Revista aj edição de pessach 5776 edição 08

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Edição de Pessach 5776

ANO 8 No 8 ABRIL DE 2016

Judeus e literatura na Amazônia

NOVIDADES NO MUNDO DA PROSA Dom Pedro II

UM IMPERADOR HEBRAÍSTA A memória em crônica

MANAUS DE UM TEMPO PASSADO

KEARÁ

HÁ SÉCULOS NO CENTRO DA MESA DO SEDER Travessia do Mar Vermelho


Um Pessah de Paz, Alegria e muita Luz ao povo judeu em todo o mundo. Chag Sameach.


EDITORIAL Um aparente silêncio apenas

Editores David Salgado Elias Salgado Arte e diagramação Eddy Zlotnitzki Projeto Gráfico Thiago Zeitune Revisão Mariza Blanco Colaboradores Marcos Wasserman Rachel Stoianoff Regina Igel Uriel Faynerman Portal e Arquivo Amazônia Judaica www.amazoniajudaica.org Amazônia Judaica No Facebook: Amazônia Judaica email portal200anos@gmail.com contat@amazoniajudaica.org

Após um período de aparente silêncio editorial, nossa revista está de volta. Inspirados pelos ares da chegada de mais um Pessach, seguimos firmes em nossa missão e convocamos os leitores para mais esta travessia. “Aparente silêncio” pode parecer uma expressão inadequada, mas ela é a exata expressão do que aconteceu no Amazônia Judaica: um apenas aparente silêncio, já que exceto a edição da revista, as demais atividades foram mantidas e outras foram incrementadas. Nosso site, o Portal Amazônia Judaica ( www.amazoniajudaica.org) segue firme “no ar”, oferecendo ao público interessado, informação (Arquivo Histórico AJ) e serviços sobre o judaísmo sefaradita, em particular o amazônico (nossas mídias: nossa página no Facebook, os blogs, as edições anteriores da revista, e do antigo jornal, digitalizadas. Enfim um “silêncio” um tanto quanto “barulhento”. Neste período, tratamos, também, de evoluir no segmento editorial de livros: seguimos com a edição e comercialização da já tradicional “Coleção Ner” de livros religiosos, capitaneada pelo rabino Moysés Elmescany e pelo chazan David Salgado.( Elmaleh), Trabalhamos duro por mais de 3 anos na nossa atual “menina dos olhos” – o “ProjetJudeus na Gênese da Industrialização do Amazonas” – um projeto que teve início em 2011, composto de pesquisa de campo, de arquivos; entrevistas e depoimentos gravados em áudio e vídeo e com registros, também, em fotos. A primeira resultante da pesquisa é o livro recém lançado pelo selo Amazônia Judaica “ História e Memória: judeus e industrialização no Amazonas”de Elias e David Salgado. E inaugurando nossa linha editorial de ficção ,lançamos o livro de crônicas de Elias Salgado, intitulado: “ O fim do mundo e outras história de beira-rio”, contando causos de sua primeira infância e da sua família- a única família judaica- na cidade de Boca do Acre, nos idos de 50/60. Toda estas “peripécias editoriais” da Editora AJ, podem ser adquiridas em nosso site. Já esta edição da Revista AJ especial de Pessach, traz como destaques, matéria sobre a Keará na trajetória do seder através da história; artigo trazendo a público o que poucos conhecem: o interesse de Dom Pedro II pelo hebraico e a nossa tradição. Regina Igel, mais uma vez nos prestigia com brilhante artigo onde analisa, comparativamente, dois autores amazonenses: Ilko Minev e Elias Salgado. E David Salgado, nosso editor fundador, aborda tema altamente atual: o crescimento significativo da aliá amazônica. Além de outras excelentes matérias de diversos colaboradores. Enfim, leitura de primeira, com rica informação, para alegrar ainda mais o seu Pessach, como já é tradição da Amazônia Judaica. Boa leitura. Pessach Kasher Vesameach. David e Elias Salgado

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A IMAGEM DA CAPA

QUANDO ISRAEL SAIU DO EGITO Tamanho foi o júbilo que a saída do povo judeu do Egito representou para seus membros em seu tempo e ainda representa em nossos dias, que tanto a Torá, quanto os artistas que retrataram aquela passagem (Pessach), não são econômicos em louvá-la. Nossa tradição nos manda recitar louvores (Hallel), como o que segue abaixo, e que é uma das passagens mais belas da literatura bíblica e do Seder. É esta a motivação do quadro do artista marroquí-israelense, Raphael Abecassis, que apresentamos na capa desta edição. ‫ב ֵצאת יִ ְש ָׂר ֵאל ִמ ִּמ ְצ ָריִ ם‬ ְּ ‫ֹלעז‬ ֵ ‫בית יַ ֲעקֹב ֵמ ַעם‬ ֵּ ‫הּודה ְל ָק ְדׁשֹו‬ ָ ְ‫היְ ָתה י‬ ָ ‫לֹותיו‬ ָ ‫יִ ְש ָׂר ֵאל ַמ ְמ ׁ ְש‬

Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó de um povo de língua estranha, Judá foi seu santuário, e Israel seu domínio. O mar viu isto, e fugiu; o Jordão voltou para trás. Os montes saltaram como carneiros, e os outeiros como cordeiros. Que tiveste tu, ó mar, que fugiste, e tu, ó Jordão, que voltaste para trás? Montes, que saltastes como carneiros, e outeiros, como cordeiros? Pessach, quadro do artista marroqui-israelense, Raphael Abecassis

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Treme, terra, na presença do Senhor, na presença do Deus de Jacó. O qual converteu o rochedo em lago de águas, e o seixo em fonte de água. (Salmos, 114, 1-8)

‫ה ָּים ָרָאה וַ ָּינֹס‬ ַ ‫ה ַּי ְר ֵּדן יִ ּסֹב ְלָאחֹור‬ ַ ‫ילים‬ ִ ‫ה ָה ִרים ָר ְקדּו ְכ ֵא‬ ֶ ‫ג ָבעֹות ִּכ ְבנֵ י צֹאן‬ ְּ ‫מה ְּלָך ַה ָּים ִּכי ָתנּוס‬ ַ ‫ה ַּי ְר ֵּדן ִּת ּסֹב ְלָאחֹור‬ ַ ‫ילים‬ ִ ‫ה ָה ִרים ִּת ְר ְקדּו ְכ ֵא‬ ֶ ‫ג ָבעֹות ִּכ ְבנֵ י צֹאן‬ ְּ ‫ָארץ‬ ֶ ‫חּולי‬ ִ ‫מ ִּל ְפנֵ י ָאדֹון‬ ִ ‫לֹוה יַ ֲעקֹב‬ ַּ ‫מ ִּל ְפנֵ י ֱא‬ ִ ‫הה ְֹפ ִכי ַהּצּור ֲא ַגם ָמיִ ם‬ ַ ‫ַח ָּל ִמיׁש ְל ַמ ְעיְ נֹו ָמיִ ם‬


AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

LITERATURA | 6

Encontros literários no Amazonas

HISTÓRIA | 10

O monarca e o hebraico: um amigo chamado Pedro

CRÔNICA | 22

Como botaram abaixo meu Arco de Tito

EDITORIAL

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A IMAGEM DA CAPA

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CAPA

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HISTÓRIA

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ISRAEL

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CRÓNICA (II)

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Keará, a grande estrela do Seder de Pessach Jerusalém de ouro, não apenas uma música

Incentivo para quê?: Uma radiografia da aliá oriunda da Amazônia Eu sou laico

CARTAS DOS LEITORES 33 MENSAGENS

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LITERATURA

ENCONTROS LITERÁRIOS NO AMAZONAS:

ILKO MINEV E ELIAS SALGADO Por Regina Igel * /Especial para a AJ

Minev é judeu sefardita da Bulgária, Salgado é judeu sefardita brasileiro. Em seus respectivos livros, referem-se tanto a eles mesmos como também relatam vidas outras, mergulhadas na esplêndida floresta amazônica, nas terras e nas águas dos rios, igarapés, igapés e furos.

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á se conhece bem ‘o encontro das águas’, fenômeno amazonense visto quando os rios Negro e Solimões se juntam para formar o rio Amazonas. Agora vamos conhecer outro encontro de águas, desta vez entre o oceano Atlântico e o rio. Não, não se trata da famosa pororoca... aqui estamos observando e apreciando o encontro de imigrantes que cruzaram o Atlântico para penetrar na floresta amazônica, nela estabelecer um plano de vida que incluiria família, descendentes, trabalho e amizades. Como resultado do encontro de estrangeiros com o rio, a selva e as cidades incipientes, emerge uma produção literária interessante, intrigante, feita de elementos tanto inclusos quanto exteriores à floresta. Nela os imigrantes se adaptaram e seus descendentes se reorganizaram, como aconteceu com muitos expatriados ou sua progênie, aqui representados por dois escritores: Ilko Minev, búlgaro que se tornou brasileiro e Elias Salgado, brasileiro e neto de imigrantes. Além de trazerem a floresta amazônica para a área das suas respectivas escritas, eles têm em comum suas origens étnicas, pois ambos são judeus sefaraditas. Isto quer dizer que

ambos fazem parte de um ramo do judaísmo que provém de países onde judeus se comunicavam na lingua do país onde se encontravam (búlgaro, por exemplo, na Bulgária, francês ou árabe no Marrocos) e também ladino, o idioma habitual entre os descendentes de espanhóis e portugueses de origem judaica. (Esta língua é conhecida como ‘judaico-espanhol’, ‘judezmo’, ‘judeo-español’, entre outras denominações.) Minev é judeu sefardita da Bulgária, Salgado é judeu sefardita brasileiro. Em seus respectivos livros, referem-se tanto a eles mesmos como também, relatam vidas outras, mergulhadas na esplêndida floresta amazônica, nas terras e nas águas dos rios, igarapés, igapés e furos. A primeira das obras a ser comentada é O Fim do Mundo com o subtítulo e outras histórias de beira-rio, de Elias Salgado. Quase todas as narrativas reunidas neste ramalhete de crônicas e contos se referem a vidas entremeadas com as margens dos rios, começando em Boca do Acre, cidadezinha ausente de muitos mapas da região, ao tempo de seu nascimento. O lugarejo não tinha sequer um médico que orientasse um parto sem grandes temores, daí seus


pais entrarem no barco “Estrela” e zarparem para Rio Branco, a capital do Acre. Lá, na única maternidade da cidade, em fevereiro de 1958, o autor viu a luz da vida e os ternos olhos de Vidinha, como sua mãe era conhecida. Filha de um cearense, um dos muitos ‘soldados da borracha’, ela cresceu naquele rincão, sem conhecer nenhum outro, até que se casou com David, viúvo de sua irmã, e com ele chegou a viajar por alguns pagos nas redondezas. Em Boca do Acre, povoado plantado junto à foz do rio Acre, no extremo oeste do estado do Amazonas, a família

foi crescendo, com o patriarca David primeiro estabelecido como vendedor, com o que pode garantir o sustento da família acrescida com um total de sete filhos. Com uma maleta de mão, percorria, de barco, em lombo de mula e a pé, aquela extensão florestal, verdejante, úmida, impactante, oferecendo vários tipos de mercadoria a uma população espalhada, quase incomunicável e pouco conhecida pelos próprios amazonenses. Para lá acorriam aqueles que só podiam contar com os seringais e a extração da borracha como meio de sobrevivência. E

