O AT N RE
CO N RA ÃO B IÇ ELO ED ST CA
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#21 Bimestral Jul Ago 2015
R$ 15,00
DOSSIÊ – PARTE II
Mais detalhes da pesquisa sobre consumo de cultura no Piauí REPORTAGEM
Revestrés quer saber: afinal, de quem é a cidade?
POR TRÁS DAS CORTINAS A teatróloga Isis Baião questiona: que impacto a arte pode ter em um jovem preocupado com uma profissão que dê dinheiro?
A CABEÇA DO LAMPIÃO
NA KOMBI DA POESIA
GRAFITE DE PERNAMBUCO A NY
EDITORIAL
Por André Gonçalves
Retroceder nunca, render-se jamais
H
ouve quem contestasse alguns números, quem questionasse a metodologia, em alguns certo desânimo e, em outros, felizmente a aparente maioria, a percepção de que precisamos fazer algo. Na verdade, esse “fazer algo” talvez possa ser entendido de várias formas: o poder público pode fazer algo, as escolas podem fazer algo, a imprensa pode fazer algo. Até mesmo os artistas podem tentar achar novos meios de chegar às pessoas, ir aonde o povo está. Mas o que, para nós, ficou de mais marcante na pesquisa Revestrés/ Amostragem sobre o consumo da nossa produção cultural foi a percepção de que nossos artistas produzem, criam, ganham prêmios regionais e nacionais, mas não conseguem alcançar a maior parte dos piauienses. O que pode parecer desanimador pode gerar outras leituras. Como, por exemplo, a de que se mesmo em meio a tantas dificuldades somos capazes de gerar e criar arte, literatura, poesia, dança, cultura, imagine quando formos capazes de dar aos produtores de bens culturais de todas as áreas condições melhores, recursos, visibilidade. Nessa edição apresentamos a segunda parte do que chamamos de “dossiê”, o que, evidentemente, é uma pequena provocação. Além de novos dados, comentários de pessoas que leram a primeira parte e tentam contribuir com alguma reflexão. Não podemos deixar de registrar que houve ainda pessoas que, corretamente, contestaram a pesquisa afirmando que ela não foi realizada em todo o estado e que reflete “apenas” a situação da capital. Sim, sabemos disso. E esperamos que, em breve, possamos ampliar mais ainda a tentativa de leitura desse “cenário” cultural em todo o estado. Mas em um estado onde em praticamente todas as cidades não há livrarias, nem cinemas, nem galerias, nem teatros, nem nenhu-
DIRETORES RESPONSÁVEIS André Gonçalves Wellington Soares
REVISTA REVESTRÉS EDIÇÃO RENATO CASTELO BRANCO ISSN 2238 8478 / Nº21 / JULHO-AGOSTO/ ANO 4 é uma publicação da: Quimera - Eventos, Cultura e Editoração Ltda Centro Empresarial Dom João Rua Veterinário Bugyja Brito, 1229, Sala 207, Horto, Cep 64052-410, Teresina - Piauí
CONSELHO EDITORIAL André Gonçalves Wellington Soares Samária Andrade Luana Sena FOTÓGRAFOS Maurício Pokemon André Gonçalves
ma ação em favor da produção cultural além do talento, esforço e garra dos próprios artistas de todas as áreas, a situação em Teresina reflete de forma muito significativa como anda o consumo da produção cultural pelos piauienses. Isso não desvaloriza quem faz cultura e arte no interior do Piauí. Pelo contrário: mostra como são valentes, sonhadoras e talentosas essas pessoas. Além da segunda parte da pesquisa, a Revestrés #21 traz uma entrevista que achamos deliciosa de fazer, com a dramaturga Isis Baião. Esperamos que você também goste. Na reportagem, tentamos encontrar respostas à pergunta: afinal, de quem é a cidade? A quem as cidades pertencem? Fomos também conversar com um médico que é especialista em cangaço e conhece, por dentro e literalmente, a cabeça de Virgulino Ferreira, o Lampião. Também mostramos a “komboteca”, um sonho de muitos de nós feito realidade por um sonhador que pôs o pé na estrada. Temos fotografia, artigos, poesia e um bocado de coisas que nos ajudam a refletir sobre algo que fica quando esprememos os dados da nossa pesquisa: como, apesar de tudo, existe tanta gente criando, produzindo, sonhando e realizando arte e conhecimento pelo Piauí e pelo Brasil afora. Otimismo, sempre. É por sermos otimistas que já estamos na edição #21. E seguindo Foto de Capa: Maurício Pokemon em frente.
ADMINISTRATIVO Adriano Leite REPÓRTERES Luana Sena Liliane Pedrosa Nayara Felizardo Victória Holanda PROJETO GRÁFICO Alcides Júnior IMPRESSÃO Halley SA Gráfica e Editora
ASSINATURAS, ANÚNCIOS, CONTATOS, E NÚMEROS ANTERIORES Centro Empresarial Dom João Rua Veterinário Bugyja Brito, 1229, Sala 207, Horto, Cep 64052-410, Teresina - Piauí (86) 3011-2420 / 8845-6188 revistarevestres.com.br revistarevestres@gmail.com facebook.com/revistarevestres twitter.com/@derevestres instagram: @revestres
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ÍNDICE
OPINIÃO
Futebol e expressão, por Anderson David
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HOMENAGEADO DA EDIÇÃO Renato Castelo Branco, um intelectual na publicidade
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REPORTAGEM
PESQUISA
Revestrés discute os dilemas atuais das cidades
Mais dados reveladores sobre a cultura piauiense
OPINIÃO
A casa forte de Edu Lobo, por Daniela Aragão
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CRÔNICA
Verbo bárbaro, por Rogério Newton
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ADEMÃ
Adriana Varejão em Fortaleza
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FICÇÃO
A última manhã de sol de Alfredo de Lima Figueiredo
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62
Atmosfera Cerrado por Rodrigo Leite
Uma kombi circula o Brasil levando poesia por onde passa
Histórias pra botar o faroeste americano no chinelo
ENSAIO FOTOGRÁFICO
POESIA
CANGAÇO
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10 DICAS
Os preferidos de Josélia Neves
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REVESDICAS
Para ler, ver e ir
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ENTREVISTA
Isis Baião volta ao Piauí depois de 48 anos no Rio de Janeiro: “O dramaturgo coloca a alma em 20 personagens. E aja alma para se desdobrar tanto!”
FALA LEITOR
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UM OUTRO OLHAR
Poemas de Carlos Dimuro
66
70
74
Ananda Nahú, do Pernambuco à Big Apple
O cantinho - do jambo - é nosso!
Raimundinha por Yolanda Carvalho
BRASIL
GASTRONOMIA
Leio a Trip e acompanho a coluna Mundo Livre no site da revista nem sei há quanto tempo. Acho que muito tempo, na verdade. Mas confesso que nunca me ative a guardar o nome do autor. Por isso, fui ler a entrevista da Revestrés com o tal do Luiz Alberto sem nenhuma pretensão. Fui despreparada e quase não aguentei. Que história! O texto me envolveu em cada linha. Fiquei presa pela história, já o Luiz, autor da coluna que tanto gosto, ficou preso por quase 30 anos. Cuidem em
DESTAQUE
ler e depois me chamem para comentar. Não quero mais sair de dentro dessas páginas. Glenda Uchôa, no facebook Eu simplesmente adorei a entrevista. Fiquei impressionada com os relatos do entrevistado e com as perguntas bem elaboradas que prendem os leitores ao conteúdo. Sensacional. Elysangela Lyma, no facebook
Certa feita, o desenhista Albert Piauí afirmou: “Todos os que fazem cultura no Piauí são ilustres desconhecidos”. O que parecia simples desabafo de um humorista ressentido revelou-se uma verdade dolorosa. O perfil do consumidor de cultura que se desenha no “dossiê cultura” publicado na última edição da revista Revestrés, é assustador, para dizer o mínimo. [...] Na verdade, longe da nossa patota, fora do nosso gueto, somos apenas uma legião de zésninguém. Cineas Santos – jornal O Dia
COLABORADORES
Anderson Santos Opinião
Professor da unidade Santana do Ipanema/Campus Sertão da Universidade Federal de Alagoas, Jornalista e mestre em Ciências da Comunicação.
Rodrigo M. Leite Ensaio
Teresinense, é formado em Letras-Português. Desde 2010 edita o blog antológico a musa esquecida. Tem divulgado seus poemas em fanzines, livretos, blogs, revistas. tem a cidade frita, já publicada em livretos, a ser lançada sob o formato de livro ainda este ano.
Roberto Amaral Ficção
Cearense de Fortaleza, nascido em 24 de dezembro de 1939. Destaca-se como intelectual, professor, jornalista, escritor e político. Autor de mais de 20 livros nas áreas de ciência política e direito. Desde muito cedo demonstrou vocação por política e literatura. Entre suas obras literárias, despontam “Viagem” (contos) e “Não há noite tão longa” (romance), sendo apontado como um artesão da palavra pelos críticos. Reside no Rio de Janeiro há quase 50 anos.
Eu corto cabelo no seu Diola já faz seis anos aproximadamente. Mas o melhor é o papo. Tem dias que vou lá só para conversar. Gente finíssima. Dayvide Magalhães, no facebook A Validuaté é massa. Mas a Luana Sena consegue deixar essa turma ainda mais incrível! Fico imaginando como deve ser “absurda” uma mesa de bar com esses seis. Flávio Meireles, no facebook
Quem participa da Revestrés#21
Daniela Aragão
Rogério Newton
Opinião
Crônica
Mineira de Juiz de Fora, é doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio. Cantora e pesquisadora musical, com trabalhos relacionados à música popular brasileira e poesia brasileira. Publicou crônicas e artigos relacionados à música popular brasileira em sites e jornais como Suplemento Literário de Belo Horizonte, Cataguases e AcheiUSA. Atualmente possui coluna no site Acessa.com, onde publica crônicas e entrevistas com músicos, artistas plásticos e poetas.
Denise Moura RevesBrasil
Jornalista, doutoranda em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Letras e especialista em Comunicação e Linguagem pela Universidade Federal do Piauí, graduada em Comunicação Social. Adora conhecer pessoas e lugares. E fala pelos cotovelos!
Josélia Neves 10 Dicas
Artista, designer, mãe do Bento, publicitária. Sócia do Garagem Estúdio, em Teresina, fala sobre 10 coisas que julga importantes e, porque não, fundamentais.
Parabéns Revestrés pela proposta de pesquisar acerca do consumo de cultura no Piauí. Mas, uma amostra mais de Teresina. Demais cidades polos também merecem ser analisadas, há produção e consumo também no interior. O Piauí é múltiplo, a Revestrés é grande. Sucesso! Jairo Leocadio, no facebook ERRATA REVES#20: O espetáculo “Dança do Calango”, da coreógrafa Luzia Amélia, não tem figurino de Sidh Ribeiro, como informamos. O figurino foi criado por Luzia Amélia, Silvana Oliveira e Aurenir Oliveira. NOTA DA REDAÇÃO: Cartas e comentários publicados neste espaço estão sujeitos a edição.
Poeta e cronista. Oeirense (PI), publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2003), Conversa Escrita n’Água (2006) e Grão (2011).
Yolanda Carvalho Destaque
Natural do Piauí, é professora, artista plástica, ilustradora e xilogravurista. É graduada em Educação Artística e Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pós-graduada em Preservação da Arte Rupestre pela Universidade Federal do Piauí.
Carlos Dimuro Um Outro Olhar
Poeta, escritor e curador. Premiado no concurso dos 126 da Biblioteca Estadual do Rio de Janeiro, tem poemas publicados na prestigiosa antologia Poesia Sempre da Biblioteca Nacional, em antologias poéticas e sites literários. Sua poesia foi gravada pelos atores Fenanda Montenegro, Bibi Ferreira, Mariana Ximenes, Marília Pêra, Nathália Timberg, Paulo Autran, Zezé Motta, entre outros. Seus poemas fizeram parte de peças teatrais e shows..
ENTREVISTAREVESTRÉS Quem participou desta entrevista: ANDRÉ GONÇALVES PUBLICITÁRIO, ESCRITOR, FOTÓGRAFO
SAMÁRIA ANDRADE JORNALISTA, PROFESSORA DA UESPI
WELINGTON SOARES PROFESSOR E ESCRITOR
MAURÍCIO POKEMON FOTÓGRAFO
POR TRÁS DAS CORTINAS TEXTO E EDIÇÃO SAMÁRIA ANDRADE FOTOS MAURÍCIO POKEMON
Pouco conhecida no Piauí, ela foi jornalista de grande veículos nacionais e é teatróloga com peças premiadas no mundo. Mantém acesos o humor cáustico e a paixão pelo teatro: “o dramaturgo coloca a alma em 20 personagens. E aja alma para você desdobrar tanto!”
O
sol de B-R-O-BRÓ cintilava na piscina. Percorremos o bonito jardim do condomínio e seguimos até o apartamento onde Isis Baião nos recebe, em Teresina, logo oferecendo mate gelado e avisando que tem mais ventiladores em casa. Se estivéssemos em sua peça Clube do Leque poderíamos concordar com o enredo: “Na pacata cidade de ‘Maria Mole’, o calor é infernal!” - diz a sinopse. Isis Maria Pereira de Azevedo Baião nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, e viveu no Rio de Janeiro por 48 anos. Formou-se em Jornalismo pela PUC/Rio, trabalhou em grandes veículos da imprensa nacional, como na revista O Cruzeiro, e consagrou-se como dramaturga. Tornou-se figura atuante na cena cultural carioca durante décadas. Antes disso, filha de mãe piauiense e pai mineiro, viveu infância e início da adolescência em Teresina, onde boa parte da família mora. Na capital do Piauí Isis era como peixe fora d´água. “Desde pequena eu sabia que tinha de sair daqui”. Corriam os anos 60. A adolescente estudava no Colégio das Irmãs e a família tinha vida financeira confortável. Ela poderia ter se casado e organizado festas grã-finas como descreve na tragicomédia Clube do Leque. A peça foi escrita no final dos anos
70 quando Isis, já morando no Rio de Janeiro, passava férias em Teresina e constatava o seu estranhamento com o mundo à sua volta. Não entrou no Clube. Voltou ao Rio e usou o que via como inspiração para escrever. Clube do Leque recebeu o Prêmio Nacional SESI de Teatro em 1995. “Eu escrevi essa peça ouvindo os sons daqui. Minha mãe era presidente da Liga das Senhoras Católicas. Ela me disse: ‘minha filha, você não tá me retratando aí, não?!’. E eu: ‘não, mãe, nunca”. Isis continua: “Na Liga, elas realmente faziam filantropia, enquanto o Clube do Leque é uma sátira. Mas, enfim, eu fiz algumas personagens parecidas, sim” (risos). Clube do Leque está publicada no livro “Teatro (in)Completo”, de 2003, cuja dedicatória diz: “À memória de minha querida tia Arabela, que foi íntima das lequistas”. Isis pensou em fazer medicina, como o pai, mas desde cedo queria mesmo era trabalhar com teatro. Pelo reembolso postal, comprava livros sobre teatro. A ideia assustava a família. “Então, como eu queria que me deixassem estudar no Rio, optei pelo Jornalismo, atendendo a um outro amor: a escrita”. Conta que nisso teve influência do pai, hábil com as palavras. Em 1970, formada, ganhou de presente dos pais uma viagem à Europa. Passou quatro meses em Londres e, www.revistarevestres.com.br •
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como já era repórter de O Cruzeiro, enviava de lá matérias para a revista. “Londres era fascinante e mexeu com a minha cabeça”, conta. Terminado o período londrino, a jovem jornalista volta ao Rio de Janeiro. Seu amigo Sérgio Britto, ator, lhe fala de um laboratório de teatro para jovens atores. Ela vai conferir como jornalista, mas logo se junta à turma de candidatos a artistas. “Alguns dos meus colegas tornaram-se famosos”. E cita: Regina Casé, Hamilton Vaz Pereira, Patrícia Travassos, Luiz Fernando Guimarães e toda a turma do Asdrúbal Trouxe o Trombone (grupo de teatro que revelou jovens talentos e marcou a dramaturgia brasileira, em especial a comédia). Após a experiência, Isis conclui que ser atriz não era bem o que ela queria fazer no teatro. Mas o que seria então? “Foi Ângela Leal (atriz) quem matou a charada, perguntando-me: por que você não escreve pra teatro? Como que eu nunca tinha pensado naquilo! Comecei e nunca mais parei”. A crítica aponta que o estilo de Isis é o humor satírico. Ela faz críticas à sociedade brasileira, com textos inteligentes e enxutos, usando a comédia. “Mas não é uma comédia confortável. Ela faz rir com humor cruel e leva à reflexão crítica”, disse Ana Maria Taborda, diretora e crítica de teatro. Há menos de um ano de volta a Teresina, Isis tenta encontrar afinidades. Frequenta os programas culturais - que diz serem a sua praia - onde poucos a reconhecem. Não faz disso uma reclamação: “O ator é que costuma ser reconhecido, não o autor”. Suas queixas ficam para o sol implacável, que entra pelas janelas e desbota fotografias na parede. Em molduras, cartazes de peças e registros de premiações, como o “Onassis International Cultural Competitions”, que recebeu em Atenas, Grécia, em 1997. Com a peça Casa de Penhores, traduzida para o francês como Mont-de-Piété, Isis foi um dos sete escritores premiados naquele ano. Participaram do concurso 1.470 autores de 76 países. No pequeno apartamento, livros seguram portas, prevenindo as ventanias que vez ou outra varrem Teresina essa época do ano. Entre as lembranças da vida de repórter e entrevistadora, a fotografia com Leila Diniz. Mas ela conta que a entrevista mais marcante foi mesmo a primeira que fez na vida, “uma prova de fogo”. Na época havia uma espécie de trote com os “focas” (jornalistas em início de carreira), que eram pautados para os trabalhos mais difíceis. Isis foi escalada para entrevistar o dramaturgo Nelson Rodrigues, famoso por sua impaciência com jovens repórteres. “Fiquei em pânico, mas segurei a onda. A entrevista saiu na primeira página do caderno de cultura de O Jornal” (O Jornal pertenceu a Assis Chateaubriand e teve circulação de 60 mil exemplares por dia). Isis convida a sentar na sala e aponta o nosso gravador: “Às vezes o equipamento pode inibir, especialmente quem já foi jornalista. Eu entrevistei muito!”. “Então já sabe as artimanhas, né?”, digo. Isis vira-se para Maurício: “E também já fui fotógrafa. Eu sei o que é isso” (risos). 10 • www.revistarevestres.com.br
(EM TERESINA) ME PARECE, QUEM TÁ PRODUZINDO OU CONSUMINDO CULTURA SÃO AS PESSOAS MAIS SIMPLES E NÃO AS PESSOAS COM GRANA. Samária – Você viveu por anos a cena cultural carioca. Há menos de um ano no Piauí, consegue avaliar o panorama cultural de Teresina? Isis Baião – Eu fico constrangida de fazer uma avaliação porque são cidades muito diferentes e eu estou em Teresina há pouco tempo. Mas posso falar de impressões. Tenho ido a eventos culturais e me parece que as pessoas da Zona Leste pouco se interessam por cultura. E a Zona Leste é a área que concentra as pessoas de maior poder aquisitivo em Teresina. Então, parece correto supor que as pessoas de classe média-alta na capital do Piauí não se interessam por cultura. No Rio, quem mais frequenta eventos culturais são os moradores da Zona Sul, que, além de concentrar pessoas de maior poder aquisitivo, congrega também artistas e intelectuais. Em Teresina há como uma separação. E, me parece, quem tá produzindo ou consumindo cultura são as pessoas mais simples e não as pessoas com grana. André – Partindo dessa impressão, se em Teresina há um distanciamento entre quem produz e quem pode consumir cultura, isso interfere na produção das artes? IB – Sim, e em vários aspectos. Por exemplo: os jornais locais dão muito espaço às colunas sociais. Isso significa que os leitores valorizam essas informações. Eu pergunto: quem é que sai nessas colunas sociais? E quem assiste às peças criadas e produzidas aqui? Eu acho que se a elite passasse a prestigiar o teatro, os jornais também dariam mais espaço ao teatro. O fato de, no Rio, o público de teatro ser preferencialmente de pessoas mais abonadas, também gera reflexos que nem sempre são positivos. Todos os públicos são importantes. Na Europa todo mundo vê teatro. No Brasil, a frequência ao teatro ainda é muito baixa.
