Do caos à ordem No conto "O Som do Trovão" (1952) do escritor de ficção científica Ray Bradbury, quando o personagem principal pisa numa borboleta, este incidente gera resultados inesperados graves, incluindo a escalada ao poder de um líder fascista. O mote do conto é de que um pequeno detalhe, às vezes, inocente ou banal, basta para desencadear uma série de acontecimentos com consequências imprevisíveis. Em 1961, o meteorologista Edward Lorenz, trabalhando num modelo matemático para a previsão climática, constatou algo parecido. Ele viu que pequenas alterações (arredondamentos de decimais) nos dados inseridos no computador, tais como índices de temperatura, umidade e pressão, faziam com que os modelos oscilassem diversamente, se comportando fora do padrão esperado, à medida que os cálculos avançavam. A previsibilidade que sempre fora a base condicionante da física de Newton estava definitivamente comprometida. Lorenz nomeou o resultado de suas observações de Teoria do Caos. Mas falar de previsibilidade em arte talvez seja algo estranho ou, pelo menos, inadequado, desde a falência das academias de Belas-Artes do século XIX (no Brasil). Houve também, depois, um breve tempo, durante a década de 1950, que se tentou, à sombra da arte cerebrina de Max Bill e das tentativas de aplicação por aqui
In the short story “A Sound of Thunder” (1952), by science fiction writer Ray Bradbury, one small event—the main character treading on a butterfly—has some major, unexpected effects, including the rise to power of a fascist leader. The message of the story is that one small detail, however innocuous or banal it may seem, could be enough to trigger a cascade of events with quite unpredictable consequences. In 1961, when the meteorologist Edward Lorenz was working on a mathematical model for forecasting the weather, he observed something similar. He saw that minimal changes in the data inputted into the model, such as temperature, humidity, and air pressure, could cause great changes in the forecast weather as time progressed, making it behave in ways that defied expectations. The precepts of Newtonian physics and the predictability they provided were in jeopardy. Lorenz baptized the phenomenon he had discovered the “butterfly effect,” which is part of chaos theory. It is perhaps strange or, at least, inappropriate to talk about predictability in art, at least since the bankruptcy of the academies of fine arts from the nineteenth century (in Brazil). Even so, there was a brief period in 1950s Brazil when an attempt was made, under the inspiration of Gestalt theory and Max Bill’s cerebral art, to revive a constructive art guided solely by rationalism. . Such was the
aqui da teoria da Gestalt, o soerguimento de uma arte construtiva puramente guiada por preceitos racionalistas. Foi o caso, por exemplo, do Concretismo proposto por Waldemar Cordeiro e seu grupo Ruptura. Passado este momento, no entanto, os projetos girando em torno da possibilidade de uma experiência construtiva na arte brasileira, partindo de intercorrências cuja base era a abstração geométrica, ganharam diversas possibilidades que tiveram em comum a exigência de participação ativa do espectador. A origem do interesse de José Bechara pela construção geométrica remonta ao diálogo com este segundo momento (de Hélio Oiticica, Lygia Clark e outros), mas possui um desenvolvimento que o coloca numa situação diametralmente oposta. Como sabemos, para o Neoconcretismo, as experiências espirituais de Kandinsky, Mondrian ou Malevitch no campo da abstração, foram muito significativas na medida em que a pureza da formas geométricas básicas foram associadas à possibilidade de um ascetismo, de tornar o artista (ou o contemplador) "o sujeito puro do conhecimento", conforme a expressão de Schopenhauer, lido por todos eles. No entanto, Bechara não direciona o seu trabalho em pintura e escultura para este lugar, o de algum plano metafísico (ou catártico), cujo portal é a geometria euclidiana e as matemáticas que ordenam o mundo como algo certeiro. Ao contrário, ele não vê na geometria um índice de pureza ou perfeição, algo que aponte para a permanência
the case of Concretism, proposed by Waldemar Cordeiro and his Ruptura [Rupture] group. However, the movements that came afterwards, all of which drew on geometric abstraction to investigate the potential for a constructive experience of art, shared the same requirement of active participation by the viewer. José Bechara’s interest in geometric construction stems from this second moment (spearheaded by Hélio Oiticica, Lygia Clark, and others), but he takes it in a diametrically opposite direction. As we know, Kandinsky’s, Mondrian’s, and Malevich’s spiritual experiments in the field of abstraction were very significant for the Neoconcretists, because they brought together the purity of basic geometric forms and the potential for asceticism, making the artist (or viewer) a “subject of pure knowledge,” according to the idea expressed by Schopenhauer, whom all the artists read. However, Bechara’s work in painting and sculpture does not move in this direction, towards some metaphysical (or cathartic) plane accessible via Euclidean geometry and mathematics, lending a degree of certainty to the order of the world. He does not see geometry as an index of purity or perfection, something that represents the permanence of an immutable pattern to which the artist must bend in order to achieve the ultimate purity of Spirit. We might start with his choice of support, already impregnated, as it were, with worldly experiences: used tarps