Quase todas as narrativas reunidas neste ramalhete de crônicas e contos se referem a vidas entremeadas com as margens dos rios

era para esses colonos que o pai da família vendia seus badulaques. A pequena valise que continha seus artigos é a personagem passiva do conto “A mala do meu pai”, implodindo no autor um repertório de lembranças que lhe provocaram um tardio amor filial em meio a recordações de dias difíceis sob a

‘jurisprudência’ paterna: “Do alto da minha adolescência eu me rebelava, questionava e tinha medo de sua rigidez” (p.15). As partes negativas se evaporaram em meio a lembranças amenas, provocadas pela ‘herança’ da mala, com anuência total de seus irmãos. Estes, juntamente com a temida e, ao mesmo tempo, amada figura paterna, ficaram conhecidos como “os Valorosos Elmaleh da Boca do Acre”, um cognome que remonta a tempos heróicos. E assim foram, na realidade, os tempos quando David Elmaleh Salgado abriu seus próprios caminhos entre povoados, naquele quase ignoto pedaço da floresta, também chamado “o fim do Brasil” e “o fim do mundo”. Variados recortes da vida em Boca do Acre são revelados. Na crônica “O fim do mundo”, emerge a figura de um Martins Bruzugu, tratorista de profissão, homem robusto e forte o suficiente para dirigir aqueles tratores que eram máquinas mastodontes. Tanta energia, no entanto, desaparecia diante do seu temor de fenômenos que não compreendia, como a morte, ou a possível visita de espíritos ou fantasmas. Hoje tais neuroses poderiam ser classificadas como tanatofobia ou espectrofobia, mas naquele então era simplesmente o terror das coisas inexplicáveis que o bom Martins sentia. E, para sua situação piorar um pouco mais, surgiu o boato de que o mundo estava por se acabar, como tal rumor emerge de quando em quando. Na história do seu pavor da morte e de fantasmas, se retrata muito bem a situação psicológica em que se encontrava Martins, justamente quando os pais do narrador foram visitá-lo em sua nova morada, na cidade de Rio Branco. O mundo 7


LITERATURA estava por se acabar e Martins se preveniu como pode, para a preocupação e descontentamento justificáveis de sua esposa Teresa e chacotas do compadre David. Assim como esta narrativa, as demais neste livro são igualmente simples, cândidas, leves. Estes efeitos são alcançados pela isenção de grandes aparatos para descrever personagens, e também pela presença de um saudosismo isento de pieguices. Quase todas as narrativas reunidas neste ramalhete de crônicas e contos se referem a vidas entremeadas com as margens dos rios, começando em Boca do Acre, cidadezinha ausente de muitos mapas da região, ao tempo de seu nascimento como ele as interpretava ou como passou a interpretá-las depois de adulto. Por este conjunto de dispositivos literários, é possível perceber o mecanismo interno da população humana que habitou sua infância e juventude. Há também aquelas que trazem seriedade e gravidade impressionáveis. Estas podem ser vistas, por exemplo, na denúncia de machismo, em “A raposa em festa”, ou nas lutas políticas que chegavam a ser fatais, como se revela em “Os valorosos Elmaleh e a política na Macondo do Purus: uma saga de valentes”. Em ‘Macondo do Purus’, apelido que o autor empresta à chuvosa cidadezinha à beira do rio Purus, na boca do Acre, também havia guerras locais, desfazendo a aparência pacata e tranquila de sua paisagem física: “... o município destaca-se também por sua vida política agitada e violenta” (p. 85). O fuso ao redor do qual giram os quadros narrativos de O fim do mundo e outras histórias de beirario se compõe de membros da família Elmaleh-Salgado, amigos e 8 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

antagonistas, vizinhos, compadres e comadres, empregados, homens e mulheres do comércio, amazonenses e estrangeiros. O contador das histórias ora viveu o que descreve, ora ouviu narrações de outros. Por suas histórias, leitores podem edificar um espaço lírico-realista, eloquente, muitas vezes bem humorado, outras vezes construído em tom grave e circunspecto. Neste estilo, ele evoca lembranças do divórcio entre seus pais, episódios de confrontos com David, o seu falecimento aos 88 anos e sua perene presença espiritual, mas mais enfática durante um dos dias mais significativos da religião judaica, como se lê no conto “Com papai no Yom Kipur”, que finaliza esta antologia (páginas 97-99). Enquanto o livro de Elias Salgado brota da terra amazonense, o outro livro objeto deste ensaio é Onde estão as flores?, de Ilko Minev, cujas fontes emergem do outro lado do mar, na Bulgária. Minev escreve na primeira pessoa, `encarnando` seu tio Licco Hazan, o protagonista-narrador desta história que abarca parte da Europa, Bulgária, a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a Amazônia e o resto do mundo. O velho Licco, aos 90 e mais alguns anos de idade, “deixou” esta narrativa num envelope, descoberto por alguns de seus descendentes, um artifício literário bem utilizado pelo autor. Como se trata aqui de um metafórico encontro de águas literárias, as cores dos relatos se diferenciam por alguns aspectos. Um deles, já mencionado acima, refere-se ao fato de os protagonistas de Onde estão as flores? terem sido imigrantes, refugiados da Segunda Guerra Mundial, escapados com vida mas com tenebrosas lembranças

do Holocausto. Sua perspectiva da região amazônica, amplamente descrita no relato que constitui o romance, é a de estrangeiros aclimatados (e afeiçoados) àquele pedaço do Brasil. Neste ponto, notam-se diferenças entre este livro e o de Elias Salgado. Enquanto o descendente de marroquinos já nascido no Brasil (na capital do Acre) respondia aos estímulos que o rodeavam com a naturalidade de um conterrâneo, de um nativo da


Muitos fatos interessantes, atraentes, quase magnéticos, são descritos nas narrativas destes dois escritores amazonenses, tanto na coleção de contos e crônicas de Elias Salgado quanto no romance, meio realista e meio ficcional, de Ilko Minev terra, o búlgaro Licco Hazan e sua esposa Berta, recém-casados, eram regidos pela admiração ao meioambiente, pela cautela e pelo imenso esforço em progredir em terreno desconhecido. O casal foi resgatado dos campos forçados da Bulgária por ninguém menos do que Albert Göring, irmão do assassino Herman Göring, o nazista número 2, depois de Hitler, o número 1. Graças à humanidade de Albert, humanitário e altruísta, Licco e outros búlgaros, além de alguns poucos judeus de outras nacionalidades, foram salvos dos fornos crematórios. O afortunado

casal, depois de várias peripécias, chegou por acaso ao porto de Belém, no Pará, quando seu navio, o “Jamaique” parou de funcionar devido a uma tempestade, perto da costa brasileira. Seu destino final era a cidade de Santos, mas o navio não poderia prosseguir até lá, tal o estado desastroso em que se encontrava. O casal resolveu desembarcar em Belém, e aí começou sua trajetória amazônica. O que logo notaram foi o envolvimento amistoso dos paraenses, como o narrador faz notar à página 75: Também me chamou a atenção a calma das pessoas, que não tinham pressa para nada. Durante uma daquelas chuvas típicas de Belém, que caem sempre na mesma hora, todos os dias, entramos num pequeno bar e pedimos café – servido pequeno, doce e forte, no Brasil. Na hora de pagar, descobrimos que uma das pessoas com que conversamos na entrada já tinha pagado nossa conta e ido embora, sem mais nem menos. Não se tratava do valor, que era baixo, mas era algo bem diferente de tudo o que conhecíamos. -- São muito gentis e generosos – Berta disse. – Estou encantada com a tranquilidade e com a bondade destas pessoas. Dá para perceber que aqui não sofreram tanto com a guerra. O ano era 1944, a guerra ainda estava em pleno furor na Europa. Viajar para o Brasil tinha sido uma opção complicada, como relatada no livro. Mas fincar pé em Belém foi uma escolha natural, ambos já enamorados pelas fragrâncias que permeavam a cidade: “São tantas ervas, cheiros e perfumes artesanais!” (p. 77). Naquele então, não sabiam ainda que seriam os aromas oferecidos pela natureza amazônica

que lhes trariam um meio de vida, tanto a eles quanto a muitos dos amazonenses, pois o casal se tornou exportador de perfumes para a França e outros países. O começo, no entanto, não foi muito fácil, como acontece quando se chega a um país novo, mas o casal não se perturbou, pois conheciam ladino, muito próximo ao português, o que lhes facilitou tanto o aprendizado do nosso idioma quanto a comunicação quando ainda não o dominavam. Em Belém, como a maior parte de judeus era de origem marroquina, o conhecimento daquele idioma facilitou muito a comunicação entre todos e a integração dos Hazans ao mundo local, incluindo a comunidade judaica, da qual passaram a fazer parte. Exímio mecânico de automóveis – e foi esta habilidade que salvou Licco das mãos nazistas -, ele passou a trabalhar em serviços avulsos, antes de ser admitido como empregado

O casal foi resgatado dos campos forçados da Bulgária por ninguém menos do que Albert Göring, irmão do assassino Herman Göring, o nazista número 2, depois de Hitler, o número 1 9


LITERATURA com salário compensador pela Rubber Development Corporation. Não ficou muito tempo neste emprego porque, devido à sua alta competência, lhe foi oferecido um trabalho maior, no estado do Amazonas. Para lá se dirigiram, e ele passou a ser mecânico de aviões. Um filho já lhes tinha chegado, a vida se abria em horizontes róseos, finalmente. Em 1945, eles chegam a Manaus, então uma cidade sem grandes perspectivas, já que a abundância provinda da exportação da borracha para o mundo afora tinha terminado. Novos amigos na sinagoga local lhes deram todo o apoio social que necessitavam na linda e nova (para eles) cidade, e logo se viram integrados na sociedade judaica, assim como tinham estado em Belém. A guerra terminada, já não havia mais necessidade de aviões adaptados por mecânicos. Licco já não tinha seu emprego garantido, como antes. Foi então que, ao fechar-se uma porta, abriu-se outra – a extração de perfumes, a fabricação de aromas exportáveis, e este foi o novo aposento comercial por onde o casal penetrou. Novos empreendimentos passaram a surgir como oportunidades de fracasso ou êxito, e embora tenha conhecido ambos, o casal foi superando suas dificuldades, e chegou a ser um dos maiores beneficentes da economia amazonense. Treze anos depois de sua entrada no Brasil, em 1957, abriram a firma “Amazon Flower Flagrâncias Ltda.”. Daí para diante, entraram em outras venturas comerciais, enfrentando riscos e passando por obstáculos de variada espessura, antes de atingirem seus objetivos. 10 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