Wellington – O que lhe motivou a deixar o Piauí há tantos anos? IB – Teresina hoje é outro local! Na metade dos anos 60 a cidade me sufocava. Era uma cidadezinha acanhada, que eu tinha e ainda tenho comigo, inclusive no meu coração. Eu achava que não podia ter asas, teria que ser como todas as mulheres que eu via. Eu era ainda muito criança e dizia: “eu não vou ser submissa”. Será que eu já era feminista? (risos). Porque havia uma submissão enorme das mulheres aos homens. Embora hoje não se possa mais comparar, ainda há uma matriz feudal muito forte no Nordeste (faz pausa e continua de modo mais lento). Eu tinha a sensação de que precisava ir embora. E um dia eu fui embora. Wellington – O que representa o seu retorno? Você veio em busca de quê? IB – Há algum tempo eu queria sair do Rio, porque acho que a cidade se tornou muito agressiva. Continua linda, mas problemática para se viver. Juntei essa sensação a emoções pessoais e, em 2014, vim para Teresina fugindo do movimento da Copa do Mundo (a capital do Piauí não teve jogos durante a Copa). Eu queria passar mais tempo com meus irmãos que vivem aqui. E comecei a achar interessante voltar a morar em Teresina. Eu acho que no Rio tudo já foi feito - ou eles pensam que foi. Então as pessoas ficaram um tanto blasé, como se tudo fosse déjà-vu, e isso não é verdade! Até porque “tudo” não foi feito em nenhum lugar do mundo! (fala com ênfase). Sempre há alguma coisa a se fazer, a criatividade humana é uma fonte que não seca. Em Teresina há hoje um sentimento que é o inverso: as pessoas acham que tudo está por fazer. E isso também não é verdade. Eu vejo trabalhos maravilhosos aqui! Então aqui tem muita coisa, mas tem
também uma consciência de que falta fazer muita coisa. Aqui as pessoas querem fazer! Isso é motivador. André – O teatro concorre com os apelos da televisão, da internet, da tecnologia cada vez mais avançada. O que o teatro tem de diferente ou importante que se possa falar: “você não pode deixar de ir ao teatro”? IB – A presença física do ator. Essa talvez seja a maior magia e o que há de mais forte no teatro. E não há nada mais desastroso que um mau ator. Um mau ator não compreende o texto, diminui e pode até acabar com o texto. Como linguagem, a dramaturgia do teatro é a mãe das demais dramaturgias: do cinema, da televisão, da internet. O teatro é uma arte completa: trabalha com literatura, artes plásticas, música, dança. É do teatro que vem tudo! (fala com empolgação). Cada veículo tem o seu espaço. O cinema, por exemplo, tem o fascínio da imagem, mas eu continuo a achar que a força da palavra, trazida pelo teatro, é incomparável. Houve uma época em que ficou na moda fazer teatro sem palavras, usando mais expressão corporal, mas isso logo passou. Porque teatro é, sobretudo, texto. O teatro depende muito mais de um bom texto do que o cinema e a televisão. Porque, com a imagem, você pode mascarar um texto medíocre. Mas no teatro é difícil. Uma coisa comum ao teatro, cinema e tevê é que se trata de uma arte coletiva. Eu faço um texto, mas dependo do ator, do diretor, e eu quero que cada um acrescente ao meu texto. Eu não quero um diretor que faça ao pé da letra o que eu digo nas minhas rubricas. Samária – Qual a maior dificuldade hoje para alguém que escreve teatro? IB – A luta para montar suas peças. E é uma luta inglória, porque a montagem de www.revistarevestres.com.br •
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SE A ELITE PASSASSE A PRESTIGIAR O TEATRO, OS JORNAIS TAMBÉM DARIAM MAIS ESPAÇO AO TEATRO. uma peça requer uma grande quantia em dinheiro. No Rio, uma montagem de meio milhão não é nada. Samária – Um tipo de produção que tem alcançado espaço nos teatros do eixo Rio-São Paulo são os musicais que, em geral, são muito caros. O que você acha desse crescimento dos musicais? IB – Tem musicais muito bons! Recentemente achei lindíssimos os musicais sobre Elis Regina (Elis, a musical) e com as músicas do Chico Buarque (Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 minutos). Mas há outros muito americanizados que eu realmente não gosto. Montar alguns desses musicais exige cifras de mais de um milhão. Mas tem público e os produtores conseguem. André – Aparentemente o teatro sofre menos pressões do mercado que a televisão ou o cinema. Talvez por isso possa se constituir num espaço privilegiado para a crítica ou a transgressão e questionamento de comportamentos, costumes. O Teatro tem esse papel de crítica e de provocar reflexões? IB – O papel do teatro, como das artes em geral, não é o de reproduzir, mas o de discutir a vida, sobretudo de uma maneira crítica. Vejo hoje uma volta ao conservadorismo assustadora. Quando se fala em protesto, em contestação, isso tem um sentido muito diferente do que tinha nos anos 60, 70, quando existiu toda uma contestação de costumes, posturas, da moral, houve a revolução sexual. Até a postura em relação às drogas era política, pois tinha o sentido de uma transgressão. Agora, se você me pergunta o que o teatro deve fazer hoje? Eu sinceramente não sei. Eu acho que não saímos ainda da perplexidade - autores, atores, diretores. Não acho que a saída é você fazer o teatro de sátira política, porque isso é muito fácil. Aliás, o que tem de personagem é uma beleza, né? Mas eu me pergunto: como demonstrar isso em ter12 • www.revistarevestres.com.br
mos existenciais? O que o avanço do conservadorismo representa para gerações e gerações? E como isso pode ser discutido? Eu fico triste quando vejo jovens desinteressados, que não sabem o que desejam fazer da vida, e escolhendo uma profissão não por gostar de fazer aquilo, mas pensando no que dá mais dinheiro. Eu acho isso de um conservadorismo gigantesco! E é um conservadorismo ligado ao capitalismo, que está transformando esses jovens em pessoas sem sonhos. Como é que nós vamos viver sem sonhos? Como você transforma as ciências, as artes, sem sonhos? O que sempre fez surgir coisas novas foi a loucura, a imaginação das pessoas. André – Você disse que ficou impressionada com os números apontados na pesquisa Revestrés/Amostragem (veja segunda parte da pesquisa a partir da página 36) que revelaram pouco conhecimento e consumo de cultura em Teresina. Você acha que podemos estabelecer uma ligação no que você considera um desinteresse pelos sonhos e a pouca frequência ao teatro ou exposições de arte, que, em tese, são espaços de sonhos? IB – Como vai ser impactado pela arte o garoto que tá interessado em ter uma
Isis, quando entrevistou Leila Diniz para a revista O Cruzeiro
profissão que dê dinheiro, casar com uma moça bonitinha - de preferência da alta sociedade - e ter filhos que serão criados do mesmo jeito que ele foi? O que é o teatro pra ele? Nada! (fala com ênfase). Talvez um bando de maluquinhos que ficam fazendo coisas sem sentido. E grande parte desses jovens é convicta de que isso é o certo e pronto. Eles não se questionam nem questionam nada, absorvem o que veem, e veem uma sociedade onde o que interessa é dinheiro, ter um belo carro, apartamento, uma casa. Vejo pequenos robôs, sem resposta, e isso me aflige muito. Wellington – Você considera que o teatro tem influência sobre a televisão? IB – Acho muito bom quando isso acontece, mas no Rio eu vejo o contrário: o teatro imitando a televisão. Acho um absurdo quando as pessoas que fazem teatro consideram que o público quer ver no teatro o que já vê na tevê. Agora, quando a tevê usa o teatro, pode ter resultados muito bons, como Dias Gomes, que era originalmente autor de teatro e fez novelas maravilhosas! Já temos roteiristas de tevê muito bons como João Emanuel Carneiro, que fez A Favorita – eu gostaria de ter escrito aquela novela! -, Avenida Brasil, e agora A Regra do Jogo. Ele traz uma dramaturgia
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NO RIO TUDO JÁ FOI FEITO - OU ELES PENSAM QUE FOI. ENTÃO AS PESSOAS FICARAM UM TANTO BLASÉ, COMO SE TUDO FOSSE DÉJÀ-VU. EM TERESINA HÁ UM SENTIMENTO QUE É O INVERSO: AS PESSOAS ACHAM QUE TUDO ESTÁ POR FAZER.
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diferente, escreve novelas sem enrolação, apresenta um conflito e fecha o conflito no mesmo dia. André – Algumas pessoas consideram que a novela se tornou um gênero de dramaturgia que o autor brasileiro consegue dominar como ninguém. Outros dizem que novela não é dramaturgia ou que talvez seja um gênero menor. O que você acha? IB – Novela é folhetim sim, mas é dramaturgia também. Acho preconceituoso dizer que novela não é dramaturgia. São formas diferentes - no teatro, no cinema, na novela - mas tudo é dramaturgia. O que existe é a boa e a má dramaturgia. No teatro também há péssima dramaturgia, e algumas fazendo sucesso. Wellington – Você sente falta de uma presença maior do teatro nas escolas brasileiras? IB – Claro! A gente debocha um pouco dos americanos - e realmente eles têm coisas terríveis -, mas todas as universidades e escolas americanas têm teatros e investem na cultura. O que nós temos de teatro nas escolas no Brasil é muito pouco, uma ou outra iniciativa isolada e, quando existem, enfocam os atores, não os escritores de teatro. Samária – Como você define o seu teatro? IB – Eu gosto de pensar o meu teatro como latino-americano, tem um tom ultrarrealista sendo, ao mesmo tempo, muito brasileiro. Só agora nós, brasileiros, estamos tendo uma consciência maior de sermos América Latina. Isso é muito novo no Brasil, porque a gente achava que era Europa, né? (risos) E nosso teatro era muito europeu. Na história do Teatro no Brasil se considera um marco a peça “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues (encenada pela primeira vez em 1943). Na verdade, ela foi dirigida por Ziembinski, que era polonês, mas que fez um teatro extremamente carioca, uma tragédia suburbana. Quando Juver Salcedo veio da França ministrar cursos de teatro no Brasil, as pessoas tinham a expectativa de que ele daria sua contri-
O TEATRO DEPENDE MUITO MAIS DE UM BOM TEXTO DO QUE O CINEMA E A TELEVISÃO. COM A IMAGEM, VOCÊ PODE MASCARAR UM TEXTO MEDÍOCRE. MAS NO TEATRO É DIFÍCIL. buição ao teatro no Brasil, e ele disse: “Eu não tenho como ensinar teatro a vocês. Descubram o teatro de vocês!”. Enfim, acho que estamos descobrindo nosso teatro, mais brasileiro, mais latino-americano. Dentro desse universo, meu lance é com a criação de textos. Eu não seria atriz, nem diretora. Não é fácil lidar com o ator. Exige liderança, convencimento, paciência. E é compreensível que não seja fácil: você tá pedindo que a pessoa tire a alma e a coloque ali, em cena! André – Se o ator coloca a alma em cena, o que o autor de teatro entrega ao público? IB – A grande diferença é que ator vive um personagem, ele tem aquele personagem para colocar a alma, o que já é bastante difícil. Já o dramaturgo coloca a alma em 20 personagens importantes. E haja alma para você desdobrar tanto! Porque cada personagem tem a sua linguagem, a sua maneira de pensar, de agir - que não é a mesma coisa: às vezes pensamos de uma maneira e agimos de outra. O personagem é uma pessoa, tem que ter uma credibilidade, pulsar, ser convincente. E tem que ter muito cuidado pra não botar você, a não ser que você seja o personagem, claro. Porque você se arrisca a fazer o que a gente chama de “fala de autor”, você coloca na boca do personagem uma fala que não é dele, é sua. Isso é péssimo, e é incrível como o público percebe. Mesmo quem não conhece teatro - mas entende de emoção, né? - vai sentir na hora. É uma trabalheira, viu? (suspira). Mas é extremamente prazeroso. Samária – E há algum sentimento ou sensação pessoal após concluir uma peça? IB – Eu me sinto esvaziada (fala como se estivesse cansada). Fico triste, às vezes
com certa depressão. É como se tivesse me despedindo de um monte de gente. Uma vez fiz um curso com um roteirista francês e ele disse que quando começava a escrever tinha necessidade de ir para todo lugar com os personagens. Ele tinha um carro pequeno e era uma loucura, porque não cabia tanta gente, então ele escolhia os personagens que iam passear (risos). Quando ouvi isso, pensei: é exatamente assim. Eu ando com meus personagens, faço caminhadas, vou ao supermercado, eu ouço o que eles falam, acompanho os diálogos, vejo como se comportam, as palavras que usam para falar - e não adianta sinônimos, cada personagem tem as suas palavras. Wellington – Você dedicou toda a sua vida ao teatro. Por fim, eu lhe pergunto: valeu a pena? IB – Nunca me arrependi. Pelo contrário, apesar de toda a luta - porque é uma luta, sim - eu não tive nenhum dia em que achasse que poderia ser outra coisa que não teatróloga. O teatro entrou na minha vida de uma maneira tão forte que eu sonhava com teatro antes de ver teatro. Eu quero ver minhas peças montadas, quero fazer sucesso, mas não é só isso: eu amo todo o processo, desde os ensaios, eu tenho necessidade disso, entende? (fala com ênfase). Com o tempo, você não sabe muito bem se escolheu uma profissão ou se ela aconteceu. Eu acho que teatro na minha vida foi acontecendo. E eu gostaria que tivesse acontecido ainda mais. Tenho peças boas que nunca foram montadas. Mas eu não paro, continuo a escrever quase todas as noites e continuo a batalhar para montar minhas peças. Nessa volta ao Piauí eu trago uma vontade muito grande de fazer um trabalho de teatro aqui, como nunca fiz. E eu acho que eu vou conseguir. www.revistarevestres.com.br •
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Qualquer semelhança é mera coincidência?
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peça Clube do Leque foi escrita por Isis Baião no final dos anos 70, depois que a escritora passou férias em Teresina e encontrou, no cotidiano da cidade àquela época, os sons e a inspiração para os personagens. A história se passa na provinciana e quente cidade fictícia de “Maria Mole”, onde senhoras da sociedade local se ocupam ajudando a pobreza distante e competindo entre si para saber quem é mais filantropa. Há pobreza bem próxima, sim, mas elas não dizem respeito àquelas senhoras. Entre os personagens, também há duas empregadas domésticas e uma jornalista, colunista social, que apresenta o programa “Por dentro do society”. Alguns trechos do texto: HERMENGARDA (PRESIDENTE DO CLUBE DO LEQUE) - Telefona para Helô e para Beatriz. Quero reunir a Diretoria do “Leque” hoje mesmo. CANDINHA - A Beatriz foi pra fazenda dela. HERMENGARDA - Hoje? Por quê? CANDINHA - Você não sabia? A piscina arrebentou! HERMENGARDA - Como? CANDINHA - Arrebentou e matou o filho do vaqueiro. HERMENGARDA (ENOJADA) – E ela permitiu que o filho do vaqueiro tomasse banho da piscina dela? CANDINHA - Não, ele tava perto quando arrebentou. Morreu na enxurrada. HERMENGARDA- Ah! Coitada da Beatriz, uma piscina tão cara! *** Três amigas do Clube do Leque conversam: HERMENGARDA – Enquanto não tirarem aquela favela imunda da periferia da cidade!... Aquela gente já nasce assaltando! HELÔ – Ainda bem que esse prefeito é homem de verdade! Vai mesmo acabar com aquela promiscuidade no Morro do Monturo. CANDINHA - Pra instalar a usina nuclear, é verdade? HELÔ- Claro. Você não lê jornais? Teremos uma usina nuclear, como todos os povos civilizados!
(NA TELEVISÃO, TAMARA, REPÓRTER, ENTREVISTA O FAVELADO JESUÍNO). TAMARA – Vocês vão ou não vão sair daqui? JESUÍNO – Sair pra onde? A gente não tem pra onde ir. Como é que pode, dona, tirar a gente pra botar usina? Semos 15 mil... D. HERMENGARDA DESLIGA A TELEVISÃO. HERMENGARDA - Chega! “Semos”, que horror! HELÔ – Ai, tenho medo desse povo. Eles têm raiva da gente. HERMENGARDA - Eles têm ódio. Nos pagam a caridade com a ingratidão. CANDINHA - Talvez nos invejem... São tão pobres, coitados... HERMENGARDA - E por que não trabalham pra melhorar de vida, hein? HELÔ - O pior é que essas “negas” estão ficando cheias de empáfia! HERMENGARDA - Pudera! São essas ideias modernas... Entrevistar favelado, onde já se viu! Antigamente os pobres eram humildes e felizes. Agora estão revoltados, agressivos. CANDINHA - É! Quando eu me casei tinha uma cozinheira que cantava o dia inteiro. As empregadas hoje nem cantam mais! *** (A JORNALISTA MARGOT É COLUNISTA SOCIAL DA TV ODC ORDEM, DEMOCRACIA E CULTURA. ELA FAZ A COBERTURA DA FESTA DO CLUBE DO LEQUE, QUE ACONTECE NO YATE CLUBE DE MARIA MOLE. A CONTRAGOSTO, SEGUE A ORDEM DA TELEVISÃO, QUE PEDE QUE ELA CUBRA TAMBÉM A MANIFESTAÇÃO DOS MORADORES DA FAVELA DO MONTURO, QUE ACONTECE EM FRENTE AO YATE CLUBE) MARGOT – Eles trazem faixas e cartazes. Vê se focaliza. Olha aí, olha aí. “Não somos lixo que se joga fora”, “A fome é mariamolense”. Que loucura, reivindicando a fome! Este senhor aqui. O senhor está protestando por quê? É comunista? Que profissão o senhor tem? VOZ (OFF) – A de pobre, madame. MARGOT- Olha como ele tem senso de humor!
OPINIÃO
A (falta de) liberdade de expressão nos esportes O FUTEBOL É RECHEADO DE CASOS EM QUE JOGADORES FORAM PROTESTAR EM RELAÇÃO A ALGUM FATO POLÍTICO OU POR MOTIVOS RELIGIOSOS E FORAM PUNIDOS DE REALIZAR TAL ATO PORQUE A FIFA, ENTIDADE PRIVADA, NÃO PERMITE.
