale a despender esforços para combater os desejos perniciosos, a avidez sem fundamento e as vãs excitações alimentando os seus contrários, isto é, desejos santos, aspirações sublimes. (…) 7) A Atenção justa (…): dever-se-á estar atento ao seu corpo, unicamente como corpo, às sensações unicamente como sensações, ao meu espírito unicamente como espírito e aos elementos da existência (dhammas) unicamente como elementos da existência. A partir do momento em que atinja este estádio, o apego aos desejos poderá ser ultrapassado. 8) Podemos ainda chegar ao estado ideal da Justa Quietude do Espírito, o Estado da calma do Nibbána – Iluminação. (…) Se o Homem pudesse viver segundo a Via justa exercendo uma paciência e uma bondade indefetíveis para com os outros, não sujeitando o seu coração às coisas do mundo, que aparecem e desaparecem, poderia ser liberto da vida mundana e, para si, a fonte de mal não existiria mais. Se pudéssemos ainda apaziguar a sede ardente do nosso eu medíocre e passarmos a fazer bem aos outros, o princípio da individualidade, a ilusão fundamental do género humano, e a pior de todas, poderia ser totalmente evitada. Não é senão nestas condições que a tranquilidade de espírito é possível, sendo este último purificado. Buda, tendo chegado ao estado pacífico do Nibbána, estava cheio de compaixão. (…) Esta atitude de compaixão ou de benevolência deveria ser adotada como princípio de base da nossa vida social. (…) Se permitirmos que as virtudes da compaixão e do amor cresçam em nós não nos surgirá o desejo de ferir alguém como nós mesmos não gostaríamos de ser feridos. Desta forma, fazemos parar os nossos sentimentos e faremos desaparecer o nosso desejo de nos apegarmos às nossas pequenas pessoas medíocres alargando os limites do que consideramos como sendo os nossos. Convidamos as personalidades dos outros a penetrar a nossa personalidade; assim aboliremos as barreiras que nos separam dos outros.
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Confúcio1 e o seu ensino2 Javier Perez de Cuellar3 Na China, como por todo o lado no Extremo Oriente, Confúcio é um nome familiar a todos. Desde há mais de dois mil anos, o grande mestre do pensamento da China antiga alimentou os chineses com o seu ensino e cultivou neles as qualidades de honestidade, de gentileza, de generosidade e de tolerância. (…) Confúcio é o símbolo da cultura chinesa tradicional. (…) O ensino de Confúcio baseado nos conhecimentos práticos e nas atividades manuais da China antiga, a saber: Li (os ritos e conveniências); Yue (a música), o tiro ao arco, a condução de carros, a escrita e as matemáticas, estando todas estas matérias agrupadas sob o termo das “seis artes”. (…) A escola de pensamento instaurada por Confúcio é chamada “Ru Xue”, ou confucionismo. Na China, reconhece-se geralmente que o confucionismo é um sistema filosófico. (…) Ru Xue foi fundado (…) na base das doutrinas de “Li-Yue”. Em certo sentido o confucionismo é a revelação da essência espiritual da “cultura Li Yue”. Não se pode, portanto, compreender as características do confucionismo, o seu objetivo fundamental, a sua natureza, senão indo às suas raízes que são a “cultura Li-Yue”. 1 Confúcio ou Qiu, ou ainda Zhong Ni (551- 479 a.C.) é o descendente de uma família ilustre, cuja árvore genealógica remonta até Wei Zi (membro da família real dos Yin) tendo vivido no fim da dinastia Yin (segunda dinastia da história chinesa, do século XVII ao século XI a.C.) e no início da dinastia Zhou (que sucedeu à dinastia Tin) 2 Extratos do artigo publicado na revista C. e L. nº 40 de 1990 (edição francesa). A fim de tornar o texto mais acessível ao leitor ocidental, o tradutor permitiu-se acrescentar algumas notas. Alguns termos (ou palavras) utilizados por Confúcio e expostos no texto cobrem todo um espetro de significados possíveis e são muito difíceis, por vezes impossíveis, de traduzir numa só palavra que lhe corresponda. Traduzindo-as, cada vez, em função do seu sentido específico não se lhe dá, de forma alguma, a profundidade da palavra e criaria no texto, uma enorme confusão, o leitor ignorando que estes diferentes termos correspondem a uma só e mesma palavra no texto chinês. Para evitar este inconveniente, utilizámos a transcrição fonética da palavra, seguida de uma tradução aproximativa. É necessário não esquecer que estas traduções permanecem inexatas e apenas lá estão para facilitar a compreensão. O significado exato da palavra é, geralmente, mais vasto e o leitor deve esforçar-se para atingir todo o alcance referido no contexto. Tomemos o exemplo de Li e de Yue: por vezes referem-se à regras concretas de Li e de Yue e, noutras vezes, são empregues de forma abstrata, como conceitos ou princípios morais. 3 Investigador do Instituto de Filosofia da Academia das Ciências Sociais da China.
Confúcio e o seu ensino
A cultura Li-Yue tinha como função preservar as diferenças de estatuto social entre os membros da sociedade, para que o governo do Estado não fosse submetido à desordem e à confusão, assegurando, por outro lado, uma certa harmonia no seio da comunidade social. Combinando estes dois aspetos contraditórios – distinção e unificação – a cultura Li Yue repartia o povo em diferentes classes sociais mas mantinha, ao mesmo tempo, a harmonia entre elas. Como diz o “livro de Yue”, Yue (a música) coloca a sua ênfase nas consonâncias. Assim como Li (os ritos) insiste nas diferenças. As consonâncias implicam aproximação e harmonia, assim como as diferenças exigem um certo respeito mútuo. Quando Yue é dominante, as coisas regulam-se facilmente; pelo contrário, se é o Li que prevalece, dá-se mais atenção às diferenças. Convém, portanto, adaptar as funções respetivas do Li e do Yi (equidade) e todos, seja qual for a sua posição social, encontram-se unidas no seio de Yue. Li é portanto utilizado para diferenciar os superiores dos inferiores, os nobres dos plebeus, assim como Yue é utilizado para harmonizar as relações entre eles. Contudo, ao descrever as funções de Li e de Yue separadamente nos seus princípios de diferenciação e de harmonização, apenas se consideram as suas funções principais. Com efeito, é dito que a “melhor utilização de Li é criar harmonia”. Na prática, Li era, portanto, utilizado para unificar, enquanto que Yue, por vezes, podia assumir um papel exatamente contrário. (…) A natureza humanista de Li-Yue e a busca da verdade humanista, que lhe está ligada, incitaram Confúcio a escolher na evolução do seu pensamento uma via diferente da que era seguida pelos filósofos europeus. Os primeiros filósofos da Grécia antiga eram, quase sem exceção, cientistas – astrónomos, matemáticos, etc. A sua filosofia era portanto baseada nas ciências naturais, enquanto que a filosofia de Confúcio era humanista, ou, por outras palavras, uma filosofia do Homem. Um outro ponto a notar é que na medida em que se considera a sua forma, a cultura Li-Yue é uma cultura reguladora. No seio do sistema de hierarquia feudal dos clãs patriarcais, ela prescrevia as relações entre os membros da sociedade e as normas que ditavam as suas ações. Isto é um fator que determinou, certamente, outros aspetos da filosofia humanista de Confúcio. Uma vez que os princípios de Li e de Yue são humanos por natureza, esta filosofia não podia constituir uma simples análise objetiva da verdade concernente ao Homem e à vida, mas apresentava-se mais como um conjunto de normas e de ideais para a vida. Ela não procurava determinar o que era a vida e porque era assim, mas mais definir a via que a vida do Homem podia tomar. Alguns inves-
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tigadores defendem que a doutrina de Confúcio é uma doutrina idealista, (…) O coração da doutrina humanista de Confúcio é a sua reflexão sobre Ren4 (bondade, amor pelo outro, humanidade). (…) A um dos seus estudantes, Fan Chi, que lhe perguntou o que significava a “bondade”, ele respondeu “ser bom para os outros”. A bondade distingue-se do amor cego, pregado posteriormente por Mo Zi (fundador de uma outra escola de pensamento). É um amor marcado pelo discernimento. Com o conceito de Ren (a bondade) ele resumiu muito exatamente o espírito fundamental de Li-Yue – a harmonia na diferença. O aspeto mais importante do pensamento de Confúcio sobre a bondade era que ele a considerava como sendo a natureza do Homem. Qual é a natureza do Homem? (…) para ele “a bondade é o Homem”. O Homem é Homem porque é capaz de amar os outros; perseguindo os seus objetivos, ela é capaz de ver quais são os objetivos dos outros à sua volta, e, seguindo a sua via pessoal, pode também ajudar o seu próximo a realizar os seus desígnios. Não querendo estar sujeito nem ao sofrimento nem à infelicidade, parte do princípio que os outros também não querem submeter-se-lhes e procura portanto poupá-lo aos seus sofrimentos e infelicidades. “A bondade é o Homem” – uma visão sublime do Homem, uma visão que o Homem deve procurar realizar. Confúcio pensava que o Homem não nascia Homem. Ele tornava-se Homem ao tornar-se bom. (…) Sem a bondade, o Homem perde a faculdade de ser humano. Esta conceção não tinha como objetivo degradar o Homem. Pelo contrário, ele estimava que o facto de ser verdadeiro e bom conferia ao Homem dignidade e nobreza, obrigando aqueles que estavam desprovidos disso a tomarem consciência e aqueles que tinham descoberto a sua humanidade, a apreciarem o valor dessas coisas; a faculdade de amar era mais importante do que a vida em si mesma, o Homem deve preferir “morrer para esta humanidade mais do que sacrificá-la e levar uma existência indigna”. (…) Sheng Ren (o sábio) é um homem que se dá inteiramente à bondade de sorte que o amor que dele emana possa cobrir todo o universo, um homem que “espalha a sua bondade sobre todas as pessoas e as alivie”. Trata-se de um estado extremamente difícil de atingir. O Homem, contudo, jamais deveria parar a sua busca por um grau tão sublime da humanidade. (…) 4 Bondade: tradução literal da palavra chinesa “Ren”; mas o seu significado real é mais amplo porque ela representa todo um reino de pensamento. Quando o texto diz especialmente que Confúcio professava “esperar a bondade” ele queria provavelmente dizer “esperar um estado de espírito suficientemente elevado para ser capaz de esperar a sua bondade nos outros, mesmo à sua própria custa”.
Confúcio e o seu ensino
Entre todas as virtudes geradas pela bondade, Confúcio dá uma atenção particular à Yi (equidade, princípios morais) e, nesta base, desenvolve progressivamente a sua escola de moral, de deveres e de obrigações. (…) O Homem deve agir em função do bem e não segundo os seus desejos. Um comportamento moral baseia-se no respeito pelo Yi. (…) Confúcio estava convencido de que a bondade se adquiriria. A sua resposta à questão de saber como é que se pode atingir a bondade é ainda válida hoje e está ligada à resposta sobre a origem da moralidade. Ele afirma que para atingir a bondade, o Homem devia restringir os seus instintos naturais e aceitar os desejos do grupo social, incarnados pelo Li (os ritos). Isso significaria, portanto, submeter-se às normas da moral do grupo social e ater-se às regras de Li. Através da prática repetida, as normas da moral ganham raízes no coração dos homens, tornando-se, então, numa das suas características inerentes. Com concisão, ele resume este processo de progresso interior na direção da bondade dizendo que “o Homem devia negar-se e voltar-se para o Li, isto é, para a bondade”. Ele via as grandes dificuldades que o Homem podia encontrar no início do seu caminho, ao querer restringir os seus instintos e desejos naturais e respeitar as normas de uma conduta social; mas para atingir a bondade precisa de ultrapassar as dificuldades. Ele dizia: “a bondade não pode ser adquirida senão ao preço de grandes dificuldades”. “Negar-se a si mesmo e chegar ao Li é a essência da bondade”. (…) Num primeiro tempo, esta proposta resolvia de forma aceitável satisfazendo o problema da origem do raciocínio e das conceções morais sem recorrer à hipótese de uma divindade e de uma natureza humana apriorística. Em seguida, explicava o desenvolvimento das qualidades inerentes ao Homem no contexto de uma relação entre o indivíduo e o grupo, isto é, no contexto das relações sociais. Sem um progresso interior em direção ao Li, juntando as normas da moral na sociedade, era impossível atingir a Ren (a bondade) através de uma prática individual. Em terceiro lugar, ele sublinhava o papel desempenhado pela aplicação das normas de moral no desenvolvimento da bondade. O saber incarnado pela proposta “negar-se para chegar a Li” não é desprovida de um certo valor, mesmo do ponto de vista da moral moderna. A doutrina humanista de Confúcio divide-se em duas partes: a primeira respeita a evolução pessoal do Homem, o outro objetivo de paz e contentamento para todo o povo”. (…) “Levar paz e contentamento aos outros” significa que antes de ter chegado ao estado de bondade é preciso compreender a faculdade de
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amar o conjunto do seu povo, para que este possa viver e trabalhar num clima de paz e de contentamento. Encontram-se nesta proposta os princípios que devem reger o governo dos reis.(…) Esta doutrina reflete a ideia de que, para os soberanos e dirigentes políticos, “a bondade implica amar todos os sujeitos”. Confúcio preconizava que esses dirigentes estendam a sua bondade ao conjunto do povo e governem sobre essa base. Tanto quando um dirigente governasse com bondade, conservaria o apoio do seu povo, assemelhando-se à estrela polar que reúne à sua volta, toda uma constelação de estrelas; ele estabeleceria uma harmonia entre o soberano e os seus sujeitos na manutenção das diferenças de estatuto social e assegurando uma paz eterna no país, a efetivação de uma política marcada pela bondade do soberano implica que este pratica o humanismo. Para que um monarca pratique uma política de “boa vontade” precisa de ser, em primeiro lugar, um homem de bom coração. Confúcio estava convencido de que o fim da política era reformar os homens. Ora um soberano não podia esperar reformar senão fazendo prova, ele mesmo, de uma conduta exemplar. Para Confúcio, a atitude do soberano era determinante para que um povo o ame e apoie e para que um país seja bem administrado. Quais são as características de um governante de “boa vontade”? respondendo a esta questão, Confúcio fez o percurso inverso, partindo de Ren (a bondade) para chegar a Li e Yue (os ritos e a música), que tinham constituído o seu ponto de partida. Ele calculava que na prática, uma política de “boa vontade” traria paz e contentamento ao povo, limitando-se à observação de Li e de Yue. Ele recusava a utilização de leis e de decretos para guiar os homens e ao recurso à punição; ele pensava que uma tal prática poderia impedi-los de cometer faltas, com receio de represálias, mas poderia fazer-lhes perder igualmente todo o sentimento de vergonha. A sua proposta era que os soberanos eduquem os seus povos na moral e na virtude e lhes deem um quadro de vida com Li (ritos e conveniências). As pessoas querendo escapar à indignidade, seguiriam, então, escrupulosamente o caminho correto. (…) Ele, no entanto não rejeitava totalmente a utilização da punição na administração de um país, mas considerava-a como uma medida excecional. Ele queria que se servissem essencialmente de Li e de Yue para dar ao povo contentamento e paz. Ao tornar-se o principal instrumento do poder, a punição daria ao governo um caráter despótico, inconciliável com uma atmosfera de satisfação e de serenidade. (…) Confúcio dava muita importância à repartição de posições e de títulos nos assuntos do Estado. Acreditava mesmo que isso era essencial a um governo de
Confúcio e o seu ensino
“boa vontade” e à aplicação das regras de Li (ritos). Um dos seus discípulos colocou-lhe a seguinte questão: “Se o duque do Estado de Wei vos pedisse para administrar o seu Estado, o que faria?” Ele respondeu: “Em primeiro lugar, cuidaria para que cada um obtivesse a posição e o título que lhe compete”. Do seu ponto de vista, não é senão determinando com precisão as posições e os títulos de cada um que se pode aplicar o sistema Li-Yue ou qualquer outra ordem administrativa, porque assim cada um sabe como se comportar. (…) Hoje, a China antiga está num processo de desenvolvimento rápido numa sociedade moderna e o estado de espírito do povo é submetido a autênticas desordens. Alguns componentes da doutrina humanista de Confúcio, especialmente aqueles que dizem respeito ao governo de um país, estão ultrapassados, mas outros permanecem válidos, tais como a ideia de estender o amor de si mesmo ao amor aos outros, a sua teoria sobre a moral com Yi (equidade) como ponto de partida da virtude e a sua conceção de harmonia, e elas continuarão a habitar no coração dos chineses. (…)
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Jesus e a liberdade de consciência e de religião1 Pierre Lanarès2 Torna-se indispensável uma definição: “O termo ‘liberdade religiosa’ é, desde logo, credível, uma vez que ele se tornou o título de um documento do Magistério (…) Para quem toma a expressão ao pé da letra, ‘liberdade religiosa’ quer dizer total autonomia do indivíduo na escolha religiosa3” Assim se exprimiu o Padre J. Hamer, especialista no Concílio Vaticano II. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 18 lemos: “Toda a pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, as práticas, e culto e a realização dos ritos”. Mais recentemente, a “Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção”, de 25 de novembro de 1981, reafirma este princípio quase nos mesmos termos. Numa primeira abordagem, estes três textos parecem muito próximos. Iremos, agora, apresentar a conceção e o comportamento de Jesus relativamente a este princípio, servir-nos-emos das Suas próprias palavras relatadas nos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. I. A liberdade religiosa, fundamento da dignidade humana Jesus declarou: “Porque Eu não tenho falado de mim mesmo; mas o Pai que Me enviou Ele Me deu mandamento sobre o que hei de dizer e sobre o que hei de falar” ( João 12:49). Há, portanto harmonia entre os Seu ensino e o do Antigo Testamento que cita frequentemente. Ora, nas primeiras páginas do Génesis, o relato da criação diz-nos que o Homem foi criado à imagem de Deus, isto é, livre. 1 Extratos do artigo publicado na revista C&L nº 40, 1990 (Edição francesa). 2 Doutor em Direito, antigo Secretário-Geral adjunto da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. 3 J. Hamer O.P. “A história do texto”, in Vaticano II, la liberté religieuse, Cerf, 1969, p. 103.
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O Homem pôde escolher agir de acordo os princípios favoráveis ao seu desenvolvimento, tal como lhe foram apresentados por Deus, mas ele pôde escolher uma atitude diferente aceitando suportar as consequências. Uma liberdade que não tem a possibilidade de se exprimir não é, de forma alguma, uma liberdade. Deus deu ao Homem a possibilidade de O rejeitar prevenindo-o que toda a liberdade implica uma responsabilidade: “De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres certamente morrerás”. (Génesis 2:16, 17) Esta liberdade atribuída por amor implicava o amor do Homem para com o seu Criador. A dúvida insinuou-se no coração de Eva e de Adão e suportaram as consequências anunciadas. A liberdade sem amor é fonte de confrontações e de constrangimento tanto na vida religiosa como na vida quotidiana. A oposição entre a fidelidade e a revolta manifestou-se muito rapidamente com os filhos de Adão. Caim ofereceu um sacrifício à sua maneira e não foi aceite. Abel respeitou os princípios estabelecidos por Deus: o sacrifício de um animal simbolizando o Libertador prometido (Génesis 3:15) para a salvação da humanidade. Este foi aprovado por Deus. Caim revoltou-se e contestou. Ciumento pelo sucesso do seu irmão, matou-o. Foi o primeiro caso de perseguição religiosa na origem da humanidade embora o perseguidor não tenha sofrido nenhum prejuízo resultante da atitude do seu irmão, mas encontra, no seu exemplo, a condenação da sua infidelidade (Génesis 4). No decurso dos séculos, em todo o mundo, as mesmas causas produziram os mesmos efeitos (parábola dos vinhateiros Mateus 21:33-46). Jesus foi submetido às mesmas tentações que Caim e Abel mas não sucumbiu; foi levado à morte, não porque tivesse agido mal, mas porque o Seu amor e a Sua entrega eram uma permanente reprovação para aqueles que faziam da sua religião um fardo. A religião é, com efeito, um laço entre Deus, que por amor concede liberdade à Sua criatura, e o Homem que, graças à sua liberdade, e por amor, manifesta a sua fé e a sua obediência Àquele que que é o Único capaz de permitir o seu desenvolvimento e o seu acesso à eternidade. II. O ensino de Jesus Jesus deu uma ordem precisa: “Portanto vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos. Batizem-nos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo quanto eu tenho mandado”. (Mateus 28:19, 20). É sabido quanto o proselitismo pode ser uma fonte de tensões e de perseguições. O Conselho Ecuménico das Igrejas redigiu uma declaração sobre este assunto. Jesus estabeleceu alguns princípios muito claros que vamos examinar.
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A. Ausência de pressão 1) “Se alguém quiser vir após Mim negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz e siga-me” (Lucas 9:23). Este texto mostra que a conversão é uma decisão individual: se alguém (…) 2) “Todo o que o Pai me dá virá a Mim e, de maneira nenhuma o laçarei fora” ( João 6:37). Jesus rejeita qualquer atitude de discriminação política (…), social (…), religiosa (…) 3) Jesus respeita a liberdade de não seguir as Suas instruções (Mateus 19:21) (…) 4) Jesus reconhece aos que O seguem, o direito de O abandonarem ou de O trair ( João 6:66, 67; 13:27) (…) Esta conceção é o oposto à dos que consideram que uma pessoa está ligada para sempre a uma comunidade religiosa à qual pertence desde que nasceu, por decisão dos pais ou por uma escolha pessoal. Colocar isso em causa é sempre possível para colocar a vida de acordo com a sua experiência pessoal. A atitude de Jesus é, certamente, extraordinária, mas é também exemplar. B. Ausência de julgamento sobre outrem Jesus considera cada ser humano, como uma pessoa independente de toda a ética política ou religiosa. Ele afirmou: “Não julgueis para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados”. (Mateus 7:1,2). Esta ausência de condenação de outrem é ilustrada pela parábola do trigo e do joio (Mateus 13:24-40). (…) Não estamos em condições de julgar os motivos dos nossos semelhantes e, por consequência, devemos respeitá-los e confiar neles. (…) Se Jesus deixa a cada um a liberdade de agir servindo-se do Seu nome, Ele tem cuidado de valorizar a responsabilidade individual. (…) Jesus não usou nenhuma pressão junto dos Seus discípulos, nem obrigou ninguém a segui-l’O. A única força de que se serviu foi a do amor. C. Ausência de violência Quando o apóstolo Pedro, para defender o seu Mestre que acabava de ser preso, se serviu da espada e feriu um servo, Jesus disse-lhe: “Mete no seu lugar a tua espada”. Ele curou a ferida causada pelo Seu discípulo e acrescentou: “porque todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão”. (Mateus 26:52). E, também afirmou que teria podido dispor do poder celeste, mas rejeitou o emprego da força. Quando os discípulos Tiago e João, revoltados com a hostilidade dos samaritanos que recusaram acolhê-los, disseram a Jesus: “queres que mandemos descer fogo do céu para os destruir?” Jesus repreendeu-os dizendo: “Vós não sabeis de que espírito sois. E foram para outra aldeia” (S. Lucas 9:54-56)
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D. Ausência de pressão moral “Se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquele casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés”. (S. Mateus 10:14) Os discípulos devem respeitar a liberdade daqueles a quem apresentam a Sua mensagem de esperança e amor. Os ouvintes são livres de a rejeitar. (…) III. O comportamento de Jesus A. Para com os Homens A missão de Jesus é claramente apresentada pelos profetas do Antigo Testamento e pelo próprio Jesus. Ele é o libertador do Seu povo, não da ocupação política dos romanos, mas da escravatura espiritual de pecado: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigénito para que todo aquele que n’Ele crê não pereça mas tenha a vida eterna”. ( João 3:16) (…) Ele apresenta-Se como um exemplo a seguir: “Eu vos dei o exemplo para que, como Eu vos fiz, façais vós também”. ( João 13:15) (…) B. Para com as autoridades (…) A atitude de Jesus é complexa e apresenta diversos aspetos. 1) Reconhecimento da existência da autoridade política. “Dai, pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21). Esta declaração refere-se ao pagamento do imposto, mas estabelece um princípio. “Ele tinha dado uma diretiva de alcance universal que colocou a política sobre as suas verdadeiras bases e realizou uma separação libertadora”4 Jesus não coloca os dois poderes no mesmo plano. O poder de Deus é total, soberano, eterno. O Homem é convidado a envolver-se com Ele por amor e sem reservas e ser-Lhe inteiramente fiel. “Amarás, pois, o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças” (Marcos 12:30). César, que simboliza a autoridade política, tem um poder limitado à gestão das relações sociais, transitória, até ao estabelecimento do Reino de Deus, e delegado. Quando Pilatos disse a Jesus: “Não sabes tu que tenho poder para te crucificar?” ( João 19:10), Jesus não recusou o poder mas mostra-lhe os limites e a responsabilidade. “Nenhum poder terias contra mim se de cima te não fosse dado” ( João 19:11). O conforto permanente e a prioridade dos cidadãos deve estar reservada para Deus porque “mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 4 R. Coste, Théologie de la liberté religieuse, Duculot, 1969, p. 75
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5:29). Se César ultrapassa os limites da autoridade que lhe foi conferida sobre os seres humanos, que tem sob a sua responsabilidade, vai dar origem a conflitos entre a sua vontade dominadora e a liberdade de consciência dos homens. A existência de César vem de Deus, para o bem dos homens, mas não justifica a existência de um César totalitário. César é sempre responsável perante quem delegou nele o poder. (…) Respeitando a liberdade dos homens a livrarem-se da corrupção e da violência, Deus controla o curso da História. As profecias dão-nos múltiplos exemplos disso. (…) 2) Submissão – amor – resistência Submissão: Aceita as consequências das decisões das autoridades religiosas e de Pilatos, não, sem contudo, lhes mostrar a sua responsabilidade. Amor: O comportamento de Jesus perante as autoridades não revela uma relação de força mas um testemunho de amor. (…) Em presença dos soldados romanos que o crucificam injustamente, ora para que eles não suportem as consequências da sua obediência à autoridade política: “Pai perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. (Lucas 23:34). (…) Resistência: A atitude de Jesus não é, de forma alguma, passiva. Ao longo do Seu ministério, denunciou os desvios das autoridades religiosas. (…) IV. Jesus e a perseguição (…) Jesus advertiu os Seus discípulos de que conheceriam a hostilidade: “Se a Mim Me perseguiram, também vos perseguirão a vós” ( João 15:20). (…) Jesus declara: “Vem mesmo a hora em que, qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus” ( João 16:2). Isso realizou-se com Saulo de Tarso, que se tornou no apóstolo Paulo, mas infelizmente, no decurso dos séculos quantos cristãos levaram à morte outros cristãos para honrar Deus! (…) A atitude da Igreja foi composta de lealdade, de apoio às autoridades em assuntos profanos (Romanos 13:1). Mas esta submissão não podia pôr em causa a fidelidade a Deus quaisquer que fossem as consequências. Infelizmente, no decorrer dos séculos, a associação da Igreja e do Império provocou dramas. Um padre católico exprime-se desta forma: “Num tal contexto de cristianismo sagrado não se podia ser cidadão de corpo inteiro senão sendo membro de pleno direito da Igreja: isto é, católico romano. (…) Politica e religiosamente, a heresia, o crime mais assustador, e temia-se terrivelmente o seu contágio. Sob tal pressão, os homens deste tempo violaram gravemente a exigência evangélica da liberdade da fé. Não nos aprecemos a celebrar os méritos do cristianismo medieval! Sobre este ponto, ele estaria nos antípodas do Evangelho”.5 5 R. Coste, ob. cit., p. 120.
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A declaração sobre a liberdade religiosa de 7 de dezembro de 1965, no Concílio Vaticano II, esforça-se por voltar às origens. Contudo, é de lamentar que tenha apresentado a liberdade religiosa, essencialmente, sob o seu aspeto negativo (§2). “Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Tal liberdade consiste em que todos os homens devem estar imunes de coação, quer da parte de pessoas particulares, quer de grupos sociais ou de qualquer poder humano, de tal maneira que em matéria religiosa ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência, nem impedido de atuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou associado a outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, tal qual se conhece pela palavra revelada de Deus e pela própria razão.” V. A liberdade religiosa de Jesus e os direitos do Homem Hoje, numerosos cristãos esquecem o fundamento desta liberdade, considerando a liberdade religiosa como um direito do Homem como o direito de aderir a um sindicato ou obter uma reforma. De facto, a liberdade religiosa não é um direito do Homem entre outros. Ela é o fundamento das outras liberdades. O papa João Paulo II lembrou-o, além disso, a Mikhaïl Gorbachev por ocasião da receção do 1º de dezembro de 1989, em Roma. Há uma primeira confusão entre os direitos fundamentais, individuais, e os direitos sociais. Os primeiros estão ligados à natureza do Homem e à sua dignidade. Eles exigem que o Estado intervenha o menos possível. Os outros implicam, ao contrário, a intervenção constante do Estado em função das circunstâncias. Num mundo cada vez mais laico, desligado do sagrado, tende-se a considerar a liberdade religiosa como um luxo sem o qual se pode passar muito bem. Esquece-se que a aceitação ou a rejeição de uma religião implica múltiplas consequências. A liberdade não é divisível. Trata-se não apenas de poder reunir-se para uma cerimónia. Há o estilo de vida, as regras alimentares, o dia de repouso, as festas religiosas, a educação dos filhos, a difusão das convicções, a organização da comunidade, a preparação do clero, o casamento, as exéquias, e tantas outras questões que não deixam de colocar graves problemas à sociedade pluriconfessional. Estes direitos são muitas vezes reconhecidos separadamente, em particular pela “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção”, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 25 de novembro de 1981.
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Além disso, há uma diferença de natureza entre a liberdade religiosa do cristão e a dos direitos do Homem. Esta última é estabelecida por um poder político para conservar a paz social. O seu caráter jurídico torna-a muito frágil, dependendo da boa vontade daqueles que a estabelecem, interpretam e a fazem respeitar. A liberdade de Jesus é diferente. É um direito que decorre de um dever de agir segundo a consciência. Dever do qual se é responsável perante Deus e cujo abandono pode ter consequências eternas. (…) Como é impossível alterar as regras estabelecidas por Deus, qualquer compromisso é uma infidelidade para com Deus e para consigo mesmo, portanto, inaceitável. (…) Esta liberdade proclamada por Jesus é uma relação de amor com o Criador e com todos os homens. Estes últimos devem poder gozar desta liberdade a qual exige o respeito por si mesmo. Este amor deve manifestar-se mesmo para com aqueles que recusam respeitar a liberdade dos outros e que os perseguem. Esta atitude não exclui, de forma alguma, o recurso aos meios jurídicos previstos pela lei. Tudo deve ser feito sem agressividade nem violência. As Declarações dos direitos do Homem são importantes para estabelecer um diálogo verdadeiro tão cordial quanto possível entre representantes de religiões e de convicções diferentes. Tudo deve ser feito para uma mais ampla difusão destes princípios e uma ação constante para obter o seu respeito. O discípulo de Jesus, como o seu Mestre, no total respeito pela dignidade do outro, procura compreender, escuta com atenção, fala com benevolência, age em favor da liberdade de todos e aceita as consequências da sua fidelidade à sua consciência e às exigências da sua fé na serenidade de amor para com Deus e os homens. Todo o ensino de Jesus sobre a verdadeira liberdade religiosa que compreende uma liberdade responsável – em vez de uma liberdade anárquica, frequentemente reivindicada – uma igualdade – baseada na identidade da natureza, criatura de Deus e garantida pelo amor ao próximo – encontra-se condensada na regra áurea “Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós” (Mateus 7:12).a
a) Reproduzimos neste parágrafo um extrato dos três últimos pontos dos cinco na secção B) do documento original (C&L nº 40, p. 78,79, edição francesa) que são: a) Reconhecimento da existência da autoridade política, b) respeito das autoridades, c) Lealdade, d) Submissão, e) Amor, f ) Resistência.
Muhammad – Eu sou um dom de Misericórdia1 Mohamed Talbi2 (…) Todas as mitologias, todas as revelações concordam, mais ou menos, para anunciar um fim, ou uma última revelação,3 preparada por aqueles que tinham precedido e constituindo o ponto culminante e o ato final. Na tradição judaico-cristã, o instrumento desta última revelação ou o fim, é o Messias, já presente na pessoa de Jesus Cristo, para os cristãos, e ainda não para os judeus que ainda O esperam. Para os muçulmanos, a última revelação para a conclusão, é o Corão; e o último Mensageiro, instrumento desta revelação final, é Muhammad. “Se Deus quisesse ter-vos-ia reunido numa comunidade única (umma) mas dividiu-vos com o fim de vos pôr à prova no que vos deu. Rivalizai nas boas obras! O vosso lugar de reunião, o de todos, está junto de Deus. Ele vos fará saber aquilo em que estais em discrepância” (Corão, V, 48). Outros versos vão no mesmo sentido, particularmente estes: Corão II, 113; III, 55; VI, 164; XVI, 92; XXII, 69 e XXXIX, 46. Assim, a humanidade é, ao mesmo tempo, una e múltipla: “Os homens não constituem (wa mà kàna)4 senão uma só e mesma espécie (umma wàhida). No entanto divergem (fa-khtalafù) (…)”. Aquilo que é próprio da espécie humana, com efeito, contrariamente às outras espécies animais – abrangidos no Corão pelo termo umma (plural umam, Corão VI, 38) – é terem a faculdade de divergir, portanto, evoluir. Sem esta faculdade de irradiar em todos os sentidos – incluindo o não sentido – não haveria, com efeito, verdadeira liberdade. No plano ontológico, já Deus tinha dado ao Homem a faculdade de escolher a liberdade, e, o Homem o optou efetivamente por esta última.5 1 Excertos do artigo publicado na revista C&L, nº 40, 1990 da edição francesa. 2 Pensador muçulmano, escritor, Mohamed Talbi foi professor na faculdade de letras e de ciências humanos de Tunes. É membro da Academia Universal das Culturas, em Paris, desde 1994. 3 Ver o ponto de vista muçulmano em Ali Musa Raza, Muhammad in the Quran, ed. Idarah-i-Idabyyat-i Delli, Nova Deli (Índia), 1980, p. 1-20. 4 Kana introduz neste verso, como acontece frequentemente no Corão, um durativo a-temporal, e o termo umma, que designa, de uma forma geral, uma comunidade, tem aqui o sentido de espécie, como muitas vezes é aplicado no próprio Corão, ao reino animal. 5 Ver M. Talbi e M. Bucaille, Réflexions sur le Coran, ed. Seghers, Paris, 1989, p. 120-140.
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Um ensino centrado na liberdade de consciência e na realização do Homem Na conceção muçulmana, não há, a bem dizer, ensinos de Muhammad. Com efeito, Muhammad não é o autor do Corão, como ensina o orientalismo. Ele é o locutor, o destinatário-destinador, ao qual se dirige o qul (comunicar) da Revelação, como mediador-transmissor da Mensagem. (…) O Islão é assim, por uma adesão fervorosa e consciente, e não uma submissão morosa e resignada, uma identificação ativa e voluntária com o Plano de Deus, pela abertura da Sua mensagem, transmitida pelo Seu último Mensageiro, Selo dos profetas e da profecia. Ora este Mensageiro, que deseja obter justamente a adesão voluntária do Homem, centra-se na liberdade de consciência. Em virtude do Mithàq, (…) todo o homem, como ego único e livre, num face a face com Deus, já tinha respondido a esta questão: “Não sou Eu o vosso Senhor?” por um “sim” espontâneo de testemunho e de envolvimento que o liga direta e individualmente. Todas as mensagens transmitidas pelos enviados do Senhor não são mais do que recordações atualizadas no tempo que passa, movimentado e contado a partir da História, ou dos relatos inseridos no fio da existência, desse “sim” ontológico predeterminante crucial. Muhammad não veio, portanto, para libertar um Povo, ou anunciar o Reino, mas apenas recordar, num último Apelo e Recordação, o Mithàq de sempre, laço (withàq) de todo o ser com o Ser. Donde esta injunção que lhe foi solenemente dirigida por Aquele que pré-eternamente desejou que o Homem seja livre ligado a Ele pelos laços isentos de pressão do Mithàq: “Lembra-lhes, ó Muhammed, pois tu não és mais do que um conselheiro! Tu não és, de maneira alguma, um guardião para eles” (Corão LXXXVIII, 21,22). Estes dois versos vêm em conclusão de uma surata onde são balançados a igualdade, a Advertência, o Anúncio e o convite à Meditação sobre a criação para que o Homem, fazendo uso da sua razão, possa escolher lucidamente o seu caminho, de maneira livre, mas também com toda a responsabilidade. Em particular a Advertência deve ser bem mais forte que o Homem, absorvido no aqui e agora, com a tendência para ocultar ou não o ter em consideração. Convite à reflexão, advertência contra a perda e o malogro final, e anuncie a felicidade eterna, no fim de uma existência terrestre no decurso da qual o homem deve escolher, na sua preexistência ontológica a si mesmo, de ter a faculdade de escolher livremente o seu destino, são as três facetas da manifestação da mesma solicitude divina para que este não tendo falta da Rememoração e da Recordação, não possa apresentar, em caso de perda, nenhum argumento contra o Senhor. “Mandámos Enviados que anunciavam a vida futura e advertiam acerca do castigo eterno, para que os
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homens não tivessem, frente a Deus, uma desculpa depois da vinda dos Enviados. Deus é poderoso e sábio” (Corão IV, 165). Em suma, Deus tendo autorizado a liberdade humana e tendo-a integrado no Seu Plano, não se fecha numa indiferença soberanamente autista. Ele permanece o Muito Próximo (al-Qarib) e o mais Misericordioso dos misericordiosos. O Misericordioso guia (…) recorda, apela à reflexão de meditação, mas, para salvar o Homem de si mesmo, a sua misericórdia não chega nunca a constranger: Deus respeita o Mithàq da liberdade que o liga ao Homem e o modelo da criação que dela deriva. Ao seu último Mensageiro, encarregue de transmitir à humanidade o último apelo (Dhikrà) ele dirige, portanto, esta advertência que define a sua missão e lhe fixa os limites: “Se o teu Senhor quisesse, todos os que estão na Terra teriam acreditado. Podes tu forçar os homens até que sejam crentes? Enquanto uma alma não crê senão com a permissão de Deus, e Este coloca a corrupção sobre os que não discorrem?” (Corão X, 99,100). Se – é uma evidência trivial – nada se faz no Universo, ou mais modestamente na Terra, incluindo o acesso à fé, “se não for com a permissão” do Criador (qadà’), isto é, de acordo com o Plano que presidiu à criação e às suas leis, e é evidente que Deus se absteve voluntariamente de usar a coação para forçar os homens a crerem mecanicamente. Se Ele tivesse querido inserir esta coação mecânica no Seu Plano, nada mais fácil para o Todo-Poderoso, e “todos aqueles que estão sobre a Terra teriam crido”. Ora se Deus se absteve de constranger, maior razão há para que o Seu Mensageiro fizesse prova da mesma contenção. Noutros termos, Deus requer do Homem, que aceda à razão, mais do que a obediência mecânica e passiva obtida pela via da imposição, mais do que a submissão e escolheu um Plano de criação regido pelas leis da consequência. Ele deseja do Homem uma adesão verdadeiramente livre e racional que, integrando-o neste Plano, o faça aceder ao Céu do divino e dele se torne digno. É por isso que “Ele lançará o opróbrio sobre aqueles que não raciocinam”, aqueles que acederam à razão e não fazem dela um uso racional. Com perigo para si próprios, seguramente! (…) Certamente Freud já não reina como mestre. Mas apesar disso aprendemos que a sinceridade nem sempre é sincera, e que o provérbio que diz que o inferno está cheio de boas intenções não deixa de ter fundamento. Há sempre “uma doença” nos nossos corações, doença que nos faz, sem cessar, procurar um exame vigilante para o impedir de crer. Não é fácil ser verdadeiramente crente. Já alguma vez se sentiu plenamente crente? A fé, a verdade é exigente. É uma constante tensão para extirpar o mal dos nossos corações e colar com o ideal. Purificada faz surgir o que há de melhor no Homem e, ao fazer isso, assintomaticamente eleva-o.
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Para nos ajudar Deus envia-nos os Seus Sinais que são, mesmo nos rigores da Advertência, Sinais de Misericórdia e de Solicitude. Confiado apenas na razão, ou mal esclarecido por uma fé obscurecida pela inconsequência e a inconsciência, o Homem arrisca-se a fazer um mau uso da liberdade; arrisca-se a ser um “fator de desordem”, inconsciente, pretendendo ser um “reformador”! Infelizmente sabemos bem que à medida que o conhecimento liberta, cada vez mais e cada vez mais depressa, o que é um poder em nós tanto para o melhor, como para o pior. Daí a necessidade de uma leitura constante mais vigilante dos Sinais do Misericordioso que exerce Misericórdia. Os Seus Mensageiros portadores de Recordação e dos Ideais têm sempre qualquer coisa para nos ensinar. Para nos elevar.
Nos passos de Gandhi1 Ramin Jahanbegloo2 Não é possível pensar hoje em tolerância sem fazer referência ao pensamento e à ação de Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), cognominado o Mahatma (a “grande alma”). E, contudo, a palavra tolerância aparece muito pouco na sua obra, apesar de Gandhi ter sido toda a sua vida um homem de uma tolerância exemplar. Este paradoxo revela bem a dificuldade do conceito. Afirmar a tolerância torna-se, com efeito, segundo Gandhi, em instaurar uma hierarquia entre a nossa atitude e a do outro. “Não gosto da palavra tolerância, escreveu ele numa carta aos seus discípulos em 1930 durante a sua permanência na prisão de Yerauda, mas não encontro nada de melhor. A tolerância pode implicar a suposição, totalmente gratuita, aliás, que a fé do outro é inferior à nossa, assim como a ahimsa (a não violência) nos ensina a conservar, para a fé religiosa de outrem, o mesmo respeito que temos para com a nossa, da qual reconhecemos a imperfeição. Admiti-lo será fácil para aquele que procura a verdade, para aquele que obedece à lei do amor. “Se tivéssemos atingido a plena visão da verdade, deixaríamos de ser investigadores, faríamos um com Deus, porque a verdade é Deus. Mas uma vez que não deixámos de ser investigadores, continuamos na nossa pesquisa, conscientes da nossa imperfeição.” Toca-se aqui nos princípios de base da filosofia gandhiana, neste espaço teórico-espiritual no qual o próprio conceito de tolerância é reivindicado, não em função de uma certa ordem política ou religiosa, mas em virtude de uma crença na liberdade da consciência humana. É mais do que um simples respeito da personalidade que Gandhi exige. Ele aspira a promover a busca da verdade, absolutamente convencido que esta procura necessita da obediência à lei do amor. Assim, segundo Gandhi, é impossível evocar o conceito de tolerância sem a afirmação da ideia de verdade. Esse é o ponto central. Mas é ainda mais importante que, onde a verdade é observada, apenas o pode ser de uma forma não violenta. 1 Excertos do artigo publicado na revista C&L, nº 49, 1995, edição francesa. 2 Filósofo iraniano especialista em Mahatma Gandi. Autor, igualmente, de Hegel et la Révolution française (publicado em Teerão em 1990), e de uma série de entrevistas com Isaiah Berlin, o grande historiador das ideias, Isaiah Berlin en toutes libertés, Félin, Paris, 1990. Jornalista e colaborador de diversas revistas, entre as quais, Esprit et Études.
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Não-violência e verdade são termos de tal forma próximos que são quase convertíveis. “A ahimsa (a não-violência) e a verdade, escreveu ainda Gandhi, estão tão interligadas que é quase impossível dissociá-las. São como as duas faces de uma medalha, ou melhor, de um disco de metal liso e sem cunhagem. Quem pode dizer qual é o verso e o reverso?” “Contudo, a ahimsa é o meio, a verdade é o objetivo. Os meios para serem meios devem, sempre, permanecer à nossa porta; também a ahimsa é o nosso dever supremo. Se cuidarmos dos meios, estamos certos de, cedo ou tarde, chegar ao objetivo. Uma vez feito isso, a vitória final será atingida, sem qualquer dúvida. I. A semente e a árvore Gandhi não procura, portanto, elaborar um sistema racional de explicação do mundo a partir da ideia da verdade, nem a privilegiar uma tradição de pensamento. “A verdade reside no coração de todo o Homem, observa ele. É isso que é necessário procurar (…) Nós não temos o direito de constranger os outros a agir segundo a nossa própria maneira de ver a verdade”. Não se pode, portanto, separar a vida religiosa da vida política, como o demonstra a organização dessa luta simultânea contra a violência britânica e contra a injustiça indiana para com os intocáveis. À maneira do filósofo grego Sócrates, Gandhi afronta, corajosamente, apenas com as armas do jejum e da oração, o espírito de tirania e de intolerância dos seus contemporâneos. “O único tirano que eu aceito neste mundo é a ‘pequena voz serena’ que fala dentro de mim. E mesmo que eu tenha que enfrentar a perspetiva de uma minoria reduzida a um só elemento, penso humildemente ter a coragem de fazer parte dela (…)” Agindo dessa forma, o Mahatma está desprovido de segundas intenções políticas. Pelo contrário, a sua atitude visa fazer triunfar o ponto de vista humanitário sobre o ponto de vista político, que se esforça por partilhar os valores ideológicos em vez dos valores comunitários. A sua preocupação constante pela verdade, e pela igualdade na sociedade, leva-o a revoltar-se contra as manhas e a mentira que ele considera como meios impuros de atingir um fim puro. “É um erro acreditar, disse ele, que não há relação entre os meios e o fim. Este erro tem feito cometer crimes sem nome, mesmo a pessoas que eram consideradas como religiosas. É como se pretendêsseis que de uma má planta pudesse sair uma rosa. Os meios são como a semente e o fim como a árvore. A relação é tão iniludível entre o fim e os meios como entre a árvore e a semente”. E acrescenta: “Preocupo-me muito mais em lutar contra a degradação do Homem ao plano de animal do que poupar sofrimentos ao meu povo. Aqueles
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que voluntariamente se submetem a uma longa sequência de provas crescem em nobreza e elevam o nível de toda a humanidade (…). Aqueles que, pelo contrário, se rebaixam a usar qualquer que seja o meio para arrancar a vitória, ou que se permitem explorar outros povos ou outras pessoas mais fracas, não apenas se degradam a si mesmos, mas degradam também toda a humanidade”. Por outras palavras, a “virtude política” da não-violência – que surge aos olhos de Gandhi como a virtude por excelência – advém do facto de que assegura a unidade entre os membros da sociedade, colocando a tónica no papel do indivíduo e sublinhando a importância decisiva da “catarse” (purificação) que realiza no seu corpo e no seu espírito. Assim a capacidade de participar nas questões públicas e de julgar o que é justo e injusto não pode existir sem a prática, individual ou coletiva, da não-violência. Sem dúvida, a mais bela lição da sabedoria gandhiana é mostrar-nos a que consequências desastrosas, para o indivíduo e para a sociedade, conduz uma política que faz do poder o critério de toda a verdade. II. A influência de Gandhi no mundo Plenamente consciente dos perigos que o poder político pode representar, ao mesmo tempo que da tarefa democrática que lhe incumbe cumprir na Índia, Mahatma declara: “Se dou a impressão de me misturar com a política é simplesmente porque hoje a política nos envolve como uma serpente que se enrola em volta do nosso corpo e da qual nos não podemos livrar a despeito de todos os esforços. Eu desejo, consequentemente, lutar contra a serpente (…). A minha tarefa terminará se conseguir convencer a humanidade que cada homem ou cada mulher, qualquer que seja a sua força física, é guardião da sua dignidade e da sua liberdade. Esta proteção é possível, mesmo que o mundo inteiro se volte contra aquele que é o único a resistir”. O ensino de Gandhi conheceu uma projeção mundial. Entre as grandes lutas que a sua luta inspirou, a de Martin Luther King pelos direitos dos Negros americanos aparece em primeiro lugar. Desde o boicote aos transportes de Montgomery em 1955 à sua marcha sobre Washington em 1963, o pastor norte-americano aplicou, em todas as suas ações contestatárias, as técnicas da não-violência caras a Mahatma. Martin Luther King descreveu esta influência no seu livro Força para Amar: “Todo o conceito gandhiano do satyagraha tem um grande significado para mim. À medida que aprofundo, cada vez mais, a filosofia de Gandhi, o meu ceticismo sobre o poder do amor diminui progressivamente. Pela primeira vez cheguei a ver que a doutrina cristã do amor, posto em ação pelo método gandhiano da
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não-violência, é uma das armas mais poderosas de que um povo oprimido pode dispor na sua luta pela liberdade”. E afirma mais adiante: “Se a humanidade quer progredir, então Gandhi é, para ela, incontornável”. Esta premonição de Martin Luther King verificou-se no próprio ano da sua morte em 1968, na resistência não violenta do povo checoslovaco à invasão soviética. Tornou-se então possível falar do movimento da não-violência sem o ligar à agitação dos diversos movimentos intelectuais e políticos que agitaram, por um período de dez anos, os países de Leste. Como disse na década de oitenta Lech Walesa, na época em que presidia o Solidarnosc, a união de sindicatos polacos cujos movimentos grevistas levaram à queda do regime totalitário desse país: “Não podemos opor-nos à violência senão recusando fazer uso dela (…). Não temos outras armas senão a verdade e a fé”. A opção não violenta foi igualmente a adotada pelo povo filipino em 1986 na resistência civil contra a ditadura. Desde então, outras formas desta ação na América latina, na África do Sul e no Médio Oriente têm demonstrado a atualidade e a pertinência da herança de Gandhi no combate pela liberdade e a justiça.
