Obrigados a partir. Seis testemunhos de jovens migrantes.

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PRODUÇÃO PRÓPRIA Os nossos livros são sempre sonhados desde o princípio por nós, num trabalho colaborativo, direto e transparente entre todas as pessoas envolvidas.

ECOEDIÇÃO Seguimos os princípios da edição ecológica em todas as etapas do processo editorial, com o objetivo de criar objetos únicos e com o mínimo de impacto ambiental.

ECODESIGN Cada coleção tem um formato original, concebido em diálogo com a gráfica, para reduzir ao máximo o desperdício de papel e para criar uma experiência agradável aos sentidos e de aspeto artesanal.

IMPRESSÃO LOCAL Imprimimos em Barcelona, a poucos quilómetros do nosso espaço de trabalho, utilizando papel certificado FSC ou reciclado, tintas vegetais e máquinas LED UV (neutras em emissões de CO2), e deixámos de plastificar as capas.

PRODUÇÃO LIMITADA Publicamos pouco, entre seis e oito livros por ano (em três línguas simultaneamente), porque cada livro merece toda a nossa atenção e porque não queremos inundar de novidades um mercado já saturado.

COMPROMISSO COM O MUNDO Tentamos que os nossos livros sejam coerentes no conteúdo e na forma, e que ajudem a refletir, sem moralismos, sobre as grandes questões do mundo atual.

DESPERTAR O ESPANTO Queremos recuperar o sentido de maravilhamento perante o mundo através das temáticas que escolhemos, com atenção aos pormenores e profundidade poética: livros com luz própria.

O SOLY veio do Senegal. A HELENA deixou a Bolívia. O SAID teve de fugir da Síria. A RUTH nasceu em El Salvador. A MERIEM foi-se embora de Marrocos, tal como o OSSAMA. O que entrelaça as suas histórias é que todos eles se viram OBRIGADOS A PARTIR. Com este livro queremos dar a conhecer seis histórias de vida, seis percursos repletos de dificuldades e desafios. Três mulheres e três homens que tiveram de emigrar explicam-nos como viviam antes; porquê e como se foram embora e como é atualmente a sua vida num novo país onde não conheciam ninguém. São histórias de superação, mas também de dor, de solidão, de acolhimento e de integração. Histórias que, apesar de tudo, acabam bem, porque alguém (pessoas ou entidades) se empenhou para que assim fosse. Os testemunhos que apresentamos incitam-nos a um novo olhar, a dar um nome e um rosto à experiência de tantas, tantas pessoas que se veem forçadas a arriscar a vida em busca de um futuro mais digno.

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LAIA DE AHUMADA | CINTA FOSCH OBRIGADOS A PARTIR

MANIFESTO PELA ECOEDIÇÃO

AKIVIDA HISTÓRIAS PARA TRANSFORMAR O OLHAR

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LAIA DE AHUMADA CINTA FOSCH

LAIA DE AHUMADA

Nasci em Barcelona há muitos anos, tantos que até já sou avó. Tenho um espírito inquieto e fiz imensas coisas ao longo da vida: escrever, sobretudo, mas também doutorar-me em filologia catalã e impulsionar a criação de projetos sociais como o Centro Heura para pessoas sem lar, à frente do qual estive cerca de vinte anos. Enquanto escritora, publiquei aproximadamente duas dezenas de livros, cinco deles de entrevistas a pessoas ligadas ao mundo da espiritualidade, cultura e vida rural, mas ainda não tinha escrito nenhum sobre o mundo da exclusão social. É por isso que este livro é muito especial para mim, porque reúne tudo aquilo que sou e realizo e, acima de tudo, dá voz a pessoas que não são ouvidas por ninguém. E também é um livro singular porque, enquanto o escrevia, fui-me embora de onde estava, à procura de um lugar melhor onde viver. A diferença em relação aos entrevistados é que eu não me vi «obrigada a partir». Simplesmente, parti.