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s Jogos Pan-Americanos de 2015 tiveram como um importante fato comentado do “Time Brasil” a continência batida por vários atletas brasileiros que subiram ao pódio em Toronto. Dentre os argumentos críticos, a preocupação com o momento – com discursos por golpe/ intervenção militar no Executivo. Da defesa, o fato de esses atletas serem militares e seguirem o código da instituição, que os ajuda financeiramente. A Organização Desportiva Pan-Americana (ODEPA) permite que coisas assim aconteçam, ao contrário do Comitê Olímpico Internacional (COI), assim, não veremos isso aqui no Rio de Janeiro no ano que vem. Mas o problema não é uma expressão, mas a proibição de outras. Antes de ir ao evento, a nadadora Joanna Maranhão, que se posicionou contra a maioridade penal em suas redes sociais, gravou um vídeo dizendo que não representaria os eleitores dos deputados Jair Bolsonaro e Eduardo Cunha e os seguidores do pastor Silas Malafaia. O Comitê Olímpico Brasileiro (COB) anunciou que proibiria que os membros do “Time Brasil” se posicionem durante o Pan, mesmo em seus perfis em mídias sociais. O futebol é recheado de casos em que jogadores foram protestar em relação a algum fato político ou por motivos religiosos e foram punidos de realizar tal ato porque a FIFA, entida-
de privada, não permite. Entendendo nisso o mesmo sentido da publicidade para além da formal – como a da propaganda da cueca de Neymar durante a Copa das Confederações, em 2013. Ambos poderiam atrapalhar seus negócios, seja diretamente na perspectiva econômica ou pelas relações político-institucionais estabelecidas, inclusive, com países em que democracia e transparência não são palavras válidas. Em 2011, em meio ao boom da campanha “#ForaRicardoTeixeira”, então presidente da CBF, torcedores foram proibidos de entrar nos estádios com estes dizeres em pequenas faixas. Em outros torneios nacionais, árbitros pararam jogos ao verem faixas nas arquibancadas criticando a arbitragem nacional, com a bola só rolando com a retirada delas. Dois anos depois, com o movimento de jogadores por melhores condições de trabalho, o Bom Senso F.C., ocorreu algo parecido. A ideia era demorar um minuto antes das partidas de determinada rodada do Campeonato Brasileiro em protesto à organização do futebol no Brasil. Alguns árbitros foram orientados a punir com cartão quem atrasasse a partida, fazendo com que os jogadores mudassem a tática, tocando a bola bem devagar. Acabamos nos acostumando a não ouvir protestos e mais respostas a entrevistas com “foi tudo como o
professor pediu, a gente se esforçou e o que importa é os três pontos”. Quando há jogadores mais críticos, casos de Afonsinho nos anos 1970 e de Rogério Ceni, nas últimas décadas, a tendência é tratarmos com mau humor tais figuras, que vão de encontro ao estereótipo dos boleiros. Um exemplo clássico é a Democracia Corintiana. Engajados nas Diretas Já, Sócrates, Wladimir e Casagrande tiveram histórias diferentes depois de suas carreiras dentro de campo, com o primeiro mantendo mais o discurso crítico sobre o futebol. Dos craques do esporte, só Maradona foi questionador. Dentre outros momentos, reclamou dos jogos com sol a pino na Copa do Mundo do México, em 1986, promovida pela TV Azteca. É um caso importante pois, acrescido aos problemas com drogas, seu posicionamento político mais à es-
querda o fez ser visto com maus olhos fora da Argentina e de Nápoles. Entretanto, o problema não está só no protesto. No Brasil, dentre as coisas boas com as novas arenas está a proximidade do público com os jogadores. A primeira reação de muitos após o gol é subir as escadas ou se aproximar dos torcedores, um pouco acima, para os abraçar. Quer dizer, era. A CBF proíbe que isso ocorra, com os árbitros dando cartão amarelo para o jogador que fizer, justificando o fato para garantir a “segurança”. Além de uma série de outras proibições de como se deve comemorar o principal momento do futebol. Antes de mais nada, seja a ODEPA, o COB, CBF ou FIFA é preciso entender que se trata de entidades paraestatais que controlam os esportes, juridicamente com independência a quaisquer Estados, em alguns casos
proibindo qualquer interferência destes. O football association, por exemplo, é propriedade da FIFA e cabe a ela ditar as normas de sua prática profissional, forçando que profissionais e espectadores deste esporte tenham que se submeter às suas regras, mesmo numa norma básica que deveria ser a liberdade de se expressar. Não à toa que mexer nessa estrutura é muito difícil – como comprova a dificuldade do Governo federal para conseguir aprovar a Medida Provisória do Futebol com alterações estruturais mínimas. A gerência da prática profissional do esporte normalmente é conservadora e não democrática. Assim, expressar-se só é permitido quando convém, mesmo em tempos de mídias sociais. Anderson Santos Jornalista, professor e mestre em Ciências da Comunicação.
OPINIÃO
A casa forte de Edu Lobo A SABEDORIA E HUMILDADE DO JOVEM EDU LOBO O LEVARAM, NA DÉCADA DE SESSENTA, A DEIXAR OS PALCOS E OS APELOS DA GRANDE INDÚSTRIA DE CRIAÇÃO DE ÍDOLOS. ELE SAIU SILENCIOSAMENTE DE CENA NO MOMENTO EM QUE ERA EXALTADO COMO O GALÃ COMPOSITOR BICAMPEÃO NA ERA DOS FESTIVAIS.
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eixei o ano passado esvair sem que conseguisse escrever sequer uma linha em homenagem a um dos mais esplêndidos músicos deste país: Edu Lobo. Diante de artistas muito grandiosos, encolho-me bem aos moldes de mineira tímida e desconfiada. Trata-se de certo pudor comportamental, existencial, seja lá o que for, receio tocar em mitos. Passei cerca de quatro meses ouvindo o último CD de Chico Buarque até que ele adentrasse inteiramente por todos os meus poros, daí então tomei coragem e celebrei numa crônica seus setenta anos. Milton Nascimento é outra entidade, entre os septuagenários que ocupa minha alma faz tempo, com “Milagre dos peixes”, “Minas”, “Clube da esquina” e “Sentinela”. Vou prolongando as audições, adiando o fatídico momento do embate com o deserto da página em branco. Como é manhã de julho com céu muito azul e sol quente, ouço as crianças do prédio vizinho fazendo mil arruaças nesse momento “refrescante” de férias. Ponho para tocar “O grande circo místico”, obra prima da parceria Edu Lobo e Chico Buarque e tento, ao menos em minha imaginação, apaziguá-las com um banho de lirismo. Começo por “A história de Lily Braun”, a gravação definitiva de Gal Costa que embalou boa parte de meus sonhos adolescentes: “Como num romance/O homem dos meus sonhos/ Me apareceu no dancing/Era mais um/ Só que num relance/Os seus olhos me chuparam/feito um zoom”. Colocava na vitrola essa faixa para tocar inúmeras vezes e ficava tentando reproduzir da
melhor maneira possível os agudos afinados e extensos que Gal brilhantemente ia entoando no final da canção. Certamente é uma aula de música ouvi-la acompanhada pela pulsante Big Band. Não sei qual impulso motivou décadas após este primeiro registro, a regravação quase simultânea desta música pelas cantoras Maria Gadú, Maria Rita e Mônica Salmaso. Há músicas que subitamente readquirem valor num revival cult, vá lá entender. Cada uma com sua leitura própria, mas que a meu ver ficam aquém da versão original. Parece-me que faltam nas novas versões o brilho e o vigor que Gal conseguiu alcançar, possivelmente devido ao fato de que sua gravação fazia parte de um amplo contexto, ou seja, a história do álbum “O grande circo místico”. O disco “O grande circo místico” evolui numa espécie de encadeamento temático que nos transporta para o comovente universo do circo com seus personagens belos e sedutores (Ciranda da bailarina/ A história de Lily Braun), assustadores e trágicos (A bela e a fera), cômicos e tristes (Valsa dos clowns). O tênue fio da vida sustentado pelo sonho dos passos perfeitos da bailarina e pela máscara feliz do palhaço, que no escuro da cena esconde suas lágrimas de neblina, ai Gelsomina Giulietta: “Não/Não sei se é um truque banal/Se um invisível cordão/Sustenta a vida real”. A vida com suas chegadas e partidas que deixam a ânima do artista e do público borbulhando de dor, alegria, prazer e saudade. Meio tontos e lambuzados de cores, poeiras, brilhos e suores, na bagagem da
luta infinda prosseguem os artistas-malabaristas: “Voar, fugir/Como o rei dos ciganos/Quando junta os cobres seus/ Chorar, ganir/Como o mais pobre dos pobres/Dos pobres dos plebeus/Ir deixando a pele em cada palco/e não olhar pra trás/E nem jamais/jamais dizer/ Adeus”. A parceria entre Edu Lobo e Chico Buarque não se esgota em “O grande circo místico”. Continua em outras peças como “O corsário do Rei”, “Dança da meia-lua” e “Cambaio”, além de uma profusão de composições sublimes como “Choro bandido”, “Valsa Brasileira” e “Moto contínuo”. Nos tempos de agora, intensamente e brutalmente o sucesso, a fama e o estrelato destituído de qualquer filigrana de talento consistem no imperativo da ordem capitalista do show business. A sabedoria e humildade do jovem Edu Lobo o levaram na década de sessenta a deixar os palcos e os apelos da grande indústria de criação de ídolos. Ele saiu silenciosamente de cena no momento em que era exaltado como o galã compositor bicampeão na era dos festivais. Edu não se deslumbrou com o sucesso e recolheu-se para estudar música profundamente, garantiu assim a custo de muita dedicação e talento, domínio pleno dos quesitos harmonia, melodia e arranjo instrumental. Em depoimento registrado na recém-lançada biografia escrita por Eric Nepomuceno, o compositor revela: “... eu tinha grande dificuldade na hora de explicar para os arranjadores o que esperava. No meu primeiro disco, por exemplo, eu não conseguia dizer para o Luiz Eça o que eu queria com a música. Como não sabia ler partituras, acabava usando palavras absurdas. Tentava inventar um dialeto que fosse compreensível. Dizia, por exemplo: “Luizinho, eu queria que você começasse com um acorde mais gordo, e depois ir afinando...”. Ora, ninguém entende isso. Eu ficava com pena dele e com vergonha de mim. Então, aprender a ler música mudou minha vida. Para um músico, isso é como aprender a ler palavras. Tenho orgulho da minha coleção de partituras - capto tudo que tenho de captar,
não me distraio, não perco o rumo”. Percorrer a fundo a obra deste engenhoso músico demanda entrega e sobretudo, apuração auditiva. Edu Lobo é um ourives da música que lapida suas preciosidades com a precisão de um ourives. “Limite das águas”, lançado ainda no formato LP em 1976, é uma obra impecável do começo ao fim. Junto com Maurício Maestro, Edu divide a responsabilidade pelos arranjos e orquestração, enquanto a regência fica por conta do maestro Lindolfo Gaia. “Considerando” é simplesmente uma obra-prima com os versos densos e de feição confessional de Capinam: “Considerando o naufrágio/A rotina dos barcos/Eu me achei no direito/De ao menos, pedir/Tempo claro pro meu rumo/E nos temporais da febre/De quem fuma, de quem bebe/As longas noites vazias// Eu sou o homem comum/Eu sou a mulher da rua/O vagabundo poeta/O navegante da lua”. Aos 33 anos, Edu Lobo demonstrava o amadurecimento musical e existencial adquirido ao longo do percurso, tanto que cinco anos depois, gravou com produção e direção de Aloysio de Oliveira um disco monumental, ao lado de nada menos que Tom Jobim. Edu dialoga com o refinamento de Tom e suas concepções de improvisos leves. O casamento musical desses dois estupendos músicos resulta numa das obras referenciais da história de nosso cancioneiro nacional. O belo timbre de Edu, que canta muitíssimo bem, soa bonito demais em contraste com o registro grave da voz de Tom. O encontro destes dois pilares da música moderna brasileira marcou uma sorte de união entre professor e aluno, num clima de cordialidade e admiração mútua: “De todos os arquitetos da música que conheço, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito. Dele surgem projetos sólidos, feitos para abrigar os corações do mundo”. “O Edu é um compositor fabuloso, formidável. É, extraordinário, no Edu, essa brasilidade dele. A gente vê uma pessoa empenhada em construir uma obra” Daniela Aragão Cantora e Pesquisadora Musical
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CRÔNICA
Por Rogério Newton
VERBO BÁRBARO P arei no alto do barranco, olhando o rio: era a primeira vez que o via. Meu irmão me tirou do devaneio, tocando-me o braço. Canoas cheias de gente seguiam para a coroa que se formara no meio do leito, com banhistas, peladeiros e barraquinhas de palha. O Flamengo do Rio jogara na noite anterior e estava lá um atleta do time reserva, acompanhado por moças bonitas, de biquíni. Entramos no barco a motor e cheiro forte de óleo, vencemos as águas e pisamos a areia iluminada de sol. O rio me chamava pra viver e foi uma das principais razões para eu ficar em Teresina. Ainda hoje pulsa a memória do primeiro dia e de muitos outros. Mas deixei-o. Foi quando as águas ficaram sujas demais e a cidade, sitiada. É difícil, pode causar muita dor, mas é possível que o leitor ajude a entender como a cidade ficou assim. Tarefa dura, de nada adiantarão os lugares comuns, as frases gastas e tolas, as doces lembranças. Talvez nos socorra o rio sangrando: vermelha água pedindo espanto. Os quintais, mil sonhos e algo mais. Uma imagem na parede, mesmo sabendo como dói uma fotografia na distância amarelada do tempo. Poderia ficar mudo, mas de nada serviria, pois palavras são silêncios que transbordam. Por isso, indago: cidade ácida, por que você anda assim tão só? O asfalto a fez perder o chão? Mas, no instante em que digo cidade, ela passa por mim e não consigo pegar. Não consigo pegar e o mundo que quero não passa na televisão. Vejo-o no outdoor, a dor dentro, meu amor. Coloquei minha vida no pen drive. Minha sala não é mais de visitas, só tristeza de televisão. E meu coração finge, a todo custo, ser normal no mundo mercado onde sou apenas pré-juízo. Com vontade louca de voar, dormi desertos de sonhos adulterados. Corri para o Caravelle, encontrei o saguão do aeroporto prendendo a ingenuidade dos adeuses. Andei pela tarde: o céu estava claro, o mundo estava lindo, eu era feliz. Vou guardar tudo para o dia em que acordar triste. Aqui tudo me desconhece e me parece estranho. Algo se perdeu entre concreto, insensatez e abandono. Excluídos urbanos deliram esquecidos. Escombros humanos fumaçam nesse mundo de masmorra. Um dia, na solidão das coisas, todos terão
VIVEMOS EM UM TEMPO QUADRADO, FEITO O RELÓGIO INVISÍVEL DOS SHOPPINGS, MAS O TEMPO NÃO ESTÁ NO RELÓGIO E O SOL INSISTE EM CLAREAR UM NOVO DIA.
companhia da solidão das máquinas. Como dói em mim atravessar o vazio, assim meio saraiva. A Rua 7 de Setembro tinha cheiro de cinema: as amendoeiras sabiam disso. A cidade perdeu o rumo. Era verde e agora tem mais de cinquenta tons de cinza. Isola velhos e dá-lhes crachás de trânsito livre. Cerca praças e chama crianças de delinquentes. A estação antiga vive desbotada. Edifícios carcomem horizontes. A luz elétrica desconhece como ficou quem gostava de contemplar vagalumes. E quase ninguém escuta o canto dissonante dos passarinhos nos postes. Entre ruínas, seguimos tristes, olhando para trás. Vivemos em um tempo quadrado, feito o relógio invisível dos shoppings, mas o tempo não está no relógio e o sol insiste em clarear um novo dia. Minha alma está inquieta. Na cidade prostituída, vejo deus brincando de poesia. Diante dos escombros, meu silêncio prepara uma crônica inútil. Vou para a rua, bebo luz, vejo um índio perdido na Frei Serafim, de óculos ray ban e calça jeans. Um índio tapuia, quem sabe poty, perdido na margem da margem. Me aproprio do verbo bárbaro e aprendiz de Paulo Tabatinga como um anjo torto do Mafuá devora poemas sórdidos e telas partidas. Saiba o leitor: a cinco graus do equador e em nenhum lugar se lê um poeta em linhas retas. Na cidade sitiada, ele sai às ruas e grita debaixo do sol e da noite surda para acordar quem não morreu.
HOMENAGEADO DA EDIÇÃO
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ão bastava ser publicitário, Renato Castelo Branco foi defensor da ética e um dos pioneiros do conceito de responsabilidade social na publicidade. Poeta e escritor, deixou 22 livros, integrou a Academia Piauiense de Letras e teve sua obra reconhecida por personalidades como Jorge Amado e Monteiro Lobato. Renato Castelo Branco dedicou 50 anos de sua vida à construção das bases da publicidade brasileira atual. Ajudou a criar o que hoje é a Associação dos Profissionais de Propaganda, a Associação Brasileira de Agências de Publicidade-ABAP e participou da criação da Escola de Propaganda, hoje ESPM, na qual foi diretor, professor e conselheiro. Além disso, criou o Conselho Nacional de Propaganda e foi seu primeiro presidente em 1964. Filho de Francisco Ferreira Castelo Branco e Orminda Pires Ferreira Castelo Branco, Renato Castelo Branco nasceu em 14 de setembro de 1914 na cidade de Parnaíba, no Piauí. Migrou para o Rio de Janeiro em 1933, onde se graduou em Direito e iniciou a carreira profissional como assistente de redator na agência de publicidade N. W. Ayer em 1935. Em 1939, ingressou na J. Walter Thompson, primeira agência de publicidade internacional a estabelecer uma filial no Brasil e, mais tarde, em 1961, transferiu-se para São Paulo. Na JWT, Castelo Branco permaneceu por 30 anos em períodos alternados, chegando até a presidência, cargo que exerceu até seu desligamento, em 1969. Em 1965, Renato Castelo Branco havia sido eleito vice-presidente da Thompson dos Estados Unidos, o único latino-americano a receber essa distinção até os dias de hoje. Em 1971, com 35 anos de profissão, funda a sua própria agência, a CBBA – Castelo Branco, Borges e Associados, aos 57 anos de idade. Descrito por quem o conheceu como homem simples, de olhar atento e farto bigode, Renato Castelo Branco foi, talvez, o maior intelectual da publicidade brasileira e um dos grandes líderes da profissão. Faleceu em 19 de setembro de 1995, em São Paulo.
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MANIFESTE-SE POR ENCONTROS INESQUECÍVEIS. DESBRAVE O MUNDO
Como crescer sem perder história e identidade da pequena parte do mapa que chamamos de nossa? Revestrés discute os dilemas atuais da cidade. POR LUANA SENA
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studos apontam que em 2050 mais de 75% da população mundial habitarão as cidades. O dado foi revelado no Seminário Internacional Cidades Rebeldes, que aconteceu em junho deste ano, em São Paulo. Conferencistas de todo o mundo puseram em pauta o futuro das cidades. É que o boom de urbanização não tem se traduzido em melhor qualidade de vida – pelo contrário, a vida nas cidades está cada vez mais difícil. Teresina, que acompanha os dilemas atuais das cidades em desenvolvimento, tem sido palco de movimentos sociais, políticos e artísticos que trazem em comum o pensamento em relação à cidade – a questão urbana e seu papel nas transformações sociais, por exemplo. É possível pensar uma reestruturação urbana significativa sem perder identidade, história e as marcas que nos guiaram até aqui? Na esquina do século XXI questões como a destruição do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade já eram debatidas entre grupos e movimentos sociais. Na pauta do desenvol30 • www.revistarevestres.com.br
vimento urbano estão velhos impasses como transporte, qualidade de vida e destruição do velho em favor do novo. Não é um privilégio de Teresina – a capital piauiense segue a onda das principais discussões atuais sobre as cidades em desenvolvimento. Para quem estão sendo pensadas? Quem tem direito à cidade? Para iluminar essas questões, Revestrés ouviu líderes comunitários, membros de movimentos sociais, historiadores, arquitetos e urbanistas e colheu diferentes opiniões. São especialistas, mas poderia ser eu, ou você, o pedestre, o motorista, o ciclista ou o vendedor de balas no ponto de ônibus. Qualquer um pode ser autoridade quando o assunto é o lugar em que se mora, trabalha, diverte-se e do qual nos sentimos (ou não) pertencentes. Se ajudamos a construir, cotidianamente, esse pequeno território geográfico que chamamos de cidade, cabe a nós também sermos os primeiros a apontar problemas e sugerir soluções. Afinal, a cidade é nossa?