permanência de um padrão imutável ante o qual o artista é que deve se dobrar, a fim de alcançar a mais prístina pureza do Espírito. A começar pela escolha de seu suporte, já impregnado, por assim dizer, de experiências do mundo, lonas usadas de caminhão (que o artista consegue pelo escambo por lonas novas) sobre as quais verte cobre ou ferro que vão se degradando, oxidando, tornando-se partícipes da matéria que os acolhe. Bechara sobrepõe, como metáfora que se dá pari passu às transformações alquímicas que realiza, a sua atitude como um artista inquieto, que viaja para diversos lugares do mundo para os quais o seu trabalho o leva, às experiências de viagens anônimas, cujos vestígios se estampam nas lonas desgastadas e sujas que ele obtém com a negociação com os caminhoneiros. As intervenções que ele provoca sobre essas lonas são guiadas por faixas ordenadas longitudinalmente (horizontais ou verticais), deixando entrever nas nesgas entre elas, partes do suporte com a sua imprimatura já selada, feita pelo vento, chuva, terra e poluição. O resultado é o de alguma aparição, como se as estruturas que surgiam das faixas, reforçadas por camadas e camadas de cor, estivessem nascendo de um conflito violento no seio da matéria. É este sentido, o da aparição, após um processo, às vezes, longo, de geração e formação, que impregna as formas geométricas elementares,
tarps (which Bechara procures from truckers in exchange for new ones). He applies copper or iron to the tarp surface, and the metal then breaks down, oxidizes, becoming part of the supporting material. At the same time that these alchemical transformations are taking place, Bechara makes a metaphor of his own restlessness as an artist who travels wherever his work takes him, superimposing this on the traces of all the nameless journeys imprinted on the worn, dirty tarps he trades from truck drivers. His interventions on these tarps are arranged along horizontal or vertical strips, allowing us to glimpse in between them parts of the support, whose surface layer, rendered by exposure to the wind, rain, mud, and pollution, is already sealed on. This results in a kind of apparition, as if the structures that emerged from the strips, reinforced by layers and layers of color, were spawned by a violent conflict within the material itself. This is what interests Bechara: this idea of apparition, even after a sometimes lengthy process of generation and formation that impregnates elementary yet imperfect geometric forms, like those of planets, moons, and other celestial bodies. And so his work emerges through chance and the outcomes of decisions or directions taken in the studio, yielding often quite unpredictable results. For Bechara, his geometries are the effects of this process of intervening in the materiality of the world, in things, rather
elementares, no entanto, imperfeitas, como a dos planetas, luas e astros cosmológicos, que interessa ao artista. A obra surge, assim, a partir do acidente e das consequências a partir de decisões ou direções tomadas no ateliê, com resultados muitas vezes imprevisíveis. Para Bechara, as geometrias são efeitos resultantes deste processo de intervenção material no mundo, nas coisas, e não pontos de partida ordenadores que inferem um status quo para a obra, antes que a mesma se realize (ou que advenha a partir daquele conflito). A ideia de que o uso das lonas usadas poderia associá-lo ao ready-made duchampiano também não procede, uma vez, que o artista se sente ligado afetivamente a estes materiais, já repletos de acidentes, e que confirmam o seu interesse pela arte como posse de algo em contínua transformação. É como se em algum momento da vida daquele material, fosse feito um corte transversal representado pela ação do artista, que passa a ser agregada como mais uma experiência que se soma às anteriores, e que, talvez, algum dia, seja encoberta por outras intervenções, de outras naturezas. Bechara não se baseia, como Duchamp, na indiferença visual como um critério para a escolha de objetos sobre os quais irá intervir. Para ele, mais do que a noção de objeto achado ou coisa pronta, o que importa é a percepção do tempo, como algo que permite pensar a geração e a corrupção das coisas e dos seres.
rather than working from pre-arranged starting points, which would imply a status quo for the work before it even happened (or arose from that conflict). Any idea that the use of old, weather-beaten tarps might indicate some affinity to Duchamp’s ready-mades would be mistaken, since Bechara confesses an emotional attachment to them. His use of these materials is indicative of his interest in art for its ability to undergo constant transformations. It is as if, through his action, he sectioned the material at some point in its lifespan, adding this new experience to all those that came before, and that this might itself be overlaid in the future by other interventions of different kinds. Unlike Duchamp, Bechara does not select the objects on which to intervene for their visual indifference. For him, it is not so much that they are found or ready-made objects, but that they help us perceive time and contemplate the creation and degeneration of beings and things. Space, as we conceive it, is simply one of the effects of time—the trace or mark it leaves in a given moment, transformed into place. Therefore, even after they are completed, Bechara’s paintings are not finished, set in stone. Rather, they serve as signposts for us to perceive the action of time on them and on ourselves, as well as how this action affects a certain space, filling it provisionally (in an instantaneous experience).