CINTA FOSCH

Seis testemunhos de jovens migrantes

Nasci em 1986 e sempre me rodeei de livros. Como disse certo autor, a minha pátria são os meus livros. Sou ilustradora, embora também tenha formação como historiadora da arte e me interessem muitas coisas mais: a literatura, o cinema, a música, os pássaros… O meu trabalho combina as colaborações com meios de comunicação e publicações com a criação de livros ilustrados para adultos e jovens, além dos projetos pessoais. Como ilustradora, tenho feito desenhos sobre direitos humanos, história, pensamento, informação internacional e mundo contemporâneo, que são, precisamente, os ingredientes que se encontram nas imagens deste livro.


Publicado por AKIARA books Plaça del Nord 4, pral. 1ª 08024 Barcelona (Espanha) www.akiarabooks.com info@akiarabook.com © 2024 Laia de Ahumada, pelo texto © 2024 Cinta Fosch, pelas ilustrações © 2024 AKIARA, SLU, por esta edição Primeira edição: abril de 2024 Coleção: Akivida, 1 Tradução: Catarina Sacramento Direção editorial: Inês Castel-Branco Produção gráfica: Glòria de Valdivia Pujol Impresso em Espanha: @Agpograf_Impressors Depósito legal: B 3.094-2024 ISBN: 978-84-18972-49-2 Reservados todos os direitos Este livro foi impresso em papel offset reciclado 100% Shiro Echo White de 140 g/m2 e a capa sobre papel Brossulin XT de 250 g/m2. Na tipografia, usaram-se as famílias Adobe Garamond e Franklin Gothic. A AKIARA trabalha com critérios de ecoedição, otimizando os formatos, escolhendo papéis certificados e optando sempre por uma produção de proximidade, para minimizar o impacto ambiental. Este produto foi feito com material que provém de florestas certificadas FSC®, geridas de forma responsável, e de materiais reciclados.


ÍNDICE HISTÓRIAS QUE ME CONTARAM

7

SE PARÁSSEMOS, MORRERÍAMOS

12

SOU INOCENTE!

24

COM A GUERRA, TUDO MUDOU

34

GOZAVAM SEMPRE COMIGO

46

A MINHA MÃE NÃO QUERIA CUIDAR DE MIM

56

O NOSSO SONHO ERA VIR PARA AQUI

66

PARA SABER MAIS

81

DIRECIONAR O OLHAR

83

Laia de Ahumada

Soly Dunia Kato Helena

Said Bilal

Ruth Verónica Carranza Meriem

Ossama el Ghachouah

Cinta Fosch



LAIA DE AHUMADA

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HISTÓRIAS QUE ME CONTARAM

Obrigados a partir é um livro de

entrevistas ilustrado, em que três mulheres e três homens, entre os 20 e os 40 anos, nos relatam as suas histórias de emigração, algumas das quais decorreram quando ainda eram menores de idade. As suas proveniências são diversas. Partiram de diferentes países de África, do Médio Oriente e da América do Sul, e residem atualmente na Catalunha. Não foram poucos os desafios com que deparei durante a elaboração deste livro; entre eles, a oralidade, e também o meu desconhecimento dos intricados trâmites legais que os meus entrevistados tiveram de enfrentar. Porém, o mais duro foi ouvir as suas histórias, acolhê-las e dar-lhes voz, sem deturpar a força da sua mensagem. Estas palavras foram geradas numa odisseia e é preciso escutá-las atentamente e respeitá-las. Por esta razão, tentei manter a oralidade da linguagem de cada um deles, interpretando silêncios, captando palavras que ficaram no ar e acrescentando apenas as frases estritamente necessárias para a sua compreensão.

Os trâmites legais que estas pessoas têm de encarar são longos e complicados, mas reduzem-se sempre a uma palavra: «papéis», um simples vocábulo ao qual, por desconhecimento, não é dada a importância que tem. Foi por isso que, no final do livro, quis detalhar as diferentes etapas do processo com informações orientadoras que, seguramente, não contêm tudo o que está disposto nas normas vigentes em Portugal e Espanha. Umas vezes, são histórias relatadas com vozes trémulas; outras, com lágrimas nos olhos; com palavras repetidas para realçar o desespero do vivido, e também com silêncios, onde não cabem as palavras. O que nos contam os protagonistas são recordações dolorosas e, com o intuito de não as acordar, passam por elas em pezinhos de lã. Devo reconhecer que me custou ter de os fazer enfrentar novamente a sua dor com a leitura do manuscrito, mas surpreendeu-me a coragem de todos eles. Ninguém voltou atrás: cada um reviu o texto e deu a sua opinião e o seu aval para publicação.