Oração para que os Homens1 sejam tolerantes Voltaire Depois de ler esta oração extraída do seu “Tratado da Tolerância”, quem pode ainda, ver em Voltaire, o amargo cético, o irónico ateu, cuja reputação chegou até nós? Que sensibilidade comovedora, que amor profundo por uma humanidade cheia de piedade, que grandeza de espírito ressaltam desta página esquecida!... Num século partilhado entre as recordações recentes de um fanatismo estreito e os excessos de um liberalismo decadente, Voltaire aparece como o grande espírito verdadeiramente humano de que o seu país de origem se pode sentir orgulhoso. Esta oração pode ser a de todos crentes que admitem a liberdade de consciência. “Já não é aos homens que me dirijo, é a ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos; se é permitido a fracas criaturas, perdidas na imensidade e impercetíveis ao resto do universo, ousar pedir alguma coisa, a Ti que tudo tens dado, a Ti cujos decretos são imutáveis como eternos, digna-Te olhar com piedade para os erros agarrados à nossa natureza; que esses erros não se tornem nas nossas calamidades. Não nos deste, de forma alguma, um coração para nos odiarmos e mãos para nos matarmos; faz com que nos ajudemos mutuamente a suportar o fardo de uma vida penosa e passageira; que as pequenas diferenças entre as roupas que cobrem os nossos débeis corpos, entre todas as nossas línguas insuficientes, entre todos os costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as opiniões insensatas, entre todas as nossas condições desproporcionadas aos nossos olhos e tão iguais perante Ti; que todas pequenas diferenças que distinguem os átomos chamados homens não sejam sinais de ódio e de perseguição; que aqueles que acendem candeias em pleno meio-dia para Te celebrarem suportem aqueles que se contentam com a luz do Teu sol; que aqueles que cobrem as suas vestes com um véu branco para dizer que é necessário amar-Te não detestem aqueles que dizem a mesma coisa sob um manto de lã negra; que seja a mesma coisa adorar-Te numa língua antiga ou numa língua nova; que aqueles cuja roupa está tinta de vermelho ou de violeta, que dominam sobre uma pequena parcela de um monte de lodo deste mundo e que possuem alguns fragmentos redondos de um certo metal, gozem, sem orgulho, 1 Traité sur la tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas (1763), cap. XXIII.
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daquilo a que chamam grandeza e riqueza, e que os outros os vejam sem inveja; porque Tu sabes que nessas vaidades nada há para invejar nem de que se orgulhar. Possam todos os homens lembrar-se de que são irmãos! Que eles tenham horror à tirania exercida sobre as almas, como eles têm aversão ao banditismo que rouba, pela força, o fruto do trabalho pacífico! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos destruamos uns aos outros no meio da paz, e usemos o momento da nossa existência para abençoar em milhares de línguas diferentes, desde Sião até à Califórnia, a Tua bondade que nos concedeu este instante. Amén.”
Lutero e a liberdade religiosa1 Winfried Noack 2 Quem defende a causa da liberdade religiosa, deve esperar sempre esta ser-lhe negada, e não apenas da parte de um Estado autoritário, mas também da parte de algumas Igrejas que pretendem ter uma autoridade absoluta. De facto, esta última situação está longe de ser raríssima, e parece-nos judicioso interrogar, a este respeito, um grande homo religiosus. Fizemos incidir a nossa escolha sobre Martinho Lutero, pai da Reforma. Uma vez que é nossa intensão considerar a sua posição para com a liberdade religiosa, não podemos deixar de lançar um olhar sobre o seu ser interior. Para começar citaremos uma observação colocada no diário pessoal de Kierkegaard: “Lutero é um doente de uma extrema importância para a cristandade”. Com estas palavras Kierkegaard faz sem dúvida, alusão aos grandes sofrimentos sofridos pelo futuro reformador, sofrimentos que o faziam aspirar pela saúde que não podia ser senão a salvação. Indicaremos qual foi, sem dúvida, a natureza deste sofrimento e como foi ultrapassado. Conta-se que um dia em que o jovem Lutero se encontrava no coro do mosteiro de Erfurt, repentinamente se lançou por terra gritando com todas as forças: “Isto não sou eu! Isto não sou eu!” Quem era, portanto que ele, com toda a veemência, invetivava com uma agressividade acumulada e o que significava este grito? Conhecemos a resposta à primeira questão: Lutero tinha entrado no convento contra a vontade do pai. Este, Hans Luder, era um novo-rico, ambicioso e rude. Gostava de fazer alarde da sua lealdade. Para com o filho usava de uma brutalidade autoritária para lhe fazer sentir a sua inferioridade moral. Queria-o cegamente submisso, procurando separá-lo da mãe. Apesar dos esforços, este pai déspota não podia demonstrar a superioridade moral de forma convincente. A despeito da sua promoção social, não conseguia dissimular uma falta antiga e alguns comportamentos impróprios, e muito menos a sua falta de controlo sobre si mesmo, no 1 Artigo publicado na revista C&L nº 6, 1973, Edição francesa. 2 Doutor em História pela Universidade de Mayence Gutenberg, foi professor na faculdade de teologia de Friedensau de 2000-2007.
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seu comportamento sexual, o seu alcoolismo e o seu temperamento colérico, não isento de sadismo. O jovem Martinho Lutero encontrava-se perante um dilema; não podia nem amar esse pai, nem separar-se dele. Um ódio inconsciente ao mesmo tempo que um laço indissolúvel, levaram-no a fugir para o convento com vinte e um anos. Esta fuga permitiu ao jovem mestre afastar-se do pai sem que para isso ser obrigado a separar-se dele (porque o convento contém a imago do pai). Repentinamente a exclamação “Isto não sou eu” torna-se possível. Ele era simultaneamente o filho do seu pai e o continuador dos seus projetos ambiciosos, mas, ao mesmo tempo, era um outro qualquer. Quem? A história de Lutero monge, confunde-se com a da sua crise de identidade. Como resolvê-la? Se o tempo permitiu a outros jovens da mesma idade encontrar a sua identidade, ele não oferece tal coisa a Lutero. A tradição medieval não apresenta ao jovem senão duas soluções. A primeira era a solução tomista. Tomás de Aquino tinha ensinado a estrutura escalonada da existência. Esta estrutura assemelhava-se a uma pirâmide da qual Deus era o vértice superior. Nesta construção, organizada hierarquicamente, tudo quanto existe está no seu devido lugar. Cada elemento está em relação com os outros e assim, num escalonamento monástico, tudo vem causalmente de Deus, como causa primeira (causa causans) como tudo sobe teologicamente a Deus como objetivo supremo. Se o Homem não é capaz de aprofundar estas ligações causais, ou finais, pode, no entanto, graças à sua razão, atingir o reino sobrenatural. E, para que esta harmonia universal, o ordo, não seja perturbada, a justitia deve reinar. Cada um ocupará o lugar que Deus lhe destinou. Lutero, bem evidentemente, não tinha que procurar o tomismo. Ele não procurava saber qual era o seu lugar mas antes saber quem era! O occamismo, poderia ter sido a segunda resposta. Para Guilherme d’Occam, existe entre Deus e o Homem, um abismo, insondável. O ser humano não poderia encontrar Deus por meio da razão. Deus está longe, escondido, arbitrário, uma vez que Ele é vontade absolutamente livre, e como vontade, dinamismo originando todas as coisas. O Homem apenas pode crer. Contudo, uma vez que Deus chama ou rejeita arbitrariamente, nenhum Homem sabe se a graça lhe foi concedida. Ora o Homem, por seu lado, é essencialmente vontade, pode portanto querer o bem e tornar-se digno da graça de Deus. Esta resposta também não poderia ajudar Lutero na busca da sua identidade. Este Deus occamista correspondia exatamente ao seu pai: devia-se temê-l’O e obedecer-Lhe, não poderia libertar-se d’Ele. Lutero procurava um pai que pudesse aceitar. É em Staupitz que ele o encontrará.
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Este homem amável, dispondo de uma grande experiência e influenciado pelo misticismo da devotio moderna tornou-se para Lutero o médico da sua alma. Ele mesmo, figura positiva de um pai, pode modificar a imago do pai que era a de Lutero e que ele tinha transferido para Deus. Ao fazer, graças a Staupitz, a experiência da possibilidade de um pai autêntico (transferência paternal positiva), Lutero adquiriu a faculdade interior de construir uma nova imagem de Deus. Tem-se frequentemente sublinhado, e com razão, que Lutero tinha chegado ao apóstolo Paulo através do misticismo, depois de ter partido de Agostinho sem que o seu caminho passasse pelo humanismo. Com efeito, o misticismo tornou-se, para o reformador, uma experiência central. O que é que ele significava para o jovem? O misticismo destaca-se do mundo por meio da ascese e, através da contemplação, volta-se para o divino. Procura intensificar esta contemplação de forma a que ela se torne aparição, visio. Desde logo, depois de uma intensificação ainda maior, a alma pode “transbordar”, deixar o corpo no exkstasis, apressar-se para Deus e tornar-se um com Ele na unio. Com qual Deus? Com o noivo, o bem-amado, o Deus amante! Uma nova imagem especulativa do pai aparece então perante Lutero. Deus não é apenas um Ser puro, nem simples vontade dinâmica, é um Pai amante ao Qual a alma se une sem mediação eclesial ou sacramental. Esta piedade é individualista em extremo. Trata-se a pura relação Homem-Deus como relação sujeito a sujeito. Assim, Lutero encontrou, por fim, o seu verdadeiro pai. A separação com Hans Luder tornou-se possível; Lutero pode encontrar o caminho que lhe devolveu a integridade graças a um Deus que é amor. Esta transposição da imagem do pai autoriza dois outros processos de cura. Por um lado, Martinho Lutero pode, enfim, deixar de obedecer a Hans Luder porque deve, daqui para diante, obedecer ao seu novo Pai, mais elevado. Por outro lado, deveria até transformar a sua consciência negativa, que não é, senão, um complexo de ordens e de interdições paternais, numa consciência positiva que ele próprio dotou de todo o género de objetivos criadores. Contudo, enquanto que o seu apego ao pai carnal se desvaneceu, o seu apego servil em relação à culpa é volatilizado e pode agir livremente. Por outro lado, à medida que se afastava do seu pai, a imagem da sua mãe desabrochava nele e a primitiva confiança renascia. Então, a segurança e a aspiração tomam posse do seu ser e a sua confiança própria ia crescendo. A dispersão do seu eu regrediu e não tardou a encontrar a verdadeira identidade. No misticismo da devotio moderna e na “Teologia alemã”, não se trata, em primeiro lugar de Deus, mas da união a Jesus Cristo. Mas atenção, nele a figura ideal de Cristo não é a figura ideal que convém imitar, nem a que nos substituiu,
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nem mesmo o mediador “morto por nós” “em nosso lugar”. No misticismo, o Homem está a tal ponto unido a Cristo, que Este morre todos os dias “em mim”. Lutero adota esta conceção. Ele transferirá o sacrifício da missa, primitivo e exterior, para o interior da pessoa humana. Cristo torna-se assim a substância da sua identidade, este mesmo Cristo que, como dissemos, não é pai nem mãe, mas simplesmente Homem. Lutero ultrapassou assim a sua crise de identidade. É um homem em plena maturidade que entra na vida pública. Em 1517, afixa as suas vinte e quatro teses na porta da Schlosskirche em Witemberg. Em plena maturidade, dizemos nós. Quem era ele então? Tinha cortado a fixação pai-filho e convertido essa relação num laço positivo dentro de si próprio. Tinha transmudado o sentimento da sua falta numa consciência positiva e foi, de novo, capaz de iniciativa. A sua redescoberta do laço maternal renovou e reforçou a sua confiança, aceitou a sua imagem como homem, encontrando a sua identidade no Homem Jesus Cristo. Seguro da sua identidade, interiormente livre, grande e forte, é assim que enfrenta o imperador e o Império em Worms em 1521. Fez frente ao seu banimento não por causa de um sistema dogmático ou de uma tradição, mas em razão da sua convicção pessoal. Esta consciência da qual se reclamava, já não era a vontade paternal prolongada no tempo mas a sua própria liberdade interior conquistada com grande luta, e adquirida para lhe permitir testemunhar plenamente. Esta figura, Lutero na Dieta de Worms, tornou-se um mito. Não cessa de se apresentar ao pensamento interior da juventude dos séculos ulteriores, e de se lhe oferecer como uma das grandes possibilidades. Uma nova forma de encontrar a sua identidade. E continuamente, Lutero torna-se a identidade dos jovens que se procuram e de que a única busca consiste numa consciência liberta que os ajude a tornarem-se eles mesmos. Uma consciência repousando sobre um fundamento de confiança primitiva e de bondade, sabendo-se, totalmente envolvido. Assim Lutero cria uma juventude que, por sua vez, origina a liberdade. Sem dúvida, Lutero exprimiu-se também sobre o assunto da liberdade. Mas o que ele escreveu tinha menos impacto sobre os contemporâneos do que a forma como ele vivia. Voltaremos a isto. No seu tratado De Libertate christiana (1520), ele mostra que o cristão é livre porque Deus o libertou do pecado e estabeleceu com ele uma relação de pessoa a pessoa. É verdade que um cristão pode também ser livre no sentido germano-jurídico do termo, isto é, fazer parte de um Estado que lhe confere liberdades e privilégios. Mas a liberdade autêntica é a que me concede o direito de viver de tal maneira que glorifique a Deus. Esta liberdade pode existir para além de qualquer
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Estado. Assim, não apenas um certo número de liberdades devidas a cada Estado, mas cada Estado tem também um certo número de deveres para cumprir que lhe são endossados por Deus. Se o Homem fosse inteiramente espiritual e se a sua vida estivesse unida a Cristo, absolutamente livre. Mas uma vez que ele é igualmente carnal, está submetido à lei divina e às regras do seu país. A relação com Deus é, portanto, como vimos, uma relação pessoal estabelecida por Jesus Cristo. Desde logo a heresia torna-se uma decisão da consciência e não pode mais ser considerada como uma desobediência objetiva em matéria de fé. Consequentemente a heresia deveria, em princípio, permanecer impune. De facto, apenas os príncipes reinantes podiam pretender ter essa liberdade de consciência. O “Princípio protestante”, a saber, a autonomia da consciência, permanecia um privilégio aristocrático. Praticamente, os príncipes reinantes designavam a heresia, ou, para ser mais preciso, a via individual na qual cada um vivia a sua piedade, uma forma de rebelião. Uma vez que Lutero incorporou os príncipes reinantes na Igreja, como um Estado cristão (na realidade a relação dos poderes era inversa), eles identificavam-se com uma decisão da fé – como lhes convinha – e constrangiam os seus sujeitos a submeter-se à consciência do príncipe. Assim, apenas uma solução se oferecia à consciência individual: a emigração. Eis uma palavra que soa bem rude. E, contudo, esse foi um progresso real. Quando a paisagem histórica da Europa, deixou de ser o teatro de fogueiras e em vez disso tinha procissões de exilados como pano de fundo. Uma verdadeira liberdade de religião instalou-se quando os batistas e os espiritualistas (com exceção de Müntzer) reclamaram a neutralidade do Estado em matéria de fé. Eles estavam prontos a sofrer. A conceção de Igreja era espiritualista e um ceticismo profundo grassava entre eles, relativamente a qualquer dogmatismo. Uma piedade individualista deste género dá origem a uma disposição para a tolerância absolutamente paralela, é verdade, ao jovem humanismo. Esta tolerância impôs-se, por sua vez, à História, graças ao único calvinismo batista logo que este veio a reinar nos países anglo-saxões. Um segundo indício mostra-nos em que medida Lutero estava pronto a conceder a liberdade ao indivíduo: “É apenas quando eu sou livre, dizia ele, que estou autorizado a resistir com o fim de defender a minha liberdade”. Qual era a sua posição face ao direito de resistência? Lutero, é um facto conhecido, desenvolveu a doutrina das duas regras principalmente nos seus escritos intitulados: Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei (1523) (Da autoridade temporal e da obediência que se lhe
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deve) e Ob Kriegsleute auch in seligem Stande sein können (1526) (Podem os soldados estar em estado de graça?). Se esta doutrina não constitui um sistema, estes pensamentos fundamentais são, no entanto, muito claros. Existe desde logo, o reino espiritual que educa os homens na piedade e na justiça tendo em vista a vida eterna. Esta progressão cumpre-se por meio da Palavra, progressivamente. Este reino espiritual orienta as almas. Os pregadores são os seus representantes. Aquele que obedece a esta Palavra salvará a sua alma. Ao lado do reino espiritual, encontra-se o reino temporal. Ele assegura a paz e a ordem sobre a Terra, pune os maus e recompensa os bons de acordo com os critérios da justiça. O meio que lhe permite reinar é simbolizado pelo gládio, ou, por outras palavras, o poder temporal aplica a justiça, castiga, governa, administra e faz a guerra. Exerce, portanto, o seu poder, mas unicamente sobre os corpos, a vida, a propriedade e o Estado. É visível na pessoa do imperador, dos príncipes, dos conselheiros municipais, dos cavaleiros, dos funcionários e dos chefes de família. Cada um é necessário para o seu objetivo. A recompensa não se fará esperar, a saber, a prosperidade terrena. Ora é importante constatar que, mais tarde, Lutero foi levado a diferenciar este poder temporal. Demonstrou, de forma convincente, que nas condições criadas para o combate que levou à Reforma, para a sua sobrevivência, Lutero aprendeu a distinguir entre três formas de autoridades temporais: a autoridade justa, a autoridade tirânica e a autoridade diabólica. O reino justo preocupa-se com a paz e a ordem conforme as razoáveis leis divinas: respeita o Direito Divino, transmitido e não ultrapassa os seus limites. Cuida dos seus assuntos, ajudando, alimentando e salvando. Estes últimos, em contrapartida devem-lhe obediência. O reino tirânico ultrapassa as suas competências; intervém no reino espiritual, no domínio da fé. Igualmente, despreza – mesmo que não seja inteiramente – o Direito Divino, o direito transmitido e razoável, o Direito Natural. Desencadeia guerras injustas. O cristão deve obedecer a uma tal autoridade em todos os assuntos temporais. Mas a partir do momento em que ele exige a obediência ordenando que se cometa uma injustiça, quantas vezes afrontando os mandamentos de Deus, o cristão deverá desobedecer e recusar servir no seu exército. Resistirá por meio da Palavra e sofrerá pela sua fé. Existe, por fim, uma autoridade diabólica comparável ao “lobisomem”. Ele troca todas as condições jurídicas mudando o Direito em injustiça e inversamente. Faz-se adorar e diviniza-se a si mesmo. Obedecer-lhe equivale a adorar Satanás. É
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por isso que uma desobediência total é praticada neste caso. Todos os indivíduos deverão armar-se e opor uma resistência em função do direito à legítima defesa. É permitido, aqui, matar o “lobisomem” assim como os seus aliados, os seus servos e os seus auxiliares. Eis, em verdade, que Lutero já não considerava a oposição ao tirano como resistência às autoridades. Porque o governo tirânico-demoníaco já não representa, a bem dizer, as autoridades. Convém colocá-lo no plano de um vulgar assassino. E o direito à legítima defesa é válido em presença tanto de um como do outro. De facto, o direito universal de resistência à autoridade diabólica preconizado pelo luteranismo, foi praticado de uma forma muito restrita. Tal como a autonomia da consciência. O direito de resistência permanecia um privilégio dos príncipes. Em definitivo, apenas a obediência e a vocação para sofrer restavam ao “homem comum”. Se, em conclusão, comparamos o jovem Lutero com a sua doutrina da liberdade e da resistência, dito de outra forma a sua pessoa com o seu ensino, parece-nos difícil realizar um julgamento. A sua doutrina tem pouca relação com aquilo a que hoje chamamos de “liberdade religiosa”. Esta liberdade que significa liberdade da fé e da confissão tanto para o indivíduo como para grupos inteiros, e isso não apenas em privado mas publicamente e de maneira visível. A tolerância, a liberdade, o direito de resistir bem como a igualdade perante este direito (que as pequenas comunidades esperam ainda em vão) estão necessariamente ligadas a essa liberdade. É necessário reconhecer que a este propósito Lutero não ensinou grande coisa. Sobre este assunto, devemos, mais aos seus contemporâneos Hutten, Erasmo, os batistas. Mas Lutero, homem maduro, tal como esteve perante a Dieta de Worms, jogando a sua autonomia e a sua liberdade interior, contra o banimento e a morte – eis um mito imperecível. Que mito? O do homem adulto, livre interiormente, descansando sobre o fundamento maternal da confiança primitiva. Sabia-se ancorado no absoluto. Tornou-se capaz da criação de um caminho aberto conduzindo ao futuro. Está aí uma identidade suscetível de servir de exemplo aos homens de todos os tempos.
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Carta aos seus amigos de Praga1 João Huss Devo advertir-vos, meus amados, para que não se deixem abater pela sentença daqueles que condenaram os meus livros ao fogo: lembrem-se que os Israelitas queimaram os escritos do profeta Jeremias sem, no entanto, evitar a sorte que ele lhes tinha predito; Deus, ordenou mesmo, depois da destruição desta profecia, pelo fogo, que uma nova profecia e mais longa, fosse escrita, o que foi feito; porque Jeremias ditou, na sua prisão, e Baruc escrevia, como é dito do capítulo XXXV ao XLV de Jeremias. Está escrito, também, no livro dos Macabeus que os ímpios queimaram a lei de Deus e mataram aqueles que eram os seus depositários. Sob a nova aliança, queimaram os santos com os livros da lei divina. Os cardeais condenaram e lançaram às chamas muitos livros de S. Gregório, e tê-los-iam queimado todos se não tivessem sido preservados por Pedro o seu servo. Dois concílios de padres condenaram S. Crisóstomo como herético, mas Deus tornou a sua mensagem conhecida após a morte daquele que foi chamado S. João a boca de ouro. Sabendo estas coisas, que o temor não vos impeça, de forma alguma, de ler os meus livros e não os entregueis aos meus inimigos para serem queimados. Lembrem-se de que o Senhor diz: Antes do dia do julgamento, haverá uma grande desolação como nunca houve desde o princípio do mundo até agora, e será de tal maneira que os próprios eleitos seriam seduzidos se tal fosse possível; mas por causa deles, esses dias serão abreviados. Meditem nisso, meus amados, e sede firmes. Este Concílio de Constança não irá tão longe como o da Boémia; muitos daqueles que aí se encontravam morrerão antes de terem conseguido arrancar-vos os meus livros. A maior parte serão dispersos por todos os lados como as cegonhas, e reconhecerão, ao aproximar-se o inverno, o que fizeram no verão.2 Considerai que eles detiveram o papa, o seu chefe, digno de morte pelos enormes crimes. Coragem, e respondam a esses pregadores que vos pregam que o papa é Deus na Terra, que ele pode vender os sacramentos, como dizem os canonistas, que ele é a cabeça da Igreja administrando-a santamente, que é o coração da Igreja vivificando-a espiritualmente, que é a fonte donde emana toda a virtude e todo o bem, que é o sol da 1 Artigo publicado na revista C&L nº 6, 1973 edição francesa. 2 Jean Hus (ou Huss) era um teólogo e um reformador religioso checo. Excomungado por heresia, morreu queimado em julho de 1415.
Carta aos seus amigos de Praga
santa Igreja, o asilo assegurado onde importa que todos os cristãos encontrem o seu refúgio: contudo a sua cabeça já está para ser cortada pela espada: já este Deus terrestre está acorrentado, já os seus pecados são desvelados, esta fonte secou; este sol divino se obscureceu, este coração foi arrancado e murchou para que ninguém aí encontre asilo. O concílio condenou o seu chefe, a sua própria cabeça, por ter vendido as indulgências, o bispado e todas as coisas. Mas entre aqueles que o condenaram, encontra-se um grande número de compradores que fizeram, eles mesmos, por seu lado, este indigno tráfico. Entre eles estava o bispo Jean Litomyssel, que por duas vezes, quis comprar o bispado de Praga, mas outros prevaleceram sobre ele. Ó homens corruptos! Porque não começaram por tirar o pó do seu olho, pois está escrito na sua própria lei: “Qualquer que adquirir uma dignidade por dinheiro será privado dela”? Portanto, vendedores e compradores, e quem quer que intervier neste vergonhoso contrato, sejam condenados como S. Pedro condenou Simão que quis comprar dele, a virtude do Espírito Santo. Chamaram anátema ao vendedor e condenaram-no, e eles mesmos são os compradores; deram as mãos a este pacto, e ficaram impunes! Que digo eu? Eles traficam esta mercadoria até nas suas próprias casas! Há em Constança um bispo que comprou, outro que vendeu e o papa, por ter aprovado o negócio recebeu o dinheiro dos dois lados. Se Deus tivesse dito aos membros deste concílio: Aquele de vós que está sem pecado pronuncie o afastamento do papa João, sem nenhuma dúvida, ter-se-iam retirado uns após os outros. Porque se ajoelharam perante ele? Porque lhe beijaram os pés? Porque o chamavam de santíssimo, quando o viam como um herético, um pecador endurecido? Porque é assim que já falam dele em público. Porque é que os cardeais o fizeram papa, sabendo que tinha feito com que o Santo Padre (seu antecessor) morresse;3 e desde que ele foi papa suportaram que ele traficasse coisas santas? Não formavam eles o seu conselho para o advertirem do que era correto, e não são eles tão culpados como ele desses crimes, uma vez que toleraram nele vícios que eram comuns a todos eles? Porque é que ninguém ousou resistir-lhe antes da sua fuga de Constança? Todos o temiam, então, como o seu santo padre; mas quando, com a permissão de Deus, o poder secular se apoderou dele, então conspiraram e resolveram que não escaparia à morte. Certamente, já a malícia, a abominação e a amplitude do Anticristo têm sido reveladas no papa e noutros membros do concílio. Os fiéis servos de Deus podem, agora, compreender estas palavras do Salvador que disse: “Quando virdes a abominação e a desolação preditas na profecia de Daniel”. Sem dúvida, a suprema 3 Ver Les Reformateurs avant la Réforme, t. 1 liv, 1, 1845.
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abominação é o orgulho, a avareza, a simonia nos locais desertos, isto é, nas dignidades onde não se encontra nem a bondade, nem a humildade, nem nenhuma virtude, como vemos agora naqueles que são colocados em cargos e honras. Oh! Quanto desejaria poder desvelar todas as iniquidades que conheço, para que os fiéis servos de Deus se conservassem em guarda contra elas! Mas espero que Deus enviará depois de mim campeões mais vigorosas, e já os há, contudo, que colocarão melhor, a descoberto, todas as malícias do Anticristo, e que exporão as suas almas à morte pela verdade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que dará, a vós e a mim, a bem aventurança eterna. Escrevi esta carta no dia de S. João Batista, na prisão e em cadeias, e penso que S. João foi decapitado na prisão, pela Palavra de Deus.
Uma heroína da fé: Marie Durand1 Jacques Delteil2 I. O contexto histórico em que Marie Durant nasceu, e a sua infância Marie Durant nasceu no lugarejo de Bouchet-de-Pranles, não muito longe de Privas em Ardèche, em 1715. O pai, Etienne Durant, era escrivão consular de uma família abastada. Possuía sentimentos religiosos bem profundos. (…) No século XVI, a Reforma conheceu, em Nivaras um grande desenvolvimento. Mas Privas, praça forte protestante, caiu em 1629. E após 1685, o protestantismo não teve mais o direito de existir, em França. A resistência organizou-se contudo; e chegou, um século mais tarde, e depois de dramáticos sofrimentos, à liberdade reclamada. Desde 1686, obscuros pregadores tentavam aqui presidir aos cultos interditos. Mas quantos huguenotes foram obrigados a trocar a França pelo estrangeiro, em virtude das perseguições, em particular para a Suíça, a Alemanha, a Holanda e a Inglaterra, levando, com a sua inteligência, o ardor da sua fé! Durante este tempo, o próprio intendente Braville aplicou-se a “catolicizar sistematicamente todo o Midi”. As perseguições aumentam contra os fanáticos. Massacres têm lugar ao redor de Bouchet-de-Pranles em 1689, no lugar de Serre. É dessa forma que algumas das companheiras de Marie Durant são cruelmente encarceradas acusadas de serem profetisas. “O profetismo parece ter sido a única força que, durante esses anos sombrios, devido exatamente ao seu caráter extremo, pode levar as massas a uma ação condenada ao fracasso”. Contudo, esta resistência ativa que salva, incontestavelmente, o protestantismo, vai ter terríveis consequências. A insurreição dos camisardos rebenta em julho de 1702. Pierre, o irmão de Maria, é apenas dois anos mais velho. Foi um período de dupla educação: pelo que alguns fingiam submissão às ordens das autoridades civis e religiosas, ao mesmo tempo levavam uma vida reli1 Extratos revistos do artigo “Na Torre Constança. Uma heroína da fé: Marie Durand”, publicado na revista C&L, nº 31, 1986 (edição francesa). Obra consultada para a redação deste artigo: La maison de Marie Durand, de Louis Aurenche. 2 Advogado, presidente da Sociedade de História do Protestantismo, de Montpellier.
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giosa em casa e nas assembleias clandestinas. Antoine Court, nascido em 1695, começa a desempenhar um grande papel no plano dos Sínodos e da reorganização do protestantismo (opõe-se a que as mulheres preguem). O povo protestante vinha às assembleias. Pierre Durant partilhava o combate do protestantismo; vai fazer estudos a Lausanne, e o seu amigo Pierre Rouvier, também na Suíça, em Berna. A mãe de Pierre Durant é também presa por ocasião de uma assembleia e enviada para a cidadela de Montpellier; nada mais se sabe dela a não ser que morreu em 1726. (…) 1726 é marcado por novas prisões. O clero obteve dos poderes públicos um declaração terrível, que renova todas as disposições tomadas por Luís XIV em 1685 contra os assuntos protestantes, por ocasião da revogação do Édito de Nantes. As mulheres são enviadas para a Torre Constança. (…) Em 1728 chegam duas profetisas que demonstram o enorme papel da resistência feminina em St-Fortunat: Marie Vernes e Antoinette Gonin. A vida das igrejas protestantes manifesta-se no Deserto: batismos, casamentos. Marie Durant tinha 13 anos, a 28 de setembro de 1728, por ocasião da notícia divulgada em Boucher-de-Pranles que procuravam o pai. Étienne Durand tinha quase 80 anos quando foi preso, em fevereiro de 1729. Foi levado para o Forte de Brescou onde esteve durante mais de 14 anos. Marie Durand ficou então só em Bouchet-de-Pranles. Durante este tempo, o irmão, pastor, continuou a sua vida espiritual ao serviço das igrejas do Deserto. Efetuou numerosas viagens missionárias e atos pastorais de casamentos e batismos em grande número. A 9 de abril de 1730, Lafare o comandante militar do Bas-Languedoc enviou para Aigues-Mortes nove mulheres que foram surpreendidas na assembleia de um pregador, Francois Roux. (…) O pastor Court, que se refugiara na Suíça, em Lausanne, indica num documento que Marie Durant se casou com 15 anos a 31 de Maio de 1730 (…) com Mathieu Serre mais velho do que ela. O casal foi preso a 14 de julho de 1730. II. A prisão de Marie Durand e a sua vida Na Torre Constança Marie foi presa na sua qualidade de “irmã de um ministro” (…) sob as ordens de La Devèze, que mandou que ela fosse conduzida à Torre e o seu marido ao Forte de Brescou, onde encontrou o seu sogro, Etienne Durand. (…) Charles Bost ordenou que “as prisioneiras fossem oficialmente reduzidas ao pão e à palha”. Isto é, pão para comer e palha para dormir. Em 1726, o comandante de Aigues-Mortes
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escreveu, para descrever a sua situação. “As dezasseis prisioneiras não têm palha nem enxerga por causa da humidade que faz com que tudo apodreça”. Para Marie Durant, a longa prova começa. Mas a sua fé é forte e sólida, e a sua piedade profunda. Durante 38 anos, nesta prisão, vai permanecer de pé e gravar a palavra “resistir” no parapeito central da sala superior. Sabemos que a sogra de Pierre Durand também foi aprisionada e encarcerada na Torre a 18 de março de 1731, enquanto a mulher de Pierre Durant chega a Lausanne com os filhos. Sabemos também que Marie Durant foi vítima de crises de paludismo na Torre, por causa do clima. Em 1728, Antoinette Gonin abjura da sua fé. Na terça-feira 12 de fevereiro de 1732, Pierre Durand é apanhado e conduzido para Tournan. Na sua última carta diz: “O meu caminho terminará em breve. Com a ajuda de Deus, dentro em pouco selarei o evangelho que tenho pregado (…)”. A 22 de abril de 1732, deu-se o julgamento. O intendente veio pessoalmente interrogá-lo. (…) Os padres católicos pressionam-nos para lhe arrancarem a abjuração no último momento. Ele respondeu-lhes: “tenho muito melhores razões do que todas as que alegam e elas levam-me a morrer com fé na verdadeira religião”. (…) O pastor Pierre Durant foi supliciado na esplanada de Montpellier a 22 de abril de 1732, perante uma grande multidão. Apesar do ruído dos tambores ele cantou o Salmo 23. Um relato diz-nos que perante esta firmeza, e esta coragem, podia concluir-se que ele tinha “o paraíso na sua alma, antes de lá entrar, estando cheio da luz do Santo Espírito, sendo um grande exemplo para todo o mundo”. De Bernage escreveu depois ao cardeal Fleury que Pierre Durant foi executado e que morreu “sem se arrepender”. Marie Durand, na Torre, soube com uma imensa emoção da morte triunfante do seu irmão, recusando a abjuração perante a Igreja romana. Para Marie Durand, a auréola do martírio brilha sobre a memória de um dos seus. Ele deverá, como nunca, permanecer na sua fé. O Languedoc foi, por outro, sacudido por esta morte gloriosa. “A morte de Pierre Durant inflamou o zelo”. É assim que quatro jovens pastores se levantam em Vivarais para tomar o lugar de Pierre Durant, em maio de 1733. (…) A 31 de dezembro de 1736, Marie Durant estabeleceu uma lista de nomes das suas companheiras. São vinte, das quais 16 chegadas depois de 1724. (…) No início de 1737, juntaram-se mais duas de Vivarais (…). A 3 de março foi Marie Vey-Gouret (…) e Isabeau Menet-Fioles, cada uma com uma criança. Esta última escreveu à sua irmã no outono de 1737: “Sinto-me grandemente honrada que Deus me ache digna de sofrer perseguição pelo Seu santo nome”. E acrescenta:
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“Fica certa de que nenhuma das ameaças do mundo seriam capazes de me fazer abandonar o depósito de fé. Tenho uma boa amiga, a menina Durand”. Em janeiro de 1738, a perseguição recomeça (…) “A Torre Constança é uma prisão para onde são enviadas aquelas que se pretende que pereçam pouco a pouco sem se dar por isso, sem sol, encerradas num túmulo, em frias trevas”.3 Sabemos que a 27 de março de 1740 são 31 as prisioneiras. (…) Neste período, as assembleias clandestinas realizam-se com sucesso no Languedoc. Frederico II faz então uma tentativa a favor dos prisioneiros junto do ministro dos Negócios Estrangeiros; o responsável responde “não” ao rei da Prússia, apresentando as detidas como mulheres hostis ao soberano. “Pode-se viver na impiedade, sem se expor à cólera do Príncipe, mas este não pode tolerar nenhum exercício público de uma religião que não seja a sua e o herético torna-se um rebelde”. É a apostasia ou o prolongamento, sem fim, da permanência na Torre. Uma grande parte das prisioneiras permaneceu fiel à fé bíblica. A 27 de junho de 1742 sete novas capturas nas Cevènes tiveram lugar durante uma assembleia (…). A perseguição desencadeou-se contra o protestantismo. 1745-1746 assiste à morte de três pastores (…). Na Torre, é o desgaste efetuado pelos anos, os atentados da doença, o espetáculo de pessoas que enfraquecem; mas Marie Durant está lá para reconfortar e encorajar, levando a mensagem bíblica. Ela envia a lista das prisioneiras a Paul Rabaut, que trabalha ativamente para a sua libertação. (…) elas são 25. Em junho de 1758 Rabaut redige uma petição ao Rei, pedindo a libertação de todas as prisioneiras. (…) III. A libertação de Marie Durand e o fim da sua vida em Bouchet-de-Pranles (…) Em março de 1761 são ainda 20 as prisioneiras enclausuradas vivas. (…) Desde a sua chegada, em março de 1766, Fitz James, o novo comandante militar do Languedoc, libertou duas detidas (…). A igreja de Nîmes enviou um socorro de 160 libras para as prisioneiras tendo Marie Durant acusado a receção ao diácono da igreja. (…) O Comité de apoio aos prisioneiros, de Amesterdão, enviou 500 libras para as detidas. A 26 de agosto de 1764, Marie Durand escreveu ainda a Paulo Rabaut que se tornou, cada vez mais, o seu confidente: “Em nome das entranhas da divina misericórdia, preste-nos todas os cuidados possíveis para nos arrancar do nosso sepulcro horrível”. (…) 3 Marie Durand, André Favre.
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Em abril de 1768, Marie Durant é por fim libertada, depois de 28 anos de detenção. Ela vai para Saint-Jean-du-Gard desde logo, antes de se dirigir para Bouchet-de-Pranles. Contudo, a 12 de setembro, cinco prisioneiras são ainda retidas na Torre. Depois, uma foi indultada, duas morreram e as duas últimas, Chassefière de 80 anos e Suzanne Pages, saíram na véspera de Natal. A Torre foi então encerrada! Uma das detidas, Marie Vey-Goutet, retirou-se, com Marie para Bouchet onde viveram um existência discreta na fé e na oração. Esta forma de descrição característica dos heróis. Os amigos de Genebra vieram em socorro das prisioneiras. Todas elas tinham falta de dinheiro. Marie Durand, em particular; a adversidade encarniçou-se contra a pobre mulher. Foi ajudada pelo Consistório de Amesterdão. Ela escreveu: “Basta-me assegurar-vos que a minha vida tem sido tecida de tribulações e de perseguições que me reduziram ao estado mais próximo da miséria. Tenho-me conservado sempre em silêncio porque o próprio Senhor o fez”. Em setembro de 1776, Deus arrancou-a das vicissitudes desta Terra. Marie Durand deu a sua contribuição para a liberdade de consciência, ao direito à diferença, ao direito ao protestantismo de existir. A fé da heroína sobreviveu, apesar dos sofrimentos. Até ao fim, permaneceu fiel. Durante 38 anos na Torre, exprimiu a resistência iluminada pela Luz do Alto, da confiança da espera. Ela incarna uma das figuras mais puras da fé protestante. O seu combate foi apenas para a glória e honra de Deus. (…)
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Roger Williams e a liberdade religiosa1 André Maurois2 A vida de Roger Williams é daquelas que honram a Humanidade. Que grandeza de alma, que nobreza de consciência tinha este homem para impor, em tempos de grande intolerância, as noções que são os fundamentos da Sociedades democráticas de hoje. O prestigiado escritor que é André Maurois evoca para nós, nalgumas páginas dignas do seu grande talento, esta bela figura que merece ser melhor conhecida. De todas as liberdades cívicas, a liberdade religiosa é uma das mais necessárias; nada mais penoso para o homem de que uma fé imposta pela força; nada pode ser mais tirânico quando os crentes são compelidos em nome de Deus. Os Estados Unidos gozam hoje, e estão entre os primeiros a gozar de uma total liberdade de consciência, mas bem poderia ser de outra forma. Os Puritanos que fundaram a colónia de Massachusetts, destinada a uma grande prosperidade, estavam longe de ser tolerantes. Eram aristocratas e teocratas; entendiam fundar um Estado autoritário em que a autoridade seria religiosa. Admitiam, a até mesmo desejavam, que os ministros do culto fossem também, os chefes do Estado. Tinham deixado a Inglaterra para fundar uma comunidade santa, onde lhes fosse permitido orar como entendiam; mas não tinham nenhuma vontade de conceder liberdade às outras seitas. Daí resultou uma tirania espiritual cujos aspetos temporais eram assaz duros. Os ministros puritanos formavam uma oligarquia à qual a autoridade da Bíblia dava um grande poder. Não se concedia o direito de participar nas deliberações políticas senão aos membros da Igreja. No fundo, tinham substituído a aristo1 Artigo publicado no nº 1 da revista C&L, 1948 (edição francesa). 2 André Maurois, escritor, é o pseudónimo de Émile Wilhelm Herzog, francês, de uma família de mercadores judeus alsacianos. Em 1938, entrou na Academia Francesa.
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cracia terrena, que governava a Inglaterra, por uma oligarquia de teólogos. Isso não agradava aos espíritos livres, dos quais, vários pensavam que o poder civil e o poder religioso deveriam estar absolutamente separados, que as autoridades civis não tivessem nenhuma autoridade sobre as consciências, e que um poder civil não se deve ocupar senão dos assuntos civis. Entre os dissidentes, nenhum estava mais convencido e nenhum exerceu uma ação mais duradoura do que Roger Williams. Este era um jovem inglês que tinha sido, na Câmara das Star Chamber, secretário do grande jurista Sir Edward Coke. Este tinha contribuído para lhe inspirar o respeito pela justiça e a liberdade, mas Williams tinha, também, sofrido a influência dos Batistas, que eram hostis a qualquer perseguição das minorias religiosas. “Nenhum homem” escreveu um deles em 1615, “deveria ser perseguido por causa da sua religião, seja ela verdadeira ou falsa, uma vez que se declare leal para com o seu Rei. Roger Williams foi para Boston em 1631, porque era perseguido por Laud, arcebispo de Cantuária, por causa das suas convicções puritanas. Ele encontrou os seus irmãos Puritanos instalados em Boston e Salem já há cerca de um ano, e foi recebido de braços abertos. Propuseram-lhe substituir um pastor que tinha voltado para Inglaterra. Mas logo que descobriu que a igreja de Boston não estava ainda separada da Igreja de Inglaterra, e que os seus chefes desejavam entregar aos magistrados civis, o direito de punir as ofensas contra os quatro primeiros mandamentos (isto é, contra a religião), declarou que o poder civil não tinha nenhum direito em matéria de consciência, o que espantou grandemente os Puritanos da Nova-Inglaterra, para quem a Bíblia era um código, e até mesmo o único. A Igreja de Salem, que se mantinha independente, aproveitou para dar uma lição à Igreja de Boston e chamou para si o jovem pastor. Este ensinava que todos os homens, sendo filhos de Deus, são iguais e irmãos; que uma carta real não dava nenhum direito sobre as terras que pertenciam, na realidade, aos Índios; que a Igreja e o Estado deviam estar separados, que limitar o direito de voto, em matéria civil, aos membros da Igreja seria como escolher um médico com base nas suas convicções religiosas, e, por fim, que toda a perseguição por causa da consciência “é, evidente e lamentavelmente contrária à doutrina de Jesus Cristo”. Em suma, ele rompia com a doutrina dos Puritanos de Boston e aproximava-se da dos Irmãos de Plymouth, bem mais tolerantes. Banido uma primeira vez por Salem, foi para Plymouth e evangelizou os Índios e fez, entre eles, muitos amigos. Chamado a Salem, foi definitivamente banido de Massachusetts por ordem do General Court, porque se recusava prestar um juramento de fidelidade que sancionava o direito dos magistrados a fazer respeitar, pela força, os quatro primeiros
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mandamentos. Em princípio, um banido deveria voltar para Inglaterra, mas Williams escolheu antes ir para os territórios ainda selvagens que estavam a sul da colónia de Plymouth e fundar, ele próprio, uma colónia. Foi aí que criou a cidade de Providence e, pouco a pouco, o Estado de Rhode Island. O nome Providence era um agradecimento a Deus pelo socorro recebido na aflição. Assim, um ato de intolerância, o banimento de Williams, tornou-se, para os Estados Unidos, a fonte de toda a tolerância. Porque este novo Estado concedia plena liberdade a cada um de crer o que quisesse, e mesmo o de não crer, de sorte que todas as consciências inquietas ali acorreram. Rapidamente a população se tornou tão numerosa que o governo de Massachusetts temendo a vingança de Williams, ofereceu-lhe um lugar no Conselho de Massachusetts. Naturalmente Williams recusou. A independência de Rhode Island era a chave das liberdades espirituais, mas ele jamais combateu Massachusetts, pagando bem por mal, ou mesmo intervindo para estabelecer a paz entre os Índios e a colónia de Massachusetts Bay. Nunca transigiu sobre princípios. Na sua colónia, ninguém podia ser privado de um emprego ou ser inelegível por causa das suas convicções religiosas. A sua pequena república tornou-se a admiração do mundo e o abrigo dos perseguidos de todas as seitas. Contrariamente aos que se passava em Boston, cada um era livre de ir, ou não ir à igreja ao domingo, de não pagar as taxas para o funcionamento da igreja, de se casar como entendesse. Roger Williams queria que a sua pequena comunidade se tornasse num modelo para todos os outros governos. E assim aconteceu. Apoiado pelo seu amigo Sir Henry Vane, obteve, em 1662, uma carta real que, depois da guerra da Independência, fez de Rhode Island um dos Estados da nova república. Se bem que esse Estado fosse pequeno pela sua superfície, exerceu uma importância capital sobre o futuro dos Estados Unidos e sobre a liberdade de consciência, porque foi a firmeza de Rhode Island que impôs a adjunção à Constituição americana de um Bill of Rights, que asseguram a tolerância religiosa e interditou ao Congresso o fazer alguma lei para estabelecer uma religião ou interditar o seu exercício. As crenças religiosas tornaram-se assim, como mais tarde diria Byron, uma questão que apenas diziam respeito ao Homem e o seu Criador. Este resultado capital, deveu-se de facto à energia de um homem: Roger Williams. Pode dizer-se que ele venceu primeiro pelo exemplo dado pela sua pequena colónia, depois pelos Estados Unidos, uma das maiores causas de infelicidade e perseguição que têm assombrado a vida da humanidade.
