Reinvenção do nordeste completa

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A Reinvenção do Nordeste

www.sesc-ce.com.br

Arte & pensamento

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ste livro, que se origina no Seminário Arte & Pensamento — a Reinvenção do Nordeste promovido pelo Departamento Regional do Sesc Ceará, tem por objetivo problematizar as produções artísticas e culturais do Nordeste nos dias de hoje. Claro está que não se partirá de um vetor identitário e regionalista desde o qual apenas se nos habilitasse o engenho de cunho realista, qual seja, o escrutínio do grau zero, ponto de origem antiquíssimo, lá onde devesse primar a razão original e primeira no esclarecimento contínuo daquele que se expressa, o Nordeste, o nordestino. Nosso intento é vário, é outro. Buscar as condições históricas nas quais se forjou aquilo a que se costuma chamar de Nordeste, o nordestino, esta vontade de fixar-se por meio de demarcações regionais. E, além disso, na direção mesma desta pesquisa genealógica das condições de possibilidade históricas, tratamos de pensar a heterotopia, este outro do lugar de origem, emergência sempre baixa, fluida, precária, inscrita no inventário de miríades de acontecimentos sempre móveis, e fragilíssimos, e recorrentes.

Arte & pensamento

A Reinvenção do Nordeste Organização: André Queiroz


Serviço Social do Comércio - ar/ce

Arte & pensamento

A Reinvenção do Nordeste

1ª edição

Fortaleza - ce Serviço Social do Comércio - ar/ce 2010


Sumário Algumas palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07 Luís Gastão Bittencourt

Nordeste Contemporâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09 Regina Leitão

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 André Queiroz

Existe um Nordeste por detrás do cinema que se faz no Nordeste? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 André Queiroz

A paixão segundo Lampião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Daniel Lins

O nordestino de Saia Rodada e Calcinha Preta ou as novas faces do regionalismo e do machismo no Nordeste . . . . 44

ficha catalográfica elaborada por:

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Ana Paula Lima Barros - Bibliotecária (crb-3/647)

Antropologia e Filosofia: as potências criadoras da música . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

Serviço Social do Comércio – AR/CE

S493a Arte & pensamento: a reinvenção do nordeste. / André Luis dos Santos Queiroz org.; Fotografias de Davi Pinheiro; Vídeos de Caio Henrique Quinderé Castello Branco; Entrevistas de Ricardo Guilherme Vieira dos Santos. _ 1ª ed. _ Fortaleza: Serviço Social do Comércio – ar/ce, 2010. 79 p. il.

Luiz Manoel Lopes

Luizan Pinheiro

Marias Bonitas: entre a mulher mítica e as mulheres reais, uma fratura no sertão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110

ISBN -

Márcia Tiburi

1. Arte – Nordeste 2. Arte – Brasil 3. Memória I. Queiroz, André (org.) ii. Pinheiro, Davi (fot.) iii. Castello Branco, Caio Henrique Quinderé iv. Santos, Ricardo Guilherme Vieira dos v. Título

Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes: os sertões em variações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 Ontologia do Cariri: a cidade atravessada por múltiplos olhares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

Acompanha 02 dvds

Jorge Vasconcellos

cdd – 709.813

João Cabral de Melo Neto — música para canhotos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128 Ney Ferraz Paiva

Paulo Bruscky: um artista nordestino? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 Nina Velasco e Cruz



Algumas Palavras

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Serviço Social do Comércio no Ceará, por ocasião da 11ª Mostra SESC Cariri de Cultura, em 2009, enriqueceu ainda mais a sua programação com o Seminário Arte & Pensamento — a Reinvenção do Nordeste, indo para além das apresentações artísticas (teatro, dança, música, literatura, oficinas diversas) já consolidadas pela Mostra. O Seminário constitui-se mais uma opção a ser aproveitada por todos que amam as artes e a reflexão. O evento em si é especial na medida em que oferece à generosa região do Cariri um seminário que prima pela reflexão e exercício do pensamento, a funcionar no interior e desde o interior, promovendo a necessária descentralização do eixo Rio de Janeiro/São Paulo como esfera hegemônica na produção e problematização do pensamento crítico e artístico que se faz no Brasil— o que tem sido meta contumaz das ações do SESC em todo o território nacional. Os resultados do Seminário se fazem sentir na ampla reverberação, em âmbito estadual e nacional, de tudo o que nele se promoveu ao longo dos quatro dias de exposições e debates, o que tão logo nos estimula na certeza de que a sua continuidade nos próximos anos, dentro do calendário da Mostra SESC Cariri de Cultura, aprimorará ainda mais o que aqui se começou a plantar. E não temos qualquer dúvida de que tal efeito reforça e reafirma a condição de protagonista do SESC na sua missão de ir ao encontro do interior do Brasil. Uma palavra tem que ser dita, proclamada, é o nosso agradecimento ao companheiro Antonio Oliveira Santos, presidente do Conselho Nacional do SESC, e ao nosso amigo Maron Emile Abi-Abib, diretor-geral do Departamento Nacional do SESC, que foram decisivos ao partilharem conosco a realização desse evento.

Luiz Gastão Bittencourt da Silva presidente do conselho regional do sesc ceará


Nordeste Contemporâneo

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ensar o Nordeste a partir do prisma contemporâneo, das inevitáveis conexões com o mundo, desconstruindo um conceito sedimentado no reforço às tradições que consolidam o pensamento dominante e dominador é, no mínimo, falar do cotidiano e das relações que se estabelecem através das “integrações”, conceito-chave para a sociedade moderna. Continentes, países, estados, regiões, empresas, organizações governamentais e não governamentais, todos reconhecemos a importância da construção de parcerias para assegurar avanços importantes nas mais diversas áreas do desenvolvimento humano, em especial no cenário contemporâneo globalizado, onde aparecem sempre mais tênues e frágeis as fronteiras que tradicionalmente separaram os homens e os povos. Promover a vida através dos instrumentos de que dispomos é sempre uma realização feliz. O SESC Ceará, a partir de projetos que defendem o desenvolvimento social, entende que o fazer artístico, com seu poder de transformação, é um excelente meio de fazer crescer. A experiência que vivemos na relação de fomento e difusão das ações abre perspectivas para que, juntas, tradição e contemporaneidade contribuam para a celebração da vida utilizando a linguagem cultural como forma de expressar conhecimentos, sentimentos, percepções, emoções e histórias que muitas vezes não teríamos como contar se não as descobríssemos juntos. Na última década, cresceu forte entre os estados que compõem a região Nordeste, a determinação de que, além de fortalecer laços políticos e econômicos, deveriam se integrar culturalmente. Somos nove estados, mas nossa identidade comum vai além das especificidades de cada lugar, gerando uma força integradora impressionante, com afinidades históricas e culturais que ampliam extraordinariamente nossa latente capacidade de união. Um Nordeste high tec, que se reinventa a cada dia, busca alternativas, dialoga com o agora; uma ação contínua que não se intimida diante dos desafios. Um diálogo sem fronteiras. Nordeste nação, comunidade imaginada e transfigurada pelo caráter híbrido dos seus espaços, da sua estética – inegavelmente um pé no passado, porém milhares de mãos no futuro. O SESC Ceará fomenta a discussão acerca da “nordestinidade”, promovendo o confronto entre os diversos posicionamentos, com o objetivo maior de contribuir para o deslocamento teórico-conceitual das correntes que se mantêm aprisionadas ao cenário político-econômico distanciado do contexto do século xxi. Compartilhar laços de identidade, uma aproximação de forma natural, criando cada vez mais espaços para o diálogo, é imprescindível. Não poderíamos, assim, deixar de realizar o Seminário Arte e Pensamento — A Reinvenção do Nordeste, aliando-o à tradicional Mostra SESC Cariri de Cultura, na região do Cariri cearense. A cultura e as artes sempre foram meios fundamentais para o desenvolvimento das sociedades e passo decisivo para a integração dos povos de todos os cantos. Que essa integração seja cada vez mais significativa, pois é por meio desse intercâmbio que poderemos confrontar, debater ideias e descobrir caminhos.

Regina Leitão diretora regional sesc ceará


Apresentação André Queiroz

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ste livro, que se origina no Seminário Arte & Pensamento — a Reinvenção do Nordeste promovido pelo Departamento Regional do Sesc Ceará, tem por objetivo problematizar as produções artísticas e culturais do Nordeste nos dias de hoje. Claro está que não se partirá de um vetor identitário e regionalista desde o qual apenas se nos habilitasse o engenho de cunho realista, qual seja, o escrutínio do grau zero, ponto de origem antiquíssimo, lá onde devesse primar a razão original e primeira no esclarecimento contínuo daquele que se expressa, o Nordeste, o nordestino. Nosso intento é vário, é outro. Buscar as condições históricas nas quais se forjou aquilo a que se costuma chamar de Nordeste, o nordestino, esta vontade de fixar-se por meio de demarcações regionais. E, além disso, na direção mesma desta pesquisa genealógica das condições de possibilidade históricas, tratamos de pensar a heterotopia, este outro do lugar de origem, emergência sempre baixa, fluida, precária, inscrita no inventário de miríades de acontecimentos sempre móveis, e fragilíssimos, e recorrentes. Partimos das artes — um dos motes de investimento contínuo das ações Sesc. O cinema, a música, a literatura, a poesia, as intervenções urbanas, a arte/mídia. Assunção contumaz da multiplicidade do que se vem produzindo desde o Nordeste, e toda ênfase aqui recai sobre o ‘desde’ como quem indica no suposto lugar de origem ele mesmo um vetor à diferenciação como modo preciso do pensamento, qual seja, como processo de constituição de si — coletivo e singular. Arriscaríamos dizer que, desta forma, talvez o Nordeste, o nordestino não (nos) seja o instante primeiro do processo de produção, mas o lugar de ancoragem, território pousada em que se reinvestem as forças do processo criativo — sempre este voltado para fora, como que num flerte renovado com os devires-mundo. Os textos, dispostos em ordem alfabética pelo nome de autor, se dispõe de modo vário sobre o temário das artes. Do cinema — na investigação sobre as formas do pensar o Nordeste, os seus modos, e André Queiroz busca um vetor de avaliação que se divide em duas metades: o cinema edificante, de Walter Salles, que trabalha a partir de imagens-clichês acerca do Nordeste e dos nordestinos — o que, antes, os paralisa no corpo mesmo dessas imagens, e o cinema desde a ruína, de Cláudio Assis, que se nos fala do Nordeste nos fala de uma cidade qualquer no mundo, uma cidade entre outras, uma cidade como muitas — forma de lançar para fora aquilo que supostamente lhe seria próprio. Daniel Lins nos convoca à crítica das leituras estratificadas acerca de Lampião: leituras do positivismo oficial e do legendário romântico. Trata-se antes do desejo de reparação, forma de reabilitação da memória no elogio do personagem, elogio este o de uma antiutopia, ou pelos

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modos de um niilismo positivo acabar por promover uma rebelião dos sentidos. Durval Muniz de Albuquerque Júnior escreve sobre o fenômeno musical da hora, qual seja, as bandas de forró eletrônico, e Durval salienta que se trata da formação — via processo de massificação e homogeneização — de regimes de escuta e de modos de subjetivação característicos do que se costuma chamar de pós-modernidade. Jorge Vasconcellos busca analisar filosoficamente as relações entre arte e pensamento na cultura musical contemporânea nordestina, e para tal, parte da junção filiatória Movimento Mangue (Manguebeat) com a antropologia de Oswald de Andrade. Luiz Manoel Lopes tece pontos à releitura dos Sertões de Euclides da Cunha a partir da geofilosofia de Deleuze-Guattari na direção do que seria o ser nordestino inscrito num pensamento da terra, do povo por vir, do êxodo — a inventividade dos que habitam os sertões se dá em meio às variações de intensidade que caracterizam esta região. Luizan Pinheiro se debruçou sobre a cidade, uma cidade, qualquer cidade como que à caça de um campo de experimentação no encontro de sua dimensão ontológica, e então, o encontro com o Cariri tecido pelas matérias-gentes-acontecimentos a conferir a força de que pode o olhar daquele que escreve e experimenta. Márcia Tiburi sugere a desinvenção da mulher do Nordeste aos moldes do que faz Michel Foucault nas suas pesquisas genealógicas. E isto porque se trata de pensar modos outros do ser uma vez a violência pensada de forma ontológica, e também numa sua perspectiva biopolítica, por exemplo, a violência como política patriarcal. Ney Ferraz Paiva nos apresenta a um João Cabral de Melo Neto canhoto, disposto ao erro e ao risco, e avesso às concessões na recusa ao senso poético modernista, ou à estocagem das imagens dos concretistas. Trata-se no invento de sua poesia de um Nordeste estrangeiro — combate contínuo da máquina arcaica que opera sobre e nas visões do Nordeste — , um Nordeste como um desterritório, um labirinto de possibilidades e sensibilidades. E por fim, Nina Velasco e Cruz nos apresenta a obra de Paulo Bruscky desde a pergunta capciosa sobre se ele seria ou não um artista nordestino — pergunta que, antes de ser uma pergunta, acaba por se mostrar uma estratégia de leitura das formas diversas do pensar e do fazer da arte no contemporâneo. Importante ressaltar o apoio irrestrito do Sesc Regional do Ceará no planejamento, produção, execução das duas etapas, que ora encerramos: Seminário e Livro. Forma perspicaz de compreender que para além do fazer e dos auxílios necessários ao tanto que é o fazer, trata-se de viabilizar as formas de ingresso e de participação as mais diversas, e ainda, para além disso, numa visada prospectiva se trata de apostar na reverberação do que se experimentou junto — aos modos do comunal intensíssimo. Por isso, e pelo tanto que é isso, o nosso agradecimento.

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Existe um Nordeste por detrás do cinema que se faz no Nordeste? André Queiroz Para Pedro Virgílio, e para o Dante.

1 Circulamos em desassossego entre filmes e textos. Imensa a massa de imagens e palavras ao tanto de nosso embaralho. Encontrar desde aí o mote o norte um ponto de pouso o lugar ao aconchego — o corpo exausto que sei lá será que cai, será que tomba e se levanta, o corpo, e será que se o lança à frente no desafio do vasculhar de entre as pistas àquela, a certa? Mas tudo é que falta. Parece que desde logo tudo falta. Quem sabe fosse o esteio o de que necessita este que fala — mas não será já isto a função da palavra, o encontrar de acordos à diplomacia e aí fundar um mundo uma ponte um arranjo, o traçar das metas o reverter dos equívocos, e fazer que comunica a palavra, toda e qualquer a palavra no agencio das partes, que de dois, que de tantos, que de muitos se tece o contrato será? E que dos muitos será ele o contrato o que resguarda da fúria — os humores em grita, a guerra de todos a barbárie, e então isto a palavra, sua função o debruçar sobre o que não há, o léxico que religue as partes soltas por uma cerzidura algo íntima àquele que escreve, aí o situar-se, vasculhar de entre as pistas aquela a certa, está-se à caça dos sentidos, um mundo uma cidade será o que se gesta, quem sabe, quem o saberia? No entanto, imensas e descontínuas são as vias, as hi ways, as estradas de ninguém nenhum, a plateia dos ouvintes (que somos) embasbacada, a plateia dos pagantes (que somos) os jogadores a jogatina, as fichas todas à descrença de que isto se resolva, de que isto se nos resolva, e a tal ponto isto, e a tal ponto este o estado das coisas que o que se abre são caminhos à solitude. Algum lugar, algum norte que ótimo nos seria, e a pergunta insistida, a pergunta que desaloja, qual a pergunta senão àquela que nos inquere pelo ‘onde’ que se começa, pelo ‘onde’ que nos completa, e eis que nos surge incerta uma pista: se começa desde a casa.

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Onde a casa? Desde quando ela a se prestar ao pouso? Será que desde o ‘sempre’ — longínquo recuo até o grau zero que nos totaliza ao inverso, e ali o início a origem, primado e princípio, o precipício às coisas nas que se inicia este um, na que se escreve a história do que houver, a parlenda do que há? Será houve este recuo até onde as coisas parecem brotar novas novíssimas, íntegras, virginais, intocadas? Será houve este vértice o planalto, e desde lá a corredeira, o escorrega, o deslize, o desmonte? Será houve este lugar? Lugar em que o que se plantar quem duvida

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que se colhesse — os jeitos, os gestos, a pessoa no assomado das partes, ela mesma o juntado de tudo o que se lhe deu, ela própria o somatório das máscaras, ela própria o texto da tradição estirado por sobre a planta do mundo — desde o vórtice o nó górdio que não se desata, e o tanto o tanto de conquistas, ela aí a pessoa, passo a passo, o corpo junto a palmilhar na estrada, pela estrada, desde a estrada a miríade miragem dos caminhos, e lá um anjo — quem o saberia dizer qual? — , e lá o anjo a nos encomendar funções: ser gauche na vida, ser retirante — deixar atrás pai mãe a campina, tentar as sortes em São Paulo, ir às obras, ir aos andaimes ao bater das lajes o reboco das paredes o virar de cimento e argamassa, evitar o olhar atrás à esteira da andança, esquecer os dias nos que nos faltou a corte, esquecer os dias nos que se jogou e se perdeu, esquecer a campina, esquecer a contenda e seguir sempre e sempre num à frente para frente até que nos doa as juntas e os calos às mãos as rachaduras aos pés o solado em carne viva, e esquecer, e esquecer, e esquecer. Mas até quando a caminhada, para onde a caminhada — parece que se escuta uma voz a insistir ‘até quando a caminhada? Para onde a caminhada?’, e é então, e será então que se se toma de susto na surpresa imensa que é a resposta, uma resposta à ponta da língua que é a nossa: a caminhada é até a casa.

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Uma casa no mundo. Pouco importa o ‘onde’, e se é longe o ‘onde’, pouco importa. Nele é que se está. Por ela é que se começa, a ela é que se tende. Uma casa no mundo. Uma casa, um quarto, nas paredes os signos ao reconhecimento da pessoa — este que se é, este que se vai tecendo, este que se inventa na clausura dos dias, os signos a confirmar o pouso, um nosso lugar aí? É que se esteve um tanto à solta, desembestado na corredeira dos dias a vida aí tragada em fluxo, ela a desbotada — a vida aí, é que se esteve nela, parece que faltara tanto até que o rosto se nos foi apagando, os traços, a silhueta, os tiques, os contornos, o sotaque, e se esteve à caça dos primórdios o princípio que enreda e explica, esteve-se à caça, uma casa no mundo, e parecia que era casa e era o desmonte, e parecia que era a casa e era já a ruína do tanto que se imprimiu ao fazer das regras do que deveria, esteve-se lá aí, em meio às funções e eram e foram tantas as horas, e eram e foram tontos os desenlaces, as pontes de atrás dinamitadas, os tempos de quando à infância deixados a ver navios — os que partem sob a tutela da saudade de pedra que se nos fica, a infância amoldada ao ver das naus a partida, ou a chegança dos que chegam um nós à recepção dos estranhos estrangeiros os modos os outros, e por vezes tantas vezes nós os outros, e por vezes, outras as vezes, nós estes, no aqui, a recebêlos: será ainda nos reconhecem, será nos reconhecemos, será ainda se recolhem eles ao reconhecer de si, será ainda que dura o ‘si’ a despeito do tanto que se foi e ficou, de tanto o que se ficou e se queria ter ido, do tanto que se nos foi apagando os rastros a pedra mesma da saudade encerrada no porto o cais, será que se nos dura este ‘si’? Será que ainda de entre alguns, de entre as gentes haverá um aquele, um qualquer, a rasgar a tarde no grito metálico e lancinante que se nos anuncia: ‘é ele, é ele, é ele!?’.

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Um cinema que edifique, um cinema edificante. Walter Salles acredita em mirações. Não temos dúvidas. Walter Salles acredita em mirações. Do seu Central do Brasil disse ser a alegoria sobre o regresso da retirança: o êxodo revertido ao útero. Josué é aquele que regressa. Até aí tudo bem. Questão será o até onde de seu regresso. Walter Salles dá as pistas: Josué retorna à identidade, ele a recupera. Estava, estivera à solta, descarrilado entre os ‘sem foco’ — a turba autômata aturdida, massa anônima desidentificada da Central do Brasil das relações selváticas de um capitalismo periférico, massa aberta, maioria silenciosa dos que são postos a andar no dentro da versão (em trilhos) de antigos navios negreiros, aqui os libertos libérrimos os alforriados os trabalhadores assalariados inscritos ao fluxo da livre negociação, tem a si eles (estes) o direito de posse ao corpo que se lhes toma de empréstimo num arrasto o empregador, todo dia, outro dia, eles vêm eles já vêm em bandos aos

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bandos espremidos aos borbotões, os olhos estourados, a catarata endurecida, a visão obnubilada, uma lata de sardinha o trem que vem já vem lá vem, a fezinha no bolso e na cabeça a crença a certeza de que um dia algum dia isto se encerra, eles vêm, eles já vem, trazem no corpo a vontade, a força que se lhes arrancará na paga do salário a inscrevê-los em dívida infinita o destino à míngua, parece que trazem consigo as fuças da miséria aturdida, a estação de trem, estação terminal, ponto derradeiro a paragem — todos os passageiros devem desembarcar desembarquem pelo lado direito e vá de reto, de resto o reto a recuar a tomar no rabo o que se lhe consegue o membro teso a lhe carcar no desarranco das pregas, o religare, o religare que é dar com a ré, dar de ré, dar até que o reto inche insufle estoure, a estação de trem, estação terminal, estágio à agonia dos que estão presos ao partir e ao voltar de todo dia, o ir e vir que será o seu direito, será os locupleta? São os ‘sem foco’ do filme de Walter Salles. Josué ali — deixado à laje fria ao sono dos justos, será, quem o acredita, quem nele deposita as fichas, carradas de fliperama, na que a vida é a mera aposta que se equilibra, será que dura isto? Necessário arrancar dali um Josué. Necessário que se lhe estique a mão — mão benfazeja, mão que não o boline. Necessário que se lhe faça crer que haja a mão que se lhe estica, mãos à assepsia, e que o esticar da mão uma qualquer que o seja, mas não, não uma qualquer, a mão aqui é a da esperança, a mão aqui é a de empréstimo, mão de Walter Salles, o realizador de milagres, não um romeiro, mas o realizador — aquele mesmo este que parece crer em mirações — será ele quem dirá coisas assim nos extras da fita, Walter Salles está a apontar a identidade ao fim do dia e da marcha que edifica, a devolução do rosto aos ‘sem foco’, o regresso da retirança, Central do Brasil em sendo o deserto — nada mais um ‘aqui’ das apostas de outrora, Rio de Janeiro, São Paulo, as obras à conquista do Oeste, e nada mais, tudo encerrado, tudo gasto, tudo consumido, vê se volta, vê se retornas, a chefatura de um prefeito, o Celso finado Pitta em seus projetos sociais, ela a chefatura parece que te acena com o vale passagem, pão com mortadela, guardanapo de papel às babas de tua livre expressão, e basta bastará a tua assunção a que se te chegue as benfeitorias — se tu assentires ao viajar da viagem, e então, o regresso: tem lá uma identidade a tua espera, tem lá a identidade, há de haver um rosto que se lhe caia sob medida, uma terra, uma horta, um esteio, a origem recuada, o ponto zero, a meia entrada, uma carta uma carteira de aplicações barata e eleitoreira. Mas será esta (ela) a identidade um portilho, a pequena porta, o buraco da agulha na qual, pela qual aquele que a adentra, aquele que a vaza, por ela se religa? O religare que soprasse ao revés o que estivesse disperso, e mais, o que esteve preso à dispersão, imensa a tática da sucção, a varredura do que estivera espalhado espraiado na diáspora — um entre muitos, um cão entre cordeiros, um entre todos que não este um, ele mesmo o que se salva, ele mesmo lá o perdido e então a mão, ele mesmo o solitário à multidão e então o gesto à sua redenção, e são e serão as vozes como num uníssimo de medidas a sussurrar imenso o trata de voltar, trata de voltar, ele o desterrado sem vincos, sem vínculos, sem teto à míngua, indigente na espreita espera de milagres, ele justo o junto aos trilhos da urbe nela desaquecido, e passa boi e passa boiada, e ele um Josué é quem não passa, ele fica, fica órfão de mãe atropelada, estará à procura do pai: Será que volta o pai? Será que há a volta ao pai que nunca — o bêbado de entre os cascos baratos, o depósito de engradados todos dispostos em fila à corredeira que desde a boca garganta laringe estômago bile revirada revolvida o cancro o fígado devastação ao tanto da sede, ele o pai, o pai que te cabe desde o fundo o gozo no entre as pernas de tua mãe a fecundação, a casa de lava da que saíste, deverias deverias o de lá sair num tombo o fluxo vômito no afora, a contração, as pernas ao alto, o rosto retorcido em dores, os dedos dela (da mãe) são garras afiadas na embocadura dos colchões, o grito, a força descomunal, o milagre a criação, deus é o que ali se percebe, vai nascer, vai nascer, corta aqui e ali, limpa as vísceras que se misturam à placenta o lambuzado, vai nascer vai nascer, vê se sai, anda que o tempo é curto, vais cair, vais sair, o tombo a queda, e então estás já aí sem teto, sem terra, ‘a indigência do ao mundo se dar o que não deveria’ — o pai que diz, o pai que sempre estará dizendo à mãe: ‘não me venhas com uma outra desgraça, não vai me dizer que tu me vens com outra desgraça’, a desgraça que é o teu primeiro nome teu apelido o teu modo às coisas, a desgraça que dardeja, voa ao alto e volteia até este que tu és, este mesmo, tu a desgraça, o teu primeiro nome, outros se lhe seguem, a mãe é dada ao bucho que infla, a mãe é dada a função da paridagem, uma parideira ela a mãe, e outros se lhe seguem, outros se lhe seguirão, Josué é um destes, o pai, quede que o pai, será que volta o pai, será que volto ao pai? Será que há o pai? O que será que me há de haver dele na havença do pai? Walter Salles está dizendo que sim, e que de tudo quem sabe fique um pouco, um