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HISTÓRIAS QUE ME CONTARAM

Os entrevistados explicam-nos como era a sua vida antes de emigrarem, por que motivos e de que maneira se foram embora, e o caminho e a luta a que tiveram de se sujeitar por causa de uma injustiça estrutural que os obrigou a viajar ilegalmente. Também nos descrevem a sua nova vida num país desconhecido, onde serão sempre considerados imigrantes. Ao contrário dos homens, que fizeram o caminho de «patera» (designação comum, em espanhol, para as embarcações precárias em que tantos migrantes atravessam o mar e que optámos por manter nestes testemunhos), as mulheres entrevistadas viajaram de avião, mas a vida no país de acolhimento também não foi nada fácil para elas. As histórias que nos contam são relatos de adaptação a uma cultura, uma sociedade e uma língua diferentes, com os agravantes da ilegalidade, da solidão, da ausência de oportunidades, do medo e da perda de identidade e autoestima. É por tudo isso que considero significativos tanto os suplícios das emigrações como os da vida como imigrantes no país de acolhimento, onde todos têm de suportar os estereótipos que os nativos, sem se darem conta, criaram a respeito deles. Preconceitos nascidos do medo do que é diferente e do profundo desconhecimento das dificuldades por que passam estas pessoas, inauditas para a maioria de nós porque temos documentos, identidade e apoio social.

E, apesar de tudo, nenhuma destas pessoas entrevistadas quer ir embora daqui. Alcançaram o seu objetivo: têm «papéis», contratos e uma vida estável no país. E uma coisa muito importante: podem ajudar a família. São histórias de sucesso, graças a pessoas e entidades que se ocuparam de acolher estes jovens para que assim fosse. Daí que, face ao sofrimento da solidão vivida, todos valorizem a importância de encontrar alguém que os ampare, já que esse encontro os tornou capazes de se integrarem e seguirem em frente. A finalidade deste livro é conseguir, pelo menos, que os leitores sejam capazes de se pôr na pele das pessoas imigradas que têm ao seu lado, que as olhem nos olhos sem medo, que as reconheçam, que saibam quem são e porque vieram, que oiçam como se sentem, ao que tiveram de renunciar e a quanto se arriscaram. Este livro também pretende mudar a perspetiva sobre a pessoa migrante: dar-lhe dignidade e visibilidade, dá-la a conhecer e apresentá-la como uma visita desejada e enriquecedora… alguém que se conhece, reconhece e ama. Estas são histórias que me contaram a mim para que eu as dê a conhecer, a fim de que não se repitam e não se esqueçam, embora os seus protagonistas quisessem esquecê-las. laia de ahumada



SE PARÁSSEMOS, MORRERÍAMOS NASCE EM BONA (SENEGAL) NO ANO DE 1984. CHEGA A LAS PALMAS (ILHAS CANÁRIAS, ESPANHA) EM 2006. Encontro-me com o Soly num espaço de co-work do bairro de Sants, em Barcelona. Está sentado em frente ao computador, a trabalhar num dos projetos da Associação Dunia Kato, a que deu o seu nome, não por vaidade, mas antes pelo significado que têm essas palavras na língua mandinga: Dunia significa ‘mundo’ e Kato, ‘perseverança’. Dois termos que refletem a luta e a preocupação de Soly em melhorar o mundo da emigração. Apesar dos anos que passaram desde que teve de deixar o seu país, ainda se emociona quando relata as agruras da fuga; e também se enfurece pela injustiça que implica ter de emigrar sem poder ter acesso a um visto. Está convencido de que os vistos evitariam muitas mortes, tanto no Mediterrâneo como no deserto.