Oração1 Alexandre Soljenitsyne Como é fácil conviver contigo Senhor meu Deus! Como fácil é acreditar em Ti! Quando a minha mente vacila, e sou atormentado pela dúvida, ou quando a minha mente acorda, quando os mais inteligentes nada veem além desta noite e não sabem o que deverão fazer amanhã É então, Senhor, que me envias a clara certeza de que existes e que cuidarás que todos os caminhos do Bem estejam livres! No auge da fama terrena contemplo, maravilhado, o caminho sem esperança que me trouxe aqui, de sorte que eu mesmo tenho podido transmitir amplamente entre os homens, o reflexo da Tua glória! Seja qual for o tempo necessário és Tu que me darás os meios. E quando eu falhar em fazê-lo, Tu confiarás essa tarefa a outros.
1 Traduzido de um texto autógrafo no verso de uma imagem dada a um amigo.
“Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união!” (Salmo 133) Gala Galaction1 Eis um grito de amor de um católico ortodoxo para os seus irmãos, para todos os seus irmãos. Para além das leis mesquinhas e de exclusivismos rigorosos que têm, há tanto tempo, acendido as fogueiras e ensanguentado as prisões, o verdadeiro cristão fiel à palavra do Mestre apela à união de todos os homens e à liberdade de todas as consciências. É ele o fiel intérprete da grande voz do Evangelho. É possível que a liberdade religiosa, ou pelo menos a tolerância religiosa, tenha encontrado a sua origem no espírito e na lei de Roma, mas para nós que gozamos dela, parece existir desde sempre e dificilmente imaginamos o que era o mundo no tempo das perseguições religiosas. Para mim, a liberdade religiosa traduz-se na faculdade de adorar Deus, segundo a lei dos meus pais e a obrigação de respeitar o meu próximo que serve o seu próprio deus seguindo os preceitos dos seus antepassados. Esta enunciação simplista, esta evidência teórica encontra-se, contudo, perante verdadeiros obstáculos e encontra algumas descriminações. Pode aquele que está intimamente convencido de que a sua fé é a única verdadeira, a única razoável, estar tranquilo junto dos seus semelhantes que professam um outro credo? Poderá ele guardar para si esta ebulição de convicções, pronta a expandir-se como a lava de uma cratera em erupção? Poderá ele observar, perante os pagãos de África, as regras da tolerância religiosa, se chega da Europa com o coração cheio de Jesus Cristo e dos ensinos da Bíblia? É evidentemente muito difícil crer com ardor, confessar a sua fé numa Igreja com zelo e permanecer impassível perante as crenças de uma outra tendência. E, contudo, não se pode conceber a impossibilidade de exprimir livremente a sua fé, onde quer que seja e a quem quer que seja! 1 Gala Galaction é o pseudónimo de Grégoire Picuslescu. Foi padre ortodoxo, professor de teologia e o tradutor da Bíblia em língua romena.
“Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união!”
Naturalmente, a intolerância religiosa não é apenas isso, mas todo o homem sincero colocado perante este dilema procurará formas superiores de acesso às grandes virtudes que são as únicas capazes de manter o respeito pelas crenças religiosas de outrem. Estas virtudes, na minha opinião, não se podem encontrar a não ser no capítulo 13 da primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios: “O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará; porque, em parte, conhecemos e, em parte, profetizamos. Mas, quando vier o que é perfeito, então, o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque, agora, vemos por espelho em enigma; mas, então, veremos face a face; agora, conheço em parte, mas, então, conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade, estas três; mas a maior destas é a caridade”. (I Coríntios 13: 8-13) Eis a virtude divina, eis o freio supremo para a nossa intolerância confessional e o entusiasmo impetuoso do nosso proselitismo. Estejamos convencidos, como S. Paulo estava, de que as profecias encontrarão o seu fim e de que a nossa ciência teológica desaparecerá. Sejamos persuadidos, como ele, de que os nossos conhecimentos atuais embora concretizados numa solene profissão e fé, são ainda fragmentados. Quando vier o Dia do Julgamento Final, tudo o que nós cremos e confessamos hoje será muito pouco. Vemos hoje como num espelho, indiretamente, mas nesse dia veremos face a face. Mas para atingir os altos cumes, é necessário que possuamos esta virtude do grande Apóstolo: a caridade. A caridade prevalece sobre tudo. “Amai-vos uns aos outros. Nisto conhecerão que sois Meus discípulos se vos amardes uns aos outros”. ( João 13:35) 1947 anos depois da morte de Cristo, o mundo crente encontra-se dividido. Há Ortodoxos, Católicos Romanos, Protestantes, Luteranos, Calvinistas, para falar apenas das principais tendências. Somos filhos de um único par e, contudo, viemos ao mundo, divididos pelas nossas Igrejas! De quem é a culpa? Quem suportará o peso desta divisão da Igreja que no passado era Una Santa, Universal e Apostólica? Será vão, da nossa parte, tentar resolver este problema. Mas poderíamos minimizar as desastrosas consequências, reconciliando-nos segundo os princípios de S. Paulo e com a convicção de que no Dia do Juízo Final seremos libertos do fardo da nossa ignorância atual, porque então compreenderemos tudo.
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Mas, para isso, é necessário preencher uma condição: crer e confessar “que Ele virá em toda a Sua glória, para julgar os vivos e os mortos e que o Seu reino não terá fim, porque creio na ressurreição dos mortos e na vida eterna” (símbolo da fé). É em torno destes três grandes princípios que se devem agrupar todos aqueles que se dizem cristãos e que desejam permanecer unidos: a volta de Cristo, o julgamento final, a vida eterna. Já anteriormente escrevi isto sobre a ortodoxia da minha Igreja greco-oriental: “A ortodoxia é a feliz reunião de Jesus-Eucaristia com todos aqueles que Ele resgatou com o Seu sangue: os santos, os mártires, todos os heróis da Santa Igreja, os nossos intercessores, os santos anjos e todos os justos mortos: os nossos pais e os nossos irmãos, na esperança da ressurreição”. É evidentemente aqui que se julga o nosso cristianismo, o dos ortodoxos, dos católicos-romanos e dos protestantes de todas as variantes. “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens. Mas, de facto, Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem”. (I Coríntios 15:19,20) São Paulo afirma que a justiça é mais importante do que a fé e a esperança. Sendo caridosos, é normal que nos suportemos uns aos outros e que limitemos o nosso zelo no que diz respeito às convicções religiosas diferentes das nossas. Devemos pensar que esta tolerância terá um fim porque, no Dia do Julgamento Final, os nossos olhos se abrirão e compreenderemos muitas coisas que hoje nos parecem incompreensíveis. A fé na promessa do Senhor deve ser ultima ratio da nossa conduta para com aqueles que pertencem a Igrejas estrangeiras: Eis que venho sem demora e o Meu galardão está comigo para dar a cada um segundo as suas obras”. (Apocalipse 22:12) “O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; mas é longânimo para convosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos venham a arrepender-se. Mas o Dia do Senhor virá como o ladrão de noite, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra e as obras que nela há se queimarão” (II Pedro 3:9, 10). “Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça” (II Pedro 3:13). É-nos impossível explicar porque nos tornámos tão diferentes uns dos outros. Porquê, possuindo as mesmas Escrituras, as interpretamos tão diversamente e as praticamos em religiões diferentes? E, contudo, parece-me que o sinal de reconhecimento pertencendo a todos aqueles que creem na divindade da pessoa de Jesus Cristo permanece hoje, amanhã, como sempre: “MARANATA! O Senhor vem!”
“Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união!”
Ao ler e reler as epístolas do apóstolo Paulo, a sua parábola com os membros do corpo humano tal como se encontra no capítulo 12 da primeira epístola aos Coríntios, impõe-se-nos, até nos obcecar: aqui, ele trata da diversidade dos dons do Espírito Santo, cuja repartição é feita de tal maneira que cada um de nós, membro da Igreja, serve o Santo Espírito com distintas aptidões, segundo Ele no-las concedeu. A um, com efeito, a palavra de sabedoria é dada pelo Espírito; a um outro, o discurso da ciência, segundo o mesmo Espírito, a um outro a fé, àquele outro o dom de realizar milagres, o dom de profecia (I Coríntios 12:8-10). De mesma forma, com efeito, como o corpo é um todo tendo diversos membros e que, por outro lado, todos os membros do corpo, se bem que sejam muitos, formam um só corpo, assim é com Cristo (I Coríntios 12:1). “O certo é que há muitos membros, mas um só corpo. Não podem os olhos dizer à mão: Não precisamos de ti; nem ainda a cabeça, aos pés: Não preciso de vós. Pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais fracos são necessários; Ora, vós sois corpo de Cristo; e, individualmente, membros desse corpo” (I Coríntios 12:20-22, 27). Podemos nós permitir-nos aplicar esta parábola à nossa situação atual e acreditar que, tão diversos e tão numerosos que somos, continuamos, contudo, não um caos cristão mas um corpo harmonioso e sagrado de Jesus Cristo? Se a Igreja Ortodoxa não existisse onde estaria a sua sábia discriminação entre o que devemos dar a Deus e o que é de César? Se a Igreja Católica Romana viesse a faltar, onde encontraríamos a sua admirável organização e os abundantes frutos da sua Caridade? Se o protestantismo não tivesse feito a sua aparição, onde estaria a magnífica ciência bíblica e as investigações gigantescas dedicadas às Santas Escrituras? Aprofundemos o sentido da parábola de S. Paulo e progridamos na nossa caridade interconfessional. Assim, talvez os mais jovens dentre nós – os últimos visionários, os últimos apóstolos – progredirão na verdade e na proclamação da mensagem. Perante isto, não me embaraço por amar os adventistas e o ardor da sua esperança: “Vem Senhor Jesus” (Apocalipse 22:20).
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Um apelo solene1 João Paulo II O acontecimento que representa o trigésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem oferece à Santa Sé uma ocasião oportuna para proclamar, uma vez mais, à intensão dos povos e das nações, o seu interesse constante e a sua fervorosa solicitude pelos direitos fundamentais do Homem em que encontramos a expressão naquilo que é claramente ensinado pela própria mensagem evangélica. É neste pensamento que desejo saudar-vos, Sr. Secretário-Geral e, por seu intermédio, o presidente e os membros da Assembleia Geral das Nações Unidas que se reuniram para comemorar este aniversário. Desejo exprimir a todos vós o meu forte empenho no que diz respeito ao “envolvimento permanente da Organização das Nações Unidas com o propósito de promover de uma forma cada vez mais evidente, mais autorizada e mais efetiva, o respeito pelos direitos fundamentais do Homem”.2 No decurso destes trinta anos, foram percorridas etapas significativas e feitos esforços notáveis para criar e apoiar os meios jurídicos previstos para proteger os ideais expressos nesta Declaração. Há dois anos, foram implementadas a Convenção Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e a Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Com isso, as Nações Unidas deram um passo sensível e tornaram efetivo um dos princípios fundamentais que tinham adotado como verdadeira base da Organização: a saber, a instituição de meios jurídicos com força de lei para promover os direitos dos indivíduos e para proteger as suas liberdades fundamentais. Seguramente, um objetivo desejável seria que um número crescente de Estados adote estas Convenções de maneira a que o conteúdo da Declaração Universal possa tornar-se cada vez mais operacional no mundo. Assim, a Declaração encontraria um maior eco, como a expressão espalhada por todo o lado, da firme 1 Mensagem do papa ao secretário-geral das Nações Unidas, Kurt Waldheim, por ocasião do XXXº aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O discurso inteiro pode ser consultado em http://www.clerus.org/clerus/dati/2002-02/01-6/Ens78_02.htm, IV.MESSAGES-POUR LE XXXe ANNIVERSAIRE DE LA DECLARATION UNIVERSELLE DES DROITS DE L’HOMME. 2 Paulo VI, Mensagem para o XXVº aniversário da Declaração dos Direitos do Homem, 10 de dezembro de 1973, AAS65 1973, p. 674. Consultar em http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/ messages/pont-messages/documents/hf_p-vi_mess_19731210_diritti-uomo_fr-html
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vontade de promover, com as garantias legais, os direitos dos homens e das mulheres sem discriminação de raça, de sexo, de língua ou de religião. Seria de notar que a Santa Sé – segundo a lógica da sua própria identidade e a diferentes níveis – tem procurado sempre uma fiel colaboração com as Nações Unidas em todas as suas iniciativas suscetíveis de fazer progredir esta tarefa nobre, mas difícil. A Santa Sé tem sempre apreciado, louvado e apoiado os esforços desenvolvidos pelas Nações Unidas para garantir, de uma forma sempre mais efetiva, a plena e justa proteção dos direitos fundamentais e das liberdades da pessoa humana. Se a consideração dos trinta anos decorridos nos dá razões para nos mostrarmos verdadeiramente satisfeitos com os numerosos progressos registados neste domínio, não podemos, no entanto, ignorar que o mundo no qual vivemos hoje, apresenta demasiados exemplos de situações de injustiça e de opressão. Forçoso nos é constatar que existe, aparentemente, uma crescente divergência entra as declarações significativas das Nações Unidas e o crescimento, por vezes massivo, das violações dos direitos humanos em todas as áreas da sociedade e do mundo. Isto não pode senão entristecer-nos e deixar em nós um sentimento de insatisfação quanto ao desenrolar atual dos acontecimentos. Quem poderá negar que hoje pessoas individuais e poderes civis violam impunemente os direitos fundamentais da pessoa humana: direitos tais como o direito ao nascimento, o direito à vida, o direito a uma procriação responsável, o direito ao trabalho, à paz, à liberdade e à justiça social, o direito a participar nas decisões que dizem respeito aos povos e às nações? E que dizer das diferentes formas de violência coletiva como a discriminação racial dirigida contra indivíduos e grupos, o uso da tortura física e psicológica perpetrada contra prisioneiros ou opositores políticos? Esta lista alongar-se-ia se dirigirmos o nosso olhar para os exemplos de sequestro de pessoas por razões políticas e se considerarmos os atos de aproveitamento para um benefício material, atos que ferem tão dramaticamente a vida familiar e as estruturas sociais. Num mundo tal como nós o descobrimos hoje, que critérios podemos utilizar para ver proteger os direitos de todas as pessoas? Que base podemos nós oferecer como terreno sobre o qual os direitos individuais e sociais possam crescer? Indiscutivelmente esta base é a dignidade da pessoa humana. O papa João XXIII explicou isso na Pacem in Terris (nº9): “Qualquer associação dos homens na sociedade bem ordenada e fecunda exige a aceitação de um princípio fundamental: que cada indivíduo é verdadeiramente uma pessoa. Como tal, tem direitos e deveres que decorrem, conjuntamente, da sua natureza como uma consequência direta. Estes direitos e estes deveres são universais e invioláveis e, por consequência, inalienáveis”.
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No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem é semelhante quando diz: “O reconhecimento da dignidade da pessoa humana e da igualdade dos direitos inalienáveis de todos os membros da família humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. É nesta dignidade de pessoa que os direitos do Homem encontram a sua fonte imediata. E é o respeito por esta dignidade que dá origem à proteção destes direitos. A pessoa humana, mesmo quando se engana, conserva sempre a sua dignidade intrínseca e não perde, jamais, esta dignidade pessoal. (Pacem in Terris, 158) Para os crentes, é permitindo que Deus fale ao homem que se pode contribuir mais verdadeiramente para o fortalecimento da consciência que cada ser humano tem do seu destino e para a consciência de que todos os direitos derivam da dignidade da pessoa que está firmemente enraizada em Deus Queria agora falar destes direitos, aqueles mesmos que são sancionados pela Declaração, e em particular de um entre eles que ocupa, sem qualquer dúvida, um lugar central: o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. (ver art. 18.) Permitam-me chamar a atenção da Assembleia para a importância e para a gravidade de uma questão que, ainda hoje, é viva e dolorosamente sentida. Desejo falar da questão da liberdade religiosa que é a base de todas as outras liberdades e que está inseparavelmente ligada a todas elas em razão precisamente, desta dignidade que é a pessoa humana. A verdadeira liberdade é a característica predominante da humanidade: é a fonte donde deriva a dignidade humana; é “o sinal excecional da imagem de Deus no Homem” (Gaudium et Spes, 17). Ela é-nos oferecida e conferida como a nossa própria missão. Os homens e as mulheres de hoje têm uma consciência maior da dimensão social da vida e daí resulta que se têm tornado cada vez mais sensíveis ao princípio da liberdade de pensamento, de consciência e de religião. No entanto, com tristeza e um desgosto profundamente sentido, temos também de admitir que, infelizmente, segundo os termos do Vaticano II na declaração sobre a liberdade religiosa “há regimes onde, se bem que que a liberdade de culto religioso seja reconhecido na Constituição, os próprios poderes públicos se esforçam por desviar os cidadãos de professar a religião e por tornar a vida das comunidades religiosas difícil e precária” (Dignitatis Humanae, 15.) A Igreja esforça-se para ser a intérprete da sede de dignidade dos homens e das mulheres modernas. Também, gostaria de vos pedir solenemente que, por todos e da parte de todos, a liberdade religiosa seja respeitada para cada pessoa e para todos os povos. Sou forçado a fazer um apelo solene pela convicção profunda que, mesmo independentemente do desejo de servir a Deus, o bem comum
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da própria sociedade “poderia aproveitar os bens da justiça e da paz que deriva da fidelidade dos Homens para com Deus e a Sua santa vontade”. (Idem, 6) A livre prática da religião é, desde logo, tanto dos indivíduos como dos governos. Por conseguinte, a obrigação de respeitar a liberdade religiosa incumbe a todos, simultaneamente aos cidadãos privados e à autoridade civil. Porque, então, há atos de repressão e de discriminação exercidos contra grande número de cidadãos que têm sofrido toda a sorte de opressão, e mesmo a morte, para salvaguardar os seus valores espirituais, enquanto, a despeito de tudo isso, jamais deixaram de cooperar em tudo em que podiam servir para o verdadeiro progresso civil e social dos seus países? O meu antecessor Paulo VI salientou esta questão: “Pode um Estado pedir com resultados uma total confiança e uma plena colaboração enquanto numa espécie de “confessionalismo negativo se proclama ateu e declarando que respeita, em certa medida, a fé de uma parte dos seus cidadãos?”3 A justiça, a sabedoria e o realismo exigem que as opiniões destrutivas do secularismo sejam ultrapassadas, em particular, à redução errónea do facto religioso a uma esfera puramente privada. Cada pessoa deve ter a possibilidade, no contexto da nossa vida comum, de professar a sua fé e a sua crença, só ou com outros, em privado e em público. Um último ponto merece atenção. Ao mesmo tempo que se insiste – e com razão – sobre a reivindicação dos direitos do Homem, não se deveria perder de vista as obrigações e os deveres que estão associados a estes direitos. Cada indivíduo tem a obrigação de exercer estes direitos fundamentais de uma forma responsável e moralmente justificada. Cada homem e cada mulher tem o dever de respeitar nos outros os direitos que ele, ou ela, reclama para si. Isto é, todos devemos contribuir para a construção de uma sociedade que torne possível e praticável o gozo dos direitos e o cumprimento dos deveres inerentes a esses direitos. Para concluir esta mensagem, desejo estender, a si, senhor Secretário-Geral, e a todos aqueles que, seja em medida for, estão ao serviço da vossa Organização, os meus votos mais cordiais, na esperança de que as Nações Unidas possam prosseguir sem desfalecimento, na promoção, em todo o lugar, da defesa da pessoa humana e da sua dignidade no espírito da Declaração Universal. Vaticano, 8 de dezembro de 1978. 3 Paulo VI, discurso perante o Corpo Diplomático, 14 de janeiro de 1978, AAS 70, 1978, p. 170. Pode ser consultado em http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/speeches/1978/january/document/ hf_p-vi_spe_19780114_corpo-diplomatico_fr.html.
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Liberdade1 Hans Küng2 A liberdade é, ao mesmo tempo, um dom e um dever para a Igreja. Em qualquer circunstância, a Igreja pode e deve ser uma comunidade de pessoas livres. Se ela deseja servir a causa de Jesus Cristo, não pode, jamais, ser uma instituição despótica ou uma grande Inquisição. Para esta liberdade, os seus membros devem ser livres; livres da escravatura que representa a letra da lei, o peso da falta, a angústia da morte; livres para a vida, para o sentimento, para o serviço, para o amor. Devem ser pessoas que precisam também de se submeter apenas a Deus e, por conseguinte, não às autoridades sem rosto ou a outros homens. Onde a liberdade está ausente, o Espírito do Senhor também não se encontra. Se bem que ela se deva realizar na existência do indivíduo, esta liberdade não desempenha no seio da Igreja, um simples papel moral, a maior parte das vezes destinado aos outros. Ela deve exercer-se na formação da comunidade eclesial, nas suas instituições e estruturas, de forma a que estas não apresentem, em caso algum, um caráter opressivo ou repressivo. Ninguém, dentro da Igreja, tem o direito de manipular, de empolar, menos ainda suprimir a liberdade fundamental dos filhos de Deus, seja aberta, ou insidiosamente; ninguém tem o direito de instituir no reino de Deus, o domínio do Homem sobre o Homem. Precisamente na Igreja, esta liberdade deve manifestar-se pela liberdade da palavras (franqueza) e através da liberdade efetiva de agir ou de renunciar (liberdade de movimento, liberdade no sentido mais amplo do termo), mas também e, ao mesmo tempo, nas instituições e constituições eclesiais: a Igreja deve ser o próprio local da liberdade e, ao mesmo tempo, a defensora da liberdade no mundo. Creio no Sol, mesmo que ele não brilhe! Creio no amor, mesmo quando não o descubro, Creio em Deus mesmo que não O veja. 1 “Être Chrétien” (Le Seuil). 2 Teólogo suíço, escritor, professor e diretor da Instituto de pesquisas ecuménicas na Universidade de Tübingen até 1996. Em 2001 recebeu o prémio Conscience Planétaire devido às suas ações favorecendo o diálogo inter-religioso em todo o mundo.
A Liberdade Religiosa – O que ela não é1 Beverly B. Beach2 O caminho da liberdade religiosa está semeado de numerosas armadilhas ideológicas e, como a maior parte das pessoas quer orientar-se nesta via, é importante que se conheçam algumas destas ciladas filosóficas. A liberdade religiosa é um direito humano tão fundamental e sagrado que devemos fazer um esforço para o captar com a nossa inteligência. Por outro lado, é preciso ter um espírito aberto, porque uma alteração de contexto pode, muitas vezes, arrastar consigo modificações na forma de encarar e de abordar a liberdade religiosa. É necessário, portanto, que façamos uma distinção tão clara quanto possível entre os princípios ideológicos fundamentais e os elementos transitórios condicionados pela geografia, pelas constituições ou pela História. Além disso, incumbe a todos os que estão empenhados no estudo dos princípios permanentes da liberdade religiosa deixar de lado os preconceitos e as preferências pessoais. Algumas conceções falsas sobre a liberdade religiosa provocam oposição. Para saber melhor o que é a liberdade religiosa, é útil saber aquilo que ela não é. Podemos distinguir sete erros fundamentais que provêm todos, pelo menos em certa medida, de um mal-entendido fundamental: este princípio implicaria a dispensa de praticar os deveres morais e libertaria o homem dos vínculos e das cadeias da responsabilidade religiosa. I. Não é a liberdade em relação a Deus, apesar do que possam pensar numerosos materialistas e ateus. A História mostra-nos que no século XIX, quando o liberalismo político estava na moda – principalmente na sociedade europeia – era frequente identificar o conceito de liberdade religiosa com materialismo, agnosticismo, livre pensamento e rejeição da soberania dum Deus transcendente. Segundo esta escola, o indivíduo devia libertar-se da tirania religiosa de um Deus criado pelo homem. A liberdade religiosa torna-se desta 1 Estudo publicado na revista C&L nº 1, 1971 (Edição francesa). 2 Berverly Bert Beach é um antigo secretário-geral da IRLA (International Religious Liberty Association, USA).
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forma sinónimo da libertação da obediência a um Ser supremo, exigente mas imaginário, e de independência em relação a Ele. Muito pelo contrário, a liberdade religiosa implica independência em relação aos homens, sob o ponto de vista religioso, a fim de assegurar mais eficazmente a dependência em relação a Deus. Ela tem em vista libertar-nos da intromissão de agentes humanos ou da intervenção do governo, precisamente com o objetivo de garantir o melhor possível o livre reconhecimento, por parte do homem, da soberania divina. Este princípio está de acordo com o ponto de vista bíblico: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 4:19). O cristão crê firmemente que tem um dever moral inalienável para com um Deus de supremo amor. II. Não é liberdade em relação aos homens. Certos libertinos gostariam de a interpretar como sendo a total libertação de qualquer controlo exterior exercido pela família, pela escola, pelo governo ou pela sociedade em geral, como se esta liberdade não implicasse nenhuma responsabilidade para com a sociedade. Mesmo no delicado domínio da liberdade religiosa, um cidadão honesto nunca advogará a favor de uma independência ilimitada e absoluta. “Ninguém vive para si mesmo e ninguém morre para si mesmo.” Esta declaração reveste-se de uma importância muito prática. Todos nós formamos realmente uma parte da humanidade. É evidente que o exercício da liberdade religiosa exige normas moderadoras. Ninguém vive num isolamento total: as nossas ações afetam outras pessoas. Os direitos que reclamamos podem chocar-se com os que o nosso irmão defende ciosamente. A liberdade religiosa tem dois aspetos: primeiro, a liberdade de crer e de ter opiniões religiosas; segundo, a liberdade de agir dentro dos limites da sociedade segundo as nossas crenças. A liberdade de opinião é, em si mesma, absoluta, porque não tem nenhumas ou poucas consequências sociais, mas a liberdade de manifestar as suas crenças por meio das ações penetra no contexto social. São bem raros aqueles que recusariam às autoridades o direito de intervir para proteger a sociedade dos ritos ou das práticas que põem a moral em perigo ou violam os direitos dos outros. As minorias não têm unicamente direitos, têm também responsabilidades para com os seus semelhantes. Prover medidas generosas para com a liberdade religiosa das minorias é o que constitui a própria essência da elevação moral dum país. Todavia estes direitos não existem num vazio social e não poderiam ser exercidos corretamente fora dos limites dos direitos da maioria e do bem-estar dos outros. Honra seja prestada às sociedades capazes de encontrar um equilíbrio são e dinâmico entre os direitos e a consciência do indivíduo e os direitos e o bem-estar de todos.
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III. Não é a Liberdade em relação a si mesmo. Alguns gostariam de ver na liberdade religiosa o direito individual absoluto de crer exatamente segundo a sua própria escolha. Se a liberdade religiosa implica sem reservas o direito civil ou legal de crer segundo o desejo pessoal do indivíduo, ela não significa, contudo, a liberdade para consigo mesmo quanto à obrigação moral essencial de obedecer à sua consciência. O homem recebe de Deus uma responsabilidade relativamente à sua dignidade humana. Ele deve, portanto, esforçar-se por formar a sua consciência conforme aquilo que é a retidão e conformar-se com os ditames desta. A Bíblia declara: “Tudo o que não é de fé é pecado” (Romanos 14:23). A verdadeira liberdade religiosa consiste na fidelidade para consigo mesmo. E um grave abuso, não só do dever moral para consigo mesmo mas também do direito civil, servir-se alguém da liberdade de consciência, garantida constitucionalmente, para violar essa mesma consciência. Como salientou o dr. Carrillo de Albornoz, se a autoridade da sociedade ou do governo tivesse a possibilidade de provar, com uma certeza absoluta, a má-fé de uma pessoa e a violação da sua consciência, o indivíduo em questão não poderia, de modo algum, reivindicar, na sociedade, o direito à liberdade religiosa. Mas, evidentemente, isso é impossível, e é justamente por essa razão que a liberdade de consciência constitui um direito tão essencial para o homem. Só Deus conhece os corações e nenhum tribunal humano pode julgar as consciências. IV. Não é a liberdade em relação à autoridade da Igreja. Algumas pessoas mal informadas consideram a liberdade religiosa como a independência total em relação à religião organizada e perante a autoridade ou o controlo da Igreja. Afirmam que o verdadeiro princípio de liberdade consiste em sacudir o “jugo” eclesiástico. O capricho do indivíduo deve ser primordial. Certos marxistas encorajam este género de liberdade religiosa, não tanto para exaltar a liberdade pessoal de ação, como para substituir, pela autoridade todo-poderosa do Estado, o poder pretensamente opressor da Igreja. É evidente que abundam provas históricas de abusos flagrantes do poder eclesiástico. Pressão clerical, pressão física e psicológica, chantagem, sanções eclesiásticas e denúncias secretas têm subjugado o espírito humano, corrompido o ministério cristão e deformado a imagem da Igreja. Certamente que a coação não tem lugar numa sociedade religiosa. Se, por um lado, a resposta do homem ao apelo divino e a sua busca da verdade devem ser livres, por outro lado é necessária uma forma de autoridade se se quiser ter uma ecclesia que consiga a coesão entre aqueles que buscam a Deus. É essencial uma certa disciplina eclesiástica
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interna, mas esta autoridade deveria impelir a uma ação criadora e apoiar-se numa visão construtiva, em vez de ser restritiva na prescrição de medidas de segurança e de ter um fundamento negativo. V. Não é a liberdade em relação ao controlo do Estado. Aqueles que defendem este conceito de liberdade religiosa advogam em favor de uma total independência para com o governo. Veem um imenso muro separando a Igreja de todo o controlo estatal e recusam-se a reconhecer a legítima autoridade governativa. Contudo a epístola aos Romanos mostra muito claramente que “as autoridades que existem foram instituídas por Deus” e que, desta forma, um governo legal é uma “instituição divina”. O Estado tem, portanto, um poder legítimo, mesmo em certas questões relativas ao funcionamento da Igreja. Ele tem o direito e o dever de vigiar a sociedade e de promover o bem-estar dos homens, mantendo a ordem pública e a moralidade, e salvaguardando uma justiça imparcial para com todos os cidadãos. A verdadeira liberdade religiosa exige que o Estado não tenha ingerência nas convicções religiosas dos seus cidadãos: É um domínio fechado (que Carrillo de Albornoz denomina “liberdade religiosa pura”) onde ele é incompetente. Por outro lado, as atividades religiosas e a jurisdição do Estado têm, em muitos casos, implicações mútuas. Se por vezes a separação entre a Igreja e o Estado deve ser inviolável, pode, noutras ocasiões, ser permeável e permitir uma colaboração legítima sem excluir mesmo regulamentos governamentais. Frequentemente, certas atividades da Igreja não podem, de forma alguma, ser separadas dos direitos e dos empreendimentos que dependem dos poderes governamentais. Basta recordar as escolas pertencentes a confissões religiosas, as leis sobre a educação, os regulamentos para a construção de edifícios, as operações financeiras da Igreja e todas as leis do governo que lhes dizem respeito – para citar apenas algumas das esferas de influência comum em que uma separação absoluta é impossível. É evidente que a autoridade pública, no interesse da justiça, da harmonia e do bem-estar geral, deve poder regulamentar ou limitar certas ações cujos motivos são religiosos. Mas, como disse Philip Wogaman: “O Estado só pode emitir regulamentos sobre as ações, nunca sobre a comunicação de um ponto de vista”. (Protestant Faith and Religious Liberty, pág. 190) Em certos casos históricos lamentáveis a liberdade religiosa foi usada como capa, bastante cómoda, para camuflar o punhal da subversão e da infidelidade ou para dissimular a resistência à autoridade legítima do Estado. O civismo não se opõe à lealdade para com Deus.
A Liberdade Religiosa · O que ela não é
VI. Não é a liberdade para alimentar animosidade e lutas religiosas. Em nome da liberdade religiosa, muitos religiosos militantes atacam, difamam e acusam falsamente outras confissões. Ela implica absolutamente o direito de crer, de pregar, de ensinar e de viver segundo as suas convicções e a sua mensagem, sem nenhuma coação exterior. Não apresenta desculpas para denegrir e atacar levianamente outras Igrejas e os seus adeptos. Não é uma arma para ser utilizada em pugnas de palavras, nem uma autoridade para criar divisões, rivalidades ou disputas. Também não consiste na arena de combates entre as várias confissões religiosas. Vivemos na época do ecumenismo, quer o aprovemos ou não. O uso de métodos de persuasão falsos, egoístas, intimidantes, representa uma corrupção do testemunho religioso legítimo e é nada menos que um abuso moral da liberdade religiosa. Pelo contrário, esta é a condição sine qua non das relações humanas e interconfessionais pacíficas e sinceras. Os cristãos gostariam de condenar imediatamente toda a ação que aflore a desonestidade. Mas uma tal conduta depende quase sempre duma obrigação moral, e não é da competência do governo decidir se o testemunho de uma igreja é convincente ou não, salvo se os seus métodos de evangelização violam as normas legais não religiosas, tais como as leis relativas à difamação. VII. Não é a liberdade de ser indiferente ou cético. Os partidários desta maneira de ver têm a tendência de pensar que há pouca diferença entre aquilo em que se acredita e se se acredita ou não. Declaram que as convicções religiosas não têm importância e que as diferenças entre religiões são relativas. Alguns adversários da liberdade religiosa temem precisamente este processo de enferrujamento que provém da indiferença, ou o míldio do ceticismo. A verdade é que só Deus é absoluto. Só Ele transcende cada uma das suas manifestações. Não há lugar para o relativismo no que diz respeito à realidade divina que deveria ser proclamada por todas as doutrinas cristãs. Pode apreender-se esta realidade pelo amor salvador de Deus, de tal maneira que, por meio do novo nascimento e da conversão, os seus filhos vivam uma vida totalmente diversa. Trata-se neste caso de um imperativo categórico. Esta realidade viva não deixa lugar algum para a indiferença insípida nem para o ceticismo. Isto é um ponto muito importante. Certamente que a liberdade religiosa concede a cada um o direito de rejeitar completamente uma ou todas as religiões e mesmo o de ser indiferente em relação às convicções religiosas. Todavia, o objetivo deste princípio não é o de promover a apatia religiosa ou a irreligiosidade; pelo contrário: constitui a plataforma mais sólida sobre a qual o homem se pode apoiar na procura individual e coletiva da realidade fundamental e da identidade religiosa.
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CAPÍTULO
2 Liberdade, liberdade religiosa e tolerância – ou porque algumas tolerâncias religiosas são intoleráveis? Necessidade de uma educação sobre a liberdade religiosa
As relações interconfessionais: princípios de orientação e medidas práticas para uma coexistência harmoniosa E. James Vaughn1 Introdução Os crentes, em geral, pensam que praticar a sua religião os leva, finalmente, – tal como todo o mundo – a um lugar e uma forma de existência, melhor. Para o cristão, o judeu e o muçulmano, este lugar melhor é “o Céu”, local concreto, em sentido literal, onde os que aí habitarem não conhecerão mais nem a dor, nem o desgosto, nem a fome, nem o crime, nem o ódio, onde todos viverão na felicidade e harmonia eternas. O hindu, por sua vez, encontra este maravilhoso lugar no acesso ao moksha, que é o estado de libertação de todas as formas do mal, ao qual se acede após um número variável de reencarnações depois da morte. Quanto ao budista (com as variantes segundo o ramo do budismo que rege a prática do crente), é no acesso ao nirvana e/ou ao bodhi, local de despertar ou de iluminação (acesso conseguido depois de uma série de renascimentos em que a vontade do crente não desempenha nenhum papel), que reside este melhor lugar. A despeito do fim último da prática confessional, a religião tem sido, em todos os tempos, fonte de numerosas querelas, discórdias, violências e massacres, o que, em si mesmo, não tem nada de estranho porque as próprias doutrinas e ensinos da maior parte das confissões exige aos seus fiéis que adotem condutas que, aos olhos dos outros, parecem inconvenientes. Vejamos alguns exemplos: * Os cristãos creem que Jesus é a única via que leva à salvação. Que além disso os encarregou, em Mateus 28:19, 20, de ir instruir todas as nações: “Batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.”2 Segundo eles. É-lhes 1 Professor de Direito na Faculdade de Direito da Texas Tech University (Lubbock, Texas, Estados Unidos) e membro do grupo de especialistas da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. O autor agradece à sua antiga assistente de pesquisa Ibukun Adepoju da mesma Universidade da classe de 2013 desde então defensora pública do Condado de Lea (Novo México, Estados Unidos) pela sua colaboração no quadro deste projeto. 2 Mateus 28:19.
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ordenado ensinar todos os povos “a guardar todas as coisas que Eu vos tenho mandado; e eis que estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos.”3 À luz do Grande Mandato (apelo à missão), os cristãos devem praticar o que pregam e apresentar o Evangelho ao mundo inteiro. Com efeito, quem quer que se proclame cristão mas não pregue, não ensine, que Jesus é o único caminho que conduz ao Deus vivo e que não se pode atingir o Céu, ou a vida eterna, senão aceitando os ensinos da Bíblia, encontra-se rapidamente excluído da comunidade dos crentes de obediência cristã. * A crença cristã no Grande Mandato opõe o cristianismo ao Islão. Um verdadeiro fiel do Islão crê que para ser obediente a Alá, deve promover os ensinos do Corão e dos hadiths, incluindo as passagens que apresentam, como instrução explícita, o tratar severamente os descrentes, em particular, os cristãos e os judeus.4 Um discípulo do Islão que, ao negligenciar estas passagens, desobedece ao Corão e aos hadiths, pode, com razão, ser qualificado de hipócrita e de descrente. * Embora os cristãos e os muçulmanos se reclamem das suas missões sagradas de espalhar ou de defender a sua respetiva fé, por seu lado os fiéis engajados com o hinduísmo, o budismo, os rastafarianismo e todas as outras práticas religiosas têm o sentimento, com razão, de que a sua própria fé é a verdadeira. Ora, a prática destes “ismos” envolve práticas que quer cristãos quer muçulmanos devem opor-se se querem estar de acordo com a Bíblia ou o Corão. Podemos compreender à luz destas realidades, que a prática da religião não resulta na paz e na harmonia sobre o planeta. Elas são, contudo, precisamente esse dom de que precisamos na Terra e a religião constitui o melhor meio para atingir essa paz e harmonia. Este estudo proporá pistas tendo em vista atingir este objetivo. Está divido em cinco partes. Na segunda, que se segue a esta introdução, debruçar-nos-emos brevemente sobre o estado das relações interconfessionais mundiais, atualmente, e mostrar-nos-ão que a harmonia religiosa não existe atualmente sobre a Terra. A terceira parte tratará dos esforços realizados por três países – a Índia, Singapura e o Senegal – para conseguir a harmonia religiosa. A quarta proporá uma tentativa, em cinco etapas, destinada a realizar este objetivo. Em conclu3 Mateus 28:20. 4 Ver, por exemplo, o Corão Surata 9,30 e Surata 66,9; EL-BUKHARI, Les Traditions Islamiques, Volume 2, Título 56, Capítulo XCIV, Maisonneuve, Paris, 1977, p. 322; TABARI, Cronique de Abou Djafar Mohammed Ben Djari Ben Yezid Tabari, Volume 3, Maisonneuve e Larose, Paris, 1978, p. 7,8 e 174, 175.
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são, que será a quinta parte, confirmaremos que a humanidade jamais chegará à harmonia religiosa se todos os fiéis de todas as religiões não estiverem dispostos a conceder, a cada confissão, o mesmo grau de respeito que desejam para a sua. Até que este estado chegue, falar de harmonia religiosa será vão e inútil. I. O estado atual das relações interconfessionais: desconfiança e discordância. A despeito do indesmentível progresso realizado para conseguir a harmonia religiosa, temos vivido, ainda, a hora dos conflitos e das discórdias entre as religiões. Em 2013, os media assinalaram conflitos religiosos pelo menos em nove países: Birmânia, República Centro Africana, Egito, Iraque, Líbano, Nigéria, Paquistão, Filipinas e Síria.5 Além disso, a cadeia de rádio pública dos Estados Unidos, a National Public Radio (NPR), consagrou uma das suas últimas emissões de 2013 às tensões inter-religiosas em África e em particular aos afrontamentos entre cristãos e muçulmanos que fizeram numerosos mortos na Nigéria e na República Centro Africana.6 Enquanto a NPR dava a conhecer a brutalidade das querelas religiosas nesses dois países de África, a cadeia de televisão Euronews anunciava que os órgãos competentes da UE iam reunir-se em janeiro de 2014 para tratar do envio de unidades de manutenção da paz para a República Centro Africana. De facto, a 20 de janeiro de 2014, a UE indicou que ia enviar “centenas de soldados para ajudar a estabilizar a República Centro Africana”.7 Estas tropas juntaram-se aos 1600 soldados enviados pela França para travar os massacres entre milícias muçulmanas e cristãs na sua antiga colónia.8 A intervenção da UE não pôs fim à violência. A 20 de fevereiro, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lançou um apelo à comunidade internacional 5 Euronews, Religious Conflict, http://www.euronews.com/tag/religious-conflict/ (consultado a 4 de janeiro de 2014). 6 Ofeiba Quist-Arcton, “In Conflict-Torn Africa, Sénégal Shows a Way to Religious Harmony”. http://npr.org/2013/12/28/257822199/on-conflict (consultado a 4 de Janeiro de 2014. 7 Adrian Croft, “EU to Deploy 500 Troops in Central African Republic Following ‘Genocide’ Warning”, The Independent, 21 de Janeiro de 2014, http://www.independent.co.uk/news/world/africa/euto-deploy-500-troops-in-central-african-republic-after-genocide.warning-9073178.html (consultado a 21 de fevereiro de 2014). 8 Idem.
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para que fossem enviados 3000 soldados e polícias mais para esse país “para lutar contra uma violência sectária” até que seja lá colocada uma força da ONU de manutenção da paz”.9 Se a UE e a ONU têm a intensão de utilizar a força armada para impor a harmonia às fações combatentes da República Centro Africana, algumas nações quiseram conseguir esta harmonia à sua população através de disposições regulamentares e constitucionais. A nossa terceira parte trata dessas abordagens e dos seus resultados – ou da falta deles. II. Tentativas governamentais constitucionais, regulamentares e outras visando impor a harmonia religiosa Reconhecendo que a harmonia religiosa poderia ser fonte de formidáveis vantagens económicas e sociais para as suas populações, alguns países têm tentado a via legislativa para impor esse princípio. Em teoria é a Índia que está à cabeça deste movimento. A. O mandato constitucional da Índia em favor a harmonia religiosa O líder religioso tibetano no exílio, Dalai Lama, fez saber, publicamente, que na sua opinião, a Índia é um modelo de harmonia religiosa.10 Segundo ele, “A não-violência e a harmonia religiosa são os dois tesouros da Índia. Penso que as pessoas devem aprender com a Índia o que são a harmonia religiosa e a não-violência. Este país é um exemplo a seguir, em matéria de não-violência e harmonia religiosa”.11 Um outro observador, Abihav Singh, afirmou, por sua vez, que a Índia é uma muralha que protege a harmonia religiosa.12 Ele baseia a sua afirmação no 9 Michelle Nicholls, “UN Chief Wants 3000 More Troops for Central African Republic”. Reuters, 20 de fevereiro de 2014, http://www.reuters.com/article/2014/02/21/us.centralafrican-un-idUSBREA1J21R20140221 (consultado a 21 de fevereiro de 2014). 10 World Should Emulate India’s Religious Harmony and Non-Violence, Comunicado oficial do governo tibetano, 19 de fevereiro de 2011. 11 Idem. 12 Abihav Singh, Need for Religious Harmony in 21st Century, Religious Harmony Foundation, http:// www.religiousharmony.org/abhinav-singh-need-or-religious-harmony-in-21st-century (consultado a
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facto de que a Constituição indiana “proclama que a nação é uma república laica que deve defender o direito de todo o cidadão de praticar livremente o seu culto e de propagar a sua religião, ou a sua fé, seja ela qual for”.13 A História mostra que em 1976, a Índia emendou a sua Constituição para incluir uma declaração estabelecendo que esse país é uma nação secular.14 No entanto, o termo “secularismo” não tem, na Índia, o mesmo sentido que se lhe dá no Ocidente. Mais do que reproduzir o conceito ocidental de separação da Igreja e do Estado, a noção indiana de “secularismo” prevê que o Estado conceda igualdade de tratamento a todas as religiões. Contudo, o secularismo indiano implica a aceitação das regras religiosas que têm força obrigatória para o Estado e um apoio igual do Estado às diferentes religiões. As leis indianas relativas à natureza secular do Estado exigem, implicitamente, que este último e as suas instituições reconheçam e aceitem todas as religiões, que elas façam aplicar as regras religiosas no lugar das leis de origem parlamentar e que respeitem o pluralismo.15 Apesar da existência da emenda de 1976 à sua Constituição, a Índia é desde há alguns anos, um terreno fértil para as querelas religiosas. Os sikhs têm estado, muitas vezes, em conflito com os hindus, os hindus têm-se batido, frequentemente, com os muçulmanos e os nacionalistas hindus têm-se envolvido, muitas vezes, em violência com os cristãos. Num tal contexto, não se pode concluir que tão secular e tolerante em matéria religiosa, como possa ser, a Constituição indiana, tão vasta como seja o leque da representação religiosa no seio das diversas facetas da sociedade indiana – incluindo o aparelho do Estado – a Índia continua a conhecer acessos esporádicos, por vezes graves, de violência religiosa. Parece, portanto, que dar à harmonia religiosa todo o peso de uma disposição constitucional, não tem nada a ver com a verdadeira obtenção desta harmonia. B. Singapura: Declaração de harmonia religiosa e disposições legislativas. Como o seu homólogo indiano, o governo de Singapura tentou adotar uma lei relativa à harmonia religiosa, segundo duas formas. 1) a Declaração da harmonia religiosa e 2) a Lei sobre a manutenção da harmonia religiosa. Se bem 5 de janeiro de 2014). 13 Idem. 14 Governo indiano, The Constitution (Forty-Second Amendement) Act. 1976. 15 Christophe Jaffrelot, “A Skewed Secularism?” Hindustan Times, 15 de maio de 2011, http://www. sacw.net/article2081.html (consultado a 5 de janeiro de 2014).