Enquanto isto, outras situações se desenrolavam na Europa que já não viam fazia muito tempo. Um irmão de Licco, que tinha desaparecido quando ambos estavam em campos de trabalho forçado na Bulgária,

selva e dos rios acaba fazendo parte, como Oleg Hazan, do segundo livro de Ilko Minev, A filha dos rios. Muitas outras histórias se desenvolveram fora da Amazônia, com a participação de Licco e sua mulher – até que esta faleceu. Sozinho, rodeado pelos dois filhos que teve com ela, cuidado por amigos mas, ainda assim, sozinho, Licco se viu envolvido por uma moça da região e aí começa um novo capítulo de sua história amazonense. Ambos os livros, escritos por judeus que se encontraram na selva amazônica seja por nascimento ou por escolha, devem ampliar nosso conhecimento daquela região. Muito fatos interessantes, atraentes, quase magnéticos, são descritos nas narrativas destes dois escritores amazonenses, tanto na coleção de contos e crônicas de Elias Salgado quanto no romance, meio realista e meio ficcional, de Ilko Minev. São dois olhares que se diferenciam, mas não divergem. Exatamente como as águas dos rios Negro e Solimões: são diferentes, mas acabam por se harmonizar no leito do Amazonas. * Crítica literária, professora titular emerge como um dos líderes do da Cadeira de Português - University regime comunista que se instalou of Maryland, College Park - EUA na Bulgária, após o final da Segunda Guerra. Casado e com um filho, pouco tempo depois de sua ascensão política, foi alvo de injúrias tipificantes daquele regime e caiu em desgraça. Licco se envolveu, Obras lidas, consultadas e amadas então, numa trama internacional para este artigo: digna de filmes de 007 para salvá- Salgado, Elias. O fim do mundo e lo, o que conseguiu. O irmão, outras histórias de beira-rio. Rio de abandonado pela mulher, vai para Janeiro: Talú, 2015. Israel, acompanhado do filho. Já Minev, Ilko. Onde estão as flores? São rapaz, um dia o sobrinho vai ao Paulo: Livros de Safra, 2014. encontro do tio Licco no Amazonas. Sua história no desbravamento da

Sua perspectiva da região amazônica, amplamente descrita no relato que constitui o romance, é a de estrangeiros aclimatados (e afeiçoados) àquele pedaço do Brasil.


Comemorando o Êxodo do Egito e em especial o Seder de Pessach, estamos preservando a liberdade que existe em nossos corações.

I.B Sabbá e Cia.

Que o Seder de Pessach traga para a nossa kehilá e todo Am Israel, as melhores berachot. Diretoria do Comitê Israelita do Amazonas – Chag Sameach

Que os ensinamentos da Hagadá de Pessach nos sejam valiosos e possamos ver florescer os verdadeiros valores judaicos em nossos lares.


KEARÁ A GRANDE ESTRELA D Por Elias Salgado*

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DO SEDER DE PESSACH

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CAPA

A keará ocupa o centro do palco no Seder de Pessach. Ela contém os seguintes símbolos: Karpás (salsa), o Maror (ervas amargas), o charosset (maçãs, nozes, especiarias), o Z'roa (cordeiro ou asa de frango) e o Beitzá (ovo). Mas uma olhada na Torá nos mostra que o seder começou um pouco mais simples

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or razões relacionadas aos princípios da religião, no que tange a proibição do uso e culto de imagens humanas em nossa liturgia, a tradição religiosa judaica, aparenta carecer de diversidade artística quanto a obras artísticas litúrgicas. No nosso entendimento, tal fato torna ainda mais interessante o tema, dada a raridade de criações, na medida em que nos afastamos no tempo em direção ao passado mais remoto da nossa História. É fato que os símbolos tradicionais e religiosos mais usuais e populares do universo judaico, não são muitos. Podemos exemplificar citando: o Maguen David, a Menorá, os rolos da Torá e seus adornos e adereços; a Mezuzá, castiçais de Shabat e festividades, a Keará de Pessach e mais recentemente, o Chai e o Chamsa. O caso específico da Keará de Pessach, que não se inclui entre os objetos proibidos, dado não ser a representação de uma imagem e sim um objeto de uso no Seder e um símbolo identificador da tradição e 14 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

A keará mais antiga que se conhece - Espanha antes de 1492 Museu Israel da cultura judaica, é uma rara exceção desta realidade acima apresentada. Inúmeras manifestações artísticas de diversas épocas da história do povo judeu, são encontradas em diferentes lugares da diáspora e em Israel. Belíssimas coleções de kearot, particulares e institucionais, enriquecem acervos de dezenas

de museus judaicos pelo mundo afora. Apresentaremos nesta matéria, uma seleção de kearot, cujos critérios principais de escolha foram: a antiguidade, a importância histórica; o lugar onde foi confeccionada e a beleza artística. Mas antes, faremos uma breve descrição da origem e do surgimento


da Keará de Pessach e a trajetória histórica de produção e uso de kearot. SOBRE A KEARÁ A keará ocupa o centro do palco no Seder de Pessach. Ela contém os seguintes símbolos: Karpás (salsa), o Maror (ervas amargas), o charosset (maçãs, nozes, especiarias), o Z'roa (cordeiro ou asa de frango) e o Beitzá (ovo). Mas uma olhada na Torá nos mostra que o seder começou um pouco mais simples. A primeira Páscoa, (Êxodo 12:8), menciona três elementos essenciais: o cordeiro pascal, ervas amargas e pão sem fermento. Então, de onde vem os demais elementos da keará e quando eles chegaram ao seder? A resposta encontra-se nas forças da história e a habilidade do povo judeu para manter sua herança viva, mesmo quando teve que reformular tradições por necessidade imposta pela realidade do momento O evento histórico que mais alterações impôs a celebração de Pessach, foi a destruição do Templo de Salomão em 586 aeC, já que a partir daquele momento até a construção do segundo Templo por Ezra e Nehmiah, o sacrifício de Pessach não podeia ser oferecido. Isto significava que o evento central de Pessach, o sacrifício, fora tirado. O que tinha sido, até então, um acontecimento real deveria agora ser preservado como uma memória completa, com novas ilustrações incorporadas aos elementos do Seder, que não tinham estado lá antes. O PESSACH NA LITERATURA RABÍNICA: A primeira menção do seder tal

Pequena cesta de Pessach - Pérsia sec. XV. - Museu Israel

É fato que os símbolos tradicionais e religiosos mais usuais e populares do universo judaico, não são muitos. Podemos exemplificar citando: o Maguen David, a Menorá, os rolos da Torá e seus adornos e adereços; a Mezuzá, castiçais de Shabat e festividades, a Keará de Pessach e mais recentemente, o Chai e o Chamsa. 15


CAPA Galícia Orient 0u Ucrania Ocid Sec. 18 -19. Latão E Madeira 35X35,5 - Museu Judaico Nova York

O grande sábio judeu, Moshe ben Maimon (Rambam) codificou grande parte da prática judaica no século 11. Mas é Iossef Caro, outro estudioso e compilador das práticas e leis religiosas, autor do Shulchan Aruch ("mesa posta"), que foi impresso em 1565, a base para a ordem da celebração tradicional de Pessach de hoje em dia. A KEARÁ COMO OBJETO ARTÍSTICO: Tal como acontece com muitos outros chaguim e observâncias judaicas, o impulso artístico desempenha um papel importante e edificante nos artigos rituais associados com o Pessach. No entanto, antes do Renascimento não há exemplos de kearot lindamente elaboradas, como como o conhecemos hoje aparece na Mishná, a versão escrita da Lei Oral judaica, que foi compilada por Judah Ha Nasi, no segundo século da Era Comum. No tratado de Pessacim, encontramos elementos do Seder de Pessach como ele é hoje, como os quatro copos, as verduras para mergulhar, o charosset, as quatro perguntas, as palavras do rabino Gamaliel e as orações e salmos bem conhecidos que são recitadas e cantados neste mesmo dia. No entanto, embora estas coisas tenham sido escritas no século II, elas são na verdade muito mais antigas, possivelmente centenas de anos. 16 AMAZÔNIA JUDAICA No 7 - ABRIL 2012

O evento histórico que mais alterações impôs a celebração de Pessach, foi a destruição do Templo de Salomão em 586 aeC, já que a partir daquele momento até a construção do segundo Templo por Ezra e Nehmiah, o sacrifício de Pessach não podeia ser oferecido.


Confeccionada Por Robert Lipnick – Nova York – 1986 - Museu Judaico De Nova York

Alemanha, 1769

Viena - 1900 - Cerâmica vitrificada

Inglaterra 1a. metade sec. XX

as que encontramos hoje. A primeira vez que ouvimos falar de algo parecido com a keará é uma cesta chamada de Ke'arah do ano 1000 da Era Comum. No entanto, a partir do século 16 em Espanha e Itália, já encontramos belas kearot feitas de materiais como madeira, porcelana e cobre.

* Elias Salgado é diretor da Editora AJ e co-editor da Revista Amazônia Judaica

Antigo Ishuv Judaico da Palestina 17


HISTÓRIA

JERUSALÉM DE OURO,

NÃO APENAS UMA MÚSICA Uriel Faynerman* – Tradução e adaptação: David Salgado

De todas as músicas sobre a cidade sagrada de Jerusalém, a canção de Naomi Shemer "Jerusalém de Ouro" é aparentemente, a mais conhecida.

E

sta linda e famosa canção foi apresentada pela primeira vez no Festival de Música Hebraica no ano de 1967, algumas semanas antes da guerra dos "Seis Dias". Com o fim da guerra e a unificação da cidade de Jerusalém, sua parte moderna – Jerusalém Ocidental com a Cidade Velha e toda Jerusalém Oriental, esta música tornou-se uma espécie de hino nacional, e houveram, na época, aqueles que sugeriram a troca do hino oficial "Hatikva" (A Esperança), por "Yerushalaim shel Zahav" (Jerusalém de Ouro)! Mas poucos sabem explicar qual o verdadeiro significado desta expressão: "Jerusalém de Ouro";

18 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

qual é a sua origem e o que ela quer nos ensinar? Teria sido a própria compositora Naomi Shemer em um momento de muita inspiração quem criou esta combinação de palavras? Ou ela teria se baseado numa expressão conhecida da cultura judaica? Como veremos a seguir, trata-se de uma investigação emocionante que irá combinar história, arqueologia e até romantismo. A PROMESSA DE RABI AKIVA O Talmud nos ensina sobre o grande sábio Rabi Akiva, que viveu no século II durante a revolta liderada por Bar Kochvá, que no início de sua

trajetória, era um pastor de ovelhas que trabalhava para um homem muito rico de nome Kalba Savua. Este homem rico tinha uma filha por nome Rachel, que percebeu as aptidões ocultas do bom pastor. Rachel dirigiu-se a Rabi Akiva com a seguinte oferta: ele iria estudar Torá numa Yeshivá, e ela aceitaria o seu pedido de casamento. Quando seu pai Calba Savua ouviu sobre o casamento da filha com o simples pastor, ele os expulsou de sua propriedade. Assim o pobre casal começou a vagar de um lugar para outro. Nos dias do rigoroso inverno, eles dormiam em celeiros e pela manhã ficava Akiva catando


Yerushalayim Shel Zahav (Letra e música: Naomi Shemer) Avir harim tsalul k'yayin Vereiyach oranim Nissah beru'ach ha'arbayim Im kol pa'amonim.