SOLY DUNIA KATO

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SOU INOCENTE!

verdade, que ele não estava e que em toda a noite não tinha aparecido, que lhe tinha tentado ligar várias vezes e não me atendera o telefone. Imaginei que o procuravam por algum problema relacionado com os carros. Disseram-me que os acompanhasse à esquadra para prestar um depoimento. Perguntei-lhes se demoraria muito, porque tinha de ir buscar o menino à escola e não tinha quem o recolhesse. Disseram-me que seria só um momento e saí com eles. Entrei na esquadra tão tranquila. Perguntaram-me qual era a minha relação com a Finlândia e eu nem sabia onde ficava! Pensava que a Finlândia era um país asiático, como a Tailândia; nem sequer o conhecia de nome. Além disso, eu não podia viajar para lado nenhum, porque ainda não tinha passaporte espanhol, mas sim boliviano. Disseram-me que iriam registar o meu depoimento e que poderia ir-me embora, mas nada disso! Recolheram-me as impressões digitais, tiraram-me a foto e… ao calabouço! Estive no calabouço dois ou três dias, incomunicável. Foi horrível! Por sorte, o meu irmão foi buscar o menino.

COMEÇOU UMA LONGA VIAGEM

Levaram-me para Madrid numa carrinha da polícia. Era verão e fazia muito calor, e não pararam nem para nos dar um copo de água! Chegámos a Madrid e estive duas noites no calabouço; depois levaram-me

para a prisão de Soto del Real. Aí já veio ver-me um advogado e disse-me que havia uma ação judicial contra mim por parte da Finlândia, porque «supostamente» tinha participado em algo ilícito. Perguntou-me se eu tinha alguma relação com esse país e respondi-lhe que não. Disse-me que de certeza que não me iria acontecer nada, ou que, quando muito, podia levar uma pena de dois anos, por colaborar ou ser companheira de alguém que tinha participado ativamente no delito, mas que era preciso ver as provas. O advogado tranquilizou-me e disse-me para me apresentar à justiça finlandesa, já que, se não havia provas contra mim, me trariam de volta para Espanha.


HELENA

AINDA NÃO TINHA NACIONALIDADE ESPANHOLA

O problema era que o meu NIE (Número de Identidade de Estrangeiro) estava prestes a caducar, e, se vencesse quando eu estava fora de Espanha, como ainda não tinha nacionalidade espanhola, enviar-me-iam para a Bolívia e não me deixariam voltar para cá. Então, o advogado falou com o juiz para lhe explicar que eu era mãe solteira, que tinha um filho a meu cargo, de nacionalidade espanhola, um trabalho e um apartamento. O juiz redigiu um auto judicial em que solicitava à justiça finlandesa que, depois do julgamento, fosse qual fosse o veredicto, me devolvessem a Espanha. E com isso fui para lá.

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Quando cheguei à Finlândia, não entendia nada do que falavam. Tiraram-me as impressões digitais e levaram-me para uma cela, incomunicável. Não sei quanto tempo estive ali, não sabia se era de dia ou de noite, e não podia telefonar a ninguém. Não sabia nada do meu filho. E ainda pensava que aquele tipo que tinha sido o meu companheiro andaria feito louco à minha procura e a contratar advogados para me resgatar. Mas não era assim. Quando a polícia me deteve, ele deu à sola; lavou daí as suas mãos e levou tudo o que pôde do negócio de automóveis, tudo o que eu tinha investido com ele. E ao meu irmão e ao meu filho não lhes deixou tocar em nada; ficaram de mãos a abanar. Desde esse momento, desapareceu; arranjou outro passaporte e foi-se embora.

CHORAVA DIA E NOITE

Estive incomunicável. Chorava dia e noite. Foi horrível. Não sei quantos dias lá estive, mas pareceu-me muito tempo. Havia um rádio, mas eu não percebia nada. Nunca tinha sentido o que senti naquele lugar. É indescritível. Quando consegui encontrar um tradutor, pedi um advogado. Este veio ver-me e disse que não lhe parecia legal que mantivessem uma mulher presa naquelas condições, sem luz nem água. Não podia tomar banho, não podia comprar nada porque não tinha dinheiro, não podia falar com ninguém. Eu disse-lhe que pedisse para me transferirem para uma prisão feminina.


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COM A GUERRA, TUDO MUDOU

LÁ NÃO SE CONSEGUIA VIVER

Estivemos um ano em Afrin, mas lá não havia nada que fazer, nem estudar, não havia universidade, nem trabalho. Quando há guerra, não podes fazer nada. Em Afrin não se conseguia viver. Era impossível. Éramos muitas pessoas na família. Tínhamos campos de oliveiras, amendoeiras e uma pequena horta, e fazíamos trabalhos de construção, mas não nos dava o suficiente para viver. Tínhamos de sair de lá porque havia grande possibilidade de ataques terroristas e também de te alistarem no exército. Eu tinha 18 anos, estava em idade militar e podiam recrutar-me. Tinha de ir para a Turquia.