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que esta última seja anterior à Declaração da harmonia religiosa, examinaremos em primeiro lugar a Declaração, principalmente porque se é possível fazer a história dos atentados à Lei sobre a manutenção da harmonia religiosa, não se pode fazer o mesmo quanto à Declaração. 1. A Declaração da harmonia religiosa A 14 de outubro, M. Goh Chok Tong, então primeiro ministro de Singapura, apresentou um projeto de Código de harmonia religiosa. Para M. Tong e para os redatores do projeto, este documento devia definir os princípios que contribuiriam para reforçar a harmonia interconfessional em Singapura. Após a apresentação do projeto do Código, uma comissão consultou diversas partes interessadas e sondou o grande público a fim de obter sugestões para o documento final – a Declaração da harmonia religiosa. Em fevereiro de 2003, esta comissão remeteu ao governo, o texto da Declaração. Disponível nas quatro línguas oficiais do país, a Declaração proclama os valores que o governo tem a convicção que contribui para preservar a harmonia religiosa em Singapura. Segundo o governo, a Declaração “serve para recordar a necessidade de esforços incessantes para reforçar os laços inter-religiosos em Singapura”.16 Posteriormente, o Inter-Religious Harmony Circle (IRHC – Círculo de promoção da harmonia inter-religiosa), grupo formado por delegados das comunidades religiosas que tinham participado na Comissão, tomou sobre si a tarefa de promover a Declaração. O IRHC incitou os singapurenses a recitar o texto durante a semana que o país celebra, cada ano, o Dia da harmonia entre as raças (21 de julho).17 Eis o texto integral da Declaração: DECLARAÇÃO DA HARMONIA RELIGIOSA Nós, povo de Singapura, declaramos que a harmonia religiosa é vital para a paz, o progresso e a prosperidade no seio da nossa nação multirracial e multirreligiosa. Estamos resolvidos a reforçar a harmonia religiosa pela tolerância, a confiança, o respeito e a compreensão mútuos. Jamais deixaremos de * reconhecer a natureza secular do nosso Estado, * promover a coesão no seio da nossa sociedade, 16 Comunicado de imprensa do governo de Singapura, Declaration of Religious Harmony, 9 de junho de 2003. 17 Idem.
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* respeitar a liberdade religiosa de cada um, * desenvolver o nosso espaço comum respeitando plenamente a nossa diversidade, * assegurando assim, que a religião não seja instrumentalizada para trazer a Singapura o conflito e a discórdia. 1. A Lei sobre a manutenção da harmonia religiosa A 9 de novembro de 1990, o corpo legislativo de Singapura adotou a Lei sobre a manutenção da harmonia religiosa18 (MRHA), que entrou em vigor a 31 de março de 1992. Dispositivo jurídico visando preservar a harmonia religiosa neste país, esta lei dá, ao ministro do interior a autorização de adotar uma ordem de interdição contra qualquer pessoa que se encontre em posição de autoridade no seio de qualquer grupo confessional ou instituição religiosa, se o ministro está convencido de que essa pessoa cometeu ou tentou cometer um dos seguintes atos: suscitar sentimentos de inimizade, de ódio, de má vontade ou de hostilidade entre diferentes grupos religiosos; ou promover uma causa política, levar a efeito atividades subversivas ou suscitar a oposição para com o presidente ou o governo sob o pretexto de propagar ou praticar uma convicção religiosa. O ministro do Interior, também pode usar o seu poder de injunção contra alguém que incite, provoque, ou encoraje qualquer dirigente religioso, grupo ou instituição religiosa a cometer atos acima mencionados ou contra alguém que não sendo dirigente religioso mas que suscite ou tente suscitar sentimentos de inimizade, ódio ou de má vontade entre diferentes grupos religiosos. Uma ordem de injunção contra um dirigente religioso pode ordenar que ele, ou ela, deve obter a autorização prévia do ministro do Interior para se dirigir aos membros de não importa qual o grupo ou instituição religiosa, para colaborar ou contribuir com publicações religiosas, ou para fazer parte do comité ou do conselho de redação de tais publicações. A Lei qualifica como crime, a não observação da interdição emitida no quadro das suas disposições.19 A documentação de que se dispõe atualmente sugere a ausência de conflito religioso em Singapura. Se tal é o caso, pode dizer-se que a Lei sobre a manutenção da harmonia religiosa conseguiu criai um clima de paz e de unidade entre os praticantes dos diferentes cultos do país. Os factos, infelizmente, indicam que bem ao contrário, em vez de atingir a harmonia, a Lei teve como resultado 18 Act 26 of 1990, now Maintenance of Religious Harmony Act (Cap. 167A, ed. 2001 revista). 19 Maintenance of Religious Harmony Act (Cap. 167A, ed. 2001 revista).
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excluir de Singapura algumas organizações religiosas. Foi no quadro das suas disposições que grupos religiosos, tais como, as Testemunhas de Jeová, a Igreja da Unificação, e a organização Jesus Saves Mission foram banidos do país.20 O banimento teve como efeito, a exclusão, pelo governo, de uma organização religiosa, até então registada.21 O comunicado publicado pelo ministro do Interior de Singapura que anuncia a exclusão das Testemunhas de Jeová é instrutivo porque a existência de uma evidente intrusão de assuntos do Estado nos ensinos doutrinários de uma organização religiosa: (A seita das Testemunhas de Jeová) baseia a sua doutrina e a natureza da sua propaganda sobre a sua afirmação de que “Satanás” é responsável por todo o governo e por todas as religiões organizadas. O Armagedom eminente terá como resultado a destruição de todos, com exceção das Testemunhas de Jeová, que herdarão a Terra. Em virtude desta doutrina, a seita reclama para os seus membros uma posição de neutralidade em tempo de guerra, o que leva a um grande número entre eles, recusar o serviço militar no quadro do seu serviço nacional.22 Com um governo que pratica abertamente a discriminação contra organizações religiosas por causa da sua doutrina, Singapura não parece constituir um bastião da harmonia religiosa. C. Uma iniciativa fora do quadro legislativo, no Senegal. A 28 de dezembro de 2013, na emissão Weekend Edition na NPR, a animadora Linda Wertheimer e o correspondente desta rádio na África Ocidental, Ofeiba Quist-Arcton, quiseram mostrar, apesar dos confrontos entre cristãos e muçulmanos na Nigéria e na República Centro Africana que fizeram numerosos mortos em 2013, que o Senegal provava que a coexistência pacífica de todas as religiões era possível em África.23 A emissão apontava para um concerto intitulado “Diálogo das Religiões” organizado no Grande Teatro de Dakar, no decurso, do qual, a cantora muçulmana, Saida Binta Thiam partilhou a cena com o coro da paróquia católica de Santa Teresa de Grande Dakar. Weekend Edition apresentou este concerto como simbólico de um sentimento crescente de harmonia interconfessional 20 Vivienne Wee, Secular State, Multi-Religious Society: The Patterning of Religion in Singapore, contribuição para a Conferência sobre a religião e a autoridade na Ásia oriental e no Sudoeste asiático, 2005, p. 1. 21 Idem. 22 Idem, p. 10, 11 (citação do Straits Times, 20 de julho de 1982). 23 Quist-Arcton, supra, nota 5.
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no Senegal. A emissão fazia ressaltar que, mesmo sendo o Senegal um país de maioria muçulmana, os senegaleses mantêm a sua solidariedade, a sua tolerância e a sua unidade observando todos os feriados estabelecidos pelo cristianismo assim como os do islão. Numa entrevista concedida ao jornalista Quist-Arcton, Édouard Diegane Sene, diretor do coro de Santa Teresa, explica que é discutindo que os senegaleses resolvem os seus problemas. E é da opinião que os países de África sujeitos a conflitos inter-religiosos, como a Nigéria e a República Centro Africana, podem aprender com o exemplo da harmonia religiosa no Senegal.24 Saída Thiam, por seu lado, declara que através deste concerto, ela e o coro católico mostram à África, e ao mundo, que “a solidariedade e o respeito pelo outro fazem, largamente, parte da vida senegalesa”25 e exprime a sua esperança de que a sua mensagem de unidade se espalhe. É prematuro determinar se o concerto do fim de dezembro de 2013 em Dakar teve uma influência favorável na harmonia religiosa no Senegal. É, no entanto, encorajador que esta iniciativa tenha sido tomada pela sociedade civil e não pelo governo. De facto, se a população quer alguma coisa e está decidida a obtê-la, é mais do que provável que o consiga! III. As etapas que conduzem à harmonia religiosa A ideia dos senegaleses é boa: é a população que deve abrir o caminho que conduz à harmonia inter-religiosa. Nesta ótica, propomos aqui um plano em cinco partes para a obtenção da harmonia religiosa. A. Os praticantes devem conhecer e praticar a sua própria religião O desejo de cultivar e compreender a harmonia inter-religiosa não significa necessariamente que se deva abandonar a sua própria fé. Bem pelo contrário, implica que o praticante conheça e pratique a sua própria religião. Os cristãos devem estar orgulhosos de o ser e de praticar os elementos da sua fé. E o mesmo para os muçulmanos, para os budistas e para os rastafáris. Se todos os praticantes estivessem firmes nas suas crenças e convencidos, sentir-se-iam menos ameaçados pelo aparente despertar de outras religiões. Estariam, portanto, aptos para falar de questões religiosas e não religiosas com fiéis de outras confissões. A primeira etapa da construção da harmonia religiosa consiste em conhecer a sua 24 Idem. 25 Idem.
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própria religião e praticá-la corretamente. B. É necessário respeitar as outras religiões – e mesmo a ausência de religião Para implementar realmente a harmonia religiosa, o crente praticante deve estar pronto a respeitar as outras religiões, assim como a ausência de religião. Igualmente, cada ser humano tem o direito de praticar as suas próprias crenças, tal como tem o direito de não praticar nenhuma. Os crentes praticantes devem compreender e apreciar estas duas realidades. E, portanto, se um praticante está em desacordo com as doutrinas da confissão de um outro praticante, isso deve ser respeitado e mostrar-se plenamente disposto a estar em paz com esse outro praticante. No mesmo espírito, se alguém deseja não praticar nenhuma forma de religião, o crente praticante deve, também, respeitar essa escolha. Quando um praticante apela à violência, física ou verbal, para forçar outro a conformar-se com a sua vontade não ajuda nada à harmonia interconfessional. Acontece que cristãos e muçulmanos colocam assim em questão esta proposta exigindo: “Se respeitamos as conceções religiosas de todos os outros e/ ou o seu desejo de não ter religião, o que é então feito da evangelização?” Ora o respeito não quer dizer a morte da evangelização. O respeito deve levar à elaboração de métodos de evangelização respeitadores, que permitam fazer proselitismo junto dos outros respeitando a sua dignidade. Mas este assunto será abordado numa outra ocasião, num outro artigo. C. Trabalhar estreitamente com as pessoas de confissões e crenças diferentes As pessoas entendem-se melhor se se conhecerem umas às outras. Isto é verdade seja na religião ou não. Se o nosso mundo quer beneficiar do desenvolvimento da harmonia religiosa, é necessário que as pessoas, de diferentes confissões, aprendam a conhecer-se. Alguns crentes praticantes já tomaram a iniciativa de um tal movimento criando grupos de culto interconfessional e outras espécies de grupos, onde as pessoas de convicções diferentes se encontram para falar, colocando-se assim no caminho de acordos e de desenvolvimento da harmonia inter-religiosa. O autor deste artigo conhece um pastor adventista que é membro do seu grupo interconfessional local, o “Diálogo inter-religioso”. Esse pastor adventista ordenado toma parte nas reuniões mensais deste grupo que se realizam na igreja metodista local, participa cada ano no jejum do Ramadão (Iftar) no Centro muçulmano local. Tomou a palavra em sinagogas, esteve em templos Mormons e tem assistido a cerimónias religiosas em diferentes locais de culto. Construiu o seu grupo
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de amigos entre os praticantes de diversas religiões. Em consequência, cada vez que ele tem necessidade de membros fiéis de uma outra confissão para um dos seus projetos, escolhe pessoas voluntárias e disponíveis que fazem parte da sua reserva mais do que copiosa. Tal é o resultado da harmonia religiosa. D. Não interferir em questões religiosas próprias de outras pessoas As organizações religiosas são por vezes confrontadas com conflitos internos. Na sociedade moderna, estes conflitos dizem respeito à ordenação das mulheres, a integração dos homossexuais nas comunidades espirituais, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, as decisões sobre o fim da vida, o direito ao aborto, o casamento e o divórcio, assim como a militância política. Cada confissão faz o seu melhor para definir as suas posições em função da sua compreensão dos seus próprios textos sagrados, escritos e ensinados. Aqueles que não são membros dessas organizações religiosas devem guardar-se de interferir nesses processos. A humanidade, em geral, não está de acordo sobre tudo. Os crentes praticantes também não o estão. Mesmo no seio das organizações religiosas, os fiéis não estão de acordo sobre tudo. Os crentes fariam bem em orar pelas organizações confessionais que sofrem de conflitos internos e estão implicadas em processos de decisão, mas que a única coisa que fazem é orar. Qualquer interferência para além da oração não deveria ser bem-vinda. E. Lutar contra toda a tentativa de instrumentalização da religião para semear a discórdia na sociedade. No romance de Sandra Brown French Silk26, um grupo de cristãos envolvidos travam um longo combate contra um fabricante de lingerie feminina e contra o seu catálogo, porque acham as suas peças, assim como o catálogo, que as apresenta, muito ousadas. Como canto marcial, esses cristãos escolheram um velho cântico “Onward Christian Soldiers”. Na leitura deste romance, o leitor não pode senão ficar admirado pela forma como estes cristãos usam a violência, a intimidação e a mentira na sua ação, infrutuosa, para além disso, de banir uma empresa industrial que eles consideram não cristã. Quanto mais eles cantam o seu hino de guerra, mais parecem uma banda de indisciplinados rufiões e não soldados de Cristo avançando sob a bandeira do Todo-Poderoso. Nenhum grupo religioso deveria usar um tal modos operandi. Sem dúvida, é necessário que os crentes praticantes se esfor26 Sandra BROWN, French Silk, J’ai Lu, Paris, 1993.
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cem, sempre, para demonstrar firmeza e “defender o que é verdadeiro”, mas não devem faze-lo senão agindo no respeito pelo direito e sem provocar discórdia, confusão ou querela. CONCLUSÃO Se a expressão “harmonia religiosa” pode, por vezes, parecer um oxímero não é menos um objetivo digno de admiração. Contudo, a Humanidade nunca lá chegará, assim como os fiéis de todas as religiões não estarão dispostos a conceder a cada confissão o mesmo grau de respeito que esperam para a sua. Até que isso aconteça, toda a discussão sobre a harmonia religiosa é vã e inútil. Uma vez que esta é fonte de vantagens económicas e sociais, significativas, para todas as nações, é um dever para os crentes praticantes, tanto como para os cidadãos que escolhem ignorar todas as religiões, envolverem-se neste projeto. Que o nosso planeta possa um dia cobrir-se com a capa da harmonia religiosa!
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A educação para os valores: a solução universal do pluralismo religioso conflitual. O papel da religião na promoção de uma cultura da paz no século XXI Liviu Olteanu1 Introdução Não há qualquer dúvida de que vivemos num mundo complexo e numa sociedade pós-moderna. Incontestavelmente, podemos colocar esta questão retórica: “Este facto intensifica-se e reflete-se nas questões que afetam a sociedade?”2 A resposta é: “Claro!” É a conclusão quase unânime a que chegam os sociólogos, os analistas políticos e os juristas da nossa época. Contudo, poderemos falar de uma crise de valores? Há alguns anos, Köichirö Matsuura (diretor geral da UNESCO nessa ocasião) perguntava-se se isso significava que nos estamos a dirigir para um mundo sem ética.3 Ele próprio tentou responder: “Não há uma crise de valores – não nos enganemos – mas uma crise do significado dos próprios valores e a sua capacidade para nos governar. A questão urgente é, portanto, saber como nos orientarmos por entre os valores”.4 A crise contemporânea dos valores não diz respeito apenas aos limites morais tradicionais herdados das grandes confissões religiosas mas também, dos valores laicos que se lhe seguiram. Já não existe um esquema definido dos valores, com uma escala estável e absoluta, porque todos os valores flutuam. Desejo que, para o bem de todos, o professor Ruiz Calderón Serrano tenha razão: “se é verdade que cada geração é confrontada com os seus próprios de1 Ver nota 2, pág. 11. 2 J. M. S. Ruiz-Calderón, Eutanasia y la vida dependiente, 2º ed., Ediciones Internacionales Universitarias, Madrid, 2007, p. 9. 3 Jérôme Bindé (coord.) Oú vont les valeurs? Entretiens do XXIe siècle, Editions UNESCO/Albin Michel, 2004. 4 Idem, pág. 10.
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safios, então devemos tomar consciência de que a nossa perdida ilusão sobre o fim da História deve, subitamente, fazer face às ameaças e tentar, com ou sem sucesso, encontrar respostas”.5 I. Porquê ensinar bons valores? Como justificar uma educação baseada em valores? Nós, os indivíduos temos necessidade de estar envolvidos em certos princípios éticos que nos ajudem a avaliar os nossos atos e os atos dos outros. Os valores são convicções ou princípios normativos duradouros que nos sugerem que uma certa conduta, ou a fase final da nossa vida, é, pessoal ou socialmente, preferível a outras que julgamos como adversas ou contraditórias.6 Se considerarmos o indivíduo no coração da sociedade em que vive e na sua relação com ela, então emerge o domínio dos valores cívicos e a possibilidade de favorecer uma educação baseada sobre a tomada de consciência global dos princípios constitucionais, de hábitos democráticos ou de uma coexistência pacífica. A questão dos valores é um assunto, não só de intuição pessoal, variando de uma pessoa para outra, mas igualmente de predisposições culturais necessárias à sua apreciação. A educação pelos valores consistiria então, cultivar estas condições que nos preparam para apreciar certos valores.7 José Ortega y Garsset lembra-nos que estamos expostos a influências: não nos contentamos em observar de forma puramente intelectual, em as compreender, em as comparar, ou em as classificar em categorias, nós apreciamo-las ou rejeitamo-las, preferindo algumas às outras; isso significa que lhes atribuímos valor. E eis algumas características:8 Os valores são escolhidos pelo seu valor. Porque nos atraem e conferem satisfação; não são criadas apenas subjetivamente. Os valores são qualidades reais atribuídas a pessoas, objetos, instituições e sistemas. A realidade não é estática mas dinâmica. Ela contém um potencial de valores latente, que a criatividade humana não para de descobrir. A criatividade humana faz parte do dinamismo da realidade. 5 J.M.S. Ruiz-Calderón, Retos jurídicos de la bioética, Ediciones Internacionales Universitarias, Madrid, 2005, p.15. 6 A. Cortina, La educación y los valores, Argentaria, Madrid, p.14. 7 Idem, p. 25. 8 Idem, p. 15-35.
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Os valores são qualidades que tornam o mundo melhor e habitável. Podemos, portanto, afirmar com Ortega, no entanto com algumas pequenas diferenças, que os valores são qualidades reais que não foram inventadas a partir do nada: estão ligadas a objetos, mas também a ações, das sociedades e dos indivíduos. Um valor não é, nem um objeto, nem uma coisa, nem uma pessoa, mas faz parte da coisa (uma bela paisagem), da pessoa (uma pessoa caridosa), de uma sociedade (uma sociedade solidária), de um sistema (um sistema económico equilibrado), ou de uma ação (uma boa ação).9 Naturalmente, temos a tendência de traduzir os valores em substantivos, a condensá-los em nomes e a exprimi-los como: liberdade, igualdade, solidariedade. Por vezes, chegamos a dar-lhe uma forma humana, fazemos encarnar um símbolo, como uma mulher com uma tocha (a liberdade), ou tendo uma balança com os dois pratos (a justiça) mas estamos conscientes de que eles não existem dessa forma uma vez que nunca encontramos um ser chamado liberdade, ou uma coisa chamada justiça. Os valores são qualidades atribuídas a certas pessoas, ações, situações, sistemas, sociedades e coisas, porque as exprimimos mais frequentemente sob a forma de adjetivos qualificativos, como os exemplos citados acima. Os valores são dinâmicos. Quando dizemos “dinâmicos”, queremos dizer que certas realidades vão sempre atrair-nos ou repelir, convidar-nos a agir de uma forma ou de outra, mas não nos deixam indiferentes. Os valores entram na vida nas nossas ações. Os valores positivos encorajam-nos a atingir os objetivos, assim como os valores negativos nos levam a desistir. Os valores possuem uma força dinâmica que nos encoraja a agir (positivo), ou a desistir (negativo). Onde estão, portanto, os espíritos criadores e as obras portadoras de valores capazes de transcender os erros, as confusões, a violência sistemática com as quais se debatem todas as sociedades, todas as culturas, todas as religiões contemporâneas?10 “O perigo que nos persegue hoje não é, como dizem alguns, o choque de civilizações mas a ausência de valores partilhados. É mais necessário do que nunca, aderir a uma ética baseada em valores orientadas para um mundo mais justo, mais solidário, um mundo aberto a todos, onde reine a liberdade, a paz, a não discriminação, o respeito pela diversidade…”11 9 A. Cortina, J. Gray and J. Marías, El universo de los valores en Un mundo de valores, Conserjeria de Cultura, Educación y Ciencia de la Generalidad Valenciana, Valença (Espanha), 1996, p. 31 10 Mohammed Arkoun, “Pour une genèse subversive des valeurs” in Où vont les valeurs? Entretiens do XXIe siècle, Jérôme Bindé (coord.) Editions UNESCO/Albin Michel, 2004, p. 89. 11 A. Bennani “Introduction” in op. cit., Jérôme Bindé, p. 24.
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II. O que é necessário ter em conta a propósito da educação para os valores? Os problemas e as mutações do nosso mundo afetam-nos a todos. Mesmo se formos mais frequentemente testemunhas dos sintomas, do que causas.12 O debate ético tem hoje uma ressonância social que era incomum até agora. Começámos por aceitar um conjunto de valores reconhecidos socialmente, para chegarmos hoje a uma vasta variedade de ideias propondo o que é bom para a coexistência entre os seres humanos e o que prejudica essa coexistência. A. Interdependência e diversidade A interdependência é uma das características do nosso mundo. No entanto, podemos nós hoje falar de valores universais partilhados por todos os habitantes do planeta para além da diversidade de culturas? Um dos nossos desafios é promover o diálogo e descobrir os valores que todos nós partilhamos. Devemos encontrar um sistema de valores a fim de firmar as nossas vidas na estabilidade. Mais a mais, sentimos a necessidade de descobrir como é que os valores podem ter um impacto positivo sobre as pessoas e as sociedades. B. Um novo tipo de sociedade mundial Sem qualquer dúvida, podemos dizer que se está a formar um novo tipo de sociedade mundializada. A sociedade atual é contraditória: as suas bases jurídicas são a igualdade e a justiça, ao mesmo tempo que está instalada em pleno hedonismo, consumismo, conforto e desenvolvimento ilimitado, o que origina a injustiça. A sociedade proclama a liberdade e condena a violência, mas manipula a informação e viola a vida privada. O desafio é definir e exercer os valores pessoais que nos tornam mais responsáveis. Não podemos duvidar que vivemos numa sociedade em transição. C. A História e as suas transformações Podemos avaliar qualquer coisa em função de princípios éticos, de costumes, de modelos sociais, de critérios estéticos. Podemos falar de valores tradicionais e de valores modernos. 1. De um ponto de vista humanista, o valor significa o que faz um homem ser um homem sem que ele perca a sua humanidade, ou parte dela. O valor orienta para a excelência ou para a perfeição. Sob o aspeto socioeducativo, os valores são 12 Eduardo Romero Pedra, Valores para vivir, Editorial Abya Yala, Barcelona, 2000, p. 11.
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considerados como referências, modelos ou conceitos abstratos guiando o comportamento humano para a transformação social e a realização própria. Guias, permitem a cada indivíduo conduzir a sua vida segundo uma orientação específica. 2. Numa ótica subjetiva, os valores não têm valor em si mesmos, porque não são reais; as pessoas atribuem-lhe um valor e isso significa que dependem da perceção de uma pessoa em particular. A escola neo-kantiana afirma que o valor é antes de mais uma ideia. Essa escola distingue o que tem valor daquilo que o não tem, em função das ideias e dos conceitos gerais partilhados pelas pessoas. Os valores têm uma forma e um significado no pensamento e nos espíritos. 3. De uma perspetiva idealista, os valores são ideais e objetivos que têm importância sejam quais forem as coisas ou o conceito das pessoas. A justiça é sempre uma virtude a despeito das iniquidades. D. A evolução do ser humano Os valores estão ligados à própria existência; afetam o comportamento, permitem conceber e influenciar as ideias, os sentimentos e os atos. O humano cresce, evolui, tanto como pessoa como na sua perceção de valores. Seremos bem-sucedidos na maturação dos valores precisamente graças a este processo de evolução. Uma pessoa experimenta a realidade e interpreta-a com a ajuda dos valores, em determinado momento. Quando as circunstâncias da nossa vida mudam, esta mudança reflete-se no nosso sistema de valores, que é o nosso valor de referência.13 Com efeito, julgamos continuamente as atitudes e os valores diariamente. No sentido em que cada ser humano, em função da sua situação e contexto, aprecia e avalia os atos, os objetos e os acontecimentos.14 E. Decisões e identidade A educação baseada em valores implica que cada um é autor da sua própria história. Cada um tem, portanto, a responsabilidade de inventar a sua própria vida, de tomar uma decisão em caso de situação de conflito e de escolher a forma de estar segundo o seu desejo seguindo uma forma de coexistência correta. É neste sentido, que é necessário compreender a educação pelos valores.15 Segundo 13 Eduardo Romero Pedra e M. Ángeles Marín Gracia, Valores para vivir, Editorial Abya Yala, Barcelona, 2000, p. 16. 14 Idem, p. 279. 15 Victoria Camps, Como mantener vivos los valores, in Valores para Vivir 2, E. Romero (coord.), Icaria, Barcelona, 2000.
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Etxebarria, aquilo que nos atrai, aquilo que amamos, desejamos ou apreciamos não pode ser realizado na neutralidade porque percebemos e avaliamos, ao mesmo tempo, se bem que o processo de avaliação seja mais longo, até que a força do nosso ego acalme, equilibre os desejos, muita vez, contraditórios. A dimensão comportamental consiste em aplicar estes valores, isto é, agir de acordo com os valores escolhidos. Os valores fazem parte da nossa identidade. F. Impor ou propor valores universais Muitos dos valores mencionados na Declaração Universal dos Direitos do Homem são aceites universalmente: a justiça, a solidariedade, a liberdade, a tolerância… Esta aceitação não é apenas teórica, porque tem implicações práticas no quotidiano. Há uma diferença entre os valores nos quais se crê e os valores realmente vividos. E educação pelos valores não significa impor, mas mais propor, mostrar diferentes vias e opções, a ajudar, cada um, a encontrar o que é melhor para si. A educação pelos valores deve encorajar o desenvolvimento do pensamento, de análise crítica e ao mesmo tempo do afeto. III. A educação pelos valores e os desafios na sociedade A. O respeito pela diferença, pelas minorias religiosas e a defesa da justiça Pauline Rosenau16 escreveu citando King e Schneider: hoje temos necessidade de uma educação que se refira ao processo de aprendizagem constante de cada ser humano na sociedade; a educação deveria fazer com que o indivíduo entrasse num processo permanente e contínuo ao longo de toda a sua vida, que comece na família, no seio do lar, continue no quadro escolar, depois nas atividades profissionais e de lazer, num contexto religioso, comunitário, associativo ou político, e continua até à idade da reforma nas atividades pessoais ou altruistas.17 A defesa da justiça representa um desafio atualmente. Uma das grandes dificuldades é, sem qualquer dúvida, conciliar a identidade cultural e o respeito pela diferença numa sociedade em que as convicções e as culturas coexistem. Como encorajar a integração e a diferença respeitando, totalmente, a identidade cultural de cada um? O respeito pelas minorias é ensinado? Vivemos num mundo complexo, 16 Pauline Rosenau, Post-modernism and the social sciences: Insights, inroads and intrusions, Princeton, Nova Jersey, Universidade de Princeton Press, 1992, p. 14-20. 17 Victoria Camps, op. cit., p. 20.
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cheio de incertezas. Penso que o nosso objetivo – uma sociedade mais justa e mais fraternal – passa por uma mudança dos nossos esquemas de reflexão e do nosso comportamento. B. Os esforços com vista a objetivos comuns A pedagogia da paz, do respeito e da não violência baseia-se na educação da esperança na liberdade crescente. Victoria Camps afirma que o projeto do século XXI será passar de uma cultura do medo para uma cultura de esperança. Como diz a autora: “as realizações na sociedade, sobretudo aquelas que exigem tempo, nunca resultam dos esforços de um só indivíduo, nem mesmo de um grupo entusiasta e envolvido. Também não são do trabalho exclusivo de um governo ou de uma administração, são o fruto do trabalho voluntário e constante de uma série de indivíduos que estão de acordo sobre objetivos comuns”.18 C. Adaptar-se à mundialização O sociólogo e filósofo Jean Baudrillard, declara claramente, sobre a ordem mundial, que “a situação muda e radicaliza-se à medida que os valores universais perdem a sua autoridade e a sua legitimidade. Atualmente, a mundialização triunfante faz tábua rasa sobre todas as diferenças e todos os valores, inaugurando uma cultura, ou uma incultura perfeitamente indiferente”19 Num dia destes, confrontados por um lado, com uma ordem mundial sem alternativa e uma mundialização sem apelo não sabendo para onde vai e, por outro, com a insurreição tenaz das singularidades, os conceitos de liberdade, de democracia, de direitos do Homem fazem uma figura bem pálida, não sendo mais do que fantasmas de uma universalidade desaparecida.20 D. Confrontando-se com a violência religiosa A face desumana do humanismo moderno mostra-se quando ataca os valores de forma dramática. Hoje, cada reivindicação cultural esconde uma violência religiosa. Observando os esquemas da civilização (Ciência, Razão, Moral e outros – entidades em maiúsculas em estado de debilidade” segundo a expressão de Marcel Gauchet), constata-se que o indivíduo moderno é afetado – nesta forma de escravatura moderna a que os médicos chamam stresse – vítima que é da ilusão de ser o seu próprio 18 Idem, p. 23. 19 J. Braudillard, “De l’universel au singulier: la violence du mondial”, in op. cit. p. 47 20 Idem.
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mestre enquanto serve os desejos obscuros da multidão. Pertencer a uma mesma cultura, ou a uma mesma religião não é garantia de tolerância e boa vontade política. A tolerância que é a recusa da intolerância tornou- se o direito ao intolerável. O direito do mais fraco modela-se sobre os abusos do direito do mais forte.21 E. Politeísmo dos valores: princípios vagos, divergências e duplo critério Segundo Catherine Labrusse-Riou, os direitos do Homem têm-se degradado “com benefício de vagos princípios interpretados segundo ideologias individualistas e arbitrárias, desprezando a ideia de que a lei é, desde logo, a instituição das relações entre os humanos, feita de direitos e deveres e não a exaltação do um indivíduo apenas, cujas liberdades indefinidas se tornam poderes exercidos sobre outrem, portanto da alteração da liberdade ou da dignidade do outro”.22 O investigador americano, Robert Kagan demonstrou, claramente, como na esfera geo-histórica da Europa ocidental, os Estados utilizaram o sistema de pensamento baseado na utilização do duplo critério: o dos valores políticos e morais, idealizados na linha da metafísica clássica, e a do poder militar, científico e tecnológico.23 Até hoje, o problema dos fundamentos dos valores era de uma extrema simplicidade: Deus tinha dado leis aos homens a fim de eles poderem realizar o Bem. Era o mesmo, aliás, num contexto laico de sociedades fortemente unidas uma vez que as injunções éticas estavam profundamente interiorizadas. Obedecer, respeitar os valores eram atitudes óbvias. As coisas mudam com o crescimento da autonomia e da responsabilidade individual porque o imperativo já não vinha de Deus, nem da religião, nem do Estado, nem da sociedade, mas do próprio indivíduo, de acordo com o imperativo categórico de Kant. Nessa ótica, os valores são, portanto, relativos ao indivíduo, através da sua responsabilidade, da sua dignidade e da sua honra, mas dependendo também do grupo e dos povos, sobretudo, num contexto de globalização.24 F. Desempenho, um método de medida dos valores A insuficiência de uma moral pura deve-se ao facto dela nunca se preocupar com as consequências; está convencida de que as boas intensões produzem boas 21 H. Béji, “La culture de l’inhumain”, in op. cit. Jérôme Bindé, p. 56-60. 22 C. Labrusse-Riou, “Droits de la personalité et de la famille”, in Libertés et droits fondamentaux, Seuil, Paris, 1996. 23 Jérôme Bildé, op. cit., p. 84, 85. 24 E. Morin, “L’éthique de la complexité et le probleme des valeurs au XXIe siècle”, in op. cit., Jérôme Bindé, p. 93.
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ações. Pascal tinha, contudo, formulado o seguinte princípio: não basta pensar corretamente para ter comportamentos éticos mas é necessário conhecer as condições nas quais as ações que se relacionam com os valores se vão situar, para saber se se age verdadeiramente a seu favor.25 A partir do momento em que existe, segundo a expressão de Max Weber, um “politeísmo dos valores”, é frequente que surjam conflitos entre imperativos éticos contrários.26 G. Desmistificação e ilusão Apesar dos nossos valores ditos “universais” (a liberdade, a igualdade, os direitos do Homem, etc.), o laço que nos ligava aos emancipadores das Luzes, quebrou-se… porque a grande desmistificação passou por aí… Nem no Céu, nem no coração estão inscritas as leis eternas idênticas para todos os homens, em todo o lado e em todo o tempo, dizem-nos os grandes desmistificadores. Podemos colocar algumas questões importantes como: O Bem e o Mal os grandes imperativos morais não seriam o disfarce de que se revestem dignamente os instintos mais baixos, os mais materialistas de posse e de domínio? O móbil do interesse individual ou coletivo não será a origem escondida das nossas ações? O desejo de poder político ou económico desta ou daquela classe ou nação não será a origem obscura da instituição de valores que são falsamente apresentados como universais, de forma a compreender, ainda melhor o seu império? Uma suspeita obsessiva mina o que parecia absoluto e sagrado e assombrou os pensadores mais iconoclastas e os mais lúcidos do século XIX.27 O jurista e filósofo Ruiz Serrana declara: “A primeira coisa que atrai a atenção na sociedade pós moderna é a aparente ênfase daquilo a que chama o debate moral”. Uma característica do debate atual é que apenas parece (como segunda prioridade) tentar mudar os comportamentos das pessoas, a fim de procurar fazer o Bem, de ter uma moral. De facto, a principal função do debate seria colocar a questão da realidade do fundamento moral da uma ou de outra instituição.28 O reflexo religioso das interpretações mundiais que confirmam certas exigências 25 Idem, p. 94. 26 Idem, p. 95. 27 J. J. Goux, “Vers une frivolité des valeurs?” in op. cit., Jérôme Bindé, p. 100. 28 J. M. S. Ruiz-Calderón, Retos jurídicos de la bioética, Ediciones Internacionales Universitarias, Madrid, 2005, p. 103.
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morais tem sido, infelizmente, substituído por um vivo debate sobre as questões morais. A consequência que surpreende o observador é que as diferentes opiniões religiosas adaptam-se às exigências morais sucessivas, ou melhor dizendo, ao relaxamento moral que é tão corrente hoje em dia. Esta atitude encontra raízes no próprio processo ilustrado, desde logo, nas Luzes francesas, depois inglesas, alemãs e latinas, quando o homem perdeu de vista as exigências morais rigorosas e abandonou a religião – o que significa a rejeição do Deus tangível – colocando-O como o Ser Supremo que, no sentido estrito, apenas comunica, se podemos chamar isso, através das exigências da razão. H. Sem fundamento natural nem transcendente Ao nos aproximarmos de Sartre, o representante do existencialismo ateu, o risco de gratuidade que fazia correr a sua conceção de liberdade emergindo do nada para criar valores sem fundamento natural nem transcendente, ele respondia, por exemplo à pintura de Picasso: quando Picasso pinta, não obedece a numa norma prévia, nem a nenhum conceito do belo, nenhum ideal eterno da arte pictórica e, contudo, “quando falamos de uma tela de Picasso, nunca dizemos que ela é gratuita”. Ele não pinta não importa como, nem importa o quê: ele é exigente. A verdade é que ele inventa critérios que lhe são próprios, mas submete-os a si próprio, até obter um resultado que o satisfaça plenamente: ele é um criador de valores.29 IV. A relatividade, a fragmentação, o modelo bolsista ou o modelo de valores “tendência” No modelo moral ou estético, tal como no modelo económico, não existe um padrão absoluto, da medida estável dos valores. A sociedade com as suas produções materiais e espirituais é um grande mercado onde tudo flutua seguindo os princípios da Bolsa.30 O aleatório e o efémero ocupam totalmente o conceito de fundamento, de transcendência e de duração. A lógica da moda, que pertence ao domínio do arbitrário, sancionado por uma unanimidade ou uma transgressão passageira, mas que não diz respeito senão a aspetos secundários da existência, invade tudo. Uma espécie de relatividade, de relativismo, parece afetar todos os 29 J.-P. Sartre, L’Existentialisme est un humanisme, Paris, Nagel, 1946. 30 P. Valéry, “La liberte de l’Esprit”, in Regards sur le monde actuel et autres essais, Gallimard, Paris, 1946.
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valores.31 Como sugeriu Valéry, se o regime bolsista dos valores contamina todos os valores e torna-se o modo de funcionamento dos valores no nosso mundo, sejam eles da arte, da moral ou da política, o resultado é que perdemos assim todos os recursos normativos, mas por vezes libertadores, que produziu o pensamento humano ou a lei natural. Valores fragmentados não podem servir de fio condutor a uma história. Um valor religioso que, ao virar do século, não chega senão a dar origem a um monstruoso fundamentalismo terrorista, é um valor doente. No fim de contas, é uma grande estatização da cultura que a vem substituir. A nacionalização dos valores incarna-se no triunfo da aparência. Por outro lado, podemos dizer que estamos baseados na ambiguidade do pós-moderno. A moda ou a frivolidade pode também aplicar-se aos valores. Estes são relativos à moda e estabelecem-se numa relação de igualdade e não de transcendência.32 Segundo o sociólogo francês Roger Sue, podemos distinguir três ordens de valores: 1. Os valores de princípio 2. Os valores interiorizados 3. Os valores praticados Os valores de princípio abstratos vieram do século das Luzes com a afirmação dos valores do indivíduo, da liberdade e de igualdade. O que parece ter mudado hoje, é que passámos do estádio dos valores universais abstratos, para o estádio dos valores interiorizados. Se bem que ainda não se tenham tornado valores práticos, os valores iniciais, abstratos, acabaram por ser humanizados, aceites e integrados. Nós estamos ainda na interiorização dos valores e não no terceiro estádio que é a realização plena destes valores.33 V. O pluralismo religioso, a intolerância e os valores da cidadania O pluralismo moral e religioso no Ocidente nasceu nos séculos XVI e XVII por ocasião das guerras religiosas, ou melhor, as guerras psicológicas, económicas e políticas que se faziam passar por religiosas, demonstraram as suas consequências sangrentas a loucura à qual pode conduzir a intolerância no domínio 31 Idem. 32 C. Méndez, “Valeurs et construction de la subjectivité: dialectique et sous-médiation”, in op. cit., Jérôme Bindé, p. 134. 33 R. Sue. “Essor des associations et nouvelles solidarités”, op. cit., Jérôme Bindé, p. 149-151.
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das convicções. Torturar ou exterminar os dissidentes podia perecer contrário ao espírito cristão, sobretudo quando a mensagem fundamental do Evangelho é simplesmente o amor.34 Os pensadores cristãos como John Locke, ou os deístas como Voltaire, entre outros, produziram publicações sobre a tolerância (como premissas ao direito à liberdade religiosa) que, mau grado as origens intolerantes, conduziram, com o tempo, a aceitar o pluralismo. Com a tolerância de pluralidade destes conceitos na sociedade, a diversidade das visões do mundo tornaram-se pouco a pouco uma situação cada vez mais natural. A. As sociedades pluralistas e os tipos de valores Nas sociedades pluralistas, o primeiro problema consiste em determinar que valores, nós – como sociedade – iremos escolher para transmitir. A sociedade deve, portanto, tomar consciência dos seus valores primordiais. Que podemos então dizer sobre os valores de cidadania? Primeiramente, podemos declarar que os modelos de cidadania vieram desde a polis de Atenas no tempo de Péricles às cidades clássicas de Roma e, acabaram por se misturar com a História ocidental. Em segundo lugar, devemos ter em conta as diversas dimensões da cidadania: aspeto jurídico e político, social multicultural ou diferenciado. Em terceiro lugar, coloca-se uma questão, formulada pelos americanos, nestes termos: no que se refere à educação do conjunto dos cidadãos, é necessário ensinar o patriotismo ou o cosmopolitismo?35 Quando A. MacIntyre publicou a sua obra intitulada “Será o patriotismo uma virtude?” o próprio título parece estranho na Europa: como podia ele, com seriedade, perguntar se o patriotismo é uma virtude e, a falta dele, um vício? A noção de cidadania contém, em princípio, o germe da tendência para criar uma sociedade fechada. Com efeito, o “cidadão” é aquele que pertence completamente a uma determinada comunidade política. A noção de pertença não se limita a isso, pois compreende também o ter consciência das responsabilidades e obrigações da lealdade para com essa comunidade. A ideia de cidadania articula-se em torno das seguintes oposições: “dentro/fora”, “identidade/diferença” e “inclusão/exclusão” reconhecendo que os membros de uma comunidade têm características que os distinguem de pessoas que são excluídas dela. 34 J. Gray, J. Marias, J.M.M. Patino, E. Trias, M. Vargas Llosa e A. Cortina, La educación y los valores, Argentaria, Madrid, 2000. P. 61. 35 J. D. Heather, Citizenship, Longmann, London, 1990. G. Pocock, The ideal of Citizenship since Classical Times, Theorizing Citizenship, R. Beiner (ed.), State of New York Press, N. Y., 1995, p. 52.
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B. O ponto de partida da educação dos valores de cidadania * O ponto de partida da educação dos valores de cidadania diz respeito: * Às características da cidadania local, isto é “o patriotismo”. * Às características da cidadania mundial, isto é “o cosmopolitismo”. Em caso de conflito entre a lealdade à sua própria comunidade política e a lealdade à humanidade no seu conjunto, em que campo nos devemos situar?36 Neste campo notam-se várias aberrações: o patriotismo de paróquia, que é o espírito de paróquia daqueles que não apreciam outros valores senão os que estão ligados à sua etnia, o seu povo, a sua cultura; o abstracionismo, pelo contrário refere-se aos que avaliam a humanidade no seu conjunto e têm falta de sensibilidade e responsabilidade quando se trata do seu próprio ambiente. Para encontrar o equilíbrio é importante analisar as razões que motivam os partidários de um ou de outro caso.37 Resta por resolver o problema maior que é educar com uma nova forma de sabedoria: saber harmonizar as identidades próprias, porque cada ser humano se define segundo um conjunto de identidades. O cosmopolitismo vem-nos do Ocidente, de uma antiga tradição que já deu provas e que surgiu na época dos estoicos no século IV a.C.. Os estoicos basearam a sua crença – ser cidadão do mundo – em dois princípios essenciais. O primeiro reenvia para uma verdade: todos os seres humanos são idênticos em pelo menos um aspeto que se relaciona com o logos, a razão e o verbo, é por isso que todos são filhos do Logos universal. Mas todos os humanos são dotados de uma identidade de logos e a diversidade noutros domínios donde vem a pertença a uma comunidade política, dotada de certas leis e consagrada a certos deuses, e a pertença a uma comunidade universal. Esta ideia de dupla pertença, segundo a qual somos cidadãos de um país em particular, sendo cidadãos do mundo, é reforçada pelas tradições ocidentais, pelo cristianismo que considera os humanos como filhos de um mesmo Pai, e também graças às doutrinas filosóficas tão determinantes como a de Kant que laicizou esta noção cristã com o conceito de que todos os homens podem pertencer a uma só comunidade moral. Segundo Kant, cada ser humano pertence, por nascimento, a uma comunidade política, com que ele uniu o dever moral de tentar mudar essa comunidade num estado de Direito em que todos os cidadãos possam exercer a sua autonomia. No entanto, cada ser humano não é apenas cidadão de um Estado; 36 M. C. Nussbaum, Patriotism and Cosmopolitanism, in For Love of Country, Debating the Limits of Patriotism, M. C. Nussbaum & J, Cojen (eds.), Beacon Press, Boston, 1996, p. 267. 37 A Cortina, La educacion y los valores, Argentaria, Madrid, 2000, p. 67.
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deve ser, também, capaz, face ao outro, de seguir as suas próprias regras e de se governar. O ser humano, como ser digno, pode fazer parte de uma comunidade moral governada pelas leis da virtude, e ser capaz de trazer a sua pedra a um Reino dos fins, um reino, no seio do qual, ninguém é tratado como um ser de valor absoluto.38 VI. A dignidade, a diferenciação e os direitos morais Ser uma pessoa dá ao humano uma dignidade específica conforme à qual ele não pode ser trocado por dinheiro.39 A doutrina da dignidade humana tem aqui uma base racional, propondo razões para compreender porque é que as pessoas têm valor, que direitos são justificáveis em nome desta qualidade do ser humano. No fim, isso seria o fundamento racional de um tipo de direitos chamados “os direitos do Homem”, por vezes chamados “direitos morais” na tradição anglo-saxónica.40 Entramos num domínio que atualmente cria alguma controvérsia: a diferenciação. Existe, sem qualquer dúvida, um grande número de diferenças entre os seres humanos. As pessoas diferem umas das outras em função: Da comunidade política na qual se inscrevem. Da filiação religiosa. Do contexto cultural E de outras dimensões que, no seu conjunto, constituem um ser humano completo. Alguns partidários do cosmopolitismo avançam que apenas os laços de sangue concedem uma obrigação moral de parcialidade, mas não outros laços, como a filiação política, por exemplo. O que é que isso significa? Significa que, na tradição ocidental aquele que deseja exprimir um julgamento moral deve assumir uma atitude de imparcialidade. Para tornar um julgamento moral justo, o ponto de vista que será correto não pode visar o seu próprio interesse. Convém, portanto, verificar que esse julgamento poderá ser aceito por quem quer que seja e não por uma pessoa específica tornando-se, desta forma, inevitavelmente parcial. A. A diferença entre nacionalismo e religião Há uma grande diferença entre nacionalismo e religião. As religiões, como disse Rousseau, podem ser, pelo menos, de dois tipos: as religiões do cidadão e as religiões do homem. 38 Idem, p. 69. 39 Idem, p. 71. 40 G. Gonzales, Derechos humanos. La condición humana en la sociedad tecnológica, Tecnos, Madrid, 1999, p. 258.