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pouco da orelha tua na orelha de teu filho um pouco de teu queixo de zinco no queixume que será o dele, um pouco que por vezes é uma flor e noutras o azul da metafísica e que o pai é o pai e ponto, ele está dizendo e diz também a ti numa receita de bolo à tradição-família e-propriedade o ver se tu te ajeitas a ele, o ver se entre os jeitos dos dois num arranjo de opereta se saca à cartola o coelho da paz, uma harmonia possível, o juízo final tudo junto de bate-pronto na pomba da união, ele está dizendo a ver se do enlace costurado à rima se destila um horizonte, a ver se da pregação aos liames filiais se estira a misericórdia que a tudo perdoa, noves fora isto, é o pai, é o pai, Walter Salles a quase dizer de entre os trâmites fílmicos que inventa a cristandade de novo rico na tessitura do junto um bálsamo de antiquíssimas misturas, credores arrendados ao sabor da hora, todos eles apiedados de tanta laia de gente, ou será o seu cinismo os credores que acabam por rir o riso do escárnio, e eles os outros a corja o populacho, os devedores em cujo olhos o expurgo, estes os afônicos, os que tropeçam em meio aos vocábulos que não os contempla mas que a eles se volta — um lugar na fala do outro, um espaço na dizibilidade que os enseja aos trabalhos do social que a tudo vislumbra, os devoradores, os de calcanhar rachado, e tudo somando-se na sentença imperiosa que se diz ao filho do homem a cura, é teu pai e eu lhe apresento, vê se te ajeitas, Josué aí sitiado, o retirante devolvido num invólucro à casa primeira, ele ao cancro do dia, mas impelido sob demanda externa do bem compor-se — terno de casimira em corte italiano porque um banho de loja é preciso em especiais ocasiões –, e então Josué a ver se encontra um sentido no que não há, Walter Salles na operação de milagres o milagreiro, o bom feitor na engorda do capitalismo fraternário, estará ele dizendo que isto este um Josué ainda se salva, que o perdão é lacrimoso, é carpideiro, que a família que sequer que há quem sabe se acerta no aparo da justa, o pai teu pai, ele ainda pára com o vício, ele ainda se conserta, ele ainda se desloca até que o Édipo os separe, a lei que a tudo apazigua for o tudo a violência dos sem lei, a violência que há nas coisas que não dispõe de uma lei, Walter Salles diz isto e também diz que se trata de um filme sobre a importância do se escrever cartas, sobre a importância do remetê-las — crédito à empresa de correios e telégrafos quando forem baixados os créditos do filme os agradecimentos (será dali se arranjou algum?), a importância do escrevê-las as cartas a ver se elas emendam as pontas de um elo perdido: será que fica permanecido o elo à espera das emendas? Será para onde este tempo fora do tempo, este tempo estancado de horas dias semanas meses anos que não passam, o elo na grita da semelhança, no distinto de há tanto, alguém no porto na porta na porteira ou à posta-restante a ler a carta que se lhe chega, alguém que grita o grito selvagem e inteiriço, “a cada instante, dia e noite, na alegria e na dor, em meio à necessidade cotidiana, teu dever é (será) ouvir esse grito”, “fica à escuta: no sono, no amor, na criação, num ato teu de manifesta abnegação ou de dentro do teu profundo e desesperado silêncio, poderás ouvir repentinamente o grito que te irá pôr em movimento” 1 : ‘Josué, és tu?’ E Josué seria aquele a se por em misteriosa marcha — segue na direção do traçado em risco no chão de terra, ele se situa entre dois caminhos, um que sobe e outro que desce, corda estirada ao abismo, e parece que quando se está à diáspora o abismo se nos é mais íngreme, entre dois caminhos um Josué de pouca monta ele decide: ‘escolho o caminho que sobe e vou’. Para onde vai Josué, Josué para onde? Se é que houve um dia a festa, se é que houve um dia a fartura a fanfarra o gasto contumaz do que se acumulara no ensaio sobre a dádiva o dom a queima dos excessos a noção de despesa lançada na cara — um livro de Bataille, o que será que resta? Será que o que há se acomoda à função do ‘restar’, do permanecer, do tecer filiações ao já havido, será que houve? Ou não será que a história é toda ela feita de cacos arranjados aos humores da hora, um bom bocado a ficção a eximir-se de haveres litúrgicos, o riso o escárnio das baixas extrações, as contenciosas de saias em revoada a dizer àquele que chega, chegará um dia, elas a dizer: ‘não sei não conheço nunca vi mais magro mais gordo, não sei nunca vi, desconheço o tipo sei lá se ele padece dos males de que padecemos, sei lá se nas misturas brancas e vermelhas dos glóbulos há nele o sangue nosso, se há na pele curtida da família a rigidez o couro a lhe oferecer os tons que ele enverga, Josué? Josué? Quem será Josué? Por que será ele no aqui no agora em que a chapa é quente, em que estamos ao elevado das horas, em que prima o arranjo urgentíssimo de dar a si o que for de César, Josué quem será senão aquele que traz consigo os papéis da propriedade com os quais nos dirá “a terra é minha de direito”, ele um Josué a nos exigir

o seu lugar à mesa, ele a nos inquerir “quede o prato, a quantas o gado, serão já horas às hipotecas?” Quem este Josué que se nos impõe a sua presença descarrilada desde os trilhos da Central, da capital, de Copacabana, quem esse que nos chega, na certa é que vem nos assaltar a prole, quem esse que nos chega ‘todo frio do dilúvio, semear a discórdia nas choupanas e nos palácios, vem para a nossa maldição, para nos indicar o abismo onde ficaremos sós e tristes, sem pianos’ 2. Por que não regressas até o teu ‘onde’, a tua diáspora, lugar deslugar que é já toda a tua fisionomia?! E então, Josué? Que tal a receptiva, as gentes na (des)aguardança de ti? Será que lá existe o que diziam a ti ser a casa, o pai? E então, Josué, for o caso a festa acabada (será que houve?), for o caso o sumiço do povo (será que volta o pai?), for o caso tu perceberes que o bonde e que o riso, que a zomba dos outros e que a utopia (o sem lugar na clave do tempo), e tudo fugiu e tudo mofou, e então, Josué, fosse o caso gritares, gemeres, tocares, dormires, dançares, cansares, morreres, não renunciarias a tudo isto, ficarias ainda a fomentar gentinha na escrituração das cartas, um ghost writer? 3. Ou será tu te virarias para quem te diz ao ouvido ‘as cartas, da importância das cartas’ e desde a mão em riste tu lhe acenarias um cotoco (assim ó), será tu te virarias na direção daquele que te empanturra de endereços vários a dizer a ti o cardápio dos teus lugares ao religare de ti àquela identidade originária na que “as coisas se encontravam em seu estado de perfeição”4, será tu te farias todo-ouvidos aos nomes, quede os nomes que são tantos para dizer o infortúnio ‘sítio volta da pedra, bom jesus do norte, terceira casa depois da padaria, mimoso, cansanção, reliutaba, será tu dirias aquele que te indica os caminhos a um teu regresso, será tu dirias: ‘por que tu queres que eu parta? Por que será não me aguentas a presença às portas de teus olhos? Por que tu me inventas um choque de ordem aos modos do recolhimento, fundação papa joão xxiii, casa comida e roupa lavada, e depois da festa das divisas o turismo, será-me a rua, a marquise, a candelária?!’, será tu lançarias na cara de um herdeiro de banco os maus feitos os maus tratos empreendidos à custa das negociatas com as velhas mesmas oligarquias os projetos à irrigação das terras, os empréstimos a juros estratosféricos aos governos que os repassará aos empreiteiros que não nunca as estradas — que estas apenas elas quando às margens das grandes fazendas, e tu Josué a pagar o pato, parece que já te dirão ‘não és daqui, por que não partes?, e te dirão da cabeça chata, e te dirão do bicho de pé, e te dirão da barriga de verme, e te dirão dos receios de uma tua peixeira à cinta quando mais tarde não aguentares mais, e te dirão do sotaque enrolado, e te dirão que acentuas tudo num ‘ééééééé’ interminado, e te acenarão com a posse propriedade de tudo for o caso uma adoração sermão da montanha executado pelos tiras agentes da ordem os milicianos na tomada dos morros cariocas — o santa marta pacificado três pais nossos três aves maria porque deus ajuda ao operário que cedo madruga, mas acontece que acabou o trabalho, mas acontece que o sistema das coisas superaqueceu, e que será melhor bem melhor que tu voltes, que tu te acerques num esquecimento sem voltas, ou rodeio, te perguntamos eu te pergunto ‘por que será que tens de partir, e por que será que te é tão longe o ‘onde’ das tuas entranhas, a tua origem recuada, o teu pai de nunca a bramir ao teu agora o elo ressurgido, o teu sempre apenas agora e por ele retraçado, o teu ‘le nom du pére, o nome do pai, le non du pére, o não do pai, a lei como que evocada para a retenção das arruaças, e tu ainda o culpado nos cálculos oficiais, nos noticiários sangrentos em que o ocidente branco se branqueia ainda mais das culpas que o compõe o Ocidente ele mesmo este e então, o cinismo do continuar a fazer das mazelas a sua regra, os capitalistas a postos aposto que sobra para ti, Josué. Walter Salles parece estar dizendo que a estrada iniciada na diáspora, que a estrada traz ao fim dela um esteio, pegar a estrada, desfraldar o esquecido, fazer a varredura no braseiro plantado pelo êxodo em desmedida, tomar a estrada, arrancar de si o bandeirante, desbravar o estranho o estrangeiro, Walter Salles está dizendo do Nordeste este estranho o estrangeiro o desconhecido, ainda que ele use e abuse dos clichês à imagem do Nordeste: o bode capenga, o ventilador sem aro, o nunca que se chega, árido movie, a boleia que é a casa dos que não tem, o pau de arara, o fanatismo religioso na palavra do beato, a romaria, o dinheiro que falta, a comida que falta, a falta que é o pai, a desgraça que se é ao varejo e no atacado, carne sem

2  Referência ao poema de Murilo Mendes. In: Mendes, M. Antologia Poética (p.51). 3  Referência ao poema de Carlos Drummond de Andrade. In: Drummond de Andrade, C. Antologia Poética (p.10 e 12).

1  Kazantzákis, N. Ascese, os salvadores de deus (p.61 e 63).

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4  Foucault, M. Nietzsche, a genealogia e a história (p.263).

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osso, sangue na veia, protege senhor, o retrato do santo, a carta para o santo a um real, itabaiana, arcoverde, a graça de ter largado a cachaça, Leontina é quem paga a graça, a graça alcançada por ter chovido na roça, galinhas que no chão ciscam, lembrar e esquecer, o fim do mundo, o trava a língua atrás da casa tem um pé de umbu verde, umbu maduro, umbu secando, repita repitamos a plateia junto por favor, atrás da casa tem um pé de umbu verde, umbu maduro, umbu secando, o trava a língua, os nomes bíblicos a arrendar a todos na família, moisés, isaías, as cartas que se cruzam num lampejo de punhais em encontro, o aço deles reluzindo (mas sequer que aqui é a dança de Corisco frete à fúria pelega das volantes!), o encontro de cartas , a mãe que espera o pai, o pai que espera a mãe, Josué tem de perceber o lugar que lhe cabe de fato e de depósito. E será este o Nordeste, o que lhe cai à cabeça? Será assim um Nordeste? Todo ele assim? Ou será assim o Nordeste de Walter Salles, um crime postal? Sem que o diga, Walter Salles parece dizer: ‘Josué contente, Josué feliz’. Toma-te!

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Nos extras do filme, Walter Salles fala de sua felicidade. Fora aplaudido no mundo inteiro: Sundance, Berlim, Paris. Conta que muito de seu filme segue a releitura da tradição, a retomada do eixo que perpassou o Cinema Novo: a leitura do Nordeste. A referência a Nelson Pereira dos Santos, a Vidas Secas. De lá aqui, o Nordeste parece ser a retirança que, no filme, ele diz reverter. Curioso que insista no tema da descoberta. E numa missão redentora do cinema. Redime na medida mesma em que descobre, em que arranca véus. No descobrir, a des-coberta — e ele encontrará lá o já ‘lá havido’ — “a origem sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo, antes do tempo” 5: todo o temário que transborda das referências naturalistas de que Durval Muniz de Albuquerque Jr. nos relata no seu livro de 1999, A invenção do Nordeste e outras artes, qual seja esta referência naturalista, o Nordeste a escorrer nas tintas dos “elementos do folclore e da cultura popular, notadamente rural, abordando-os com indisfarçável postura de superioridade, com um olhar distante que procura marcar, inclusive na própria escritura, o pertencimento a mundos diversos. (...) Espécie de narrativa-antiquário que resgata (va) o que esta (va) prestes a ser passado” 6. O Nordeste tal como que evocado numa teogonia — ele próprio mais velho do que tudo o que dele se fala (lugar de verdade a garantir a verossimilhança dos discursos que dele falam), e que ao se falar sempre o acaba lançando num ainda mais atrás, atrás do atrás, até que o tempo se canse do escorrer, do escoar, e exausto ele se encerre de seu passamento, e ainda assim, ali mais em recuo, o Nordeste teogônico. Uma vez mais, recordemos os termos de Durval, a sua leitura crítica: os elementos do folclore e da cultura popular, a narrativa-antiquário, o naturalismo do regional. Mas atentemos a um fato: Durval não está falando da escritura fílmica de Walter Salles. Está falando do discurso regionalista-naturalista que emerge de certa intelectualidade local à caça de vantagens a si nos investimentos do governo que se preocupava em ‘fundar’ a nação. Sendo aqueles discursos, discursos de dupla via: anunciava a mazela e pelo anúncio da mazela o seu enriquecimento vindouro — loquacidade e bonança. Tão logo será um outro o discurso, e aqui no agora de ainda há pouco, o olhar que descreve parece fazer ver o Nordeste numa “colagem de imagens”: as bandeiras, as entradas, a mineração, a garimpagem, o cangaço, o latifúndio, o messianismo, as secas, os êxodos, o interior como essência, alma, raízes. Como o exótico distante da civilização litorânea. E Durval dirá: já aí o olhar modernista a compor um contraponto ao do naturalismo-regional. Outra epistémê, ou outro campo discursivo, narrativo. No entanto, alguns elementos se cruzam no temário descrito pelas duas visadas. Apenas, e sobretudo, que no discurso modernista a ênfase será dada à busca da integração nacional por meio de uma estética que se lhe cairá desde os píncaros de uma São Paulo. Nos termos de Durval: “A gritaria modernista contra o regionalismo se inscreve muito mais em

5  Idem, idem. 6  Muniz de Albuquerque Jr., D. A Invenção do Nordeste e outras artes (p.65).

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uma estratégia política de unificação do espaço cultural do país, a partir de São Paulo e de linguagem e visão modernistas” 7. Fazer prevalecer os seus códigos, registrar pela sua quadratura o que se lhes escapa, codificá-los, rejuntá-los a si, as disparidades todas convocadas desde o Ecúmeno à matriz distribuidora de sentido e valor — a casa grande da Capital paulista, Pauliceia desenfreada, e aí, daí, desde aí, produzir uma síntese. Como que a fórceps a síntese. Não bem o jogo de contrários na algazarra dos embates. Mas síntese farsa síntese na que o que se dá é a clausura dos tantos, os distintos, ao fôlego imenso do que monologa como num plano-sequência a sua língua os seus hábitos os seus costumes. E Durval dirá: “signos livres e soltos de suas antigas espacialidades, dos antigos territórios a que pertenciam (...) para poder posteriormente rearrumá-los numa nova imagem, em um novo texto para o país”. Centralização de sentidos: “uma significação de toda dispersão material regionalista pela central de distribuição do sentido modernista, o que Mário de Andrade chamava de apagamento dos regionalismos pela descentralização da inteligência” 8. Será que cabe perguntar uma vez que se diz que perguntar não ofende, e então o faremos — o que será queria dizer um Mário de Andrade ao falar em ‘descentralização da inteligência’? Descentrar a inteligência — torná-la ex-cêntrica, tudo girando desde o círculo primeiro, e então segue aumentando o raio de seu alcance, a inteligência dadivosa ‘dadeira’ de braços tentáculos estendidos, a inteligência espargida borrifando os seus jatos de saber como num projeto de inclusão (guardemos um tempo às risadas...), ela em sendo a tutora e promotora, o senhor dos préstimos, os projetos de promoção ao social-modelo exportação e ela ir lá na frente aos de “rostos macerados, fisionomias impressionantes de iluminados e penitentes, estúpido rebotalho humano”, ela a inteligência oriunda na produção cultural capitaneada pelo Departamento Nacional de Cultura de São Paulo, Mário de Andrade o seu diretor, “contribuir para a formação do homem brasileiro, o ser geral e coletivo, que será o único capaz de conservar a nossa unidade nacional”. Aqui é Durval quem o diz: “um ensaio para a montagem do Instituto Brasileiro de Cultura (ibc), de onde os modernistas poderiam fazer seus códigos estéticos prevalecerem nacionalmente” 9. Mas voltemos até aquela pergunta e voltemos à liberdade que me concedi em lhes propor o perguntar de que cabe numa pergunta que se nos volta, constante retorno do inquerir que será talvez o contrangimento. Toda forma aí, a pergunta: Será alguém algum incauto pensou entender nos termos do que Mário de Andrade chamou de “descentralização da inteligência” o torná-la ex-cêntrica, qual isto aqui e agora o sentido que emprego à expressão, já eu digo, tornála ex-cêntrica como tática terrorífica de bombardeio a todo e qualquer centro, central única, central do Brasil, como se fora o lançar de bombas caseiras sobre a razão distributiva do que for de ser todo e qualquer sentido, arrancar a cadeira de mogno da hegemonia, e então destituí-la de um centro, destituir o centro, afogar o juízo de deus como quem afoga magistrados, promotores, testemunhas, tribunais da razão, e invoca evoca todos os nomes a se mostrarem na sua diversidade nomádica demoníaca orgiástica, os nomes todos, outros nomes, sopro, a sopragem sem vontade de um mais de poder, todos os nomes da legião decaída porque não há e não haveria de haver espaços aos pedestais, às cátedras, à palavra da verdade, a verdade convidada a se retirar da sessão com um chute na sua bunda flácida, sessão esta na que prima uma crueldade a la Antonin Artaud? Será alguém foi por aí, alguém pensara isto de um Mário de Andrade? Descentralização da inteligência atendendo a esta tática de guerrilha urbana, um Mário de Andrade vestido sob as vestes de Andreas Baader e Ulrich Meinhof, os guerrilheiros de uma Alemanha anos 70, Alemanha cansada de guerra? Seria de rir não? A seu modo, ele, Mário de Andrade é antes um grileiro. Descentralizar a inteligência pero no mucho, pequeno e eficaz golpe de estado na cultura, ali um modernista a dispor a si a cadeira na que posará de bacana. E toma-te! Em pensar que desde há tanto isto, e será ainda hoje o processo civilizatório, o cinema edificante na operação dos milagres. O cinema de Walter Salles a fazer descobertas. E será ele quem dirá na melhor das intenções sobre o cast de seu filme Central do Brasil: “grandes atores de teatro que estão no Nordeste e que não chegaram ainda aqui”. A ênfase na certa que oscila entre estas duas palavras: o aqui por imensa oposição ao longe. E o ainda porque a descentralização era ela própria um trava a língua. 7  Idem, p.68-69. 8  Idem, idem. 9  Idem, p.69.

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6 Uma casa a Josué. Uma casa que não seja de areia — que areia se move e acaba por trazer complicações aos jogos da Forma-Estado que a tudo busca fixar. O cenário das posses, o título à propriedade, uma cerca, um arame enfarpado, no alto do muro a muralha de proteção há de estar eletrificada. Vá se saber por onde andam os lobos que não deixam marcas quando ao deserto. Uma casa a Josué. Há de ser a casa que como a da ficção coube aquele que dentre os 3 porquinhos muito e muito trabalhou. Casa que resiste ao sopro dos que têm fome. E Josué poderá cantar sorrateiro e desdenhoso a velha cantiga de irritar o lobo que é mau. Questão seria saber porque será mau o lobo que se arrasta na fome. E por que não seria mau o banqueiro que lhe empresta a grana à construção da casa, e que lhe finca & vinca à dívida mais ainda do que lhe fixa à casa fixa ao solo? Walter Salles faz promessas, não ele o romeiro, e sim, ele o deus dos que trabalham e acreditam no trabalho que há de dignificar. Lembrança dos seus termos: um esteio, a identidade, a raiz, o caule grosso e firme, a árvore milenar. Só assim vinga os direitos de posse, o habite-se conferido pela prefeitura e pelo departamento de obras. À Josué, desconfiamos que lhe seja imponderável a casa — seus peitoris gastos de braços estendidos. “Uma casa qualquer. Cruz que se carrega. Imponderavelmente, para sempre, às costas” 10.

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Descentralizar a inteligência. Perdoem-me, mas ainda aqui, um pouco, o tema. Ou como nomeá-lo nos termos do hoje, termos que fechem gestalt aos que me ouvem, termos à compreensão dos incautos? Descentralizar a inteligência, ou democratizar o saber, democratizar o acesso ao saber. Ele mesmo o saber lá parado, intocado, guardado em poses de santo ao altar de uma sua contemplação, o venerá-los? Democratizar o acesso, tornar possível a ascese ascensão a escadaria da Penha Acadêmica com corrimãos sem farpa, uma rampa aos que tem dificuldade de locomoção, um elevador, um motorzinho à cintura na tração de uns tantos cavalos. A quem isto? Até onde e o quanto? Bom seria se forjássemos algo como um manual para uso doméstico, espécie de cartilha ao saber, um saber do saber. Nela, na cartilha, a advertência quanto aos seus riscos, e contra-indicações. Espécie de compêndio necessário ao seu bom uso porque já ultrapassamos o estágio de desenvoltura à crença cega na faca amolada aos altares da razão instrumental, e sua luz iluminada iluminista, o seu projeto de inclusão que supostamente a todos viesse a contemplar, gregos e baianos, cearenses e aos de Miami. Pergunta de hora, mas pergunta primeira, primeiro tópico, alínea número 1 da cartilha explicada às crianças que todos somos: para que serve o saber? ? Aqui é Foucault a indicar o mote: o saber serve para cortar. Qual seja isto, o cortar? Uma demarcação de terrenos e a investidura nas técnicas e procedimentos para com o ‘aquilo’ que se talha. Como se no princípio de tudo fosse o indefinido, o inominável, uma pululação de acontecimentos, e então se começa por separá-los, dispor aqui e ali o indistinto de antes, distingui-los, arranjá-los às regras que se lhes exigirá o respeito às regras, uns aqui, outros ali, e certos dos nomes será do ofício, outros dos nomes será o oficial, certas das coisas ficarão de fora, a grade, a cerca no separo das coisas, e outras dentre as coisas ficarão dentro, no regime dos privilégios e da beatitude. E então haverá razões e modos ao ingresso, a bilheteria cara, as amizades que facilitam o caminho, alguma corrupção porque senão sufocamos, mas não haverá condições a todos, não haverá espaço, porque não há de ser para todos que a Eureka se faça valer, uma invenção, um invento, uma fórmula, coisas de gênio, e serão talvez estes os ‘aqueles’ chamados a compor as provas, novos exames, as sentenças capciosas que apenas quem muito viu e ouviu e leu (não todo e qualquer texto mas sim o texto às provas) que será então capaz ao ingresso, e uma vez lá dentro, há de se regozijar, há de pensar ‘eu consegui, eu consegui’, e a cada qual que entra será distribuída uma série de funções, umas de 10  Referência ao poema de Cecília Meireles, In: Meireles, C. Cecília de bolso

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— uma antologia poética.

promoção continuada de novos motes novas questões novos objetos, a outros será entregue a tarefa da vigilância das fronteiras — estes terão de ocupar os dias na evitação de que aqueles que não entraram tentem pular muros, inventar formas de se burlar as regras, e se lhes disporá aos ‘aqueles e tão somente aqueles’ da vigilância um tanto do armamento que se fabrica no interior desta cidade-cerca e tão somente nela porque a violência lhe será monopólio e isto não porque se é bárbaro (os bárbaros sempre serão os outros), mas na intenção de que se evite a todo custo as rebeliões dos que estão de fora. Mas como é que se inventam armas, como é que se criam razões ao seu monopólio, argumentos e argumentos, proposições e sofismas, como é que se percebe que a cidade tem de ser fiscalizada, como é que se destinam alguns a isto, e outros aquilo, e por fim, como é que se formulam mesmo estas questões? Se trata do saber, aqui, isto, não será isto o saber? E uns tantos lutarão ao tanto de sua vida na defesa disto — do saber, uma luta a luta em seu nome, e será o saber também ele a compor-se de lutas, e dos modos e formas a luta. Táticas, estratégicas. Jogos de guerra. Dizer aqui do contrato que a todos contempla o que será senão imensa falcatrua, o engodo. Falcatrua, engodo que é também das formas do saber, suas miragens, as mirações que se lhes planta em solo fertilíssimo, e então se os exporta, se faz chegar ao mais longe que for como se na caça de anuências e anuentes, assinantes e aspirantes, chegar o mais longe, como se estivesse por descentralizar a inteligência. Falcatrua isto, mas também fascismo e cabotinagem.

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Um cinema dos escombros. Um cinema desde os escombros. Agora é outro o cinema. Cláudio Assis o está a realizar. Está-se na Recife de ainda há pouco como se estaria em qualquer cidade do mundo. Lugar lugares em que só se ama errado. Que dizer do homem senão que ele é quem mereça morrer, e isto porque ele andou dizendo e nos fazendo crer que se trata do pudor os bons modos, mas diz-se: ‘o pudor é a forma mais inteligente da perversão’. E ele o homem a se oferecer ao exemplo como exemplo, desde a morte de deus ele o homem aí, falso profeta se si mesmo. Ele o homem a sugerir que se trata da ascese como domínio de si a si um máximo de poder e potência o que ele destila. Mas qual? A ascese do pudor é outra, é ascese que se custa e se troca ao tanto da contenção, a recusa ao que se é sob a tutela da promoção. O seu autopromover-se. Cabotino o farsante. Mas quando? Nietzsche já o disse: a negação ao que há e o rol de transcrições e prescrições todos estes formulados e arrancados e dispostos ao fabulário o mais mesquinho — ficção a que não se desdenha por ela assim o ser uma ficção, mas por sugerir que se trata da verdade, e ainda mais, por supor que é uma vez a verdade o de que se trata, seria o caso o alçar à condição do paradigma, e então a negação contínua ao que lhe resta, ao que resta com relação a isto, e parece que se há um algo este algo é justo o que resta. Afirmemos esta condição, a de resto. Outro que isto, a vontade de verdade. Mas de entre a verdade e a vontade por que não dizer do escárnio a sua condição de arrendamento do que se lhe escapa? Seus jogos de captura e clausura tomados ao cinismo. Fazer operar no dentro de escaninhos a sua regulação, e se for a cidade será o aprumo de que já o mencionamos há pouco, o engate do corpo em funções que lhe assentem. E se for a casa o cenário da conversão, será a casa contida até que a comoção nos dobre aos joelhos os joelhos por sobre o milho da provação, e nos faça aí, desde aí, operar em rasteiras formas. Do que aqui se trata? Trata-se de um filme, dois filmes, e de entre os filmes os textos — estamos ainda ao desassossego de quando o início desta nossa fala, estamos ainda sob o forcado da palavra embora já saibamos que ela não nos promete sequer a casa ao corpo extenuado que trazemos conosco, ainda assim jogamos, apenas que nos parece que extirpamos os últimos raios que se nos prometia o azul da metafísica, restou-nos furores agitações a queimação das febres que se vão e se nos volta a febre da maleita mas também furor que nos impede que se nos bastemos a torpores e apaziguamentos. Sequer se trata da casa. Ainda que ela nos pareça disposta. A casa bem pode ser o que aprisiona, o que nos sequestra da andança dos caminhos nos quais por mais que se ande já se soube não se estar preso a ele. A casa, por vezes, é a forquilha, o cabide, o princípio de realidade a se nos impor nas duas palavrinhas da expressão: princípio e realidade, porque será que seria ali um princípio, um recuo, uma conduta pressuposta neles — o saber de que falamos, seus jogos e modos, a sua fantasia e o seu