Uvme'arot asher baselah Alfei shmashot zorchot Neshuv nered el Yam Hamelach B'derech Yericho

Ki shmech tsorev et hasfatayim Keneshikat saraf Im eshkachech Yerushalayim Asher kulah zahav.

U'vtardemat ilan va'even Shvuyah bachalomah Ha'ir asher badad yoshevet Uvelibah - chomah.

Refrão: Yerushalayim shel zahav Veshel nechoshet veshel or Halo lechol shirayich Ani kinor.

Yerushalayim shel zahav Veshel nechoshet veshel or Halo lechol shirayich Ani kinor

Chazarnu el borot hamayim Lashuk velakikar Shofar koreh behar habayit Ba'ir ha'atikah.

Ach bevo'i hayom lashir lach Velach likshor k'tarim Katonti mitse'ir bana'ich Ume achron ham'shorerim.

Jerusalém de Ouro O vento das montanhas, claro como o vinho E o cheiro dos pinheiros É levado pela brisa do crepúsculo Junto com o som dos sinos. E no sono profundo da árvore e da pedra, Presa em um sonho, Está a cidade solitária E no seu coração - um muro. Voltamos aos poços de água, Ao mercado e à praça

feno dos cabelos de Raquel. Nesse mesmo momento, o marido apaixonado consolava sua amada esposa com as seguintes palavras: "Quem dera eu tivesse condições e te daria "Jerusalém de Ouro"! (Fonte: Talmud da Babilônia, Massechet Ketubot- 62, pág. beit e também Massechet Nedarim -50, folha alef ). O que é isso "Jerusalém de Ouro"? Essa mesma fonte do Talmud não explica, mas parece que é um objeto de muito valor, e como Rabi Akiva e Rachel viviam numa enorme pobreza, sua promessa veio a fim de manifestar o seu amor por sua amada esposa.

O shofar chama no monte do templo Na cidade velha E em cavernas nas montanhas Milhares de sóis brilham Descemos novamente ao Mar Morto Pelo caminho de Jericó Refrão: Jerusalém de ouro De bronze e de luz Por que não ser eu o violino para todas as suas canções ?

Mas Rabi Akiva, havia prometido outra coisa a Rachel, estudar Torá. Com o passar dos anos, com muita dedicação e aptidão no estudo da Torá, tornou-se o pobre pastor de ovelhas um importante sábio de Israel. E também a sua riqueza era grande: assim foi dito: "Não partiu Rabi Akiva deste mundo até que tivesse mesas de dinheiro e joias de ouro, e até que subisse em sua cama numa escada de ouro, e até que sua esposa saísse com "Yir shel Zahav" - Cidade de Ouro (Fonte: Avot de Rabi Nathan, Cap. 6). Vemos portanto, que se trata de uma joia especial que era conhecida no mundo antigo como "Cidade de

Porém hoje venho cantar para ti E te elogiar Eu sou o menor dos teus filhos jovens E um dos últimos poetas Teu nome queima os lábios Como o beijo de um serafim Se eu te esquecer Jerusalém Que é toda de ouro Jerusalém de ouro De bronze e de luz Por que não ser eu o violino para todas as suas canções ?

Ouro", e os judeus acostumaram a considerar que a cidade de ouro era sua Jerusalém tão querida, e portanto passaram a chamá-la "Jerusalém de Ouro". De qualquer forma, ainda não sabemos que tipo de joia era essa. Fazendo novas pesquisas nas fontes daquela época, fica claro que a joia era rara e de grande importância, e que até mesmo a esposa de Raban Gamliel, presidente do Sinédrio, não tinha tal joia! "Rabi Akiva que fez à sua esposa 'Cidade de Ouro' e quando viu a esposa de Raban Gamliel tal joia, teve inveja de Rachel. Seu esposo então disse-lhe quando ela foi pedir-lhe uma 'Cidade de Ouro': e assim farias tu a mim, 19


HISTÓRIA

como ela fez para seu esposo, que vendia suas tranças enquanto ele estudava Torá"? (Fonte: Talmud de Jerusalém, Massechet Shabat, Cap. 6, Halachá Alef ). Vemos, portanto, que esta joia, era tão cara que somente poucas e respeitadas mulheres a possuíam em seus porta-joias. Evidências adicionais para a singularidade da joia encontramos nas palavras de Rabi Eliézer: "e quem poderia sair com 'Cidade de Ouro'? Uma mulher importante". (Fonte: Talmud da Babilônia, Massechet Shabat, Daf 59, amud beit). A joia, da qual sua identidade ainda não descobrimos, é conhecida nas leis referente ao Shabat. Conforme a lei judaica, é proibido carregar objetos "berushut harabim" (em domínio público) no Shabat. No entanto, os sábios permitiram para as mulheres sair de suas casas com as suas joias, porque para elas as joias são parte de suas vestimentas. Entretanto, nem todas as joias foram permitidas para uso no Shabat, pois existia a preocupação que a mulher poderia removê-las e então estaria carregando-as, o que passaria a ser uma transgressão. Uma dessas joias proibidas é exatamente a que está no centro de nossa conversa: "Com que a mulher pode sair e com que não pode sair? Não saírá a mulher com... e não com 'Cidade de Ouro'" (Fonte: Massechet Shabat, Cap.6, Mishná alef ). A joia em questão não era conhecida apenas em Israel, mas também em outras culturas do mundo há tempos imemoriais. Por exemplo, no norte da Síria foi descoberta em 1928 uma cidade cananeia por nome Ugrit. Nas escavações realizadas no local ocorridas mais 20 AMAZÔNIA JUDAICA No 6 - ABRIL 2016

tarde, ficou claro que se trata de um dos sítios arqueológicos mais importantes descobertos no século XX, que permite compreender melhor o mundo cultural e religioso dos antepassados que viviam no segundo milênio antes da era atual. A principal descoberta foram milhares de tabuinhas de cerâmica numa espécie de biblioteca municipal, escritas na língua "ugritit", que é muito parecida com a língua da bíblia e na língua acádia que era a língua internacional daquela época. Em uma dessas tabuinhas em escrita cuneiforme, encontrou-se uma lista de joias reais, e foi dado pelos arqueólogos o nome de "caixa de joias da Rainha Ugrit". Sobre umas dessas joias estava escrito: "oru kugui shogultashu 215". Pesquisadores de Ugrit decifraram a frase, que em sua opinião é na língua suméria da seguinte forma: "Yir Zahav Umishkalá 215" - Cidade de ouro e seu peso 215 (Fonte: J. Nougayrol, “Le Palais Royal d’Ugarit, Vol. 3, Paris 1955, pp. 182). Conclui-se que essa joia já era conhecida cerca 1500 anos antes da promessa de Rabi Akiva a sua esposa Rachel. E outro detalhe, 215 no peso da época corresponde hoje a 4,5 kilos!!! Então, qual seria essa joia tão misteriosa? COROA EM FORMA DE MURO Já recordamos a fonte, em "Avot de Rabi Natan" e vimos que cumpriu Rabi Akiva com sua promessa e fez a sua esposa a "Cidade de Ouro". Mas existe uma forma diferente de interpretar esta fonte que é: "e Rabi fez para sua esposa... "Coroa de Ouro ". ( “Cidade de Ouro” ou “Coroa de Ouro“- a “Coroa de Noiva

“em hebraico, “Ateret Kalá) E ainda temos que perguntar qual era o formato dessa coroa e por que razão era chamada de "Cidade do Ouro"? Na opinião do professor Shalom Paul, da Universidade Hebraica de Jerusalém, as respostas a estas perguntas estão ocultas em diferentes descobertas de sítios arqueológicos. Por exemplo, na Ásia Menor, na Turquia em um lugar chamado Yazilikaia, foram escavadas numa montanha esculturas de deuses e deusas, e por cima de suas cabeças se vê coroas em forma de muralha. Exemplo adicional são os murais da famosa sinagoga do século III que foi descoberta em Dura Europos na Síria. Em um dos desenhos aparece a rainha Ester, com uma coroa de ouro na qual são aparentes e claras três torres. Segundo o professor Paul, a escultura e o desenho nos permitem saber qual a aparência da coroa na antiguidade. Estamos falando de uma coroa em forma de muro, que em tempos antigos era chamada de "Cidade de Ouro". Interessante que a alguns anos atrás foi descoberto um piso de mosaico na cidade romana de Beit Shean em Israel, e nela a imagem de Tique (Tykhe), uma divindade da mitologia grega, responsável pela prosperidade e fortuna de uma cidade. A deusa é apresentada tendo sobre sua cabeça uma coroa e na qual se nota bem uma muralha. Tique foi a deusa defensora de outras grandes cidades, como Cesarea, Coshta e também Antióquia, nas quais foram encontradas esculturas suas com uma coroa em forma de muros e torres. A conclusão é que, em tempos imemoriais no mundo antigo, era conhecida uma coroa pelo nome


de "Cidade de Ouro". Também os judeus conheciam esta joia, e eles a chamaram de "Jerusalém de ouro", em lembrança de sua cidade amada. Era uma joia muito cara e apenas mulheres respeitadas e de grandes posses tinham condições de usá-la e em ocasiões muito especiais. Assim, solucionamos o nosso enigma, quando os sítios arqueológicos e as fonte do Talmud completam uns aos outros. Vale frisar ainda, que no momento em que compôs a canção, Naomi Shemer não sabia o significado da expressão "Jerusalém de ouro", e quando o professor Paul lhe resumiu sua pesquisa, a cantora ficou emocionada pois, mesmo sem saber o por que, inconscientemente ou não, ela consegue integrar na terceira estrofe da canção a seguinte frase: "Mas assim como eu venho cantar hoje para ti, e adornar coroas para ti". Impressionante não! "COROAS DE NOIVAS" E SEU DECRETO No fim da época do Segundo Templo Sagrado, existia um costume em que as noivas chegavam a "Chupá" (o altar do casamento) com "Jerusalém de Ouro" já que a coroa era uma das mais belas joias da época. Devido a esse costume a coroa recebeu também um outro nome: "Atarot Calot" – Coroas de Noivas. Assim está escrito no Talmud Babilônico: "O que são "Coroas de Noivas? Diz Raba Bar Bar Hana, diz Ionatan: Cidade de Ouro" (Fonte: Talmud Babilônico, Massechet Sutá, daf 49, amud 9). Nem em todas as ocasiões as mulheres respeitadas decoravam suas cabeças com essa jóia cara. Na