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1. As religiões do cidadão são as que são internamente coerentes com cada uma das diferentes comunidades políticas. Os deuses dessas religiões são os de cada comunidade, e eles combatem os deuses das outras comunidades cada um defendendo a sua. São exemplo disso os deuses da Grécia e da Roma antiga, cada cidade tendo o seu deus. 2. O cristianismo, contudo, não é uma religião do cidadão, mas uma religião do homem (da pessoa, diríamos nós hoje); o seu objetivo não é que os indivíduos se unissem para defender a sua cidade, mas ligar cada homem com o Deus de todos os homens. O cristianismo ultrapassa as fronteiras da cidade e abre-as a uma religião universal que “longe de ligar o coração dos cidadãos ao Estado (…) separa-o de todas as coisas da terra”.41 3. A religião civil proposta por Rousseau para assegurar o civismo dos membros da classe política não envolve o coração, mas os comportamentos. Ninguém pode ser forçado a crer nesta religião, mas antes a comportar-se de acordo com a religião reconhecida pelo povo, apenas porque esta religião permite aos cidadãos adquirirem o assentimento social sem o qual é impossível ser um bom cidadão. Com efeito, os dogmas da religião civil são as bases da crença da existência da Divindade poderosa, inteligente, benfeitora, previdente e providente da vida futura, da felicidade dos justos, do castigo dos maus, da santidade do contrato social e das leis, da exclusão da intolerância.42 Quando o cristianismo é usado como uma religião civil, ela foi, de facto, manipulada, porque a sua natureza não é servir de fermento para a comunidade política. Podemos dizer que o cristianismo não garante o caráter sagrado do Contrato social mas antes da vida humana e do reconhecimento mútuo entre seres humanos que abre o caminho ao cosmopolitismo. O cristianismo não pode ser uma religião civil, no sentido de criador de um sentimento de identidade civil, precisamente porque é universal. A linguagem dos direitos do Homem é muitas vezes utilizada como uma barreira de fumo para mascarar a fraude e a corrupção praticados diariamente. O coração ético da nossa sociedade, que faz verdadeiro corpo com ela, é o individualismo hedonista.43 Cada indivíduo pensa que ele e os seus desejos estão no centro da vida social, e é por isso que merece criar e manter laços que 41 J. J. Rousseu. Du contract social, livro IV, capítulo 8. De la religion civile. 42 Idem. 43 D. Bell, Las contradicciones culturales del capitalismo, Alianza, Madrid, 1976. J. Conill, El enigma del animal fantástico, Tecnos, Madrid, 1990, p. 312.
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favoreçam o seu bem-estar. No fim de contas, o que triunfa é o individualismo das pessoas que se consideram não como um povo, não como os indivíduos de uma comunidade, mas como átomos isolados, entre os quais se devem estabelecer relações instrumentais. B. O multiculturalismo: viver com as diferenças O multiculturalismo subentende aprender a viver com as diferenças. Porquê? Segundo Samuel Huntington, os conflitos futuros serão causados mais por fatores culturais do que por fatores económicos ou ideológicos. O Ocidente deve aprender a conhecer melhor as religiões e as conceções filosóficas das outras civilizações. A sua tese, segundo a qual, a principal dimensão, e também a mais perigosa da política global emergente, será o conflito entre grupos de civilizações diferentes, é uma advertência e uma forte insistência para favorecer uma educação multicultural.44 A maior parte das nossas sociedades tornaram-se multiculturais e este fenómeno vai crescendo; cada cultura tem as suas próprias características e deve ser respeitada. O multiculturalismo é potencialmente uma riqueza a fim de que esta riqueza produza os seus frutos, é necessário estabelecer uma comunicação e uma interação entre todas as culturas sem apagar a identidade específica da cada uma delas. Estes fatores permitem-nos compreender melhor o significado de “intercultural”. O multiculturalismo não é um fim em si mesmo, é, antes de mais, um instrumento que serve para promover a igualdade de oportunidades e a melhor integração possível na vida social e económica. C. Medidas de comunicação e interação entre culturas e religiões 1. A prática da tolerância positiva. É impossível abordar o tema da educação intercultural sem antes afirmar claramente o valor da tolerância positiva. É fácil acreditar que se é tolerante, quando se é simplesmente indiferente. Não é porque um Estado é liberal que é tolerante (falamos aqui de tolerância passiva) ou indiferente ao indivíduo. O poder reserva-se o direito de intervir no caso em que alguns desejariam impor a força das suas convicções religiosas, morais ou políticas, limitando a liberdade de outrem e impedindo cada um de formar as suas próprias opiniões. 2. A tolerância ativa necessita de identificar os outros. A tese de Charles Taylor é que a nossa identidade constrói-se em parte sobre o reconhecimento ou 44 Samuel P. Huntington, Le choc des civilisations, Éditions Odile Jacob, Paris, 1997.
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a falta de reconhecimento.45 Os diferentes povos devem reconhecer-se uns aos outros e, dessa forma, mostrar um verdadeiro respeito para com a identidade do outro e do grupo. A aquisição do conceito de dignidade, claramente universal, conduz, inevitavelmente, à asserção do conceito de identidade. Será o ato religioso um componente de base do ser humano e a cidadania a sua plena manifestação? Sem dúvida! Vejamos a realidade à nossa volta:46 as conceções do mundo, do Homem e da sociedade implicam saber que uma forma de moral lhe está ligada. Nós damos, no mínimo, valor às convicções (e experiências) do outro, nosso vizinho. Se não conhecemos as ideias, as emoções e as esperanças do outro, não podemos nem conhecê-lo, nem respeitá-lo. Não podemos, então, praticar a tolerância ativa e iremos projetar uma falsa imagem dele, que se mostrará injusta e opressiva. As religiões, especialmente as que são monoteístas, têm agido como fortes críticas da ordem social. A História das religiões do Livro Sagrado é, de alguma forma, a história da luta da inteligência humana para decifrar o significado mais autêntico da linguagem. As religiões, no seu aspeto prático, têm sido e continuam a ser um enorme gerador de energia intelectual, moral e social. Um gerador perigoso capaz de espoletar movimentos destrutivos, mas que também tem produzido requintadas manifestações de pensamento e de sensibilidade comuns. 3. O Cristianismo é um tipo de humanismo. Bem todo o humanismo é necessariamente antropocêntrico. Se, por humanismo, compreendemos a procura da plenitude do ser humano, temos de aceitar que existe um humanismo Cristão, em que a crença no transcendental e na providência divina não exclui mas, pelo contrário, também requer a salvação do homem na sua existência humana mais íntima. Por excelência, os valores religiosos são, também, valores cívicos. Educar para os valores significa educar moralmente, porque são os valores que ensinam o indivíduo a comportar-se como um homem, a estabelecer uma hierarquia entre as coisas, a convencer-se que se algo é importante ou se não tem interesse, se é certo ou errado, se tem ou não valor. A educação moral promove o respeito por todos os valores e opiniões. 4. Somos iguais e diferentes. Os seres humanos podem viver juntos na sua igualdade e diferenças e enriquecer-se mutuamente com essas diferenças. Isso é possível se nós soubermos como criar um clima de tolerância. Boutros Boutros Ghali disse que a tolerância é “o respeito pela diversidade através da nossa hu45 C. Taylor, El multiculturalismo y la política del reconocimiento, D. F. Fondo de la Cultura economica, México, 1992, p. 42. 46 J.M.M. Patino, Educar para vivir juntos, Paidos, Barcelona, 2001, p. 81.
A educação para os valores
manidade comum”. No documento da UNESCO de 1994, a escola é definida como o lugar por excelência onde a tolerância é exercida, os direitos humanos são respeitados, a democracia é praticada e onde a identidade da diversidade e a riqueza cultural podem ser aprendidas. 5. Criar um clima de tolerância. Há necessidade de eliminar os fatores que ameaçam a paz e a democracia, nomeadamente: a violência, o racismo, a xenofobia, o nacionalismo agressivo, as violações dos direitos humanos, a intolerância religiosa, o terrorismo e o crescente fosso entre os países ricos e pobres. A diversidade religiosa é um facto e também é um facto que muitas pessoas não se consideram religiosas. É nefasto quando a religião do Estado fixa como lei ou facto, a obrigação de pertencer a uma religião em particular ou a exclusão das pessoas ou instituições ligadas a outra religião. Como foi reconhecido pela UNESCO no convénio de Barcelona em 1994, a intolerância religiosa leva, muitas vezes, ao ódio, à divisão e à guerra. E acrescentam: Demasiadas vezes, as pessoas religiosas traíram os nobres ideais que elas próprias pregavam. Conclusão: Tolerância versus responsabilidade religiosa A Declaração sobre o papel da religião na promoção de uma cultura de paz sob os auspícios da UNESCO propõe o seguinte: As comunidades de fé têm a responsabilidade de promover via caracterizadas pela sabedoria, compaixão, a arte da partilha, caridade, solidariedade e amor; inspirar cada um e todos para o propósito de termos escolhido o caminho da liberdade e da responsabilidade. As religiões têm de ser uma fonte de energia criativa. Precisamos de assumir na nossa maneira de pensar que as nossas religiões não têm de ser identificadas com qualquer poder político, económico e social, para poderem ser livres para trabalharem pela justiça e a paz. Não esqueçamos que os regimes políticos confessionais podem acabar por ser muito prejudiciais tanto para os valores religiosos como para as sociedades. Precisamos de fazer distinção entre o fanatismo e o fervor religioso. Precisamos de promover a paz ao nos opormos às tendências de indivíduos e comunidades que creem, ou até mesmo ensinam, que são inerentemente superiores aos outros. Precisamos de distinguir e encorajar aqueles que constroem a paz de forma não violenta. Precisamos de promover o diálogo e a harmonia entre religiões e dentro de cada religião, de reconhecer e respeitar a procura da verdade e da sabedoria que se desenvolver fora da nossa própria religião.
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Esta Declaração termina com um apelo: Enraizados na nossa fé, queremos construir uma cultura de paz baseada na não-violência, na tolerância, no diálogo, na mútua compreensão e na justiça… Apelamos às várias religiões e tradições culturais para que unamos forças e cooperem connosco na propagação da mensagem de paz. Lock e Voltaire reagiram contra a intolerância religiosa, tornando claro que nenhuma igreja podia afirmar ser depositária da derradeira verdade ou de representar o único Deus. Ambos defendiam, fortemente, a separação das esferas religiosas e políticas, denunciando a injustiça de toda a imposição da autoridade no campo da consciência pessoal. Todos os países da União Europeia têm de aprender, a todos os níveis, a cultura do respeito, da justiça e da tolerância. Ninguém, nem os Muçulmanos, Hindus, Budistas, Judeus ou Cristãos: Ortodoxos, Católicos, Protestantes, Batistas, Adventistas do Sétimo Dia, Pentecostais ou Testemunhas de Jeová, ou os Socialistas, Comunistas, etc., têm moral para impor pressão sobre os outros para que aceitem as suas filosofias, crenças ou religião, e não têm o direito de impedir os outros de expor os seus ensinos. Todos nós precisamos de partilhar os valores acima referidos. A fim de evitar a possibilidade de alienar o homem pós moderno, temos de reconhecer a discrepância ou dissociação entre os valores internalizados e a experiência real. Vamos todos demonstrar respeito para com as diferenças numa sociedade em que coexistem várias crenças e culturas.
Liberdade de religião ou de convicção no contexto europeu Harri Kuhalampi1 – Hannu Takkula2 As devastações da Segunda Guerra Mundial estão na origem da aplicação de uma nova parceria económica que se tornou mais tarde na União Europeia. Um dos principais objetivos era unir as nações europeias criando laços no domínio económico: contudo, o desenvolvimento de uma colaboração pacífica tornou-se possível graças a valores comuns. Era essencial incitar as nações europeias a colaborar pacificamente e a trabalhar em conjunto de forma construtiva, em vez de se fazer a guerra. Os últimos sessenta anos mostram à evidência, que as relações e o diálogo abriram o caminho a uma coexistência produtiva no quadro de um pluralismo cultural, linguístico e religioso. Sonia Morano-Foadi3 escreveu com verdade: “Uma das maiores dificuldades para a integração é construir uma identidade europeia baseada na ideia de um destino e de uma pertença comuns”. A liberdade de religião, ou de convicção, tem sido um dos valores essenciais no processo de construção de uma Europa pacífica, assim como o respeito pelos direitos do Homem, a democracia, o primado do Direito, a liberdade de opinião e a liberdade de expressão. Estes valores colocam em evidência os elementos maiores que os europeus partilham e que constituem os fundamentos de uma sociedade justa e equilibrada. Atualmente, a liberdade de religião ou de convicção está baseada na herança europeia e de harmonia com as suas tradições. Assim, em cada país da União Europeia, as Igrejas têm ligações diferentes com o Estado. No Reino Unido, temos o exemplo de uma Igreja do Estado. Uma separação rápida da Igreja e do Estado não teria sido uma estratégia exequível, porque isso não teria produzido os resultados esperados, como a liberdade de religião ou de crença. Assim como podemos constatar na história da Europa de Leste e da União Soviética em particular, esta abordagem criou um claro problema de liberdade religiosa para 1 Doutor em teologia. Conselheiro principal no Parlamento Europeu em Bruxelas. 2 Diplomado em educação. Membro do Parlamento Europeu em Bruxelas. Membro fundador do Grupo de trabalho do Parlamento Europeu sobre a liberdade de religião ou de convicção. 3 Morano-Foadi, “EU Citizenship and Religious Liberty in an Enlarged Europe”, (2010) European Law Journal, Vol. 16, nº4, julho de 2010, p. 417.
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a maior parte dos cidadãos. Ao avaliar a situação em muitos países comunistas europeus, a total separação entre a Igreja e o Estado não leva sistematicamente à liberdade de religião ou de convicção para todos. Por outro lado, a liberdade de religião pode ser uma realidade, mesmo se a separação da Igreja e do Estado não tenha sido considerada, e ainda menos aplicada. Assim, é importante ter em conta o facto de que cada país da União Europeia tem as suas tradições no domínio das relações entre o Estado e as diferentes Igrejas e comunidades religiosas. Aplicar a separação da Igreja e do Estado segundo o modelo americano na época da Independência não seria uma opção viável em toda a União Europeia e não poderia ser uma regra geral entre os Estados membros. Por outro lado, parece que tomar a iniciativa de realizar mudanças no domínio religioso não se releva da competência da União Europeia mas de cada Estado membro. Uma passagem brutal à economia de mercado no domínio religioso no seio da União Europeia não contribuiria, provavelmente, para um desenvolvimento da liberdade de religião e de convicção. Assim, o princípio da subsidiariedade foi aplicado no processo de formulação e de definição de uma política europeia comum envolvendo as Igrejas e as instituições religiosas. O Tratado de Lisboa pode ser considerado como uma referência maior no domínio das questões religiosas e das relações entre o Estado e as diferentes instâncias religiosas no seio da União Europeia em geral, mas igualmente em matéria de liberdade de religião ou de convicção. O artigo 17 declara: 1. A União respeita e não interfere no estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados-Membros. 2. A União respeita igualmente o estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as organizações filosóficas e não confessionais. 3. Reconhecendo a sua identidade e o seu contributo específico, a União mantém um diálogo aberto, transparente e regular com as referidas igrejas e organizações.4 O compromisso explícito para manter “um diálogo aberto, transparente e regular” com as diferentes organizações religiosas não é regulamentado de forma alguma. Pode-se afirmar que um diálogo constante é o melhor meio para favorecer o respeito e a compreensão mútuas. A União Europeia está aberta às ideias e às opiniões provenientes de fontes religiosas assim como não religiosas. O artigo 17 sublinha que as Igrejas e os grupos religiosos fazem parte da sociedade 4 http://especial.imgs.sapo.pt/multimedia/pdf/TratadoLisboa.pdf.
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e são tidos em conta na vida da União Europeia, assim como no seu processo de decisão e de administração. A União Europeia é laica, mas, contudo, está consciente das necessidades de todos os seus cidadãos, em matéria de religião. Sendo os seres humanos naturalmente inclinados a ter convicções ou a viver uma experiência no domínio espiritual, ou religioso, a União Europeia tem em conta o facto de que as pessoas devem poder encontrar uma resposta às suas necessidades fundamentais, ao mesmo tempo no plano privado e no domínio público, com os membros da sua comunidade de fé. Como todos os outros tratados fundamentais da União Europeia, o Tratado de Lisboa parte do princípio de que a União Europeia é laica. No entanto, todas as instâncias religiosas são reconhecidas como sendo parceiros legítimos. Graças a uma cooperação construtiva de organismos independentes e uma troca de ideias e de opiniões, a União Europeia, no seu conjunto, e cada um dos Estados membros, podem desenvolver-se e constituir sociedades mais justas e equitativas. É através de um diálogo aberto que os mal-entendidos, as dúvidas e a falta de respeito, que estão na origem da intolerância para com grupos religiosos ou étnicos, podem ser eliminados eficazmente. Como o ideal europeu visa mais a diversidade do que a uniformidade, é importante cooperar incitando os diversos atores responsáveis a comunicarem uns com os outros. Pensamos que o artigo 17 do Tratado de Lisboa pode, verdadeiramente, permitir o desenvolvimento da diversidade assim como da igualdade das organizações religiosas nos Estados membros da União Europeia, propondo canais de comunicação ao mais alto nível do nosso sistema administrativo e político comum. O Tratado de Lisboa é um ponto de referência global ao qual se vêm geralmente juntar leis nacionais apropriadas a cada Estado membro sobre a liberdade de religião ou de convicção. Assim, os problemas relativos à liberdade de religião na Europa não estão ligados a falhas jurídicas mas mais a atitudes coletivas e a modelos de comportamentos. O desenvolvimento da tolerância e da compreensão mútuas entre os europeus necessita de um “diálogo aberto, transparente e regular”. É, portanto, importante assegurar que o diálogo seja efetivo e que existe uma vontade real de escutar os outros e de ter em conta as suas ideias e opiniões. Atualmente, o debate sobre a liberdade de religião ou de convicção tem lugar no quadro jurídico mas, na realidade, a liberdade de religião é, antes de mais, uma questão de atitudes, de relações sociais e de diálogo. A tolerância e o respeito pelas opiniões e as práticas religiosas dos outros não podem ser objeto de regras jurídicas. Com efeito, estas atitudes resultam de um processo de aprendi-
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zagem social e cultural da sociedade. Por causa do contexto jurídico do debate, é por vezes desligado da vida diária dos vulgares cidadãos. A liberdade de religião ou de convicção deveria estar no centro das preocupações dos sociólogos, dos psicólogos e dos responsáveis políticos que sabem melhor que ninguém como funcionam as relações entre os diferentes grupos sociais. De facto, a questão da liberdade de religião deveria ser abordada com todos os cidadãos, e a prática dos seus princípios deveria fazer-se de forma unida às situações da vida quotidiana. É indispensável adotar uma abordagem mais concreta, a fim de que a liberdade de religião ou de convicção permita que a não-discriminação, o respeito mútuo e a tolerância caracterizem as relações a todos os níveis da vida pública. No decurso destes dois últimos anos, as instituições europeias prestaram uma grande atenção às questões relativas à liberdade de religião ou de convicção. Em dezembro de 2012, seis membros do Parlamento Europeu fundaram um grupo de trabalho sobre a liberdade de religião ou de convicção. Desde a sua criação, ele desempenha um papel ativo submetendo ao debate do Parlamento as questões relativas a este direito fundamental.5 A adoção das orientações da União Europeia sobre a promoção e a proteção da liberdade de religião ou de convicção pelo Conselho Europeu dos Negócios Estrangeiros em junho de 2013, marcou um avanço significativo.6 Este documento foi largamente discutido no Parlamento Europeu e adotado, em sessão plenária, em Estrasburgo, em 2013. Estas linhas orientadoras propõem conselhos aos diplomatas da União Europeia e aos responsáveis políticos que são confrontados com situações em que a liberdade de religião ou de convicção foi violada. Os princípios que figuram neste documento foram redigidos considerando que a liberdade de religião ou de convicção faz parte integrante da política estrangeira da União Europeia. Desde que este documento foi adotado, alguns sinais indicam que a liberdade de religião está, desde então, no centro das preocupações dos assuntos estrangeiros da União Europeia. Mas mesmo que nos possamos regozijar pelo facto de que a União Europeia estima que a liberdade religiosa ou de convicção faz parte integrante da sua política estrangeira, é indispensável definir com maior precisão, este direito fundamental, a fim de que possam ser feitas recomendações práticas aos cidadãos euro5 Site em inglês: http://www.religiousfreedom.eu/wp-content/uploads/2014/02/EPWG-2013-Report-Final-for-printing.pdf. 6 Site em francês: http://www.observatoirepharos.com/international/conseil.de.lue.orientationsliberte-de-religion-ou-de-conviction-24-06-2013-fr.
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peus. Infelizmente, muitos europeus têm a liberdade de religião ou de convicção como adquirida, consideram-na como um estado de facto e, por conseguinte, ela é, muitas vezes, mal avaliada no seio da União Europeia. Além disso, o verdadeiro sentido da liberdade de religião ou de convicção é confuso no espírito de muitas pessoas. Alguns cidadãos europeus utilizam o direito à liberdade de religião ou de convicção para justificar o seu pedido de supressão de qualquer sinal religioso, no espaço público. Infelizmente, certas pessoas não compreendem que a liberdade de religião ou de convicção é um direito fundamental para todos os cidadãos e que compreende, igualmente, a liberdade de expressão. Se a liberdade de religião ou de convicção é reduzida para algumas pessoas, seguir-se-á que esse direito será, inevitavelmente, limitado para todos. Além disso, isso porá fim ao pluralismo, que é, no fim de tudo, um valor europeu fundamental.
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Igreja e Estado na Itália, em Portugal e em Espanha. O sistema piramidal1 Tiziano Rimoldi2 Segundo a classificação tradicional das relações entre as Igrejas e as religiões3 distinguem-se três modelos base: a. a subordinação, significando que a Igreja está submetida ao Estado (é por vezes chamada Igreja do Estado),4 b. a separação, c. a coordenação (a que se dá, por vezes, o nome de sistema híbrido ou de cooperação).5 Estes modelos clássicos não existem unicamente em estado puro. No passado, tal como no presente, constatam-se as diferenças entre o modelo original e a realidade. Quereria concentrar-me, particularmente, sobre um grupo de Estados que apresentam numerosas semelhanças a partir do século XX e que deriva do modelo de cooperação entre a Igreja e o Estado: a Itália, Portugal e Espanha.6 1 Esta exposição foi apresentada na primeira conferência “Consciência e Liberdade” cujo tema era A Crise Europeia e os seus desafios à Liberdade Religiosa, na Universidade Lusófona em Lisboa, no Auditório Armando Guebuza, Biblioteca, a 2 de Abril de 2012. 2 Tiziano Rimoldi é professor de Direito Eclesiástico na Faculdade de Teologia e do Instituto de Cultura Bíblica, em Florença, Itália. 3 Ver F. Margiotta Broglio, Il fenómeno religioso nel sistema giuridico dell’Unione Europea, em F. Margiotta Broglio e out., Religione e sistemi giuridici. Introduzione al diritto ecclesiastico comparato. Bolonha, Il Mulino, 1997, p. 122 e seg.. 4 Ver N. Doe, Law and Religion in Europe, Oxford Nova Iorque, Oxford University Press, 2011, p. 28. 5 Idem, p. 29, 35. 6 G. Robbers, État et Eglises au sein de l’Union européenne, em G. Robbers (ed.). 2ª ed. Baden-Baden, Nomos, 2008, consultável em http://www.uni-trier.de/index.php?id=25059&L=2#c49875, p. 627: “O terceiro tipo é caracterizado por uma separação de base da Igreja e do Estado, deixando aparecer, ao mesmo tempo, um reconhecimento de múltiplas tarefas comuns pelas quais as ações do Estado e eclesiásticas estão em relação. Encontram-se nesta categoria a Bélgica, a Polónia, a Espanha, a Itália, a Hungria, a Áustria, Portugal e a Alemanha. Em alguns destes países, as convenções concluídas entre o Estado e os cultos desempenham um papel importante; estes sistemas são, desta forma, por vezes classificados de sistemas convencionais. A importância de tais convenções não deve, no entanto, ser subestimada; elas refletem mais o sistema básico de cooperação de que são o fundamento. As circunstâncias sociais sugerem, no entanto, outros reagrupamentos que colocam, dessa forma, em questão esta classificação baseada nas considerações legais e teóricas”.
Igreja e Estado na Itália, em Portugal e em Espanha. O sistema piramidal
I. Um contexto histórico similar Desde logo, é necessário lembrar que estes três países partilham a mesma realidade histórica e sociológica de um catolicismo a que pertence a maior parte dos seus cidadãos e contribuiu, largamente, para moldar a cultura do país. No século XX estes países passaram de um governo que era, mais ou menos, hostil à religião tradicional do país, no sentido em que os liberais, ou os radicais se opunham ao catolicismo, a um regime nacionalista autoritário. Esta transição foi caracterizada pela adaptação ou o reforço do estatuto do catolicismo como religião do Estado e a assinatura de concordatas com a Santa Sé (1929 pela Itália, 1940 por Portugal e 1953 pela Espanha). A ideia subjacente à adoção deste estatuto era a de ideal político centrado na unidade e repousando sobre uma tríade de elementos nacionalistas: a unidade política (um partido); a unidade cultural (uma língua e uma cultura); a unidade religiosa (uma religião).7 De facto, estes regimes são, sobretudo, caracterizados pela sua recusa sistemática de qualquer desvio interno perante um dos elementos desta tríade e pelas medidas de repressão que se seguiriam.8 Depois, mesmo que tenham voltado a um regime democrático, no decurso do século XX, no fim da Segunda Guerra Mundial para a Itália e nos anos setenta para Portugal e Espanha, o abandono do modelo confessional ou o de uma Igreja estabelecido, não se deu, oficialmente, nestes países senão nos anos setenta,9 ou oitenta.10 7 N. Doe, ob.cit., p.35: “O modelo mais corrente na Europa é o modelo dito híbrido ou de cooperação, que é caracterizado por uma separação fundamental do Estado e da religião, sabendo, contudo, que as relações com as organizações religiosas e os assuntos de interesse comum são geralmente regulados por acordos. Portugal, Espanha e Itália podem ser considerados aqui, como exemplos clássicos”. 8 Por exemplo, “até à Constituição de 1976, após a revolução dos cravos em Portugal, a Igreja Católica era considerada como a religião, quer do Estado, quer da Nação portuguesa, o que legitimava qualquer forma de discriminação manifesta, ou escondida, quer fosse de natureza política, jurídica, social ou cultural, para com os não católicos. Estes não eram considerados como membros de corpo inteiro da comunidade política, mas mais como marginais” (J.E.M. Machado Direito e religião em Portugal – da libertas ecclesiae à liberdade religiosa na revista Consciência e Liberdade nº 15, 2005, p.67) 9 Ver, por exemplo, a repressão das autonomias locais, baseadas na cultura e na língua, ou das minorias religiosas na Itália. S. Fontana (ed.) Il fascismo e le autonomie locali, Bolonha, Il Mulino, 1973. 10 Constituição portuguesa (1976), art. 41,§ 4: “4. As Igrejas e as comunidades religiosas estão separadas do Estado e podem organizar-se livremente, exercer as suas funções e celebrar o seu culto.”; Constituição espanhola (1978), art.16, § 3: “ (3) Nenhuma confissão é religião do Estado. Os poderes públicos têm em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola e manterão relações de cooperação com a Igreja Católica e as outras confissões.”
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A promulgação de novas Constituições e da adesão deliberada à democracia e à liberdade religiosa não coincidiu com uma abrogação das concordatas com instrumentos que permitem uma regulação global das relações com a Igreja Católica. De facto, estes três países assinaram uma nova concordata ou uma modificação do texto anterior (Espanha 1979, Itália 1984, Portugal 2004) mais conformes com a declaração Dignitatis Humanae do Vaticano II e a secularização crescente das sociedades, e em consequência abandonaram o estatuto de Igreja estabelecida, para a Igreja Católica. II. Princípios constitucionais da cooperação entre a Igreja e o Estado Não há nenhuma dúvida de que estes Estados, tal como aqueles que fazem parte da União Europeia e os que ratificaram a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, reafirmaram, nas suas Constituições, o seu apego aos valores de um sistema democrático, à aplicação da lei e à proteção da liberdade religiosa e isto seja qual for o sistema escolhido. De facto, estes três países têm nas suas respetivas Constituições artigos que afirmam o princípio da igualdade e da não discriminação (Itália, artigo 3, par. 1; Portugal, artigos 33 e 59 par. 1; Espanha, artigo 14) e garantem a liberdade religiosa (Itália, artigos 19, 20; Portugal, artigos 19, par. 6, artigo 35, par. 3, 41, 43, par. 2, 51; Espanha, artigo 16). Estas diferentes Constituições, contudo, não regulamentam de maneira uniforme as relações com as comunidades religiosas. Se compararmos os três documentos, começando pelo da Itália e terminando com o de Portugal, constatamos um certo enfraquecimento de apoio constitucional concedido à cooperação entre o Estado e as comunidades religiosas. A Constituição italiana afirma claramente, no artigo 7, que as relações entre o Estado e a Igreja Católica são regulamentadas pelos Acordos de Latrão, que são tratados internacionais e que, até à modificação de 1984, eram os textos que davam à Igreja Católica o estatuto de Religião estabelecida. O artigo 8, parágrafo 3 estipula que as relações com o Estado das confissões religiosas que não a confissão católica, são fixadas pela lei sobre a base de entendimento com os seus representantes respetivos. A Constituição espanhola, no seu artigo 16 sobre a liberdade religiosa, estipula que nenhuma confissão é religião do Estado e que os poderes públicos terão em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola e manterão relações de cooperação com a Igreja Católica e as outras confissões. Como se pode ver, a
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cooperação mencionada não tem uma forma específica e não há nenhuma referência formal a uma concordata ou a acordos especiais. A Constituição portuguesa, estipulando uma separação formal entre as comunidades religiosas e o Estado, não menciona nenhuma possibilidade de cooperação ou de concordata, ou outros acordos. III. O estatuto jurídico das comunidades religiosas Seja o que for o estipulado pela Constituição, estes três Estados possuem, todos, como foi dito acima, uma concordata em vigor. Isso não resulta apenas do facto da Santa Sé gozar de um estatuto internacional, mas é também a prova da relação privilegiada que a Igreja Católica mantém com os países em que é a Igreja tradicional. As minorias religiosas têm a possibilidade de se fazerem registar e de obterem o estatuto de personalidade jurídica: em Espanha e em Portugal, de acordo com a lei geral sobre a liberdade religiosa (lei portuguesa 16/2001 e lei espanhola 7/1980; na Itália, de cordo com a legislação sobre os cultos adotada durante o período fascista (lei 1159/1929 e decreto 289/1930). Este estatuto implica normalmente a possibilidade de beneficiar de ofertas, de heranças, e de diversas vantagens fiscais, etc. de acordo com a Constituição da Itália, e as leis aplicáveis à liberdade religiosa em Portugal (lei 16/2001 artigo 5) e em Espanha (lei 7/1980 artigo 7), as comunidades religiosas podem obter acordos com o Estado. Os especialistas têm discutido longamente sobre qual a justificação desses acordos. Na minha humilde opinião, uma das ideias mais interessantes é que este tipo de acordo tem como objetivo adaptar as regras e as disposições gerais da legislação às necessidade específicas da cada confissão,11 desde que “a prática convencional sirva para impedir que as práticas e normas, aparentemente neutras, causem alguma discriminação por razões religiosas”.12 Estes acordos derivam de uma decisão política tomada pelo governo e devem ser aprovadas pelo Parlamento. Foi feito uso desta possibilidade pela primeira 11 Na Itália, com o acordo de 1984 modificando a concordata de 1929, em particular com o artigo 1 do protocolo adicional: “1. (…) É considerado como não estando em vigor o princípio recordado na origem pelos Acordos de Latrão, segundo o qual a religião católica é a única religião do Estado italiano”. 12 M. Rodríguez Blanco, Religion and Law in Dialogue: The Covenantal and Non-Covenantal Cooperation of State and Religion in Spanish Law, in R. Puza, N. Doe (eds.), The Covenantal and Non-Covenantal Cooperation between State and Religion in Europe, Leuven, Peeters, 2006, p. 226.
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vez na Itália13 nos anos oitenta do século XX e, em Espanha14 nos anos noventa. Os dois Estados escolheram uma abordagem diferente. Enquanto a Itália preferiu assinar um acordo com cada Igreja ou comunidade religiosa (as Igrejas valdense, adventista, batista e luterana, assembleia de Deus, comunidade judaica), a Espanha optou por um processo mais complexo consistindo em fazer acordos com federações de Igrejas ou comunidades religiosas pertencentes à mesma família confessional: protestantes (FEREDE), os judeus (FCI) e muçulmana (CIE). Na Itália como em Espanha, o tempo dos acordos mantém-se resolvido. Na Itália, os últimos acordos assinados com o governo, não foram transmitidos ao Parlamento senão a contragosto, o qual os remeteu para as calendas gregas ou se recusou a recebê-los. Trata-se das seguintes comunidades (por ordem alfabética) apostólicos, budistas, hindus, ortodoxos, testemunhas de Jeová, Santos dos Últimos Dias (mormons), sabendo que alguns dentre eles tinham assinado um tal acordo com o governo pela primeira vez em 2000! Em Espanha, o governo não parece disposto a realizar novos acordos.15 E daí resulta “juridicamente, um efeito perverso: as organizações religiosas minoritárias, que recentemente se implantaram em Espanha, podem beneficiar de um acordo com o Estado se se integrarem numa das federações que já têm acordo. Por outro lado, confissões que contam com um grande número de membros e gozam de uma bem longa tradição em Espanha, não podem beneficiar de um estatuto jurídico que garanta as vantagens que normalmente daí derivam. Além disso, as federações decidindo elas próprias, da adesão das Igrejas ou das comunidades, o Estado não pode, no fim de contas, decidir quem serão os beneficiários do sistema jurídico implementado pelos acordos, o que constitui em si mesmo, um paradoxo, uma vez que os acordos foram ratificados pelo Parlamento”.16 13 Idem, p. 225. 14 O primeiro acordo foi celebrado com a Igreja Evangélica Valdense em 1984. 15 O primeiro acordo foi celebrado com a Federação Espanhola de Entidades Religiosas Evangélicas em 1992. 16 J. Martinez Gijón, em Los acuerdos con las confesiones minoritárias diez años de vigência, Madrid. Ministério da Justiça, 2003, p. 202: “Quanto à possibilidade de assinar novos acordos com as confissões que até agora o não fizeram, penso que sem desaprovar, é certo, as razões que estão a favor e contra esta possibilidade, afirma o orador, devemos admitir que a multiplicação excessiva de acordos é não só pouco desejável mas não parece útil. No entanto, não se pode fechar a porta completamente àqueles que estão a tratar de concluir novos acordos, acordos esses, que poderão ter um conteúdo diferente e demarcar-se do uniformitarismo que caracteriza todos os formalismos até ao presente”.
Igreja e Estado na Itália, em Portugal e em Espanha. O sistema piramidal
Algumas confissões bem estabelecidas nesses dois países sendo excluídas dos acordos, não podem beneficiar das vantagens ou das medidas criadas por estas comvenções,17 especialmente as questões fiscais,18 as exonerações e as concessões,19 embora a assinatura de um acordo tenha sido usada, na Itália e em Espanha, como “bilhete de entrada” para outras vantagens previstas pela legislação regional, provincial ou local.20 Gostaria de mencionar aqui a legislação italiana regional reservando a concessão de subvenções regionais aos oratórios e centros comunitários religiosos apenas para as confissões que fizeram um acordo geral com o Estado.21
17 M. Rodríguez Blanco, Op. Cit., p. 218. 18 Idem, p. 227: “Podemos, portanto, dizer que o principal objetivo destes acordos é ter em consideração as particularidades e características de cada confissão para que cada cidadão possa gozar, em matéria de liberdade religiosa, de um direito real e tangível; trata-se, acima de tudo, de conceder um estatuto jurídico especial a certos grupos religiosos sobre diversos assuntos: ensino, questões financeiras, casamento, locais de culto, etc. As organizações religiosas que não assinaram nenhum acordo com o Estado, não beneficiam, portanto, das vantagens e medidas previstas pelas convenções. Não se pode, certamente, falar aqui de violação do princípio de não-discriminação, porque este princípio implica que o grau de liberdade entre as diferentes confissões deve ser o mesmo, mas que o grau de cooperação pode diferir. É contudo, evidente, que o diálogo ou a cooperação entre autoridades públicas e grupos religiosos tem incidência sobre a liberdade religiosa e os direitos dos membros deste grupo”. 19 N. Doe. ob. cit., p. 179: “Na Itália, a Santa Sé e as comunidades que fizeram um acordo com o Estado, podem requerer que das ofertas efetuadas pelos seus membros lhes sejam devolvidos 0,8% do imposto pago; na sua declaração do imposto, o contribuinte pode assinalar uma casa para que esse dinheiro seja utilizado para os seguintes fins: para o Estado italiano financiar medidas excecionais contra a fome no mundo, catástrofes naturais, para a ajuda a refugiados e a conservação de monumentos culturais; à Igreja Católica para o financiamento do culto (ou benefício da população), o apoio concedido ao clero, as medidas de apoio social em favor da comunidade nacional ou dos países do terceiro mundo”. Um sistema similar existe em Espanha, contudo, os contribuintes podem afetar (por dedução) 0,7% do seu imposto à Igreja Católica ou a medidas sociais decididas pelo governo. Nenhuma disposição está prevista para uma afetação a outras organizações religiosas (…) Nota da edição portuguesa: Em Portugal é possível a afetação de 0,5% do valor do imposto, a qualquer ONG, ou organização de solidariedade social reconhecida, e isso à escolha do contribuinte. 20 N. Doe, Id., p. 185/6. 21 M. Rodríguez Blanco, ob. cit., p. 228: “No sistema jurídico espanhol, constata-se desde os inícios dos anos 80 uma forte tendência para introduzir medidas legislativas – vantagens e direitos – unicamente para os grupos religiosos que assinaram um acordo. Deste facto, o princípio de cooperação com as autoridades públicas aparece como estando intrinsecamente ligado à assinatura do acordo”.
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IV. O sistema piramidal Como se pode constatar, existe na Itália e em Espanha um sistema de relações entre a Igreja e o Estado que é elaborado segundo uma configuração piramidal: – No cimo temos a Igreja Católica que beneficia de uma concordata e de um nível de cooperação mais elevado com o Estado. – Depois, temos as comunidades religiosas que assinaram um acordo com o Estado e beneficiam, em grande parte, de mesmo regime que a Igreja Católica. – Na terceira posição, estão as comunidades religiosas registadas que beneficiam das vantagens que a legislação prevê, ligadas com os seus objetivos religiosos. – Por último, temos as comunidades religiosas que não estão registadas, seja por decisão própria, ou por uma recusa do Estado. Trata-se, portanto, de um sistema com uma certa disparidade uma vez que as diferentes comunidades religiosas são tratadas de forma diferente, o que não é forçosamente devido às diferenças fundamentais entre elas, mas mais por razões políticas. O sistema português em matéria de relações entre o Estado e a Igreja. Em Portugal, é similar aos dois precedentes mas apresenta, contudo, um certo número de características que gostaria de sublinhar: – No cimo da pirâmide, está a Igreja Católica que foi objeto de uma concordata em 2004. – Entre o primeiro e o segundo nível, é necessário preservar um lugar especial para o acordo entre a República Portuguesa e o Imamat Ismaili22 que parece ocupar uma posição híbrida. Este foi aprovado pelo Parlamento como um tratado internacional segundo o artigo 161, alínea i)23 e o artigo 166, parágrafo 524 da Constituição, que regula respetivamente a competência da Assembleia da República para o que se refere a assinatura de tratados e da forma dos atos aprovados dessa forma, sabendo que no seu artigo 2, parágrafo 1 se estipula que a assinatura do acordo obedece aos princípios fixados pela Lei 16/2001. 22 Ver T. Rimoldi, Oratori, Costituzione e laicità. Alcune considerazioni sulla recente legislazione regionale e statale in matéria di oratori, em D. Bognandi, M. Ibarra (eds.), Laicità umiliata, Turino, Claudiana, 2006, p. 73-90. 23 Resolução da Assembleia da República nº 109/2010, “Diário da República”, 1ª série, nº 187, 2 de setembro de 2010, p. 4271-4275. 24 Artigo 161 (Competência política e legislativa). A Assembleia da República exerce as seguintes competências: (…) i) Aprovar os tratados, especialmente os tratados da participação de Portugal nas organizações internacionais. Os tratados de amizade, de paz, de defesa, de ratificação de fronteiras, os tratados relativos às questões militares e os acordos internacionais desde logo que a sua competência reservada isso autorize ou que o Governo lhos decida submeter. (…)
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– O segundo nível será reservado às comunidades religiosas que estão implantadas no país (Lei 16/2001) e que assinaram um acordo com o Estado sobre assuntos de interesse geral, conforme o artigo 45 da Lei 16/2001. Até agora não existe nenhum acordo deste tipo. – No terceiro nível, temos as comunidades religiosas registadas no Registo de pessoas coletivas religiosas (RPCR) com a competência funcional desse mesmo RPCR.25 O sistema de registo português definido pela Lei 16/2001, concede às comunidades religiosas registadas, assim como aos seus membros e pessoal religioso,26 bem mais liberdade, autonomia e vantagens do que os sistemas italiano e espanhol: podem organizar-se segundo as suas próprias regras internas (art. 22), ensinar a religião nas escolas públicas (art. 24),27 ter acesso à televisão e à rádio (art. 25),28 ter um papel consultivo durante a preparação das leis de ocupação dos solos (art. 28), beneficiar de exonerações de impostos e de reduções (art. 32). No seio das comunidades religiosas registadas, aquelas que são ditas enraizadas no país (Lei 16/2001, artigos 37 e 67) têm ainda mais possibilidades:29 cooperação com o Estado na promoção dos direitos do Homem; desenvolvimento de todo o ser humano e dos valores da paz, da liberdade, de solidariedade e de tolerância, celebração de casamentos de acordo com as suas regras internas (Lei 16/2001, artigo 19), assento na Comissão que decide as grelhas dos programas na televisão (Lei 16/2001, artigo 25 par. 3) e na Comissão para a liberdade religiosa (Lei 16/2001, art. 56), quota-parte na redistribuição dos 0,5% do imposto sobre o IVA (Lei 16/2001, art. 32, par. 4-7); possibilidade de um acordo específico com o Estado sobre questões de interesse comum (Lei 16/2001, Cap. V) isenção do IVA (Lei 16/2001, art. 65). No nível mais baixo, como nos outros dois países, estão comunidades re25 Decreto-Lei 134/2003, art. 1. 26 Alguns direitos religiosos individuais estão ligados ao estatuto de membro de uma comunidade religiosa registada conforme a Lei 16/2001, art. 17 (serviço militar do pessoal religioso); art. 18 (exceção para o pessoal religioso da obrigação de fazer parte de um júri). 27 Embora na Itália este procedimento esteja submetido a uma grande dose da arbitrariedade e o Ministério do Interior exige, frequentemente, a inserção de cláusulas específicas. 28 Na Itália, o ensino religioso sistemático nas escolas públicas é reservado à Igreja Católica. Os acordos com as minorias religiosas preveem a possibilidade de intervenções esporádicas nas escolas. 29 Ver V. Canas, État et Églises au Portugal, em G. Robbers (éd.), État et Églises dans l’Union Europèenne, p. 483.
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ligiosas que não estão registadas e operam sob o regime da Constituição, das disposições gerais da Lei 16/2001,30 e do Código Civil. Uma vez que o modelo de cooperação adotado por Portugal foi adotado mais tarde do que na Itália e em Espanha, é mais preciso e mais vasto. A adoção da nova legislação sobre a liberdade religiosa é relativamente recente. Só o futuro nos poderá dizer em que direção Portugal se vai orientar no domínio das relações entre o Estado e a Igreja. Duas questões importantes serão de considerar 1) se o Estado aceitará dado o caso, os pedidos de negociação para acordos pontuais e limites, de acordo com os artigos 45 ou 51 da Lei 16/2001, e 2) se, no dia-a-dia os funcionários das repartições e os agentes da administração aplicam de forma equitativa esta bela legislação sobre a liberdade religiosa que eu penso, como italiano, que apenas podemos invejar. Estou certo de que, num tal caso, resultará na coesão nacional e na igualdade de todos os cidadãos e residentes da República portuguesa dos avanços de que todo o país beneficiará. V. O impacto da crise económica na União Europeia Gostaria de fazer uma última observação no que diz respeito à atual situação económica. Sabemos que pode ser difícil para os governos, em tempo de crise, fazer aceitar, às suas populações, as restrições nos serviços públicos, os aumentos de impostos ou os cortes severos nas reformas e subvenções. Esta situação pode ter repercussões sobre as comunidades religiosas. Darei dois exemplos. Na Itália, o governo de Mário Monti, antigo comissário europeu, preparou um novo imposto predial sobre os edifícios que são utilizados pelas comunidades religiosas para atividades não religiosas. Isto parece ser também o fim para o processo contra a Itália aberto há alguns anos sobre a forma de aplicação do imposto local sobre a propriedade, o qual isentava quase todos os imóveis de comunidades religiosas, fosse qual fosse a sua utilização, o que poderia ser considerado como aceitável e até mesmo equitativo em tempo de crise. A crise pode também levar dirigentes políticos a aprovar uma legislação cujo fim é reforçar a coesão nacional e que pode conduzir a uma limitação de alguns direitos 30 Ver M. Ventura, http://www.o-re-la-org/index.php?option=com_k2&view=item&id=194:italianchurch-and-state-ambiguities-challenged-by-the-debt-crisis-the-ici/imu-affair&Itemid=85&lang=fr 20 de maio de 2012.