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fetiche a nos enredar? Por que nos conduziríamos a ele o princípio sem que percebêssemos o tanto que deixamos à solta nas irrealizações todas, oferecer ao corpo a cama quente de nosso sono não seria também e a um só tempo desenredá-lo da trama na que se faz se monta por vezes um Chiapas, uma Sierra Maestra, uma revolução, uma desprega, um desmonte? E então a outra parte do termo, a realidade. Outra vez aqui o solo acimentado, solo viciado e viciante — tudo o mais em sendo o que se desdenha porque não haveria de portar consigo qualquer valia, a realidade como o medidor dos passos, como a medição dos caminhos, como mediação ao caminhar dos caminhos, e como sendo o todo dos caminhos, todo e qualquer caminho ela, e ainda mais, como o ‘aquilo’ a que se pudesse uma vez os caminhos — uma vez que se os percorresse. Agora aqui o caminho é a clausura. Dizer o caminho como quem diz a clausura. O caminhar nele o experimentar em dobro deste claustro. A realidade seria a Roma porque se diz tanto que os caminhos é para lá que conduzem — ponto de chegada, ponto de convergência. Roma seria a realidade a se impor aos caminhos, e Roma seria também o horizonte de que se nos mostrasse em tentação sempre que buscássemos mirar ao longe. Espécie de cidade cenográfica, o cenário montado antes mesmo da farsa e para a farsa, cenário-cercado-coxia onde e para onde tudo se direciona. Hegemonia do tráfego e sua engenharia. Uníssono e, a um só tempo, o império. Trata de esquecer isto, esta a hipótese, trata de esquecer. Trata de tomar a ruela o beco a baía, trata de esquecer a glória. Trata de não se querer vivo para depois contar as histórias. Talvez seja a impostura que há no testemunhar. Ser aquele que conta o que foi. Mas como isto se o acontecimento de que se conta for acontecimento radical. Aquele do qual não se volta uma vez que se o experimenta na totalidade, de forma integral? Lembrança de Primo Levi a dizer de Auschwitz: os que sobramos somos os piores, e a condição do sobrar é a de ser o pior. Os melhores são os que sucumbem for o caso a gravidade radical imposta às coisas. São os que não negociam, os que não negociaram. E então isto, viveram ao fundo, até o fundo o acontecimento que se lhes coube. Os outros, os que resistiram, resistiram ao acontecimento integral e sujo, e então deram-se alguns a contar o que não viveram desde o fundo a fundo. Trata de esquecer a glória. De se querer para depois na divisão do butim. Se se trata de mirar o homem então começa por mirar o beco, e pensa que o beco nu e cru não é aquilo que detrata o homem, é antes uma sua condição uma vez os valores nos quais ele se assenta. Cansou-se de querer uma Roma, uma glória, uma baía, e a romaria para lá, e as políticas às romarias, e a marcha do rebanho que se tosqueia tosqueará, o homem num júbilo a si. Um pastor ali na condução. Mas talvez sequer um pastor, e de tanto o caminhar por sobre o caminho e de tanto os valores que se nos inscreve aos caminhos, que é para lá que nos conduzimos, nós mesmos, e a liberdade que nos afeta. A liberdade do homem. Curiosa a contrafação. Como se dizer ‘homem’ não fosse já dizer ‘clausura’, e isto posto fosse ainda o caso de se lhe empregar o termo ‘a liberdade’. Curiosa a contrafação. Está-se preso, esteve-se preso. Ao dizer o homem — é bem melhor que se diga o beco do que a baía ou a glória. Ao menos não se acena com o que não há. Ao menos não se se agarra a uma sobrevida. Josué seria apenas Josué e ponto. Toda edificação é elevar-se no charco, e sugerir supor que o charco não é toda hora, e que o charco ainda se conserta, ainda ganha perfumes à Channel 05. Um cinema dos escombros, um cinema desde os escombros, um cinema do que resta. Trata-se de Cláudio Assis. Será há ali um Nordeste? Talvez que o haja, um Nordeste como o que se inventa à imanência das forças tantas que se se disser que não se trata do Nordeste mas de qualquer que seja a cidade uma cidade no mundo não se estará enunciando relatórios à impostura. Uma cidade qualquer no mundo. A ênfase aqui é no indefinido do pronome. Uma cidade e não esta, ou aquela, mas uma qualquer dentre tantas e que não apenas a cidade matriz, a cidade ideal, a cidade de deus. Nunca a Roma que é onde se desabilita da vertigem os caminhos porque se bloca a vertigem. Uma cidade no mundo porque uma cidade é sempre um bocado às vertigens. E Cláudio Assis dirá: “Amarelo manga não é o amarelo ouro que reluz, é o amarelo cansado”. Sequer que se trata de ouropel na tentativa de conduzir ao equívoco, o engana olho, o trompe l’oeil. Trata-se do equívoco e ponto, não da enganação que são jogos ao verdadeiro. Dos jogos de Cláudio Assis, é à precariedade na que deus há muito não conspira por meio de seus milagres. Ele se ainda o há não é, ou seria “alvo abstrato, uma necessidade lógica, um alto edifício em que se harmonizassem silogismos e fantasias. Tampouco é um puro destilado inodoro e neutro, nem masculino nem feminino, de nosso cérebro. É, pelo contrário, homem e mulher a um só tempo, mortal e imortal, excremento e espírito. Concebe, fecunda e mata; amor e morte, conjuntamente, torna a conceber e matar — e

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em largos passos de dança vai além dos limites da lógica, onde não há lugar para antinomias. Peleja, enfrenta o perigo a todo momento, treme, tropeça em cada ser vivo, grita. É incessantemente vencido, mas torna a erguer-se, sujo de sangue e terra, e recomeça a luta. Vive coberto de feridas, seus olhos enchem-se de medo e obstinação, seu queixo e suas têmporas estão partidos. (...) Está cheio de aspereza, de selvagem retidão, e é sem piedade alguma que escolhe sempre o melhor. Não se compadece, não se importa nem com seres humanos, nem com animais, muito menos com virtudes ou ideias. Ama-os por um instante, esmagá-os para sempre e segue adiante” 11. Aí a sua tática, a sua guerrilha: amar e deixar e seguir adiante. Esquecer as coisas. Deixar-nos a condição do que se esquece e apenas isto. A condição do restar. Terríveis serão aqueles que buscarem a superação, o sobrelevar-se, o domínio dos sustos, a palavra que diga o ser, a encomenda do que edifique. Melhor que se se deixe à condição na que as coisas se nos dão. Apenas que isto. Não tentar o polimento o resgate de quando o início (será houve este acerto ao início, o baile perfumado aí lá?). Amarelo que não é o do ouro, amarelo cansado. Como no texto de Renato Cordeiro Campos, que diz: “Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tamboretos, dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenca, dos chapéus envelhecidos, da charque. Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarreias, dos dentes apodrecidos desde o interior amarelo velho desbotado doente”. E mesmo o padre que há no filme não será aquele que busca o reverter do quadro, ele dirá que sequer que se liga aos fiéis, tudo se lhes roubou, a igreja está fechada, tem cimento onde eram as portas e as janelas. E as missas estão paradas. Se se trata dos espaços à fé do povo são muitos os vãos que se lhes prestam: templos, terreiros, clínicas psiquiátricas. O padre se pergunta: por que não deixam a igreja em paz? Curiosa a pergunta. Parece que se cansou dos sermões, que se desapegou de sua função de conduzir o rebanho a algum lugar, não um qualquer porque será sempre a Roma, para Roma que se o conduzirá uma vez um rebanho e uma vez um pastor — aqui, no filme de Cláudio Assis, o padre parece que se cansou dos sermões e do conduzir o seu rebanho não um qualquer rebanho mas ao rebanho operado de suas mazelas que é a feita mesma do conduzir, a sua razão suficiente. Parece o padre se cansou. Deixar que os outros todos se esfalfem na condenação que lhes parece caber, o de estar à solta, livres. Já sabemos do que se trata isto, o estar livre quando se trata de homens demasiado assim. Deixar que se esfalfem é liberá-los da condição mesma de rebanho. E liberar-se da condição do pastoreio. Nenhum desígnio, nenhum esteio por sobre o qual caminhar. Nenhum arreio, e nenhuma vontade ao arremate. Parece que se desopera o saber de resguardo às fronteiras. Se ele fala é aos cães, e a estes ele dirá: “vocês é que são fiéis, vocês”. Deixar que os homens. Deixar que os. Deixar que. Deixar. Deixar. Deixa-los. Talvez por vezes o precipitá-los a que se esgotem rápido rapidíssimo. Um Sileno a falar na boca do Padre de Amarelo Manga quando se lhe oferece o homem que busca resistir, um último fiel, e o padre parece temer o se intoxicar ainda agora de suas vilanias, as do homem, e este o que fará senão um buscar-se agarrar, tomar ao pescoço o náufrago que se nos toma ao pescoço e então o afogá-lo, esta a política quando nada mais é o que há, uma edificância, nada mais isto, e então, o resto, menos mal do que a vilania que cabe nos gestos agônicos que parecem estar supostos na diplomacia, um acordo de pares, nada que isto, nada, e então que o padre de Amarelo Manga concluirá que matar não é ideia propriamente má. Mas talvez sequer isto, deixar que o tempo o tempo ‘outrora os engenhos recortavam a campina, veio o tempo e os engoliu, e ao tempo engoliu a usina, um ou outro, ainda há quem diga, que o tempo vence no fim. Um dia, ele engole a usina, como engole a ti e a mim” — são as palavras que inauguram hora e meia do filme Baixio das Bestas. Cláudio Assis dá-se a tarefa de uma quase elegia ao tempo. E no dentro dele, tudo o que for será o de que se trata. Fora isto o que há, o que haveria? Uma casa, um quarto, um caminho? A escrevência de cartas que conspiram? Um filme sobre a importância do se mandar as cartas para o ‘longe’ que nunca, o pai lá a habitar? Mas até quando isto? Não seria esta diligência uma recusa ao tempo? Dizer que é lá na frente e que não é agora. Dizer ao agora que ele se diga doutro modo? A um cinema edificante, Cláudio Assis parece contrapor o seu cinema abandonado, o seu cinema em ruínas, desde os escombros. Dele se dirá: faz-se o que se quer. Porque no cinema é o que se quer o ‘aquilo’ que se faz. Talvez não em todo cinema. Na certa que dependerá ao que 11  Kazantzákis, N. op.cit, p.114-115.

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se responde, e ao que obstinadamente se volta. Cláudio Assis experimenta de forma suja direta, e o experimento acaba por se equivaler ao que será. Forma de dizer que não se burila ao tanto do acerto, uma estética que se pretenda sobrecodificadora, qual seja, algo que se imponha na direção do paradigma, ou de um transcendental condicionante aos modos do fazer, todo e qualquer. O cinema de Claúdio Assis não parece se querer a condição de possibilidade aos outros fazeres, forma esta da sobrevaloração, forma esta do cerceamento ao que lhe for um irredutível outro, um fascismo de plantão. E isto de assim o ser são já os modos mesmos do Capital, ou não seria? A sua perfídia. Arrendar desde o vértice. Fazer incluir o diverso desde que este acabe por rearranjar as suas arestas, ou certos de seus modos, um sotaque aqui, uma certa cor que se faz tingir ao céu do sertão ali, por exemplo o céu do sertão de um filme como Abril Despedaçado. Mas isto já seria uma outra intervenção. Voltemos ao cinema de um Cláudio Assis, o experimento no precário que é todo o seu experimentar. Talvez que acabe por gorar. Talvez que não funcione. Ou ainda mais, é quase certo que não funcione. Mas quais as condições ao bom funcionar, e ao funcionar ao tanto de que se nos imponha suas regras de realização às realizações vindouras, o funcionar padrão ótimo modelar? Lembrança de uma fala de Félix Guattari na qual ele dizia que há de se quebrar os clichês, e aqui, no caso, seria o de quebrar o dito que sugere que quando um time está ganhando não se deve nele mexer. Guattari sugere o contrário: for o caso o time sempre ganhar, será que já não estamos por fundar uma hegemonia — e o problema imenso das hegemonias não supõe o inviabilizar doutros tantos que então nada poderão na medida mesma em que serão os espaços todos ao fazer o que acaba por se intoxicar uma vez a hegemonia, uma vez o hegemônico. No contrário disto, os experimentos de Cláudio Assis, os seus brinquedinhos sujos, a sua risada de Sileno. E se for o caso o lavar das roupas ao igarapé, será o lavar das roupas. E se for o caso o bulinar do velho será o caso o bulinar do velho. O velho não se conserta, não se consertará. E se for o caso o cinismo e arrogância será o caso o cinismo e arrogância. E se for o caso o chamamento pelo que lubrifica, a manteiga aos que têm fome (quede a manteiga? — são as vozes do filme), a manteiga às facilidades de um esgarce, será isto tal e qual. Apenas isto e só. Como se se estivesse preso e solto ao acontecer dos acontecimentos num aquém de toda e qualquer moral, de toda e qualquer visada desde aí, para aí. Apenas isto. Apenas que só. E por vezes será o fascismo dos pequeninos gestos, o estupro da puta, o expor da nudez da menininha nas costas da igreja — que não opera milagres aos que não têm. Tanto e tanto do fascismo que chega a doer as vistas. Mas não nos parece comum isto? Ou será que nos é uma aberração uma incongruência esta sequência de imagens sujas? Talvez que se chegue a pensar que se está preso à materialidade suja na que se inscreve o acontecer dos acontecimentos. Como se não houvesse saídas? Onde as saídas? Onde a casa, uma casa, o pai? Onde o milagreiro, ou o palhaço que nos diz que deus dos pobres nunca esquece? Talvez que aqui mesmo nos seja tudo isto. Imensa a convocação a um fazer que é aqui, desde aqui, para aqui. Se há algo de nobre no charco destilado de Cláudio Assis é que ele não propõe soluções. Seu cinema não indica pistas. Seu cinema não resolve nada. Seu cinema dispõe.

bibliografia Albuquerque Jr., Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Editora Cortez, 1999 • Andrade, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Livraria José Olimpio Editor, 1962 • Foucault, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Ditos e Escritos, vol. ii. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 2000 (p.260-281) • Kazantzákis, Nikos. Ascese, os salvadores de deus. São Paulo: Editora Ática, 1997 • Meireles, Cecília. Cecília de bolso — uma antologia poética. Porto Alegre: L&Pm Pocket, 2009 • Mendes, Murilo. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Fontana, 1976.

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A paixão segundo Lampião Daniel Lins

Em 1930, Lampião, enfermo de paixão, “escreveu” para Maria Bonita uma toada, cantada originalmente por João Dias, e mais tarde por Amelinha, e que se tornou famosa em todo Brasil:

Se eu soubesse que chorando Empato a tua viagem, Meus olhos eram dois rios Que não te davam passagem.

Cabelos pretos anelados Olhos castanhos delicados Quem não ama a cor morena Morre cedo e não vê nada.

Com a morte do padre Cícero em 1934, Lampião viveu um luto impossível, radical. À medida que sua fé aumentava, paradoxalmente, seu medo de morrer acentuava-se. Era como se não tivesse mais a proteção de ninguém. Ele pensava cada vez mais na vidente de Umã, que profetizou “seu fim”. Ela falou que sua morte seria anunciada por uma profusão de símbolos. Suas palavras copiam, até certo ponto, as profecias do Evangelho de Lucas:

Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. [...] Assim Também, quando virdes estas coisas acontecerem, sabei Que o Reino de Deus está perto! (Lucas 21:25-31)

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Antes da tragédia de Angico, Maria Bonita e Lampião acompanhados do cachorro Guarani, perambulam na caatinga quando, no meio do caminho, grande e brilhosa estrela cadente, parecendo aproximar-se da terra para avisar alguma coisa, cortou errática, os espaços. Maria Bonita, possuída por um terror sagrado, gritou atônita: “Deus te salve! Deus te tenha! Que na terra nunca venhas”. Lampião, cabisbaixo, vendo nos olhos a morte e sentindo no coração o furor divino anunciando a finitude, murmurou nos ouvidos de Maria a fatalidade, o indizível: “Maria, minha ‘hora’ chegou! É o destino! Santinha, tudo isso... os sinais da vidente”! E, firme, os lábios secos confirmou: “É o fim, meu amor!” Maria Bonita chorava enquanto, como nos Evangelhos, Lampião se afastava para rezar e esperar que o destino decidisse sua sorte! A história oral atribui ao “divino-bandido” o estatuto crístico, beirando a blasfêmia e chocando as sensibilidades do Brasil cristão! A caverna de Angico, situada às margens do rio São Francisco, em Sergipe, lugar de esconderijo e repouso para Lampião e seus cabras, testemunho de um louco amor, foi o berço da morte de Lampião e de Maria Bonita, no dia 28 de julho de 1938. Lampião tinha então 40 anos e Maria Bonita, 27. Foi o fim de uma epopeia marcada pela tragédia que terminará definitivamente com a lenda do ser invisível, enfeitiçado. Entretanto, se vivo ele era ora maquinaria de acontecimentos, ora maquinaria de guerra, morto ele tornar-se-á um ser histórico. O escândalo da morte é, antes de tudo, o da epiderme que não aguenta mais, do coração que para e dos pedaços de organismo que estouram triturados pelas balas: é o fim do coração, do sexo, do orgasmo, do prazer, da raiva, do sonho. É o adormecer do desejo. Como na história dos grandes bandidos, é a traição que vai causar a perda de Lampião; o mesmo aconteceu com Jesse James, Billy the kid, Salvatore Giuliano, Diogo Corrientes e muitos outros. No caso de Lampião, os traidores são Pedro de Cândida, homem de confiança, coiteiro e, eventualmente, cozinheiro do bando, e João Bezerra, capitão do Exército, fornecedor, presumido, de armas e munições e provável informador privilegiado de Lampião. Oficialmente, porém, Bezerra era um profissional a serviço do Poder, um “matador de cangaceiros”. De fato, Bezerra era espertalhão, oportunista, mais preocupado com o dinheiro que com a honra! Como comandante da volante, alguns afirmam que ele simulou combates contra os cangaceiros, enganou os superiores, mentiu à imprensa. Na madrugada de 28 de julho de 1938, o Tigre do sertão, segundo a expressão do poeta Ascenso Ferreira, não soube interpretar nem os signos nem as vozes dos sonhos:

Lento, um comboio move-se na estrada, Cantam os tangerinos a toada Guerreira do Tigre do sertão: “É lamp… é lamp… é lamp… é Virgulino Lampião” Os guerreiros de minha terra já nascem feitos. Não aprendem esgrima nem tiveram instrução…

- Cabeleira! - Conselheiro! - Tempestade! - Lampião! (Ferreira, Ascenso. Catimbó. Recife: Cia Editora de Pernambuco, Fundarpe-cepe, 1988, pp. 17-18 e 51).

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Habitado por um sentimento agudo de infelicidade, Lampião sofria e se fechava numa tristeza mórbida: uma tristeza de sertãoplaneta ferido! Maria Bonita não sabia o que fazer; ela se sentia cada vez mais melancólica. Ao cair da noite, Lampião aproximou-se de sua amada e reafirmou com emoção: “Cada vez mais estou convencido: o destino quer que eu viva e morra no cangaço. Então, viva o cangaço! Santinha, ninguém tira da cabeça, não. É num mês de julho. Que meu padrim Ciço vem me buscar. Olhe o que está acontecendo. [...] É o fim meu Amor, acho que meu padrim vem me buscar. Não adianta correr, não. Ninguém escapa do destino!” (Lins, Daniel La passion selon Lampião. Paris: Seuil, 1997, p. 130-134). Assim falou Lampião, realizando em si o próprio destino: o fim da fala, a eternidade do silêncio. O que restava de Lampião, qual Édipo, confundido com o seu próprio destino, tornado destino, com o destino? Confrontado a morte da fala, ao consummatum est fala? A primeira resposta — consolação? — tentação? — eu peço emprestada a Lacan que tanta admiração teve pelos heróis gregos, aplicando-a, no caso, a Lampião, grande Édipo sertanejo e, por que não, brasileiro. Quando a fala se realizou por completo, quando a vida de Édipo passou completamente para dentro de seu destino, que resta de Édipo? É o que mostra “Édipo em Coluna” — o drama essencial do destino, a ausência absoluta de caridade, de fraternidade, de seja o que for que se relacione com os chamados sentimentos humanos” (Lacan, Jacques. Le Séminaire II. Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris: Seuil 1978, p. 269). A última fala de Lampião realizou, de fato, seu destino, e como Jesus, ela “amou até o fim”, ou para falar como Lacan: falou “até o fim”, consumindo assim seu martírio, ao esposar o próprio destino, só que, desta feita, um martírio com sacrifício! Num dos relatos mais emocionantes escritos sobre o massacre de Angico, Sila testemunhou: Havia algo no ar. O capitão mostrava-se abatido e, se de todo não era homem de muitos sorrisos, dessa vez estampava em seu rosto a tristeza que lhe corroía a alma. Há mais de seis meses, disse-me Maria Bonita nessa oportunidade, Lampião andava triste e buscava isolar-se dos demais companheiros. Mas nesse dia, ele parecia estar adivinhando coisas, pois sua tristeza impressionava ao mais desavisado dos mortais! (Souza, Ilda Ribeiro e Orrico, Israel. Sila, uma cangaceira de Lampião. São Paulo: Traço Editora. Souza e Orrico, 1984, p.94). Lá pela madrugada, os cangaceiros — quatro mulheres e trinta homens, segundo uns, 51 cangaceiros e cangaceiras, segundo outros — foram acordados por uma cortina de balas... Quarenta e cinco soldados armados de metralhadoras cercaram a caverna e atacaram o bando. Ferida, escondida atrás dos rochedos, Maria Bonita, esmagada pelas botas dos soldados, a face coberta de lama e de sangue, lançou um último olhar, procurando em vão o rosto de seu amado. Sua consciência negava o perigo, sua paixão ignorava a emergência da morte. Um odor de jasmim perfumou a caverna de Angico. O corpo temia, o espírito se preocupava. O olhar se fechou ao ouvir os cânticos fúnebres da madrugada enlutada. Maria teve apenas o tempo de ver Lampião perfurado de balas, jogado como uma máquina mole sobre as pedras antes de ser degolado e seu corpo dado como comida aos urubus esfomeados. Quando os soldados a encontraram ela estava viva. O soldado Cecílio degolou-a viva com um facão afiado. Morta, ela pertencia, finalmente, a todos. Eles se jogaram contra ela e, numa cerimônia macabra, numa visão saturada do mal cuja história brasileira é gulosa, despojaram o cadáver, dividiram as jóias, o dinheiro, e expuseram o corpo “numa posição grotesca, as pernas abertas e uma vara fincada na vagina”, segundo testemunho do soldado Antônio Campos (Lins, Daniel: Lampião, o homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1997, p. 186-188). José Panta de Godoy, o primeiro a atirar em Maria Bonita, gravou no lugar do crime seu testemunho: “Levantamos a saia dela para ver melhor sua calcinha vermelha. Uma vez cortada sua cabeça, tive que bater forte, até o osso; havia muito sangue. A seguir, meti o dedo no miolo da cabeça dela, era muito branco, me sujei todo. Sua calcinha estava suja de sangue por causa do impacto da bala!” (Lins, Daniel. Idem. p. 188).

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Não se tratava de uma “comemoração”, mas de uma violação. Apressados, excitados, os jovens soldados lançam-se contra os corpos, fazendo a triagem dos “melhores pedaços”, à procura de um anel, um diamante, um relógio de ouro. Alucinados, sonhavam com pedras preciosas, quilos de ouro, montanhas de dinheiro sobre os quais a imprensa havia tanto falado e as volantes tanto prometido. A ambição e, até certo ponto, a decepção levaram alguns a cortar os dedos das mãos dos cangaceiros, “para não perder tempo” e escolheram as jóias, mais tarde, calmamente, em família: “Ao término da batalha, os soldados eufóricos saquearam e mutilaram os mortos. O dinheiro, ouro e pedras preciosas ficavam para quem chegasse primeiro. Cenas de selvageria [...] se desenrolaram. Um soldado cortou fora a mão de Luís Pedro e a colocou no seu bornal, para retirar os anéis depois, com calma” (Chandler, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro 1983, p.250). O coronel Bezerra, mestre-cão, “fingia” estar orgulhoso do trabalho dos “meninos” e festejava os cinco quilos de ouro e uma soma importante de dinheiro encontrados na caverna de Angico — não declarados no inventário oficial. As cabeças de Maria Bonita, de Lampião e de nove outros cangaceiros, como não havia formol, foram conservadas em latas de querosene e seus corpos — o que sobrou — foram jogados num rio seco, oferecido como ração aos urubus. Acompanhando Bezerra, os soldados desfilaram de vila em vila, apresentando o “troféu” aos sertanejos, antes de exporem as cabeças nas praças públicas das cidades. Se, com o “fim do cangaço”, Lampião deixou a cena, ele, contudo não morreu. Para uns ele se encontra “em algum lugar”, em Mato Grosso ou em Minas Gerais; para outros ele voltará um dia... Alguns falam que o Capitão se transformou num “espírito”, supõe a ausência de luto e de perda em relação a esse “espírito”. A identificação, nesse contexto, parece escapar ao abismo de uma melancolia masoquista. Identificar-se com o que “está perdido” é uma forma de realizar um ideal, um ideal do eu no qual tanto o eu quanto o “espírito” são radicalmente atravessados, trespassados, pelo quiasma que faz o homem com aquilo que ele não é. A identificação com o que está perdido não é uma ressurreição mágica do que não existe mais, porém, a afirmação da verdade de que o ser é vulnerável e foi atingido (Lins, Daniel. La passion selon Lampião. Paris: Seuil, 1975, p. 177-183). O herói não morre, dissemos. Lampião, para alguns, está vivo: sua morte foi uma grande “mentira”; ou seja, se ele morreu, é que a verdade não é verdadeira. Como matar Agamenon ou Ulisses? Como deixar morrer Aquiles no meio da imaginária Ilíada? O herói não morre — não porque ele não queira, mas porque ele não pode morrer... A morte do herói é normal, mas nunca natural, mesmo porque, como escreve Vernant: “Nada pode atingir a bela morte: seu brilho se prolonga e se funde no espectador da palavra poética que, ao dizer a glória, torna-a para sempre real. A beleza da Kalos Thánatos não é diferente da do canto, um canto que, ao celebrá-la, torna-se, na cadeia contínua das gerações, memória imortal (Vernant, Jean-Pierre. Mythes et pensées chez les Grecs. 1989, p.79)” O itinerário de Lampião se confrontou, pois, com a última presença da alteridade: a morte e seu anjo: o “anjo melancólico”, a morte como única pátria do cangaceiro, este ser dolorosamente belo. Na noite do terror, a última noite de Angico, Lampião e Maria Bonita vão mais uma vez marcar — não pela vitória, mas pelo “fracasso” — a força do herói. Todo o herói necessita de um traidor para consumar sua morte e eternizá-lo no imaginário dos povos. Com efeito, a partir dos diversos relatos da última noite, fui levado a analisá-la como uma fase de espelho generalizada que vai gerar uma lei sem lei, um verdadeiro “bordel místico”, no qual os fantasmas do duplo e do um fusionam até a síncope no aniquilamento recíproco da sedução. Um em dois e dois em um — Lampião/Maria/Lampião — tal é a recusa do profano. Fazemos aqui alusão à insubordinação, ao desejo sem medida, ao amor de paixão descritos por Musil, ao falar do corpo amoroso, antes da punhalada da lei fora-da-lei:

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Eles estavam de acordo. A partir de um certo momento, eles se sentiam um só ser... o sonho flutuava diante dos seus olhos e se derretia em um só corpo; sonho evidentemente incompreensível, mas convencedor e profundamente belo, tão belo quanto dois seres que aparecem lado a lado, mesmo quando formam apenas um.“One soul, one flesh, one love, one heart, one all”, diria J. Ford! (“Uma alma, um amor, um lar, um tudo”).

A viola tá chorando, Tá chorando com razão, Soluçando de saudade, Gemendo de compaixão Degolaram Virgulino Acabou-se Lampião.

Mortos, como Romeu e Julieta. A imagem final do casal paralisado nos conduz, talvez, à terra prometida que é o sono dos amorosos. [...] O sono dos amorosos, por sinal, não faz outra coisa se não recarregar uma energia do imaginário pronto ao acordar, para novos investimentos, novos carinhos, sob o império dos sentidos (Kristeva, Julia. Histoires d´amours. Paris: Denoel, 1983, p. 294). Lampião e Maria Bonita, à maneira de Romeu e Julieta, “mortos-adormecidos são, como nosso sono a dois quando estamos apaixonados, uma reserva de imagens fusionais que sossega por um tempo a frenesi erótica antes de realçá-la. (idem, ibidem)

denegação da história, desforra do imaginário

Hoje todo mundo sabe quem foi ele, o capitão, junta o sabe e o não sabe e inventa outro lampião

mas, dele mesmo, não sabem e nem nunca saberão, pois ele nunca viveu, não era sim, era não,

como essas coisas que existem dentro da imaginação. Quem puder que invente outro Virgulino Lampião (Carlos Pena Filho)

Ao sair desse palácio fantástico e dessa galeria de vidro que é o sertão, sinto-me como um iniciado abandonando a caverna de Platão, não só transfigurado, mas, sobretudo, apaixonado, pelo Diverso sertanejo.