O começo
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história nos conta que Teresina foi fundada em 1852 para ser a nova capital do Piauí – a sede do estado, anteriormente, era Oeiras. Atraídos por novas ofertas e oportunidades da nova cidade que surgia, boa parte da população era formada de imigrantes. É o que diz o artigo “Cidade, imigrantes e vidas cruzadas”, escrito pelo historiador Alcides Nascimento, referência em pesquisas sobre cidade. “Hoje uma parcela grande já nasceu aqui, mas lá nos anos 90 não era assim. São pessoas que não nasceram aqui e, para que essas pessoas gostem da cidade, é preciso que elas aprendam a amá-la”, afirma. Nas últimas décadas, Teresina passou por um crescimento demográfico vertiginoso, que acarretou repensar o uso dos espaços, das moradias, o aumento de veí-
culos, a especulação imobiliária e a conservação do centro histórico. “O mercado imobiliário é nefasto na preservação do patrimônio”, aponta Viviane Pedrazani, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Ela observa que os anos 90 tiveram um início sombrio em relação à legislação municipal que protege fachadas e construções históricas na cidade. “Não há uma consciência coletiva sobre a importância dos bens que formam a cidade, que nos identifica, que nos liga enquanto teresinenses”, afirma. “Parte dessa liga, dessa cola, sem dúvida, é o patrimônio cultural”. Para ela, o fato de Teresina caracterizar-se por uma arquitetura eclética pode ser motivo para que se ignore a particularidade de sua história. “Teresina tem um patrimônio histórico bem visível, diversos estilos arquitetônicos que mantêm uma singularidade”, defende. “É uma
história peculiar a ela e começa diferente da maioria das histórias das capitais brasileira, por ter sido planejada”, reforça. “O centro dela é bastante interessante nesse sentido”. É este mesmo centro, com vestígios de um passado que não volta mais, que vê, dia após dia, seus casarões históricos virem abaixo para dar vida ao novo – uma destruição sempre justificada pela urgência em construir. “As marcas, às vezes, são invisíveis, mas elas estão lá”, diz Nascimento. “Quando você elimina uma referência dessas, fica faltando algo que só saberemos através das fotografias. É como se a cidade fosse só essa que está aqui: a cidade do presente. A do passado, que também nos constitui, está indo embora”. O carro tornou-se, talvez, o maior vilão na luta por uma cidade para as pessoas. “O maior inimigo da cidade, hoje, www.revistarevestres.com.br •
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NÃO HÁ UMA CONSCIÊNCIA COLETIVA SOBRE A IMPORTÂNCIA DOS BENS QUE FORMAM A CIDADE, QUE NOS IDENTIFICA, QUE NOS LIGA ENQUANTO TERESINENSES. VIVIANE PEDRAZANI
é o transporte”, opina Yasmine Caddah, arquiteta da coordenação de patrimônio arquitetônico da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves. “Se você caminhar no centro da cidade, todo quarteirão tem um estacionamento e até os calçadões, que antes eram pros pedestres, foram abertos para carros”, observa. “Que apego os latifundiários urbanos têm com a cidade?”, questiona em tom de crítica Alcides Nascimento. “Derrubam os casarões para fazer estacionamentos e, do ponto de vista do capital, eles estão certíssimos”, argumenta. “Mas, do ponto de vista da memória da cidade isso é um desrespeito ao lugar onde ele mora, sobrevive e onde lucra – e lucra muito”.
O meio
“A
cidade tem que ser feita pras pessoas que moram nela”, diz Nadja Carvalho, sentada no batente da casa 1799, da rua Félix Pacheco. “Não para os carros, não pro comércio. Ela tem que ser feita pra que as pessoas se sintam parte de uma história”. Bacharel em Direito, ela juntou-se ao grupo de estudantes e ativistas que ocuparam a casa no centro de Teresina para evitar que ela virasse poeira e pó. Na região conhecida como polo da saúde, entre clínicas e laboratórios, a construção dos anos 1930 agonizava – havia perdido portas, janelas e telhado. “A gente foi pra lá no intuito de ocupar porque sabíamos que se não fizés32 • www.revistarevestres.com.br
Emerson Mourão e Luan Rusvell, estudantes de arquitetura e integrantes do Viva Madalena.
semos nada a casa seria totalmente destruída”, diz Luan Rusvell, estudante do curso de arquitetura da Universidade Federal do Piauí. O grupo, formado por outros jovens dos cursos de Ciência Sociais, Jornalismo, Matemática, permaneceu dia e noite em vigilância no local por duas semanas. O movimento foi batizado de “Viva Madalena”, em referência a Madalena Maria Poty Drumond, antiga proprietária do imóvel. “Nós temos o direito de tentar fazer com que a cidade continue viva”, diz Emerson Mourão, também estudante de arquitetura. Ele e Luan foram os únicos a permanecerem no local durante todo o período da ocupação. “Podemos ir na contramão dessa destruição, da morte de Teresina”. O grupo desenvolveu atividades culturais e pensou em propostas a fim de chamar atenção para o espaço já que em meio a tantas clínicas, estacionamentos e construções modernosas, os detalhes da casa de dona Madalena podem passar despercebidos. Construída em 1938, a casa guarda informações sobre os métodos e técnicas de construção da época, além de ser um marco da arquitetura eclética da cidade. Ocupar a casa, segundo o grupo, foi
a maneira que encontraram de defender a memória da cidade – e alertar sobre o descaso dos órgãos públicos com a conservação do patrimônio histórico. “É um atraso pensar que a gente tem de passar por tudo isso para que haja a preservação da memória, lutar por um desenvolvimento sustentável, uma mobilidade urbana que contemple todas as pessoas”, critica Luan. “Reivindicar participação popular nas decisões da cidade não deveria mais ser feito como um processo de luta, como foi o Viva Madalena, como foi o #Vempromeio (movimento de ocupação da nova faixa da ponte Juscelino Kubistchek, que liga as avenidas Frei Serafim e João XXIII e custou 18 milhões de reais aos cofres públicos – não tendo licenciamento ambiental prévio) como tem sido na Boa Esperança”, diz, citando outros movimentos sociais do qual faz parte. “A participação popular devia ser o primeiro passo para se propor qualquer coisa”. Os estudantes foram ouvidos em audiência pública – não sem antes prestar depoimento na delegacia. Eles foram acusados, pelos proprietários (herdeiros de dona Madalena) por invasão de patrimônio. “As pessoas precisam entender que a história na qual nós estamos inse-
ridos também está colada naquela casa. Ela faz parte de uma memória coletiva”, comenta Viviane Pedrazani, que considera o movimento Viva Madalena um dos mais emblemáticos, mas não o único. “Estávamos em estado letárgico, até esse grito do Viva Madalena. Eles acordaram a cidade”. As leis 3.602 e 3.563, ambas de 2006, preveem multa para quem destruir ou descaracterizar fachadas dos imóveis que compõe os sítios históricos arquitetônicos da cidade. “O decreto abrange todo o centro, a casa pode não estar tombada, mas ela está dentro do centro histórico e a paisagem urbana é tudo, da árvore à vizinhança”, define Yasmine Caddah. “Eu, como arquiteta e também como cidadã, que anda pela cidade, posso observar e denunciar, mas não compete a fundação essa fiscalização”, explica. A vista rigorosa fica a cargo de fiscais das Superintendências de Desenvolvimento Urbano (SDUs) de cada região. “Temos fiscais que passam em uma rota a cada semana, mas no dia que ele não passar, aquele imóvel será destruído”, alega Constance Jacob, arquiteta e secretária executiva de planejamento urbano da Prefeitura Municipal de Teresina. “A prefeitura inventariou essas casas, mas
NÓS TEMOS O DIREITO DE TENTAR FAZER COM QUE A CIDADE CONTINUE VIVA. PODEMOS IR NA CONTRAMÃO DESSA DESTRUIÇÃO, DA MORTE DE TERESINA. EMERSON MOURÃO
não existe prefeitura no mundo que dê conta disso”, enfatiza. “É algo que devia passar por uma consciência da população, dos donos e dos próprios arquitetos que desconhecem as leis e muitas vezes são quem propõem a derrubada”. Constance afirma que a própria prefeitura é desrespeitada em seus decretos. “A multa não é fator inibidor porque ela é muito pequena diante do benefício que o empresário vai ter”, compara. Ela alega que a preocupação com a memória desaparece no momento de uma necessidade financeira. “A casa de dona Madalena conta a história da família dela, eles deviam ser os primeiros a se interessar”. Com a entrada do Ministério Público no caso, os herdeiros da propriedade foram multados e obrigados a reconstruir os danos causados ao casarão. “Mais uma ordem que talvez não seja cumprida, sa-
bemos que a justiça é muito folgada”, critica Jacob. Os estudantes, que queriam a abertura de uma investigação criminal sobre as destruições no centro, ou a transformação do casarão em um espaço público para arte e cultura, frustraram-se com o resultado. “A prefeitura lida com dinheiro público e tem outras prioridades. Comprar aquela casa seria uma improbidade administrativa, não existe só ela nessa situação”. Para os estudantes, reformar a casa não garante a preservação da sua importância histórica e arquitetônica. “Será um prédio de 1938 com técnicas construtivas de 2015, vira um Frankenstein no meio da cidade”, diz Luan. Constance discorda. “É uma opção que torna mais clara o valor daquela construção, e isso também é educativo”, defende. “Reconstruir é uma cicatriz de guerra”. www.revistarevestres.com.br •
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O fim
F
rancisca das Chagas Oliveira mora há 33 anos no mesmo endereço: uma casa de oito cômodos, jardim e quintal espaçosos no bairro São Joaquim, zona Norte de Teresina. O portão fica em frente a um ponto de ônibus na avenida Boa Esperança. Por ali todo mundo conhece a Fran. Ela nos serve suco de tamarindo, colhido do próprio quintal. “Meu pai era vaqueiro e trabalhou na construção do Parque da Cidade. Ele conseguiu o direito de construir sua casa aqui nessa região que eram ‘quintas’”, diz a terceira dos nove filhos do casal Antônio Ferreira e Davina de Oliveira. Ele pernambucano, ela de José de Freitas, chegaram ao bairro no final da década de 1960, sendo uns dos mais antigos moradores da região. Lá, a família criava animais e vivia da agricultura de vazante. “A perseguição com as famílias daqui vem desde o governo de Wall Ferraz”, diz Francisca. “Naquela época começou a limpeza urbana, passavam carros da prefeitura recolhendo os bichos”, relembra. “Tomaram todos os gados do meu pai, ele teve que trabalhar de vigia para nos sustentar”. Trinta anos depois, o plano de desenvolvimento municipal para a região, mais uma vez, mexe com os anseios das famílias que ali residem. A avenida Boa Esperança, que liga a avenida Maranhão com o bairro Poti Velho, faz parte das mudanças propostas na segunda fase do projeto Lagoas do Norte – a maior intervenção urbana e ambiental em Teresina nos últimos anos. O projeto prevê a duplicação da avenida, ação que deve retirar as famílias com
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casas nas margens do rio Parnaíba. Elas devem ser deslocadas para outras moradias – um processo de reassentamento involuntário que tem causado preocupação e ansiedade entre a comunidade. “Os agentes da prefeitura chegaram sem comunicar nada e foram marcando nossas casas com selos nas portas”, conta Francisca. “Não estamos considerando a possibilidade de sair, essa casa não é só um amontoado de tijolos, aqui é suor do nosso pai”, alega. Os moradores procuraram auxílio do
NÃO ESTAMOS CONSIDERANDO A POSSIBILIDADE DE SAIR, ESSA CASA NÃO É SÓ UM AMONTOADO DE TIJOLOS, AQUI É SUOR DO NOSSO PAI. FRANCISCA OLIVEIRA
Ministério Público e também do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN). O órgão solicitou à prefeitura um estudo de impacto ambiental que contenha pesquisa sobre o patrimônio cultural da área. “Os vazanteiros e pescadores da Boa Esperança formam uma comunidade tradicional, que vive de recursos que a natureza oferece, dependente das cheias e secas do rio […] Eles possuem uma identidade étnico-racial negra ou indígena, e estão por lá há mais de cinquenta anos sobrevivendo e mantendo
suas famílias. Os modos de viver dessas comunidades tradicionais constituem patrimônio cultural brasileiro de acordo com o art. 216 da Constituição Federal”, diz o relatório, assinado por Ricardo Pereira, técnico em História do IPHAN. Em meio à especulação da retirada de cerca de 1.800 famílias, o secretário municipal de planejamento, Washington Bonfim, explica que somente serão reassentadas famílias que moram em área de risco ou que aterraram a beira das lagoas. Ele ressaltou que o projeto envolve sistema de macrodrenagem que minimiza os riscos das enchentes. “O projeto encontra-se na fase de planejamento, cadastramento de imóveis e negociação de empréstimo com o Banco Mundial”, disse Bonfim. As novas residências das famílias da Boa Esperança serão financiadas pelo programa federal Minha Casa, Minha Vida e a previsão de entrega é para 2017. “Até que os recursos estejam assegurados, não serão estabelecidos valores de indenização para os imóveis”, esclarece o secretário. Historiadores, pesquisadores e estudantes de arquitetura e direito se uniram em defesa da permanência dos moradores da Boa Esperança. Eles criaram um grupo no Facebook chamado “Atingidos pelo projeto Lagoas do Norte”, onde combinam ações de resistência. Eles consideram a ação da prefeitura uma “higienização urbana”. “Os planos de embelezamento voltados para o turismo priorizam o afastamento de comunidades para áreas periféricas, distante do olhar dos visitantes”, afirma Ricardo Pereira. “Quando esse tipo de tratamento dispensado a determinados grupos sociais for modificado, poderemos dizer que todos terão direito à cidade”.
PESQUISA
Manifestações folclóricas, espaços arquitetônicos e perguntas como: Quem é Torquato Neto? Confira a continuação do Dossiê Cultura, que revelou dados significativos sobre cultura no Piauí. POR VICTÓRIA HOLANDA, NAYARA FELIZARDO E LILIANE PEDROSA
N
a edição anterior, a Revestrés publicou o Dossiê Cultura, uma pesquisa de opinião que trouxe dados sintomáticos sobre o consumo de cultura em Teresina. Entre os resultados apresentados, 95% das pessoas afirmaram não conhecer nenhum cineasta piauiense, 82% não vão ao teatro e 88% não conhece um dançarino piauiense sequer. Em parceria com o Instituto Amostragem, foram entrevistadas 300 pessoas no mês de abril, em bairros das zonas norte, sul, leste, sudeste e centro. As entrevistas foram presenciais e domiciliares realizadas com pessoas de, no mínimo, 15 anos de idade. Uma amostragem não-aleatória por cotas de sexo, faixa-etária e classe econômica, por exigência da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa – ABEP, órgão responsável por ditar estes critérios. A continuação da pesquisa mostra agora que o reconhecimento popular parece estar mais presente no imaginário coletivo. Como por exemplo, na gastronomia. Entre as comidas típicas considerada mais representativa do Piauí estão a Maria
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Isabel, Baião de Dois e Carne de Sol, com 33%, 24,33% e 11%, respectivamente. Por outro lado, comidas como Panelada, Paçoca, Sarapatel e Capote ocupam porcentagens entre 1% e 4% das respostas, ao passo em que 5% das pessoas disseram não saber ou não quiseram opinar. No desdobramento do Dossiê Cultura, também vêm à tona dados sobre os espaços arquitetônicos de Teresina, manifestações folclóricas mais representativas do Piauí e, ainda, conferimos se as pessoas conheciam as personalidades marcantes da cultura do estado, como Torquato Neto. Para o secretário de Cultura do Estado, Fábio Novo, a cultura é muito diversa e um dos desafios da recém-criada Secult é garantir o acesso à cultura em diferentes frentes. “Se a Secretaria consegue dar vida aos espaços que ela já tem, dá pra você democratizar e fazer com que esses números aos poucos vão se invertendo”, diz o secretário, referindo-se aos dados publicados na edição anterior. Ele defende o desenvolvimento de um plano, um sistema e um fundo de cultura e garante que haverá
NA MEDIDA EM QUE ENTRA A DOMINAÇÃO ECONÔMICA, ENTRA A DOMINAÇÃO IDEOLÓGICA PORQUE VOCÊ ANULA A CULTURA LOCAL E INVESTE NA CULTURA PADRONIZADA. A IMPLICAÇÃO DISSO É A ALIENAÇÃO E A PERDA DE REFERÊNCIA CULTURAL. FRANCISCO NORONHA
perspectiva para um novo orçamento em 2016, recursos que serão utilizados por meio de editais específicos para cada área cultural. Na busca de aproximação federal por parte do estado, recentemente, o ministro da cultura, Juca Ferreira e secretários do Ministério da Cultura-Minc estiveram no Piauí. “Minha presença aqui é a manifestação do desejo de fortalecer a relação com o Piauí”, declarou o ministro. Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do MinC, Ivana Bentes comentou a relevância da diversidade cultural e a necessidade de dar visibilidade a diferentes manifestações e fomentar políticas de diversidade. “Hoje, o circuito cultural é muito voltado para a ideia do artista tradicional ou quem produz para a indústria da cultura, então, outra experiência de cultura é decisiva para você realmente falar de diversidade”. Para além das tentativas institucionais, Antônio de Noronha Pessoa Filho propõe uma visão criteriosa sobre cultura: “Por onde as pessoas vão saber da cultural local, quando hoje a cultura é de eventos?”, questiona o médico pediatra, terapeuta sexual, produtor de vários filmes de Torquato Neto, além de acompanhar a cena de cultura local desde os anos 70. Para Noronha, o desconhecimento da produção artística local revelada na primeira parte do Dossiê Cultura denuncia o desinteresse geral por compreender processos nos quais a cultura está inserida. “Todo lugar em Teresina você vai encontrar focos culturais e tradicionais, mas o que existe hoje é visão elitizada e cultura de eventos”, denuncia. Além disso, Noronha destaca que,
mais acessíveis e democráticas. “O Estado tem que reagir no atendimento das demandas culturais e sociais da comunidade”, diz o professor. Para Feliciano, apesar de entender que a cultura pode ser um empreendimento lucrativo por parte da iniciativa privada, é necessário tratá-la criteriosamente. “Embora o mecenato para iniciativas culturais deva ter um qualificativo diferenciado, não deixa de gerar um produto de mercado, com o acréscimo de que cultura é um bem imperecível. O desafio é justamente ampliar e comprometer a lógica do consumo a critérios mais arrojados e críticos, do ponto de vista estético e de difusão cultural”, completa Feliciano Bezerra. Para tentar compreender esses dilemas conversamos com professores, produtores e artistas para continuar sugerindo o exercício da reflexão. Ao invés de respostas, trouxemos mais algumas considerações. Afinal, quem está interessado em verdades irredutíveis?