época da grande revolta do povo judeu contra Roma, no ano 70 d.c. e também da revolta de Bar Kochva no ano 132 d.c., pediram nossos sábios para diminuir a alegria em Israel. Um dos decretos dos Sábios na época da revolta contra Titos que culminou com a destruição da cidade de Jerusalém e do Templo Sagrado, foi o fim de "Atarot Calot" (Coroas de Noivas). Acontece que até o fim do período do Segundo Templo, era comum que as noivas usassem no casamento uma coroa e os sábios decidiram lembrar a destruição do Templo com a anulação deste costume. Existe uma segunda versão que assinala que o costume ainda era comum até a revolta denominada "Mered Hatefutsot", que ocorreu na Diáspora em várias regiões do Império Romano, contra o imperador de então, Lucios Quevitos, também conhecido como "Quitos". Não temos como determinar qual das duas versões é a verdadeira, porém, de um jeito ou de outro, o que ficou claro é que o costume de coroar as noivas com "Jerusalém de Ouro" foi extinto. Uriel Faynerman traz em sua pesquisa a seguinte hipótese: que esse belo costume possa ter surgido, se considerarmos a segunda versão (Mered Hatefutsot), entre as noivas de Israel justamente para fazer lembrar a destruição do Templo, e elas teriam feito isso, colocando uma coroa de ouro em forma de cidade murada sobre suas cabeças, no momento mais importante e feliz de suas vidas, talvez para cumprir o seguinte passuk (frase) do Salmo 137: "Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha direita da sua

destreza. Se me não lembrar de ti, apegue-se-me a língua ao meu paladar; se não preferir Jerusalém à minha maior alegria". E outra observação interessante é que não somente nas noivas haviam coroas de ouro. A Mishná conta que no início da Grande Revolta (ano 66 d.c), decretaram nossos sábios na guerra contra Vesparsianos, o fim das "Coroas dos Noivos". Logo, compreende-se que também os noivos usavam uma coroa, sendo que esta era provavelmente feita de flores, talvez murtas e lírios. De qualquer forma, o pesquisador Uriel Faynerman considera que chegou o momento de reviver esse bonito costume, e que as noivas de Israel voltem a se coroar com "Jerusalém de Ouro" nos casamentos. E eis que certa vez, ele recebe uma carta que pelo seu formato parecia um convite para casamento. Após ter aberto o envolepe encontrou além do convite, uma carta e uma foto. O conteúdo da carta era o seguinte: "Uriel Shalom! Meu nome é Haguit. Este ano participei do seu curso para Guias Turísticos em Jerusalém, e me lembrei que você sempre quis ver uma noiva com "Jerusalém de Ouro". Assim, quando se aproximou o dia do meu casamento, busquei para mim uma Ateret Calá, e para minha alegria a encontrei. Fico feliz de poder realizar o seu desejo". E realmente, na foto, aparecia uma noiva com "Jerusalém de Ouro"! * Uryel Faynerman é Guia de Turismo credenciado pelo Ministério de Turismo de Israel e Professor no Beit Hasefer Letaiarut. 21


HISTÓRIA

O MONARCA E O HEBRAICO

UM AMIGO CHAMADO PEDRO Rachel Stoianoff

Diz o velho ditado que todos os caminhos levam a Jerusalém. No meu caso alguns caminhos levaram-me a Petrópolis. Lendo um artigo sobre a cultura judaica de D. Pedro II, tive conhecimento também da existência do Rabino Mossé de Avignon na Provença Francesa e fiquei encantada com a grande amizade que mantiveram até o fim de suas vidas.

D

ecidi ir a Petrópolis visitar o Museu Imperial. Muito interessada no que vi, voltei lá três vezes. Apreciei o manto, o cedro e a coroa imperial que pertenceram ao Imperador. Resolvi conhecer melhor a cultura judaica de Pedro e o respeito e a admiração que ele tinha pelos judeus. Anotações daqui e dali resultaram neste trabalho, pois achei que devia contar o que foi visto e pesquisado. No final concluí que em outro tempo mais antigo, em outra dimensão no espaço de nossas vidas eu tive também um Amigo Chamado Pedro. No arquivo em Petrópolis, achamos mais uma carta que o rabino Mossé dirigiu ao imperador em 9 de agosto de 1889, enviada juntamente com a biografia “Dom Pedro II, Empereur du Brésil”, cuja autoria e até existência do autor tinham sido postas em dúvida por d’Escragnolle. A missiva, em estilo muito floreado, fecha com o seguinte parágrafo: “Uma das mais belas retribuições de

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minha vida será apresentar, como historiador francês, o maior dos modernos imperadores, D. Pedro II. Com os sentimentos de minha devota admiração, imploro Sua Majestade aceitar esta nova oferenda e as mais profundas homenagens de seu humilde e respeitoso servo, discípulo de Moisés e dos profetas, que invoca para Sua Majestade, Sua Augusta Família e seu Povo, a graça divina do Supremo Criador, para que Ele o proteja contra os ataques dos insetos e o coloque à sombra das Suas Asas (em hebraico:) que os anjos o acompanhem em todas Suas andanças!” - Benjamin Mossé Grão-Rabino Oficial da Instituição Pública (WOLF, Egon e Faria, 1983). A História do Povo Judeu, tão ligada à religião e as tradições seculares, é uma história muito especial. A história dos judeus tão diversa da de outros povos é, no entanto a história de toda humanidade. As narrativas bíblicas esclarecem os caminhos da humanidade desde a

época nômade, desde as tribos, até a formação de nações construídas com leis próprias. As histórias dos profetas, reis, e patriarcas, são um patrimônio de conduta para todas as crenças e todos os homens. A história judaica mesclou-se à história de inúmeros povos e países onde os judeus viveram, incluindo o princípio da História do Brasil desde o descobrimento, Cabral, Fernando Noronha, Pedro da Gama, tantos que para cá vieram, aqui estiveram em paz enquanto durou a repressão à inquisição pelo Marquês de Pombal. Com a chegada da corte portuguesa em 1808, os portos foram abertos à imigração e os judeus que chegaram a partir daí não tinham a ver com os anteriores cristãos novos. O Brasil Império florescia sob o reinado do jovem Imperador Pedro II. E aqui propriamente começa a nossa história: o imperador amigo e admirador do povo da história e da língua hebraica, deixou uma grande profu-


são de documentos sobre o assunto, e registrou de próprio punho em seus diários, o bom relacionamento e as amizades que tinha e cultivava com os judeus do Brasil e de outras terras. No museu de Petrópolis, encontra-se todo um acervo desta face pouco conhecida do Imperador D.Pedro, que foi coroado com 15 anos, falava francês e inglês, era culto e foi sempre dedicado ao estudo durante a vida apesar dos seus deveres para com o Brasil. Em 1830 seus estudos incluíram latim, música, dança, caligrafia, geometria, matemática, geografia e, em 1839 ele dedicou-se ao alemão e italiano. Depois D. Pedro aprendeu com perfeição o grego, heDom Pedro, um eterno estudioso braico, sânscrito, árabe, provençal e a língua tupi. Em 1891, D. Pedro publicou um

livro de versões de poesias judaicas declarando então, que se dedicara ao hebraico, para conhecer a história e literatura dos judeus e os livros dos profetas. Seu primeiro professor, foi o judeu sueco Aker Blom por volta de 1860 e depois os judeus Koch, Henning e Seybold. Em 1887, viajando à Europa, D. Pedro declara ser o hebraico sua língua preferida e, em seu diário, ele anota suas traduções do hebraico, assinala que ministrou aulas de hebraico , depois registra “Traduzi Neemias com facilidade, não tenho esquecido o hebraico”. Até depois de abdicar, D. Pedro continuou estudando sempre a língua hebraica. Traduziu Camões para o hebraico, passou partes do Velho Testamento do hebraico para

Quando foi à Terra Santa, em 1876 D. Pedro II redigiu um diário que revela a curiosidade intelectual, a sensibilidade artística e o empenho do monarca em conhecer e compreender a humanidade. O diário retrata um homem despojado de mordomias que, apesar de rei, dormiu em barracas, hospedou-se em hotéis de quinta categoria, cavalgou horas a fio, arriscou-se a enfrentar beduínos, frequentou banhos turcos e colecionou souvenirs. Guardados no Museu Imperial de Petrópolis (Diários 18-19, maço 37, doc. 1057), os relatos se referem à segunda viagem internacional do monarca, na qual ele visitou, em 18 meses, mais de cem cidades, em quatro continentes. D. Pedro II anotou impressões dos 24 dias no Líbano, Síria e Palestina otomana, percorrendo quase 500 quilômetros. Trata-se de uma distância significativa para os recursos de transporte da época. Além disso, a comitiva real tinha mais de 200 pessoas. Providenciar água, comida, hospedagem e segurança para tanta gente exigia uma operação de guerra. Na época, D. Pedro já tinha 50 anos, mas não reclamou do cansaço, aproveitando cada minuto de sua peregrinação. 23


HISTÓRIA o latim, dentre elas o Cânticos dos Cânticos, Isaías, Lamentações e Jó. D. Pedro foi o precursor dos estudos hebraicos no Brasil e por causa dele muitos estudiosos passaram a cultivar a língua hebraica. O Imperador deixou um trabalho de 19 páginas que está no Museu de Petrópolis com o significado de palavras hebraicas do livro dos Salmos e do Gênesis, sendo que ele as traduziu para o inglês e o grego, não para o português. Este documento contém o hebraico escrito de seu próprio punho. D. Pedro tinha amigos judeus aos quais freqüentava e que também recebia no Paço Imperial. Quando o Imperador criou a Ordem da Rosa vários judeus a receberam no Brasil, como o Coronel Francisco

Cortejo para Dom Pedro em Paris ricano, fez a planta para a instalação da luz elétrica no Palácio da Quinta da Boa Vista. Este judeu que veio residir no Brasil foi o inventor da cama patente. Quem lembra ? Em 1869, chegou ao Rio o maestro e pianista judeu Gottischalk. e entre muitas apresentações houve uma solene dedicada ao Imperador,

Mosteiro Saint Sabbas - visitado por Dom Pedro

declarou a religião romana como a religião do Império, mas permitia outras religiões. D. Pedro viajou muito e por onde passava visitava as sinagogas; assim foi nas duas sinagogas principais de Londres, sendo, que em uma delas o rabino Marks abriu a Torá a seu pedido, e no Sábado lá estava D. Pedro assistindo ao culto onde recebeu benções para si e toda a família Imperial. Em S. Francisco a Torá lhe foi apresentada e o Imperador a leu fluentemente, leu o livro de Moisés e traduziu o texto com desembaraço para surpresa dos presentes. E assim visitou as sinagogas das cidades onde esteve nos Estados Unidos. fez o mesmo na Europa. No seu diário ele registra a passagem pela sinagoga de Bruxelas, esteve também na sinagoga de Toledo fazendo anotações sobre a música e o canto assistindo aos shabat invariaDom Pedro em Jerusalém- 12-1876