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fundamentais do Homem tais como a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Foi exatamente o que aconteceu na Hungria. É um caso que me interessa muito particularmente porque a Hungria é um dos países que adotou um sistema de relações entre a Igreja e o Estado similar ao que observámos na Itália, em Portugal e em Espanha.31 Entre numerosas outras leis que foram adotadas e que tendem a dar mais poder ao governo,32 e a reduzir o controlo democrático, foi votada uma nova lei sobre a liberdade religiosa em julho de 2011. Esta nova “lei sobre o direito à liberdade de consciência e de religião e sobre as Igrejas, religiões e comunidades religiosas” que devia entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de 2012, não reconhece oficialmente senão 14 comunidades e organizações religiosas húngaras sobre as 362 registadas até ao presente no quadro da lei de 1990: “Excetuando estas 14 comunidades, qualquer associação religiosa ao requerer um reconhecimento oficial deverá provar que está implantada na Hungria há pelo menos 20 anos, acompanhada de 1000 assinaturas, encontrar apoio de um ministro ou governo, obter a autorização do serviço de segurança nacional e uma maioria de dois terços do Parlamento”.33 Com esta lei, o número de comunidades religiosas registadas é, portanto, extremamente reduzido. Um dos resultados diretos desta nova lei será a redução draconiana das somas atribuídas pelo Estado às comunidades religiosas registadas. Outras mudanças vão afetar o estatuto das escolas e das instituições sanitárias e sociais geridas pelas comunidades religiosas. Em dezembro de 2011, esta lei controversa foi rejeitada pelo Tribunal Constitucional húngaro, mas o Parlamento húngaro tinha aprovado em 30 de julho de 2011 uma versão emendada, similar à precedente. Em fevereiro de 2012, o Parlamento alargou a lista das Igrejas oficialmente reconhecidas fazendo passar o número para 32 das 82 que tinham pedido esse reconhecimento. Como já foi dito, “as minorias religiosas poderiam ser um bode-emissário se os problemas económicos e políticos se viessem a desenvolver no futuro”.34 Espero que os nossos países não conheçam uma tal tentação seja de que forma for, e que continuemos a promover o equilíbrio, a liberdade e a igualdade. 31 Ver B. Schanda, Chiesa e Stato in Ungheria, em S. Ferrari, W.Cole Dutham. Jr., E. A. Sewell (eds.), Dirito e religione nell’Europa post-comunista, Bolonha, Il Mulino, 2004, p. 161-188. 32 A União Europeia e o Conselho da Europa criticam o facto da Hungria ter restringido a independência do seu Banco Central e do seu sistema judiciário pelo facto da adoção da nova Constituição. Em março de 2012, a União Europeia pediu à Hungria que emendasse duas leis controversas sobre o sistema judiciário e a proteção dos dados pessoais. 33 D. Bandow, Hungary Threatens Religious Liberty, http://www.huffingtonpost.com/doug-bandhow/ hungary-threatens-religio_b_1135263.html 7 de dezembro de 2011. 34 D. Bandow¸ ob. cit.
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A Igreja Batista; porque creio na separação da Igreja e do Estado1 Denton Lotz2 “A evangelização é contrária à lei. Se somos acusados de levar alguém à fé em Cristo, somos passíveis de prisão. Para um muçulmano, é contrário à lei mudar de religião e ser batizado. Aquele que o fizer é considerado como um infiel e expõe-se a ser morto pelos fundamentalistas intransigentes. Em Israel, o judaísmo é a religião do Estado. O facto de mudar de religião leva, quase sempre, a ser excluído da família e ao ostracismo. A ortodoxia e o catolicismo são religiões de Estado em numerosos países. As pessoas que mudam de filiação religiosa para adotar a fé evangélica são tidas como traidoras. O governo considera os batistas que organizem uma nova comunidade como destruidores da sua cultura, etc.” À Aliança Batista Mundial chegam relatórios sobre o que acontece quando existe uma religião do Estado. As religiões do Estado são essencialmente totalitárias e a expressão de uma ideologia que apoia o Estado em nome de Deus: por sua vez, o Estado em virtude desta “divina” legitimidade, interdita qualquer outra forma de expressão religiosa. Foi contra tais religiões do Estado que os batistas se revoltaram foram presos no século XVII. Em Inglaterra, Johyn Smyth, John Bunyan, John Milton viveram sob a terrível regra férrea de uma religião do Estado. Não é de admirar que o pequeno grupo de batistas da Nova-Inglaterra, à sua chegada a Rhode Island com Roger Williams, peça a liberdade religiosa para todos. Estes crentes tinham bem recentemente escapado do jugo de uma religião do Estado e dos seus tentáculos ameaçadores que infestavam todos os domínios da vida. Recentemente, a Aliança Batista Mundial organizou, no Médio Oriente, uma conferência reunindo responsáveis batistas. Ouvimos testemunhos extraordinários da ação do Espírito Santo em países onde a Igreja e o Estado não estão separados. Graças a Deus, não há cortina de ferro para o Espírito, que conduz sempre os homens e as mulheres a uma convicção ainda mais forte de 1 Artigo publicado na revista C&L (edição francesa) nº 47, 1994. 2 Secretário-geral da Aliança Batista Mundial.
A Igreja Batista; porque creio na separação da Igreja e do Estado
que a conceção batista da liberdade religiosa e a separação da Igreja e do Estado não é apenas justa, mas bíblica. Cristo convida toda a humanidade à liberdade e todos devem ter a faculdade de O aceitar como Senhor e Salvador. Desejamos dirigir-nos a todas as pessoas de boa vontade, sejam judeus, muçulmanos, ortodoxos, católicos ou batistas. “Deixem-nos praticar a nossa fé em liberdade. Deem-nos a liberdade de evangelizar, isto é, de partilhar a nossa fé com cada um, porque esse é um aspeto fundamental da nossa fé. Se a envangelização for interdita, a nossa liberdade religiosa é negada.” Assim como os minaretes se elevam nos céus de Francoforte, Paris, Londres e Washington, não deveríamos nós ter a liberdade de levar a cruz de Cristo a Teerão, a Bagdad, ao Koweit ou a Riad? Os batistas não querem um Estado batista, mas um Estado onde se honre a liberdade de expressão e de religião para todos. É evidente que pregamos a Cristo, mas respeitamos o vosso direito de pregar o que quiserem! Separemos a religião do Estado e o Estado da religião, e concedamos a liberdade às pessoas no mundo inteiro, mas particularmente no Médio Oriente. A separação da Igreja e do Estado não significa que a Igreja aceite ou permita ao Estado que espezinhe os imperativos morais de Evangelho. Isso também não significa a apatia quando não fazemos nada. Pelo contrário! Os batistas estão, geralmente, de acordo com os calvinistas no que concerne a compreensão do papel da Igreja que deve ser o transformar a sociedade, ser o fermento que muda os homens e as mulheres e cuja vida e o testemunho abatem os reinos e elevam Cristo. A abolição da escravatura e o fim do apartheid e da segregação não são senão um exemplo do poder transformador da mensagem da Igreja na vida das nações. Sejamos sempre fiéis a Cristo, trabalhemos e oremos para que chegue esse dia em que “reino do mundo passou a ser de nosso Senhor e do Seu Cristo e Ele reinará pelos séculos dos séculos”. (Apocalipse 11:15)
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A liberdade religiosa segundo o judaísmo1 Sergio Sierra2 Segundo a tradição bíblica, a Divindade libertou o povo de Israel e ao fazer isto, ensinou de forma implícita que a liberdade deve constituir a base essencial de todas as aspirações éticas, sociais e religiosas. O problema da liberdade religiosa não consiste apenas, na minha opinião, em considerar que o indivíduo seja isento de qualquer coerção religiosa possível. Se ela se limita a este aspeto, necessitamos então de julgar o indivíduo segundo dois critérios: do ponto de vista de membro de uma sociedade civil e do ponto de vista de membro de uma comunidade religiosa. Entre estas duas esferas sociais da política e da religião, a relação pode variar. Com efeito, se se reconhece hoje com exatidão a liberdade religiosa como um direito fundamental da pessoa humana, parece lógico, no quadro de uma confissão, que seja absolutamente impossível admitir que um adepto de determinada religião aja invocando apenas os seus direitos e ignorando todos os deveres prescritos por esse mesma religião. O problema analisado neste documento deve, parece-nos, ser tratado num plano particular, a fim de examinar a relação que existe entre “religião” e “verdade”. Sendo dado que há muitas formas de conceber a verdade religiosa, será que o judaísmo garante uma livre expressão da consciência nas suas manifestações de relação social, oferecendo um ensino que representa mais do que a simples tolerância religiosa? Além disso, o judaísmo prega uma compreensão que, ultrapassando o conceito de tolerância, exprime a riqueza da fé? Esta fé, sem suprimir as diferenças, e mesmo, por vezes, acentuando-as, mantém-se sobre um plano de respeito, o mais profundo, do direito de cada um em matéria religiosa. Convém, desde logo, notar que ao longo da sua secular existência, o povo judeu se desenvolveu em diferentes etapas. Como comunidade nacional e religiosa, Israel atravessou diversas fases que deixaram, todas elas, impressões indeléveis nas suas expressões históricas, literárias e religiosas. O judaísmo é um processo histórico e espiritual se bem que se exprima sob 1 Artigo publicado na revista Consciência e Liberdade nº 5, (edição francesa) 1973. 2 Professor de literatura hebraica na Universidade de Roma. Secretário da União Israelita. Rabino de Bolonha e de Turim.
A liberdade religiosa segundo o judaísmo
diversas formas, segundo as épocas, contudo, está ligado por um património comum que tem constituído a real unidade religiosa e nacional do povo de Israel: a Tora, dito de outra forma, o ensino divino – compreendido como expressão dinâmica no processo judaico histórico. No decurso da longa História do judaísmo, todas as autoridades oficialmente reconhecidas dispuseram inevitavelmente, de uma certa força de coerção permitindo-lhes fazer respeitar a lei judaica. Apesar disso, grandes movimentos judaicos, através de procedimentos de interiorização espiritual relativas à Tora, agitam e reavivam periodicamente o entusiasmo das massas judaicas, graças a uma mensagem de atualidade e a uma resposta dinâmica às exigências dos tempos. Tem podido ser assim porque a Tora é considerada como a fonte da vida inesgotável e essencial do judaísmo assim como a base da comunidade judaica de todas as épocas. Resta, no entanto, evidente, que um documento vivo – e que se desenvolve continuamente – deve ser interpretado; de facto, nenhuma “verdade” pode ser expressa assaz claramente para responder perfeitamente a todas as interrogações que cada situação põe no decurso da História. Assim, a forma como se pode preservar a liberdade, no seio de um sistema de ideias invariável, constitui, em si, um problema tanto para uma comunidade política, como para uma comunidade religiosa. Em todos os tempos, os Mestres do judaísmo deram-se conta de dupla necessidade de conservar uma Tradição que não se esgote, ao ponto de se chocar com o seu valor dinâmico; assim, graças às interpretações, tem sido possível conservar, no seio da comunidade judaica, uma força progressiva e apta a conceder a liberdade. Com estes pontos bem estabelecidos, será mais fácil compreender o que significa a liberdade religiosa segundo o judaísmo. Propomos de novo o tema da relação que o judaísmo estabelece entre “religião” e “verdade” para chegar não apenas ao sentido da liberdade interior que encoraja a religiosidade do indivíduo, mas também o sentido da liberdade exterior, essa liberdade político-jurídica que todas as religiões dignas de consideração se devem reivindicar para si próprias e para qualquer outra expressão do pensamento. Se pela sua constituição, uma religião contribui para a liberdade exterior limitando o sentido a qualquer outro pensamento laico ou religioso, essa religião encerra uma força criativa de formas de vida novas e sempre melhores. É apenas na afirmação de um princípio de liberdade exterior, posto por uma religião, que aflora a possibilidade – aceitável para todos – da coexistência pacífica e proveitosa da religião e das diversas ideologias.
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Tendo em vista o problema da “verdade” religiosa, o judaísmo afirma que a relação existente entre o Homem e Deus é uma relação moral; Deus fala à consciência do Homem, de sorte que as convicções e as sugestões morais do Homem são verdadeiramente a voz de Deus e a Sua manifestação suprema. Segundo o judaísmo, se Deus Se revela na atitude moral do Homem é porque a moralidade recebe autoridade e base através do monoteísmo ético. A Tradição judaica exalta o reino da liberdade moral e aperfeiçoamento espiritual neste mundo, como objetivo da humanidade. Segue-se que para o judaísmo “verdade religiosa” significa sobretudo a aceitação da verdade de Deus, compreendida como norma de vida quotidiana e não como simples ato de fé. O pensamento religioso judaico caracteriza-se pela convicção de que o conhecimento da verdade é o resultado de uma investigação real para se realizar na Terra a expressão mais pura. Um grande Mestre judeu, “Maimónides” colocou este princípio como base da sua especulação filosófica. Em consequência, é a busca da verdade, o aprofundamento da Revelação, o Talmude, o estudo da Tora – para utilizar os termos hebraicos – que permite a abordagem desta verdade. Mantendo-se de forma inflexível e rígida na afirmação do princípio monoteísta e mesmo não admitindo que o Homem possa beneficiar de atributos sobre-humanos, o judaísmo defende que é impossível afirmar que os atributos éticos de Deus postulem a igualdade absoluta entre os Homens. O Judaísmo admite, contudo, uma discussão livre sobre a forma como certos conceitos são apresentados e realizados na vida. Numa palavra, é permitida a livre discussão sobre a forma como a verdade de Deus deve ser cumprida sobre a Terra, entre os Homens. Esta verdade, cujos postulados essenciais foram dados pela Revelação, torna-se assim, num processo histórico continuamente em evolução e enriquecendo-se com experiências sempre novas. Segundo o judaísmo, nenhum Homem, nenhuma comunidade nem nenhum povo se poderá jamais gabar de possuir uma fórmula ou uma definição que determine, de uma vez por todas, a verdade. Ao passo que as religiões – monoteístas, é claro – pela sua posição histórica diferente, podem contribuir em conjunto para a descoberta de novas formas de realização. Este pensamento refere-se a todo o mundo e não unicamente a Israel. Em substância, é esse o sentido profundo e verdadeiro do “estudo da Tora”, o estudo da Revelação divina. Na Bíblia, Isaías escreveu: “Abri as portas para que entre o povo justo e fiel”. Os mestres hebreus comentam: Ela não diz: “que os sacerdotes, os levitas, ou os israelitas entrem, mas os justos sem distinção de culto” (Sifrà, Scemoth 13) a qualquer povo ou qualquer raça a que pertençam.
A liberdade religiosa segundo o judaísmo
Isto é, o problema da liberdade religiosa encontra junto dos hebreus o acolhimento mais favorável em razão da natureza religiosa do judaísmo. O judaísmo tem sido sempre partidário da tradição judaica do que a resultante de uma evolução da doutrina. Assim como já se notou precedentemente, são dois os elementos que constituem a religião de Israel: o elemento religioso e o elemento moral. Mesmo se estes dois componentes estão intimamente ligados no ideal religioso judaico, pode afirmar-se que o judaísmo se apresenta como um culto – digamos étnico – isto é observado unicamente pelo povo judeu, enquanto através do ideal do monoteísmo ético, o judaísmo é a expressão de um universalismo moral. Por consequência, segundo o ideal hebreu, “religião universal” não significa conversão de todos os povos a uma crença única e muito menos, extensão do culto hebreu a todos os seres humanos. O judaísmo afirma que a única fé religiosa atrativa para a humanidade é a lei dita “lei de Noé” que poderia ser definida como “moral natural” nas suas bases essenciais. Ao contrário, a lei religiosa de Moisés foi revelada a Israel que, segundo a tradição bíblica, era considerado como um a “mamlécheth cohanim vegoi Kadosh” (Êxodo 19:6) isto é “um povo sacerdotal e uma nação consagrada”. O judaísmo tem reconhecido sempre a legitimidade das diferentes formas religiosas, sublinhando, ao mesmo tempo, a existência de um elemento comum na base de todos os cultos: a fé num Deus único. Em consequência, os mestres hebreus têm ensinado que “os Justos do mundo inteiro participarão no mundo futuro” (Tosseftà Sanhedrin 13:2) e é por isso que o messianismo pregado pelos profetas de Israel não é um mundo convertido ao judaísmo, mas “uma humanidade convertida à prática da lei moral, um mundo em que todos os povos ignorem a guerra, uma humanidade, no seio da qual, o Direito e a justiça terão o curso de um rio impetuoso”. Devido a esta posição particular, o judaísmo mostra-se reticente a um proselitismo religioso ativo, mesmo se a mensagem judaica tem sido sempre o arauto fervoroso de uma conversão moral dos indivíduos e dos povos. É necessário recordar, para compreender a coerência do judaísmo relativamente à exigência da liberdade religiosa, que é, para o pensamento judaico, uma necessidade natural, um direito inalienável da pessoa cuja dignidade reclama esta liberdade como exigência fundamental. A liberdade de pensamento que pode, na minha opinião, inserir-se no quadro da liberdade religiosa, é o corolário natural da visão judaica da vida. Perseguir um indivíduo ou apenas inquietá-lo por causa de opiniões ou crenças
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diferentes das da maioria é um absurdo moral sob o ponto de vista judaico. Assim, a liberdade religiosa deve ser entendida no seu sentido mais amplo, é a liberdade de pensar, de crer ou de não crer; como Homem, o pensamento nasce livre e nenhuma força o deve aprisionar. A despeito da esperança destes últimos anos, não se pode fechar os olhos à realidade que nos oferece o triste espetáculo de distorções culturais e religiosas determinadas por sectarismos ideológicos. Apesar de tudo, penso que os tempos estão maduros para nos permitir afirmar e persuadir os homens de que nenhuma ideologia tem o monopólio da verdade absoluta da mesma forma que nenhuma crença pode aspirar ao monopólio do Céu, uma vez que ninguém detém o segredo e a única chave da salvação. É preciso esperar e trabalhar assiduamente a fim de que todos saibam, respeitando profundamente a liberdade de cada um, que mesmo por caminhos diferentes, se pode chegar a Deus através da sinceridade e da honestidade do coração. O judaísmo tem exigido sempre a defesa da sua própria individualidade religiosa. Prescreve aos seus fiéis que se envolvam em evitar a dispersão dos princípios individuais no conformismo das relações sociais, rejeitando, contudo, qualquer fuga perante o indivíduo, perante as responsabilidades que a cada um incumbem. Isto porque, há a tendência, no judaísmo, de referir, continuamente. a essência da própria mensagem ético-religiosa a uma participação sempre mais ativa na vida social. Partilhando este ensinamento, não só a Tradição judaica não escraviza a pessoa do crente, mas tende a provocar um estímulo constante da sua consciência para lhe permitir reconhecer o que ele deve aos homens, através de uma relação humana equilibrada com o mundo que o envolve. É precisamente por causa desta reflexão constante sobre os valores do próprio património espiritual e de uma meditação interior sobre os acontecimentos da sua própria vida que o Hebreu é levado a compreender melhor a sua posição perante os outros homens (“Como um natural entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo, pois estrangeiros fostes da terra do Egito” Levítico 19:34) e por isso, a considerar que não só tem o poder de criar um mundo novo, mas que esta criação torna-se possível graças à colaboração de todos os homens. Se se fala de liberdade religiosa, e como para os outros valores éticos, é necessário distinguir os valores das instituições que os deveriam incarnar. Pode tornar-se, em teoria, como isso se produz muitas vezes, partidários do ecumenismo, do liberalismo ou do progresso social, sem até agora querer ou ter suces-
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so em pôr em movimento estas instituições que com toda a evidência deveriam permitir a realização de tais valores. Tem sido notado muito justamente que “se não devemos confundir os valores e as instituições, uns não podem viver sem as outras”. Assim, sem que nos apercebamos, o judaísmo tem frequentemente previsto e transmitido à humanidade ideais de civilização, incluindo a liberdade de consciência, que até hoje não se realizaram. Os judeus têm sofrido muitas consequências da lentidão excessiva com a qual algumas instituições religiosas de dimensões universais renunciaram aos mitos e às ideias preconcebidas, velhas de séculos, e são particularmente sensíveis ao problema da liberdade de consciência. Esta ausência de liberdade tem feito com que os judeus, além das perseguições com as terríveis consequências que se conhecem, viram construir-se ao redor das doutrinas judaicas, uma série de preconceitos que têm as suas raízes não apenas entre as massas incultas, mas também na alma de numerosos espíritos fortes. O antissemitismo tem podido facilmente ceifar inumeráveis vítimas, por causa de alguns estereótipos que têm envenenado ainda diariamente a consciência da humanidade. A experiência tem demonstrado que se os judeus eram os primeiros atingidos, o resto da sociedade no seio da qual o antissemitismo se desenvolve seguia, tarde ou cedo, o mesmo destino. Os judeus têm sempre sido as primeiras vítimas do facto que, durante mais de 2000 anos, todos os ressentimentos e todas as antipatias têm sido dirigidas contra eles sobretudo pelo canal da intolerância religiosa. Onde surge uma crise das instituições devendo dominar certos valores, nasce o antissemitismo, primeira manifestação microscópica negativa da liberdade humana e expressão explícita da incapacidade crónica do Homem considerar o seu próximo como a si mesmo. Os Mestres do Talmude têm considerado esta questão: Porque é que Deus criando o mundo, apenas criou um homem? Para que ninguém pudesse dizer ao outro: “Eu sou de uma raça mais nobre do que a tua”! (Sanhedrin, 4-5). Esta resposta antiga ao porquê da igualdade natural dos direitos de todos os homens, compreende um ideal de fraternidade universal que pode ser melhor se a liberdade de consciência no seio de cada comunidade “civilizada” pode ser garantida mais eficazmente.
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CAPĂ?TULO
3 Entrevista e documentos
Uma profunda preocupação pela situação das minorias religiosas Rita Izsák Entrevista com Rita Izsák, relatora especial das Nações Unidas sobre as questões relativas às minorias, realizada por Liviu Olteanu. Liviu Olteanu (LO): Gostava de começar esta entrevista pedindo-lhe para nos falar do seu mandato da Organização das Nações Unidas: desde logo sobre o papel de “relatora especial”; e para os nossos leitores, sobre as questões relativas às minorias. Rita Izsák (RI): Em primeiro lugar é um verdadeiro privilégio ocupar o posto de relator especial das Nações Unidas sobre as questões relativas às minorias. Sou a segunda pessoa titular do posto que foi criado em 2005. Sou uma entre 50 titulares para o Conselho dos direitos do Homem e a minha responsabilidade é abordar as questões das minorias e as preocupações relativas aos direitos do Homem afetando estas minorias à escala mundial. Em certos aspetos, luto pelos direitos das minorias em todo o mundo no seio do sistema das Nações Unidas. Muitas vezes as pessoas perguntam-me quem são, exatamente as minorias. Desde logo, o meu trabalho está baseado na Declaração das Nações Unidas para os direitos das minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, o que significa que examino os problemas aos quais fazem face estas quatro categorias de grupos. De facto, as questões concernentes às mulheres, as pessoas com limitações, a orientação sexual e os grupos políticos não estão dependentes do meu mandato sobre as questões das minorias. Como relatora especial disponho de certos instrumentos e ações que me permitem fazer o meu trabalho. Alguns implicam um envolvimento direto com países específicos para enfrentar os desafios com os quais os grupos minoritários são confrontados. Baseando-me em informações que recebo, posso escrever a não importa que país para apresentar as preocupações e pedir aos governos que me deem uma resposta oficial. Um dos meios mais importantes de que disponho é a prerrogativa de efetuar visitas nos países o que me permite dar conta, por mim mesma, da situação e falar com todas as partes envolvidas incluindo as comunidades minoritárias e os seus representantes. Infelizmente, devo receber um convite da parte de um governo e
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eles nem sempre estão prontos a desejar-me as boas-vindas. No entanto, quando esse é o caso, pode tornar-se numa situação muito construtiva porque tenho a possibilidade de redigir um relatório e propor recomendações sobre a forma de como cada governo poderia melhorar o seu tratamento das minorias e das questões relativas às minorias. Um outro aspeto importante do meu trabalho é formular recomendações gerais que poderiam ser aplicadas em todos os Estados, por exemplo, como, em certos domínios, melhorar a participação das minorias em todos os aspetos da vida e como fazer para que as minorias beneficiem de desenvolvimento e outras orientações políticas e programas nacionais. Uma das minhas responsabilidades particulares é ter o privilégio de conduzir os trabalhos do Fórum das Nações Unidas sobre as questões das minorias, uma plataforma anual de diálogos e de discussões em que participam cerca de 500 pessoas cada ano, no mês de novembro em Genebra. O objetivo geral do meu trabalho é promover os direitos das minorias e de igualdade para todos os grupos minoritários, sejam quais forem as suas origens e características nacionais, étnicas, religiosas ou linguísticas. LO: Disse ter a possibilidade de visitar diversos países do mundo em relação com os diferentes segmentos relativos às questões das minorias. A que conclusões chegou quanto aos problemas relativos às minorias? Pode partilhar connosco parte de alguns detalhes? RI: Infelizmente devo assinalar que em cada região do mundo, as minorias continuam perante a discriminação, a exclusão social, a marginalização, e, em certos casos, a ameaças e à violência, isto diariamente. Há, seguramente, algumas situações piores do que outras, e estou particularmente preocupada quando as minorias devem fazer face à perseguição, à violência e a atrocidades em massa – onde são o alvo de violências por causa daquilo que são. No entanto, os problemas das minorias são frequentes também noutros setores, mesmo se não são confrontados com a violência. O meu predecessor, e eu própria, efetuámos visitas oficiais a mais de 16 países do mundo e podemos constatar algumas tendências relativas à situação das minorias que existem em quase todos os países. Por exemplo, constata-se uma falta de participação das minorias na vida política a todos os níveis e estão deficientemente representados nas instâncias das tomadas de decisões. Isso significa que os seus problemas e as suas preocupações não são, muitas vezes, tidas plenamente em conta ou são completamente negligenciadas. Quando esse é o caso, pode seguir-se um impacto sobre numerosos outros direitos e sobre o pleno gozo dos direitos e
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das oportunidades para as pessoas que pertencem às minorias: por exemplo, no domínio do desenvolvimento, da educação ou das questões sociais ou culturais. Constatamos frequentemente que os membros das minorias são excluídos ou vítimas de discriminação quando procuram emprego ou noutras esferas da vida económica. Quando as pessoas de ascendência africana, ou cigana, ou as minorias religiosas procuram um emprego nos países europeus, por exemplo, são correntemente confrontados com a discriminação ou os seus pedidos são rejeitados por causa da cor da sua pele, da sua religião, do seu nome ou da sua residência. As minorias têm tendência de estar entre as pessoas mais pobres nos países mais pobres e quando vivem nos países mais ricos do mundo, encontram-se, muitas vezes, nos bairros menos favorecidos, têm baixos salários e pouco acesso aos serviços, à água, às instalações sanitárias e aos cuidados de saúde. As minorias devem fazer face a tantos desafios no mundo que é impossível enumerá-los… No entanto, creio firmemente que quando os países atentam para os direitos das minorias, a situação melhora. Assim, elas apercebem-se de uma alteração em matéria de não-discriminação e de igualdade. O essencial em todos os países onde vivem minorias, é a vontade política de mudança e a luta contra a discriminação no direito e na prática. LO: Uma parte importante das minorias são as minorias religiosas. O que acontece com essas minorias e, na sua opinião, quais são as conquistas ou as necessidades importantes das minorias religiosas à escala internacional? RI: Devo dizer que que estou profundamente preocupada pela situação das minorias religiosas no mundo, o que me leva a concentrar-me, desde logo, sobre os seus problemas. Realizei, recentemente, um trabalho, como relatora especial da ONU, juntamente com alguns dos meus homólogos como Heiner Bielefeldt, relator especial sobre a liberdade de religião ou de crença junto das Nações Unidas. Recebo mais informações sobre violações graves dos direitos das minorias religiosas, do que de qualquer outra categoria. Fico frequentemente chocada ao ver a brutalidade dos ataques e a violência exercida contra pessoas e grupos por causa da sua fé ou da sua convicção. Sem falar das violações dos seus direitos que se estendem a todos os domínios: civis, políticos, económicos, sociais e culturais. Tende-se a conceder mais importância aos problemas associados à liberdade de religião e à possibilidade, para as minorias, de praticarem livremente a sua fé. De facto, uma grande parte dos direitos das minorias religiosas são frequentemente negligenciados e tento despertar as consciências para estas questões, por exemplo, o direito de participar, de forma igual, em todos os aspetos da sociedade, incluindo a vida social e política.
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Penso, também, que é importante notar que em certos casos, os conflitos são considerados como sendo conflitos étnicos ou religiosos; no entanto, outras questões e problemas têm sido a causa destes conflitos, por vezes ligados a questões políticas, aos direitos de propriedade, de acesso a recursos, à corrupção e à ausência de boa governação. Posso dizer-vos com certeza, que tenho seguido com a maior atenção a questão das minorias religiosas no plano internacional e tenho feito o meu melhor para refletir esta atenção no meu próprio trabalho. Esta é a razão pela qual em 2013, decidi que o Fórum das Nações Unidas sobre as questões das minorias colocaria a sua tónica na proteção e na promoção dos direitos das minorias religiosas. Contudo, apesar da atenção concedida às minorias religiosas pela comunidade internacional e pela ONU, importa que prossigamos no nosso caminho e façamos, desde logo, progressos tendo em vista proteger as minorias religiosas, de forma igual desafiando os Estados a fazerem ainda melhor. LO: Acredita que a ONU, o Conselho da Europa, a União Europeia e a OCDE falam mais hoje sobre “a liberdade religiosa e as minorias religiosas” porque se trata de uma questão sensível? Porquê? RI: Espero verdadeiramente que estas importantes instituições falem cada vez mais das minorias religiosas e das questões da liberdade religiosa. É justamente quando estas questões são discutidas aberta e francamente ao mais alto nível, como em qualquer outro, que os problemas são revelados e podem começar a ser abordados. Não podemos evitar as questões, sob o pretexto de serem sensíveis. Precisamente devemos pegar neles e responder-lhes e, portanto, alegro-me por ver que se está a prestar uma atenção particular a estas minorias religiosas. Este diálogo é extremamente importante e é tanto mais importante que os organismos influentes, tais como a Organização das Nações Unidas, criam espaços para estas discussões que terão lugar; e, se necessário, estão dispostos a desafiar e fazer todos os esforços para que os Estados respeitem os direitos do Homem e os outros compromissos. Penso que os debates importantes e sensíveis sobre questões tais como a difamação da religião e o discurso do ódio atingiram uma melhor compreensão das questões e das sensibilidades e contribuíram para nos fazer avançar corretamente para as tratarmos de forma apropriada. Temos aprendido muito e continuamos a aprender. Mencionou certos organismos europeus, mas gostaria também que as questões das minorias, incluindo as minorias religiosas, sejam abordadas de forma mais direta, noutras regiões do mundo, especialmente pelas organizações regionais em África, na Ásia e por todo o lado.
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LO: Na sua opinião, que influência podem ter as minorias religiosas tendo em vista a paz e a segurança no mundo? E porquê? RI: Penso que os chefes religiosos devem desempenhar um papel essencial nos esforços colaborando para assegurar a paz e a segurança, desde logo, e antes de mais, nas suas próprias sociedades, mas também à escala internacional e mundial. Gostaria de ver os dirigentes posicionarem-se, mais frequentemente, contra o ódio religioso e o incitamento à violência. A sua influência é grande e devem utilizá-la para abrandar as tensões e ajudar a construir pontes de tolerância, de compreensão e de respeito mútuos. As minorias religiosas, pela sua própria natureza têm a tendência para serem menos importantes numérica e socialmente e politicamente não dominantes. Acontece, portanto, com frequência, que os dirigentes de religiões maioritárias assumem a liderança. No entanto, creio que todas as religiões, maioritárias ou minoritárias têm, na sua base, uma mensagem de paz, de amor, de perdão e de harmonia e assim todas as religiões têm um papel a desempenhar na difusão destas mensagens, não apenas nas suas próprias congregações e adeptos, mas para com o conjunto da sociedade. A religião deve e pode ser uma força para o bem à escala nacional e internacional mas, em demasiados casos, é uma força de divisão. Tenho ficado profundamente impressionada com certas iniciativas inter-religiosas de que tenho sido testemunha. Por exemplo, na Nigéria, onde estive recentemente, os dirigentes muçulmanos e cristãos trabalharam em conjunto para resolverem os problemas e promover a paz e a compreensão. Por vezes, são iniciativas locais, mas são um exemplo para todos nós e é preciso felicitá-las, apoiá-las e desenvolve-las. Gostaria de ver as mesmas mensagens veiculadas ao nível internacional e creio verdadeiramente que elas são e serão uma força para a paz e a segurança em todo o mundo. LO: Quais são as tendências e as posições regionais e mundiais no que concerne as minorias religiosas? RI: É uma questão difícil de tratar. Organismos de pesquisa, como o “Pew Research Center” entre outros, fazem um excelente trabalho para avaliar estas tendências que nos ajudarão a compreender melhor onde convém prestar uma maior atenção. Eles realizaram estudos que revelam, por exemplo, que os membros de grupos religiosos são vítimas de hostilização em mais de 80 por cento dos países do mundo. Ouvimos falar muito de islamofobia nos países ocidentais e não islâmicos, mas também de cristianofobia nos países islâmicos, em particu-
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lar no decurso desta época “post-11 de setembro” e no contexto da “guerra contra o terrorismo”. Espero que possamos começar a sair de um período de desconfiança e de tensões crescentes entre as religiões e passar a uma nova era de compreensão e de diálogo. Mas ainda há muito que fazer para instaurar a confiança e as condições de diálogo e de compreensão. Em certos países, os sentimentos anti minorias e as ideologias da extrema-direita ganharam importância nestes últimos anos criando assim um ambiente hostil para as minorias religiosas. Não devemos esquecer que em certas regiões, as minorias têm sido vítimas de violências e atrocidades recorrentes, uma tendência inquietante que parece estar a crescer em certos países como o Paquistão, o Iraque, a República Centro Africana e a Nigéria. Uma outra tendência que me preocupa é a discriminação contra a fé “não tradicional” ou de grupos de crentes tais como as Testemunhas de Jeová, os Bahais, os Pentecostais e muitos outros. Em certas regiões, as liberdades religiosas são concedidas a alguns grupos religiosos ortodoxos ou tradicionais, mas não a outros considerados como ilegítimos ou “seitas”. O Direito Internacional exige que todos os grupos confessionais e os de outras crenças sejam tratados de forma igual. Mas na prática, as atitudes discriminatórias persistem contra aqueles, cujas convicções são diferentes e não oficialmente reconhecidas pelo Estado. LO: A “maioria” contra a “minoria” e “o princípio da democracia” contra “o princípio da não discriminação”: tendo em vista a sua posição como especialista independente, como vê que estes contrastes podem ser harmonizados? Quais são os seus limites e será possível ultrapassá-los a fim de evitar o conflito e a discriminação entre os dois? RI: Desde já, gostaria de dizer que não vejo conflito entre o princípio da democracia e o princípio da não discriminação. De facto os dois vão muito bem em conjunto e uma democracia sã e funcional na qual todos os cidadãos podem fazer-se ouvir contribui para garantir um ambiente de não discriminação na maior parte dos casos. É verdade, que há desafios e, por vezes, a democracia surpreende-nos na escolha do seu público: por exemplo o seu apoio aos grupos de extrema-direita. Mas onde os direitos humanos e o primado do Direito são protegidos, onde os discursos do ódio são interditos, a democracia é geralmente uma base sólida para a não discriminação e os direitos das minorias. Contudo, jamais devíamos ser complacentes. Os problemas e a discriminação existem, até mesmo nas democracias mais maduras, e devem ser contestados. Isso demonstra que em to-
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dos os países, devemos “vigiar a saúde” da nossa democracia e da nossa sociedade de forma constante e identificar os problemas desde que eles surjam. Devemos esforçar-nos, constantemente, para que todos, na nossa sociedade, sejam representados de forma apropriada e se possam exprimir. De igual forma, a expressão “maioria contra minoria” dá a impressão de um concurso que um ou outro deve ganhar. O ponto importante a sublinhar sobre o assunto dos direitos das minorias, é que estão verdadeiramente a caminho de estabelecer a igualdade e a unidade na diversidade, uma situação na qual a maioria e a minoria podem viver em conjunto em harmonia e igualdade. Se definirmos o debate como sendo o da “maioria contra a minoria” já estamos a caminho de criar uma posição de antagonismo. Por conseguinte, preferiria antes falar de maiorias e de minorias e finalmente do nosso objetivo último que é chegar a diversas sociedades nas quais esta distinção não tem importância porque todos são iguais. LO: Em janeiro de 2014, a senhora e Heiner Bielefeldt, relator especial sobre a liberdade religiosa ou de crença, participou – com outros representantes oficiais internacionais no Conselho Ecuménico Europeu, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, do Parlamento Europeu, do Ministério da Justiça e do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha, entre outros – na conferência Internacional organizada em Madrid pelo Instituto dos Direitos do Homem e a Faculdade de Direito da Universidade Complutense. O tema era: “Depois do Édito de Milão, os direitos do Homem, a liberdade religiosa e as minorias religiosas – entre o equilíbrio e os desafios. A Liberdade Religiosa e as Minorias Religiosas”. O que pensa dessa conferência internacional? O que podemos dizer sobre a forma, a estrutura, as mesas redondas, os participantes, os resultados dessa conferência? RI: Foi um prazer assistir à conferência de Madrid e ter discussões sérias com especialistas provenientes de diversos horizontes. É muito importante salientar os desafios das minorias religiosas e identificar as soluções possíveis com o mundo universitário, os representantes dos governos, as organizações internacionais, os especialistas independentes das ONG e isto em conjunto porque todos temos um papel particular a desempenhar. Alguns dentre nós são mais eficazes no plano local, tornando-se porta-vozes de pessoas em dificuldade; outros têm os conhecimentos necessários para analisar esta ou aquela situação preocupante do ponto de vista jurídico nacional ou internacional; e há aqueles de entre nós que estão em posição de tomar medidas concretas ou fazer pressão sobre os decisores. Penso que a conferência de Madrid reuniu alguns dos melhores defensores da liberdade religiosa e as minorias religiosas e espero que a
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nossa cooperação prossiga. Devo, igualmente, exprimir o meu agradecimento aos organizadores por terem assegurado, no segundo dia, um quadro informal, para prosseguirmos a nossa troca de impressões e por organizar importantes discussões, tudo isso descobrindo e aproveitando da rica cultura espanhola. LO: Depois da conferência de Madrid, o seu colega das Nações Unidas, o professor Heiner Bielefeldt, relator especial sobre a liberdade de religião e de crença, notou e sublinhou o seguinte:1 “Atribuo uma grande importância à conceção da Conferência de Madrid, (…) um verdadeiro exemplo em que nos devemos inspirar, um modelo de base a estabelecer (…). Temos obrigações relativas aos direitos do Homem e diferentes níveis – regional, nacional e internacional; as crenças religiosas assim como os direitos do Homem desenvolvem-se em direções diferentes e podem, portanto, prejudicar-se mutuamente. Temos os contributos do Conselho da Europa, da União Europeia, diferentes contributos nacionais assim como das Nações Unidas. Contudo, continuo a pensar que estas diferentes instituições são mundos em si mesmas. Temos necessidade de coordenação (…)”. Está de acordo com os comentários de Heiner Bielefeldt? Como avalia estas importantes e práticas observações do especialista da ONU sobre a liberdade de religião ou de crença? A partir da sua experiência sobre as questões relativas às minorias, como e quem pode realizar esta coordenação tão necessária hoje; a ONU ou outras organizações? RI: Estou inteiramente de acordo com as propostas do meu colega e amigo, Heiner. Com efeito, estas instituições vêm com os seus próprios mandatos e responsabilidades e não se pode compreender que todas elas queiram realizar qualquer coisa perante os mesmos problemas que se colocam num momento num determinado local. Contudo, se esta ação não se harmoniza, pode causar mais mal do que bem. Sem ir tão longe, no seio do nosso próprio sistema das Nações Unidas, parece que a mão direita não sabe o que faz a mão esquerda. Entendo que se trata, frequentemente, de uma falta de coordenação das ações. Seria essencial tirar conclusões e agir de forma a que os políticos e os contributos de diferentes instituições se completem, verdadeiramente, e não se prejudiquem uns aos outros, ou que os esforços sejam empreendidos em conjunto. Penso que isso não é tão complicado de estabelecer e deveríamos apelar a uns e a outros mais frequentemente e de uma forma mais sistemática. Por exemplo, sinto-me satisfeita de poder dizer que, por ocasião da minha última visita à Ucrânia, estive em contacto regular com a OSCE e o Conselho da Europa, incluindo o Al1 Ver A/HRC/25/NGO/121.
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to-Comissário para os direitos do Homem e a Agência das Nações Unidas para os Refugiados, a fim de me assegurar de que o meu relatório complete os outros relatórios e saliente os aspetos e os domínios que carecem de maior atenção. LO: Pensa hoje que os problemas da “liberdade religiosa” e das “minorias religiosas” são desde logo uma questão de “equilíbrio” ou antes de “desafio”? Porquê? RI: Há, sem dúvida, imensos desafios relativos aos direitos das minorias religiosas que é necessário salientar a fim de garantir a liberdade religiosa e de crença. É importante que todas as partes envolvidas – Estados, dirigentes políticos, chefes religiosos e, talvez em primeiro lugar, as pessoas comuns – continuem a esforçar-se para chegar à harmonia ou ao “equilíbrio” como disse. É possível atingir esse objetivo. E quando este equilíbrio for atingido, pessoas de confissões diferentes viverão lado a lado, respeitando as crenças do outro, apreciando as festas e os dias sagrados dos outros, aprendendo e acalentando as coisas que têm em comum… mais do que concentrar-se naquilo que as divide. Estou otimista porque vejo que isso se realiza em diversos locais através do mundo, sei que é possível atingir esse objetivo e mantê-lo. No entanto, isto deve ser encorajado e desenvolvido ao longo do tempo porque há os que incitam, ativamente, o contrário. Se queremos avançar para o equilíbrio e a harmonia, é indispensável que as vozes moderadas e as mensagens de paz e de respeito contrabalancem as vozes do ódio. A educação é igualmente de uma importância essencial para atingir este objetivo e os nossos sistemas de educação devem ser avaliados para assegurar que as mensagens recebidas pelos jovens são as mensagens positivas contidas na maior parte ou em todas as religiões … o amor, a hospitalidade e o respeito por aqueles que são diferentes ou que têm crenças diferentes. Nenhuma criança nasce para odiar, ensina-se-lhe a odiar. LO: Apreciamos que a ONU tenha feito declarações importantes sobre este assunto; especialmente a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas, de 1992, que prevê que os Estados “adotem as medidas necessárias para assegurar que as pessoas que pertençam a minorias possam exprimir as suas características e desenvolver a sua cultura e as suas tradições…”; também a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção, de 1981, que sublinha: “O direito à liberdade de pensamento, de consciência, de religião ou de crença compreenderá, entre outras, o direito a observar os dias de repouso, e celebrar festas e cerimónias de acordo com os princípios
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da religião ou da convicção de cada um” [art. 6 (h]. Como em todo o mundo, também na Europa, há muitas minorias religiosas, tradições religiosas diferentes, tendo as suas próprias cerimónias e dias de repouso diferentes. A este propósito, e na sua opinião, o que é que conviria fazer, ao nível legislativo e na prática, a fim de evitar qualquer discriminação? RI: Essas normas que mencionou são para todos incluindo os Estados, conselhos importantes sobre o que são os direitos das minorias e sobre a obrigação dos Estados de proteger e promover esses direitos. Gostaria de ver essas normas internacionais serem tidas mais em conta nas leis nacionais anti discriminação e de igualdade a fim de assegurar que são plenamente postas em ação. Na Europa, por exemplo, diretivas anti discriminação e relativas ao Direito do Trabalho impõem aos Estados membros, o respeito por normas mínimas, incluindo as que visam garantir a igualdade para as pessoas de diferentes religiões no local de trabalho. Penso que as disposições destas leis estão formuladas de forma muito geral mas claras, nas suas diretivas aos Estado para assegurar às minorias o gozo dos aspetos da vida religiosa incluindo os dias de repouso, as festas e as cerimónias. No entanto, a realidade está longe de ser ideal em numerosos Estados e são muitos aqueles que falham nas suas obrigações não as tendo em conta. Contudo, muitos países são ainda sociedades multirreligiosas tendo cidadãos de diversas confissões tendo diferentes tradições. Devemos admitir que isso pode ser um desafio para os Estados, o fazer face a esta diversidade e assegurar que não é feita nenhuma discriminação contra alguém com base na sua fé. Também, isto pode ser um desafio para os empregadores gerir as exigências de uma mão-de-obra multiconfessional, com as orações, a alimentação e outras tradições diferentes. Mas há ainda muito a aprender em boas práticas e podemos implementar novas medidas a fim de permitir a flexibilidade no local de trabalho. Mesmo se, nem sempre é fácil, é necessário, por vezes, aceitar compromissos de uma parte e de outra; devemos esforçar-nos, como sociedade, para criar ambientes acolhedores e coordenados para que todos possam praticar e usufruir de todos os aspetos da sua fé. LO: Escreveu na sua “Nota de Rita Izsák, especialista independente sobre as questões relativas às minorias: como garantir os direitos das minorias religiosas” assunto apresentado no Forum sobre as questões das minorias, na sua 6ª sessão, a 26 e 27 de novembro de 2013: “Quando as boas práticas legislativas e políticas são implementadas, as minorias religiosas estão em condições de praticar a sua religião em condições de plena igualdade, de exercer os seus direitos e de os exercer, e participar plenamente em todos os domínios da vida.