entre os empecilhos está a logística econômica no qual os processos culturais acabam submetidos. “Na medida em que entra a dominação econômica, entra a dominação ideológica porque você anula a cultura local e investe na cultura padronizada. A implicação disso é a alienação e a perda de referência cultural. Se você não tem referência, não é sujeito, você é objeto de manipulação. Então, existe toda uma ideologia de dominação para preservar o conformismo e a não criatividade”, reflete. Doutor em Comunicação e Semiótica, Feliciano Bezerra defende que uma real democratização cultural não deve se apoiar apenas na noção de serviços culturais. “É preciso criar condições para que as práticas culturais da comunidade sejam duradouras, tanto no consumo quanto na produção”. Além disso, argumenta que a colaboração governamental está na descentralização e ações de incremento dos equipamentos culturais, por meio de leis
Comida típica que mais representa o Piauí 33,00
Maria Isabel
24,33
Baião de Dois
11,00
Carne de Sol
5,00
Feijão
4,67
Panelada
4,33
Paçoca
4,00
Feijoada
3,67
Arroz
3,67
Carne de Bode
3,00
Galinha Caipira
2,00
Sarapatel
2,00
Feijão Tropeiro
1,67
Capote Carneiro
1,33
Peixe
1,33 10,31
Outros
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Não sabe não opina
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Manifestações Folclóricas
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xiste uma manifestação folclórica que mais representa o Piauí? De acordo com o professor Gustavo Said, doutor em Comunicação, existe apenas uma certeza: não há como responder qual elemento seria o mais marcante da nossa identidade. “Cada lugar tem sua singularidade, que lhe diferencia de outros lugares, mas quando se pensa em identidade o grande erro está em tratá-la de maneira homogênea”, diz Gustavo Said. Revestrés perguntou: Qual é a manifestação folclórica mais representativa do Piauí? 24,67% responderam Bumba Meu Boi, 22% citaram Festa Junina/Quadrilha e 14,33% elegeram o Cabeça de Cuia. Reisado, Cavalo Piancó e Batalha do Jenipapo aparecem com porcentagens próximas a 1%, cada, sendo esta última um acontecimento histórico. Enquanto isso, 36,67% não soubem ou não quiser opinar. “Se considerarmos a pesquisa feita pela Revestrés, o dado mais interessante não é o percentual de 24,67% que apontaram o Bumba Meu Boi como o elemento central de nossa identidade, mas o fato de 36,67% afirmarem que não sabem responder ou não tem opinião sobre isso, o que corrobora a dificuldade de definir a identidade num mundo tão fragmentado, multifacetado e diversificado”, analisa o professor. Influenciadas pela literatura, artes e meios de comunicação, de acordo com Gustavo Said, é comum que as pessoas mencionem sempre as tradições e o folclore. O pesquisador também destaca as relações de poder que essas manifestações podem estar inseridas. “As tradições, folclóricas ou não, também são inventadas e podem servir a grupos dominantes. É preciso analisá-las criticamente, para não cair na ingenuidade de defendê-las apenas porque são ‘coisa nossa’”, ressalta. Um estado com 251.529 km², mais de 200 municípios, é difícil pensar em uma manifestação folclórica que represente todo esse território. “Para garantir cidadania a todos os grupos, não podemos 38 • www.revistarevestres.com.br
excluir uma ou outra manifestação. Um projeto coletivo de identidade deve possibilitar que todos os elementos possam ser valorizados e legitimados. Quando se elege um ou outro elemento como traço identificador de uma cultura, corre-se o risco de deixar muita coisa de fora”, destaca o pesquisador. “Nas últimas décadas, o Piauí, que era o ponto cego da historiografia e das mídias nacionais, virou a bola da vez. Parece que o mercado cultural e turístico, por conta da saturação dos seus conteúdos, descobriu, enfim, o Piauí. Essa é nossa hora”, completa. Para o secretário de Cultura do Estado, Fábio Novo, a implantação e desenvolvimento dos Pontos de Cultura são fundamentais para manter as manifestações folclóricas em atividade. “São 80 pontos de cultura, que focam manifes-
ga os repasses em tempo satisfatório, os grupos vão desativando e diminuindo a frequência das atividades”, diz Severo de Sousa Barros, aos 79 anos, com mais de 60 investidos na cultura popular. Manifestação cultural religiosa que relembra a trajetória dos Três Reis Magos no catolicismo, o reisado foi citado na pesquisa Revestrés/Amostragem com 1,67% das respostas. “A importância do reisado é a tradição religiosa”, diz Severo. Por sua dedicação às artes folclóricas, Mestre Severo já foi reconhecido pelo Ministério da Cultura-MinC e comenta sobre um dos empecilhos que dificulta a realização das atividades culturais. “Quem impede a cultura é a burocracia”, completa. Com trabalhos que circularam pelo mundo, o coreógrafo Marcelo Evelin reconhece a importância de preservar qualquer tipo de manifestação folclórica. “Isso é fundamento da nossa organização social e patrimônio imaterial e temos que
TEMOS QUE SABER PENSAR PARA QUE ESSE ‘PRESERVAR’ NÃO SE TORNE UMA MUMIFICAÇÃO, UM ENRIJECIMENTO, TRANSFORMANDO A CULTURA EM UM FÓSSIL. MARCELO EVELIN, COREÓGRAFO
tações da cultura popular. São micro-organismos que chegam aos lugares mais distantes para manter vivas essas produções”, diz Fábio Novo sobre os pontos de cultura que, na prática, devem funcionar como entidades ou coletivos culturais certificados pelo MinC com mediação de cada estado, a partir da realização de novos editais lançados pelo MinC. Mestre Severo, líder do tradicional grupo Reisado do Piauí, em atividade há mais de cem anos, considera que o apoio governamental é peça fundamental para que a cultura desempenhe seu papel. “Alguns promoventes das manifestações folclóricas desistiram e outros morreram. É difícil depender do governo que, quando não acompanha, promove a falência da cultura. Quando o governo não entre-
saber pensar para que esse ‘preservar’ não se torne uma mumificação, um enrijecimento, transformando a cultura em um fóssil”. No entanto, Marcelo Evelin também é incisivo e critica a existência de um circuito comercial: “Eu sinto que o que se chama de cultura local, hoje, se comercializou, virou camarote de cerveja e palanque para propaganda política, perdendo totalmente o sentido comunitário intrínseco e, o que vem sendo produzido como cultura contemporânea local, fica sujeito a programas de apoio instáveis que, por exemplo, no Piauí, ainda são raquíticos e quase inexistentes”, destaca. Evelin entende que é importante a atuação governamental diante da cultura, no entanto, alerta para as formas de
apoio que existem. “Eu acho importante que os governos façam o que puderem pela cultura, mas o contexto desses eventos está velho e equivocado, sem nenhum pensamento crítico ou curatorial”, diz o coreógrafo. “Não existem planos e programas de apoio e disseminação ou iniciativas que estimulem essa arte que emerge no Piauí de hoje, que pode não ser vista como folclórica, mas surge com a mesma força que um dia surgiu o Boi da Matinha ou o Reisado do Mestre Severo. O governo precisa parar de tratar a cultura como tesouro do passado ou santo de altar, e encará-la como processo da nossa história em curso”, continua. Autor de Bull Dancing (2006) e Matadouro (2010), obras com referências regionais, Marcelo Evelin coloca que é
natural que essas manifestações e ícones tenham surgido em seu trabalho. “Sempre fizeram parte de quem eu sou, mas são trazidas ao presente não como maneira de legitimar a história já feita, mas como tentativa de escancarar possibili-
Manifestação Folclórica que mais representa o Píauí 24,67
Bumba Meu Boi
22,00
Fasta Junina / Quadrilha
14,33
Cabeça de Cuia
1,67
Reizado Cavalo Piancó
1,33
Batalha do Jenipapo
1,00 3,31
Outros
36,67
Não sabe/ não opina
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Espaços Arquitetônicos
A
o nos depararmos com Teresina nos seus 163 anos, encontramos uma cidade que cresceu e, em meio ao avanço natural, há prédios que resistem ao tempo e ao seu crescimento. E como saber o que mais representa seu patrimônio arquitetônico? A pesquisa de cultura Revestrés/Amostragem perguntou que espaço arquitetônico melhor representa Teresina. As opiniões foram as mais variadas e merecem considerações. Em primeiro lugar na pesquisa, está a Ponte Estaiada, com 17%. Hoje, na capital, o espaço é um dos mais visitados pelos turistas. Sua arquitetura dispõe de elevador panorâmico de 90 metros de altura que, apesar de receber tantos visitantes, passou mais de um ano sem funcionar. A Ponte Estaiada tem sido um ponto de encontro, concentrando o público nos mais diversos eventos, entre eles o Corso do Zé Pereira, Parada da Diversidade e campanhas de saúde como o Outubro Rosa e Novembro Azul. Para o arquiteto Paulo Vasconcellos tanta visibilidade em um dos cartões postais da capital, hoje, é explicada pela seguinte razão: “O centro de gravidade
dades para que a história seja reconstruída e não como repetição de uma história fadada”, declara. “Não sou piauiense de carteirinha e crachá, mas tenho um orgulho danado de ser daí”, completa Evelin, que nos respondeu da Holanda.
da cidade, ou seja, o centro de interesse dos seus moradores, está cada vez mais voltado para zona leste, na região dos shoppings. Isto explica, em parte, a opção da maioria, sobretudo, entre os mais jovens”, diz. Por outro lado, o Parque Potycabana, reinaugurado em 2013 após muitos anos desativado, também espaço de grande movimentação de pessoas com localização na zona leste, ficou em terceiro lugar com 5% das respostas. Enquanto isso, prédios históricos para a memória da cidade, como a Igreja São Benedito e o Theatro 4 de Setembro, ambos construídos no século XIX, foram lembrados por
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apenas 4% e 8% das pessoas, respectivamente. Para Vasconcellos, essas referências arquitetônicas são relegadas pelo pouco conhecimento e também pela pouca importância que o patrimônio histórico e artístico desperta nas pessoas de um modo geral. “Outro aspecto que deve ser considerado é relacionado à linguagem contemporânea e monumental, que tende a ser mais representativa no olhar de uma comunidade com pouco tempo de história e pouco tempo de urbanização, que tende ao deslumbre da novidade e relega ou mesmo desconhece suas raízes históricas e sua identidade cultural”. Já Patrícia Mendes, da Divisão de Patrimônio da secretaria estadual de Cultura do Piauí, acha que é preciso que haja
UMA COMUNIDADE COM POUCO TEMPO DE HISTÓRIA E POUCO TEMPO DE URBANIZAÇÃO, TENDE AO DESLUMBRE DA NOVIDADE E RELEGA OU MESMO DESCONHECE, SUAS RAÍZES HISTÓRICAS E SUA IDENTIDADE CULTURAL PAULO VASCONCELLOS, ARQUITETO www.revistarevestres.com.br •
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uma mudança cultural que passa pela educação. “Não nos identificamos com o que é nosso, da nossa terra, da nossa raiz. Não dizemos com todas as letras: somos piauienses. A educação básica não inclui disciplinas como história e geografia do Piauí na grade curricular. Nas universidades e faculdades também é ainda pouco explorado”, diz a arquiteta que ressalta a importância da valorização do espaço
público e da memória da cidade, que atravessa esses monumentos arquitetônicos, reconhecidos parcialmente na pesquisa. Patrícia Mendes acredita que valorizar o que de fato é importante na memória de um lugar é o primeiro passo para não deixar a história de Teresina esquecida e fazer com que monumentos de grande importância do seu passado sejam valorizados.
Alguns entrevistados ainda citaram os Shoppings como monumentos arquitetônicos representativos, com a porcentagem de 1,67% e o Atlantic City, parque aquático e local de shows e eventos com 1,3%. A resposta Outros foi representada por 14,97%, enquanto as pessoas que não souberam ou não quiseram opinar aparecem com a parcela de quase metade das respostas, 40%.
Espaço Arquitetônico que melhor representa Teresina 17,67
Ponte Estaiada
8,00
Theatro 4 de Setembro
5,00
Potycabana
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Encontro dos Rios
4,00
Igreja São Benedito
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Outros
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Não sabe/não opina
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Você conhece?
S
e alguém perguntasse o que Da Costa e Silva, Torquato Neto, O.G. Rego de Carvalho e Carlos Castello Branco têm em comum, algumas pessoas certamente diriam que são piauienses. Outras, talvez a maioria, sequer saberiam responder. É que os dois poetas, o escritor e o jornalista, respectivamente, estão unidos pelo esquecimento. Sim, é verdade que os piauienses acima se tornaram referência nacional, são lembrados pelo mundo afora, têm obras publicadas, viraram objetos de estudo ou de biografias, porém existe algo a mais em comum entre eles: são ignorados pelos seus conterrâneos. Na segunda parte do Dossiê Cultura, a pesquisa Revestrés/Amostragem quis descobrir se os piauienses conheciam algumas personalidades importantes do Estado. E a resposta à pergunta “quem é...?” na maioria das vezes foi “não sei”. A personalidade mais lembrada foi a cantora e compositora Maria da Inglaterra, com 49% das respostas. Por outro lado, 48% disseram que não conheciam a artista piauiense. Alguns ainda fizeram referência a ela como sanfoneira e até dançarina. 40 • www.revistarevestres.com.br
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Entre os quatro já citados, Torquato Neto é o mais lembrado: 23,33% dos entrevistados responderam que ele foi um poeta. Alguns ainda afirmaram que Torquato foi escritor (16%) ou compositor (5,67%). Os três livros de Torquato foram publicados postumamente e suas composições tropicalistas até hoje são famosas como Let’s play that, com Jards Macalé; Mamãe coragem, com Caetano Veloso, Geleia geral, com Gilberto Gil e Go Back, com Sérgio Britto, musicada pela banda Titãs. Outros, no entanto, disseram conhecê-lo, mas claramente arriscaram, ao responder, que o tropicalista foi fotógrafo, apresentador ou, até mesmo, ex-presidente. Os 52% dos entrevistados mais sinceros preferiram não opinar ou falaram simplesmente que não sabiam. Outro que está na lista dos menos esquecidos é o escritor O.G. Rêgo de Carvalho. O autor de livros como Rio Subterrâneo e Ulisses Entre o Amor e a Morte, foi lembrado corretamente por 22% dos entrevistados. Outros 77,33% disseram que não sabiam ou preferiram não opinar sobre quem foi o escritor que faleceu em novembro de 2013. Nem mesmo o autor do Hino do Piauí foi poupado do esquecimento. Da Costa e Silva talvez até seja mais lem-
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brado no município de Amarante, onde nasceu, mas em Teresina somente 8,67% dos entrevistados responderam que ele foi um poeta. Alguns (23,33%) citaram o piauiense como escritor, embora não seja possível afirmar que esses entrevistados conheçam verdadeiramente a sua obra. O poeta ainda foi confundido por alguns entrevistados com o ex-presidente Costa e Silva, que governou no período da ditadura militar, decretou o AI-5 e foi responsável, a partir daí, pelos “anos de chumbo” no Brasil. E um dos mais esquecidos entre os nomes citados da pesquisa Revestrés/ Amostragem é o jornalista Carlos Castello Branco. Somente 4% lembraram corretamente do piauiense que ocupou a Academia Brasileira de Letras, manteve uma coluna no Jornal do Brasil durante 30 anos e marcou o jornalismo político. Vários entrevistados chutaram nas respostas, mas 87,33% foram diretos ao dizerem que não conheciam Carlos Castello Branco. Segundo o sociólogo Marcondes Brito, somente uma coisa pode explicar o fato de personalidades tão importantes serem esquecidas pela maioria das pessoas. “A memória é seletiva e ela seleciona aquilo que impacta individualmente ou coletivamente. Eles são desconhecidos
PODERÍAMOS DIZER QUE NESSA SOCIEDADE MIDIATIZADA DO ESPETÁCULO EM QUE VIVEMOS, QUEM NÃO É MIDIATIZADO NÃO É LEMBRADO MARCONDES BRITO, SOCIÓLOGO
porque seus feitos ou suas contribuições para o Estado, ou se restringem a pequenos círculos - como o Torquato Neto que fica restrito às rodas intelectuais -, ou então porque sua abrangência na mídia não é suficiente para lhes dar notoriedade duradoura. Eles pouco aparecem no teatro, tem pouquíssimo incentivo de leis culturais, poucas pessoas escrevem sobre eles”, afirma. Para Brito, o que contribui na formação de uma memória coletiva, além da importância do fato ou da pessoa, é a visibilidade dada ao que foi realizado. “Poderíamos dizer que nessa sociedade midiatizada do espetáculo em que vivemos,
quem não é midiatizado não é lembrado. Pouquíssimas exceções vivem fora desse círculo de cultura da divulgação”, destaca. Nesse sentido, os meios de comunicação poderiam ter um papel importante na preservação da memória se eles não fossem marcados pelos fenômenos da globalização ou da comunicação de massa. “A imprensa tem o papel de propulsor de mensagens e divulgação de informações. Mas nesse mundo global, a memória artística dura cada vez menos. Ninguém lembra quem venceu a primeira edição do Big Brother, nem a penúltima edição do programa Ídolos”, exemplifica.
Nesse cenário de globalização e midiatização que desvaloriza a memória artística local, a pesquisa Revestrés/Amostragem revela que alguns nomes ainda conseguem se destacar, mesmo que de forma tímida. É o caso do escritor Assis Brasil, membro da Academia Piauiense de Letras e autor de mais de 100 livros, entre eles Beira Rio Beira Vida e Os que Bebem Como os Cães. Ele se sobressaiu como um dos mais lembrados pelos entrevistados. Ao todo, 20,33% disseram que Assis Brasil é escritor. Mesmo assim, 74,33% admitiram não conhecê-lo. Quando o assunto são os artistas, o produtor cultural e ex-diretor do Theatro 4 de Setembro, Antoniel Ribeiro lamenta a falta de investimento e divulgação, mas acrescenta outro ponto ao debate. “Tem muita gente boa no Piauí, com trabalhos magníficos. Seria interessante que os governantes dessem mais apoio, porém os artistas não podem ser acomodados. Não devemos esperar um milagre acontecer. Temos que correr, e muito!”, provoca Antoniel.
Por Rodrigo M. Leite
ATMOSFERA CERRADO “A
tmosfera cerrado reúne poemas e fotografias produzidos a partir de 2013, quando passei a flanar pelo sul do estado do Piauí e parte
do Maranhão (Floriano, Uruçuí, Benedito Leite, Antônio Almeida, Nova Iorque, Ribeiro Gonçalves etc). A descoberta dos territórios da casa rupestre e do rio foi o problema inicial. Os textos e as fotografias circulam na rede e em impressos alternativos, mas naturalmente serão publicados em livro. No instagram procure por #atmosferacerrado”.
Uruçuí-PI
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Nova Iorque - MA
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INFORME PUBLICITÁRIO
QUANDO OS VENTOS DE MUDANÇA SOPRAM “Umas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento”, diria Érico Veríssimo. Em um vasto trecho do Piauí, na divisa com Ceará e Pernambuco, a parceria entre moradores e companhias que investem no potencial eólico do Estado está escrevendo uma nova história.
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POR PAULO LIMA E THYAGO MATHIAS FOTOS DE MARCELA MARQUES
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último período de estiagem na Chapada do Araripe começou em 2011 e perdurou até o final de 2014, mas o que poderia ser encarado como o início de uma década perdida está despontando como um renascimento para a população desses municípios, espalhados na divisa entre Piauí, Pernambuco e Ceará. Nascido e criado em Marcolândia (PI), Paulo Alves de Carvalho, 58, viu de perto os altos e baixos da região. Comerciante há mais de dez anos, gerencia, junto com a filha, Isamara, 24, o negócio da família, o Carvalhos Grill, considerado um dos mais conhecidos da cidade. Saudoso, ele se lembra como se fosse ontem do auge da colheita da mandioca que garantia o sustento da família. “Nos bons tempos os pequenos agricultores da região tiravam cerca de 4 toneladas de mandioca por colheita”, lembra. Além disso, ele também foi dono da Fábrica de Farinha São Pedro, que acabou indo à falência com a seca de 2011 a 2014. A família Carvalho tocava uma barraca de lanches e petiscos na Barragem do Macedo, próximo a Marcolândia, quando o movimento de engenheiros e pesquisadores que vinham erguer torres de medição da velocidade dos
ventos – chamadas de anemométricas – se intensificou na região. A barraca foi ampliada e se tornou um pequeno restaurante no centro da cidade. O negócio cresceu junto com a chegada das construtoras que começariam a erguer os primeiros complexos eólicos na Chapada do Araripe. Para atender a essa emergente demanda que vinha almoçar após um turno de trabalho, eles tiveram a ideia de alugar o ginásio do clube da cidade e lá servir as refeições. “Dessa forma, chegamos a atender mais de 400 pessoas em um dia”, afirma Paulo. É aí que a história dos Carvalhos se assemelha com a de Eraldo Francisco, 39. Morador de Simões (PI), o agricultor adotou uma fonte de renda extra para sua família. Trata-se de um pequeno restaurante adaptado na varanda de casa. No local, ele recebe orgulhoso os operários que trabalham na região, um público que chega a 40 pessoas por dia, entre almoço e jantar. No cardápio, as opções privilegiam a produção regional: arroz, feijão, salada, farofa, frango frito e refogado, pirão, baião de dois, mandioca frita, além de ovo frito, feito com manteiga de garrafa. Tudo fresco, feito na hora com ajuda de sua esposa, dona Maria.