O espaço tal como o concebemos não é senão um dos efeitos do tempo, o registro ou marca que ele opera num instante determinado, transformado em lugar. Por isso, as suas pinturas não se fixam como coisas acabadas, após serem concluídas. Elas servem antes de senhas para que possamos visualizar a ação do tempo sobre elas e sobre nós, assim como o registro desta ação num determinado espaço, preenchido provisoriamente (vivenciado num átimo). Em suas esculturas se dá algo semelhante: _ Bechara, lança a figura do cubo como se fosse um dado, como o dos jogos, cujas viradas e piruetas deixam outros desenhos, como rastros no espaço, sendo transformados posteriormente em signos tridimensionais, ligados à forma de partida ou de chegada? O artista vê, assim, o espaço em torno do cubo como algo que o acompanha, fazendo as ligações com as forças invisíveis (que ele ou o processo tornava visíveis), atratoras e repulsoras e, que, por sua vez, desencadeam uma série de reações à sua volta. Não se trata mais, então, de entender a obra de arte como algo provocativo, que atrai a atenção ou mesmo a participação do espectador (fazendo vê-la, tocá-la, ouvi-la, cheirá-la), como as proposições do Neoconcretismo, porque a participação já está dada, como uma reação ativa, de perto, diante da obra, ou de longe (ainda que insuspeita), uma vez que a intervenção do artista desencadeia reverberações e interações que geram outras tantas intercorrências, sem que isso seja proposto por manifesto.
Something similar happens in his sculptures: Bechara rolls the cube shape as if it were a dice, whose twirls and pirouettes leave other marks, like traces in space, which are later transformed into three-dimensional signs, linked to the source or target form. In this process, Bechara sees the space around the cube as something that accompanies it, connecting it with unseen forces—forces of attraction and repulsion (that he or the process makes visible)— which in turn set off other reactions around them. It is no longer a matter of understanding the artwork for its power to rouse a response, to attract the viewer’s attention or even their participation (seeing, touching, hearing, and smelling it), as the Neoconcretists did, because such participation is already a given. There is an active response to the work that may be from up close or from afar (even if unsuspected), since Bechara’s intervention catalyzes reverberations and interactions that set off a host of other developments, even if this is not part of the declared purpose. We might consider Bechara’s constructive strategy in the light of Mallarmé’s poem Un coup de dés jamais n'abolira le hasard (“A throw of the dice will never abolish chance”). It is an experimental work from the perspective of both the letter (grámma), the sound of the words, and the gaps left between them. He called these gaps “prismatic subdivisions”—spaces that are not neutral, but active, because they silently impose a force of attraction on words ending with certain vowels, less so on others, making reading the poem a unique, unpredictable experience every time.
Talvez seja possível pensar na estratégia construtiva de Bechara à luz do poema de Mallarmé, "Um lance de dados jamais será abolirá o acaso" (Un coup de dés jamais n'abolira le hasard), experimental quanto ao campo ocupado pela letra, gramma, pelo som das palavras e pelas lacunas vazias, os espaços inocupados pelo texto. Ele os chamava de "subdivisões prismáticas", que eram ativas (e não neutras), uma vez que impunham silenciosamente uma força de atração a palavras terminando com certas vogais, menos, com outras, fazendo da leitura do poema uma aventura sempre singular e irregular, a cada vez que se a reiniciava. Semelhantemente, Bechara produz séries de trabalhos com oxidações que vão se modificando ao longo do tempo, justapondo um quadro ao lado do outro, mas deixando pequenos intervalos de parede que interferem, seja no campo de visão daquilo que está dentro da pintura, seja no que está ao lado, fazendo-nos tomar consciência também do espaço em que nos encontramos com a obra. À medida que nos movemos diante da parede, à frente dos quadros, estamos a participar da cadeia de ações que se iniciou muito antes, culminado com a sua instalação naquela parede e, depois, com a sucessiva sequência de acontecimentos que os levarão para algum destino incerto, mas do qual seremos sempre partícipes, sem o saber, como o homem que pisou na borboleta. Luiz Armando Bagolin Julho de 2024
Similarly, Bechara’s works engage with the transformative effects of oxidation over time, juxtaposing one painting with another while leaving small gaps of wall to interfere either with the field of vision inside the painting or with what is alongside it, making us aware of the space we occupy together with the work. As we move around in front of the wall, in front of the paintings, we become part in a chain of events that began much earlier, culminating in their installation on that wall and proceeding into the future with other events that will lead who knows where. But we will always be part of that future, without even knowing it. Like the man who trod on the butterfly. Luiz Armando Bagolin July 2024
Falar de Longe José Bechara
Fotografias / Photographs: Jomar Bragança
12 de Novembro de 2024 a 18 de Janeiro de 2025 November 12th, 2024 to January 18th, 2025
Texto / Text: Luiz Armando Bagolin
Albuquerque Contemporânea Rua Antônio de Albuquerque 885 - Savassi 30112-011, Belo Horizonte - Minas Gerais, Brasil
Tradução / Translation: Rebecca Atkinson
albuquerquecontemporanea.com ISBN: 978-65-981908-6-6
Equipe / Team: Flavia Albuquerque Lucas Albuquerque Angelita Bauer Carlos Donato Daniela Schneider Jade Liz Jackson Cardoso Julia Zanon Maria Silva Marlon Colar Raphaella Bauer Sarah James