FOMO-NOS EMBORA, OS CINCO IRMÃOS

Uma noite, eu e o meu irmão Kahraman preparámo-nos para partir. Em princípio, teríamos de viajar sozinhos, mas, quando chegou o rapaz que tinha de nos levar pela montanha até à fronteira, falámos com os meus outros irmãos: «Há muitos perigos. O que ficam a fazer aqui?».


SAID BILAL

E o meu pai disse-nos: «Podem ir todos!», porque tinha medo de que nos recrutassem. E acabámos por ir os cinco irmãos. Todos, menos a minha irmã, porque era menor de idade e também porque é muito complicado atravessar a fronteira durante a noite. É muito perigoso; podes perder a vida. Fomos com mais cinco ou seis pessoas. Saímos às duas da madrugada. Tivemos de atravessar o rio Karasu, que tem um grande caudal. Íamos com água até à cintura, de noite, sem luz nenhuma, sem lua, todos de braço dado para aguentar a corrente. Havia muito lodo. Cheguei sem um dos sapatos. Perdi-o pelo caminho. Levávamos uma mochila pequena para trocarmos a roupa molhada, para não descobrirem que tínhamos atravessado o rio. Havia muita vigilância da polícia turca. Chegámos às seis a uma pequena povoação da Turquia chamada Kirikhan e apanhámos um autocarro até Istambul.

PASSEI TRÊS ANOS A TRABALHAR

Ao longo do caminho, nós, os irmãos, fomo-nos separando. Eu fiquei com o Kahraman. Quando chegámos a Istambul, fomos para casa de outro irmão, que tinha chegado antes de nós. Vivemos com ele dois ou três meses, e depois eu comecei à procura de trabalho. Trabalhei na construção, sem saber uma única palavra de turco. Também numa fábrica de sapatos e nos têxteis. Lá havia trabalho, mas pagavam-te seiscentos euros e sem seguro. Passei três anos

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a trabalhar e consegui poupar algum dinheiro para atravessar o mar, de patera, até à Grécia. Fui novamente com o Kahraman. Os outros dois irmãos ficaram na Turquia porque eram casados e tinham filhos. É arriscado atravessar o mar com crianças. Ainda assim, há muita gente a ir nestes barcos para a Europa à procura de uma vida melhor. A vida também é difícil na Turquia.

DA TURQUIA À GRÉCIA NUMA PATERA

Fomos de patera, com mais quarenta pessoas, desde Esmirna, na Turquia, até Mitilene, na ilha grega de Lesbos; e daí, para o campo de refugiados de Moria. Lá identificaram-nos, tiraram-nos as impressões digitais e deram-nos um cartão para podermos movimentar-nos livremente pela Grécia. Instalámo-nos fora do campo de refugiados porque não havia lugar dentro. Dormíamos numa pequena tenda de campanha, que não estava preparada para o frio. Era o mês de março e houve temporais muito fortes. Chovia toda a noite e a água entrava-nos pela tenda adentro. Alguns dias depois, fomos para Atenas. Ficámos lá dois dias no porto e conseguimos um bilhete para ir até Salónica, no Norte. Quando chegámos, fomos em direção à fronteira com a Macedónia, mas estava fechada e não pudemos passar.

O CAMPO DE REFUGIADOS

Da fronteira, fomos para o campo de refugiados de Cherso.


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GOZAVAM SEMPRE COMIGO

Quando entrei aqui, pensava que, ao sair, voltaria a ir morar com a minha mãe, mas agora, não. As coisas mudaram muito; vejo-me independente, a viver sozinha.

AQUI AJUDARAM-ME

Quando entrei na Casa de Retiro, percebi que tinha chegado o momento de descansar da vida que tinha levado. De encontrar um pouco de estabilidade.