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Espero que esse percurso mítico e histórico-legendário referente à invenção de Lampião, herói juvenil, contribua para uma leitura menos estratificada dos dois imaginários — positivismo-oficial e legendário-romântico. Na realidade, no caso de Lampião e do cangaço, a distância entre a história e o romance, a “verdade” e a ficção, não parece constituir um verdadeiro problema. Os historiadores do imaginário lidam com as dualidades como se essas integrassem, de fato, as personagens ou o episódio pesquisado. A história incorpora também uma boa parte de imaginação, escolhas ideológicas, imaginários construídos sob o signo da subjetividade e da paixão. A decisão do que é histórico ou real se limita ao que é escrito a respeito do “fato histórico” ou do “personagem histórico”. A história é primeiro imaginário antes de tornar-se História. As obras literárias, bibliográficas ou históricas sobre o cangaço recitam na sua maioria o pensamento único. Esse representa o consenso da lei social brasileira, fundada antes sobre os preconceitos que sobre a história social das mentalidades. Nas inter-relações ou na relação que se instaura entre as histórias contadas pela literatura de cordel — rica em simbolizações iconográficas e imagéticas — e a história regida pelo Texto Brasileiro sobre o cangaço, emerge uma literatura cristalizada no preconceito legitimado pelo positivismo europeu do século xix e pelo conforto hodierno de uma elite patrimonial cujo capital cultural é de uma pobreza e miserabilismo sem comum medida, o que poderia, até certo ponto, explicar o niilismo reinante de um poder patrimonial que foge do pensamento como Lampião fugia das volantes… A interpretação repete o pensamento único e a riqueza do tema estudado é, geralmente, negligenciada pela História Oficial. O discurso das volantes ou curiosos, pouco contestado pelos estudiosos do cangaço, ocupa a cena, sobretudo a partir de 1940, fim oficial do Movimento do Cangaço. Significa dizer que os escritos produzidos pelo Texto Brasileiro sobre o cangaço constituem geralmente a imagem fiel de um consenso que tem em si a força do dogma e que atribui à violência instituída um caráter quase sobrenatural, divino. De versão em versão, a figura de Lampião, bandido multipolarizado — ora bandido social, heróico ou sanguinário — , cristalizou-se no Brasil, nas memórias, nas biografias, nos contos, na literatura, nas artes plásticas, e no cinema. A literatura de cordel, ao conceber a origem de Lampião e ao pontuar sua carreira, o inventou. Ao inventá-lo, ela fez dele um indivíduo produtor e produto da cultura e da subjetividade. Ao retraçar na sua cronologia e temática a construção da lenda, descobre-se de que maneira um indivíduo real, chamado Virgulino, foi pouco a pouco tornando-se uma construção humana e heróica, animal e angélica, escapando à ordem da moral e da razão, embaralhando, aqui também, o sistema classificatório. Essa migração e emigração de signos é primordial para a compreensão da mobilidade social e imaginária de um vaqueiro de Bela Vista, hoje Serra Talhada, transformação em herói épico. Admirado porque grande, conspurcado porque déspota, venerado porque virtuoso, ele é celebrado como herói autóctone, em detrimento dos heróis militares, únicas figuras integrando de fato a historiografia brasileira. A força do cordel foi ter compreendido que a “celebração” só é plenamente eficaz quando a personagem que é mostrada ou apresentada não exige nem conhecimento nem domínio da língua. Em um país como o Brasil e — mais ainda — numa região como o Nordeste, onde mais da metade da população é analfabeta, compreendese a integração do folheto de cordel ao corpo, aos sentimentos e à alma nordestina, sobretudo nos tempos do cangaço. Por outro lado, a inflação de artigos na imprensa nacional e internacional sobre Lampião; filmes, séries televisionadas, colóquios no Brasil, Suíça, Alemanha, França, Itália, Estados Unidos ou em outros países; exposições, aberturas de museus no Brasil — lojas, restaurantes, marcas com os nomes de Lampião ou Maria Bonita, estátuas, quadros de artistas famosos, balés, peças de teatro, espetáculos infantis contando a saga do cangaço, etc. — essa multiplicidade de olhares e a inclinação aos estudos biográficos conhecidos, sobretudo a partir dos anos 80, engendraram uma imagem idealizada, espiritualizada, heroificada de Lampião, em textos e representações imaginárias que se perpetuam e se repetem sem que nada possa parar essa pletora de produção.

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Entretanto, a proliferação de discursos e de obras sobre o “divino cangaceiro” é indexada a uma temporalidade que não é da pesquisa sócio-histórica, mas a da celebração coletiva com suas comemorações, suas exposições, suas peregrinações. Os discursos, embora, às vezes, muito críticos — raramente existe celebração sem crítica negativa, mesmo porque a crítica transforma um objeto de culto em um sujeito de desejo — , colocam de chofre a personagem numa lenda dourada, num vaivém entre a biografia e a hagiografia. Lampião, personagem sem conteúdo revolucionário, é o arquétipo do cangaceiro independente. Sua trajetória foi marcada por um bandido romântico, um bandido social ou um herói canônico, “primitivo da revolta”. Misto de deus e do diabo, ele é o bandido popular, o rebelde de cada um. No palco da crueldade que seria “historicamente” o sertão, o cangaceiro ocupa sem dúvida um papel primordial. Ora anjo, ora diabo, ele é o espaço de identificação, a encarnação simbólica da violência dos pobres contra a violência dos ricos — o imaginário da fome servindo de pano de fundo à culpabilidade mesclada ao medo. Tudo leva a crer que, se a história do cangaço interessa apenas de maneira marginal aos historiadores brasileiros, é porque o movimento do cangaço é considerado, de fato, como “episódio” integrado ao paradigma das “lutas implícitas”, proposto por Castoriadis. As “lutas implícitas” correspondem aos pequenos movimentos ou grupelhos dissimilados no quotidiano, não organizado em um todo coerente, nem dotados de um ideal, de uma plataforma política, nem de “reivindicações” premeditadas, estruturadas ou organizadas. Elas formam o universo das “lutas menores” — à margem — que não correspondem, aparentemente, a nenhuma “racionalidade”, mas que estão presentes no cotidiano daqueles que vivem e fazem a história (Cf. Castoriadis, Cornelius. “Duvidas na História das lutas operárias”, Oitenta, vol. 1, Porto Alegre: lp&m, novembro-dezembro 1979; A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1982). O imaginário brasileiro, por meio da literatura de cordel, do folclore e, excepcionalmente, da própria história, transformou as mulheres — em particular, Maria Bonita — ora em sacrificadas da miséria, ora em heroínas do amor ecológico. As raras biografias ou estudos sobre as mulheres cangaceiras privilegiam a excepcionalidade ou a desmesura. Na prática do mal como do bem, os escritos tendem a fazer da dura vida das mulheres sacrificadas não mais apenas a causa de seus estatutos de mulheres sacrificadas, mas a consequência de uma predisposição “inata” ao sofrimento e ao repúdio. Inscritas numa fatalidade própria de sua natureza, em um universo no qual as heroínas, mais ainda do que batalhadoras, são mulheres que nasceram não apenas para gerar, mas para renunciar ao desejo, portanto, ao gozo e à liberdade. Assim, algumas não poderão escapar ao estigma: ao procurar o cangaço elas não almejavam a liberdade, mas ao inominável, ao indizível do desejo. Ao escolherem, no universo caótico sertanejo, a companhia dos cangaceiros, elas serão excomungadas e ao tentar descrever a “sociologia” das mulheres no cangaço, certos autores vão vomitar seus próprios demônios, acordar seus medos infantis, numa narração que confirma um etnocentrismo radical e a fobia à mulher como corpo e sexo perigosos, néctar misturado ao veneno. Paralelo, todavia, a essa denegação, algumas cangaceiras são descritas, inclusive por autores bastantes críticos a seu respeito, como heroínas transbordantes, de uma atividade exuberante em tudo aquilo que empreendem sem comum medida com nenhuma outra situação “histórica” conhecida no Brasil. Seus “erros” são muitas vezes perdoados, pois, humanas ou semidivinas, elas integram a lógica do culto do herói, e, mesmo quando são duramente criticadas, o imaginário, numa sorte de culto post-mortem do “mal”, parece ainda dar-lhes razão. Tudo indica, pois, que a crítica negativa é inseparável de qualquer processo de heroicidade post-mortem, ou seja, no âmbito social o herói é continuamente destruído na vida real, de maneira a poder ser venerado no mito. Aliás, a figura da mulher cangaceira integrada à cultura — à maneira dos grandes cangaceiros — , sob diferentes formas, torna-se com o tempo não mais personagem admirada porque grande, mas grande porque admirada. O mesmo, como foi mostrado, aconteceu com Lampião. É essa construção circular, coletiva e multiforme da grandeza do objeto admirado pelas próprias marcas da admiração, que se observa nesse tempo de peregrinação, tal qual constatamos hoje no Nordeste, em torno dos “lugares santos”.

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Na cidade de Canindé, no Ceará, Meca menor dos peregrinos e devotos de São Francisco, pequena “Juazeiro” ofegante, tentando desesperadamente concorrer ao monopólio do sagrado colado à imagem do padre Cícero, um boato vai circular, fazendo de Lídia, ex-mulher de José Baiano, certamente a mais bela jovem da história do cangaço, uma santa milagrosa, canonizada pela crença popular, desde 1991. Em Mossoró, Rio Grande do Norte, o destino quis que Jararaca, que havia participado da invasão da cidade com Lampião, em julho de 1927, vítima de uma emboscada organizada pela polícia local, preso, torturado e enterrado vivo, fosse hoje personagem cultuado, nomeado “santo cangaceiro”. Sabemos, todavia, que o culto não nasce do nada. O acaso está quase sempre, vinculado à necessidade. Passado alguns dias da morte de Jararaca, bandido valente, esse apareceu em sonho a um casal de camponeses, conhecidos por Chico e Joaninha Rosário, oferecendo-lhe uma botija enterrada debaixo de três oiticicas. O sinal era uma medalha: “Deus te guie”. Dona Joaninha prometeu desenterrar o tesouro. Esperou duas sextas-feiras e, para a sua surpresa, teve o mesmo sonho. Ela decidiu aceitar a botija e partiu com seu marido em direção ao local. “O casal chegou às oiticicas à meia-noite em ponto. Ela furou, de propósito, o dedo polegar esquerdo e, com o sangue, riscou um signo de Salomão. Viu vultos e ficou de cabelo arrepiado. Desenterrou e trouxe os haveres do bandido para casa” (Oliveira, Aglae. Lima de. Lampião, Cangaço e Nordeste. Rio de Janeiro: Ed. Cruzeiro, 1970, p.179). Ficção ou depoimento verdadeiro, pouco importa. Sebastião Farias, paraibano de Campina Grande, garante a veracidade dos fatos. Foi testemunha do tiroteio em Mossoró e viu “os objetos de ouro, inclusive o punhal, em mãos do casal Rosário”. Temos aqui — quem sabe? — o ato inaugural que vai “explicar” a canonização popular do “santo cangaceiro”. Segundo Manoel Albertino, 88 anos, em 1993, ex-chefe de estação rodoviária de diversas cidades do nordeste, Jararaca teria dito ao casal: “Vão, peguem a botija. Deus me perdoa tudo o que fiz, mas isso não! Com tantos pobres no meu sertão, é um pecado mortal enterrar ouro e dinheiro!”. O túmulo de Jararaca, em Mossoró, é visitado por dezenas de fiéis à procura de milagres, em busca de uma graça divina, da cura de um câncer ou da chance de acertar na loteria. Cada um, à sua maneira, cria o movimento e “canoniza”, independente da Igreja Oficial, o primeiro santo brasileiro, “o cangaceiro que virou santo” (Cf. Almeida, Fenelon. Jararaca: o cangaceiro que virou santo. Recife: Editora Guararapes, 1981). Pouco a pouco, vamos contestar a mobilidade coletiva de uma imagem até singular — imagem que cada um pode eleger como sua — à admiração de um casal e, por amálgama, de todos os cangaceiros. Essa imagem vai ocupar a primeira cena, fazendo emergir uma emoção em detrimento da condenação apressada, pela história, da carreira precocemente acabada de um herói em fim de reinado... É importante observar nesse “vira casaca”, ou na adoração coletiva do “monstro”, uma reação perfeitamente clássica do fenômeno de desvio, renovação e reconciliação. Esses grandes momentos da tomada de um singular pela comunidade, que se liga a ele através da dívida e da dádiva, vinculando-se assim, graças a ele, à culpabilidade partilhada para com um redentor a redimir e ao desejo explícito de uma reparação coletiva. Esse desejo de reparação é o que alguns sociólogos brasileiros chamam de “resgate” — “resgatar à memória”, etc. — , de reabilitação da memória roubada pela história oficial ou pela narração de curiosos alheios à razão crítica ou ainda pelos contrabandistas da memória. Isso parece sublinhar que se a morte é tão necessária à validação do martírio, o ato de reparação, embora tardio, é atestação de um erro coletivo. Essa homenagem ou processo de heroicidade substitui o sentimento de repulsão para com o “monstro” ou “anômalo”, dando lugar à reabilitação, através da admiração excessiva do “grande personagem”. Tudo leva a crer que a admiração nada mais é que um dos fenômenos possíveis de heroicidade ou, simplesmente, do reconhecimento da excelência de outrem; “essa admiração pode também ser vivida sob forma de inveja cuja tendência, ao contrário, é a evacuação

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da culpabilidade na minimização do sofrimento vivido pelo herói” (Heinich, Nathalie. La gloire de Van Gogh, essai d’anthropologie de l´admiration. Paris: Minuit, 1992, p. 99-100). Essa culpabilidade marca boa parte da literatura sobre o cangaço e em especial sobre Lampião. Do cinema ao ensaio, da interpretação “histórica” ao estilo “diário do cangaço”, passa-se constantemente da biografia para a hagiografia, do amor ao monstro ao ódio da grande maquinaria perversa. Trata-se — na imagem, como na escrita — não de mostrar a multiplicação de pedaços de vida do herói juvenil, no caso Lampião — a história do cangaço é antes de tudo a história de um movimento jovem, adolescente, imberbe, púbere –, mas de apontar, numa redundância vazia, os números, os combates, a contabilidade da violência e dos assassinatos, como se fosse possível, através da pedagogia do espanto e do terrorismo espetacular, medir o sucesso e a glória do bandido, como se o bandido fosse o banditismo… O elogio do personagem passa, antes de tudo, pela valorização daquilo que, em Lampião, faz figura de desvio. O herói autóctone teve uma morte ”dolorosa” e “trágica”. Ele era piedoso, tinha uma alma mística. Mas tinha uma “predisposição” para a demência e vivia numa “estranheza mortal”! Era um “incompreendido” que sonhava com o impossível. Esse conjunto de tópicos atribui a Lampião o estatuto de mártir, figura crística, sacrificada — para fazer o que fez o mártir pagou com sua própria vida! Fica, contudo, a pergunta em forma de retórica assassina: um santo pode frequentar bordéis e matar inocentes? Um santo pode organizar o amor coletivo em bailes onde a nudez era imposta como volta à inocência perdida? Um santo pode se assemelhar, a tal ponto, a um homem? Nesses tópicos encontra-se inserido o princípio fundamental do culto ao martírio: “Para ser verdadeiramente ‘comovente´, no sentido forte do termo, ele deve estar próximo do comum [...] contrariamente ao santo taumaturgo, operador de milagres — as ‘obras’ (as boas obras) são apenas uma dimensão secundária de seu ser, elas não fazem, pois, senão atestar a excelência: o ser nele precede o agir e o mártir é apenas, no sentido exato, uma testemunha” (Heinich, Nathalie. La gloire de Van Gogh, essai d’anthropologie de l´admiration. Paris: Minuit, 1992, p. 99-100). A literatura mostra muito bem a relação entre violência acoplada à necessidade de viver: “La muerte está a La vuelta de La esquina rosada”, dirá Borges. Essa morte que se encontra no canto da rua, em cada praça, em cada árvore, em cada morro, nas saídas dos aeroportos, envolve o povo brasileiro, desde sempre e em todos os lugares; essa violência parece, ontem como hoje, emergir como uma necessidade de continuar a viver. Poderíamos dizer que a violência aparece, na literatura brasileira e latino-americana em geral, como ato quase natural — como respirar, fazer amor, comer ou brincar. Mas como diz Ariel Dorfman, essa violência “eclode também, pois o homem é um rebelde” (Dorfman, Ariel. Imaginario y violencia en America. Santiago: Ed. Universitaria, Col. Letras da America, 1970, p.13). O discurso literário — de José Américo a José Lins do Rêgo, de Graciliano Ramos ao grande poeta Cabral de Melo Neto, do etnocêntrico Gustavo Barroso à conservadora Raquel de Queiroz, sem falar do gênio de Guimarães Rosa e da estética da fome do cineasta maior Glauber Rocha — consumiu o divórcio entre a análise política e o estatuto da criminalidade derivado de suposições ancoradas, a priori no exercício de despolitização do estudo do crime e seus diversos mecanismos de punição. Por outro lado, através da literatura, podemos compreender a força psicológica das personagens do cangaço. Além do positivismo de uns, das ideologias de outros permeadas pelo ideal messiânico, a narração literária impôs — não sem contradição, às vezes, com muito talento — a imagem a ver com a qual fomos, desde os “começos” do Brasil, tatuados. Essa imagem, como o pecado original, que se arrasta de geração em geração, nos transforma e determina como patrimônio nossa condenação ou nossa salvação: imaginar a morte para exorcizá-la, evitá-la. Sertão, sertanejo, cangaceiro, nordeste, nordestino, não emergem como a imagem religadora de uma nova utopia, álibi contra o “desencantamento”? Mas, contra o conformismo em que se transformou a utopia, não seria necessário engendrar uma antiutopia ou niilismo positivo?

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Mediante a violência cega e sem direção, o desejo de significação, em detrimento da dependência, vai deparar, de imediato, a última presença da alteridade: a morte e seu “anjo das trevas”, a morte como pátria dos desclassificados. Donde os cantos e procissões fúnebres que atravessam o Nordeste. O canto dos mortos, requiem regional, mostra como todos os meios são bons para habitar o espaço vazio deixado pelos mortos, nos confins das trevas devastadas. Nesses cantos e narrações produzidos por um estilo úmido, em forma de lágrimas e sussurros, encontra-se implícita a exigência do direito à alucinação das vidas clandestinas que almejam fazer uma festa fora do cativeiro, por meio da organização final do grande incêndio: o incêndio do destino. Ao invés da realização do destino que concretiza a morte da fala e consome a esperança, o canto dos mortos se apresenta como uma rebelião dos sentidos, como um desafio à concretização do destino numa construção em que a fala é tanto gozo quanto tragédia; tanto desejo quanto alucinação redentora. Tanto as personagens errantes que povoam o imaginário de Graciliano Ramos, quanto os atores enfeitiçados pela luz do silêncio, pela energia crua da areia do deserto, da mística e da carne de Abdelkébir Khatibi ou Antônio Conselheiro, parecem de êxtase em êxtase, de orgasmo carnal ao orgasmo divino, universalizar o regional e organizar o coro de homens esmagados pelo destino social numa atmosfera de bordel divino! Visando à divinização e à erotização do corpo da terra numa multiplicidade de sentidos, engendrada por uma singularidade que, ao inventar a individuação, recusou — para si — o estatuto de sujeito, as personagens impedem a realização do destino e proclamam, através do triunfo da fala, o esmorecimento do niilismo e da interpretação que tanto pode “salvar” quanto “matar”: “Caminhamos sobre os territórios em que os deuses, os mortos e os amantes incuráveis imprimem o traço de seu repatriamento” (Khatibi, Abdelkébir. Le livre du sang. Paris: Gallimard, 1979, p.19). Qualquer que seja a maneira como é declarada a heroicidade de Lampião — aderência glorificadora ou redução crítica — , ele representa o herói de cada um, numa multiplicidade de significações e sentidos que magnifica tanto o herói quanto sua invenção heróica: o sujeito da admiração.

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O nordestino de Saia Rodada e Calcinha Preta ou as novas faces do regionalismo e do machismo no Nordeste Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Em qualquer recanto do Nordeste, hoje, podem-se assistir cenas como estas: um jovem de classe média alta para seu carro importado em frente a um bar ou mesmo em frente a uma loja de conveniência, em um posto de gasolina, abre o porta-malas, nele uma parede de caixas de som, emite a toda a altura possível, músicas do último CD da banda de forró do momento; em qualquer praça ou praia das grandes capitais da região é oferecido aos transeuntes o CD onde foi registrado o último show da banda de forró que por ali passou; nas vaquejadas, nas festas de padroeira, nos rodeios, nas festas juninas, em eventos organizados seja por empresários, seja pelo poder público, as bandas de forró são presenças garantidas, levando para as praças e casas de shows verdadeiras multidões de jovens de ambos os sexos e de todas as classes sociais; megaeventos são promovidos para que as bandas de forró gravem seu próximo DVD, que alcança em poucos meses vendagens na casa dos milhares, quando não do milhão de exemplares; as principais emissoras de rádio da região executam, em grande parte de sua programação, este gênero musical; mesmo na programação local das redes de televisão as bandas de forró são presença indispensável. Algumas destas bandas tornaram-se sucesso nacional e se aventuraram por turnês internacionais, assumindo a condição de nova face da música dita regional nordestina. Compostas em sua maioria por jovens que nasceram e se formaram nas cidades da região Nordeste, muitos deles nas capitais dos Estados, desligados de uma experiência rural ou sertaneja, que dava sentido e legitimava a produção da maioria dos cantores e artistas ligados ao chamado forró nordestino, tido desde Luís Gonzaga, como a música regional por excelência, as chamadas bandas de forró se constituem, desde os anos 1990, em um fenômeno de vendagem de discos, um fenômeno midiático e de sucesso de público, embora não se possa dizer o mesmo quanto à crítica musical. Ouvidas insistentemente por jovens de diferentes estratos da sociedade, sendo uma presença quase incontornável na paisagem sonora das principais cidades da região, levando um enorme público para seus shows, sendo a música preferida para dançar em amplos setores da juventude nordestina, suas canções são formadoras não só de um regime de escuta, mas de subjetividades em nossa sociedade. Esta comunicação se interrogará sobre que valores as músicas cantadas por estas bandas de forró estão veiculando. Quais as transformações históricas no campo das sensibilidades possibilitaram e são possibilitadas pela emergência deste fenômeno musical? Como podemos entender este acontecimento na sua relação com o discurso regionalista nordestino que construiu a relação necessária e identitária entre forró e nordestinidade e como este vínculo vem sendo refeito? Que imagens do nordestino são veiculadas por estas canções? Que mode-

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los de subjetividade são oferecidos por estas canções e como eles se articulam com o momento histórico vivido por este espaço? Tendo o sexo e o amor como temáticas recorrentes, que modelos de relacionamento entre homens e mulheres estas canções fazem circular, que modelos de masculinidade e feminilidade propõe, que imagens do homem e da mulher nordestinos elaboram? Podemos considerar que este fenômeno teve sua emergência a partir do ano de 1990, quando o empresário do ramo de confecções, Emanuel Gurgel, criou em Fortaleza uma banda de forró, na qual colocou o nome do time de handball, do qual fizera parte quando estudava na universidade, Banda Forró Mastruz com Leite, nome também de um remédio ou panaceia de gosto regional. Inspirado no grande fenômeno midiático e de mercado dos anos 1980, que eram as chamadas bandas de axé music da Bahia, Gurgel vai promover uma verdadeira revolução não só na estética dos artistas que se dedicavam à chamada música regional, mas na própria sonoridade daquela que seria a música nordestina. 1 A música regional que ainda vivia de uma estética que se referia ao campo, ao sertão, à vida rural, que, por isso mesmo, estava cada vez mais distante da realidade de um espaço onde a maior parte da população já vivia em cidades, em que grande parte das novas gerações, da juventude nascera e se formara subjetivamente nas grandes capitais, vai ser esteticamente modernizada. As chamadas bandas de forró usam figurinos que nada lembram o chapéu de couro, o gibão ou as roupas de caqui ou de chita com que se trajavam os clássicos artistas nordestinos. Os temas das canções deixam de se referir a um sertão rural e idealizado, para se concentrarem em temáticas comuns ao cotidiano de uma população cada vez mais integrada à vida urbana, aos circuitos do mercado cultural de massas. Os shows incorporam elementos como iluminação sofisticada, projeção de imagens, uso de recursos cênicos como o gelo seco, os fogos de artifício, bailarinos que coreografam as canções. No plano estritamente musical, Gurgel parece ter percebido que o famoso trio de instrumentos, que sustentava tradicionalmente a música nomeada de regional — a sanfona, o triângulo e o zabumba, era insuficiente quando se tratava de ocupar grandes espaços como as casas de show, os parques de exposição, as praças que cresciam de número numa região em que os espaços de diversão, em que o mercado de bens culturais se ampliava à medida que sua população urbana crescia. A grande revolução operada pela mãe de todas as bandas, como a própria Mastruz com Leite se nomeia, foi ter dado aos conjuntos regionais, que tal como os instrumentos se compunham no máximo de um trio, como os famosos Trio Nordestino e Os Três do Nordeste, justamente a dimensão de uma banda, com uma sonoridade muito mais potente, capaz de operar e explorar as possibilidades abertas pelas novas tecnologias de som e ocupar os grandes espaços como os palcos de casas de shows cada vez maiores, voltadas para atender a um público jovem bastante carente de ofertas culturais e de lazer, numa região que via suas cidades, notadamente as do interior, crescerem vertiginosamente com a migração ocorrida devido a grave crise econômica dos anos oitenta. Ao acrescentar ao forró instrumentos como bateria, guitarra, teclados, baixo e sax, Gurgel fez nascer a banda de forró que, explorando de forma modernizada a própria identidade construída por Luis Gonzaga entre forró e a nordestinidade, reelabora esta identidade cultural e a repõe dando a ela um tom moderno e urbanizado, capaz de atrair este novo público composto de jovens cujas subjetividades foram formadas pela cultura de massas e pela mídia. A presença quase onipresente destas bandas, em nosso cotidiano, bandas que nascem e morrem e trocam de componentes, numa velocidade quase alucinante, faz delas, da sonoridade que produzem, um elemento importante do que podemos chamar de paisagem sonora2 das cidades nordestinas. As cidades não são compostas apenas pela paisagem constituída por sua natureza, por sua arquitetura, por aquilo que há nela de concreto, de empírico. Uma cidade também é composta pelo conjunto dos sons que nela são produzidos, emitidos, que nela circulam. Existe, pois, uma paisagem sonora, que constitui aquilo que Roland Barthes3 chamou de um regime de escuta, uma dada maneira

1  Informações extraídas do site oficial da banda Forró Mastruz com Leite: www.forromastruzcomleite.com/. Acessado no dia 14 de novembro de 2009. 2  Sobre a noção de paisagem sonora ver: SCHAFFER, Raymond Murray. A Afinação do Mundo. São Paulo: UNESP, 2001; O Ouvido Pensante. 2 ed. São Paulo: UNESP, 2000 e VENTURA, Leonardo Carneiro. Músicas dos Espaços: paisagem sonora do Nordeste no Movimento Armorial. Natal: UFRN, 2007 (Dissertação de Mestrado em História).