Leon Cohn, Henry Nestor, Dreifus e outros israelitas residentes em outros países também foram honrados. Abraão Bernel, por exemplo, recebeu a ordem por serviços humanitários no Brasil. Firmas inglesas a receberam, todas elas relacionadas aos Rothschild. O coronel Francisco Leon Cohn chegou a Tenente Coronel da Guarda Nacional em 1876. Um judeu, Morris N. Kohn, ame24 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

composta de 20 músicos sob a regência do maestro, e foi apresentada à Grande Marcha Solene, variações do Hino Nacional. A Lista de artistas israelitas que aqui vieram foi enorme e tiveram sempre o apoio de sua Majestade: Harold Hime, Paula Bucheim, Max Lichtenstein, Ida e Helena Goldsmith e muitos outros. Quando a Independência do Brasil foi proclamada, a Constituição


velmente. O Imperador foi à Palestina. Esteve numa sinagoga Samaritana em Sebastia e ele anota que a Torá que lhe foi apresentada era de pele de gazela, muito antiga e tinha o Pentateuco escrito em letras fenícias ou cananéias usadas antes do exílio Babilônico. Em Damasco procurou os judeus e os visitou. Na Palestina esteve em Cafarnaum e anotou: “Estudei a Bíblia quanto pude”, e trouxe uma pedra das ruínas da Sinagoga. Foi nesta viagem, várias vezes à Jerusalém. E anotou: “Vou ao Monte das Oliveiras e vou ver os judeus orando junto à Muralha do Templo”. E voltando ao Brasil, D. Pedro sempre ligado aos seus amigos judeus, continuou mantendo vasta correspondência sobre o hebraico. Havia um especial – Ernest Renau, filósofo, professor de hebraico e sânscrito, era escritor, mas os livros por ele publicados sobre religião não interessaram a D. Pedro, visto que os pontos de vista de Renau não coincidiam com o sentido religioso do Imperador. D. Pedro era religioso, o estudo do hebraico, o interesse pelas sinagogas e os judeus, estão alinhados com ele, que declarava: “Creio em Deus, sempre tive fé”. O Brasil seguia seu caminho, e o Império negociava com o exterior, o Brasil tornava-se conhecido e o Imperador recebia publicações de várias partes do mundo. Assim foi-se formando a biblioteca Imperial. Dos Estados Unidos, chegou um livro em hebraico de autoria do rabino Halish e também um manuscrito de Jerusalém enviado por Salomon Henvitz. Muitas cartas em hebraico, poemas, um livro sobre Judah Helevy vieram ao Castelo D’EU quando o Imperador já estava no exílio. No exílio, D. Pedro dizia aos jornalistas que o abordavam: “não

me chamem Vossa Majestade, mas Monsieur d’Alcantara”. As anotações de D. Pedro depois que perdeu o Império são diferentes. Ele foi para França depois que a esposa morreu, e continuou freqüentando os meios judaicos. As anotações em seu diário são variadas referentes aos seus contatos com os israelitas radicados em setores diversos: professores, médicos, escritores, rabinos etc. Seis semanas antes de sua morte, ele enviou carta ao professor Max Pettenkoper, agradecendo as poesias em hebraico. D. Pedro foi amigo do rabino Benjamin Mossé de Avinhão, que lhe sugeriu que traduzisse os poemas litúrgicos daquela região da provença, pois ele dominava os dois idiomas. Os poemas eram escritos de maneira especial, eram piuts, escritos uma linha em hebraico, outra em provencal. D. Pedro fez a tradução ao seu modo. O texto hebraico foi para o francês e o provençal para caracteres latinos e assim D. Pedro fez muitas traduções para o rabino de Avinhão, incluindo o aramaico. As publicações religiosas do rabino denominadas “La Famille de Jacob” estão documentados os trabalhos de D. Pedro. A Biblioteca Nacional de Paris possui esses exemplares, as bibliotecas judaicas na França e em Israel não os têm, embora constem documentos franceses as traduções feitas pelo Imperador dos “Treze atributos de Deus” do rabino Salomon bem Isaac de Troyes, no Brasil não há nenhum documento a respeito. D. Pedro recebeu em 15/09/1873 o grande Diploma de Honra por seus trabalhos por intermédio do rabino Mossé que, juntamente com o Barão do Rio Branco, escreveram uma biografia do Imperador.

A morte de D. Pedro aos 68 anos foi um choque para o rabino de Avinhão e ele escreveu um necrológio no seu jornal “La Famille de Jacob”. D. Pedro II d’Alcantara, cuja biografia um modesto rabino teve a honra de escrever com a colaboração de um sábio brasileiro Barão de Rio Branco, foi uma das mais admiráveis figuras de nossa época moderna. Fundador e organizador do imenso Imp ério brasileiro foi amigo das letras. Conhecedor a fundo do hebraico, era certamente mais fluente nesta língua que muitos filhos de Israel. Ele não somente amava nossa língua mas nos amava, elogiava as virtudes de nosso povo e indignava-se com o anti-semitismo. A última obra em que o monarca trabalhava era judaica, uma manifestação ressoante em favor do judaísmo que guardara para sempre sua memória. O povo judeu que encontrou tanto desamor através dos séculos também teve amigos sinceros, e entre eles em muito especial, Pedro João Leopoldo Salvador Babiano, Francisco Xavier de Paula Leopoldino Miguel, Gabriel Gonzaga de Alcântara Orleãns e Bragança, Imperador do Brasil. 25


ISRAEL

INCENTIVO PARA QUÊ? UMA RADIOGRAFIA DA ALIÁ ORIUNDA DA AMAZÔNIA

David Salgado*

Uma matéria incomum circulou nas mídias em todo o Brasil e Israel no mês de fevereiro último, e sua manchete estampava: "Israel investirá R$1,2 milhão no apoio a imigrante brasileiro"

M

as especificamente no corpo da matéria, explicava o seu redator, que Israel vai investir no ano de 2016, 1,18 milhão de shekalim, que equivaliam na época a R$ 1,2 milhão, no apoio e incentivo a imigração de brasileiros para o país. O motivo desse investimento é o aumento de 58% no número de novos imigrantes brasileiros no ano de 2015. Segue a matéria e fornece números exatos de 308 imigrantes em 2014 e de 486 em 2015. Um aumento significativo realmente! Mas seria para tanto? Seria preciso investir na imigração, de verdade, como anunciou o Comitê de Imigração e Absorção do Knesset (Parlamento Israelense)? Entre inúmeros comentários que vimos sobre o assunto, destacamos uma frase dita por Oded Foyer, representante da Federação Sionista no Brasil, na qual afirmou que os esforços para incentivar a aliá não serão restritos a São Paulo e Rio de Janeiro, mas serão expandidos também a outras regiões. Ufa, que bom, assim os judeus de pequenas comunidades como 26 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

a de Manaus e Belém, também serão beneficiados. Na verdade, ninguém tem dúvida que esse aumento de 58% na imigração brasileira para Israel é causado principalmente, pela atual crise política e financeira que enfrenta o país. Assim que imagino que quando, essa fase crítica passe, tudo voltará ao normal e o Brasil então se estabilizará e em seguida voltará a crescer economicamente e financeiramente, e os brasileiros estarão novamente felizes e ninguém mais pensará e falará de aliá! Tampouco sabemos dizer, quantos judeus realmente vivem no Brasil! Principalmente depois do programa apresentando pela Rede Record intitulado "O Brasil dos Judeus", no qual ficou claro a todos os cidadãos, que corre muito sangue judaico nas veias de milhares e milhares de brasileiros. Porém, a questão aqui seria portanto outra: teriam esses judeus ocultos direito a imigração para Israel? Mas esse não é o tema de nossa matéria, portanto vamos adiante. Deixando de lado os possíveis milhares de judeus de origem

marrana, que tiveram de ocultar sua religião para poder fugir das garras inquisitoriais durante o período colonial, e a julgar pelo último censo de 2010, cerca de cem mil brasileiros se consideram judeus em todo o país, onde a grande maioria está em São Paulo e Rio de Janeiro na região Sudeste, e algumas das menores comunidades localizam-se na região norte do país, Manaus e Belém. Então onde queremos chegar com tudo isso? O número de brasileiros que imigraram para Israel, cresceu realmente no último ano e até triplicou, se formos buscar os últimos três anos, porém, esse aumento da aliá de brasileiros não vem ocorrendo apenas nos últimos três anos, mas sim na última década, pelo menos, se nos ativermos a uma região específica do país, a Amazônia. Nos últimos anos, mas especificamente na última década, o aumento da aliá vinda da região norte do país, aumentou em dois ou até três dígitos percentuais. Na falta de um estudo mais apropriado


A Família Israel no Muro Das Lamentações

ou até mesmo profissional, sobre o aumento da imigração de judeus da Amazônia para Israel nos últimos dez anos, resolvi fazer um pequeno levantamento. Claro, friso, que os dados aqui apresentados, são frutos apenas de minha pesquisa pessoal e a título de curiosidade, assim que, caso apresente falhas, desde já peço minhas desculpas. Desde Abraham Saragá Z"L, o pioneiro imigrante da Amazônia para Israel, saindo de Manaus no navio "Santos" em direção ao então recém criado Estado de Israel em 1948, a imigração Amazônica foi muito parca. Os poucos que se aventuraram a vir nas primeiras décadas do Estado de Israel enfrentaram inúmeras dificuldades, sejam econômicas, financeiras, culturais, sociais, mas principalmente, a solidão e a saudade foram sentimentos que mais pesavam nesse época, e tornouse um dos maiores obstáculos

enfrentados por esses verdadeiros sionistas pioneiros. O próprio Sr. Abraham Saragá Z"L, quando fui visitá-lo certa vez, confessou-me que por vezes pensou em voltar para Manaus, sua adaptação não foi fácil, quando chegou em Israel foi viver nas chamadas "maabarot", que eram acampamentos feitos com tendas de pano como moradias provisórias para os novos imigrantes como ele. Lembra Saragá que em sua primeira década, entre 1948 e 1958 o recém criado Estado de Israel aumentou sua população de 800 mil, para cerca de 2 milhões de habitantes e que por isso mesmo nada era fácil. Além disso contou-me o Sr. Abraham, que não sabia o hebraico e tão pouco o inglês, e que quando veio era muito jovem, não tinha ainda 16 anos. Mas sua perseverança foi maior que o sentimento de solidão e saudade.