Antes de vir para cá, pensava que talvez não tivesse sofrido assim tanto que justificasse estar aqui, mas na Casa dizem-te que tudo o que cada uma vive, seja o que for, é importante. Então, vais comparando vivências e opiniões com outras raparigas e descobres que o que a ti te parecia normal na tua vida não o era, que outras não o teriam permitido. Isso faz-te refletir; ajuda-te.


RUTH VERÓNICA CARRANZA

Se olhares para o teu interior e fizeres o trabalho que te propõem, vais em frente. Aqui ajudaram-me a fazê-lo.

SOZINHA, EU NUNCA TERIA TENTADO

Estou a estudar filologia inglesa e francesa, e agora ando a fazer o trabalho de fim de curso. Há um ano, não me atrevia a dizer: «Estou a acabar o curso e vou procurar trabalho.»

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Um dos assessores de trabalho recomendou-me que enviasse um currículo para uma academia, mesmo que não me selecionassem; mas eu não me atrevia a fazer essas coisas porque me sentia muito insegura. Não acreditava que pudessem escolher-me a mim! Agora estou a trabalhar numa academia e gosto muito. O meu objetivo era ser professora e gosto do sítio onde estou a trabalhar; estão contentes comigo. Sozinha, eu nunca teria tentado. Ficarei na Casa de Retiro até dezembro. Solicitei uma prorrogação. Quando já cá estava há um ano, pedi para ficar mais um, e aqui estou. Agora sei que poderei seguir em frente sozinha.


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A MINHA MÃE NÃO QUERIA CUIDAR DE MIM

A minha mãe foi inscrever-me outra vez na escola do bairro, mas voltaram a dizer-lhe que não me podiam aceitar porque eu tinha necessidades especiais. Então, procurou outra escola e, por fim, receberam-me. Sofri porque faziam troça de mim, mas tinha um professor que, quando as crianças se riam de mim, falava com elas para que não o fizessem. Com esse professor sentia-me muito bem; contava-lhe tudo. Era estudiosa. Era a melhor aluna da turma e toda a gente estava contente comigo. A minha mãe também.

COMECEI A FALTAR ÀS AULAS

Quando passei para a escola dos mais velhos, a minha tia — outra irmã do meu pai —, que vivia perto de nossa casa, começou a ter uma relação

mais próxima comigo. Comprava-me coisas e levava-me a passear. Entrávamos em carros de homens que eu não conhecia e dava-me dinheiro. Eu ia com ela, contente, e não dizia nada à minha mãe. Comecei a faltar às aulas e a reprovar nos exames. Quando tinha 14 anos, expulsaram-me da escola e o meu pai pediu-lhes que voltassem a admitir-me. Voltei com vontade de aprender, mas não me entrava nada na cabeça. Eu via que a minha tia ajudava sempre a filha dela a fazer os trabalhos de casa; pelo contrário, a mim dizia-me que deixasse isso e que fôssemos passear. A minha mãe, quando me via perto da minha tia, batia-me sempre. Eu sentia-me bem com a minha tia; era como uma mãe. Pensava que ela gostava de mim, mas mais tarde soube que queria vingar-se das palavras


MERIEM

que a minha mãe lhe tinha dito quando ela se separou do marido. Disse-lhe que quando a sua filha fosse mais velha, seria uma puta porque não tinha pai. A minha tia guardou essas palavras na cabeça e aproximou-se de mim para as devolver à minha mãe: «Vamos ver quem será uma puta, a minha filha ou a tua.» Fez todos os possíveis para que eu não fosse à escola; pelo contrário, a filha dela acabou os estudos e está prestes a ser doutora. Eu não sabia de tudo isto; soube mais tarde.

NUNCA ABRACEI A MINHA MÃE

A minha mãe tem uma doença mental. Gritava sempre muito e tinha de implicar com alguém, e esse alguém era eu. Às vezes eu não fazia nada, estava sentada calmamente e ela ralhava-me por algo que eu tinha feito há muito tempo e começava a bater-me. Tenho um irmão e duas irmãs mais novos, e a minha mãe nunca lhes tocou: batia-me sempre a mim. Quando tinha 15 anos, comecei a sair com rapazes. Eu não fazia nada com eles, nem os beijava nem nada; íamos só passear. A minha mãe, com o pretexto de eu sair com eles, moía o juízo ao meu pai para que também me castigasse. E o meu pai, para não ouvir a minha mãe gritar, começou a bater-me. E o meu irmão também. Nunca abracei a minha mãe.