de apreender, de significar e valorar as sonoridades que nos cercam. Nosso ouvido, como todos os nossos sentidos, é educado social e culturalmente. A audição, que é uma faculdade natural, é acostumada, é educada, é transformada, por nosso convívio em sociedade. A escuta é fruto de um aprendizado social. O gosto musical, os sons que preferimos assim como os sons que detestamos, que não suportamos, não são definidos pela natureza, mas nascem de um processo de educação do ouvido, que tanto pode se dar no cotidiano, no dia a dia, sem nenhuma sistematização prévia, como pode se dar voluntariamente, submetendo-se a um processo de educação musical, por exemplo. Podemos, dizer, pois, que os forrós de banda, por sua onipresença nas paisagens sonoras que frequentamos, na atualidade, no Nordeste, está sendo responsáveis pela formação do regime de escuta, pela formação do gosto musical, da sensibilidade sonora, de toda uma geração. A estridência das sonoridades, ampliada com a introdução de metais como trompete e trombone na composição dos sons das bandas de forró, o volume cada vez mais alto com que são executadas e ouvidas estas músicas, ao mesmo tempo em que respondem a um dado regime de escuta, fruto da vivência no meio urbano, com a poluição sonora requerendo ouvidos que operam e desejam sonoridades com volumes cada vez mais altos, ampliam ainda mais o que poderíamos chamar de uma surdez coletiva, contraditoriamente produzida por sonoridades com volumes maiores em decibéis. Os ouvidos educados em cidades em que carros de propaganda gritam a todos os pulmões seus reclamos, em que os automóveis, as buzinas, os vendedores ambulantes, os aparelhos de rádio e televisão emitem sonoridades ininterruptas, ruídos constantes, dispõem de uma sensibilidade, de uma percepção auditiva distinta e diferente de ouvidos educados no silêncio de um mosteiro ou acostumado aos ruídos da vida rural. Ouvidos que podemos dizer cansados e alienados por tanto estímulo sonoro, só são atraídos, só são despertados por sonoridades cada vez mais estridentes e potentes. As bandas de forró, do ponto de vista da sonoridade, respondem a este regime de escuta em que a estridência é um imperativo, em que o máximo volume é acompanhado pelo mínimo esforço para a percepção de nuances e variações sonoras. A sonoridade das bandas de forró é tão obscena, no sentido de algo que salta a cena, que se expõe, que não exige esforço para a decodificação, como muitas das letras de suas canções. É uma sonoridade pausterizada pela falta de nuance, pela falta de sutileza porque o nosso regime de escuta não capacita os ouvidos a ouvirem ou a darem sentido a sutilezas e variações sonoras. As bandas de forró não costumam ser sutis, em nenhum aspecto, nem nas letras e sonoridade de suas canções, nem na forma como se apresentam em público. A maioria das pessoas educadas num regime de escuta de máxima sonoridade, em que o ouvido facilmente se distrai, se desliga, não capta o som de baixo volume e de baixa intensidade, não estão preparadas para a sutileza de uma nota musical. São ouvidos tão alienados que só despertam com o soco e pontapé sonoro de uma metaleira, como eles próprios denominam o conjunto de metais que constituem a base sonora da maioria das músicas de forró destas bandas. Elas fizeram desaparecer a própria distinção entre música para dançar e músicas para ouvir. As músicas ditas para dançar, exatamente por terem que ser executadas em público, em espaços abertos, e serem voltadas para motivar as pessoas para a dança se caracterizavam por terem sonoridades mais agudas, ritmos mais apressados e não exigiam grande elaboração poética em suas letras, como sempre foram as chamadas marchinhas de carnaval, por exemplo. Já as músicas para ouvir, como se destinavam ao consumo doméstico, à fruição privada, permitiam o uso de variações e composições sonoras mais complexas, sofisticadas e sutis, com rimos mais lentos e composições poéticas mais elaboradas. Hoje ouvem-se forrós de banda em casa, no carro, na praia, nos ônibus, no rádio, na praça, na casa de show, na festa, na feira, onde você for e entrar, sempre, de preferência no volume máximo permitido ou mesmo proibido, fruto de um processo de massificação e tentativa de homogeneização da escuta promovida pela indústria cultural e pela mídia, mas também desejada e requerida por ouvidos massificados e homogeneizados pela educação auditiva por que passaram e passam. Mas este gênero musical, este acontecimento histórico que é o surgimento das bandas de forró não é a expressão e, ao mesmo, não tem incidência apenas em nosso regime de escuta. Tanto as letras das canções, quanto a forma como se apresentam, como se colocam em cena são a expressão e, ao mesmo tempo, atualizam e têm incidência sobre o próprio momento histórico em que vivemos, a nossa condição histórica que poderíamos chamar de pós-moderna. Elas expressam naquilo que cantam e na maneira como se apresentam dadas formas

3  Sobre a noção de regime de escuta ver: BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

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de sensibilidade4, dados valores, dadas concepções de mundo, dados códigos sociais, ao mesmo tempo em que servem para reafirmá-los e reforçá-los. Suas canções e o universo cultural em que transitam propõem modelos de sujeito, modelos de subjetividade, para serem subjetivados por aqueles que ouvem suas músicas e vão aos seus shows, ou mesmo por aqueles que não são necessariamente aficionados5. As canções, como agregados sensíveis, têm a capacidade de afetar a quem as escuta, têm a capacidade de produzir afetos, de interpelar e mobilizar subjetivamente os corpos e mentes aos quais se dirigem. Elas se constituem em matérias e formas de expressão capazes de ser agenciadas no momento em que dados corpos, em que dados entes precisam se constituir como sujeitos, como seres, precisam se dizer, precisam elaborar e assumir uma dada identidade. As canções, as personagens que estas criam, assim como a própria vida dos membros destas bandas oferecem modelos de subjetividade, aparecem como lugares de sujeito a serem desejados e ocupados por aqueles que ouvem as canções e comparecem aos shows. Modelos de como ser homens e mulheres, modelos de como ser nordestino hoje, modelos de como obter sucesso, de como ser um vencedor, modelos de viver e modelos de pensar. Para analisar mais de perto que tipo de valores, que tipo de modelos subjetivos estão sendo oferecidos pelas canções e pelas apresentações destas bandas de forró, para avaliar que tipo de vivência da nordestinidade está sendo apresentada como modelar por estas novas estrelas da música dita regional, vou tomar como exemplo a trajetória, a produção musical e as apresentações de duas bandas, por significarem trajetórias ao mesmo tempo distintas e complementares: as bandas Calcinha Preta e Saia Rodada. A primeira surgiu numa capital da região, em Aracaju, no ano de 1996, criada por um modesto colecionador de calcinhas pretas, Gilton Andrade, homem que sonhava em subir na vida e que viu no novo fenômeno do forró de banda a sua oportunidade. O nome da banda foi escolhido depois que Gilton, pesquisando nas ruas de Aracaju, constatou a grande aceitação do nome que pretendia dar à banda6; a segunda surgiu numa cidade do interior do Rio Grande do Norte, Caraúbas, fruto da compra por parte dos irmãos Juninho e Eugênio de uma banda chamada Alphaset, uma banda familiar, que já tivera outros dois nomes: nascera em 1987 como Roda de Samba Som Brasil, possivelmente ligada à emergência do pagode como um gênero musical de grande sucesso de mídia naqueles anos, depois tornara-se Grupo Show Styllus no ano de 1990, adotando o nome de Saia Rodada apenas em 2001, nome escolhido através de um concurso de rádio. Enquanto a Calcinha Preta é considerada a primeira banda de forró a gravar músicas românticas, aliando ao forró ritmos como o tecnobrega, o axé music, o funk e a black music e a gravar um DVD, a banda Saia Rodada desde que surgiu se destaca por suas canções de caráter erótico e fescenino, por um forró de batida acelerada e pelo uso de sons guturais e encenações no palco, principalmente por parte de sua cantora, Natália Calasans, que remetem ao ato sexual.7 A penetração social do trabalho destas duas bandas e de suas canções pode ser dimensionada pelos impressionantes números que ostentam tanto em vendagens de cds, de DVDs, quanto pelo número de apresentações que realizam mensalmente e pela quantidade de público que atraem para suas apresentações. A banda Calcinha Preta já gravou 21 álbuns de estúdio e 6 álbuns ao vivo. Estima-se que eles venderam juntos mais de dez milhões de cópias, sem contar o enorme mercado de versões piratas, que são permitidas e incentivadas pela própria banda, que permite que suas apresentações ao vivo sejam gravadas por dadas empresas ou por dados grupos locais, além das versões disponíveis na internet para serem baixadas. A banda Calcinha Preta gravou três DVDs. O primeiro deles vendeu 400 mil cópias, o segundo 1 milhão e 500 mil cópias e o terceiro 1 milhão e 600 mil cópias, além daqueles milhares vendidos no mercado paralelo. Em 12 anos de carreira já gravou cerca de 258 canções. A banda faz de 35 a 40 shows por mês, às vezes chega a realizar de 3 a 4 apresentações por noite. Na gravação do primeiro DVD, 4  Para a noção de sensibilidade ver: CORBIN, Alain. Saberes e Odores. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 e Território do Vazio. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 5  Pensamos a produção de sujeitos e a produção de subjetividades tal como as tematizou Michel Foucault. Ver: FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 6  Todas as informações sobre a banda Calcinha Preta foram retiradas de seu site oficial: www.bandacalcinhapreta.com.br. Acessado em 14 de outubro de 2009. 7  Todas as informações sobre a banda Saia Rodada foram retiradas de seu site oficial: http://www.saiarodada.com.br/v3/. Acessado em 19 de outubro de 2009.

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em Salvador, cerca de 120 mil pessoas compareceram ao show; na gravação do segundo DVD, em Belém do Pará estiveram presentes cerca de 80 mil pessoas. Contratada pela RC3 Promoções, do jogador Roberto Carlos, fez uma turnê pela Europa e alguns países da América Latina. A banda Saia Rodada, embora tenha uma carreira bem mais curta, também já exibe estatísticas de impressionar: já lançou 7 CDs e 3 DVDs, com mais de 1 milhão de cópias vendidas, perfazendo o inimaginável número de 359 canções gravadas em apenas oito anos de carreira, faz uma média de 35 shows por mês, aos quais comparece um público estimado em 400 mil pessoas. Estes números revelam que estamos diante de um fenômeno da chamada cultura de massa, onde os números, a quantidade importa mais do que a qualidade, pois se orienta estritamente pela lógica do mercado. As próprias bandas, como foi o caso da Saia Rodada, são uma mercadoria, podendo ser compradas e vendidas. Todas elas pertencem a empresários que contratam e remuneram seus componentes: músicos, cantores e dançarinos, além da equipe técnica, que participam da montagem e realização dos shows, principal fonte de renda deste tipo de negócio. Como em qualquer empresa os componentes das bandas são contratados e despedidos ao sabor da vontade do empresário e possivelmente visando o maior lucro possível. Vez por outra circulam boatos de que uma mesma banda teria mais de uma formação para se apresentar numa mesma noite em diferentes lugares. A banda Calcinha Preta, além da formação atual, já contou com o trabalho de mais 17 vocalistas ao longo destes doze anos de carreira. A exploração do trabalho dos componentes destas bandas parece ficar explícito ao sabermos o número de apresentações que realizam a cada noite. Não surpreende que um dos cantores do Calcinha Preta, Daniel Diau, tenha tido sérios problemas de saúde relacionados à sua garganta. Os álbuns são lançados um após outros para aproveitar o momento de sucesso ou para adequar-se a qualquer nova moda do mercado musical. Quando um álbum não cai no gosto do público logo o empresário faz a banda entrar em estúdio novamente para fazer outro álbum. Em 2007, por exemplo, para aproveitar a moda do forró elétrico, forró tocado em trio elétrico, deixando explícito a inspiração do axé music, o empresário Gilton Andrade faz o Calcinha Preta gravar um álbum em que a metade das músicas eram deste gênero musical. Como o disco não caiu no gosto do público, ainda no mesmo ano a banda lança outro CD. Neste ritmo de produção não se pode esperar por grandes inovações sonoras, não se pode querer novos e elaborados arranjos e muito menos se pode exigir letras muito elaboradas. As letras tendem a ser compostas por frases feitas, por lugares comuns, por um arquivo de fórmulas poéticas prontas, presentes em várias outras canções. Os mesmos versos, as mesmas rimas vão apenas mudando de ordem na letra da canção. Coerente com o mundo pósmoderno, prolifera nas letras e nas sonoridades a reciclagem, o pastiche, a repetição. As letras tornam-se cada vez mais curtas, até porque é um elemento que cada vez tem menor importância na canção, obnubiladas pelo império da sonoridade estridente. Em muitas apresentações destas bandas mal se ouve ou se entende a letra que é cantada, dado o volume da parte instrumental ou mesmo a velocidade com que as letras são emitidas, velocidade requerida pelo ritmo acelerado da canção, em que estrofes ou palavras são aglutinadas ou quase suprimidas para poderem acompanhar o andamento da execução da música. Os membros destas bandas são conscientes da pouca importância que têm as letras das canções, quando estas são executadas em público, embora a repetição das mensagens que veiculam são produtoras de dados valores e modelos de subjetividade. As letras muitas vezes reduzem-se a bordões que são repetidos inúmeras vezes, favorecendo sua fixação na memória dos ouvintes ou são substituídas por conversações dos cantores com a plateia, com os músicos ou por mensagens de agradecimento a ou de propaganda dos patrocinadores e das autoridades locais que estão patrocinando o show, já que o fenômeno comercial é muito mais importante do que o estético ali envolvido. Em lugar da letra muitas vezes se fazem presentes interjeições, sons guturais, ruídos, onomatopeias, um solfejar de sons indistintos e desconexos. A pretexto de se comunicar com o público, de fazer-se entender rapidamente, utiliza-se de bordões e maneiras de falar vindos das ruas. Em meio a qualquer canção aparece a propaganda da própria banda, a busca da fixação de seu nome, de sua marca. É como se cada canção precisasse ter uma etiqueta que diz Calcinha Preta e Saia Rodada, para que o público possa identificar quem está cantando, dada a semelhança com outras canções de outras dezenas de bandas. Ao mesmo tempo é como se cada banda

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representasse uma grife que dá valor e motiva que o público ouça e principalmente compre dada canção. Veja-se, por exemplo, a canção Sou seu Amor, gravada pela banda Calcinha Preta, que desde o título é composta de lugares comuns, frases feitas muito presentes no discurso amoroso e nas canções de amor. A canção prima pela repetição, pela recorrência e pelo lugar comum, além de ser um exemplo de brevidade das letras destas canções:

Eu só sei dizer Amo você Quero você Adoro você

Sou seu amor, sou seu amor, é você que eu amo Sou seu amor

Não, ainda não sou seu Mas quero te falar, que é você que eu amo Então, vim te procurar, te falar de amor Pra você me dar valor

Amor, amor, amor da minha vida Você me deixa loca de prazer Faça o que você quiser comigo Eu estou entregue a você

Nunca senti tanto desejo Te levo para cama Te mato de beijos

Pouco mais que um sonho, Um filme de amor, quero ter você, seja como for

Sou seu amor, sou seu amor, é você que eu amo Sou seu amor Você, é você que me tira o sono, eu quero ter você Seja como for.8

Nada entre nós É proibido Tudo entre nós Faz sentido

Eu só sei dizer Amo você Quero você Adoro você amor, amor9

As temáticas das canções da banda Calcinha Preta são voltadas para atender um público jovem e urbano, destacando-se o público masculino, que frequenta bares, festas, vaquejadas, rodeios, shows. A banda se destacou, justamente, por dedicar muitas canções à temática do amor. Cerca de cinquenta canções da banda têm no título as palavras amor, amar, ama e amo. Compostas em sua maioria por homens, estas canções, podemos dizer têm uma visão masculina deste sentimento. Voltadas para um público em que mesmo as mulheres já não separam o sentimento do amor de sua expressão física através da relação sexual, o amor ganha nestas canções conotações quase sempre sexuais ou eróticas, o amor e o levar para cama andam sempre juntos. Embora possa muitas vezes reproduzir os tradicionais sonhos de amor eterno e exclusivo, a maior parte das canções fala da precariedade e do caráter passageiro das relações afetivas, bem como aventa a possibilidade de arranjos afetivos antes quase impensáveis. Em algumas canções que são protagonizadas por personas femininas, músicas sempre interpretadas pelas vocalistas da banda, esta visão mais carnal do amor também aparece, além de que nelas se percebe certo protagonismo feminino, uma certa atividade feminina, que toma a iniciativa e leva o homem para a cama, ao mesmo tempo em que reafirma a hierarquia social de gênero ao afirmar que o homem pode fazer com ela o que ele quiser, ao demonstrar total entrega ao parceiro que deve conduzir a relação. Após tomar a iniciativa de seduzir o rapaz, a mulher voltaria a ocupar o seu lugar tradicional na relação, entregando o poder para ele. A canção Amor, Amor, Amor composta por Cristian Lima e interpretada por Calcinha Preta é um exemplo do que digo:

8  Ver: http://letras.terra.com.br/calcinha-preta/358384/. Acessado em 14 de novembro de 2009.

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Nestas canções os homens, o marido, o namorado, a masculinidade, a virilidade são tratados como personagens e atributos de muito valor, sendo disputados pelas mulheres. As fantasias de onipotência masculinas ganham expressão em canções onde os homens são poderosos, irresistíveis e donos do pedaço. É comum a figura do gostosão, do raparigueiro, do homem cercado por mulheres, que consegue um grande número de conquistas num só dia, numa mesma festa, que muda todo o tempo de parceira e que se recusa, inclusive, a assumir qualquer vínculo afetivo com aquelas a quem conquista. Para estes homens, as mulheres não passam de objeto de seu desejo e de suas vontades, as mulheres são como mercadorias que se consome em maior quantidade e da melhor qualidade possível, desde que sejam filé levam-se para casa, ou seja, como carne em um açougue. Podemos dizer que estas canções começam a desenhar outro tipo de masculinidade, talvez de uma masculinidade pós-feminista, falam de um homem que não quer assumir compromissos, que não quer ser provedor, que admite suas fragilidades e suas dores, que até chora, mas não quer mais viver para o lar. As mudanças nas relações de gênero trazidas nos últimos anos por todas as conquistas sociais feitas pelas mulheres parecem ter inviabilizado, progressivamente, a manutenção dos modelos de relação e as hierarquias tradicionais entre homens e mulheres. A reação masculina parece ser a da crescente irresponsabilidade em relação 9  Ver: http://letras.terra.com.br/calcinha-preta/479551/. Acessado em 14 de novembro de 2009.

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às relações que trava. O crescimento do número de filhos que vivem sem pais, pois estes não assumem a responsabilidade pela concepção parece ser a forma conservadora como os homens vêm respondendo e reagindo à emancipação feminina. A música Pega Fogo Cabaré, um dos grandes sucessos da banda Calcinha Preta, parece indiciar este processo em que o fim do casamento tradicional vai levando os homens a preferirem as raparigas, a gandaia, o cabaré. Se numa música como Amor de Rapariga, gravada pela mesma banda, vemos uma persona feminina ainda reivindicar sua superioridade em relação às raparigas, ter certeza que seu homem um dia voltará para o lar e para seu amor que é superior e mais verdadeiro do que daquela, naquela outra canção o homem parece mesmo ter optado pela rapariga, diante da quebra do modelo tradicional de mulher e de relação conjugal. Embora reações diversas e mesmo sendo a segunda aparentemente mais transgressora que a primeira, ambas têm como lastro visões bastante conservadoras das relações de gênero. Coloco as duas letras lado a lado para que sejam comparadas:

Mas pega fogo cabaré Hoje eu não arredo o pé Pode vir que eu to no ponto Só filé...só filé Se a mulherada é de primeira, Fico até segunda feira Bebo até ficar tonto

Vou cair numa gandaia Atrás de um rabo de saia De hoje sei que não passa Sexta feira é só folia Bebo até raiar o dia Eu vou cair na cachaça

A mulher me abandonou O patrão me dispensou Já que tá tudo ferrado Vou cair no arrastapé, Topo tudo que vier Nem tudo ta acabado

Mas pega fogo cabaré Hoje eu não arredo o pé Pode vir que eu to no ponto Só filé...só filé Se a mulherada é de primeira,

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Fico até segunda feira Bebo até ficar tonto 10

Tire o meu nome da sua boca cale a boca... Não tem esse direito de me provocar Já tomou meu homem destruiu meu lar E agora só quer se fazer de santa (de santa) Pode ficar com ele deixa a minha vida Que eu não vou dar ouvido a uma rapariga Eu sei que ele pra mim vai voltar

É uma questão de tempo ele te deixar

Amor de rapariga não vinga não Não tem sentimento não tem coração Eu sei que logo ele vai perceber Essa é a diferença entre nós duas Todo homem quer uma mulher só sua Tô esperando ele vindo de você Tire o meu nome da sua boca...11

É constante nestas canções o reforço ao hábito de beber e a sua associação com a vivência da masculinidade. O embriagar-se é comumente apresentado como um ato de liberdade e de afirmação da persona masculina, que com ela se liberta das frustrações trazidas pela vida diária, com ela se esquece do salário baixo e atrasado, com ela se afoga as mágoas da perda do ser amado. O beber cachaça é apresentado como liberador de todas as amarras e convenções sociais, principalmente quando o rapaz é um playboy. Estas canções parecem eleger como modelo de masculinidade vencedora, como a nova figura do nordestino, o rapaz filho de classe média, aquele boy que tem um carrão, onde instala um enorme aparelho de som, símbolos de seu status, com os quais irá impressionar as mulheres e obter sucesso em suas conquistas. Este modelo de masculinidade urbana e moderna parece estar muito distante da figura do sertanejo tradicional, do campo, que era personagem central no dito forró tradicional nordestino e do cabra-macho tal como pensado no começo do século XX. Tendo nesta nova camada média urbana, surgida com a expansão das cidades e com a modernização da sociedade nordestina, seu principal mercado consumidor, sendo muitos compositores e empresários destas bandas integrantes destes novos setores urbanos, são seus valores que são apresentados como modelares para toda a sociedade. Uma masculinidade vivida como potência e como prepotência, achando-se no direito de bagunçar em todo canto que chegar, ligar o som a toda altura independentemente de momento ou lugar, um personagem individualista e autocentrado, uma personalidade egóica e narcísica com pouca noção de solidariedade e convivência comunitária e social. Vejamos a este respeito o personagem da música Tô Bebendo, Tô Virado, gravada pela banda Saia Rodada: 10  Composição de Nildomar Dantas. Ver: http://letras.terra.com.br/calcinha-preta/1152391/. Acessado em 14 de novembro de 2009. 11  Composição de Mesq. Ver: http://letras.terra.com.br/calcinha-preta/82640/. Acessado em 20 de outubro de 2009.

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Tô bebendo, tô virado Hoje a noite é só orgia Reunido com as quengas Pra fazer a putaria... (2X)

Hoje a noite é doideira Vou botar pra derreter Lá no posto é zueira Vai rolar um terêrê... Joga os carrão do lado Abra a mala pancadão A galera enlouquece Com o Saia meu irmão...

Arrasa onde passa É swing, é pressão As minas muito doida Descendo até o chão A macharada doida Farreando a noite inteira Depois do thaca thaca Com uma quenguinha de primeira...

Tô bebendo, tô virado Hoje a noite é só orgia Reunido com as quengas Pra fazer a putaria... (2X)12

O machismo tradicionalmente associado à figura do nordestino, não só é veiculado e atualizado por estas canções, como chega aos extremos da pura grosseria, do desrespeito explícito às mulheres. São canções extremamente misóginas que, no entanto, não só são cantadas a todos os pulmões pelas moças que comparecem aos shows destas bandas, como elas se confessam em blogs, páginas de relacionamento, em cartas enviadas aos fãs clubes das bandas, seguidoras apaixonadas deste fenômeno. Assim como ocorre com os rapazes, muitos deles atraídos para as apresentações destas bandas pela presença de belas moças tanto atuando como vocalistas, quanto como dançarinas, que exploram tanto em suas roupas, em seus gestos, assim como em suas performances vocais e corporais o erotismo, as moças são atraídas por

vocalistas e dançarinos, verdadeiros símbolos sexuais, que dão às apresentações das bandas inegáveis conotações de um espetáculo quase orgiástico, espetáculo de intensa atmosfera de sedução e motivadora de encontros amorosos e sexuais. A banda Calcinha Preta já teve seu nome escolhido a partir de um fetiche sexual de seu empresário. Em seus shows costumam fazer farta distribuição de calcinhas desta cor, após serem devidamente friccionadas nos órgãos sexuais dos vocalistas. Os dançarinos da banda Calcinha Preta posaram nus para a revista G Magazine, voltado para o público homossexual e as vocalistas costumam gemer e fazer expressões e gestos que lembram o ato sexual. A vocalista da banda Saia Rodada, pouco aquinhoada do ponto de vista vocal, usa de urros e sussurros e veste figurinos que destacam todos os seus dotes corporais. Muitas canções são escritas tendo como personagens um homem e uma mulher que terminam por ensaiarem um idílio amoroso e sexual no palco. Nesta encenação de encontros amorosos e sexuais quase sempre a mulher é reduzida à condição de objeto do desejo masculino, comparadas em desvantagem com outros objetos deste desejo como: dinheiro, carros, cavalos, festas e vaquejadas e cachaça. Um dos primeiros e maiores sucessos de cada uma destas duas bandas é bastante expressivo do que venho dizendo. Nas canções A Moçada é só Filé, gravada por Calcinha Preta e Lapada na Rachada, gravada por Saia Rodada, podemos flagrar quais os valores que estão sendo veiculados por estas músicas, que modelos de subjetividade elas estão produzindo:

Eu me amo demais eu não perco um forrozão eu adoro vaquejada Vivo a vida com emoção o meu bolso é minha guia a bebida é a razão Sou um cara apaixonado por mulher e boi no chão

Eu sou apaixonado Por vaquejada e mulher Onde tem calcinha preta A moçada é só filé

Eu me amo demais eu não perco um forrozão eu adoro vaquejada Vivo a vida com emoção o meu bolso é minha guia a bebida é a razão Sou um cara apaixonado por mulher e boi no chão (bis)

12  Ver: http://letras.terra.com.br/saia-rodada/1330638/. Acessado em 14 de novembro de 2009.

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Olha, valeu o boi gritou o locutor E a moçada levantou (arrepiou) A Calcinha preta ele mostrou Valeu, valeu o boi Valeu, valeu o boi Valeu, valeu o boi

Olha, valeu o boi gritou o locutor E a moçada levantou (arrepiou) O meu coração quase parou Valeu, valeu o boi Valeu, valeu o boi Valeu, valeu o boi13

A primeira estrofe desta canção fala de um personagem masculino que se basta a si mesmo, que ama a si próprio, um ser ensimesmado e individualista que se deixa guiar apenas pelo seu bolso, pelo dinheiro que tem. Um sujeito que vive a vida em busca de emoções, que vive de festas e vaquejadas e cuja razão só é acentuada pelo uso da cachaça. A vida deste sujeito parece ser uma eterna festa, a música faz uma espécie de chamamento ao narcisismo e à irresponsabilidade, marcas de dadas vivências do masculino em nossa contemporaneidade. Ele é apaixonado por mulher e boi no chão. A inequívoca imagem de dominação sobre a natureza e a ferocidade do animal por parte do homem, que é o ato de agarrar o boi pelo rabo e jogá-lo no chão é associado ao ato de domínio sobre a mulher, que parece ser sugerido também que deve se dar pelo subjugamento daquilo que vulgarmente é chamado de rabo, para falar das partes eróticas das mulheres. Ele é um homem apaixonado por vaquejada e mulheres, sendo que estas não só parecem estar no mesmo plano que a festa, como vir em segundo plano em relação a ela.