Paulo Alves Carvalho de 58 anos, e Isamara da Silva Carvalho, de 24 anos. Pai e Filha, comerciantes de Marcolândia.
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INFORME PUBLICITÁRIO Os ovos vêm de 60 aves que convivem lado a lado com uma plantação de mandioca e os três aerogeradores – turbinas que transformam a força dos ventos em energia elétrica – instalados em sua propriedade. “As turbinas acabaram de ser instaladas e não vejo a hora de funcionaram, para eu receber o meu percentual sobre a venda de energia delas”, afirma Eraldo, que pretende fazer melhorias em casa e na plantação com o dinheiro recebido da parceria estabelecida com a companhia que o procurou para instalar as torres em seu terreno.
Pré-sal dos ventos
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stas duas histórias fazem parte de um mesmo círculo virtuoso que tem sido impulsionado pelo aproveitamento do potencial eólico da região. Em um evento que marcou o início da construção dos primeiros parques na Chapada do Araripe, falou-se até que aquela região representava para o potencial eólico brasileiro o equivalente ao que o pré-sal significa-
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Eraldo Francisco, 39. Morador de Simões (PI)
va para o mercado de petróleo do país, em uma alusão à dimensão e relevância dessas duas reservas energéticas. Comparações à parte, os investimentos aplicados no Estado são os maiores desde a construção da Usina Boa Esperança, hidrelétrica inaugurada em 1970. Somente a companhia Casa dos Ventos, principal desenvolvedora de projetos na região da Chapada do Araripe, prevê a aplicação de R$ 6,5 bilhões neste e nos próximos anos em projetos que incluem pesquisas, arrendamento de terras, aquisição, instala-
ção e manutenção de equipamentos e melhorias em infraestrutura. No total, mais de 3 mil empregos diretos e cerca de 10 mil indiretos são esperados com a construção e operação dos parques atualmente em construção, em municípios como Marcolândia, Caldeirão Grande e Simões. Os benefícios, diretos e indiretos, contudo, estão espalhando-se rapidamente. A trajetória da Damião Rodrigues de Oliveira é um exemplo. Natural de Serrolândia, distrito de Ipubi (PE), o rapaz começou a trabalhar aos oito anos na roça de mandioca ajudando a família. Engajado em um esforço pessoal para crescer, estudou o magistério, voltou aos campos e prestou concurso para um trabalho temporário no IBGE. Foi como recenseador que conheceu Erasmo Ferreira, da equipe da Casa dos Ventos em Araripina (PE). Impressionado com a motivação e a competência de Damião, Erasmo convidou o jovem, hoje com 28 anos, a integrar a equipe local da companhia. Desde então, Damião passou pela equipe de georreferenciamento, continuou se aperfeiçoando, concluiu a faculdade de Gestão Ambiental e foi promovido a técnico ambiental da Casa dos Ventos. Casado com Josiclesia, 22, é pai de Jennifer de apenas seis meses. Juntos, e com uma nova perspectiva de vida, planejam reconstruir a vida da família, de volta a Ipubi, a pouco mais de uma hora dos parques. “Nunca imagi-
Fazendo a economia girar
M Damião Rodrigues de Oliveira, 28.
nei que a energia dos ventos pudesse transformar minha vida. A primeira vez que eu ouvi falar nela eu estava na escola e tinha apenas nove anos”, pontua. “Hoje, ela se tornou realidade. A gente pode ver as turbinas e viver essa transformação”. Neste sentido, o depoimento de Damião ecoa o de Erasmo: “Essa energia não é apenas o nosso futuro. Ela está aqui, cada vez mais perto, botando comida na mesa. E ainda contribui para baixar o preço de energia do Brasil”, empolga-se.
ais do que a geração de empregos em si, é a geração e circulação de renda que tem transformado a realidade e as perspectivas dos moradores da região. Proveniente não apenas de salários, mas da remuneração pela cessão de uso das terras, além dos investimentos diretos em infraestrutura, esse dinheiro adicional tem feito a economia girar, com um efeito quase tão duradouro e perene quanto a força dos ventos. As oportunidades abertas ao empreendedorismo vão sendo aproveitadas com a consolidação de uma rede de serviços mais sofisticada. Abrir uma academia de ginástica em Marcolândia, por exemplo, é o próximo passo para Jayne Barbosa Santana, 21, que separa parte do salário que recebe como técnica de edificações de uma das construtoras que atuam na cidade para pagar a faculdade de Educação Física. “Eu imaginava que precisaria me formar e ir para outra cidade conseguir
trabalho”, conta Jayne, que está no segundo ano do curso. “Com a chegada das eólicas, muitos amigos e familiares desistiram de ir para fora e ficaram aqui. Depois de formada, quero proporcionar uma qualidade de vida melhor para essas pessoas que se instaram aqui”. E, no que se refere a qualidade de vida, o melhor indicador é percebido nas escolas da região. Com a renda complementar, muitas famílias deixaram de mobilizar suas crianças e adolescentes nas lavouras de mandioca. Segundo a professora Maria Aparecida da Conceição Nascimento, da Escola Municipal Érico Veríssimo, que atende alunos da área rural do município de Simões e outras cidades do Piauí, o índice de reprovação tem caído sensivelmente em relação aos anos anteriores. “Em 2014 apenas sete pessoas foram reprovadas, contra treze do ano anterior. Já o percentual de transferência caiu em 20% se comparado a 2013. Estamos começando a direcionar alunos para outras escolas da região, enquanto não abrimos novas vagas”, conclui a professora. Pouco a pouco, as companhias que passaram a atuar na região têm firmado convênios com as prefeituras para reformar e ampliar as escolas.
Compromisso com as comunidades
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omo seria esperado, a chegada dessas companhias não se deu sem alguma desconfiança. Natural de Muquém (PI), Dona Maria Otília, 68, lembra que o começo foi difícil. Muitos amigos, vizinhos e conhecidos da agricultora recebiam desconfiados o convite para ceder o uso de suas terras à montagem de aerogeradores e ofereciam resistência: “As pessoas tinham medo que a empresa fossa roubar a terra deles”, lembra. Com a realização de reuniões, palestras e visita a projetos similares em outras cidades, a comunidade foi se sensibilizando, vendo nesta iniciativa www.revistarevestres.com.br •
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Casa dos Ventos
P Maria Otília de Oliveira, 68 anos, Agricultora e agente de saúde.
a oportunidade de obter uma renda extra. “O pessoal das empresas foi chegando aos poucos, explicando devagar e a gente foi acreditando. Hoje está aí o resultado. Tem mais dinheiro entrando, o pessoal está comprando mais, estão todos mais felizes. Hoje os que não aceitaram, lamentam não ter entrado no projeto”, afirma Maria Otília. O aproveitamento do potencial eólico na região trouxe um alento à família de Maria Otília. Depois de entrar em acordo com a companhia desenvolvedora para mudar-se para uma casa nova, ela terá três aerogeradores em
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sua propriedade. Arrimo de família, há alguns anos, a história dela converge com a de Jayne, Damião, Josiclésia, Eraldo e Paulo e Isamara Carvalho. Todos, faces de uma nova história que está apenas começando a se desenvolver nesta parte do Piauí. “Eu tenho quatro bocas para alimentar e com a mandioca em baixa por causa da seca, a chegada dessas turbinas mudou nossa realidade para melhor. Vento por aqui é o que não falta e enquanto estiver soprando, estará nos garantindo uma melhor condição de vida”, comemora Maria Otília.
rincipal desenvolvedora de projetos de energia eólica no Estado, a Casa dos Ventos é uma das pioneiras neste setor, no Brasil. Um em cada quatro projetos desenvolvidos no país são realizados pela empresa. Há oito anos no mercado, ela é responsável pelo maior número de projetos que venderam energia nos leilões e no ambiente de contratação livre. Além de ter desenvolvido aproximadamente 30% de todos os empreendimentos em implantação ou operação no país, a empresa é detentora do maior portfólio de projetos eólicos do Brasil. De acordo com Lucas Araripe, diretor de Novos Negócios da Casa dos Ventos, os projetos implantados pela empresa promovem o fomento da região. “Além de identificar os maiores recursos eólicos no país, estimulamos de forma sustentável o desenvolvimento das cidades com as quais fazemos pesquisas de viabilidade e implantamos nossos projetos. O nosso diferencial é a combinação de alta tecnologia e metodologias exclusivas, aliada a uma equipe especializada dedicada no desenvolvimento e implantação dos parques, sempre respeitando as características de cada região”, conclui Lucas. Quando concluídos os projetos da companhia na região da Chapada do Araripe, eles devem gerar mais de 1200 MW. A Casa dos Ventos inaugura o primeiro deles ainda em 2015 e o segundo em 2017. O estado, que tem prospectado muitos investimentos na área, caminha para ultrapassar o Ceará em geração energética eólica, para ficar atrás só do líder no quesito, o Rio Grande do Norte.
POESIA
NA TRILHA DA POESIA Uma Kombi circula o Brasil levando poesia por onde passa. Estrada, arte e amizade: esse é o movimento Itinerância Poética. POR VICTÓRIA HOLANDA FOTOS MAURÍCIO POKEMON
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e você vir por aí uma perua customizada, exibindo filmes, expondo e vendendo livros, já sabe: o projeto Itinerância Poética chegou à sua cidade. “Eu falo que a Kombi é a artista e eu sou o motorista”, diz Guilherme Salgado, poeta, músico e educador popular. Na sua jornada, já passou por Pernambuco, Piauí, Maranhão e Ceará. Mineiro, fez faculdade de fisioterapia, mas foi na educação popular que seguiu carreira na saúde, trabalhando na organização de políticas públicas e acompanhando manifestações artísticas e sociais pelo Brasil. Morou em São Paulo, Paraíba, Bahia e confessa: “Eu já tinha o espírito nômade”. Escreve desde os 16 anos e, hoje, aos 31, tem dois livros publicados. Itinerância Poética, seu primeiro título lançado há três anos, carrega o nome do projeto que circula pelo país levando poesia a toda parte. “Justamente porque eu tinha poemas escritos em vários lugares pelos quais eu já tinha passado e essa migração acabou disparando em mim uma vocação pela peregrinação”. Seu primeiro livro foi lançado pelo selo editorial independente Edtóra.
“Porque a gente publica ‘na tora’ mesmo”, explica. Elaborado por Guilherme e amigos, o selo chegou a lançar cinco livros. “Nós mesmos que inventamos e não tem um conselho editorial que vai avaliar se sua obra é boa ou se vende milhões. A gente não tá interessado nisso. Estamos interessados em um afinamento ético, estético e político que dialoga com a arte contemporânea intervencionista”. A experiência resultou em 400 exemplares e o estimulou a circular, ultrapassando as dificuldades de divulgação e distribuição ao seu modo: caindo na estrada. No ano de 2013 comprou um fusca – foi seu primeiro experimento itinerante. O automóvel circulou oito mil quilômetros de Minas Gerais à Bahia pelo litoral e do oeste da Bahia até Minas Gerais novamente. O fusca foi ficando pequeno para guardar violão, pandeiro e todos os livros que Guilherme trocava, adquiria e vendia, até que a Kombi deu prosseguimento ao projeto de maneira mais estruturada. Na página do facebook a concepção fica clara. Prêmios: sorrisos e emoções. ISBN de livro: “Sem direitos autorais
para quem não acredita em autoridade”. O movimento Itinerância Poética segue por praia, praça e sertão e, muitas vezes, por caminhos imprevisíveis de levar arte por onde passa. “Enquanto poeta e escritor eu também quero diminuir a distância, quem escreve e quem lê”. E divulga não só o seu trabalho, mas também a produção de amigos. O que começou como maneira de divulgar e distribuir os próprios livros virou komboteca: é biblioteca, livraria e sebo itinerante. Não parou por aí. Lançou seu segundo livro, Estirpe, de contos e poesias, pelo selo editorial paulista Poesia Maloqueirista, que tem 13 anos e já publicou 26 livros de 21 poetas. “Um dos meus objetivos principais com o projeto é incentivar os movimentos autônomos numa corrente que a gente tem chamado de literatura divergente porque diverge dos cânones das grandes editoras. Eu até tenho chamado de publicações interdependentes porque tenho achado que a literatura não é independente, ela é solidária porque eu dependo de uma galera do movimento da parceria, da camaradagem, da solidariedade”, defende. www.revistarevestres.com.br •
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POESIA
Por dentro da komboteca
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etade imagens e ilustrações, outra metade poesia. Quem a vê não resiste e para quando percebe a novidade. Livro para vender, livro para folhear e, se calhar, filme exibido em praça pública. Para quem quiser, a Kombi ainda é mural em branco para deixar sua mensagem. De Minas ao Maranhão pelo sertão e do Maranhão a Minas pelo litoral. Guilherme tem o prazo de cinco a seis meses para cumprir este trajeto, saindo de sua terra natal para enveredar pelo caminho da poesia. Nessa trilha, acaba contando com muita solidariedade. “Cada lugar que eu chego encontro pessoas que me acolhem”. Os maiores gastos da viagem são com combustível e manutenção mecânica do automóvel. A Kombi não deixa na mão e é toda equipada: os bancos em que sentamos para fazer a entrevista viram a base da cama, tem uma pequena cozinha para preparar alimentos e uma 60 • www.revistarevestres.com.br
farta biblioteca para alimentar a alma e a imaginação. Versátil que nem o dono, a Kombi é transporte e lar. A venda de livros é o financiamento direto do projeto, sejam eles autorais ou sebos. Apesar de ter saído de casa com dinheiro guardado para questões emergenciais, não precisou usá-lo até agora e a viagem tem se financiado. “Tem cidade que nem uma cerveja eu consigo pagar. Acho que essa é a maior forma de reconhecimento do trabalho. A galera se liga que eu tô prestando um serviço em que, muitas vezes, o estado está falho nisso. Tem vários projetos arrojados por aí, mas você chega às perife-
rias das cidades e não tem equipamento cultural. As bibliotecas que existem são verdadeiros templos da formalidade, onde os jovens não são convidados a entrar”, justifica. O acervo de Guilherme Salgado tem aproximadamente 1000 livros. “Geralmente o livro é inacessível porque é caro. A gente sabe que as grandes editoras têm uma rede de atravessadores que ganham no meio. O escritor e o leitor perdem”. No Piauí, conheceu Picos e Teresina. “Em São Luís, no Maranhão, eu chego à metade da minha viagem e vou voltar pelo litoral, que eu sou mineiro e mereço uma praia”, sorri.
NA PÁGINA DO FACEBOOK, A CONCEPÇÃO FICA CLARA. PRÊMIOS: SORRISOS E EMOÇÕES. ISBN DE LIVRO: “SEM DIREITOS AUTORAIS PARA QUEM NÃO ACREDITA EM AUTORIDADE”
A estrada continua
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om os projetos que Guilherme tem em mente dá pra escrever uma lista. Citados despretensiosamente e fora de ordem cronológica, um deles é lançar um box com sete livros infantis e convidar amigas contadoras de histórias para favorecer o público deficiente auditivo ou sem alfabetização: um audiobook. Entre as ideias que Guilherme pretende concretizar estão descer até o Rio Grande do Sul e subir até o Uruguai para visitar amigos na Argentina e no Chile que trabalham com feiras literárias de rua, e enveredar pelo sertão do centro-oeste. Porém, suspeitamos que o mais
importante seja voltar pra casa e rever a companheira e a filha, Helena, de um ano e meio. “Ela e mãe vão me encontrar agora no Ceará, de lá eu devo passar Natal e Réveillon com os familiares, depois ver...”. Enquanto isso, Guilherme segue pela estrada, acreditando que arte e cultura são o que movem a vida. Se os amigos que conheceu ao longo da viagem não estiverem presentes, sozinho, certamente, não vai estar: tem os livros para lhe acompanharem ao longo dos quilômetros. Blog: itineranciapoetica.blogspot.com.br facebook: ItineranciaPoetica
A EXPERIÊNCIA RESULTOU EM 400 EXEMPLARES E O ESTIMULOU A CIRCULAR, ULTRAPASSANDO AS DIFICULDADES DE DIVULGAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO AO SEU MODO: CAINDO NA ESTRADA.
