Filas de sonhos

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O campo para onde nos trouxeram é como uma grande cidade de tendas. Tudo fica longe, há sempre muita gente pelo meio e nada se faz sem esperar numa longa fila. O pai não sabe, mas o que eu sonho mesmo, mesmo, é com uma fila que nos leve de volta para casa.

ISBN 978-84-18972-06-5 ISBN 978-84-17440-94-7

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9 7 2 0 6 5

9 788417 440947

Um conto sobre a crise dos refugiados através dos olhos de um menino fechado num campo de acolhimento. Inspirado no pequeno Alan, que apareceu afogado numa praia da Turquia.


Ao pequeno Alan e a todas as crianças refugiadas. A todos os que não se esquecem nem nos deixam esquecer. R. S.

Nasci no Porto, numa noite de lua cheia de um ano do Dragão. Cresci com uma fita muito azul no cabelo e os olhos ancorados no mar. Desde muito pequenina que falo mais do que é preciso e as mãos estão sempre a cair-me para as ancas (sobretudo quando leio as notícias). Dizem-me que sou muito do lugar de onde vim, e para mim isso é um elogio. Quando era menina, os adultos mandavam-me para os livros para descansarem de mim e eu percebi logo aí que os livros eram o melhor lugar para eu descansar deles. Funciona até hoje. Ser escritora era a minha brincadeira preferida. Ainda é, na verdade, mas agora brinco mais a sério. Acredito com o meu coração inteiro que o meu lugar no mundo é escrever e contar histórias; não saberia ser de mais lugar nenhum. Segundo dizem, estou a passar por uma fase mais rebelde, assim mais ou menos desde que nasci. E eu cá acho que deve ser por isso que nos meus sonhos mais secretos eu sou também uma revolucionária.

Vivo e trabalho em frente ao mar, na praia onde cresci. Aos domingos de manhã, observo a gente que passeia, uns em direção ao porto e outros em direção ao rio. Nas tardes de inverno, vejo passar os barcos seguidos de nuvens de gaivotas. De madrugada, quando ainda misturo cores, não vejo o mar, mas posso senti-lo. Quando contemplo o mar, lembro-me do meu pai, que sabia dizer de onde soprava o vento. De pequenina já olhava para o mar e sonhava não me lembro bem com quê. Agora olho para o mar e penso nas crianças, sozinhas ou acompanhadas, que o atravessam, mortas de medo e com os pés molhados. Diante do mar ilustrei esta história, tão dura e ao mesmo tempo tão cheia de ternura.

Publicado por AKIARA books Plaça del Nord, 4, pral. 1ª 08024 Barcelona (Espanha) info@akiarabooks.com

Primeira edição: fevereiro de 2022 Coleção: Akialbum, 23 Revisão linguística: Catarina Sacramento Direção editorial: Inês Castel-Branco

www.akiarabooks.com/pt

Impresso em Espanha @Agpograf_Impressors Depósito legal: B 3.579-2022 ISBN: 978-84-18972-05-8 Reservados todos os direitos

© 2022 Rita Sineiro, pelo texto © 2022 Laia Domènech, pelas ilustrações © 2022 AKIARA books, SLU, por esta edição

A AKIARA trabalha com critérios de sustentabilidade, procurando uma produção de proximidade e reduzindo o uso de plásticos e o impacto ambiental. Este produto foi feito com material que provém de florestas certificadas FSC®, geridas de forma responsável, e de materiais reciclados. Este livro foi impresso sobre papel Offset Coral Book White de 140 g/m2, e a capa sobre papel Imitlin E/R55 Tela Neve de 125 g/m2. Usou-se a família de fontes Frutiger LT Std.


Texto de Ilustrações de


Os senhores da guerra estavam cada vez mais zangados e discutiam lançando balas e bombas. — É hora de fazer a mala. Vamos embora! — disse, numa noite, o pai. Pegou na maior mala que tínhamos em casa e pôs-me lá dentro. Naquela mala ia tudo o que precisava de salvar, dizia ele pelo caminho.



Um muro gigante de pedra e gente de farda ainda mais dura do que a pedra não nos deixaram passar. O pai explicou-me que a culpa era dele. Com a pressa da partida, tinha-se esquecido do convite em casa. E naquele país tão perfeito só se entra com convite.



Voltámos para trás. Íamos ser marinheiros! O pai comprou-me um colete cor de laranja com superpoderes. Ele não precisava. Disse-me que os seus músculos chegavam (mesmo que invisíveis, pensei eu). A bordo éramos tantos e devíamos estar a pesar tanto, tanto, ao mar, que ele ficou farto de nos carregar e virou o barco com uma furiosa tempestade.






Depois de tomar banho, temos de pisar lama até chegar à nossa tenda. E, na longa fila no escuro para lavar os dentes, sonhamos com o país mais limpinho do mundo, onde quem deita um papel para o chão paga multa.


O campo para onde nos trouxeram é como uma grande cidade de tendas. Tudo fica longe, há sempre muita gente pelo meio e nada se faz sem esperar numa longa fila. O pai não sabe, mas o que eu sonho mesmo, mesmo, é com uma fila que nos leve de volta para casa.

ISBN 978-84-18972-06-5 ISBN 978-84-17440-94-7

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9 788417 440947

Um conto sobre a crise dos refugiados através dos olhos de um menino fechado num campo de acolhimento. Inspirado no pequeno Alan, que apareceu afogado numa praia da Turquia.


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