Toma gostosa lapada na rachada Você pede e eu te dou lapada na rachada E aí, tá gostoso ? lapada na rachadaaaaaaaa...... Toma toma tomaa...

Pense numa mina linda, a danada enlouqueceu A macharada ficou louca quando ela apareceu Um sorriso envolvente um jeitinho sensual Pra acabar de completar deu mole no final Juro não acreditava no que estava acontecendo Sorria e me olhava e o clima foi crescendo

13  Composição de Gilton Andrade e Silvo. Ver: http://letras.terra.com.br/saia-rodada/1395479/. Acessado em 14 de novembro de 2009.

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Fui direto ao assunto e não pude acreditar Chegou no meu ouvido e começou a falar

Vaaaaai, dá tapinha na bundinhaaa, vaaaaai Que eu sou sua cachorrinha, vaaaaaaaai Fico muito assanhada, se eu pedir você me dá Lapada na rachada

Vaaaai, dá tapinha na bundinha, vaaaaaai Que eu sou sua cachorrinha, vaaaaai Fico muito assanhada Vamos dá uma lapadinha? Só se for na rachadinha

Tooooooma gostosa, lapada na rachada... Você pede e eu te dou, lapada na rachada E aí, tá gostoso ? lapada na rachada

Tooooooma gostosa, lapada na rachada... Você pede e eu te dou, forró saia rodada E aí, tá gostoso? lapada na rachada Toma toma, há vai!14

Na presença de um público de mais dois milhões de pessoas, durante a festa do réveillon de 2008, na Avenida Paulista, o cantor Raí Soares e a cantora Natália Calasans, não têm pejo de encenar este idílio sexual entre uma moça sequiosa por tapinhas na bundinha e lapada na rachada e o macho que ela escolheu dentre toda a macharada que a assediava para satisfazê-la. O garanhão, como sempre, não se faz de rogado, exercendo seu papel de macho que não pode vacilar, não pode não responder a moça que lhe dá mole. Ele dá duro nela ou a ela, que entre gritos e gemidos diz que está gostando e suplica que lhe dê mais. A inteligência, a sutileza e a ironia dos jogos de palavras e trocadilhos que tornaram músicas dos cantores nordestinos como Genival Lacerda e sua Severina Xique-Xique, sucesso nacional, se degrada aqui na pura obscenidade, no pornográfico, na grosseria mais escrachada. O interessante é observar que letras que há pouco tempo fariam corar homens e mulheres das mais distintas classes sociais, hoje são cantadas com a naturalidade e a santidade de coros de anjos. Nestas canções as relações entre homens e mulheres são reduzidas ao ato sexual e este é reduzido ao puro encontro de órgãos, a pura lapada na rachada, como pura expressão de desejo e domínio. Esta centralidade do mero prazer carnal no sexo faz parte de uma sociedade hedonista, onde pelo prazer e para o prazer tudo vale ser feito, independentemente de valores éticos ou morais. Neste sentido podemos ainda ouvir outro clássico musical, de muito sutileza em suas imagens e de muito bom gosto, também da lavra da Saia Rodada. Deixo vocês com a inocência e pureza de um Coelhinho: 14  Ver: http://letras.terra.com.br/saia-rodada/549248/. Acessado em 14 de novembro de 2009.

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Ô minha prima O que é que tem nesse coelhinho que todo mundo quer pegar mulher É que ele é bem fofinho e bem bonitinho primo

A minha prima tá criando um bicho O bicho é cabeludo e é muito bonito (2x) Aí todo mundo quer pegar no bicho Porque o bicho dela é um coelhinho (2x) O meu vizinho que é muito atrevido Já anda falando que vai comer o bicho A minha prima não sai mais de casa Não quer fazer nada, só agarrada no bicho

Refrão: É o seu vizinho que quer comer meu cuuelhinho É o seu vizinho que quer comer meu cuuelhinho É o seu vizinho que quer comer meu aaii Ô minha prima se acalma deixa eu segurar o bicho (2x)

Eita coisa boa Ô primo não deixa o seu vizinho comer meu coelhinho não Com um coelhinho desse até o Raí se acaba.15

Estas canções podem ter o mérito de acabar com tabus a respeito de se falar e discutir em público assuntos ligados à sexualidade, mas promovem uma banalização das relações afetivas e sexuais que expressam dados impasses e dilemas que vivemos na sociedade brasileira e nordestina, onde um processo acelerado de modernização tecnológica, de urbanização, de instauração de uma cultura midiática, de massas e empresarial veio desestabilizar antigos códigos de valores, antigas prescrições éticas e morais, veio pôr em questão dados papéis e lugares consagrados de sujeito, como a própria figura do nordestino, sem que outras instâncias de produção de sentido, de valores, de ideias tenham o mesmo alcance e incidência social que a indústria cultural e os meios de comunicação de massas, sempre dispostos a veicularem a mensagem mais fácil, o que vende, aquilo que atende ao gosto de uma população com baixos níveis de educação, inclusive estética, para oferecerem outros modelos de sujeito, outras matérias e formas de expressão, outros agregados sensíveis e outros afetos. Hoje é preciso procurar muito para conseguir alternativas a esta produção cultural marcada pela semelhança e pela indistinção, que se aproveita do fato de que algo diferente e singular exige um esforço de compreensão e percepção que a maioria das pessoas educadas no mercado fácil e farto da mídia não estão dispostas a, ou preparadas para fazer. Este fenômeno das bandas de forró não é apenas uma impostura imposta pela mídia, 15  Ver: http://letras.terra.com.br/saia-rodada/393769/. Acessado em 14 de novembro de 2009.

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mas corresponde a dados códigos de sensibilidade, a dados valores, às demandas de um público educado pela própria mídia, educado pela televisão, um público que não teve e não tem em casa, na escola e mesmo em outras instituições sociais e culturais o contraponto, a contramensagem a esta mensagem avassaladora, repetitiva e recorrente que toma de assalto os ouvidos e mentes mesmo daqueles que a recusam. Mesmo quem não curte uma lapada na rachada não está livre destas verdadeiras lapadas no ouvido, que racham nossos tímpanos; mesmo quem não é uma piriguete e não quer dançar o pompompiri, não está livre dos perigosos valores e modelos subjetivos que põem para funcionar em nossa sociedade e que nos interpelam como intelectuais e produtores de ideias e cultura para que nos posicionemos diante da nova versão da figura do nordestino que vem se elaborando, da nova versão do que se chama de cultura regional, cumprindo nosso papel de abrir novos horizontes, que não nos reservem como destino ser um apenas Playboy Arretado, um homem que vive à custa dos pais, que não quer estudar, mas que mesmo assim quer ter um carro turbinado, um som, dinheiro para gastar com cerveja e com as gatinhas:

Meu pai paga a minha faculdade Não quero ser doutor Não nasci pra estudar Sou formado no meio da putaria E nos posto de gasolina Saio para farrear

Encontrar a moçada Tomar uma gelada Eu só ando arrumado cheio da mulherada Sou um playboy arretado Aqui tá muito bom... Bom, bom, bom Meu carro é turbinado...

Abre a mala e solta o som Eu gosto de zueira Eu tô na putaria Sou doido por mulher E gelada todo dia16

16  Composição de Luciano Kikão. Ver: http://letras.terra.com.br/saia-rodada/1395479/. Acessado em 14 de novembro de 2009.

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Antropofagia e Filosofia: as potências criadoras da música Jorge Vasconcellos

Manifesto Antropófago Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. ¶ Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. ¶ Tupi, or not tupi that is the question. ¶ Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. ¶ Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. ¶ Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. ¶ O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. ¶ Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. ¶ Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. ¶ Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. ¶ Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. ¶ Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. ¶ A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. ¶ Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos... ¶ Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. ¶ Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. ¶ Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel, mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. ¶ O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. ¶ Só podemos atender ao mundo orecular. ¶ Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. ¶ Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. ¶ Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. ¶ O instinto Caraíba. ¶ Morte e vida das hipóteses. Da equação

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eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. ¶ Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. ¶ Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. ¶ Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. ¶ Catiti Catiti ¶ Imara Notiá ¶ Notiá Imara ¶ Ipeju. ¶ A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. ¶ Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia. ¶ Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso? ¶ Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César. ¶ A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue. ¶ Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas. ¶ Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: — É mentira muitas vezes repetida. ¶ Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti. ¶ Se Deus é a consciência do Universo Incriado. Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. ¶ Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário. ¶ As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo. ¶ De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia. ¶ O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. ¶ É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci. ¶ O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso? ¶ Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. ¶ Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. ¶ A alegria é a prova dos nove. ¶ No matriarcado de Pindorama. ¶ Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. ¶ Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. ¶ Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João vi. ¶ A alegria é a prova dos nove. ¶ A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura — ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo — a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. ¶ Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, — o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. ¶ A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João vi: — Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. ¶ Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

Oswald de Andrade, Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha (Revista de Antropofagia, Ano 1, no. 1, maio de 1928.

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Caranguejos com Cérebro

mangue — o conceito

Estuário. Parte terminal de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem dos alagados costeiros. Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas de casa, para os cientistas os mangues são tidos como os símbolos da fertilidade, diversidade e riqueza.

manguetown — a cidade

A planície costeira onde a cidade de Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século xvii, a (ex) cidade “maurícia” passou a crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição dos seus manguezais. Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de “progresso” que elevou a cidade ao posto de metrópole do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos “ventos” da história para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem dos anos 60. Nos últimos trinta anos a síndrome da estagnação aliada à permanência do mito da “metrópole” só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano. O Recife detém hoje o maior índice de desempregados do país. Mais da metade de seus habitantes moram em favelas e alagados. Segundo um instituto de estudos populacionais de Washington, é hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.

mangue — a cena

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruir as suas veias. O modo mais rápido também de enfartar e esvaziar a alma de uma cidade como Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa as cidades? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias de Recife. Em meados de 91 começou a ser gestado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de ideias pop. O objetivo é engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama. Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em quadrinhos, tv interativa, anti-psiquiatria, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane, acaso, sexo não virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência. Chico Science & Nação Zumbi / Da lama ao caos (Texto-Manifesto do encarte do cd, Edições chaos, 1994).

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Antropofagia e Filosofia. Trata-se de analisar filosoficamente as relações entre ARTE & PENSAMENTO na cultura musical contemporânea nordestina, em especial de Pernambuco, privilegiando o Movimento Mangue, o Manguebeat, na figura da banda de Pop-Rock Chico Science & Nação Zumbi, para tal empreitada. Nosso intuito é pensar a banda CSNZ como herdeira do pensamento da antropofagia de Oswald de Andrade. Apresentaremos, antes disso, a antropofagia oswaldiana como um pensamento filosófico e Oswald de Andrade como um filósofo brasileiro; a pensar, justamente, uma ontologia do que seria o Brasil e os brasileiros. O Manguebeat e a CSNZ serão lidos como potências fabulatórias e forças criadoras de sentido. A despeito de trabalharmos como linha-de-força conceitual em nossa análise filosófica a ideia de “devoração antropofágica” como conceito filosófico, como proposta por Oswald de Andrade, não deixamos, todavia, de estabelecer nexos de sentido deste com o pensamento de Friedrich Nietzsche e com alguns dos conceitos do filósofo francês contemporâneo Gilles Deleuze, como, por exemplo, ‘fabulação criadora’, ‘devir-animal/devir-caranguejo’, ‘povo por vir’ e ‘linha de fuga’, além da concepção de pensamento e criação sob ‘rizoma’. Estes conceitos e ideias deleuzianas, articulados à concepção oswaldiana de Antropofagia, será nossa chave de leitura para interpretar a música de Chico Science & Nação Zumbi como potência criadora.

1. Antropofagia e Filosofia: Oswald de Andrade, um filósofo brasileiro Em seu célebre texto Manisfesto Antropófago, Oswald de Andrade propõe a, talvez, mais poderosa interpretação já feita do que é o Brasil. Nele/nela encontramos ideias como: ‘Só gosto do que não é meu’; ‘aprecio apenas o que é do outro’; ‘preciso comer o que é de outrem para aí tornar-me o que sou’. Estas são algumas das palavras-de-ordem, melhor dizendo palavras-valise, livremente por nós interpretadas do pensamento da Antropofagia de Oswald de Andrade. Essas palavras-ideias são as orientadoras do que entendemos ser o sentido do Manifesto. Partiremos deste texto oswaldiano para dar a pensar as relações entre ‘Antropofagia e Filosofia’, mostrando como esta conexão estaria ainda por ser realizada de modo rigoroso. Enfatizaremos, sobretudo, a importância do texto de Oswald de Andrade para interpretarmos a cultura brasileira em geral, particularmente uma produção musical nascida no Nordeste, em Pernambuco — o Manguebeat, de Chico Science & Nação Zumbi — , em seus mais radicais aspectos, seja esta uma radicalidade histórica, sociológica e/ou antropológica; mas, principalmente, em sua radicalidade filosófica. Isso porque afirmamos que Oswald pode e deve ser pensado, antes de tudo, como um pensador, como um filósofo: um filósofo brasileiro. Evidentemente quando estamos apontando um filósofo brasileiro, é preciso que se diga que não estamos defendendo a posição de que existamm, estritamente falando, filosofias nacionais. Não existe propriamente uma filosofia alemã, uma filosofia francesa, ou mesmo uma filosofia grega em seu caráter nacional. Pois, entendemos que a filosofia aspira e implica um sentido de universalidade que orienta meditações acerca da dimensão do humano, da terra e do mundo. Não obstante, Hegel é um filósofo alemão, Pascal, um filósofo francês, assim como, Platão é um filósofo grego. Nesse sentido, a despeito de recusarmos a alcunha de uma filosofia brasileira, reafirmamos que Oswald de Andrade é um filósofo brasileiro. O que então faz da Antropofagia oswaldiana uma filosofia, no sentido forte do termo, isto é, um pensamento filosófico constituído, que investiga e rivaliza com o cânone da filosofia ocidental, que compõe visão própria do mundo, instituindo uma cosmovisão do que existe, do que é... Apresentando-se, ao fim e ao cabo, como uma teoria do real. Em suma, perguntamos pelo que faz a Antropofagia constituir-se enquanto uma ontologia? Já que ela, a Antropofagia, é um saber complexo e sistemático, com categorias singulares e operativas, tornada pelo movimento do pensamento uma ciência do ser enquanto ser. Seria ela, a Antropofagia, uma ontologia para pensar o Brasil e os brasileiros? A indagação “o que é o Brasil e quem são os brasileiros?” não é o mesmo

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que a busca pela essência da brasilidade e pela identidade brasileira, como veremos. Trata-se mais de uma orientação de sentido, um colocar-se no horizonte problemático do pensamento. Daí, antes de tudo, a Antropofagia é uma filosofia, Oswald Andrade, um filósofo. Se assim é, então, quais os problemas a serem enfrentados pela antropofagia oswaldiana? Em que plano de imanência possível emergem esses problemas? Quais seus operadores, seus conceitos? Quais seus personagens conceituais? Enfim, a qual tradição filosófica ela se filia e com a qual rivaliza? Já que fazer filosofia, melhor dizendo, o exercício da prática filosófica implica, a nosso ver, necessariamente: a) enfrentar e recolocar problemas filosóficos; b) traçar e instituir um plano de imanência a uma determinada filosofia; c) criar e operar conceitos que habitam este plano; d) forjar e designar personagens conceituais que se articulam aos conceitos. Fazer crítica e clínica filosófica. Um pequeno deslocamento aqui se faz necessário, pois, partimos das ideias de Gilles Deleuze e Félix Guattari, e da concepção que ambos engendram do que seja a filosofia e o filosofar, para pensar as relações entre ‘Antropofagia e Filosofia’. Assim, carece explicitar o que seja plano de imanência, conceitos e personagens conceituais para os pensadores franceses. Em O que é a filosofia?, os autores desenvolvem a noção de ‘personagem conceitual’. Nesse livro, os personagens conceituais constituem-se como elementos pró-filosóficos ao próprio filosofar, tais quais os conceitos, que seriam propriamente filosóficos, enquanto o plano de imanência se estabeleceria como elemento pré-filosófico, uma espécie de ‘topos’ dos conceitos. A ideia de plano de imanência está diretamente implicada à ideia de conceito em Deleuze e Guattari, à sobrevida dos conceitos filosóficos. O que são conceitos sob esse ponto de vista filosófico? Os conceitos são totalidades fragmentárias que não se ajustam umas às outras, já que suas bordas não coincidem. Eles nascem de um lance de dados, não compõem um quebra-cabeças. De todo modo, eles ressoam à filosofia que os cria, pois só é filosofia o pensamento que se dá a inventar conceitos. Contudo, os conceitos não constituem por si só um plano de imanência. O plano de imanência não é um conceito particular ou um conceito geral, nem por sua vez, um Grande Conceito a englobar todos os outros conceitos, ele é a pré-condição de existência de todo conceito filosófico, ele é o solo onde os conceitos devem vir à luz. O plano de imanência é a terra do conceito. Novamente, então, o que é um conceito para o sentido da filosofia que aponta os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari? Os conceitos são construções na perspectiva deleuziana, a própria filosofia é uma espécie de construtivismo, daí a importância de traçar planos (de imanência), erguer platôs (em espaços-quaisquer), semear campos (de força). A imanência é a argamassa destes campos, platôs e planos; e os conceitos são a sua ferramenta. Tanto que em linhas gerais, para essa concepção, os conceitos teriam quatro grandes características: 1) Eles não são simples, melhor dizendo, não há conceito simples. Todo e qualquer conceito possui componentes, e se definem por eles. Eles, os conceitos possuem uma espécie de cifra. São multiplicidades. Todo conceito é implicado por multiplicidades; 2) Todo conceito possui um devir que lhe concerne. Os conceitos se acomodam uns aos outros, compondo seus respectivos problemas; 3) Todo conceito é simultaneamente absoluto e relativo: relativo a seus próprios componentes, aos demais conceitos, a partir do plano ao qual se limita, aos problemas que enfrenta, porém, absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa no plano, pelas condições que impõe ao problema; 4) Um conceito nunca é discursivo, pois a filosofia não é uma formação discursiva, já que não encadeia proposições. Os conceitos são, como dissemos, ferramentas. Essa é a articulação que conjuga conceitos e filosofia, ou mais precisamente, entre plano de imanência e os conceitos que o compõe, que garantem ao “filosofante”, aquele que estuda a filosofia e interpreta a sua história, conhecer e restituir um determinado filósofo ou mesmo um sistema de pensamento. O plano de imanência torna possível desenhar diagramas na cartografia do pensamento filosófico. O plano de imanência faz aparecer um rosto em meio à bruma da paisagem filosófica. Por sua vez, a ideia de personagem conceitual talvez seja a mais radical e extraordinária desta concepção do filosofar proposta por Deleuze e Guattari. Por exemplo, em O que é a filosofia? Deleuze e Guattari apresentam Sócrates como personagem conceitual de Platão. Este “Sócrates”, os autores deixam claro, não se trata do Sócrates histórico, nem propriamente um simples personagem por intermédio do

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qual as ideias platônicas seriam defendidas, seu porta-voz ou alter-ego, mas de um intercessor. Os personagens conceituais são os verdadeiros sujeitos da filosofia. Logo, descartamos qualquer alusão a que os personagens conceituais sejam meramente ilustrativos, eles são próativos na construção de uma teoria filosófica. No entanto, eles não são conceitos, pois eles dramatizam estas filosofias, não são ferramentas como os conceitos, eles fazem a filosofia entrar em jogo, eles fazem com que ela jogue — como em um jogo de cena. Acreditamos que o texto oswaldiano pode ser lido sob essa perspectiva deleuziana da filosofia. Isso à revelia de fortes correntes interpretativas do Manifesto Antropófago, que constitui a fortuna crítica ao legado de Oswald de Andrade, têm como uma de suas linhas mestras a hipótese de destacar que seu sentido é aquele o de ‘ler’ o Brasil por intermédio de metáforas, contidas na própria letra do texto de Oswald. Por exemplo, segundo Benedito Nunes, em seu ensaio de introdução ao sexto volume das Obras Completas de Oswald de Andrade — justamente aquele que reúne os dois manifestos determinantes ao Modernismo de 22, propõe a “devoração” como símbolo do processo antropofágico simultaneamente como: ‘metáfora’, ‘diagnóstica’ e ‘terapêutica’. O consagrado crítico propõe como eixo interpretativo que a metáfora seria orgânica, já que se inspira em cerimônia guerreira de imolação dos inimigos pelos Tupis, que devoram seus algozes após o combate. Por sua vez, a devoração antropofágica seria ainda um diagnóstico da sociedade brasileira, traumatizada pela repressão colonizadora que teria nos condicionado. E, por fim, a devoração faria às vezes de uma terapêutica, praticada na ação violenta e sistemática aos mecanismos sociais e políticos, aos hábitos intelectuais e às manifestações literárias e artísticas que teriam produzido este trauma repressivo. Somos contrários a essa interpretação. Recusamos este sentido dado à Antropofagia, especialmente à ideia de “devoração”, como metáfora. Defendemos que: onde se lêem metáforas, lemos conceitos. Conforme enunciamos: Oswald de Andrade, como um filósofo, é um inventor de conceitos — “devoração” opera como um conceito filosófico. E como nenhum conceito é simples, estes possuem sempre elementos. Diríamos, desse modo, que a ideia de “assimilação”, presente no processo de deglutição do outro, seria um dos elementos do conceito de devoração antropofágica. Ao apontarmos esta ideia de “devoração antropofágica” como conceito filosófico nos leva a fazer a pergunta: por qual ordem de problemas este conceito deve enfrentar? Tal questão se faz necessária. Dito de outro modo, quais os problemas filosóficos, propriamente ditos, que são colocados pela Antropofagia? Diríamos, a grande questão da Identidade, mais especificamente das relações entre identidade e diferença no bojo do processo da constituição de um Povo. No caso, o Povo Brasileiro. O ‘ser’ brasileiro como o avesso de uma forma identitária nos parece ser o topos das ideias filosóficas de Oswald de Andrade. Por sua vez, qual o plano de imanência que sustenta esses conceitos e faz emergir seus personagens conceituais? Diríamos, estamos diante de um pensamento da pura imanência, como na linhagem filosófica de um Spinoza, de um Nietzsche, de um Deleuze. Pensar o ser é pensá-lo como afirmação do devir... é como pensar os processos subjetivos como transformação do eu em um outro, um outrar-se como na expressão criada por Fernando Pessoa. Por fim, qual ou quais personagens conceituais são instaurados pela prática filosófica da devoração antropofágica? Arriscamos dizer: o Bispo Sardinha é um personagem conceitual de Oswald de Andrade. Oswald ao apresentar sua Antropofagia estava produzindo uma rigorosa e meticulosa análise filosófica do Brasil, um diagnóstico ao nosso presente, um sentido aos nossos futuros. Seu texto, mesmo que ao comportar expressões e palavras que sugerem as mais extravagantes imagens, que remetem muitas das vezes às vanguardas literárias europeias, como, por exemplo, ao surrealismo, ensejava em seu bojo uma construção que é, de fato, conceitual. Assim, uma expressão como “a alegria é prova dos noves” não seria apenas um gracejo que reivindicaria ao povo brasileiro a festa, o carnaval, o rito jubiloso encarnado, o êxtase; mas, a afirmação da alegria como sentido (do existente) e valor (da vida). Ou ainda outra enunciação célebre contida no Manifesto: “O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica”. Trata-se de descartesianizar a filosofia. Tratava-se de descartar Descartes. Ou seja,

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recusar o paralelismo cartesiano e propor a este um antídoto: ‘a vacina antropofágica’. Ela mesma, um conceito. Estamos diante de um médico da civilização, de um psicólogo da cultura, como Nietzsche, produzindo a sintomatologia da modernidade enferma. Oswald parece evocar a o sentido da ideia de “Grande Saúde” em Nietzsche com seu pensamento antropofágico. E mais, além do desta presença da ideia de “Grande Saúde”, é possível associar as tipologias nietzschianas de ‘nobre’ e ‘escravo’, com aquelas que estão presentes no Manifesto, como, por exemplo, de ‘antropófago’ e ‘colonizador’. Nietzsche não se faz notar apenas pelas citações explícitas ou subjacentes no próprio Manifesto, mas, também, pelo projeto filosófico presente no pensamento da antropofagia de Oswald. Como aponta Maria Cristina Franco Ferraz, em artigo que articula a Genealogia da Moral de Nietzsche ao Manifesto, Oswald de Andrade digere o dilema do ser e do não-ser tão caros à metafísica clássica e à tradição ocidental, devolvendo-o em forma de paródia e alegria: ao invés do “To be or not To be”, em seu lugar o “Tupi or not Tupi”. Eis a questão da devoração antropofágica. Segundo Ferraz, Oswald teria, nesse sentido, se aproximado da perspectiva nietzschiana e do estatuto da afirmação em Nietzsche. A Antropofagia é uma filosofia do Sim, um dizer afirmativo: é isto mesmo, a vida. A vida nos trópicos, sob o sol... América do Sal, América do Sul, América do Sol... Ser antropófago é mais que voltar às raízes do homem primitivo a devorar e assimilar a cultura de outrem, pois, nos parece que os caminhos apontados pela Antropofagia é exatamente aquela de inaugurar o novo, fazendo com que tudo o que é defora seja incorporado, modificado, regurgitado não evidentemente por nosso entendimento, mas por nossos intestinos. Ainda como Nietzsche, um pensar que vem das vísceras, um pensamento visceral. A Antropofagia (Oswald de Andrade) produziu, juntamente com a Tropicália (Hélio Oiticica), o Tropicalismo (Caetano & Gil), O Cinema Novo (Glauber Rocha), O Teatro Oficina (José Celso Martinez Corrêa), uma interpretação sensível, e também conceitual, do Brasil. A Antropofagia é pensamento do social, é instância definidora de um Povo. É Povo Por Vir. Ritual e ritualização que nos faz ver e sentir o que somos. Ele mesmo, Oswald de Andrade, nos diz o significado da prática ritualística (e afectiva) da ANTROPOFAGIA: A ANTROPOFAGIA ritual é assinalada por Homero entre os gregos e segundo a documentação do escritor argentino Blanco Villalta, foi encontrada na América entre os povos que haviam atingido uma elevada cultura — Asteca, Maias, Incas. Na expressão de Colombo, comiam los hombres. Não o faziam, porém, por gula ou por fome. Tratava-se de um rito que, encontrado também nas outras partes do globo, dá a ideia de exprimir um modo de pensar, uma visão de mundo, que caracterizou certa fase de toda a humanidade. Considerada assim, mal se presta à interpretação materialista e imoral que dela fizeram os jesuítas e colonizadores. Antes pertence como ato religioso ao rico mundo espiritual do homem primitivo. Contrapõe-se em seu sentido harmônico e comunial, ao canibalismo que vem a ser a antropofagia por gula e também a antropofagia por fome, conhecida através da crônica das cidades sitiadas e dos viajantes perdidos. A operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto, ao valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu. Que é o tabu senão o intocável, o limite? Enquanto na sua escala axiológica fundamental, o homem do Ocidente elevou as categorias do seu conhecimento até Deus, supremo bem, o primitivo instituiu a sua escala de valores até Deus, supremo mal. Há nisso uma radical oposição de conceitos que dá uma radical oposição de conduta. Nossa ambição é procurar mostrar como a Antropofagia, em sua radicalidade nos deixou poderosa herança no plano das artes e da cultura brasileira; além, de nos forçar a pensar acerca das relações entre identidade nacional e práticas artísticas e culturais. O caso que aqui abordaremos, como já anunciado, trata da relação da música, de uma certa música produzida no Nordeste, na Recife contemporânea

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para sermos mais precisos, em seu processo de apropriação do outro, ou ainda da estratégia de deglutição/devoração/assimilação do outro. Destacaremos as potências criadoras do Pop, na figura de Chico Science & Nação Zumbi. Mostraremos que as supostas distâncias que separariam a interpretação Pop-Rock do Maracatu e dos ritmos populares sincretizados em uma geleia geral antropofágica realizada por CSNZ é herdeira de Oswald e de seu banquete antropofágico. Comecemos pelas potências criadoras das propostas do chamado Movimento Mangue ou Manguebeat, da música de Chico Science & Nação Zumbi. Neles poderemos vislumbrar os desdobramentos instigantes do devir-antropofágico presente na cultura artístico musical do Brasil, em especial do Nordeste. Uma reinvenção musical que parte de Pernambuco para o mundo.