CANGAÇO
FAROESTE NO CHINELO No escritório de um médico, relíquias e histórias de sangue e sertão provam que Lampião está mais vivo do que nunca. POR LUANA SENA FOTOS MAURÍCIO POKEMON
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eandro Cardoso é um cardiologista de meia idade cujo hobby predileto é estar entre os livros. Não são títulos de medicina, nem poesia, tampouco ficção. O que atrai o médico são histórias sanguinárias de um passado recente do nordeste brasileiro: livros, punhais, cartucheiras, chapéus e outros pertences originais ocupam quatro armários, do chão ao teto. Em um dos cômodos de seu apartamento, na zona leste de Teresina, Virgulino Ferreira, o Rei do Cangaço, está mais vivo do que nunca. A paixão de Leandro pelo tema começou aos 12 anos, quando ganhou de presente do avô o livro “Lampião, cangaço, nordeste”. As marcas na dobradura dão pistas sobre o tempo, mas ele não é o mais antigo – nem seria o primeiro – livro daquela coleção. De lá para cá, Leandro seguiu lendo e pesquisando tudo o que diz respeito ao cangaço. Leandro trabalhou por dez anos em São Paulo, “a capital mais nordestina de todas”, diz o médico. No consultório, conversa vai, conversa vem, vez por outra ele encontrava descendentes de cangaceiros: primos, irmãos, filhos – ou mesmo dos 62 • www.revistarevestres.com.br
volantes (Força Volante era a tropa do governo montada para combater os cangaceiros nos anos 1930). “Eu fui médico da dona Mocinha, irmã de Lampião”, relembra. Cada personagem descoberto era como uma peça que faltava no quebra-cabeça do pesquisador. Em maio de 2002, Leandro recebeu uma ligação inesperada de Aracaju. A voz do outro lado da linha disse sem cerimônia: - A cabeça do vovô está aqui em casa, você gostaria de ver? Era Vera Ferreira, neta de Lampião. Pegou o primeiro avião. Tornou-se o segundo médico a confirmar que Lampião não era “lombroso” – a expressão remete ao médico italiano, Cesare Lombroso, criador da teoria de que traços físicos podem denunciar um perfil criminoso. “Orelha de abano, fronte fugidia, caninos possantes, eram algumas das características de um lombroso”, explica o médico. A teoria caiu em desuso, mas a curiosidade dos pesquisadores sobre Lampião permaneceu porque ninguém nunca tinha tido a oportunidade de examinar tão profundamente essas características. Lampião e mais nove integrantes de seu bando foram mor-
tos em 1938 por tropas da polícia na Gruta do Angico, sertão sergipano. As cabeças foram decepadas e permaneceram por anos no Instituto Nina Rodrigues, na Bahia, até a família de Virgulino conseguir na justiça o direito de enterrá-las, no cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador. Mas o início dos anos 2000 trouxe fortes chuvas à região, e a defesa civil obrigou a retirada das urnas do local. Elas foram entregues novamente às famílias. “Como eu sou amigo da Vera e ela sabia que eu estava escrevendo um livro, me ligou com essa proposta e eu nem pensei duas vezes”. O exame resultou no livro “Lampião: a medicina e o cangaço – aspectos médicos do cangaceirismo”, escrito por Leandro em parceria com Antônio Amaury Corrêa de Araújo, umas das maiores referências em cangaço no Brasil. “Eu pude examinar
A VOZ DO OUTRO LADO DA LINHA DISSE SEM CERIMÔNIA: “A CABEÇA DO VOVÔ ESTÁ AQUI EM CASA, VOCÊ GOSTARIA DE VER?” ERA A NETA DE LAMPIÃO. o occipital dele por dentro e Lampião não era um lombrosiano nato”, diz o médico. O livro traz ainda outros diagnósticos sobre a figura do cangaceiro mais famoso da história, como a cegueira no olho direito. “Se você pegar a literatura, cada um diz uma coisa: catarata, glaucoma, mas tudo da boca pra fora”, afirma o pesquisador. “Durante um combate com uma volante, em 1925, uma bala pegou num espinheiro que estava perto de Lampião e ele foi atingido”, explica Leandro. “A causa mais comum de cegueira no sertão é trauma”, continua. “Se ele tivesse feito um transplante de córnea, provavelmente voltaria a enxergar, mas naquela época não existia”. Lampião virou um cego funcional e teve que aprender a ser canhoto quase aos 30 anos de idade. Na prateleira, o livro escrito por Leandro divide espaço com mais de 100 títulos. Há ainda uma videoteca com filmes como “O cangaceiro”, de Lima Barreto (1953), “Nordeste sangrento”, com o estreante ator Paulo Goulart (1963) e “Baile perfumado”, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira (1996). Entretanto, o filme mais precioso ali é um DVD um tanto caseiro com 11 minutos de imagens de Lampião e seu bando, registrados pelo sírio-libanês Benjamin Abraão na década de 1930. “Lampião aceitou que o
libanês os filmasse porque ele era secretário de Padre Cícero”, explica Leandro. O filme ficou por anos preso nos porões da ditadura Vargas e só se conhecia, afinal, seis minutos de gravação. “Benjamin passou meses lá com os cangaceiros, é provável que existissem horas e horas de gravação, mas boa parte do filme foi perdida ou danificada”. Foram Leandro e o cineasta Wolney Oliveira que encontraram, na cinemateca brasileira, em São Paulo, mais cinco minutos inéditos de imagens. Além do acervo literário e visual, o médico também guarda peças originais do vestuário dos cangaceiros: chapéu, bornais floridos, cartucheiras, alpargatas e punhais – um deles foi presente de Moreno, considerado um dos cangaceiros mais valentes do bando de Lampião. “Parando minha recordação, eu ainda matei 21”, diz Moreno, aos 99 anos, no documentário “Os últimos cangaceiros”, lançado este ano no Brasil. Leandro conheceu Moreno e a mulher, Durvinha, cujas histórias de vida dariam um filme. E deu! (Leia no box) Leandro fala de cada detalhe da indumentária do cangaço com um misto de admiração e êxtase. Ele sabe de cor as falas de Lampião no filme mudo. Tem na mente as datas dos combates, faz viagens frequentes para regiões que foram marco do “banditismo social” brasileiro e refuta pesquisadores. Para ele, um dos maiores equívocos é confundir o cangaceiro com a figura de um bandido. “O código penal da época era surra, bala e punhal”, explica. “Tratar o cangaceiro como bandido é um erro porque esse era o modus operandi daquela época”, defende. “A polícia agia assim e o coronel também”. O médico vê o cangaço como uma manifestação contra a colonização, “um irredentismo brasileiro”, diz, citando a teoria de Frederico Pernambucano de Mello. “Cada vez mais eles foram empurrados pro sertão porque queriam viver sem lei nem rei”, afirma. O que os diferencia do bandido comum? “O bandido tende a se ocultar, viver na surdina. O cangaceiro não. Ele não se acha bandido porque tem um código de ética muito próprio. Você acha que um cara que se veste daquele jeito quer ficar oculto?” O estilo cangaço também é outro ponto de equívoco sobre o que se prega a respeito de Lampião. Ao contrário do que vemos nas imagens da época, todas sem cores, as roupas não eram cinza, muito menos de estampa camuflada. “Parecia alegoria de carnaval”, brinca o pesquisador. “A roupa é espalhafatosa, mas nada daquilo é supérfluo”, explica enquanto mostra a forma correta de se abotoar um bornal. “Eles usavam quatro bornais www.revistarevestres.com.br •
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CANGAÇO
Os últimos cangaceiros O CANGACEIRO NÃO SE ACHA BANDIDO PORQUE TEM UM CÓDIGO DE ÉTICA MUITO PRÓPRIO. VOCÊ ACHA QUE UM CARA QUE SE VESTE DAQUELE JEITO QUER FICAR OCULTO? em volta do ombro. O cara carregava mais de 30 quilos e podia rolar no chão que não saia nada do corpo”. Muitos desses detalhes estão no livro “A estética do cangaço” (Frederico Pernambucano de Mello), que traz ainda curiosidades sobre lenços, perfume francês, óculos alemães e outros delírios de consumo do vaidoso Lampião. “Era tudo muito bem feito, costurado em máquina, tinha uma preocupação visual”, diz o médico. “O faroeste americano não chega nem perto”. Em outubro deste ano, algumas dessas peças vão estar expostas no 4º Congresso Nacional do Cangaço que acontece pela primeira vez no Piauí, na cidade de São Raimundo Nonato. Organizado pela SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos Sobre o Cangaço), o evento vai reunir (de 27 a 31) os maiores pesquisadores brasileiros sobre o tema – Vera Ferreira, neta de Lampião, confirmou presença para uma palestra. Leandro, que coordena o evento, também vai ministrar palestra e lançar nova edição de seu livro – serão cinco dias entregue a histórias de sangue e sertão pra faroeste americano nenhum botar defeito. “A gente não acredita no que a gente tem”, diz o pesquisador intrigado com o fato de Hollywood vender há anos Billy the Kid como o maior fora da lei de todos os tempos. “Ele matou três pessoas! Três! Agora veja Lampião”, propõe. “Se Tarantino visse um negócio desse ficaria louco!”. 64 • www.revistarevestres.com.br
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inguém podia imaginar que o pacato casal Jovina Maria da Conceição e José Antônio Souto, ambos com mais de 90 anos, tinham um passado tão misterioso quanto impressionante. Por quase cinquenta anos eles esconderam dos filhos um segredo revelado somente no século XXI: eles foram cangaceiros integrantes do bando de Lampião. Os pesquisadores nunca chegavam a um consenso sobre o paradeiro daqueles que escaparam ao confronto sangrento em Angico, no Sergipe –
alguns apontavam Ceará e Maranhão como possíveis destinos dos cangaceiros. Outros afirmavam que eles haviam morrido. Porém, escondidos atrás dos nomes falsos sobre os quais refizeram suas vidas em Belo Horizonte, estavam, na verdade, Antônio Ignácio da Silva, o Moreno, e Durvalina Gomes de Sá, a Durvinha. Ele, cearense, e ela, pernambucana, estavam no interior do Ceará quando souberam da morte de Lampião e dos demais companheiros, em 1938. Disfarçados de retirantes, seguiram rumo
ao sul, mudaram de nome e fizeram um pacto de nunca contar a ninguém o segredo. A história teria mesmo ido ao túmulo, não fosse o fato de, pelo caminho, os cangaceiros terem deixado um filho, aos três meses de vida, aos cuidados de um padre em Tacaratu, no interior de Pernambuco. Acometido por uma doença em 2006, Moreno resolveu revelar a família o desejo que tinha de reencontrar o primogênito. Os filhos puseram-se a procurar o irmão, em Tacaratu, quando se depararam com a surpresa: “Ah, o filho dos cangaceiros?” Com a revelação, pesquisadores de todos os cantos voaram para colher de perto os novos relatos e as recordações de Moreno e Durvinha – sabe-se que ela foi, num primeiro momento, mulher de Virgínio, cunhado de Lampião. Com a morte dele, Moreno assumiu Durvinha – era proibido mulher sozinha no bando. A história virou enredo do documentário “Os últimos cangaceiros”, produzido por Wolney Oliveira. É o primeiro longa metragem documental sobre o cangaço e, no seu lançamento mundial, em 2014, foi premiado em festivais de cinema no México, Cuba e Bolívia. Moreno e Durvinha não chegaram a ver o filme pronto – ela
morreu em 2008, ele, centenário, dois anos depois. Além de relatos dos ex-cangaceiros, filhos, parentes (e o reencontro com Ignácio, o filho mais velho, deixado no Pernambuco), o longa traz cenas inéditas das gravações feitas pelo libanês Benjamin, nos anos 1930 (aquelas, recuperadas por Leandro e Wolney na cinemateca – ver matéria). A produção conseguiu colorir frame a frame algumas imagens, que, além de modernizar, dão uma ideia mais realista da estética do cangaço. Outro trunfo são as legendas nas falas de Lampião e seu bando: uma equipe especialista foi contratada para decifrar o que os cangaceiros falavam no filme mudo. Wolney colocou Moreno e Durvinha para se reverem nessas imagens – o resultado, emocionante, está no documentário.
BRASIL
SPRAY, SOM, AÇÃO! Com uma lata na mão, boa música, de preferência black music, e muita disposição, a artista urbana Ananda Nahú vem quebrando estereótipos e deixando sua marca pelas ruas do sertão de Pernambuco à Big Apple. POR DENISE MOURA, de Newcastle (Inglaterra)
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ransgressão parece ser a palavra de ordem para a artista urbana nascida em Juazeiro da Bahia que resolveu fincar o pé no grafite. Não se trata apenas da escolha de uma arte vista por muito tempo como marginalizada, ou da decisão de atuar em um universo dominado por homens, rompendo a barreira de gêneros, mas da aposta em técnicas novas, cores, na valorização da mulher e na mistura entre pintura e música. Ananda já criou centenas de telas, exportadas para o mercado europeu, e mais de trinta murais que podem ser encontrados em Pernambuco, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Nova York e no Reino Unido. O estilo? Inconfundível, vibrante. As pinturas são cheias de cores, de luz e de intensidade que arrebatam o olhar, moldadas pela técnica do stencil, que consiste em obter uma imagem através de um molde vazado. O mote é quase sempre a beleza feminina. 66 • www.revistarevestres.com.br
Revestrés: Como você se vê nesse universo da Street Art, ainda dominado por homens? Ananda Nahú: As mulheres estão ganhando espaço cada vez maior. Porém, quando você está executando algum trabalho na rua, lugar onde todo tipo de gente transita, de louco a santo, independente do gênero, em uma parede com permissão ou não, é necessário ter muita atenção mesmo. Grafite tem a ver com ilegalidade, com ficar esperto e ser rápido para mandar seu bombing, seu tag, sem ser pego pelo dono ou responsável pelo lugar ou pela polícia. Mesmo que o famoso bordão “poder feminino” esteja em moda, não podemos negar que, na maioria dos casos, temos uma inferioridade física natural em relação aos homens, e que o estupro e a violência contra as mulheres são ainda muito comuns. Com a eterna sexualização da imagem da mulher nas grandes mídias e anúncios, bombardeados em nossas mentes o tempo todo, estamos condenadas a sermos transformadas facil-
popular aquelas padronagens de tecido tipicamente nordestina. Então o universo de tecidos, texturas e padronagens sempre esteve presente. Lá em casa sempre tive à disposição livros de culturas orientais e arte religiosa. Ainda na adolescência comecei a colecionar posters e fiquei aficionada pelo assunto: quanto mais imagens de cartazes antigos conseguia, mais queria procurar. Música para mim sempre foi importante. Sempre busquei estudar e ter como referência no meu repertório capas de discos, de diversos estilos, principalmente de rock psicodélico, soul dos anos 60 a 80, rock progressivo, metal, hardcore, punk... Então peguei todas essas influências e passei a expressá-las, de acordo com minhas próprias vivências. Foi natural para mim criar um estilo, entretanto é bastante trabalhoso organizar a mente para perceber todas essas coisas. Não é fácil olhar para dentro de si e dar valor a pequenas coisas que não pareciam importantes. E como usar aquilo a favor no trabalho? É um processo que leva a vida toda. R.: E é daí que vem seu interesse em pintar mulheres negras, como Nina Simone? mente em objetos sexuais pela grande maioria. Lutar contra esse estigma ainda é bastante trabalhoso, mesmo porque grande parte das próprias mulheres ajuda a perpetuar isso, confundindo liberdade sexual com exploração sexual. R.: Como você tenta mudar isso? A.N.: Tento mostrar uma imagem positiva da mulher, saindo do clichê mulher-objeto. Sensibilidade, pureza, positividade, força e impacto são características que costumo adicionar nas obras. É muito fácil vender produtos com uma bela imagem feminina. Seja uma pasta de dente ou uma obra de arte, usar uma bela mulher, seminua ou não, é sempre o caminho mais fácil e trilhado por quase todo mundo. Sair desse estereótipo e reinventar a imagem da mulher, dando a ela alguma dignidade e ética, aí são outros quinhentos. R.: Como surgiu o interesse pelo grafite e pelo stencil? A.N.: Quando estava na faculdade de Artes Plásticas, na UFBA, conheci o Izolag Almeidah, meu marido, que já mexia com grafite e tinha sua própria crew, seu grupo de grafiteiros, a 071. Quando começamos a namorar ele passou a me levar para pintar nas ruas. Começamos a desenvolver melhor a técnica juntos, e Izolag abandonou sua crew para fundar comigo a Firme Forte Records, nossa gravadora de imagens. Desde então passamos a desenvolver nossos trabalhos individualmente, e quando fazemos produções artísticas juntos, assinamos como Firme Forte Records. R.: Como você vê o seu estilo? A.N.: Estilo é o refinamento de suas referências e influências pessoais e impessoais, organizadas mentalmente e expressadas visualmente. Minha avó materna sempre costurava roupas, e mexia com tecidos, e eu adorava mexer com costura. Na cidade em que cresci, Petrolina, em Pernambuco, era extremamente
A.N.: Adoro black music, que vai desde High Life, Afrobeat, Afro cuban, Blues, Ragtime, Jazz, Boogie Woogie, Rhythm and Blues, Doo-wop, Rock & Roll, Soul, Funk, Disco, Hip Hop ... Sempre gostei de ouvir cantoras negras, principalmente as norte-americanas dos anos 60 e 70. No Brasil a cultura negra, africana, também é uma referência forte e sempre procuro coisas que eu tive contato, seja na umbanda, estudando música ou arte negra. Eu não penso em trabalhar porque estou lutando em relação à raça, mas porque estou trabalhando com referências minhas. Eu não gosto de abordar como uma questão de racismo. Eu não vejo cor, vejo beleza. R.: Dá pra ver que a música está bem presente no seu trabalho. A.N.: Eu sempre trabalho ouvindo música e, junto com meu marido, temos o hábito de buscar sons que não conhecemos e ouvir de tudo que achamos interessante. Trabalhamos no nosso studio a maior parte do tempo, cortando stencil para colocar na rua e fazendo telas de pintura. Tanto tempo tendo que permanecer em nosso ateliê nos obriga a estar sempre buscando coisas novas para ouvir. R.: Essa interação entre pintura e música também estava presente no One Big City, projeto do qual você participou em Nova York, não? A. N.: One Big City é um projeto criado pelo CEC Arts Links, que é uma organização que busca a interação cultural entre artistas do Leste Europeu e Estados Unidos. Nesse projeto, eles buscavam parear artistas de outros países com nova iorquinos para produzirem interações culturais em comunidades de bairros em Nova York. Fui a primeira latina americana selecionada pela organização. Fiz parceria com o músico americano Jeremy Thal e atuamos nas comunidades do Brooklyn e Bronx. Neste projeto fiz um grande mural no centro cultural BRIC Arts Media (Brooklyn) e pinturas nas ruas do East Village, Dumbo e nos www.revistarevestres.com.br •
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BRASIL
MESMO QUE O FAMOSO BORDÃO “PODER FEMININO” ESTEJA EM MODA, NÃO PODEMOS NEGAR QUE, NA MAIORIA DOS CASOS, TEMOS UMA INFERIORIDADE FÍSICA NATURAL EM RELAÇÃO AOS HOMENS, E QUE O ESTUPRO E A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES É AINDA MUITO COMUM centros comunitários Mothers on The Move e THE POINT (Bronx). Também ensinei Artes em uma escola pública no Sunset Park para 20 pré-adolescentes. Enquanto isso, Jeremy Thal gravava os áudios do ambiente onde as pinturas eram criadas, entrevistava pessoas que estavam ali sobre suas impressões e em seguida mixava os sons e criava peças musicais a partir destes arquivos. Foi uma experiência bem diferente! R.: Em parceria com o Izolag, você é autora do maior stencil do mundo, no Liceu das Artes do Rio de Janeiro. Qual foi a parte mais difícil de produzir essa obra: preocupar-se com o acabamento ou com o balançar das estruturas que seguravam vocês, numa extensão de 40 metros de altura e 12 metros de largura? A.N.: Acredito que foi no momento de colocar a primeira parte do stencil. Não sabíamos se o andaime iria suportar três homens e uma camada que pesava muito mais do que o elevador suportava segurar. Depois, encaixar a segunda camada corretamente. Tudo isso feito em um andaime bem menor que a parede, muito frágil e que balançava e ventava muito mesmo. Toda vez que caiam pingos de chuva, mesmo uma garoa, já era suficiente para 68 • www.revistarevestres.com.br
o andaime travar conosco lá nas alturas! Tivemos que aprender na marra como destravar aquela máquina, a nove andares acima do chão! R.: Qual o lugar da arte de rua hoje? As galerias já aceitam e procuram trabalhos com grafite, stencil e técnicas mais utilizadas pela street art? A.N.: A arte urbana está bem inserida nas galerias. Muita gente começa a fazer street art já visando o mercado de arte. As galerias procuram porque é o que tá na moda, é o que todo mundo está começando a prestar atenção, e já tem tanta gente fazendo que a coisa está menos misteriosa, ficou mais banal, acabaram com a pureza e originalidade em pouquíssimo tempo. A industrialização chegou até mesmo para o grafite. É comum você ver grafites, Bombings e muralismos com logomarcas de grandes empresas ou paredes com grande poder de visibilidade colocando aquele espaço à venda para alguém colocar seu suposto mural. Isso é péssimo, mas inevitável e incontrolável. R.: E como você vê a sua arte fora do Brasil? A.N.: Tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos me parece que existe mais investimento em arte, mais murais espalhados pelas ruas, mais arte acontecendo, mais mudança e renovação. No Brasil, ainda estamos engatinhando, principalmente porque quem tem bala na agulha pra fazer investimentos no campo das Artes costuma ser bastante careta e ignorante sobre o assunto. Essas pessoas poderiam investir em novos talentos, mas investem apenas nos nomes que já tá todo mundo cansado de ver, daí não há renovação. Até quando a gente vai ficar consumindo produtos dos mesmos artistas, que fazem sempre as mesmas coisas? Todo mundo já sabe que fulano vai fazer sempre os mesmos personagens, bonecos da mesma cor, ou que sicrano vai usar sempre o mesmo estilo e forma pra fazer aquilo que todo mundo já espera. É muita monotonia, é gostar muito pouco da sua profissão, é ser artista só por causa do status que isso traz.