Hoje seus descendentes são dezenas de “sabras” (israelenses), espalhados por todo o país. Outro raro exemplo de imigrante judeu do norte do Brasil que chegou nas primeiras décadas da fundação de Israel é Salomão Nahon. Vindo de Belém do Pará, ele e outros vários jovens paraenses que imigraram, passado menos de um ano, seus companheiros já estavam de volta para Belém. Salomão e um amigo, Fortunato, resolveram ficar e ingressaram na universidade. Eles terminaram os estudos e foram para o exército. Fortunato o amigo de Salomão, mesmo depois de servir no Tzahal (Exército de Defesa de Israel), resolveu retornar para Belém e ficou por lá. Salomão Nahon, conheceu sua esposa Rachel, uma bela moça argentina, e foi ficando por aqui. Hoje em dia o casal Nahon vive em Holon, tem uma empresa de confecção de roupas, 2 filhos já casados que lhes deram 2 maravilhosas noras e 7 lindos netos, até agora! Assim como Salomão outros jovens e até mesmo casais, vieram para Israel durante as décadas de 70-90. E também assim como Salomão Nahon, alguns conseguiram se adaptar e constituir famílias prósperas e numerosas. Muitos outros, que por aqui passaram, não conseguiram se adaptar e retornaram como fizerem Fortunato e os outros amigos. 27


ISRAEL Os que aqui ficaram, vivem espalhados pelo país, alguns são tradicionais, outros mais religiosos e outros laicos. Tem judeus da Amazônia vivendo em Israel, em Rechovot, Bnei Brak, Haifa, Rishon Letsion, Natania, Kriat Malachi, Pardes Chána, Jerusalém, Tel Aviv, Petach Tikvá, Ramat Gan, enfim em praticamente todo o país. Assim que essa imigração, sempre rara, de poucos representantes é o que se viu desde os primórdios até praticamente o início dos anos 2000. Porém, o que vem acontecendo nos últimos 10 anos é um verdadeiro fenômeno imigratório de judeus das comunidades da Amazônia, uma crescente imigração que deixou de ser isolada, escassa, rara e passou a apresentar um número surpreendente. A partir de 2005 até hoje,

falecidos que eram de Manaus e do nosso querido Meyr Israel “mejorados 120 anos” com muita saúde. Portanto, existem representantes desta família Israel tanto em Belém como em Manaus. No entanto, a sua imigração para Israel, é formada quase única e exclusivamente, de representantes paraenses. Só dessa família eu posso contar hoje em Israel vindos a partir de 2005 ou 2006, cerca de 15 membros, a maioria jovens solteiros quando chegaram, mas hoje, praticamente todos casados e com suas famílias constituídas, inclusive com belos e saudáveis filhos, totalizando mais de 50 pessoas de uma única família. Além dos Israel, imigraram nesses últimos anos para Israel outras dezenas de jovens solteiros e algumas familias, tais como: Anijar, Benchimol, Amaral, Bemerguy, Benguiguy, Athias, Laredo, Lancry, Salgado, Nahon, Serruya, Benzecry, Abensur, Pazuello, Hamoy, Elmescany, Larrat, Unger, Zagury, Azulay, Bentes, Amzalak, Schwarcz, Gabbay, Rezende, Antunes, Bensoussan, Larrat, Reunião de David Salgado com rabinos Benjó, Belicha, oriundos da amazônia Siqueira, Pereira, o número de jovens imigrantes e fa- Tayah, Ohana, Benitah, Abecassis, mílias cresceu de modo exponencial Sicsu, Nahman, Garcia, Ohev Zion, em relação aos números tidos até Melul, Sabbá, Assayag, Levy. então. Não tenho nenhum receio de Famílias inteiras tem vindo para o afirmar, que o número de imigrantes país, como é o casa da família Israel da Amazônia para Israel aumentou de Belém. O patriarca da família em mais de 200% nessa década. Até é seu Elias David Joseph Israel o início do século XXI, os imigrantes Z"L, ele era irmão, entre outros, não chegavam a 2 por ano, talvez de Vidal e Samy (Samuel) Israel, já em ano de abundância imigravam 5 28 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

pessoas. Estes dados que, em termos absolutos podem parecer pouco significativos, são com certeza, o maior percentual absoluto de aliá oriunda do Brasil. Mas a mudança está aí e não precisamos fazer nenhuma pesquisa formal para ver que nessa última década, a estatística e os números aumentaram e muito. Somente em 2015, em uma simples contagem tivemos os seguintes imigrantes (salvo engano ou desconhecimento de nossa parte): Anidjar – 2; Israel – 4; Abensur – 2; Antunes – 1; Bensoussan – 4; Elarrat – 2; Gabbay – 6; Laredo – 1; Lancry – 1; Zagury – 1, totalizando 24 imigrantes amazônidas em 2015. Se formos buscar a partir de 2005 e até hoje, os números passam de 150 Olim Chadashim que vieram da Amazônia para Israel, e e me refiro apenas, aos que permaneceram no país, porque muitos deles também estiveram e não se adaptaram e retornaram ou buscaram outras opções. Os motivos que impulsionam os judeus a saírem do Brasil e não só da Amazônia nós já falamos. Mas o que está realmente atraindo tantos amazônidas para a Terra da Promissão – Israel? *David Salgado é diretor fundador de Amazônia Judaica e Guia de Turismo Oficial em Israel


Grupo de voluntários israelenses-duros no trato, mas campeões de ajuda humanitária

Na edição da Revista AJ de abril de 2012, a estudante Tania Sananes em sua excelente matéria intitulada "Em Busca da Terra da Promissão", afirma, entre outros motivos, que o que atraia os jovens era a possibilidade de regularizar uma situação religiosa e fazer a conversão ortodoxa pelo rabinato de Israel. Talvez na época, há 7 ou 8 anos atrás, este tenha sido o motivo mais atraente, hoje porém, a situação é outra totalmente diferente, Israel é hoje uma opção de verdade. Como membro de uma dessas famílias que fez aliá a partir de 2005, me arrisco a enumerar alguns dos motivos que atraíram e ainda atraem tantos amazônidas e originaram essa nova onde imigratória para Israel: - Vim para Israel apesar de ter que servir 3 anos de exército quando no Brasil só sirvo 1 e nem isso, basta dar um "jeitinho”, e por que? Porque aqui estou servindo o único exército de Defesa do mundo. - Estou aqui porque ando nas ruas vendo o tempo todo como o "sabra" é uma pessoa difícil, espinhosa e “casca grossa” como a fruta sabra. Mas na hora de ajudar um ao outro, não existe como um israelense; e na hora de ajudar a qualquer um, não importa a distância e quem seja, também não existe como o israelense. - Prefiro Israel a Espanha ou Portugal, apesar da nova lei nesses países que dá cidadania aos descendentes dos judeus sefaraditas, que de lá foram expulsos há mais de 500 anos. Por que sairia do meu Brasil onde não existe antissemitismo para ir a uma Europa antissemita e antisraelense? - Aqui estou porque a lei funciona neste país: um ex-Primeiro Ministro e um ex-Presidente estão na cadéia, enquanto no Brasil... é melhor nem falar. - Quem vem para Israel, logo aprende uma palavra que é shalom! paz, oi , tchau! Depois aprende outra que é slichá – desculpa, com licença. E então aprende a terceira palavra e essa é fundamental – Savlanut – Paciência! Ou seja, slichá - Desculpem nossos inimigos, mas mesmo que eles não gostem, com savlanut - paciência, alcançaremos a paz – shalom. - Vivo em Israel onde apesar da terceira Intifada estar acontecendo, de os palestinos estarem tentando esfaquear pessoas o tempo todo, não tenho medo de andar nas ruas em nenhum momento do dia ou da noite. Não tenho receio de assalto a mão armada nem de pivete nas ruas, pelo contrário, aqui me sinto muito seguro. - Vim para Israel porque quero andar de Kipá na rua, quero respeitar o Shabat, e não me envergonhar disso ou ser “zuado” (apesar de eu não considerar isso como antissemitismo). - Estou aqui porque apesar do país ser tão pequeno, mas tão pequeno, pasmem, menor que o menor Estado do Brasil, o Sergipe, ainda assim posso esquiar no inverno no Monte Hermon e no verão desfrutar de praia com um sol de escaldar em pleno deserto a beira do Mar Vermelho. - E para quem gosta de aparecer e estar na mídia? Israel é o máximo! É um território pequeno, é mais da metade desértico, sua população não passa de 8,4 milhões de habitantes, cercado de inimigos por todos os lados e mesmo assim, não tem um dia que não seja manchete! - Estar aqui é sentir e fazer parte de um povo que tem uma história sem fim, infinita, e que já tem mais de 5000 mil anos, e mesmo assim, ela continua sendo escrita, dia a dia! Portanto, viver aqui em Israel é fazer parte dessa história, é poder escrever um capítulo ou até mesmo uma frase, mas é a minha história é a nossa história é a história do Povo Judeu. Enfim, o motivo para sair do Brasil pode até ser provisório, mas os motivos para vir para Israel esses são muitos e duradouros. Assim que, quem precisa mesmo de incentivo para aliá?! 29


CRÔNICA (1)

COMO BOTARAM ABAIXO MEU ARCO DE TITO Por Elias Salgado

“Ei lourinho!, que pernas bonitas, que coxas grossas”, hein!?

E

ra Alda a filha do dono da pequena vendinha do final da minha rua, a Luiz Antoni, “o seu Zezinho, quitandeiro”. Um velhinho franzino, aparentemente doente e muito frágil. Até aonde vai minha memória, não lembro de que ela tivesse irmãos, nem tampouco tenho lembrança de uma mãe. Pode ser que sim tivesse mãe e irmãos. Mas como eu só ia até a vendinha para vê-la e nunca entrava em sua casa simples, que ficava nos fundos da loja; eu só me deparava com seu Zezinho, já que ela, o ajudava, tomando conta da pequena quitanda também, quando não estávamos no colégio. Uma característica tinha Alda, parecia saber muito bem o que queria. E não se fazia de rogada comigo. E eu que de bobo nada tinha... Assim que então, nossa história teve algum futuro, curto, mas marcante. Além de muito bonita e também possuidora de um belo par de pernas que chamava a atenção de todos, quando, como várias outras colegas suas, vestia o uniforme escolar composto de blusa branca bem coladinha ao corpo e saia azul marinho plissada, que elas na saída do 30 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - ABRIL 2016

colégio, faziam questão de dobrar várias vezes na cintura para fazer subir mais a saia, colocando assim, as jovens pernas, ainda mais a mostra. Se existia uma polêmica que resistia ao tempo no Instituto de Educação do Amazonas, esta era a famosa e histórica “polêmica das saias“. Objeto de inumeráveis e calorosos debates pedagógicos, a tal polêmica, segundo parece, teria virado até, tema para tese de doutorado na Faculdade de Pedagogia do Estado. Pior eram os castigos e repreensões que a coordenadoria impunha às jovens infratoras que fossem pegas em flagrante delito. Mas ao que tudo indica, não parece que esta era uma preocupação que tirasse o sono de Alda e de suas colegas de turma. Diariamente, na saída da escola davam andamento aquele ritual de ousadia juvenil e se punham a desfilar pela praça que há em frente ao Instituto, a Praça do Congresso, que por muitos anos foi o centro da vida social da cidade de Manaus e que hoje tanto para ela, quanto para mim, é quase como a Itabira do poeta mineiro em sua memória: “apenas uma fotografia na parede, mas como dói...” Ela, a praça, era o coração da vida