2. O devir-antropofágico da música do Manguebeat de Chico Science & Nação Zumbi O movimento Manguebeat, nascido em Recife é a reafirmação da presença do pensamento antropofágico de Oswald de Andrade na arte e na cultural brasileira, em especial, em sua produção musical. No Movimento Mangue, vemos a incidência radical do que denominamos de devir-antropofágico da música, reorientando não só a produção musical Pop do Brasil contemporâneo, como, inclusive, certas imagens que temos da cultura urbana de Pernambuco e do próprio Nordeste. Além de ter proporcionado, queremos crer, a re-invenção de uma determinada imagem que temos do Nordeste e do nordestino. O movimento musical Manguebeat, que teve em Chico Science seu principal artífice e propositor, desenvolveu, em meio aos 1990, uma reconfiguração da cartografia da música popular no Brasil. Revitalizou uma dita herança tropicalista advinda das figuras de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Gal Costa, Rogério Duprat, Os Mutantes e outros artistas brasileiros do período sessentista e setentista. A herança tropicalista nunca foi negada pelos integrantes da chamada, hoje, geração Mangue, porém, não apenas de tropicalistas e tropicalismo viveu o Manguebeat. O Movimento que inicialmente foi denominado pelos próprios integrantes de Manguebit sofreu já em seus começos um deslocamento de nomenclatura, e radicalização de conceitos. Trocava-se o então bit, de batida por minutos da música eletrônica, pelo agora beat, das novas tecnologias da informação. Fred Zero Quatro, do Mundo Livre s.a., os membros do Cascabulho, Siba do Mestre Ambrósio, além dos próprios integrantes da banda de Science — o Nação Zumbi –, destacaram já em seu Manifesto, Caranguejos com cérebro, presente no primeiro disco da CSNZ, outras importantes referências. Tudo estava lá: James Brown e o funk, mas também, Bezerra da Silva e o samba de breque; Mestre Salustiano e sua rabeca matricial, mas também, John Coltrane o mais mágico dos saxofones jazzístico; a fala-poesia-guerra do Hip Hop, mas também, o repente-improviso-irônico do Cordel. Além de: quadrinhos, tv interativa, antipsiquiatria, ‘midiotia’ e ‘artismo’. Estas últimas expressões criadas pelos mangueboys. Se, sem dúvida, o tropicalismo não pode ser deixado de lado como poderosa linha de força a irrigar as potências contidas no Manguebeat. Por outro lado, ao pensarmos genealogicamente o movimento Mangue, veríamos sua principal inflexão ligada muito mais a Antropofagia de Oswald que ao movimento musical propriamente. Tratava-se de engolir as referências da cultura folclórica nordestina, em especial da cultura musical pernambucana, mas não só dela, e sim de todo o nordeste, principalmente do Maracatu. E não só, mas também, engolir o rock e o pop estrangeiro dos anos 1980, lendo-os a contrapelo. Reinventar um nordeste musical intenso, para além dos axés e dos forrós diluidores, movidos a guitarras pesadas e percussão ritualística. Eis o CSNZ. Acreditamos que ao chamar o movimento Manguebeat e Chico Science & Nação Zumbi de neo-tropicalista, ou mesmo de pós-tropicalista, configura um enfraquecimento das potências contidas no movimento em geral, e mesmo, na banda de Recife. Isso porque as próprias

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designações de ‘Neo’ ou ‘Pós’ implicam muito mais uma dívida que não pode ser paga, do que uma filiação que se quer creditada. Pois, o que se configura, de fato, foi que CSNZ trouxe, na verdade, a emergência do novo para a cena musical recifence e pernambucana. Um importante testemunho se faz necessário. Alceu Valença — um dos compositores que iniciou em Pernambuco as aproximações entre música regional de raiz e ritmos Pops, partindo de matrizes estrangeiras. Alceu sentenciava em entrevista ao Diário Oficial, publicada em março de 1992: “Pernambuco está velho (...) Eu estou louco para que apareça o novo, mas não está aparecendo”. E as palavras do bardo de Olinda se fizeram proféticas, pois, a novidade surgiu... com tanta força que foi abrangendo outras práticas artísticas, como fica claro aqui na revisão do movimento feito pelo próprio Chico Science: “Os produtores de vídeo, o pessoal da fotografia, das artes plásticas, do teatro foram aceitando a ideia, trabalhando conosco, isto permitiu que o movimento estourasse fora da cidade”. Que chegasse a ganhar visibilidade internacional, com as duas principais bandas da estética mangue, Mundo Livre s.a. e Chico Science e Nação Zumbi, fazendo shows por todo o Brasil, Europa e Estados Unidos. Criando uma escola inventiva que continuou gerando novas bandas, como Mestre Ambrósio e Cascabulho.

Como defende o poeta, músico e pesquisador carioca André Gardel: No espaço da música popular, a criação de Chico Science & Nação Zumbi recebeu e digeriu influências importantes do tropicalismo e de seus precursores, como o Jorge Ben do Samba Esquema Novo ou do Maracatu Atômico de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. A ideia de caranguejos mutantes com cérebros dialoga, entre outros, com a Vanguarda Paulista do Arrigo Barnabé de Clara Crocodilo. O rock europeu dos anos 1980; os ritmos regionais nordestinos; o reggae jamaicano; o rock alternativo americano; os ritmos pops contemporâneos, completam a teia de diálogos e influências que compõe a música de Chico Science. Afora isso, recebeu homenagens da ala mais radical do nacional-popular-erudito da mpb de um Quinteto Violado, que gravou as suas composições Macô e Coco dub, ou mesmo do próprio Antônio Nóbrega, com quem combinara a realização de alguns projetos em parceria, não realizados pela sua morte prematura aos 30 anos, num acidente de carro ocorrido em fevereiro de 1997.

É curioso notar, como nessa interessante observação do pesquisador carioca supracitado, se dá o encontro Science/Nóbrega, apontada por Gardel, em que a suposta separação irreconciliável e a inevitável distância mantida pelo Manguebeat e pelo Movimento Armorial poderia ser quebrada pela aproximação, no plano da música, por dois de seus expoentes: Chico Science e Antonio Nóbrega. O pesquisador carioca ainda destaca que os contatos de Science, e de todo o Movimento Mangue, com a comunidade folclórica do Recife e de Pernambuco marcaram decisivamente os caminhos do Manguebeat: ...trabalhou e trocou informações musicais com o rabequeiro, e diretor do maracatu rural Piaba de Ouro, Mestre Salustiano; com a artista popular e assessora de Ariano Suassuna na Secretaria Estadual de Cultura de Pernambuco, Dona Selma do Coco; e com o grupo de resistência negra Daruê Malungo, com propostas religiosas e didáticas, cuja banda de samba-reggae Lamento Negro cedeu a maior parte dos percussionistas que vieram a compor a Nação Zumbi; e, ainda, o mestre do ritmo Maureliano, realizador das ideias híbridas de Chico Science de fundir baque virado e baque solto do maracatu com soul, rock e funk, nos arranjos das músicas.

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É possível notar uma gama de influências e referências literárias em CSNZ: a ficção científica, da literatura da Geração Beat americana, do cyberpunk de William Gibson, decisivamente a foram importantes na estruturação de sua poética; contudo, a maior e mais decisiva influência configurou-se, na verdade, da obra sociológica do médico Josué de Castro, mais especificamente, do romance Homens e caranguejos. Esta obra que retrata a vida das favelas de Recife à beira do mangue, formula a imagem híbrida (Canclini) dos homens caranguejos, que representaria o próprio sentido do Movimento. Ademais queremos entender esse hibridismo de outro modo, partindo da ideia deleuziana de devir. Acreditamos que estes homens-caranguejos filosoficamente podem ser denominados de devir-caranguejo. O que seria este devir-caranguejo? Em que sentido falamos aqui de devir? Voltemos a Deleuze e Guattari. Em Deleuze, o ser se diz do devir, que é o mesmo que dizer: o ser é a afirmação do devir: “Ora, é preciso refletir longamente para compreender o que significa fazer do devir uma afirmação. Sem dúvida significa, em primeiro lugar, que só há o devir. Sem dúvida é afirmar o devir. Mas afirma-se também o ser do devir, diz-se que o devir afirma o ser ou que o ser se afirma no devir”. Este enunciado caracteriza que a concepção de ontologia deleuziana merece de minha parte alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, quando se diz da afirmação do devir para se falar do ser, o que está em jogo para Deleuze é mostrar que na verdade não há nada para além do devir, isto é, o ser, O QUE É, não pode ser visto como uma preexistência calcada no princípio do idêntico e do mesmo, que venha por seu intermédio dar sentido ao real. A multiplicidade é sua principal característica, isto é, o real é multiplicidade, que se afirma enquanto tal como devir. Em decorrência, o devir não pode ser visto como aparência ou ilusão: “Pois não há ser além do devir, não há um além do múltiplo, nem o devir são aparências ou ilusões”. Deleuze então me permite dizer que o devir é o próprio movimento de constituição e desaparição das singularidades, a emergência do mundo em toda sua multiplicidade, em toda multiplicidade. Isso significa que o devir é sempre o que está entre dois, isto é, entre dois termos, entre dois pontos: a abelha e a orquídea, Acab e a baleia, eu e minha infância; nesse sentido, não é a operação de substituição de um termo por outro ou a transformação de um em um outro, por imitação, semelhança ou identificação. Entre um termo e outro, entre um e outro, cria-se uma zona de indiscernibilidade, de vizinhança, como, por exemplo, um devir entre um homem e um inseto, ou um devir entre um homem e um lobo: um devir-animal. Um devir é sempre um devir-outro em Deleuze. Deleuze e Guattari enunciam: Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. Toda crítica estruturalista da série parece inevitável. Devir não é progredir nem regredir segundo uma série. E sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o nível cósmico ou dinâmico mais elevado, como em Jung ou Bachelard. Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitálo, é evidente também que o homem não se torna ‘realmente’ animal, como tampouco o animal se torna ‘realmente’ outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O crustáceo que habita o mangue de Recife e também habita o destino do homem que lá mora, que é a base da alimentação desse povo, se faz zona de vizinhança e continuidade, se faz devir. Um devir-animal, devir-caranguejo, à moda deleuziana. O próprio Chico Science o diz: “Na imagem de Josué somos caranguejos com cérebro, como os pescadores que ele (Josué de Castro) descreveu no livro Homens e caranguejos. Eles pescam e comem caranguejos para depois excretá-los no ciclo caótico. Fazemos uma música caótica”. Essa música caótica que regurgita as fontes da cultura popular recifence.

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Não obstante, as fontes de Science transvazam para além da chamada cultura popular e folclórica do Recife e de Pernambuco. Basta empreendermos um diálogo possível com um representante erudito ilustre da cultura pernambucana, a partir do sentido da vida humana se misturando com a vida animal, buscando a vegetalidade como um destino possível, instaurando-se como devires-animais, no bojo das condições subumanas de sobrevivência da realidade miserável de grande parte da população. Esta aproximação se apresenta, por exemplo, no poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto. O rio Capibaribe se abre: “...como negros./ Abre-se numa flora/ suja e mais mendiga/ como são os mendigos negros” Ali, homens “plantados na lama” e rio se misturam na “paisagem de anfíbios/ de lama e lama”, tornando difícil saber ”onde começa o rio;/ onde a lama/ começa do rio;/ onde a terra/ começa da lama;/ onde o homem,/ onde a pele/ começa da lama;/ onde começa o homem/ naquele homem.” Uma outra perspectiva acerca da importância do Chico Science & Nação Zumbi como um pensamento singular, a partir da música e de sua força criadora, sobre o Nordeste foi formulada por Ariano Suassuna. Aqui de modo crítico. O criador e principal artífice do Movimento Armorial, que defendia como ponto de partida uma arte nacional erudita, via no CSNZ uma capitulação dos valores armorialistas e uma denegação da cultura tradicional do Nordeste. Suassuna, inclusive, glosava galhofeiramente com o nome de Chico Science, chamando-o de ‘Chico Ciência’. Para o dramaturgo de Taperoá, a arte popular autêntica é feita pela maioria dos excluídos e não se reconhece no que é massificado, comercial, estrangeiro. Ele que estava preso aos valores desenvolvidos por Gilberto Freire nos anos 1920 a confrontar os modernistas de 22. Segundo o sociólogo, em argumento endossado por Suassuna, esse movimento modernista de 22, hegemonicamente paulista, exigia uma modernização europeizada e ‘apressada’ do Brasil. O Movimento Armorial, por sua vez, propunha um retorno às raízes tradicionais da cultura nordestina, a um Brasil profundo. Entendemos que Chico Science & Nação Zumbi e mais todo o Movimento Mangue, rompem com esta concepção identitária e metafísica, propondo em seu lugar uma concepção não mais de profundidade e de enraizamento, mas, de superfície e rizomática: ao invés da raiz, o rizoma. Curioso o que se deu no enterro do ídolo pop fundador do movimento mangue music. No local, Ariano Suassuna se debruçou sobre o caixão e chorou compulsivamente, indo depois embora sem dar qualquer entrevista. No íntimo talvez admitindo que Chico Science e o Manguebeat tivessem sido realmente a continuidade contemporânea, com outra roupagem e em outras bases, do movimento armorial... As distâncias, como dissemos que separariam o Movimento Mangue e o Movimento Armorial não eram, de fato, tão grandes. As conciliações estavam por se fazer. Chico queria dialogar e incorporar, sua expressão, assimilar, nesso sentido, a música erudita brasileira: “Quero escutar Guerra Peixe, mais coisas da música armorial, como Ariano Suassuna, quem sabe ainda não vou juntar o popular ao erudito?”. Com voz de mestre tirador de loas do maracatu, de rapper, de repentista, de sacerdote dos prazeres, de preto velho, de pajé, ora cínica ora irônica ora profética, Chico Science criou uma poética que abriga e desvela vozes múltiplas do universo coloquial das ruas; produz imagens insólitas em tons surrealistas, mas quase sempre prosaicas; mistura sons, ruídos, gírias, subdialetos regionais, fragmentos, escritas automáticas, línguas, letra folclórica, literária, popular, fazendo uma poesia que transita no terreno da alteração/expansão da consciência e da linguagem. Em Coco dub (afrociberdelia), do cd Da lama ao caos, na alternância aliterante “cascos, caos, cascos, caos” são sugeridas colisões de corpos estranhos semânticos, mas que se encontram em tensa harmonia ritmada na sua estética da bricolagem, bebida na fonte nãodiscursiva das linguagens de vanguarda modernas. Orgânico e teórico, micro e macro universo se enredam paronomasticamente (cascos/ caos) num trote musical que abarca linguagem, comportamento, ciência, universo: “Imprevisibilidade de comportamento/ O leito não-linear

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segue/ Pra dentro do universo/ Música Quântica?”. O movimento entre esses pólos se dá “Da lama ao caos/ do caos à lama”, do regional ao cósmico, do cósmico ao regional, uma dinâmica que permite que o eu poético represente os “multicoloridos, homens, multicoloridos/ (que) Andam, sentem, amam/ Acima, embaixo do mundo/ com multicoloridos, cérebros, multicoloridos/(que) Sintonizam, emitem, longe/ cascos, cascos, cascos.” Têm a estranheza freak dos seres anfíbios que nascem em Manguetown e o senso de pertencimento tribal ramificado em rizomas de várias naturezas. Tribo urbana afirmando sua diferença, no recorrente símile do homem/ crustáceo, devir-caranguejo, como em Corpo de lama: “se o asfalto é meu amigo eu caminho/ como aquele grupo de caranguejos/ ouvindo a música dos trovões”.

bibliografia

1) bibliográficas principais: ANDRADE, Oswald. Obras • DELEUZE, Gilles. Obras • NIETZSCHE, Friedrich. Obras. 2) bibliográficas secundárias: CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas — Estratégias para Entrar y Salir de la Modernidad. Buenos Aires: Paidós, 2001 • GALLO, Silvio. “Modernismo e Filosofia: o caso Oswald”. Revista Impulso, Piracicaba/SP. Volume 11, n° 24, 1999, pp. 89-107 • GARDEL, André.

O tema da mistura de raças/etnias como fator de especificidade da megatribo brasileira, se apresenta na música Etnia:

“Caranguejos com chipes”. Revista Veredas. Rio: Centro Cultural Banco do Brasil, n° 77, maio de 2002 • GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. São Paulo: Cortez, 1983, 6ª. edição • FERRAZ, Maria Cristina Franco. “Nietzsche Educador: Negatividade, Afirmatividade e Antropofagia”. IN: Nietzsche, Filosofia

“somos todos juntos uma miscigenação/ e não podemos fugir de nossa etnia/ índios, negros, brancos e mestiços/ nada de errado em seus princípios/ o seu e o meu são iguais/ corre nas veias sem parar”. Mistura que surge nos ritmos e manifestações folclóricas globalizadas: “samba que sai da favela acabada/ é hip hop na minha embolada.../ maracatus psicodélicos/ capoeira da pesada/ bumba meu rádio/ berimbau elétrico/ frevo, samba e cores/ cores unidas e alegria/ nada de errado em nossa.”

e Educação. Vânia Dutra de Azevedo (org.). Ijuí: Editora Unijuí, 2008, pp. 101-113 • MUNIZ, Fernando. “O que é isto — a Antropofagia?”. IN: Oswald Plural. Gilberto Mendonça Teles (org.). Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1995 • NETTO, Adriano Bitarães. Antropofagia Oswaldiana: um receituário estético e científico. São Paulo: Annablume, 2004 • NUNES, Benedito. “Antropofagia ao Alcance de Todos”. IN: Obras Completas — 6. Oswald de Andrade: Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1972 • ____________ . Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979 • RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 • ROLNIK, Suely. “Esquizoanálise e Antropofagia”. IN: Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Eric Alliez (org.). São Paulo: Editora 34, 2000 • __________ . “Por um estado de arte: a atualidade de Lygia Clark”. IN: xxiv

As etnias têm seus princípios, raízes, tradições que podem se misturar, pois são humanas, demasiadamente humanas. A diferença surge com o uso político que se faz desses paradigmas: “é o povo na arte/ é arte no povo/ e não o povo na arte/ de quem faz arte com o povo”, numa crítica clara às estilizações oficiais da cultura popular em nome de projetos nacionais-populistas. Fora dessa coerção, esse povo miscigenado, essa cultura híbrida, essas lendas e mitos, sobrevivem numa ambiência pós-colonial com malandragem, ritmo e poesia, como em Enquanto o mundo explode: “um curupira já tem seu tênis importado/ não conseguimos acompanhar o motor da história/ mas somos batizados pelo batuque e apreciamos a agricultura celeste”. Esta canção parece fazer ressoar o texto de Darcy Ribeiro — O Povo Brasileiro — no qual o antropólogo define os horizontes do possível como aquele que conduzirá as forças que nos transformarão, a humanidade, em uma “Nova Roma”. Colonizaremos o futuro. E, por sua vez, que também reverbera a Caetano, que em música célebre ao afirmar da impossibilidade de filosofar fora do alemão, nós ameríndios-luso-africanos, isto é: brasileiros, falantes do português, nos restaria, então, fazer uma canção. Por sua vez essa falsa reatividade, seria trocada e superada imediatamente por: “sejamos imperialistas!!! Cadê? Sejamos imperialistas!!!!”. À moda da canção-manifesto de Caetano Veloso, Tropicália, Chico mistura o orgânico e o high tech, urbano e natural, também torna-se outro, transformando-se no mundo em que se localiza e canta: “trago as luzes dos postes nos olhos/ rios e pontes no coração/ Pernambuco em baixo dos pés/ e minha mente na imensidão”. E é esse espaço de estado alterado da mente vagando na imensidão, recebendo informações do planeta a partir do ato de enfiar sua parabólica na lama, que leva Chico Science a perguntar em A praieira: “Por que há fronteiras nos jardins da razão?”. A resposta, em contraponto, se dá no seu uso musical criativo do universo da ficção científica, dos quadrinhos, da poesia, em que as fronteiras somem, ou, ao menos, estão quase sempre desguarnecidas. Desse modo, forma-se um rizoma que com seu esforço fabulatório e criador propõe blocos de sensação que pelas repetições, devoração e assimilação, instaura o novo. Chico Science & Nação Zumbi empreendeu uma composição de forças que fez materializar em termos sensíveis, nos planos audíveis e tácteis — o que somente a música pode plenamente realizar, as potências liberadoras e criativas presentes pelo pensamento da antropofagia de Oswald de Andrade. Entendemos que o esforço do CSNZ foi o de produzir linhas de fuga ao cenário Pop-Rock brasileiro sob os efeitos de uma estratégia antropofágica. Tratou-se da constituição de um devir-antropofágico da música, liberando suas potências criadoras em uma das muitas e improváveis re-invenções do Nordeste.

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Bienal de São Paulo, Catálogo: Núcleo histórico — antropogafia e histórias de canibalismo. Paulo HERKENHOFF e Adriano PESSOA (orgs.). São Paulo: Fundação Bienal, 1998, pp. 456-469 • SANTIAGO, Silviano. “Permanência do discurso da tradição no Modernismo”. IN: Cultura Brasileira:Tradição/Contradição. Núcleo de Estudois e Pesquisas da FUNARTE. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987 • SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. IN: Cultura Brasileira: Tradição/Contradição. Núcleo de Estudos e Pesquisas da FUNARTE. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987 • SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2004 • SUASSUNA, A. Cadernos de Literatura Brasileira, n° 10. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, novembro, 2000 • VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras • VIVEIROS de CASTRO, Eduardo. “O nativo relativo”. IN: Mana. Programa de Pósgraduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. n° 8(1): 113-148, 2002. • VIVEIROS de CASTRO, Eduardo. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. IN: A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 3) audiovisuais: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. CD. Recife: Chaos, 1994 • Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdélia. CD. Recife: Chaos, 1996 • Curta Metragem (Documentário). O Mundo é uma Cabeça. Roteiro e Direção de Bidu Queiroz e Cláudio Barrozo. Pernambuco, 17m, 35mm, 2004. Acessado no Porta Curta PETROBRÁS — http://portacurtas.org.br/pop_160.asp?COD=3220&Exib=2636 em: 13/11/2009. 4) eletrônicas: Chico Science — a rapsódia afrociberdélica (versão eletrônica). NETO, Móises. Recife: Ilusionistas Corporação Artística, 2007. Acessado no www.moisesneto.com.br em: 11/11/2009.

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Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes: os sertões em variações... Luiz Manoel Lopes

“O que te guarda, a lei dos homens O que me guarda, a lei de deus Não abro mão da mitologia negra Pra dizer eu não pareço com você Há um despacho na esquina do futuro Com oferendas carimbadas todo dia Eu vou chegar, pedir agradecer Pois a vitória de um homem As vezes se esconde num gesto forte Que só ele pode ver” (Lado A Lado B — Letra: Marcelo Yuka Música: Falcão / O Rappa)

A Metamorfose da Ciência Neste início de século xxi ocorrem muitas mudanças no campo do pensamento filosófico e científico, tanto na ciência quanto na filosofia aparecem considerações notáveis sobre o tempo e as singularidades. Na primeira, encontramos a partir dos trabalhos de Ilya Prigogine e Isabelle Stenghers o que se denomina metamorfose da ciência, e que se trata de um novo diálogo com a natureza; esta deixa de ser vista como um simples mecanismo, um simples autômato. A filosofia, por sua vez, sobretudo a partir da díade Deleuze-Guattari, remete o pensamento à relação entre terra e território. Não é prematuro dizer que a metamorfose da ciência apontada por Prigogine e Stenghers, implica na leitura que os mesmos fizeram de Deleuze e Guattari e que estes, por seus lados, o tinham feito de Bergson, o qual afirmara em Evolução Criadora: “o tempo é invenção ou não é nada”. Consideramos que dentro do tema deste Seminário, que trata da reinvenção do Nordeste, podemos articular

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um pensamento filosófico sobre o sertão nordestino redescobrindo nele, suas singularidades, suas durações. Para que o nosso propósito seja bem exemplificado prestemos atenção na citação abaixo na que Progogine & Stenghers assinalam o novo diálogo da ciência:

e a natureza passam a ser expressos por conceitos e não mais por figuras. Na cidade grega de Atenas, a desterritorialização relativa leva ao aparecimento de meios de imanência em que através de conversações, os cidadãos chegam a conclusões que eram impossíveis nos estados imperiais despóticos, que se caracterizavam por um cunho mágico-religioso. Vejamos as precisas citações de Deleuze-Guattari sobre o tema.