Sinceramente, se eu fosse ficar pintando a mesma cor amarela por décadas a fio, ou ficar fazendo stencil da mesma forma a vida toda, já teria pendurado as chuteiras há muito tempo. No Brasil a renovação é muito lenta, há muita caretice, muita gente jovem com cabeça arcaica. Não basta se fantasiar de moderninho, fazer tatuagem no braço, posar para foto no Instagram/facebook com skate e achar que isso é ter mente aberta. Me parece que existe uma grande preguiça coletiva, tanto na parte de investidor, quanto na criação dos artistas. De repente dá trabalho para toda essa galera ter o mínimo de senso crítico. Cansei desse jogo. R.: Seus primeiros trabalhos profissionais foram destinados ao mercado europeu e tiveram uma grande aceitação, antes mesmo de serem conhecidos no Brasil. Você acha que ainda vale a máxima de que para um artista brasileiro fazer sucesso no Brasil é preciso que primeiro seja reconhecido no exterior? A.N.: Acho que temos sempre que analisar cada situação, porque isso não é uma regra. Ariano Suassuna, por exemplo, nunca saiu do Brasil, mas conquistou respeito e admiração dentro e fora do Brasil. Entretanto, ter projeção no exterior sempre ajuda, pois somos estimulados pela grande mídia brasileira a valorizar mais os produtos importados do que os nacionais, fomentando um mercado de consumo voltado mais para fora do que internamente. Essa mania brasileira de se “estrangeirar” não é de hoje, desde que os portugueses chegaram aqui, eles se miravam no
que acontecia na corte francesa, e assim esse hábito de olhar para fora foi se perpetuando. R.: Qual seu conselho para quem quer seguir no seu ramo? A.N.: Meu conselho é ter muita perseverança, aliado ao hábito de estar sempre estudando. Manter-se sempre atualizado sobre os andamentos da política e sociedade e incorporar tudo isso ao seu próprio trabalho.
GASTRONOMIA
O CANTINHO Há 30 anos as delícias de boteco são servidas à sombra de jambeiros no bairro Ininga. Até Hitler se rendeu. POR LUANA SENA FOTOS MAURÍCIO POKEMON 70 • www.revistarevestres.com.br
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eresina, 38 graus à sombra. Pode ser de uma mangueira, amargosa ou oiti. Refugiar-se embaixo de uma copa espessa é uma experiência cultural e gastronômica em uma movimentada esquina do bairro Planalto Ininga, zona leste da capital. Enfileiradas, uma a uma, as árvores dão a identidade daquele cantinho quase escondido. O Cantinho do Jambo. Há quase três décadas Nazareno de Jesus Noleto, um garoto de 16 anos filho de lavradores, chegou ali, vindo do Maranhão. Morava com os sogros da irmã (que chama de padrastos) e ajudava no negócio da família: um boteco apertado na esquina das ruas Hugo Napoleão com Acesio do Rego Monteiro. Servia clientes, lavava os copos, ajudava no que podia. “Só havia dez mesas e os jambos eram pequenos”, diz, puxando da memória uma recordação. Ele não tinha ideia que, assim como as árvores, o cantinho cresceria. E ele nunca mais voltaria à roça. O bar, inaugurado no dia 30 de agosto de 1986, foi arrendado para Nazareno no começo dos anos 2000. “Perceberam que eu tinha tino pro negócio”, analisa. Ele divide sociedade com Francisco Cláudio Vieira Moreira, a quem chama de irmão. Os dois juntos tocam o reduto de uma clientela fiel e boêmia que, mesmo com poder aquisitivo para frequentar as melhores
franquias de botecos da cidade, prefere a simplicidade de estar à sombra de um pé de jambo em um domingo à tarde. “Todo mundo se admira”, diz Nazareno, numa tarde quente de terça-feira, sentado em uma das mesas de seu bar. “Em nenhuma outra cidade uma madame desceria do seu carro de luxo para vir comer panelada na beira da calçada”, vangloria-se. O status dos frequentadores do Cantinho varia de jovens universitários a juízes, médicos e promotores. “Se você chegar aqui sábado meio dia tem desembargador de chinelo e calção”, ri. A panelada, aliás, é o carro-chefe da cozinha – são 600 quilos por semana do ensopado de vísceras de boi. Sarapatel também tem boa saída – com 20 reais, duas pessoas provam dos aperitivos que vêm acompanhados de farofa, limão e molho de pimenta à vontade. Assim que abriu as portas, o cardápio do cantinho oferecia animais de caça como pato e marreco. O IBAMA proibiu e a aposta passou a ser então, além da panelada e do sarapatel, o arroz com capote e a galinha caipira – são mais de 70 por semana. Com o passar do tempo e a pedido dos clientes, foram acrescentadas as opções de linguiças e peixes. As delícias da cozinha são preparadas há 25 anos por três irmãs naturais da cidade de Campo Maior. “O segredo está nas www.revistarevestres.com.br •
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GASTRONOMIA
EM NENHUMA OUTRA CIDADE UMA MADAME DESCERIA DO SEU CARRO DE LUXO PARA VIR COMER PANELADA NA BEIRA DA CALÇADA”
VAI LÁ:
Rua Hugo Napoleão, 1625 – Planalto Ininga Teresina - Piauí
NAZARENO NOLETO
cozinheiras de mãos boas”, afirma Nazareno. Até hoje a madrasta de Nazareno (e dona do ponto) é quem comanda, aos 89 anos, as receitas e os temperos. Nazareno atribui o sucesso do Cantinho ao bom atendimento e à intimidade que ele criou com os clientes. “Atendo aqui várias gerações. O avô, o pai, o filho, é um hábito que um vai passando para o outro”, explica. “Virei amigo dos clientes, chamo todos pelo nome”. O dono diz que nunca investiu em marketing para o local – exceto quando, há uns três anos, sua esposa teve a ideia de produzir alguns adesivos para carro com a logomarca Cantinho do Jambo. Começaram colando nos veículos dos amigos, choveu de gente querendo. “Num estacionamento, uma vez, o porteiro me parou pra perguntar ‘mas o que diabos é esse cantinho?’ Todos os carros que entram aqui tem esse adesivo’”, conta orgulhoso. Em fevereiro do ano passado, quan72 • www.revistarevestres.com.br
do circulou um falso boato de que o espaço ia fechar, até Hitler protestou na internet – um cliente e fã assumido do local fez uma sátira com a famosa cena do filme “A queda! As últimas horas de Hitler”. No trecho, o ditador alemão fica nervoso com a notícia do fim do bar – “O Cantinho do Jambo já faz parte do patrimônio cultural de Teresina!”, grita furioso. “Nunca vou esquecer a língua recheada de lá”, diz, inconsolável. Outra lenda famosa sobre o lugar conta que, para amenizar os efeitos do B-R-O-BRÓ, o verão teresinense, a estratégia é esparramar gelo triturado embaixo das mesas, aos pés dos fregueses. “Aquela foto que circulou na internet foi de um aniversário de um cliente que ele comemorou aqui. Ele fez aquilo, mas só foi aquela vez”, esclarece Nazareno, que recebeu convites para entrevistas e reportagens na TV, mas não quis comentar o inusitado. Diferente dos clientes, o dono do bar
gosta de ser anônimo. Há 14 anos à frente do Cantinho, comprou uma Hilux e um Civic – mas abdica de ambos para dirigir um Fiat Uno sem ostentação. “Quando eu quero sair de Hilux vou lá por trás”, comenta constrangido. Carro do ano, filhos na faculdade, réveillon em Copacabana. “A turma não aceita um analfabeto subir na vida, ganhar dinheiro. Desperta muita inveja”. Há dois anos o Cantinho do Jambo ganhou uma filial no bairro Planalto Uruguai – o Cantinho Mais. O cardápio é o mesmo, mas o lugar não leva jambo no nome porque é cercado, na verdade, por vários pés de nim indiano. A matriz, em breve, deve ser ampliada – os sócios compraram a casa ao lado para estender o espaço. O tempo, no entanto, vai depender da botânica: quatro mudas de pé de jambo foram plantadas na calçada para garantir a sombra porque, afinal, antes de ser de todos, o cantinho sempre foi e será do jambo.
DESTAQUE
RAIMUNDINHA POR YOLANDA N
o barro modelamos a poesia. Picasso, Matisse, Francisco Brennand: todos eles também se encantaram pela modelagem no barro. Arte erótica para uns, sagrada para outros.
Menciono os mestres porque falaremos de uma: a mestra Raimundinha, artista ceramista do Poty Velho. Ainda cedo, a menina de olhos brilhantes e pele dourada acaleantava sonhos. Uma jovem que pensava diferente das demais. Transformar vidas através da modelagem. Sim, o barro. Àquele sob os seus pés, com o qual convivia diariamente e de onde a sua arte haveria de desabrochar. Mãos irrequietas tentavam desenhar “no ar” enquanto conversávamos sobre a sua trajetória de vida. Vitórias, conquistas, dificuldades - que não foram poucas. Contudo, percebia: havia riqueza na sua terra amada, no seu chão. É bem verdade. Sua vida se transforma e ao mesmo tempo transforma a vida de uma coletividade, executando um trabalho social, político e econômico através da sua sensibilidade artística. Raimunda domina a técnica herdada na oralidade de seus antepassados – os mistérios de seu xamã. Bater, amassar, molhar e tornar dócil à modelagem. Nossa mestra ceramista se destaca mundo afora, levando o Piauí. Entre sorrisos, abraços, encantos e esperança, Raimundinha constrói uma história de vida e de superação. Nos mostra que a arte tem o poder de emocionar o mundo – e fazer dele um lugar cada vez melhor. 74 • www.revistarevestres.com.br
Yolanda Carvalho é professora, artista plástica Foto Maurício Pokemon
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Adriana Varejão em Fortaleza Revestrés foi a Fortaleza ver de perto Pele do Tempo, exposição da artista carioca Adriana Varejão, aberta em 25 de agosto e que vai até 29 de novembro. Uma das mais valorizadas artistas do Brasil, em Pele do Tempo Adriana mostra 32 trabalhos que abrangem 23 anos de sua carreira. Além disso, uma sala mostra referências que Adriana carrega para sua obra, entre elas trabalhos de Iberê Camargo e Alberto da Veiga Guignard. Vale a pena, e muito, ver bem de perto.
Adriana Varejão – Pele do tempo Onde: Espaço Cultural Airton Queiroz Av. Washington Soares, 1321, Bairro Edson Queiroz – Fortaleza - CE Quando: até 29 de novembro de 2015 Aberto ao público - gratuito Informações: 3477.3319
“Não vale a pena esperar gratidão em jornalismo. Aliás, não espere gratidão nenhuma, porque nem Jesus Cristo escapou das maledicências daqueles que tinha como seus amigos. Se não foram gratos com Jesus Cristo, não vão ser com você.” Ademã é uma homenagem a Ibrahim Sued, o maior colunista social do Brasil, que encerrava suas colunas com “a demain, de leve!”
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FICÇÃO
Por Roberto Amaral
R
io de Janeiro. Janeiro escaldava. Não precisou do despertador. O verão entrava em seu quarto como uma bola de luz. Eram ainda sete horas e já acordara, embora permanecesse no leito, enrolado numa preguiça mortal: sentia-se estafado, como se não tivesse dormido toda a noite, sono pesado, roncando. O corpo mole, suado, surrado. Uma moedeira. Olhou para a janela entreaberta, por onde entrava um mormaço leve. A cortina, de voil fino, transparente, parecia de mármore, impassível, imóvel. Não teve ânimo de levantar-se, e esperou que ela chegasse. Depois da troca de cumprimentos – Oi, – Oi. – foi ao banheiro, urinou fartamente e, por hábito, escovou os dentes. No espelho do armário em cima da pia, um rosto cansado revelava rugas desconhecidas, uma calvície acentuada e olhos avermelhados. Lavou-se, mas não se livrou da imagem. Quando voltou ao quarto ela, como de costume, já o esperava sob os lençóis. Embora se contassem como vários anos daquela convivência, ela não se sentia totalmente livre para ver-se nua, nem gostava quando ele exigia que caminhasse pelo quarto, embora caminhasse, nua, atendendo à sua ordem. Sabia que a implacável trajetória do tempo havia autografado seu corpo, sentia-se gorda, volumosa mesmo. Ele sabia disso, porque esta cena se repetia sempre, toda segunda-feira, sem variações, como uma peça de teatro sem improvisos nem cacos. Era um ato, invariável, pronto, irretocável. Digamos assim: uma cena de filme, defi78 • www.revistarevestres.com.br
nitivamente aprisionada pelo celulóide. Como sempre ocorria, deitou-se, submergiu nos mesmos lençóis e esperou que ela o tocasse. Os dedos da mulher passearam pelos caminhos do quotidiano e terminaram no seu sexo, apalpado, acariciado e, finalmente, masturbado. Quando a ereção se impôs, ele envolveu em suas mãos a cabeça da mulher e lentamente a foi arrastando até que seus lábios absorveram o pênis intumescido. Abriu as pernas e nela repousou a cabeça da mulher e se amaram profundamente, as mãos dele segurando-a pelos cabelos, recomendando que tivesse cuidado com os dentes para não machucá-lo. Ela o sugava e envolvia seu sexo com uma saliva morna. Gozou. Virou-se de lado e voltou a cochilar, uns dois, cinco, uns poucos minutos. Levantou-se e foi ao banheiro barbear-se e banhar-se. Ela permanecia na cama, olhando para o teto. Henrique aprontou-se e se despediu. – Quando sair, não se esqueça de bater a porta. Lá em baixo, na portaria, ao deixar o elevador, sentiu-se completamente cego. Era uma manhã de lata, cheia de luz, faiscante, reluzente, brilhante, agressiva, soprano. O sol agudo batia em seus olhos, furava suas pupilas e ia mexer com o mais recôndito de sua alma como dardos envenenados, microscópicos dardos, incontáveis dardos, multidões de dardos, dardos vermelhos, dardos amarelos, dardos luminosos, dardos perfurantes dardos girassóis vangogueanos. Doía. Cobrindo os olhos com as mãos, tentando proteger-se contra o despotismo do branco, suando de novo, atravessou a calçada em busca da parada de ônibus, paletó dobrado no braço, laço da gravata desfeito, colarinho aberto, o lenço enxugando o suor da testa. Quando pôs os pés no asfalto sentiu o chão mover-se. Com as duas mãos fez uma aba, para proteger-se da luz e olhar para a esquerda, no sentido do trânsito, para poder atravessar. De nada adiantou. O Gávea-Central vinha a toda velocidade, como um bólido.
Por Josélia Neves Foto Maurício Pokemon
01 Seriados Dexter, Girls, Lie to Me, Barrados no baile e Orange is the New Black. Do Amor, o seriado mais lindo e fofo e que me mata de saudades. 02 Meus desacontecimentos Livro de Eliana Brum. Nele, a arma que ela aponta para ela mesma aponta para mim, morte ao contrário. 03 O Jogo da Imitação Cinebiografia, essa é daquelas incríveis, a criatura foi julgada por tudo que não deveria ter sido. 04 @garagemestudio Estúdio criativo/loja com misturas de profissionais, cor, entusiasmo e café. @joselianeves @udzmelo @rafaelasouza 05 Listening Adoro toda música, nova, sem memórias acopladas, mas ouço de tudo, amo rádio. Mas tô ouvindo agorinha: I’ll Kill Her - SOKO. 06 <3 Bento Falar de filho é clichê. Precisa explicar a pessoa que nasce no dia |que escolheu, no dia do aniversário do avô? Que já corre desde os 3 meses de gestação? Que me presenteou com mil novas habilidades melhor que atualização de aplicativo? Que mesmo com tudo de descobertas, sem culpa, me fez me parir a mãe dele. 07 Dizáin Design não é pergunta, é resposta boa, sugestão, ideia. De produtos, então, nova paixão. Tantos nomes, gosto de funcionalidade e leveza, ter um propósito versátil e simples. 08 Santo de Casa Sonho possível. Mobiliário orgânico, com olhar genuinamente brasileiro e natureza idealizada em formas geométricas. Com madeira de lei, ergonômicamente pensado com as medidas padrão para banco, mas com versatilidade para ser uma estante, uma bancada, uma mesa de canto, um revisteiro. Feito no escritório que tenho em parceria com @RafaelaSouza 09 Clientes Tenho os melhores. Entusiasmo e inspiração para os melhores clientes com metodologia própria para entender e antecipar soluções a longo e a curto prazo. 10 Pinterest Não vivo sem, tinha vida antes?
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FILMES
ADEUS À LINGUAGEM Jean-Luc Godard Não dá para dizer que é fácil entender um filme de Jean-Luc Godard, que, mais uma vez, tenta subverter o que se esperar de uma ida ao cinema. E, agora, com linguagem totalmente não-linear, ele usa o 3D para criar imagens abstratas e uma colagem de imagens e aforismos de pensadores não exatamente definidos. Segundo a atriz Héloïse Godet, uma das protagonistas de Adeus à Linguagem, “ele (Godard) dizia que queria provar que esse recurso é inútil, que não faz sentido nenhum”. Em “carta” em vídeo enviada ao presidente do Festival de Cannes, para onde não foi mesmo concorrendo (e perdendo) à Palma de Ouro, o diretor diz: “Adeus à linguagem deixou de ser um filme, apesar de ser o meu melhor. É uma simples valsa”. Ou seja: Jean-Luc Godard poucas vezes foi tão Godard.
QUE HORAS ELA VOLTA Anna Muylaert Todo mundo já sabe o ponto de partida do filme que pode ser o filme brasileiro no Oscar: Val, a doméstica interpretada por Regina Casé, recebe a filha que chega do nordeste 10 anos depois da última vez em que se viram. Começa aí uma chacoalhada nas convenções que regem a ordem da casa de classe média-alta onde Val trabalha, e na visão de mundo da própria Val. O filme tem levantado questões sobre a sociedade brasileira, com opiniões das mais diversas. O que não dá para discutir é a pertinência do tema e o talento de Camila Márdila, que interpreta Jéssica, a filha de Val. A profundidade – ou falta de – na discussão divide opiniões, assim como a atuação de Regina: para uns, espetacular – melhor atriz no Festival de Sundance, prêmio dividido com a mesma Camila -, para outros, caricata. De qualquer maneira, vale muito a pena assistir e fazer uma rodada de discussões em casa ou com os amigos. CINEMA
MOSTRA TRANSVIADA DE CINEMA Galpão do Dirceu - Teresina No dia 17 de outubro serão exibidos no Galpão do Dirceu, em Teresina, os filmes Quase Samba (de Ricardo Targino, SP) e Xiri Meu (de Tairo Lisboa, MA). É a 2a edição da Mostra Transviada de Cinema - #diversidadenatela. O evento faz parte do circuito exibidor independente de cinema, que procura algo de libertação das amarras das grandes salas. A intenção da Mostra Transviada é aproximar o público às questões sociais abordadas nos filmes, entre elas homofobia, violência de gênero e preconceito racial. Além da exibição dos filmes haverá bate-papos sobre esses temas, grafite e música. A entrada é gratuita. LIVRO
A CIDADE SITIADA Paulo Tabatinga Em A Cidade Sitiada, Paulo Tabatinga procura uma cidade que se perde no tempo e, aos poucos, parece ir sendo apagada da nossa memória. Em fotos e poemas, Tabatinga vai nos revelando essa Teresina e nos deixando pistas de onde ela está. Ao mesmo tempo, ele nos abre vielas por onde podemos imaginar como carregar essa cidade para um futuro onde ela esteja inteira, preservada, viva. Um livro delicado.
Neste silêncio que permanece silencioso converte-se o Homem em Babel e tenta com todas as letras refletir-se num espelho de papel.
“Uma joalheria pode não ter joias, mas também não terá brilho.”
Traduzir a alma para o corpo é encontrar nos dicionários a correspondência entre Deus e derme é trazer à superfície da palavra silêncio do cerne.
METAL INCORPÓREO
Por Carlos Dimuro
IN TRADUÇÃO
UM OUTRO OLHAR
Tardes de Tadzio. A pele que não toco, deixa em minhas mãos
o metal do teu corpo. Tardes de Tadzio. O beijo que não encontra a boca, queima meus lábios com os sais de tua saliva. A tua prata, de brilho incorpóreo - aos poucos me derrete em devaneios, e faz evaporar - numa estranha química estas intocáveis tardes prateadas de desejo.
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HALLEY