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Entre as práticas positivas, podemos citar o estabelecimento de uma legislação completa contra a discriminação e encorajar o diálogo, a compreensão e as trocas construtivas entre as diferentes religiões. Estas medidas desempenham um papel importante na contribuição para prevenir as tensões e favorecem a igualdade e a estabilidade social”. (A/HRC/FMI/2013/22) Como é que esta recomendação pode ser aplicada a todas as regiões diferentes do mundo? Quais são as tendências no Médio-Oriente, na África do Norte e em todos os países islâmicos? Qual é, também, a tendência na Europa? RI: Sinto-me feliz por ter citado esta passagem porque penso que se trata de uma mensagem muito importante resumindo o meu ponto de vista sobre a forma como os Estados podem prevenir e resolver as tensões. Trata-se de uma mensagem que é válida não importa em que região do mundo. Devemos criar as condições nas quais os direitos são protegidos para não contar apenas com a boa vontade para assegurar a paz e a igualdade. No entanto, embora criar uma lei como essa seja importante, não é senão uma parte da resposta, e muito frequentemente, de acordo com a minha experiência, a lei não é posta em prática. Salientei a ação e a necessidade de aplicar esta lei pelas estruturas políticas e institucionais, assim como mecanismos que a ponham em prática. Recomendo, portanto, que os Estados vão mais longe na sua ação, do que simplesmente estabelecer uma boa legislação em matéria de igualdade. Deveriam ser criados órgãos institucionais com um mandato específico, sobre os direitos das minorias ou os assuntos religiosos, tais como mediadores dos direitos do Homem, instituições nacionais dos direitos do Homem, ministérios, ou departamentos regionais e órgãos consultivos. Tais órgãos e instituições contribuem para assegurar que os governos conhecem e compreendem os problemas das minorias, incluindo as minorias religiosas, e podem agir de forma apropriada. Deveriam ser exaustivos e ter pessoal ou membros de comunidades minoritárias, que compreendam os problemas e possa ultrapassar as preocupações das minorias. Penso que o diálogo inter-religioso é essencial e creio que os governos, em colaboração com os dirigentes religiosos e as comunidades, têm a responsabilidade de encorajar o diálogo, em particular, nos países em que as tensões históricas têm existido ou novos problemas emergem entre as pessoas de confissões diferentes. Isto é igualmente verdade para os Estados de Médio-Oriente e da África do Norte, dos quais alguns têm passado por imensas mudanças sociais e políticas no decurso destes últimos anos. Se bem que estes esforços tenham sido considerados como positivos, em certos aspetos, compreendemos que outros problemas têm igualmente surgido, incluindo, em certos casos, novas ameaças e ataques
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contra as minorias religiosas. Os Estados a que nos referimos, e ainda outros, cujas tradições religiosas são fortes e indissolúveis, devem continuar a respeitar os seus envolvimentos em proteger os direitos das minorias religiosas e precaver-se contra as tendências negativas e as medidas regressivas. A Europa deve, também, continuar a reforçar as suas medidas de proteção e reconhecer que ainda há muito a fazer para garantir os direitos das minorias nos países europeus. LO: Todos têm necessidade de um dia de descanso por semana, um dia de folga/ sem trabalho, um tempo reservado à família, aos amigos, ao culto, ao desporto ou à solidariedade. Em janeiro de 2014, o Parlamento Europeu acolheu, em Bruxelas, um debate interessante: a segunda conferência organizada pelo “The European Sunday Alliance” (Aliança Europeia a favor do domingo), compartilhada por alguns membros do Parlamento Europeu (MPE) sobre o assunto do “domingo livre” para a Europa. A proposta foi assunto de preocupação para algumas minorias religiosas tais como, os muçulmanos, os judeus, os adventistas do sétimo dia – isto é, milhões de pessoas na Europa – que guardam a sexta-feira (os muçulmanos) o sábado (os judeus e os adventistas) como dia para a prática religiosa. Foi proposto nessa ocasião, um esforço para um domingo sem trabalho e um trabalho decente tendo em vista as eleições europeias de 2014” assinado por diferentes deputados europeus. Com este objetivo foi escrito: “Como membro atual ou futuro do Parlamento Europeu comprometo-me: a assegurar que toda a legislação comunitária pertinente respeite e favoreça, ao mesmo tempo, a proteção de um dia semanal de repouso comum para todos os cidadãos da União Europeia, que será, em princípio de domingo, a fim de proteger a saúde dos trabalhadores e promover um melhor equilíbrio entre a família, a vida privada e o trabalho”. No que se refere a esta iniciativa do Parlamento Europeu, o eurodeputado Hannu Takkula sublinha: “Nós apoiamos o princípio de manter a oportunidade de um dia de repouso semanal porque todos têm necessidade de uma verdadeira pausa na semana de trabalho. Assim, os que respeitam o domingo têm, realmente, o direito de repousar e ter o seu culto no dia que pensam ser apropriado. A legislação não deve nunca descriminar as pessoas por motivos religiosos. Votar uma lei em favor do domingo, como dia de repouso universal faria exatamente isso”. Ele também sublinhou que “a liberdade de religião e de convicção é um valor europeu fundamental. Este princípio deve ser promovido e tomado a sério por ocasião de cada discussão deliberativa sobre o papel de um dia de repouso semanal. A União Europeia deve garantir a todos os mesmos direitos, a saber, a liberdade de celebrar o dia de repouso segundo a sua convicção”.
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A senhora como especialista independente das Nações Unidas concorda com o deputado europeu Sr. Takkula sobre o facto de que uma legislação da União Europeia sobre um “domingo sem trabalho” pode afetar e descriminar as minorias religiosas? Como evitar este género de discriminação? Quais seriam as recomendações? Ou, então, que faria para defender as minorias religiosas a respeito da legislação sobre o “domingo sem trabalho”? RI: Permita-me responder dizendo-lhe que me parece legítimo que um país, ou uma região, tendo uma fé “maioritária” e uma tradição religiosa de longa data, reflita os princípios fundamentais desta fé na sociedade e na vida social. Para os países cuja história tem uma predominância cristã, o domingo é largamente reconhecido como o dia tradicional de culto e de repouso, e penso que é normal para as sociedades continuarem estas tradições. Isto é igualmente verdade nos países de maioria muçulmana, hindu, budista, ou católica. Isso não é discriminação. A dificuldade é gerir sociedades diversificadas nas quais coexistem diversas religiões minoritárias cujo culto e o dia de repouso se diferenciam da tradição. Trata-se, portanto, de encontrar uma solução que permita ao mesmo tempo, reconhecer e proteger os direitos daqueles que pertencem a diferentes confissões e que todos possam tanto praticar e usufruir/beneficiar plenamente da sua religião. Tomemos o exemplo de uma comunidade muçulmana estabelecida num país maioritariamente cristão, mais precisamente numa região ou uma determinada localidade, onde representa uma percentagem elevada numa dada localidade: certos Estados conseguiram adaptar-se concedendo diferentes graus de autonomia cultural, social e, por vezes, política a essa região, permitindo a uma minoria religiosa exercer um maior controlo sobre os seus próprios assuntos. Isso pode conduzir a diferenças locais, especialmente relativas aos dias religiosos ou dias de repouso. No caso de uma minoria religiosa mais dispersa no seio da sociedade, é necessário encontrar outras soluções, por exemplo, permitir aos muçulmanos terem o descanso na sexta-feira em vez do domingo e resolver os problemas em matéria de educação para as minorias religiosas. Nas nossas sociedades cada vez mais diversificadas, as soluções devem ser encontradas a fim de garantir os direitos. Também não é de esperar das sociedades e dos governos que mudem as tradições sociais e históricas fundamentais da sua sociedade. Isso conduziria, inevitavelmente, a tensões. O que é necessário fazer é consultar as comunidades religiosas, compreender as suas necessidades, as suas preocupações e responder, na medida do possível, de forma a assegurar às minorias o gozo dos seus direitos.
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LO: no quadro do seu relatório apresentado na 25ª sessão do Conselho dos direitos do Homem da ONU em Genebra, quais são as iniciativas e as medidas que poderiam ser tomadas para pôr em prática as recomendações em favor das minorias religiosas? RI: Sinto-me feliz por ter feito alusão ao relatório e recomendações do Forum relativas às minorias que foi apresentado na sexta sessão em novembro de 2013, e no decurso do qual, foram abordados os direitos das minorias religiosas. Fiquei verdadeiramente entusiasmada por aquilo que foi realizado por intermédio deste acontecimento e com as recomendações que de lá saíram. O Fórum tem lugar cada ano para discussão de um assunto temático diferente para preparar recomendações duma forma bem inclusiva. Mais de 500 pessoas assistiram a este acontecimento, provenientes de todas as regiões dos Estados membros das Nações Unidas, da sociedade civil, dos chefes religiosos, de universitários e muitos outros. Coletivamente, chegámos a uma série de recomendações muito importantes que podem ser encontradas no site do Forum sobre as minorias.2 Elas cobrem questões tais como a forma de aplicar as normas internacionais na legislação nacional, imitem sugestões para os políticos e fornecem programas para a proteção dos direitos das minorias religiosas assim como a forma de melhorar a consulta e a participação das minorias religiosas. Duas importantes secções são sobre: 1. a prevenção da violência e a proteção da segurança das minorias religiosas e 2. o diálogo, a concertação e as partilhas interconfessionais. Depois de ter “produzido” estes importantes recursos, o desafio consiste em aplicá-los no plano nacional… portanto o nosso trabalho não está senão a meio caminho. Contudo, é da minha responsabilidade se são aplicadas no sistema das Nações Unidas e entrar em contacto com os diferentes Estados e comunicar-lhes esta ferramenta essencial. Sinto-me encorajada pela resposta positiva de vários Estados quando apresentei estas recomendações ao Conselho dos direitos do Homem. Vou trabalhar arduamente para assegurar que sejam seguidos no futuro. Numerosos Estados estiveram presentes durante o Forum e participaram largamente da formulação destas recomendações; assim, penso que eles podem e deveriam “apropriar-se” deles e sentir que a sua contribuição é positiva e construtiva. LO: Nós sabemos que o Conselho da Europa é um pioneiro dos direitos do Homem. Mas a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa organizou, em Es2 http://www.refworld.org/docid/53143ad44.html (consultado em 6 de julho de 2014).
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trasburgo, de 7 a 11 de abril de 2014, o relator francês apresentou, em nome da “Comissão das questões jurídicas e dos direitos do Homem” uma resolução e uma recomendação sobre “a proteção das minorias contra os excessos das seitas”. Diferentes Igrejas europeias, minorias religiosas e ONG têm rejeitado estas propostas sobre as “seitas”, o que, desde logo, suscita vivos debates quanto à determinação e o significado das palavras “seitas” e “excessos”. Por ocasião desta assembleia parlamentar, podemos ver uma forte oposição por parte de dois grupos: por um lado, o relator francês e os deputados franceses; do outro, os outros delegados parlamentares. Os deputados europeus, representantes da Noruega, do Reino Unido, da Moldávia, da Ucrânia, insistiram na necessidade de definir a palavra “seita”. Chegaram a sugerir a mudança do nome “seitas” para “minorias” terminologia em uso na ONU. O relator rejeitou as propostas, recusando a expressão “minorias” retida pela ONU. A resolução da Assembleia Parlamentar contra os “excessos das seitas” foi finalmente votada com algumas modificações, mas a recomendação foi rejeitada. Quais são os seus comentários sobre este assunto? Trata-se de uma nova tendência ao nível do Conselho da Europa sobre a liberdade religiosa? Como coordenar as iniciativas da ONU com as do Conselho da Europa ou do Parlamento Europeu, da OSCE sobre o mesmo ponto evitando qualquer discriminação possível contra os grupos religiosos e as minorias religiosas? RI: Como governos e sociedades, podemos não estar de acordo com as crenças de certas pessoas, mas devemos respeitar o seu direito de professar e praticar livremente as suas crenças. Preocupa-me o uso excessivo do termo “seita” e a sua aplicação a certos grupos quanto à sua fé e as suas convicções desde há longa data, tendo milhões de adeptos e cuja crença e atividades são absolutamente legítimas. Penso que devemos fazer prova de prudência na utilização deste termo que tem uma conotação muito negativa, estando associado à manipulação dos indivíduos, aos excessos, à lavagem ao cérebro e outros atos criminosos. Alguns utilizam este termo para denegrir a fé ou a crença, uma vez mais, “legítima”, de certos grupos de que simplesmente não gostam, com os quais não estão de acordo ou em que não têm confiança. É importante recordar que todos temos o direito fundamental e a liberdade de crer naquilo em que queremos e de seguir a fé da nossa escolha. Os governos têm a responsabilidade de proteger os indivíduos contra os atos criminosos e é verdade que alguns grupos, ou indivíduos, têm-se aproveitado de pessoas vulneráveis e têm cometido crimes pelos quais deveriam ser punidos. Mas se estes grupos que “funcionam” exercem a sua fé ou seguem as suas convicções de
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acordo com a lei, não deveriam sofrer restrições, incómodos ou interdições. No entanto, estes grupos minoritários assinalam, por vezes, problemas no exercício das suas liberdades religiosas. Faço uma particular referência a essas religiões “não tradicionais” como grupos minoritários. Penso que o termo “seita” é problemático em razão da sua compreensão pejorativa e as suas conotações negativas que dão, imediatamente, a impressão de atos repreensíveis e de exploração. Em certos países, a utilização deste termo e a repercussão negativa que lhe segue tem mesmo levado à perseguição, a ataques e a violência contra indivíduos e membros de grupos minoritários, e isto por parte de atores encarregados da aplicação da lei e de outros. LO: Globalmente, que papel pensa que deveria ter a sociedade civil, as ONG, em matéria de defesa dos direitos do Homem, da liberdade religiosa e das minorias religiosas? Quais são as suas reações sobre as iniciativas, os projetos e a atividade da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) em favor dos direitos do Homem e da liberdade religiosa para todos, especialmente depois da sua participação na Conferência Internacional de Madrid? Também perante a sua iniciativa ao nível regional, nacional e internacional? Que mensagem gostaria de deixar aos leitores da revista “Consciência e Liberdade”? RI: Penso que o papel da sociedade civil e dos defensores dos direitos do Homem é extremamente importante na proteção de todos os direitos humanos e dos direitos das minorias religiosas. Tenho um imenso respeito por certas organizações e indivíduos no mundo que, quantas vezes, colocam a sua vida em risco para proteger os direitos humanos e se levantam contra a opressão e a violência. Eles não recebem suficiente reconhecimento e o apoio que merecem e peço instantemente aos governos que os protejam e se envolvam com eles para os ajudarem a cumprir a sua tarefa essencial. Preocupa-me muito saber que muitos têm enfrentado ambientes opressivos assim como ameaças que põem em risco a sua segurança, no decorrer do seu trabalho…isto, mesmo da parte dos seus próprios governos. Sem o trabalho e as informações que recebo quotidianamente da sociedade civil e das ONG, a ONU, não poderia assegurar a sua responsabilidade que é proteger os direitos do Homem. Os meus colegas relatores especiais e eu própria não poderíamos cumprir a nossa tarefa, que é essencialmente baseada nas suas. Ao nível internacional, nas conferências das Nações Unidas, por exemplo, acabamos de nos aperceber da ação das ONG – nós vemos apenas a ponta do iceberg. A realização principal está em curso ao nível nacional e local, trabalham,
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muitas vezes, em parceria com as comunidades e lançam projetos e programas criativos, a maior parte das vezes, com poucos, ou nenhuns meios financeiros. Dou-vos um pequeno exemplo do que se passa no mundo. Estive, recentemente, na Nigéria em regiões com enorme violência comunitária. Mas encontrei iniciativas visando a reconstrução da paz, alianças entre responsáveis cristãos e muçulmanos promovendo instrumentos tais que o diálogo inter-religioso e a mediação nos conflitos comunitários a fim de instaurar o diálogo. Em Jos, a iniciativa Women Without Walls (Mulheres sem paredes) foi fundada por mulheres dirigentes cristãs e muçulmanas que trabalham em projetos comunitários atingindo as mulheres e os jovens. Uma “educação para o projeto de paz” é assegurado unicamente por uma jovem mulher de Bauchi que trabalha com algumas crianças e inculca-lhes os valores da compreensão, da confiança e da aceitação mútua para além das clivagens étnicas e religiosas. A minha mensagem para eles e para as muitas outras pessoas que se associam a esta tarefa, incluindo a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa é esta: “Encorajo-vos a continuar o vosso trabalho porque a vossa mensagem e o vosso exemplo inspiram-nos a todos.” Obrigado. LO: Muito obrigado, srª Rita Izsák, relatora especial sobre as questões relativas às minorias, por esta entrevista. Desejo-lhe numerosas vitórias para os direitos do Homem e das minorias, em particular das minorias religiosas, em todo o mundo.
À luz do Édito de Milão (303-2013). Liberdade religiosa e minorias no mundo: entre equilíbrio e desafios José-Miguel Serrano Ruiz-Calderón1 O Instituto dos direitos do Homem da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid teve a honra de organizar, em colaboração com a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, a comemoração, a mais prestigiosa, tendo lugar em Espanha por ocasião do 1700º aniversário da promulgação do Édito de Milão. Na minha opinião, três fatores fundamentais explicam a importância deste acontecimento. O primeiro foi, quando Liviu Olteanu me propôs codirigir este encontro, esforcei-me para realizar uma comemoração em ligação direta com a atualidade e centrada nos desafios que a liberdade religiosa encontra na nossa época. A segunda, foi a abertura da Faculdade dos Direitos do Homem, pelo seu deão Raúl Canosa, do Instituto dos Direitos do Homem, por Fernando Falcon, e do Departamento de Filosofia do Direito da Universidade Complutense pelo seu diretor José Iturmendi Morales. Todos contribuíram para atingir o nível académico que desejávamos, para esta comemoração. No mesmo espírito, não podemos esquecer a ajuda prestada pelo Departamento do Direito Internacional Público e Privado da Universidade Complutense. Contudo, fomos grandemente encorajados pela participação ativa e entusiástica dos alunos do Instituto, particularmente da Teoria do Direito, combinando Direito e ADE (Administração e Direção de Empresas), da Faculdade e do Instituto de Estúdios Bursátiles (Instituto de Estudos do Mercado de Ações). O terceiro fator, que permitiu dar um relevo particular ao acontecimento foi a implicação do Ministério da Justiça do reino de Espanha e de diversas entidades institucionais da Organização das Nações Unidas. Duas personalidades, dentre estas últimas, merecem ser particularmente mencionadas: Heiner Beilefeldt, relator especial das Nações Unidas para a liberdade religiosa, e Rita Izsák, especialista independente das Nações Unidas para as minorias. 1 Professor de Filosofia do Direito na Universidade Complutense de Madrid.
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Atualidade, nível académico e implicação institucional eram, portanto, os fatores que contribuíram para o bom desenrolar desta jornada; o programa dividia-se em quatro painéis em torno de assuntos bem atuais: o primeiro foi sobre “Os desafios que tocam as minorias no seu conjunto”; o segundo tratava do tema “Liberdade religiosa e minorias religiosas ao nível regional, projetos e realidades”; o terceiro assunto foi “Para além da liberdade religiosa e de crença: as garantias para os direitos das minorias religiosas”; e o quarto “Modelos face às tendências que se reportam à liberdade religiosa e às minorias religiosas. Proteção das minorias religiosas e prevenção contra a discriminação das minorias religiosas”. Era sensato centrar os debates sobre as minorias religiosas na medida em que, de certa maneira a, com exceção de alguns Estados pouco envolvidos com a modernidade, todos nós podermos, até certo ponto, considerar-nos como membros de uma minoria religiosa. Não se trata apenas desta realidade evidente segundo a qual uns são maioritários em certos ambientes e minorias noutros, embora alguns se encontrem sempre em minoria. Mas trata-se sobretudo, desta situação, menos evidente, que faz com que, face à corrente de pensamento dominante (mainstream), o religioso, ou cada religião ou, se se prefere, cada homem, cada mulher com convicções religiosas encontra-se sempre numa posição minoritária. De certa forma, e na perspetiva atual, a liberdade religiosa pode ser encarada sob diferentes ângulos. De um ponto de vista científico, minoritário na esfera popular, mas muito influente sobre o povo, a religião é um resquício atávico, apenas tolerável como atitude folclórica e expulsável de toda a vida social verdadeiramente significativa. Segundo um outro, a religião é uma atitude ou um sistema de crenças que apresentam um enorme risco quando tem uma projeção pública; por isso, a ação social deve ser essencialmente orientada para a sua limitação, mesmo se, contrariamente à primeira atitude, esta última não exclua um papel religioso na construção de uma consciência privada apreciável. Há também o ponto de vista daqueles que consideram a liberdade religiosa como um mal menor, posição igualmente baseada numa avaliação positiva da religião. Esses consideram a religião do outro como um erro apenas tolerável, na medida em que, por experiência, se constata que a sua erradicação não faz senão provocar grandes complicações. A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa tem sempre mostrado uma atitude deferente das que temos vindo a descrever. É o valor da religião na construção identitária tando pessoal como social que exige precisamente a sua liberdade, virtude humana por excelência, baseada na dignidade. É por isso que as sociedades se medem entre si pela sua atitude para com a
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religião, o que implica duas coisas estreitamente ligadas entre si. Uma delas é a liberdade de praticar uma religião, de a difundir e de aceitar o seu esforço educativo; a outra é a pedra de toque desta liberdade, isto é, a forma de tratar a minoria religiosa. O respeito pela minoria – ou mais exatamente a maneira de a tratar – permite demonstrar se a religião é respeitada e, com ela, a liberdade religiosa. Tais foram, em grande medida, as conclusões destes encontros.
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A LIBERDADE RELIGIOSA E AS MINORIAS RELIGIOSAS: “DIALOG FIVE” OU COMO DESENVOLVER UM QUADRO HOLÍSTICO ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA (AIDLR), Berna Suíça I. INTRODUÇÃO No domínio dos direitos do Homem e da liberdade religiosa, as evoluções políticas nunca devem nada ao acaso. A UNESCO recentemente confirmou a importância da posição defendida pela AIDLR ao declarar: “A criação de um ambiente de tolerância, de respeito mútuo e de compreensão, tal que possa garantir o pleno gozo da liberdade de consciência e de religião, implica uma estreita cooperação da parte de todos os atores e de todas as partes envolvidas.”1 Com os nossos agradecimentos à UNESCO: a sua visão deveria ter um valor fundamental para todos. Quem são esses atores e essas partes interessadas? A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, na pessoa do seu Secretário-Geral, Liviu Olteanu, advogado, chama a atenção para os direitos do Homem, a liberdade religiosa e as minorias propondo uma sinergia de rede entre os atores de primeiro plano e no seio da plataforma à qual a nossa organização deu o nome de DIALOG FIVE. Esta plataforma junta delegados representando os governos, o mundo da diplomacia, as religiões, a investigação universitária, as ONG e a sociedade civil. Todos devem investir numa interação pluridisciplinar a fim de chegar a uma real ativa compreensão entre as civilizações, as culturas e as religiões. Desde 1946, época do seu fundador, o Dr. Jean Nussbaum e da srª Eleanor Roosevelt que foi a primeira presidente do seu Comité de Honra, a AIDLR é 1 Carta da UNESCO data de 22 de janeiro de 2014 e enviada a Liviu Olteanu, secretário-geral da AIDLR.
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uma organização de renome internacional. Mais tarde, este reconhecimento não fez mais do que crescer sob a direção dos dr. Albert Schweitzer, Paul Henry Spaak, René Cassin, Edgar Faure, Leopold Sengor e Mary Robinson, os presidentes seguintes do Comité de Honra. No quadro do DIALOG FIVE, os debates conduzidos sob a forma como as instituições internacionais, regionais e nacionais podem conduzir a uma cooperação eficaz, destinada a implementar mecanismos, os quais permitirão às autoridades, aos dirigentes religiosos, aos diplomatas, aos educadores e à população em geral, tomar maior consciência da necessidade de instaurar a tolerância e a aceitação das diferenças do Outro assim como o respeito pela liberdade religiosa para todos. Como podem, a liberdade religiosa e as minorias religiosas, ser protegidas num mundo tão diversificado nas suas tendências, posições e contrastes? O Secretário-Geral da ONU Ban Ki-moon apresenta a seguinte sugestão: “A melhor das proteções, é a prevenção. A prevenção salva vidas; preserva também os recursos. A prevenção não é algo praticado uma só vez. Os direitos do Homem são um elemento essencial da proteção dos seres humanos.”2 Uma estratégia de prevenção é, por isso, reforçada através de uma abordagem global. II. UM QUADRO HOLÍSTICO: DIALOG FIVE A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, no seu papel de representante permanente junto da ONU e do PE, junto do COE e da OSCE, de organizador e de participante nas conferências que têm lugar aos níveis governamentais, parlamentares e universitários, tem avaliado os diferentes modelos de proteção da liberdade religiosa e proposto um modelo ao qual outras organizações nacionais e internacionais se podem referir. A fim de pôr em ação as conclusões tiradas das suas observações a análises, a AIDLR lançou3 um “projeto dos direitos do Homem e da liberdade religiosa 2 Conferência Cyril Foster na Universidade de Oxford: “Human Protection and the 21st Century United Nations” pelo Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, Oxford (RU), 2 de fevereiro de 2011. Ver em inglês http://www.un.org/sg/selected speeches/statement_full.asp?starID=1064. 3 Especialmente sob a égide das seguintes personalidades: o Professor José Iturmendi, deão honorário e o professor Juan Antonio Martinez Muñoz; contribuíram, igualmente, para a sua
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na base de uma abordagem holística”. O presidente da organização, M. Bruno Vertallier, notou muito justamente que “a liberdade de consciência e de religião conhecem o equilíbrio precário”. É esta a razão pela qual este projeto criou uma estrutura precisa, reagrupando diferentes atores e partes interessadas que se representam como estruturas institucionais e pluridisciplinares. • Ao nível institucional, é necessário adotar uma abordagem específica que integrará os atores internacionais, nacionais e regionais: ONU, COE, UE (Parlamento Europeu), CEDH, OSCE, o ministério da Justiça, o ministério dos Negócios Estrangeiros. Diferentes atores podem, com efeito, abordar um mesmo problema com uma lógica e sob ângulos deferentes, utilizando uma linguagem e uma argumentação que se inscrevem de uma abordagem holística. • Além disso, esta interação pluridisciplinar, entre as diversas partes interessadas, deve englobar cinco diferentes categorias de delegados representando os governos, o mundo da diplomacia, as religiões, a investigação universitária e as ONG/sociedade civil. Conferência internacional de Madrid A fim de demonstrar a pertinência de uma abordagem holística, a AIDRL lançou um novo projeto concetual. A AIDLR e o Instituto dos Direitos Humanos da Universidade Complutense de Madrid organizaram, em janeiro de 2014 na Faculdade de Direito, uma conferência internacional cujo tema era o seguinte; “Liberdade religiosa e minorias religiosas no mundo, à luz do Édito de Milão: um novo equilíbrio, ou novos desafios?”. O Professor Jose Miguel Serrano Ruiz-Calderon, investigador de primeiro plano, participou nesta conferência na qualidade de codiretor com Liviu Olteanu. Agradecemos ao governo espanhol pelas intervenções de M. Ricardo Garcia, do Ministério da Justiça, e do embaixador Belén Alfaro, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assim como o deão da Faculdade de Direito, Raul Canosa. O projeto juntou uma rede pluridisciplinar de delegados representando os governos, o mundo diplomático, a pesquisa universitária e as ONG/sociedade civil como atores regionais, nacionais e internacionais. Os principais intervenientes foram o Professor Heiner Bielefeldt, relator especial da ONU sobre a liberdade de religião e de convicção e a srª Rita Izsák, especialista, independente, da ONU sobre as questões relativas às minoorganização: Jesus Calvo, presidente da UAE, Corrado Cozzi, diretor da comunicação, Alberto Guaita, presidente da AIDLR, Mercedez Haned, Pedro Torres, Conchi Carasco.
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rias. Eles insistiram junto dos 200 participantes presentes a 14 de janeiro de 2014 na Universidade, como junto do milhar de pessoas que assistiram no dia 18 seguinte ao concerto pela liberdade religiosa “Embaixadores da liberdade, da esperança e da paz” sob o estreito laço existente entre “a liberdade religiosa e as minorias religiosas” e sobre a necessidade da sua proteção em todo o mundo. Outros intervenientes maiores trouxeram, igualmente, as suas contribuições a esta conferência internacional.4 Os temas dos painéis foram os seguintes: • Evoluções e desafios afetando as minorias religiosas ao nível mundial • Ligação entre a liberdade religiosa e as minorias religiosas • Promoção do diálogo pluridisciplinar e apoio concedido ao trabalho do relator especial da ONU e especialista independente • Proteção das minorias religiosas e prevenção da discriminação que elas sofrem No momento do encerramento da conferência, o relator especial da ONU sobre a liberdade de religião e de convicção, Heiner Bielefeldt, apresentou a propósito as seguintes propostas: III. PORQUÊ ESTE MODELO DE QUADRO HOLÍSTICO, PROPOSTO PELA AIDLR, É TÃO IMPORTANTE? Observações de Heiner Bielefeldt: 1. “Atribuo muita importância à abordagem da Conferência de Madrid reivindicando a presença de cinco categorias diferentes de atores ou de instituições que se consagrem aos direitos do Homem. 2. “Em termos de direitos do Homem, temos obrigações a diferentes níveis: ao nível regional, nacional, internacional. Além disso, as convicções religiosas e os direitos do Homem sofrem uma evolução diferente e podem causar prejuízo 4 O embaixador do Conselho da Europa, Alexey Koshemyakov, Harri Kuhalampi, doutor em teologia – Parlamento Europeu, Fatos Araci – CEDH, o Professor Ganoune Diop – secretário associado da IRLA encarregado das relações com a ONU em Nova Iorque, Bruno Vertallier, doutor em teologia – presidente a AIDLR, John Graz, doutor em História das Religiões – secretário-geral da IRLA, o professor Jeremy Gunn. Também participaram ou contribuíram os professores Alberto de la Hera, o deão José Maria Espinar, o deão Jaime Rossel, Joaquin Mantécon, Zoila Combalía, Javier Martinez Torrón. José Luis Andavert – presidente da FEREDE, Ryay Tatari (islão) Alberto Benasuly (judaísmo).
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mutuamente. Temos a abordagem do Conselho da Europa, a abordagem da UE, as diferentes abordagens nacionais, a abordagem da ONU. Contudo, é possível que estas diferentes instituições formem universos separados uns dos outros. Temos necessidade de coordenação: um dos objetivos é evitar que nos prejudiquemos uns aos outros prejudicando assim a autoridade inerente às normas dos direitos do Homem e, para isso, é indispensável que nos conheçamos melhor e tomar consciência daquilo que se passa. Na minha perspetiva, que é a de um colaborador da ONU, é muito importante saber o que se passa no Conselho da Europa, na UE, e nos diferentes países. 3. “A estrutura da Conferência de Madrid mostrou como evitar os danos, situações precárias ou perdas de autoridade podendo resultar na exclusão de uma instituição pelas outras. Mas há também um potencial para aprendermos uns com os outros, uma exigência de enriquecimento mútuo. 4. “Necessitamos destas trocas para conhecermos melhor as nossas respetivas atividades, apoiarmo-nos e reforçar as nossas posições mais do que fragilizá-las, mesmo sem termos consciência disso. 5. “A Conferência de Madrid mostra bem que é exatamente o que necessitamos de fazer, o que devemos repetir: trocas frutuosas que conviria de facto, organizar regularmente. 6. “O projeto da AIDLR deve desenvolver um quadro holístico de forma consequente, aos diferentes níveis das instâncias, instituições e infraestruturas para um funcionamento harmonioso.” IV. PERSPETIVAS: PRÉMIO INTERNACIONAL E CONGRESSO INTERNACIONAL DOS “EMBAIXADORES DA LIBERDADE, DA ESPERANÇA E DA PAZ”. A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa tem a intenção de organizar e de promover, cada ano, (1) ou a intervalos regulares (2): 1. UM PRÉMIO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DO HOMEM E DA LIBERDADE RELIGIOSA 1. UM CONGRESSO INTERNACIONAL DA LIBERDADE RELIGIOSA “Embaixadores da liberdade, da esperança e da paz” O congresso internacional sobre a liberdade religiosa terá lugar na primavera de 2015 e a AIDRL previu organizar em Genebra na sede da ONU, paralelamente à 28ª sessão do Conselho do Direitos do Homem.
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V. RECOMENDAÇÕES DA AIDLR 1. A AIDLR pede o apoio e o cofinanciamento das delegações da ONU e dos participantes internacionais, regionais e nacionais para este CONGRESSO INTERNACIONAL. Daremos mais amplas informações por ocasião da 27ª sessão do CDH. 2. Ela pede aos delegados da ONU que nos enviem propostas para a nomeação de candidatos suscetíveis de receber o Prémio Internacional da AIDLR. 3. Ela propõe ao CDH da ONU e aos delegados da ONU e aos outros intervenientes: a. Introduzir, no futuro, no calendário da ONU, sessões do CDH, esta abordagem holística DIALOG FIVE sobre a liberdade religiosa e as minorias religiosas, abordado na perspetiva da UE, dos países ocidentais e dos países islâmicos. b. Estabelecer um fórum multidisciplinar sob o nome “DIALOG FIVE”. A AIDLR está pronta a colaborar com todas as delegações da ONU e os outros intervenientes regionais e nacionais. CONCLUSÃO Nós não somos inteiramente livres enquanto o Outro for prisioneiro, condenado e perseguido por razões derivadas da liberdade de consciência, de religião ou de convicção ou porque pertence a uma minoria religiosa, e se não nos opomos a isso. Temos hoje uma grande necessidade de referências e de modelos, seja qual for a sua origem e que façam parte do passado ou do presente. Entre outros: Jesus Cristo, o profeta Maomé, para a esfera religiosa; Eleanor Roosevelt, Dr. Jean Nussbaum, René Cassin, Dr. Albert Schweitzer, Martin Luther King, Richard Wurmbrandt, Vaclav Havel, Nelson Mandela, Kofi Annan, Dr. Ben Carson, Ban Ki-moon, o Pr. Heiner Bielefeldt, e ainda outros; e ainda a UNESCO, a Unicef, Amnistia Internacional, Human Right Watch, USCIRF, Pew Forum. Nós não defendemos uma religião, uma Igreja ou uma convicção, mas o princípio da liberdade religiosa para TODOS. Sejamos embaixadores da liberdade, da esperança e da paz!
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II Prémio Consciência e Liberdade 2014 Do direito de o trabalhador observar períodos de guarda impostos pela religião que professa Susana Sousa Machado
Do direito de o trabalhador observar períodos de guarda impostos pela religião que professa Susana Sousa Machado1 1. Liberdade religiosa, trabalho e descanso semanal: aproximação ao problema Por vezes verificam-se sérias dificuldades de ordem prática na conciliação entre convicções religiosas e exigências de organização empresarial, o que coloca desafios de gestão perante a heterogeneidade cultural, étnica e religiosa típica de uma sociedade contemporânea centrada na interculturalidade. As opções relativas ao reconhecimento da diversidade religiosa conduzem-nos a um princípio fundamental estruturante dos sistemas jurídico-constitucionais adotados pelas democracias ocidentais: ao princípio da igualdade ou ao direito à diferença ou, melhor, a ser igualmente considerado na própria diversidade.2 É claro que um elevado nível de tolerância religiosa pode causar problemas ao empregador quando procura conciliar os diferentes interesses dos seus trabalhadores. Todavia, não podem os trabalhadores ser privados dos seus direitos decorrentes da liberdade religiosa, impondo-se soluções para este problema. A questão do dia de descanso semanal imposto pela crença religiosa a que se pertence assume-se como um problema bastante delicado nos ordenamentos jurídicos em que existe um forte empenho na garantia da liberdade religiosa. Pense-se nas dificuldades que poderão surgir da multiplicidade de crenças religiosas numa grande empresa, que trabalha em regime de laboração contínua, de modo a abarcar todos os turnos numa linha de montagem se considerarmos as diferentes exigências em termos de períodos de não trabalho por motivos religiosos. 2. Enquadramento do dia de guarda imposto pela religião A religião para além de tornar sagrado certos lugares, pessoas e objetos, também sacraliza o tempo. Ora, para o homo religiosus o tempo não é uniforme já que existem certos momentos que podem ser qualificados de tempo sagrado 1 A Drª Susana Machado é Jurista e Docente no Instituto Politécnico do Porto e Membro do CIICESI, sendo presentemente Doutoranda no Departamento de Direito Mercantil e do Trabalho da Universidade de Santiago de Compostela. 2 NICOLA COLAIANNI, Eguaglianza e diversità culturali e religiose. Un percorso costituzionale, Il Mulino, Bologna, 2006, pág. 19.
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devido ao significado religioso que detêm. Nas mais diversas religiões encontramos a ideia de que uma determinada parcela do tempo do indivíduo deve ser destinada ao cumprimento de certos atos de fé. É sabido que a maioria das crenças religiosas dedica um dia específico da semana para o descanso e para o culto, considerando-o sagrado e de respeito obrigatório para os seus fiéis. Para os judeus o sábado (Sabbath) é o seu dia de guarda, o qual decorre do decálogo, que na tradição judaica corresponde ao quarto mandamento. Isto ocorre porque, de acordo com a Torá, Deus descansou da obra da Criação ao sétimo dia. O Sabbath deve ser observado do pôr-do-Sol de sexta-feira ao pôr-do-Sol de sábado. Note-se que alguns grupos cristãos como os Adventistas do Sétimo Dia acompanham esta tradição judaica. Para os fiéis das igrejas cristãs o seu dia de guarda corresponde, de um modo geral, ao primeiro dia da semana na medida em que representa o dia da Ressurreição de Cristo, ou seja, o domingo. Segundo apontam os Evangelhos este passou a ser considerado o Dia do Senhor (dies domenicus), que está na origem etimológica da palavra Domingo.
Da esquerda para a direita: Dr. João Lobo, Dr. Fernando Soares Loja, Dr. Ganoune Diop e Dr. Paulo Mendes Pinto
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Para os muçulmanos o dia de guarda é a sexta-feira, já que é ao sexto dia da semana, pelo meio-dia, que se reúnem na mesquita para a oração. Decorre da 62.ª Surata - AL JÚMU’A (Sexta-feira) - do Alcorão, versículo 9: “Ó fiéis, quando fordes convocados, para a Oração da Sexta-feira, recorrei à recordação de Deus e abandonai os vossos negócios; isso será preferível, se quereis saber.” No entanto, o grau de coercividade do preceito religioso de observar certo dia de guarda pode divergir nas diferentes tradições religiosas, isto porque no caso do sabbath existe uma proibição absoluta de trabalhar no dia individualizado como sendo o dia de descanso, já que na tradição cristã o dia é dedicado à observância de certos preceitos religiosos de culto e à oração mas sem que isso represente uma proibição absoluta de desenvolver outra atividade.3 Assim, as prescrições que as várias religiões impõem aos seus crentes em termos de dias de repouso semanal podem ter repercussões no cumprimento ou incumprimento dos atos de culto, se considerarmos a vida laboral do crente. Este problema é capaz de potenciar conflitos entre empregadores e trabalhadores pertencentes a certas confissões religiosas, sobretudo diversa da católica. Não podemos esquecer que na nossa ordem jurídica a fixação do dia de descanso semanal prende-se com as raízes religiosas e culturais de tradição cristã do dies dominicus e com algumas, mas de menor incidência, de tradição hebraica do sabbath. A crescente presença de diferentes comunidades na Europa, bem como, embora em menor dimensão, em Portugal, com as mais diversas convicções religiosas, pode conduzir a certos problemas de tutela da liberdade religiosa no seio das relações laborais, nomeadamente ao nível do tempo de trabalho. Efetivamente, os desafios que a liberdade religiosa coloca ao regime das relações laborais vão ganhando notoriedade a cada dia que passa. Por força das suas convicções religiosas, o trabalhador pode ser confrontado com a necessidade de observar um determinado dia de descanso semanal que varia consoante a confissão religiosa, o que eventualmente coloca algumas dificuldades ao empregador em termos de gestão da unidade empresarial. 3. Reflexos dos períodos de guarda impostos pela religião na relação laboral Através da celebração do contrato de trabalho, o trabalhador coloca a sua força de trabalho ao serviço do empregador. No entanto, a disponibilidade temporal do trabalhador ao serviço do empregador tem limites, desde logo, por motivos fisio3 Assim, PAOLA BELLOCCHI, Pluralismo religioso, discriminazioni ideologiche e diritto del lavoro, in Argomenti di Diritto del Lavoro, n.º 1, 2003, pág. 205; ANTONELLA OCCHINO, Il tempo libero nel diritto del lavoro, G. Giappichelli Editore, Torino, 2010, pág. 123.
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lógicos e sociais e, por isso, “a duração do tempo de trabalho é regulamentada com vista à tutela da saúde, da vida moral e social do indivíduo, da economia em geral e, ainda, da liberdade individual”.4 Assim, a Constituição da República Portuguesa (CRP) na al. d) do n.º 1 do art. 59.º, num artigo que se ocupa de elencar os principais direitos dos trabalhadores assalariados, consagra, entre outros, o direito ao repouso e ao descanso semanal.5 No entanto, o texto fundamental não prevê nenhum dia específico de repouso durante a semana mas também não inclui um direito do trabalhador escolher qual o dia de descanso que pretende gozar.6 Por seu turno, o Código do Trabalho no art. 232.º regula o descanso semanal determinando que o trabalhador tem direito, a pelo menos, um dia de descanso por semana (n.º 1) e que o dia de descanso semanal obrigatório pode deixar de ser o domingo num conjunto de situações aí elencadas (n.º 2). Como vimos, por motivos relacionados com a crença religiosa, o trabalhador pode ter necessidade de observar um determinado período de guarda que não coincide com o dia de descanso ou com o horário que lhe é atribuído pelo empregador. Neste momento surge um conflito entre o direito à liberdade de religião do trabalhador (art. 41.º da CRP) e a livre iniciativa económica (arts. 41.º e 61.º da CRP) e a liberdade de organização empresarial (art. 80.º da CRP) da entidade empregadora. Ora, a liberdade religiosa na sua dimensão externa, ou seja, enquanto direito de agir em função das suas convicções, não é um direito absoluto e, mesmo no âmbito da relação laboral, a liberdade religiosa do trabalhador pode sofrer alguma compressão motivada por outros interesses e direitos em jogo. Em Portugal, até à entrada em vigor da Lei da Liberdade Religiosa (LLR), aprovada pela Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, as confissões religiosas minoritárias não tinham a possibilidade concreta de gozar do dia de descanso semanal em dia distinto do domingo e de não comparecerem ou de se ausentarem do trabalho por motivos religiosos. Foi o art. 14.º, n.º 1 da LLR que veio prever o 4 JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, Vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 283. 5 Segundo J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 773, o direito ao repouso “e os direitos com ele conexionados devem ser contados, por um lado, entre os direitos análogos aos direitos, liberdade e garantias (cfr, art. 17.º) e, por outro lado, entre os direitos fundamentais derivados”, de forma que “uma vez obtido um determinado grau de concretização, esta não possa ser reduzida (a não ser nas condições do art. 18.º), impondo-se diretamente a entidades públicas e privadas”. 6 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 774.
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direito de dispensa ao trabalho, estabelecendo que os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm direito, a seu pedido, de suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e Dr. Artur Machado entrega Prémio de Liberdade Religiosa à nos períodos horários que autora vencedora, Drª Susana Machado lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições: a) trabalharem em regime de flexibilidade de horário; b) serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso; c) haver compensação integral do respetivo período de trabalho. Como veremos de seguida, a interpretação adotada pela jurisprudência portuguesa relativamente ao art. 14.º da LLR nem sempre foi consentânea com o próprio direito fundamental à liberdade religiosa previsto no art. 41.º da CRP, acolhendo-se uma leitura literal e restritiva das palavras do legislador ordinário. Esta visão das coisas mereceu a intervenção recente do Tribunal Constitucional (TC) em duas ocasiões no sentido de interpretar a norma do art. 14.º, n.º 1, al. a) da LLR.7 Perante as considerações precedentes pode, então, questionar-se qual o tratamento que tem sido dado pelos tribunais à questão da necessidade religiosa de o trabalhador observar determinado período de guarda exigido pela sua crença. 4. A observância de períodos de guarda na jurisprudência comparada Na jurisprudência estrangeira desde há muito que são analisados casos que envolvem o respeito por um determinado dia de guarda por motivos religiosos que nem sempre se articula facilmente com as obrigações laborais do homem religioso e trabalhador. É notória a relevância das decisões jurisprudenciais americanas e canadianas, bem como as posições assumidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). 7 Acórdãos do TC n.º 544/2014 e n.º 545/2014, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
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A prática dos Tribunais norte-americanos tem sido a de considerar que o empregador deve procurar com certa razoabilidade satisfazer as exigências dos trabalhadores quanto às suas crenças desde que isso não lhe acarrete um sacrifício considerável. No mesmo sentido, a jurisprudência canadiana tem estado atenta ao respeito por certos dias de descanso em função da religião e tem entendido que a observância de períodos de não trabalho por motivos religiosos implica que o trabalhador demonstre tal exigência por parte da confissão religiosa e, a partir desse momento, advém um dever mútuo de adaptação. Ora, neste contexto, existe um caso emblemático que chegou ao Supremo Tribunal do Canadá, o caso O’Malley, decidido em 1985, relativo a um trabalhador que durante a execução do contrato de trabalho se tornou membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia8 e, como se trata de uma religião que requer uma ausência ao trabalho durante o Sabbath, haveria incompatibilidades com o seu horário de trabalho. Por esse motivo, o trabalhador alegou estar a ser alvo de discriminação quando o empregador se recusou a acomodar-se às suas necessidades. O Tribunal canadiano considerou que houve discriminação entre trabalhadores no que diz respeito aos termos ou condições de trabalho por motivos de crenças. Repare-se ainda que o Tribunal sublinhou que a intencionalidade de criar um quadro discriminatório não é determinante e que o empregador tem um dever de adaptar-se para atender às práticas religiosas do trabalhador. Como o empregador se limitou a considerar a possibilidade de o trabalhador em causa passar a prestar a sua atividade em regime de trabalho a tempo parcial, o Supremo Tribunal considerou que o empregador não demonstrou que tinha feito um esforço razoável e exigível para atender às práticas do trabalhador. Retenha-se, então, que no Canadá se exige, em regra, que o empregador procure adaptar-se e tente levar em consideração as crenças religiosas dos trabalhadores, salvo se isso lhe causar um custo ou dificuldade excessivos, denominado na jurisprudência como “undue hardship”.9 Um dos casos mais comentados da jurisprudência americana é o Corine Proctor v. Consolidated Freightways que chegou à última instância e foi então 8 Para uma análise mais detalhada do caso, cfr. LORNE SOSSIN, God at Work: Religion in the Workplace and Limits of Pluralism in Canada, in the United States, in Comparative labor law and policy journal, Vol. 30, N.º 3, 2009, pág. 494. 9 Para mais desenvolvimentos sobre a experiência canadiana, cfr. LUCY VICKERS, Approaching Religious Discrimination at Work: Lessons from Canada, in International Journal of Comparative Labour Law and Industrial Relations, Vol. 20, 2004, págs. 177-200.
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julgado pelo United States Court of Appeals (ninth circuit).10 Quando se tornou membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, a trabalhadora comunicou aos seus superiores hierárquicos que a sua fé a impedia de trabalhar ao sábado, e após ter sido convocada para trabalhar num sábado e não compareceu foi alvo de sanção disciplinar. No entanto, a partir daí a empresa procurou acomodar as suas crenças religiosas, não lhe exigindo trabalho ao sábado. Mais tarde, quando se candidatou a outro posto de trabalho dentro da mesma empresa, foi confrontada com uma declaração em que se comprometia a trabalhar ao sábado na eventualidade de lhe serem atribuídas as novas funções. Apesar de se recusar a assinar tal declaração, a empresa concedeu-lhe o novo cargo. Perante as repetidas ausências ao trabalho ao sábado acabou por ser despedida. Perante estes factos, o Court of Appeals considerou que, mesmo após a mudança de funções, se mantinha a obrigação de acomodação a cargo do empregador, ainda que no momento da candidatura para o novo cargo a trabalhadora estivesse consciente de que seria necessário trabalhar ao sábado. O Tribunal saudou o longo período em que o empregador procurou acomodar as exigências religiosas da trabalhadora mas sublinhou que a sua obrigação não terminou quando a trabalhadora mudou de funções. Em contraposição com a jurisprudência americana ou canadiana, a Europa tem sido mais tímida a tratar o dever de acomodação do empregador, ao nível do dia de descanso semanal e dia de guarda. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem sido chamado a decidir sobre este tipo de questões. No caso Tuomo Konttinen v. Finlândia, de 3 de dezembro de 1996,11 um trabalhador da empresa ferroviária finlandesa que passou a professar a religião Adventista do Sétimo Dia foi despedido por se ter recusado a prestar trabalho após o pôr-do-Sol de sexta-feira invocando um conflito entre as obrigações da religião que segue que o obrigam à guarda do Sabbath e o seu horário de trabalho. No entanto, a Comissão Europeia dos Direitos Humanos, à qual competia decidir sobre o recurso, entendeu que estava em causa um despedimento por violação do dever de assiduidade ao trabalho e não um despedimento enquadrável na liberdade religiosa do trabalhador. Considerou, aliás, que, em caso de incompatibilidade entre a religião e o trabalho, o trabalhador 10 Para o comentário a este caso seguimos a exposição de RAYMOND GREGORY, Encountering religion in the workplace: the legal rights and responsabilities of workers and employers, Ithaca. New York, Cornell Unisersity Press, 2001, pág. 187-188. 11 Disponível em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-3379.