da cidade e da minha de então. Era nela que tudo acontecia, Nela fica o Instituto, o outrora luxuoso e aristocrático Ideal Club, sede social da pura nata da alta sociedade manauara, até fins dos anos 70. Ali ficava a mansão de Isaac Sabbá, o “Rei da Amazônia“, segundo a revista Paris Match. A poucos metros da praça, fica a minha querida esnoga Beit Yaacov-Rebi Meyr, coração da vida comunitária judaica de Manaus e marco de minha memória pessoal e familiar naqueles anos e onde realizei meu barmitzvá. E o lugar que para mim, reunia todas as pessoas que eu queria encontrar, a sorveteria O Pinguin. Tudo ali bem próximo ao portentoso Teatro Amazonas, cartão postal da cidade. Hoje, parece que Manaus deu as costas a este passado de glórias. Talvez seja esta a razão pela qual eu tanto ame minha cidade de origem, mas tão pouco me identifique com ela, como ela é hoje. Mas deixando de lado a praça e suas memórias, voltemos a Alda e nosso namorico. Como Alda depois da escola não possuía grande repertório de possibilidades de lazer, já que era obrigada pelas circunstâncias, a ficar atrás do pequeno balcão da quitanda de seu pai, era lá e furtivamente que


se davam nossos pequenos encontros diários, que não duraram muito por conta da rigidez de seu Zezinho, que toda vez que me flagrava na venda me botava pra correr, dizendo que deixasse sua filha trabalhar e fosse procurar algo de útil para fazer. Alda talvez não tenha a menor idéia da real dimensão da sua brincadeira. O quanto ela levantava a minha auto estima abalada de adolescente. Sabe aquelas cismas que adolescente tem? Pois bem, eu tinha, entre várias, duas que foram marcantes, e que me tomavam tempo, além de me fazerem queimar o coco, como diz o Beni Alter, e como se não bastasse, me causavam um enorme sofrimento. A primeira delas era com o meu cabelo crespo, que já há tempos eu cismava em alisar e emplastar com o Gumex do papai, numa tentativa vã de frear a fúria de minhas ondas capilares tão rebeldes. Naquela época se usava, ao menos lá em casa, cabelo curto. Eu ainda não havia descoberto o caminho da liberdade para os meus cabelos, fato que só viria acontecer, alguns anos mais tarde em Israel, quando me juntei ao coro dos cabeludos e no meu caso, dos cabeludos cacheados.

Sucesso total! Poucas vezes na vida senti de forma tão plena, o verdadeiro sentido de liberdade. Aquele cachos eram uma parte fundamental do meu bem estar pessoal, naqueles quase quatro anos que duraram meu auto – exílio em Israel e na Europa, entre 1974 e 1977. A outra grande cisma, era na verdade duas: minhas pernas, Possuo o corpo idêntico ao do meu falecido pai. Certamente de todos seus sete filhos, sou eu quem mais se assemelha fisicamente com ele. Acontece que neste conjunto hereditário, veio junto, um par de pernas curtas e muito arcadas. E o arco que minhas pernas formam, não era, naquela época, bem o meu Arco do Triunfo, estava, eu diria, mais para meu Arco de Tito.

Eu achava minhas pernas muito arcadas e feias. Enfim pensava que eram horrorosas, como várias outras coisas mais, que ficam para outra história... O arco de minhas pernas era para mim, como o arco erguido em Roma por Tito, para comemorar a vitória sobre a Judéia. Era o símbolo da minha derrota existencial e física naquela época. E foi a bela Alda, sem saber, de forma espontânea e doce, quem em plena praça pública, botou abaixo para sempre o Arco de Tito da minha adolescência.

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CRÔNICA (2)

EU SOU LAICO Por Marcos Wasserman*

Atendo o telefone e ouço uma voz que me parece bastante conhecida

N

ão podia acreditar. Era o Max, meu velho amigo de infância, que estava me telefonando daqui mesmo de Israel e não pude acreditar quando me disse que havia feito aliá. Foi para mim uma grande surpresa. Eu me lembrava perfeitamente de que ele pertencia à linha dos judeus que se definiam como progressistas, era antisionista, e quase brigamos feio pela forma intransigente pela qual eu defendia o sionismo. Convidei-o a um encontro, vamos tomar um café juntos e você vai me contar o que aconteceu com você, e o porquê de ter resolvido revolucionar a sua vida para vir viver em Israel. Nos encontramos e nos abraçamos emocionados, como só pode acontecer entre dois amigos de infância, esquecidas, claro, nossas diferenças ideológicas da juventude. Não vou relatar a nossa longa conversa relembrando saudosos tempos da nossa infância e juventude. Meu amigo Max discorreu em detalhes o que ocorreu com ele nos últimos anos e sua mudança ideológica radical. Ele abandonou a linha chamada ''progressista'', para afinal aderir integralmente às ideias sionistas,

32 AMAZÔNIA JUDAICA No 8 - AVRIL 2016

pondo-as em prática fazendo a sua aliá. Não sou religioso – disse ele - nem mesmo acredito em D'us e não vou à sinagoga. Sou laico. Vim para Israel porque estou convicto dos direitos legítimos de autodeterminação do povo judeu. Daí para a frente começamos a discutir. Muito interessante e não posso deixar de admirar o seu posicionamento, respondi. Mas não estou entendendo muito

bem o que significa para você, ser laico. Vou fazer uma pergunta: O povo judeu comemora o sábado como o dia de descanso. E você? Eu também respeito o sábado, ele me respondeu, só que meu descanso é diferente, vou ao cinema, vou a praia ou qualquer outro tipo de atividade para usufruir o Shabat. Imagino que você não coma comida kosher, certo? Bem, é verdade. Mas por outro lado eu respeito a memória dos meus pais e jamais seria capaz

de comer alguma comida proibida pelos preceitos judaicos. Nosso diálogo prosseguiu nesse tom até que perguntado se ele comemorava alguma das festividades judaicas, ele me contestou dizendo que para ele a festa mais importante, a noite inesquecível que data da sua infância, era a noite de Pessach. Pessach para ele não era apenas o Chag Hacheirut. Ele fazia questão absoluta de comemorar aquela noite da forma a mais tradicional possível. Exigia que a mesa de Pessach fosse preparada com todos os detalhes, com as comidas tradicionais, a Hagadá lida e cantada em todos os detalhes por todos os familiares e convidados. As crianças obrigatoriamente tinham que fazer as quatro tradicionais perguntas! Encarei meu amigo e não pude evitar uma risada. Afinal, você não é tão laico assim... * é advogado em Israel, Brasil e Portugal, conhece como poucos a Amazônia e é colaborador de Amazônia Judaica de primeira hora. Marcos é autor de “ O profeta alucinado – crônicas da Terra de Israel” – Ed. Imago, 2010


CONTATO

Caro Elias, Parabéns a você e a seu irmão David pela brilhante iniciativa do lançamento de “História e memória, judeus e industrialização no Amazonas” pelo selo Amazônia Judaica Um trabalho de fôlego e de grande importância para o estudo da presença judaica na região norte. Um abtaço.

Muito queridos David e Elias

Dr. Bernardo Stolnicki, Rio de Janeiro, RJ

Que orgulho e que alegria ver tão nobre trabalho ficando pronto!!! Seus trabalhos engrandecem nossa comunidade e fortalecem nossas raizes!!! Ao mesmo tempo agradeço e parabenizo!!! Super Mazal Tov!!! Antecipadamente gostaria de dois de cada um dos exemplares. Depois comprarei mais... Beijos especiais e muita sorte e sucesso!!! Anne Benchimol, Manaus, AM

Sobre o livro “História e memória, judeus e industrialização no Amazonas”: Uma fantástica narrativa dos Judeus no Amazonas suas lutas sacrifícios poder industrial e comercial Tiranos no poder tentava prejudicar suas atividades até mesmo religiosa. Moisés Sabbá faz uma narrativa emocionante da trajetória de seu pai um gigante industrial sr Isaac Sabbá com mais de 40 empresas e milhares de funcionários. Os judeus merecem o respeito e a admiração do povo da Amazônia pelos relevantes serviços prestados. Vale a pena ler esta obra Expedito Teodoro, Manaus, AM

Queridos irmãos Salgado, Há tempos que estamos sentindo falta daquela leitura de alto nível com que vocês sempre nos brindavam nos chaguim. Breve retorno para a Revista AJ. Saudades. Nissin e Bela Salem, São Paulo, SP

Prezado amigo Elias, Gostaria de manifestar-me em relação a falta que faz a Revista AJ, principalmente, nos meios acadêmicos, onde já é bastante conhecida. O pessoal da Biblioteca do Congresso Americano, em particular tem perguntado bastante. E eu me faço a mesma pergunta: quando a AJ volta a circular? Aguardo ansiosa pelo retorno e deixo aqui um abraço. Frida Gerbati, Rio de Janeiro, RJ 33


Juntos, família, amigos e comunidade, na preservação de nossa milenar tradição e no festejo de mais um Pessach Sagrado. Chag Sameach. ALICE BENCHIMOL

REBECA E JOSHUA NEMAN E FAMÍLIA Desejam a todo o povo judeu que a paz e a felicidade estejam em seus lares neste novo Pessach que se aproxima. Chag HaPessach Sameach

ALEGRIA SALGADO BOHADANA, SEUS FILHOS, NETOS E BISNETOS, Desejam a todos muita alegria e felicidade em seus lares nas noites de Seder Chag Sameach

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MARCOS NAHON E FAMÍLIA, Desejam a todo o nosso ishuv, no Brasil, em Israel e no mundo, um Chag HaPessach Kasher VeSameach.

CLARA E ELIAS MENDES E FAMÍLIA Juntam-se a todos de nosso ishuv na esperança de um Pessach de paz e tranquilidade. Chag Sameach

VIDINHA SALGADO E SEUS FAMILIARES Congratulam-se com toda a kehilá pela chegada de mais um Pessach. Chag Sameach

ANNE E JAIME BENCHIMOL E FAMÍLIA, Confraternizam-se com a kehilá, pela chegada de mais um Pessach. Chag Sameach a todos.

SIMONE, ISHAI, URIEL, SIME E DAVID SALGADO Do coração da Terra de Israel, estendem a todo o ishuv amazônico e brasileiro, seu desejo de dias de paz e alegria no novo Pessach que se aproxima. Chag Sameach

JAIME ELMALEH E FAMÍLIA Externam votos de um Pessach de paz alegria a todos judeus do mundo Pessach Kasehr VeSameach


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A Editora AJ incansável na luta pelo resgate, registro e preservação de nossa memória e tradições, sempre acompanhando as kehilot nos melhores momentos, através de suas edições.

Feliz Pessach a todos nossos leitores.

Adquira em nosso site: www.amazoniajudaica.org ou pelo nosso e-mail: portal200anos@gmail.com


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