EU QUERIA MORRER, OU QUE MORRESSEM ELES

Uma noite em que cheguei às onze, a minha mãe bateu-me muito; dava-me

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pancada contra a parede. O meu pai e o meu irmão também. Depois levaram-me ao hospital para comprovar se eu era virgem. E claro que era! À saída do hospital, a minha mãe disse-me que já não queria viver comigo e levou-me para casa de um familiar, onde não morava ninguém, e deixou-me sozinha quinze dias. Sem telemóvel, sem televisão, sem nada. Por sorte, a minha avó e a minha tia traziam-me comida. Depois, a minha avó levou-me para sua casa, mas às escondidas. Tinha medo da minha mãe porque também a tratava mal. Quando a minha mãe vinha visitá-la, eu escondia-me, mas um dia ela chegou e viu os meus chinelos. Encontrou-me, e, depois de me dar uma tareia, levou-me para casa. A partir daquele dia, fiquei em casa a tratar das tarefas domésticas, das refeições, tudo. E comia sempre sozinha. Eu vi que não podia viver assim. Queria morrer, ou que morressem eles.

DERAM-ME O VISTO PARA VIAJAR

Quando fiz 16 anos, o meu pai voltou a aproximar-se de mim. Eu mostrava-lhe como se ia ao Facebook e a outras redes sociais. Ele protegia-me e dizia à minha mãe que me deixasse em paz. Pela primeira vez, senti-me próxima do meu pai. Comprou-me um telemóvel e, quando eu me encontrava com as minhas amigas, ele vinha cumprimentá-las e conhecê-las. Dei-me conta de que o meu pai se aproximava de mim para estar com as minhas amigas. Uma delas disse-me que tinha saído com ele e que lhe tinha arrendado um quarto.


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O NOSSO SONHO ERA VIR PARA AQUI

«DEITEM-SE NO CHÃO!»

Um dia, avisaram-me de que tinha chegado o momento de partir. Juntámo-nos muitos num bosque, perto da minha localidade. Íamos em grupos de vinte ou trinta pessoas. Cada grupo levava um acompanhante, que era quem se ocupava de organizar e de verificar os nomes que tinha apontados para embarcar. Tivemos de esperar um bocado no bosque, até que se fez de noite. Então, fomos até à autoestrada, entrámos nuns autocarros e fomos para Quenitra. Ali, tivemos de correr pelo campo fora, escondendo-nos para ninguém nos ver, até chegarmos perto do mar. Agachados numa encosta, ainda esperámos três ou quatro horas. Quando vimos que a patera se aproximava da costa, começámos a correr ladeira abaixo. O comandante, que estava atrás de nós, ordenava: «Deitem-se no chão para que não vos vejam!», mas ninguém fazia caso; queriam alcançar a patera e gritavam. Quando o barco chegou à praia, uns rapazes foram a correr para o prender e dar-lhe a volta, de modo a ficar virado para o mar. Então, vimos um grupo de militares a descer para a praia, com lanternas, cães e paus. Os rapazes fugiram a correr e, no final, calhou-me a mim e aos meus amigos, em conjunto com outras pessoas, amarrar a embarcação e tentar volteá-la.

NÃO NOS ÍAMOS RENDER

Chegaram os militares e começaram a bater-nos sem meias-medidas, mas não

nos assustámos, porque o nosso futuro e o nosso sonho era vir para aqui e não nos íamos render. Eles lutavam pelo que era seu e nós, pelo nosso. O motor arrancou, mas a patera não se movia porque a hélice não tocava na água. Desci de novo e pus-me a empurrar. Estivemos a empurrar com muita força. Lá se mexeu um pouco e voltei a subir. Tens de ser como um macaco para conseguir saltar. Por sorte, como trabalhei na construção, eu tinha experiência. O motor ainda não tocava na água e os militares continuavam a bater-nos. Nós atirávamos-lhes pedras que apanhávamos do mar. Um deles queria partir o motor. Então, o comandante disse-me: «Pega nesse bidão de gasolina e atira-lho para cima.» Eu atirei-lho e deixei-o ali caído e, depois disso, já se foram embora porque devem ter pensado que íamos matá-los, que não tínhamos medo.