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sempre teria a possibilidade de se demitir e esta seria a última garantia do seu direito à liberdade religiosa. Esta decisão não pôde ficar isenta de críticas já que a argumentação não corresponde à dimensão do problema, na medida em que não confere qualquer relevância Paulo Sérgio Macedo, Presidente da Direção da AIDLR à proteção da liberdade religiosa. Sufragamos, portanto, o entendimento segundo o qual o TEDH adotou uma visão redutora do problema ao ignorar por completo as convicções religiosas do trabalhador, independentemente da pretensão de Konttinen ser ou não acolhida. De facto, trata-se de uma “resposta redutora e insatisfatória” a um problema tão complexo12 que se baseou numa argumentação “muito simplista”.13 Este raciocínio de que o demandante tinha a possibilidade de renunciar ao seu posto de trabalho e, por isso, não foi violado o direito à liberdade religiosa conduziu a uma “grande perplexidade” da doutrina.14 Como destaca JÚLIO GOMES esta decisão é totalmente diversa das decisões dos Tribunais norte-americanos e canadianos sobre a mesma problemática.15 5. A observância de períodos de guarda na jurisprudência portuguesa Na jurisprudência portuguesa são conhecidos dois casos emblemáticos bastante recentes relativamente à guarda de um dia de descanso semanal e consequente dispensa de trabalho por motivos religiosos. Nos Acórdãos n.º 544/2014 e n.º 545/2014 do Tribunal Constitucional, respeitantes a crentes da Igreja Adventista do Sétimo Dia que se encontram obrigados, por motivos religiosos, a guardar o sábado como dia de descanso, adoração e ministério e 12 JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, Vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 308-309. 13 ALAIN POUSSON, Convictions religieuses et activité salariée, Mélanges dédiés au Président Michel despax, Presses de l’Université des Sciences Sociales de Toulouse, 2002, pág. 298. 14 DAVID GARCÍA-PARDO, Descanso semanal y festividades religiosas islâmicas, in Los musulmanes en España: libertad religiosa e identidad cultural, Madrid, Editorial Trotta, 2004, pág. 176. 15 JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, Vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 309.
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abster-se de todo o trabalho secular, estava em causa a interpretação do art. 14.º da LLR que prevê algumas condições de verificação cumulativa para que o trabalhador possa ser dispensado do trabalho no dia de descanso semanal. Mais concretamente esteve em análise a condição enunciada na al. c), n.º 1, que prevê que os trabalhadores têm direito a suspender o seu trabalho em dias de descanso semanal por motivos religiosos desde que trabalhem em regime de flexibilidade de horário. O Acórdão do TC n.º 544/2014, de 23 de setembro, trata da apreciação da regularidade e licitude de um despedimento promovido pela entidade empregadora em virtude do comportamento da trabalhadora que, sendo crente da Igreja Adventista do Sétimo Dia, se recusou repetidamente a trabalhador depois do pôr-do-Sol de sexta-feira, quando o seu turno terminava depois desse momento, e a prestar trabalho suplementar ao sábado. Depois de ter sido negado provimento à pretensão da trabalhadora em todas as instâncias jurisdicionais a que recorreu, o TC acabou por determinar que o direito à dispensa do trabalhador por motivos religiosos se deve aplicar a todos os casos em que seja possível compatibilizar a duração do trabalho com a dispensa, nomeadamente nos casos de prestação de trabalho em regime de turnos. Retira-se do acórdão que uma interpretação literal do n.º 1, do art. 14.º da LLR, que estabelece o requisito da flexibilidade de horário e da compensação do período de suspensão, levaria a uma compressão desrazoável e excessiva da liberdade de religião, em termos não consentidos pelo princípio da proporcionalidade. Com efeito, resulta que o conceito de flexibilidade de horário não pode deixar de comportar todas as situações em que seja possível compatibilizar a duração do trabalho com a dispensa do trabalhador por motivos religiosos, verificando-se, desta forma, a acomodação dos direitos fundamentais do trabalhador. Foi, assim, afastada uma interpretação rígida e fechada do conceito de flexibilidade de horário, à luz do direito fundamental à liberdade religiosa, que merece uma elevada proteção, a qual irradia o seu efeito para as relações laborais, de modo a obrigar os empregadores a procurarem soluções de gestão da organização laboral que acautelem o exercício dos direitos fundamentais pelos trabalhadores. A problemática abordada no Acórdão do TC n.º 545/2014, 29 de setembro, é em tudo semelhante ao aresto supra comentado mas diz respeito a um empregador público já que se trata de uma crente da Igreja Adventista que exerce funções de magistrada do Ministério Público. A jurisprudência constitucional voltou a afirmar que a norma do artigo 14.º, n.º 1, al. a) da LLR, que permite que os funcionários e agentes do Estado e outras entidades públicas, bem como
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os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, tenham a possibilidade de suspensão do trabalho nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, abrange também aqueles cujo trabalho é prestado em regime de turnos. Assim, no caso concreto, a condição da flexibilidade do horário de trabalho prevista na lei abrange o trabalho prestado por uma magistrada do Ministério Público sujeita ao regime de turnos. Isto porque, a norma do art. 14.º, n.º 1 da LLR, ao estabelecer, tanto para trabalhadores do setor público como privado, a possibilidade de suspensão do trabalho dentro de certas condições, no dia de descanso semanal que lhes seja prescrito pela religião que professam, não é mais do que a concretização do direito à liberdade religiosa. E, no caso concreto, parece ser decisivo que o regime de horário de trabalho aplicável permita a compensação dos períodos de trabalho em que tenha ocorrido a suspensão. 6. Uma proposta de abordagem do problema: o dever de acomodação É de saudar a recente posição do Tribunal Constitucional no domínio do reconhecimento da liberdade religiosa na sua dimensão de direito de guarda imposto pela religião, contrariando a jurisprudência até então existente sobre a matéria. De facto, foi determinante que a questão tenha sido analisada sempre sob o referencial interpretativo do art. 41.º da CRP, que garante a liberdade de consciência, de religião e de culto, enquanto direito fundamental. Realçando-se, para o efeito, os pontos de contacto entre a vertente externa da liberdade de consciência, enquanto liberdade de agir em consciência, e a liberdade de religião expressa pelo direito de guardar o sábado em respeito pelos preceitos religiosos. Nestes casos em que se reclamava o exercício do direito de agir em conformidade com as crenças religiosas verificava-se um conflito entre a liberdade religiosa e os deveres decorrentes da relação laboral mas a dimensão religiosa do indivíduo ocupou um lugar central já que não é possível neutralizá-la durante a execução da prestação laboral e, assim, dar primazia às obrigações contratualmente assumidas. Ficou assente que o direito do trabalhador reservar certos dias de guarda prescritos pela religião que professa decorre da proteção normativa da liberdade religiosa constitucionalmente consagrada, e, a partir daí, foi ponderado se do art. 14.º da LLR resulta um nível adequado de proteção de tal direito. Ora, o legislador infraconstitucional teve o cuidado de prever um regime de suspensão da atividade laboral legitimado pelo exercício da liberdade de religião e, por outro lado, a criação de um dever de respeito pelas entidades empregadoras (públicas ou privadas) desse mesmo direito, sem deixar de ponderar igualmente os direitos e interesses merecedores de tutela do empregador.
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Tenha-se, por isso, em atenção que o direito à liberdade religiosa do trabalhador não pode ser visto como um direito absoluto e irrestrito já que pode sofrer alguma compressão justificada por outros direitos e interesses, nomeadamente do empregador. Todavia não nos parece que o empregador possa simplesmente alegar que o trabalhador assumiu livremente certas obrigações contratuais que sabia que não podia cumprir devido à sua crença religiosa que impunha a guarda de determinado dia da semana e ocultou tal circunstância ao empregador. Acima de tudo deve realçar-se que, tal como resulta do Acórdão do TC n.º 544/2014, da tutela constitucional da liberdade de religião decorre o princípio de tolerância e de acomodação dos direitos derivados do exercício da religião, que não se limita ao reconhecimento da liberdade religiosa no domínio laboral através do princípio da igualdade e não discriminação. Entendemos que a solução deve sempre passar pela acomodação razoável tanto nos casos em que a conversão religiosa ocorre no decurso do contrato de trabalho, quer quando o trabalhador professa certa religião no momento da contratação. Sustentamos que em qualquer um dos casos o empregador não pode simplesmente defender-se com o princípio pacta sunt servanda sem antes considerar um conjunto de circunstancialismos que permitam determinar se é possível respeitar as limitações temporais da disponibilidade do trabalhador. Como ensina JÓNATAS MACHADO, “a eficácia externa da liberdade religiosa implica mais do que a observância do princípio da igualdade, vinculando positivamente a entidade empregadora a proceder a uma medida determinada de acomodação da religião”.16 Perante o comando constitucional do direito à liberdade religiosa, o legislador ordinário deve procurar a máxima efetividade do direito em causa, segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Só uma interpretação ampla do conceito de horário flexível permitiu que não fosse dada excessiva prevalência aos interesses do empregador a quem compete, por natureza, a definição do horário do trabalhador-crente. Acreditamos que os casos desta natureza, independentemente da religião professada e do dia de guarda a respeitar, poderão ser solucionados através do conceito de acomodação razoável, ou seja, do dever de acomodação que só será exigível quando não comporte um encargo excessivo e desproporcionado para o empregador. Encargo este que deve ser determinado em termos concretos, isto é, deve ser aferido um encargo real e não hipotético. É claro que a acomodação 16 JÓNATAS MACHADO, Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva – Dos direitos de verdade aos direitos dos cidadãos, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pág. 265.
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se torna num encargo excessivo, por exemplo, nos casos em que o sábado é o dia de maior movimento de clientes como acontece nos restaurantes e cabeleireiros. No entanto, perante os casos concretos em que o trabalhador se recusa a trabalhar num determinado dia da semana por motivos religiosos, o empregador deve procurar uma acomodação que não cause prejuízos ao negócio e que possa ser implementada sem custos. Qualquer recusa por parte do empregador em procurar uma solução de acomodação razoável deve ser considerada como conduta discriminatória. Entende-se, portanto, que os empregadores deverão ser sensibilizados para um dever que não podem deixar de conhecer: o dever de acomodação do direito fundamental à liberdade religiosa dos seus trabalhadores que irradia efeitos para as relações laborais.
III PrĂŠmio ConsciĂŞncia e Liberdade 2015 Estado laico e liberdade religiosa: realidades e utopias Josias Bittencourt
Estado laico e liberdade religiosa: realidades e utopias Josias Bittencourt1 INTRODUÇÃO União entre Religião e Estado. Separação entre Religião e Estado. Qual é o modelo ideal da mútua relação político-religiosa durante toda a história da Humanidade? A força e o poder político-religioso perpassam por todas as atividades humanas no mundo? Aristóteles (384-322 a.C.) escreveu em “A Política” que o ser humano é naturalmente um ser com crenças políticas. Seria também, naturalmente, um ser com outras crenças, como a religiosa ou a antirreligiosa? O equilíbrio da força-poder entre Religião e Estado perpassa, obrigatoriamente, pela efetividade da Liberdade Religiosa; ao contrário, há o perigo de perpetuar conflitos político-religiosos entre os povos. Este artigo faz um ensaio, a partir de alguns factos históricos e contemporâneos, sobre as realidades e a utopia do Estado Laico e da Liberdade Religiosa, considerando o multiculturalismo desde as sociedades históricas até à atual realidade globalizada. O problema torna-se mais complexo quando são analisadas as realidades regionais que, inevitavelmente, integram as múltiplas realidades mundiais. Portanto, situações que abrigam e obrigam todos a ocuparem-se tanto dos ideais do Estado Laico e da Liberdade Religiosa como da necessária efetividade das teorias nas realidades contemporâneas. O Direito Internacional e o Direito Constitucional têm o desafio de superar, apesar das dificuldades multiculturais, a concentração de força e poder das religiões que dominam pessoas e dos Estados político-religiosos fundamentalistas. Se, nalgumas situações, as religiões dominantes defendem os direitos humanos fundamentais, noutras influenciam ou impõem os seus dogmas e doutrinas nas leis elaboradas pelo Poder Legislativo. Se, nos Estados fundamentalistas, o desrespeito à Liberdade Religiosa é facilmente percebido, nos Estados democráticos os ideais do Estado Laico neutro e da Liberdade Religiosa prática têm sido respeitados? Realidades ou utopias, segundo as ideias e ideais de Thomas Morus 1 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado. Professor Universitário.
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(1478-1535) em “Utopia”? Este ensaio sobre realidades e utopias nas relações entre Religião e Estado tem como objetivo despertar a dimensão dos problemas solucionáveis e insolúveis que existem nas mútuas relações político-religiosas em âmbito regional e mundial. 1. Religião e Estado A Religião e o Estado formam as duas forças-poder mais importantes do mundo. Ao longo da História, as diversas formas de Religião e Estado têm sido estudadas por intelectuais, como sociólogos, filósofos, juristas, teólogos. Na atualidade, as relações que envolvem vida política e vida religiosa têm ocupado muito espaço nas discussões ideológicas dos pensadores teóricos e práticos. A História revela que a Religião, através da diversidade arquitetónica dos seus edifícios, como as igrejas, as mesquitas e as sinagogas; e as diversas formas de Estado, como os monárquicos e os federados, constituem as organizações político-religiosas mais influentes do mundo, que moldam ou determinam o comportamento das pessoas. Todas as crenças religiosas, como as cristãs e as muçulmanas, todas as ideias e ideais políticos, como o socialismo e o capitalismo, constituem a grande bússola que determina os perfis dos valores éticos-morais do ser humano nos decretos da vida e da lida. Qual a importância da Religião na vida das pessoas? Quais são as suas influências e interferências na jornada da vida e da lida humana? As críticas e as defesas são intensas. As opiniões são variadas, a partir da complexa pergunta: Qual é a verdade religiosa? Os teólogos sustentam que a vida humana não tem nenhum sentido sem vida religiosa, enquanto descrentes, como Karl Marx (1818-1883), opinam que a “vida religiosa é o entorpecimento moral das pessoas”. Polémicas à parte, inevitavelmente o ser humano é um ser com múltiplas crenças. É um ser que crê, direta ou indiretamente, em mistérios “encobertos” por causa de mistérios “descobertos”. O sociólogo Max Weber (1864-1920)2escreveu que a sociologia da Religião se preocupa, de maneira especial, com a influência que a Religião exerceu, exerce e exercerá sobre a economia; sobre a dimensão das ideias e dos ideais dos líderes religiosos sobre consumo, sobre a dimensão da influência e do comportamento humano economicamente relevante. Portanto, a influência da Religião na vida das pessoas ultrapassa os comportamentos primários, como o ético, o moral, o social, o político e o jurídico. Estende-se também para os valores económicos. 2 WEBER, Max. Economia e Sociedade. São Paulo: Editora UnB, Imprensa Oficial, 2004, p. 279 e ss.
Estado laico e liberdade religiosa: realidades e utopias
Segundo o sítio GeoHive,3 em 2015 o mundo alcançou uma população de 7,3 mil milhões de pessoas, com aumento diário de aproximadamente 200 mil crianças. Atualmente, haveria no mundo quase 45 mil instituições religiosas, legal e juridicamente reconhecidas pelos Estados; no Brasil, cerca de 5 mil. Em 2050, haverá uma provável população de 10 mil milhões de pessoas, com números de cristãos e mulçumanos bem próximos: 2,9 e 2,8 mil milhões de crentes, respetivamente.4 Atualmente, segundo a BBC e o instituto WIN/Gallup,5 países como a África do Sul, Marrocos e a Tailândia são os mais religiosos do mundo (94% da população), enquanto a China, o Japão, o Reino Unido e a Alemanha seriam os países com menos crentes religiosos (13% a 33% dos habitantes). Na América Latina, os países com mais religiosos seriam a Colômbia, o Brasil e a Argentina, todos com aproximadamente 80% de crentes. No caso do Brasil, estariam a ser abertas cerca de dez novas Igrejas por dia, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação.6 A pesquisa WIN/Gallup também revela que a Religião continua a ser importante para as gerações mais jovens. Segundo os dados, 67% dos entrevistados de 25 a 34 anos professam algum tipo de fé. O índice de adesão dos entrevistados a uma Religião também foi expressivo, independentemente do seu nível de educação formal. Se, entre aqueles sem nenhum tipo de educação formal, a taxa de religiosos foi de 80%, entre os que possuem ensino secundário ou universitário o índice foi de 60%. Entre os que fizeram mestrado ou doutoramento, a taxa foi maior: 64%. Para o presidente da WIN/Gallup, Jean-Marc Leger, “o estudo revela que o total de pessoas que se consideram crentes é, na verdade, muito expressivo. E com a crescente tendência global de uma juventude religiosa, o número de crentes continuará a aumentar.” Sob o prisma de estar “filiado a alguma Religião e ter algum tipo de fé”, os números revelam que aproximadamente 90% da população mundial é religiosa e, consequentemente, promulga algum tipo de esperança divina tanto para o presente como para o futuro. 3 http://www.geohive.com/, acessado em 25 de setembro de 2015. 4 http://www.pewresearch.org/fact-tank/2015/04/02/7-key-changes-in-the-global-religious-landscape/, acessado em 25 de setembro de 2015. 5 http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150414_religiao_gallup_cc, acessado em 25 de setembro de 2015. 6 http://www.ibpt.com.br/noticia/1212/Igreja-pode-importar-dogmas, acessado em 25 de setembro de 2015.
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No contexto mundial de tanta fé, o teólogo cristão Marcos De Benedicto escreve: “Na correria do dia a dia, você pode ser tentado a olhar para os lados, ou para trás, ou para a frente, ou para dentro de si, ou para os outros, ou para baixo. Mas a direção certa para olhar é o Céu, pois quem tem o Céu no coração consegue olhar para cima. Ao olhar para o Céu, você reconhece que, acima dos palácios e das torres, acima das assinaturas dos governantes e das decisões dos poderosos, acima do ir e vir dos povos, acima dos movimentos da História, há um Deus que controla todas as coisas. Olhar para o Céu significa não temer os problemas da vida, não amar as coisas da Terra e não seguir as ilusões do mundo. É no Céu que você vê as estrelas, a aurora, o Sol, o dia e a luz. É do Céu que descem o amor, a graça, a justiça, a salvação, a vida, a sabedoria e as bênçãos de Deus. É no Céu que você iniciará os dias sem fim da eternidade. Erga o seu olhar para o céu.” Realidade ou utopia? Segundo o escritor Rubem Alves (1933-2014),7 quando a dor bate à porta e são esgotados todos os recursos da técnica e da ciência, as pessoas, consciente ou inconscientemente, acordam para as suas crenças religiosas. Clamam a solução dos problemas aos padres e pastores, aos sacerdotes e profetas, aos videntes e curandeiros, aos santos e deuses: clamam a todos os que suplicam a Deus, a qualquer alguém sem saber realmente a quem. Nesse contexto, surgem as perguntas sobre o sentido da vida e da lida, sobre o sentido da morte! Perguntas das horas de sono e nas horas de insónia, perguntas com respostas e sem respostas, perguntas do pensar de costas na cama ou nas encostas das montanhas. Os dados do atual mundo globalizado, multicultural e religioso revelam, portanto, que existem na psiqué dos atuais 7,3 mil milhões de pessoas outros “milhares de milhões” de crenças, ideologias e teorias político-religiosas, inclusive “todos” os pensamentos já exteriorizados pelos antepassados vividos e vívidos. Por isso, questões singulares: O acúmulo de ideias e ideais do ser humano, muitas vezes contraditórios e geradores de conflitos, são problemas temporários ou permanentes? São problemas solucionáveis ou problemas insolúveis? Quais seriam os tipos de conflitos com solução e quais seriam os conflitos impossíveis de solucionar? As respostas não são uniformes, geram desordem. A força e o poder da Religião dependem, predominantemente, da sua relação com o Estado. Consequentemente, o Estado torna-se mais forte ou mais fraco, mais tolerante ou mais hostil, a depender da religiosidade do seu povo. Se a Religião, de um lado, tem sido tímida na frequência e permanência nos lugares que 7 De BENEDICTO, Marcos. Um Olhar Para o Céu. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2015, p. 3.
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sempre lhe pertenceram, como os centros do saber científico, de onde tentam expulsá-la; de outro lado, ela tem influenciado e determinado, em maior ou menor grau, as ações dos gestores nos poderes executivo, legislativo e judiciário. Quando é desprezada no âmbito estatal, na individualidade é reverenciada. O indivíduo, naturalmente impregnado com crenças religiosas, não extingue as suas crenças por absoluto na prática das ciências da vida e das tarefas intelectuais. Na gestão do Estado, no âmbito de todas as atividades públicas, as crenças e ideologias acompanham todos os atos de gestão. A ideia de total isenção das convicções pessoais nos atos públicos, em função do coletivo, é muito mais uma utopia e muito menos uma realidade. Por isso, imaginar um Estado Laico, plena e absolutamente neutro, conforme os teóricos do Estado Democrático, é uma realidade ou uma utopia? Se for uma realidade, como explicar a continuidade dos conflitos político-religiosos? Se for uma utopia, para que serve, então, o sonho de um Estado Laico? O conceito de Estado perpassa por diferentes conceções conforme a época e a interpretação jus filosófica. Apesar de os conceitos não serem contraditórios, também não são harmónicos, são semelhantes. As diferenças parecem mais ténues e insignificantes do que conflitantes. O conceito clássico envolve as máximas: “Estado é uma organização política e jurídica com um povo, um território e um governo” com soberania reconhecida tanto no âmbito interno como na comunidade internacional.
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A expressão “Estado Moderno” foi empregada inicialmente por Nicolau Maquiavel (1469-1527), que, por ser anti utópico e realista, propôs uma rutura com o conceito tradicionalista de poder político até então existente.8 Para ele, não podia haver separação entre teoria e prática.9 Os seus conceitos romperam com a tradição medieval teológica e com a prática, comum durante o Renascimento, de criar Estados imaginários, perfeitos e utópicos. Procurou secularizar o Estado, ou seja, tornar laico o poder político, que até àquele momento continuava unido e confundido com o poder religioso. Segundo ele, somente através da laicidade é que o Estado começaria a sua independência em relação à Religião. Ideais possíveis ou impossíveis? Algumas sinopses sobre Estado perpassam pelas seguintes ideias: (1) Immanuel Kant (1724-1804): “O Estado é a reunião de uma multidão de homens a viverem sob as leis do Direito”; (2) Karl Marx (1818-1883): “O Estado é um fenómeno histórico passageiro, tem origem na luta de classes; o Estado nem sempre existiu, nem sempre existirá; como poder político, está condenado a desaparecer”; (3) Rudolph von Ihering (1818-1892): “O Estado é a organização social do poder de coerção, e o Direito, a disciplina da coação”; (4) Friedrich Engels (1820-1895): “O Estado é a organização e o poder de uma classe exploradora que deseja manter os seus objetivos e oprimir as classes expropriadas”; (5) Max Weber (1864-1920): “O Estado é a organização humana que, dentro de um determinado território, reivindica para si, de maneira bem-sucedida, o monopólio da violência física legítima”; (6) Léon Duguit (1859-1928): “O Estado é o resultado de uma vitória entre fortes e fracos, onde os fortes monopolizam a força, de modo concentrado e organizado, impondo aos mais fracos a sua vontade”; (7) Del Vecchio (1878-1970): “A sociedade é uma pluralidade de laços, enquanto o Estado é o laço político e jurídico.” Com essas ideias políticas contemporâneas, que têm determinado as atuais relações entre Estado e sociedade, surge a questão: É possível introduzir os conceitos idealizados de um Estado Laico plenamente neutro e de uma Liberdade Religiosa como direito humano fundamental, absoluto, universal? Realidades ou utopias? Uma das mais graves hipotecas da cultura contemporânea envolve o mito de que o Estado moderno continua detentor de poderes sacralizados. Políticos religiosos acreditam que são predestinados a liderar um povo, uma nação. Por causa das “fontes” históricas de poder divino, muitos governos tentam controlar 8 ALVES, Rubem. O Que é Religião? São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 11. 9 ESCOREL, Lauro. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel. Brasília: Editora Universidade de Brasília (UnB), 1979, p. 19-107.
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a sociedade com a sua força e poder em todos os atos humanos: políticos e religiosos. Apesar da retórica moderna de Estado Democrático de Direito, com políticos religiosos e antirreligiosos, o Estado não tem sido capaz de cumprir todas as exigências que completam o ideal da democracia eficaz, nem na efetividade da separação entre Religião e Estado, nem na prática da Liberdade Religiosa. Apesar dos problemas político-religiosos solucionáveis e insolúveis, é o Estado que tem o dever de garantir a ordem pública. O ideal de um Direito justo, estabelecido pelo Estado Democrático, é um importante instrumento garantidor da ordem político-religiosa, apesar do perigo da interferência – direta ou indireta – das crenças e ideologias do intérprete na aplicação do Direito. O Estado moldou-se para além da sua função garantidora e repressiva; é também um produtor de serviços de consumo social. Assim, como as pessoas são natural e socialmente movidas pelas suas crenças, faz parte da função social do Estado a garantia, a proteção e a efetividade dos ideais do Estado Laico e da Liberdade Religiosa.10 2. Liberdade Religiosa: Direito Humano Fundamental Na Grécia antiga, berço da democracia, não havia a atual concepção de direitos humanos fundamentais. Consequentemente, o atual conceito de Liberdade Religiosa também não possuía assento naquelas ideias iluministas. Apesar de soar estranho o paradoxo entre “origem da democracia” e “ausência de direitos fundamentais”, vale relembrar que os conceitos de Direito da atualidade não podem ser transportados unilateralmente para a realidade multicultural daquela época. O atual conceito de “Direitos Humanos” começou a ser desenvolvido na Inglaterra, com a Magna Carta (1215), e intensificou-se no século XVII, no contexto das guerras civis, com os ideais do jusnaturalismo. Assim, a Liberdade Religiosa tem conexão direta com os Direitos Naturais, com a ideia de que todos têm direitos de expressão religiosa independentemente de qualquer regulação estatal. São direitos inalienáveis, direitos que não precisam da vontade do Estado para existir e ser praticados, nos limites da dignidade humana. Após a experiência inglesa, surgiram outras ações formais em favor dos direitos fundamentais, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789). Na ocasião, uma Assembleia declarou-se “constituinte” para votar direitos “globalizados e universais”. A dignidade humana não seria um direito apenas do povo francês, mas também de “toda a Humanidade”. A Revolução Francesa foi mais audaciosa do que a Revolução Inglesa de 1688: os direitos fundamentais não seriam protegidos apenas no âmbito interno, mas também externo. 10 PINZANI, Alessandro. Maquiavel & o Príncipe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 10-19.
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Em 1791, o Congresso dos Estados Unidos promulgou uma “Carta de Direitos” e deveres, entre os quais estavam os da separação entre Religião e Estado, e da Liberdade Religiosa. O artigo 1º determinava: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou de proibir o livre exercício dos cultos; ou de cercear a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação dos seus agravos”. Após a Segunda Guerra Mundial, o debate sobre Liberdade Religiosa tornou-se muito importante, alcançando o status de Direitos Humanos internacionais. Os Estados foram obrigados a discuti-la direta ou indiretamente; foram convidados a conhecer a sua dimensão e os seus limites; foram estimulados a incentivá-la nos âmbitos interno e externo. Os Estados autoritários, distantes da democracia, foram pressionados pelos Estados democráticos a rever os seus conceitos de dignidade humana. Se houvesse recusa ou displicência, eram “abandonados” pela comunidade democrática internacional, inclusive com embargos económicos e apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse contexto, os Estados-membros da ONU começaram a realizar amplas reformas no Direito Internacional e Constitucional para regular e incentivar a promoção da dignidade humana, ao abrigo das novas e contemporâneas “declarações de direitos”. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) é um reflexo importante do pós-guerra mundial. Tanto no âmbito internacional como nacional, é uma âncora para os princípios que regem os ideais da Liberdade Religiosa. O seu artigo 18, por exemplo, estabelece que “toda a pessoa tem direito à liberdade
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de pensamento, consciência e religião”; que tal direito “inclui a liberdade de mudar de religião ou crença”; e que a liberdade de manifestar a religião ou crença pode ser “pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. Se, no âmbito jurídico, a Declaração não criou direitos, no âmbito jus-naturalista ela ratificou e declarou a existência de direitos fundamentais. No âmbito da Liberdade Religiosa, a Declaração tem proporcionado constantes reflexos sobre a importância da efetividade da liberdade de crença. Nas últimas décadas foram publicados outros documentos importantes sobre Liberdade Religiosa, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966), que proíbe a discriminação religiosa e desestimula o ódio por causa da opção religiosa. O seu artigo 18, por exemplo, garante aos pais e tutores o direito de dirigirem a educação religiosa dos filhos enquanto crianças; e o artigo 27 garante que, nos Estados que têm minorias étnicas e religiosas, as pessoas não podem ser privadas do direito de professar e praticar a sua crença e cultura próprias. No Pacto, o conceito de Religião foi “ampliado”; englobou no rol da Liberdade Religiosa os “credos raros e virtualmente desconhecidos”. Os limites para a manifestação das crenças são os previstos na Lei, “necessários para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas”, assim como “os direitos e as liberdades das demais pessoas” (art. 18.3). A Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância com Base em Religião ou Crença (ONU, 1981) é outro importante documento de combate à intolerância e ódio religiosos. Em síntese, a Declaração estimula o direito de: (1) culto, reunião religiosa e o estabelecimento e manutenção dos lugares sagrados e beneficentes; (2) aquisição e utilização de materiais nos costumes e rituais religiosos; (3) escritura e publicação de obras sobre Religião; (4) ensino de crenças religiosas; (5) pedidos e recebimento de contribuições financeiras voluntárias, de indivíduos e instituições; (6) guarda de dias sagrados, de acordo com os preceitos religiosos; e (7) intercâmbio com indivíduos e comunidades sobre questões religiosas em âmbito nacional e internacional. Apesar das Declarações, Convenções, Pactos e Tratados não serem autoexecutáveis, eles têm influenciado a legislação dos Estados sobre Estado Laico e Liberdade Religiosa. Por isso, a realidade detetada: há uma tendência mundial de amplo desenvolvimento da Liberdade Religiosa, apesar de religiosos fundamentalistas continuarem a ser a principal fonte de conflitos político-religiosos. Pode-se fazer mais para aumentar o respeito e a efetividade da Liberdade Religiosa? A resposta positiva é óbvia. No caso do Brasil, a conceção internacional de laicidade e liberdade tem influenciado todas as Constituições republicanas desde 1891. A Constituição
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Federal de 1988, por exemplo, incorporou os ideais do Estado Laico e da Liberdade Religiosa em duas normas fundamentais: O artigo 5, VI, garante que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias”; e o artigo 19, I, estabelece que é “vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.” São regras matrizes constitucionais da ideologia da separação entre Religião e Estado no Brasil. São as forças motrizes que dimensionam a importância do Estado Laico e da Liberdade Religiosa. A Constituição do Brasil proíbe, portanto, qualquer relação direta ou indireta do Estado brasileiro com as religiões, em especial os poderes públicos Executivo, Legislativo e Judiciário. No contexto das normas internacionais sobre laicidade, a Liberdade Religiosa precisa de três dimensões básicas para a sua densidade, eficácia e efetividade: (1) uma dimensão pessoal, no âmbito da consciência e crença; (2) uma dimensão coletiva, no âmbito da expressão religiosa, do culto; e (3) uma dimensão institucional, no âmbito da dogmática e da organização religiosa. São princípios fundamentais para a efetivação da Liberdade Religiosa, em toda a sua plenitude e amplitude. Limitar a prática da Liberdade Religiosa a apenas uma dentre todas as suas dimensões traduz, consequentemente, a amputação do seu núcleo essencial, a mutilação dos direitos humanos fundamentais da liberdade de crença. 3. Verdade: Embrião de Conflitos Político-Religiosos Entre as obras clássicas de Hans Kelsen (1881-1973), algumas têm títulos provocantes: “O Que é Justiça?”; “O Problema da Justiça” e “A Ilusão da Justiça”. Os temas dos livros jurídicos podem ser aplicados por analogia às questões político-religiosas: (1) Existe uma verdade religiosa? (2) Qual é a verdade religiosa? (3) Alguma Religião tem o monopólio da verdade religiosa? Todas as religiões pregam, com viés de exclusividade, uma verdade religiosa única e válida para todas as pessoas. Apresentar uma verdade não é conduta negativa, porque o ser humano tem, por vocação e missão essencial, a busca da verdade. Impedir a sua busca significa desumanizar as pessoas. Mas o direito de buscar a verdade não garante direitos de incentivar o ódio e a discriminação, de empregar o uso da violência, física ou psíquica, para impor uma “verdade”. Violência religiosa contradiz a natureza e os pro-
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pósitos da própria Religião; se a vida religiosa autorizasse atos violentos no debate e embate na busca da verdade, a própria Religião estaria contra a Humanidade. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, de 13 de março de 2000, Carol Wojtyla (1920-2005), o papa João Paulo II, teria dito, num congresso internacional, que expressava “profundo pesar pela morte cruel infligida a João Huss (1369-1415) e os consequentes conflitos e divisão que foram impostos às mentes e corações das pessoas”, porque “as pressões políticas e ideológicas muitas vezes obscurecem a História”. Apesar dos atuais amparos legais sobre Liberdade Religiosa, alguns documentos eclesiásticos podem ressuscitar ojeriza religiosa e incentivar conflitos, como o texto vaticano Dominus Jesus, que estabelece: “O único caminho para se encontrar a salvação é o da Igreja Católica.” Segundo o jornal Folha de S. Paulo, de 6 de setembro de 2000, o documento garante que “apesar das divisões entre os cristãos, a Igreja de Cristo continua a existir, em plenitude, na única Igreja Católica, a única Igreja a apresentar o caminho para a salvação”. Teólogos divergentes teriam criticado a exclusividade da “verdade religiosa católica”, diplomaticamente reinterpretada pelo cardeal e arcebispo emérito Carlo Martini (19272012): “A salvação também pode ser encontrada fora da Igreja Católica, porque o caminho salvífico depende muito mais da conduta individual e muito menos da adesão a uma doutrina.” A declaração do arcebispo teria sido endossada por João Paulo II, que enfatizou o seu consagrado e importante pensamento sobre Liberdade Religiosa: “A verdade cristã propõe-se, não se impõe.” Para o Direito, não há erro em defender uma verdade religiosa, porque defender a fé e realizar proselitismo são elementos essenciais para efetivar a Liberdade Religiosa. O Direito impõe limites a qualquer discurso político-religioso somente quando a “verdade” discursada incentiva à violência psíquica ou física, desafiando a dignidade humana. É o único limite! No Brasil, em 2002, religiosos arrombaram um túmulo para ressuscitar, com orações, uma criança enterrada havia alguns dias. O milagre da ressurreição seria semelhante ao de Jesus. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, de 14 de maio de 2002, os pais e os religiosos foram presos pela polícia no próprio cemitério. Informados do vilipêndio ao cadáver, os religiosos alegaram Liberdade Religiosa e interferência do Estado no processo do milagre da ressurreição. Liberdade Religiosa com direitos limitados ou ilimitados? Realidade ou utopia? O Congresso Nacional do Brasil analisa o Projeto de Lei Federal 122/2006, que discute a criminalização da homofobia. O Projeto tem como propósito criar uma lei que proíba a manifestação em público de pensamentos religiosos contrários à homossexualidade; pretende amordaçar os discursos pastorais que repro-
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duzem os conceitos bíblicos de “erro-pecado” da opção homossexual. Liberdade Religiosa ameaçada? Assim como o Direito justo proíbe o ódio, o preconceito e a perseguição religiosa a qualquer pessoa, inclusive por opção sexual, o mesmo Direito também garante a plena liberdade de manifestação de pensamento religioso, desde que ausentes quaisquer incentivos à violência. O Direito que tutela as garantias fundamentais também repele a censura e o bloqueio à Liberdade Religiosa! O Direito não tolera ser amordaçado na efetividade de nenhuma das suas cláusulas pétreas. As realidades citadas demonstram a dinâmica e a importância da Liberdade Religiosa na sociedade contemporânea. O dilema da “verdade religiosa” e da necessária tolerância perpassa pela realidade social. Mas tolerar não é ter tolerância “sem limites”. Quando pessoas incentivam a violência, e violam os princípios da Liberdade Religiosa, o Estado tem o dever de agir para garantir a ordem social e apaziguar os conflitos político-religiosos. É um problema do passado, do presente e do futuro. É uma necessidade real, plural. 4. Estado Laico e Liberdade Religiosa: Realidades e Utopias O modelo ideal da mútua relação político-religiosa para a humanidade é união entre Religião e Estado ou separação entre Religião e Estado? Os conflitos entre Religião e Estado no passado foram temporários? Os atuais conflitos são momentâneos ou serão permanentes? Se tanto no modelo da união como no modelo da separação político-religiosa os conflitos não têm sido eliminados, qual é a melhor forma de relação entre Religião e Estado: unidos ou separados? Muitos doutrinadores têm escrito sobre Estado Laico usando a expressão “Separação Igreja-Estado” como sinónima da expressão “Separação Religião-Estado”. Grande erro! Religião é todo, enquanto igreja é apenas o símbolo de uma parte religiosa – o cristianismo, assim como mesquita representa a nação muçulmana e a sinagoga simboliza o povo judeu. Usar “Igreja-Estado” como sinónima de “Religião-Estado” é uma forma subtil de expressão preconceituosa de líderes cristãos quanto à vontade de domínio “divino” e “terreno” sobre o islamismo, o judaísmo e outras crenças religiosas. Outro erro é interpretar as ideias e os ideais do Estado Laico como sinónimos das ideias e ideais da Liberdade Religiosa. O conceito puro de Liberdade Religiosa não dimensiona, na sua plenitude, a complexa relação que existe entre Religião e Estado. Enquanto Religião e Estado pressupõe um todo, a Liberdade Religiosa pressupõe a relação entre o todo e as partes; é um elemento estruturante inserido na complexa teoria da separação Religião-Estado. É elemento principal e derivado ao mesmo tempo.
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É fator reflexivo e consequente; é parte inaugural e final, ao mesmo tempo, no ideal do Estado Laico. Charles-Louis de Secondat (1689-1755), o Barão de Montesquieu, escreveu que a liberdade política é o direito de fazer tudo o que as leis permitem, porque, se um indivíduo puder fazer o que elas proíbem, deixa de haver liberdade; haveria uma geração de conflitos, porque os outros teriam o mesmo direito. José Afonso da Silva11 entende que tal conceção de liberdade é perigosa, a não ser que as leis sejam consentidas pelo povo. No contexto da mútua relação entre Religião e Estado, as leis que tratam da Liberdade Religiosa nem sempre podem ser automaticamente consideradas justas, mesmo com consentimento popular. Existe o perigo de as leis serem elaboradas para garantir e proteger as verdades de uma maioria religiosa em detrimento da verdade e da liberdade de crença de uma minoria. A conceção mais aceitável sobre leis justas ou injustas é o ideal exposto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789). Segundo o artigo 4º, a “liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica o próximo”, e o artigo 5º estabelece que “a lei não deve proibir senão as ações nocivas à sociedade”. A jusfilosofia da Liberdade Religiosa inspira a elaboração de diversas normas, inclusive as regras constitucionais que tratam do Estado Laico. Normas que, em dimensão abstrata, consagram tanto os direitos relacionados com a Liberdade Religiosa como aqueles que garantem a plenitude do seu exercício. J. J. Gomes Canotilho12 nomina tal influência como ação normogenética: “Os princípios são fundamentos de regras, são normas que estão na base ou que constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.” Assim, os princípios estruturantes da Liberdade Religiosa inspiram a produção de várias normas, geram declarações de direitos e garantem os direitos fundamentais relacionados com ela, inclusive o requerimento subjetivo de explícita necessidade de separação entre Religião e Estado. A noção ideal do conceito de Liberdade Religiosa não pode ser restringida a um ou a alguns dos particularizados direitos e garantias que, em nome dela, são positivados, sob o perigo de mutilação das suas dimensões conectadas com o Estado Laico. 11 FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 83 e 84. 12 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 236.
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Para Leo Pfeffer (1910-1993),13 a interferência do Estado na escolha pessoal da fé desequilibra a livre concorrência entre as crenças; interfere na formação das convicções individuais e tem a potencialidade lesiva de transmitir aos demais membros da sociedade – adeptos de pensamento religioso diverso da chancela estatal – estigmas de inferioridade e de exclusão. Se o Estado atuar, mesmo com subtileza, em favor de alguma crença religiosa, o próprio Estado transforma-se em agente capaz de converter pessoas em favor da Religião clandestinamente privilegiada por ele. Como não existe Liberdade Religiosa total, quando o Estado se imiscui na seara espiritual, as cláusulas constitucionais inibitórias e impeditivas de arbitrariedades são importantes para a efetivação da laicidade. Segundo Jónatas Machado,14 a Liberdade Religiosa impõe um livre mercado de ideias religiosas, e será real e somente livre quando estiver a salvo de possíveis desequilíbrios ocasionados pela interferência estatal. Isso porque, durante muitos séculos, o discurso teológico dominou todas as esferas da vida social. O Direito, o poder político e o poder militar, a ciência, a educação, a cultura, etc., eram concebidos e unificados através do discurso teológico-confessional. Todas essas esferas de ação social eram colocadas ao serviço de um ideal transcendente, facto que garantia a sua legitimidade. Reminiscências desse passado chegaram até a modernidade, deixando vários vestígios, inclusive nas democracias liberais. É o caso da presença de autoridades eclesiásticas nos eventos públicos importantes, da capelania e dos símbolos religiosos em instituições públicas. O ideal de unir ou de separar absolutamente as diversidades multiculturais através de normas legais é muito mais uma utopia e muito menos uma realidade. Os atos do ser humano e os factos históricos da sua jornada milenar são testemunhas de uma realidade social conflituosa. O ideal de um Estado Laico plenamente neutro, de uma Liberdade Religiosa absoluta, criada pelos teóricos do Estado Democrático, seria uma realidade ou é uma utopia? Se for uma realidade, como explicar a continuidade dos conflitos político-religiosos? Se for uma utopia, para que servem, então, os propósitos do Estado Laico e da Liberdade Religiosa? Qual a importância do Direito nessa relação? São várias as respostas, mas uma delas perpassa pela segurança social, quando o Direito justo inibe as ações tendenciosas do Estado em favor 13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2008, p. 1125. 14 PFEFFER, Leo. Creeds in Competition. Westport: Greenwood Press, 1978, p. 13.
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de uma crença dominante. Mas, apesar da força-poder do Direito, a tolerância, o diálogo e o próprio Direito, lastrado nos ideais da Justiça, são os melhores instrumentos para equilibrar as mútuas influências e interferências entre Religião e Estado. Não há outro percurso. CONCLUSÕES Este artigo procurou analisar a sinopse da relação histórica e contemporânea entre Religião, Estado e Direito, e alguns problemas decorrentes das mútuas relações. Exaltou a eficácia do Estado Laico e da Liberdade Religiosa e desafiou a real efetividade dos respetivos ideais. Nesse contexto, algumas sugestões para melhorar a efetividade do Estado Laico e da Liberdade Religiosa no âmbito mundial, não apenas como ideal, mas também como realidade global: (1) Efetivação dos Pactos e Tratados. Os Estados precisam de efetivar os princípios de Estado Laico e Liberdade Religiosa contidos nos documentos internacionais, incorporando-os plenamente nos seus ordenamentos jurídicos; (2) Legislação. Os Estados precisam de criar normas específicas sobre Liberdade Religiosa, regulando os dispositivos já tutelados nas suas Constituições, como fizeram os Estados Unidos e Portugal; (3) Educação. Os Estados precisam de incentivar a promoção da Liberdade Religiosa através de projetos educacionais, desde o âmbito fundamental até às universidades. A consciencialização do respeito às diferenças do próximo na atual sociedade global e multicultural contribui para o ideal de paz social; (4) Estado Laico. Apesar da utopia da separação absoluta entre Religião e Estado, os líderes político-religiosos precisam de praticar os ideais da laicidade. Esforços mútuos na convivência com o “diferente” são imprescindíveis para o equilíbrio multicultural do atual mundo globalizado; (5) Realidade e Utopia. Há mútua interferência entre os poderes políticos e religiosos na consecução das políticas públicas e na elaboração e interpretação das leis. As crenças, as ideologias e as teorias dos gestores público-privados interferem, direta ou indiretamente, na prática da Liberdade Religiosa. O pensador e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) escreveu em Las Palabras Andantes que a utopia é semelhante ao horizonte. Quando caminhamos um passo na sua direção, ele afasta-se outro passo de nós. Quando caminhamos mais um tanto, ele afasta-se na mesma proporção. A utopia seria assim: nunca a alcançaremos. E se é assim, para que serve? Para nos fazer caminhar. No contexto de um mundo extremamente complexo, a efetividade plena e total dos ideais do Estado Laico e da Liberdade Religiosa é uma utopia. Para
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que serve então? Para nos fazer caminhar em direção ao ideal de uma paz mais duradoura. Mais uma utopia? A utopia faz-nos caminhar! Durante a vida, todos influenciam e são influenciados por crenças, ideologias, teorias, verdades culturais e religiosas. Portanto, o ideal de união ou de separação absoluta entre Religião e Estado, de plena Liberdade Religiosa, com todas as diversidades culturais mundiais, é muito mais uma utopia e muito menos uma realidade. Apesar disso, os propósitos da laicidade e da liberdade de pensamento religioso são fundamentais para a sociedade; o Direito justo é o instrumento mais capaz e eficaz para equilibrar as complexas e conflituosas relações entre Religião e Estado. Tanto a vida política como a vida religiosa produzem ideias e ideais, conjunta ou separadamente: a vida política propõe-se produzir uma nova e total vida feliz na Terra; a vida religiosa propõe-se produzir uma nova e total vida feliz a começar na Terra e a perpetuar-se no Céu, onde “habita a justiça”. Realidades e utopias da vida política e da vida religiosa? As realidades e as utopias fazem-nos caminhar!