O MAR FICOU NERVOSO

Estive a ajudar as pessoas a embarcar: levantava-as no ar e deixava-as dentro da patera. Quando vês que há gente mais velha do que tu, fazes o que podes para ajudar, porque no final ou saímos todos ou morremos todos. O mar ficou nervoso. Começaram a formar-se ondas. Havia bastante gente na patera e o comandante disse que fossem todos para a parte de trás; então, a proa levantou-se e, por fim, a hélice afundou-se na água. Eu fui-me arrastando pelo casco da patera, para que as ondas não me levassem, e voltei a saltar lá para dentro.


OSSAMA EL GHACHOUAH

FRANÇA

Vallbona de les Monges

ESPANHA PORTUGAL

Sevilha

Lepe

Málaga

Cádis

Algeciras Moulay Bousselham

Quenitra

MARROCOS

ARGÉLIA SAARA OCIDENTAL MAURITÂNIA

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Barcelona


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DIRECIONAR O OLHAR


CINTA FOSCH

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ECOEDIÇÃO Seguimos os princípios da edição ecológica em todas as etapas do processo editorial, com o objetivo de criar objetos únicos e com o mínimo de impacto ambiental.

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DESPERTAR O ESPANTO Queremos recuperar o sentido de maravilhamento perante o mundo através das temáticas que escolhemos, com atenção aos pormenores e profundidade poética: livros com luz própria.

O SOLY veio do Senegal. A HELENA deixou a Bolívia. O SAID teve de fugir da Síria. A RUTH nasceu em El Salvador. A MERIEM foi-se embora de Marrocos, tal como o OSSAMA. O que entrelaça as suas histórias é que todos eles se viram OBRIGADOS A PARTIR. Com este livro queremos dar a conhecer seis histórias de vida, seis percursos repletos de dificuldades e desafios. Três mulheres e três homens que tiveram de emigrar explicam-nos como viviam antes; porquê e como se foram embora e como é atualmente a sua vida num novo país onde não conheciam ninguém. São histórias de superação, mas também de dor, de solidão, de acolhimento e de integração. Histórias que, apesar de tudo, acabam bem, porque alguém (pessoas ou entidades) se empenhou para que assim fosse. Os testemunhos que apresentamos incitam-nos a um novo olhar, a dar um nome e um rosto à experiência de tantas, tantas pessoas que se veem forçadas a arriscar a vida em busca de um futuro mais digno.

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LAIA DE AHUMADA CINTA FOSCH

LAIA DE AHUMADA

Nasci em Barcelona há muitos anos, tantos que até já sou avó. Tenho um espírito inquieto e fiz imensas coisas ao longo da vida: escrever, sobretudo, mas também doutorar-me em filologia catalã e impulsionar a criação de projetos sociais como o Centro Heura para pessoas sem lar, à frente do qual estive cerca de vinte anos. Enquanto escritora, publiquei aproximadamente duas dezenas de livros, cinco deles de entrevistas a pessoas ligadas ao mundo da espiritualidade, cultura e vida rural, mas ainda não tinha escrito nenhum sobre o mundo da exclusão social. É por isso que este livro é muito especial para mim, porque reúne tudo aquilo que sou e realizo e, acima de tudo, dá voz a pessoas que não são ouvidas por ninguém. E também é um livro singular porque, enquanto o escrevia, fui-me embora de onde estava, à procura de um lugar melhor onde viver. A diferença em relação aos entrevistados é que eu não me vi «obrigada a partir». Simplesmente, parti.

CINTA FOSCH

Seis testemunhos de jovens migrantes

Nasci em 1986 e sempre me rodeei de livros. Como disse certo autor, a minha pátria são os meus livros. Sou ilustradora, embora também tenha formação como historiadora da arte e me interessem muitas coisas mais: a literatura, o cinema, a música, os pássaros… O meu trabalho combina as colaborações com meios de comunicação e publicações com a criação de livros ilustrados para adultos e jovens, além dos projetos pessoais. Como ilustradora, tenho feito desenhos sobre direitos humanos, história, pensamento, informação internacional e mundo contemporâneo, que são, precisamente, os ingredientes que se encontram nas imagens deste livro.


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