“Durante muito tempo, o caráter absoluto dos enunciados científicos foi considerado como um sinal de racionalidade universal; neste caso, a universalidade seria negação e superação de toda particularidade cultural. Pensamos que a nossa ciência se abrirá ao universal logo que cesse de negar, de se pretender estranha às preocupações e interrogações das sociedades no seio das quais se desenvolve, no momento em que for, finalmente, capaz de um diálogo com a natureza, da qual saberá apreciar os múltiplos encantos; e, com os homens de todas as culturas, cujas questões ela saberá no futuro respeitar”. (PRIGOGINE & STENGHERS, 1987, p.5). A ciência se metamorfoseia ao reencontrar o tempo, ao redescobrir o tempo. Os trabalhos de Prigogine e Stenghers giram em torno da ciência do calor com ênfase nas nuanças termodinâmicas; procuraremos articular as noções de calor, terra e território com os sertões que aparece no capítulo v do livro homônimo escrito por Euclides da Cunha em 1902. O motivo desta articulação é justamente o fenômeno do calor, já que a partir da invenção das máquinas a vapor, o tempo da dissipação, da perda da energia calorífica se apresenta como sem retorno, sem reversibilidade, a desordem somente tende a progredir até o estágio final da degradação. A termodinâmica propagou a ideia de entropia, em que a morte térmica estaria presente, de modo latente, no nosso sistema solar a partir da explosão inicial. Os trabalhos de Prigogine e Stenghers são feitos dentro do que eles denominam de termodinâmica longe do equilíbrio; a tendência singular que aparece, em suas experiências em relação ao calor, é a emergência de estruturas dissipativas em meio aos processos irreversíveis. O tempo, neste sentido, deixa de caminhar somente para o túmulo, para a desordem. As singularidades, que aparecem nos processos físico-químicos temporalizados, indicam que mesmo dentro de caminhos e percursos irreversíveis, o novo aparece, a invenção se manifesta e se expressa de diferentes modos e estruturas. Com isto, estes pensadores, deixam em aberto um campo vastíssimo de pesquisas em que as ciências exatas e humanas se aproximam cada vez mais. Nenhuma ciência pode ser concebida e considerada sem o meio cultural onde aparece. Neste ponto, podemos articular os aspectos desenvolvidos pela termodinâmica longe do equilíbrio às afirmações de Deleuze-Guattari sobre o que é pensar. A filosofia, como o aporte de emigrados que chegam numa dada região e encontrando ali, um meio propício para a confecção de conceitos, somente pode ser compreendida quando se vive o movimento em que a terra deixa de ser apenas um território, o que quer dizer que os emigrantes não são somente homens, mas que trazem consigo o movimento em que própria terra ultrapassa o território. A filosofia apareceu, em solo grego, quando se deu o encontro do amigo e do pensamento. O êxodo é um movimento em que homens deixam um território, quando migram de um território para outro. A filosofia passa a ser pensada a partir deste movimento, em que homens deixaram um território e chegaram à Grécia encontrando ali um ambiente próprio para a conversação, amizade e sociabilidade; sem a interferência de uma máquina despótica em que a verdade pertencia a uma dinastia privilegiada. Quando os homens deixam um território, este movimento chama-se desterritorialização e, quando chegam a outro território e, ali se fixam, denomina-se de reterritorialização. É neste sentido que a díade Deleuze-Guattari afirma que a filosofia tem a ver com a terra e o território, a desterritoralização absoluta e a relativa permitem o aparecimento da filosofia. A desterritorialização relativa é aquela que ocorre não somente quando os homens deixam um território, mas quando levam consigo as concepções astronômicas, geográficas, econômicas, históricas e religiosas de um território para outro. A filosofia aparece, como já assinalamos, neste movimento de desterritorialização relativa, mas com um componente diferencial que é a desterritorialização absoluta, qual seja, o pensamento

“Física, psicológica ou social, a desterritorialização é relativa na medida em que concerne à relação histórica da terra com os territórios que nela se desenham ou se apagam, sua relação geológica com eras e catástrofes, sua relação astronômica com o cosmos e o sistema estelar do qual faz parte. Mas a desterritorialização é absoluta quando a terra entra no puro plano de imanência de um pensamento — Ser, de um pensamento — Natureza com movimentos diagramáticos infinitos. Pensar consiste em estender um plano de imanência que absorve a terra (ou antes, a ‘adsorve’). A desterritorialização de um tal plano não exclui uma reterritorialização, mas a afirma como criação de uma nova terra por vir. Resta que a desterritorialização absoluta só pode ser pensada segundo certas relações, por determinar, com as desterritorializações relativas, não somente cósmicas, mas geográficas, históricas e psicossociais. Há sempre uma maneira pela qual a desterritorialização absoluta, sobre o plano de imanência, toma o lugar de uma desterritorialização num campo dado”. (DeleuzeGuattari, p.117). O tempo oportuno para alinhavar, estas questões supracitadas, se apresenta agora, justamente por remeter às desterritorializações absolutas que a própria terra faz quando, em variações climáticas, o calor assola e castiga determinados territórios levando-nos à crença de que tudo vai derreter. A ciência do calor, a termodinâmica longe do equilíbrio, juntamente com a geofilosofia de Deleuze-Guattari passam ser agenciadas à literatura brasileira para que possamos pensar os sertões de novo. Neste momento, o que se constata é a quebra do paradigma mecanicista e vale à pena prestarmos atenção na citação de Prigogine & Stenghers. “Mas a ciência de hoje não é mais a ciência clássica. Os conceitos básicos que fundamentavam “a concepção clássica do mundo” encontraram hoje seus limites num progresso teórico que não hesitamos em chamar de metamorfose. A própria ambição de reduzir o conjunto de processos naturais a um pequeno número de leis foi abandonada. As ciências da natureza descrevem, de ora em diante, um universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais. Descobrimos que o diálogo racional com a natureza não constitui mais o sobrevôo desencantado dum mundo lunar, mas a exploração, sempre local e efetiva, duma natureza complexa e múltipla” 1. (PRIGOGINE & STENGHERS, 1987, p.5). A metamorfose da ciência resulta de uma nova concepção do tempo: a ciência reencontra o tempo e contribui para percebermos que a natureza deixou de ser um autômato, um simples mecanismo, passando a ser considerada como plano de variações intensivas e metaestabilidades. “pois a natureza à qual a nossa ciência se dirige hoje não é mais aquela que um tempo invariante chegava para descrever, nem tampouco, aquela cuja evolução era definida por uma função monótona, crescente e decrescente. Doravante exploramos uma natureza de evoluções múltiplas e divergentes que nos faz pensar não num tempo à custa dos outros, mas na coexistência de tempos irredutivelmente diferentes e articulados”. Não existe tempo mais oportuno do que este para articularmos um pensamento em torno do conceito de sertões. 1  Idem, ibidem, p. 5.

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A Filosofia e o Sertão A conjunção entre filosofia e ciência faz sobressair o modo como à primeira passa a ser pensada no Brasil, sobretudo no Nordeste, no Cariri cearense. Tudo isto requer que saibamos alguma coisa a mais sobre nossas regiões, sobre as peculiaridades que nos constituem enquanto entes singulares e coletivos. O que somos hoje no Brasil em cada região que habitamos? O que a Cultura, atual do Brasil, nos impele a saber sobre o que somos, sobre o que ainda não somos, sobre o que poderemos ser? O que sabemos, por exemplo, do conceito de ser-tão? O paradigma cultural mecanicista nos fazia rejeitar a natureza em suas diferenças qualitativas O que sabemos daquilo que somos e temos quando habitamos o ser-tão e vivemos a sua cultura? Tudo isto é para sabermos, como nesta Cultura, podemos compreender como os indivíduos podem coexistir e ter a posse filosófica de suas singularidades, das singularidades que os constituem. A relação entre o pensamento e a terra, o pensar e o ser, pensamento-natureza aparece na obra de Deleuze-Guattari em livros como Mil Platôs e O que é a filosofia? — digressões primorosas sobre o nomadismo e o povo por vir emergem a toda hora nestes dois textos intempestivos. A ênfase na noção de povo por vir e terra já fora assinalada, sobretudo por Deleuze em seu livro sobre cinema, mais propriamente no segundo tomo intitulado “A imagem-tempo”. No capítulo: “Cinema, Corpo e Cérebro, Pensamento” destaca a invenção do povo, detecta como falta ainda um povo e que é preciso reinventá-lo, como se diz que a reinvenção do nordeste é a invenção de um povo por vir no sertão. Ouçamos, leiamos a citação de Deleuze sobre imprescindível ponto: “É preciso que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não dirigir-se a um povo suposto, mas contribuir para a invenção de um povo. No momento em que o senhor, o colonizador proclama “nunca houve povo aqui”, o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas favelas e nos campos, ou nos guetos, como novas condições de luta, para as quais uma arte necessariamente política tem de contribuir”. (DELEUZE, Imagem-tempo, 2005, p.260). Os sertões quer dizer variações climáticas e de temperaturas, que aparecem como diferenças de intensidade, como coexistência de multiplicidades de durações. O pensamento do sertanejo, do nordestino, varia em consonância com a natureza; o transe instala-se nas mais diferentes manifestações. Quantos sertões existem? Neste ponto, aproveitamos aqui para dizermos da riqueza de nossa literatura e o quanto podemos intensificar nossa prática filosófica ao apreciarmos o que há de pensamento filosófico em livros como Os Sertões de Euclides da Cunha. Vejamos alguns exemplos que existem neste libelo. No capítulo V desse belíssimo livro, o qual muitos filósofos não leram, aparecem considerações filosóficas de suma importância e, podemos articular ao tema das estruturas dissipativas em relação ao calor que leva à quase entropia.

Uma categoria geográfica que Hegel não citou Resumamos; enfeixemos estas linhas esparsas. Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagir sobre o homem, criando diferenciações étnicas: As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas. Os llanos da Venezuela: as savanas que alargam o vale do Mississipi, as pampas desmedidas e o próprio Atacama desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos primeiros. Em que pese aos estios longos, às trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações não se incompatibilizam com a vida. Mas não ficam o homem à terra. A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um

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incentivo à vida pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e desarmar de tendas, por aqueles plainos — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão. Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única da cor: um oceano imóvel, sem vagas e sem praias. Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar à humanidade pelo vínculo nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em corridas doudas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos. Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico. Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que são parte essencial da segunda.

Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes... Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas. Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor. Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra. E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono. Euclides da Cunha ressalta aspectos que contribuem para as diferenciações étnicas e para a economia da terra. Mas, queremos ressaltar aspectos que remetem para um reencontro com a natureza, com a physis, um reencontro com o tempo como invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo. Em se tratando de processo de reinvenção, não podemos de sublinhar a citação de Deleuze sobre o cinema da Glauber Rocha: “O maior cinema de agitação que se fez um dia: a agitação não decorre mais de uma tomada de consciência, mas consiste em fazer tudo entrar em transe, o povo e seus senhores, e a própria câmera, em levar tudo à aberração, tanto para por em contato as violências quanto para fazer o negócio privado entrar no político (Terra em transe). Daí o aspecto tão particular que a crítica do mito assume, em Glauber Rocha: não é analisar o mito para descobrir seu sentido ou estrutura arcaica, mas sim referir o mito arcaico ao estado das pulsões numa sociedade perfeitamente atual — fome, sede, sexualidade, potência, morte, adoração”. (DELEUZE, idem, p.261).

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A composição desses elementos podem contribuir para a elaboração de novos modos de sociabilidades e de pensamentos (filosóficos, científicos e artísticos) que sejam mais condizentes com os nossos problemas regionais e, também um meio de valorizar os potenciais literários e poéticos existentes em nossos territórios. A ciência sendo uma expressão da cultura, já manifesta uma expressão de reencontro com a natureza, com o tempo redescoberto. Mediante tudo isto, agora somente nos resta dinamizar e promover a profusão desses novos modos de pensar e sentir e, para tal teremos que trabalhar muito mais. No entanto, este trabalho não será somente o impor sobre a matéria uma determinada forma, mas sim de encontrar no seio da matéria as singularidades. Trata-se de uma outra cultura onde se enxerga a unidade composta por multiplicidades, por virtualidades. Do mesmo como não podemos pensar as populações, sem as suas culturas, sem os seus climas, sem os seus sertões.

O Sertão, O Mundo Mas, o que mais nos chama atenção é que todas essas questões estão implicadas com outra que podemos chamar de filosófica por excelência: em virtude do quê há um mundo? Os filósofos, a partir do século xviii, tentaram responder a esta questão através de um sujeito transcendental como condição de possibilidades para toda experiência possível. Mas hoje, o que entendemos por ética e política? “A ética e a política não concernem apenas às relações dos humanos entre eles, mas igualmente à relação com o mundo. Que mundo ajudamos a inventar e a fazer existir?”. (PIERRE LEVY, PLISSÊ FRACTAL, 1997, p.36). O problema que enfrentamos hoje é: devemos continuar nos apoiando neste sujeito transcendental? A resposta vai muito mais em direção ao transcendental do que ao sujeito; a vertente que se preocupa em ressaltar que o homem, enquanto sujeito cognitivo, tem o seu fundamento no cérebro, reduz a questão estritamente ao campo biológico. Bergson já nos alertava: “Mas é possível conceber o sistema nervoso vivendo sem o organismo que o alimenta, sem a atmosfera onde o organismo respira, sem a terra banhada por essa atmosfera, sem o sol em torno do qual a terra gravita? (BERGSON, 1998, p.15). Ora, aqui, neste ponto, nada melhor do que utilizarmos o conceito de dobra para não ficarmos presos aos reducionismos. Deleuze sempre nos exorta a voltarmos a acreditar no mundo, vemos por aí que se trata da questão própria da filosofia: o homem e o mundo, a dobra entre homem e mundo. O curioso é que Deleuze quando se afasta da fenomenologia — por esta corrente afirmar que é o homem que pensa e não o cérebro, parece cair no conexionismo cognitivista, justamente por afirmar que é o cérebro que pensa e não o homem. A ênfase no cérebro faz de Deleuze um pensador sui generis, já que o cérebro que ele pensa não é o das conexões e integrações. Ora, aqui é que vemos que Deleuze não é um conexionista, porque não reduz a questão a um fundamento biológico e, também não fica preso no organismo como auto-poiese, como na biologia do conhecimento de Maturana e Varela. Qual o conceito deleuziano sobre o pensamento-cérebro? Não se trata de apreendê-lo como um órgão que possui uma função determinada, mas de pensar como tal órgão que possui tais funções se forma, se individua, ao longo de processos, que se dão como resoluções de problemas em meio a um campo de tensões, em meio a um campo problemático; podemos falar de pensamento-cérebro, de um devir-cérebro dentro do corpo humano onde seu ponto de diferença para os demais órgãos dá-se pela sua plasticidade, pela sua potência de sínteses; tais sínteses não remetem a um sujeito que teria uma atividade já inscrita em seu interior; mas, sim é através delas que o cérebro se torna sujeito. O que pode o cérebro? Deleuze faz uma afirmação que deixa em relevo o que pensa sobre o cérebro: “Não é de surpreender que o cérebro, tratado como objeto constituído da ciência, só possa ser um órgão de formação e comunicação de opinião: é que as conexões graduais e as integrações centradas permanecem sob o modelo da recognição (gnosias e praxias, ‘é um cubo’, ‘é um lápis’...), e que a biologia do cérebro se alinha aqui com os mesmos postulados da lógica mais obstinada”. (DELEUZE, 2001, p.268).

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A pesquisa tratará de enumerar as resistências às linhas de pensamento que, ainda hoje, tentam construir dobras endurecidas e substancializadas, as quais impedem que o pensamento-cérebro seja pesquisado ao modo de uma dobra: como acontecimento e não como substância. Deleuze em toda sua obra filosófica sempre tratou de pensar o acontecimento, a ponto de ter escrito um livro com o seguinte título: Lógica do Sentido; neste livro, se ocupa da questão do sentido vinculada à ideia de acontecimento. Todavia, o que mais nos chama atenção é que na conclusão de um livro de filosofia apareça ressaltada, por Deleuze, a relação entre pensamento e cérebro onde o filósofo apresenta-se como um neovitalista; o cérebro é dito uma força que não age, mas que possui contemplações contraentes, sínteses passivas; o cérebro torna-se sujeito; mas, antes de tudo, possui sínteses que contemplam e contraem aquilo que a matéria dissipa. Na concepção de Deleuze-Guattari, a filosofia tem a ver com a terra e território e, nesta relação aparecem pontos consideráveis sobre o pensamento e o cérebro; o cultivo da terra e do pensamento se aproxima; passar o ancinho na terra e tocar uma viola, uma rabeca, cantar um cordel são cultivos do cérebro e do pensamento. “O cérebro é um volume espaço-temporal: cabe à arte traçar neles novos caminhos atuais”. O pensamento do sertanejo não são neurônios amarelos fritos. Nas variações climáticas há o transe, podemos falar que nas fendas sinápticas as ondas de calor que percorrem o entre neurônios, podemos falar de um transe-sertão, de um trans-sertão, de um transe-sertanejo que deriva das variações e daí é que brota e que vinga a arte, a cultura do sertão. Poderíamos até esboçar uma ontologia que não cuidasse mais do ser; e sim, do trans-ser? Poderíamos pensar e ser tão ousados? “Esta interrogação fundamental pode desdobrar-se em três questões ético-políticas particulares. Em primeiro lugar, enquanto cidadãos do mundo total o que é feito de nossa responsabilidade para com a Terra, seus oceanos, suas florestas, suas massas humanas e seus climas? Em que planeta queremos viver? Em segundo lugar, enquanto fonte de mundos particulares, de que modo devemos agir para com os outros mundos, produtos de formas de vida, de cultura, de significação e subjetividades diferentes? Que tipos de relação estabelecemos com modos de ser que não são os nossos (mas com os quais estamos, no entanto, sempre em relação pelas redobras de nossa participação com a mecanosfera)? Em terceiro lugar, que atitude fundamental adotamos para com o transmundo? Mantemos livre a possibilidade de emergência de novos agenciamentos de enunciação? Favorecemos ou, ao contrário, restringimos a produtividade ontológica? Mantemos a dobra em sua essência de acontecimento, ou trabalhamos para endurecê-las em oposições, estratos, substâncias? Escolhemos as individuações sempre capazes de receber novas dobras ou as individualizações rígidas e fechadas? A ética se relaciona com o mundo sob estas três faces: a Terra, os outros mundos (o próximo é apenas um caso particular de outro mundo), e o transmundo das dobras, dos agenciamentos de enunciação e dos processos cosmopolitas. Três figuras que não cessa de destruir, de metamorfosear e de produzir o ser em sua infinita diversidade”. (PIERRE LEVY, PLISSÊ FRACTAL, 1997, p.37).

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No cinema tudo isto já foi feito e ouçamos mais uma vez uma citação de Deleuze, sobretudo que apresentava os sertões em transe: “O que resta, então? O maior cinema de ‘agitação’ que se fez um dia: a agitação não decorre mais de uma tomada de consciência, mas consiste em fazer tudo entrar em transe, o povo e seus senhores, e a própria câmara, em levar tudo à aberração, tanto para por em contato as violências quanto para fazer o negócio privado entrar no público (Terra em transe). É desse modo que, na obra de Glauber Rocha, os mitos Do povo, o profetismo e o banditismo, são o avesso arcaico da violência capitalista, como se o povo voltasse e duplicasse contra si mesmo, numa necessidade de adoração, a violência que sofre de outra parte (Deus e o diabo na terra do sol). A tomada de consciência é desqualificada, seja porque se dá num vazio, como no caso do intelectual, seja porque está comprimida num vão, como em Antonio das Mortes, capaz tão-somente de captar a justaposição das duas violências e a continuação de uma na outra” (DELEUZE, Imagem-tempo, 2005, p.260-261).

Após tudo isto, somente me resta alterar o título desta conferência dizendo: Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes: os transertões em variações ...

bibliografia BERGSON, H. (1990) Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, Tradução de Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990 • CUNHA, Euclides. Os sertões, Rio de Janeiro, Editora Record, 1998 • DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo; tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro, São Paulo: Brasiliense, 2005 • DELEUZE, G., GUATTARI, F. O que é a filosofia? ; tradução de Bento Prado Jr e Alberto A. Muñoz, São Paulo. ed: 34. 2ª edição: 1997 •___________________ Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia, vol.5 ; tradução de Peter Pal Pelbart e Janice Caiafa — São Paulo: ed.34,1997 • LEVY, Pierre. Plissê Fractal. tradução de Soraya Oliveira in O Reencantamento do Concreto — Cadernos de Subjetividade/ Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP — vol.1, n.1 (1993) — São Paulo, 1993 • MATURANA, H & VARELA, F. De máquinas e seres vivos: autopoiese — a organização do ser vivo; tradução Juan Acuña Llorens, Porto Alegre: Artes Médicas, 1997 • PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. tradução de Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira, A Nova Aliança: metamorfose da Ciência. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1984.

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Ontologia do Cariri: A Cidade Atravessada por Múltiplos Olhares Luizan Pinheiro

1. Ontocidade “Por ser de lá do sertão, lá do cerrado... Uma cidade. Qualquer cidade. Qualquer. Seus acontecimentos, seus perfis, suas zonas de intensidade, abrem um campo de experimentação para o encontro com sua dimensão ontológica. Encontro que se funda em gestos, cheiros, sons, cores, texturas, prazeres da matéria-cidade, da matéria-mundo. Na direção dessa reinvenção do Nordeste. Na direção de uma reinvenção ontológica pensada com Foucault ao dizer: “onde o ser se diria, do mesmo modo, de todas as diferenças, e só se diria das diferenças”. 1Mas numa diferença algo sentida numa sua carnação, pois é de uma carnação que se trata. Um composto que vivifica o tempo, a história, as gentes moventes no corpo-cidade deslocada em seus acontecimentos; a levar-nos para muitos lugares que nos pegam, tocam, e que de algum modo, marcam: Vidas Secas de Graciliano, Os Retirantes de Portinari, Lamento Sertanejo de Dominguinhos e Gil, as figuras de Mestre Vitalino, Agora, Mestre Noza descoberto desde aqui. O encontro com a região do Cariri lança-nos na direção de uma ontologia tecida pelas matérias-gentes-acontecimentos das cidades que se erguem no solo nor-destino. E que investem nossa fala-olhar de força neste estar aqui. Evoco sentidos da cidade na tessitura das matérias-gentes-acontecimentos que carregamos, deslocamos, encontramos, celebramos e que remetem a um estar aqui. E adentrar o corpo das cidades do Cariri é necessário. Invadi-las até suas entranhas; e levar a carnação de sua história e beleza; e deixar as marcas como dádiva do encontro; e experimentar seu corpo numa cópula estética; e ligar-se ao lugar por uma afetividade dada no encontro desses corpos. Amalgamando os instantes daqui com o que carregamos na carcaça pelo mundo — o que trago do norte, o que trazem do sudeste, do centro, do sul... O que somos-sentimos. E Fernando Pessoa acena de sua mesa de café: “o que em mim sente está pensando...” Lá do interior do mato, da caatinga do roçado. Eu quase não falo... Agora a fala é percurso, desenho, mapa, imagem, compostos não tanto por este que falescreve, mas por todos que aqui estão, chegam, passam, vão, voltam. Seus trajetos e gestos pela carne do Cariri revestem-se de um sentido sempre novo. A cada acontecimento, novos sentidos se criam. A cada encontro, histórias novas a tecer tempos,

1  REVEL, Judith. O pensamento vertical: uma ética da problematização. In: GROS, Frédéric (Org.) Foucault, a coragem da verdade. São Paulo: Parábola, 2004. p. 81.

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erguer memórias, moradias, moradas. Para além dos clics das máquinas digitais. É necessário um estar atento para cada novo acontecimento para (se) descobrir (n)esse lugar carregado de significados e sentidos. E como revelá-los se a matéria pulsa, muda? Como evocá-los se tudo o que se pode dizer se esvai num ínfimo de tempo? Talvez possamos dizer então com Foucault a dizer da linguagem de Raymond Roussel, “que não quer dizer nada além do que ela quer dizer; a maravilhosa máquina voadora que, munida de ímãs, velas e rodas obedece a ventos calculados e deposita sobre a areia pequenos seixos esmaltados de onde nascerá uma imagem em mosaico, apenas quer dizer e mostrar a extraordinária meticulosidade de sua organização”.2 E como se nessa mesma densidade exteriorizada do gesto, compor uma imagem que de fato possa ser tão somente o sentido dado, ou a possibilidade de uma outra ordem a gerar outros tantos sentidos a produzir afectus sobre as gentes. Gentes que compõe o sentido do lugar pela palavra que recria e que num dado momento são captados por olhouvidos de outros. Outridades re-criadoras desse nordeste que os habita e grita dentro deles. Cada um a seu modo submerso num estado de recriação desses nordestes novos. Os meus, os seus ou os de um certo Graciliano a perceber o lugar, as gentes em Vidas Secas: “não era propriamente conversa: eram frases soltas espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto.”3 Ponho-me a imaginar Graciliano com seus olhouvidos abertos a filtrar as gentes do lugar, submetendo-os ao porvir das palavras, a revelar um sentido oculto que de algum modo achamos que já sabemos, ou entendemos: nunca é suficiente revolver a materialidade das cenas! A escuta abre-se para o mundo num grito inscrito na página histórica do romance: “se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele.”4 E poderíamos evocar mais e mais o olhouvido de Graciliano para que nos desse em sequência essas pinturas que deixam em nós uma estranha angústia ou o que Maria Celina Novaes Marinho percebe no mesmo registro das vozes do narrador e personagem: uma espécie de sentimento de desilusão. Eu quase não saio. Eu quase não tenho amigos... Uma pintura. Qualquer pintura. Qualquer. Assim um tanto triste, um tanto trágica a decifrar o lugar, os corpos, o tempo. Como a atirar-nos paisagem adentro. Ela está por aí decifrando odores, dores e dias áridos. Os Retirantes agora somos nós. Vindos de outros tantos lugares carregando um mundo longínquo deste Cariri que aqui nos toma, mas ao mesmo tempo marcado em nossa existência, pois há um nordeste que pulsa aqui-aí dentro.

Vidas Secas (1963) – Nelson Pereira dos Santos

2  Dizer e ver em Raymond Roussel. In: FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. (Org.) Manoel de Barros Mota. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 7. Col. Ditos e Escritos III. 3  In: MARINHO, Maria Celina Novaes. A imagem da linguagem na obra de Graciliano Ramos: uma análise da heterogeneidade discursiva nos romances Angústia e Vidas Secas. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP/ 2000. p. 84. 4  Ibidem. 87.

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E passamos à condição de retirantes, mas numa direção inversa, pois agora nós é que nos deslocamos constantemente, de lá pra cá, dos lugares que nem sempre sabemos direito onde. Em busca do tempo perdido. Do tempo que se foi num dentro de nós esvaziado. A busca pelo tempo da reinvenção. Tal como o pintor Paul Gauguin que amou a luz na Baia da Guanabara,5 aquele lobo atrás da porta6 a se reinventar no Taiti dele. Como nós aqui no Cariri. É de pintura que se está a falar. Uma pintura. E nessa reinvenção aqueles traços, aqueles olhos esbugalhados, gritando na nossa cara por um pouco mais de dignidade que insiste em nos faltar. Ou que insistimos em negá-la pelo que se nos canta pela boca de belas sereias. Uma pintura mais que uma pintura. A tortuosidade cadavérica do corpo a espreitar nossos olhos vivos numa vivacidade esmaecida em tons digitalizados. Agora estamos bem no Photoshop! E aqueles olhos insistentes gritam: quem são vocês a nos olhar?! E aquelas cores nos chamam à reinvenção: os terras, os ocres, os azuis, os vermelhos compondo a cena. Não há pose. Nem clic. Eles não estão lá. É de outros lugares que se trata. Cá estamos nós de novo na cena! O Cariri é aqui, a reinventar-nos. Portinari sim, mas Mestre Noza. Portinari sim, mas José Lourenço e a força da xilo a afirmar a universalidade de seusnossos ícones: Lampião e Maria Bonita. Corte. O cheiro de tinta prensado pelos veios da madeira a adentrar o corpo do papel ou do azulejo. O cheiro de doce no ar: pois as barracas de rapadura nos enchem as narinas de desejos. A dureza dos dias sob a tez adocicada de tantos mistérios. A dureza que não vem com o rapa a derrubar tudo, a desestabilizar sonhos e sobrevivência, pois se vier cantemos então com o Rappa: “a minha alma está armada e apontada para a cara do sossego...” Tanto faz? O que importa? O vôo pleno da imaginação no encontro com o aqui. O Cariri: um retrato instantâneo a revelar-se belo neste pouco de tempo. Mas que já nos atravessa o corpo e a alma tornando-se memória nova que se ergue deste solo pátrio que nos ver re-viver.

Retirantes – Candido Portinari (192 X 181 cm), 1944

Lampião e Maria Bonita – José Lourenço – Gravura sobre azulejo

5  O Estrangeiro de Caetano Veloso do disco O Estrangeiro (1989). 6  Gauguin, Um Lobo Atrás Da Porta (1986), filme de Henning Carlsen.

Personagem de Mestre Noza – Escultura em madeira


Pau-De-Arara não veio. Eu gosto de Juazeiro, Crato, Barbalha, Nova Olinda, Petrolina... Os sons. Os gemidos a nos deixar vagar sem rumo sob o céu destas bandas. A acolhida no gesto simples ao nos ofertar o doce. Seja de Buriti talvez. Seja. Ou o doce olhar que nos abre para novas estadas. O através dos encontros ou as descobertas de tantos outros em nós. E as palavras se agitam aqui dentro. Estou a ver coisas. Estou a ver gestos... Estou a ver... Digo. Porque “dizer tem o poder maravilhoso de dar a ver”8 . É Foucault outra vez na insistência de me tomar pelas mãos e dar a ver o oculto. Toda essa busca pela reinvenção a gritar aqui dentro queda-se num dar a ver. O oculto se revela no líquido fotográfico de nossos desejos. O escuro que nos dispõe novos encontros. Os sapos de novo. Chapados. Nós chapados. Nós atados. A noite como uma batalha vencida. Georges Bataille: “o que chamo de noite difere da obscuridade do pensamento; a noite tem a violência da luz. A noite é a juventude e a embriaguez do pensamento.” Cá estamos nós de novo. Novos. Na cena da noite do pensamento. Ou nesta tarde toda anoitecida em nós. Sapo morto atropelado numa rua de Juazeiro – Foto do Autor

Eu quase que não consigo. Ficar na cidade sem viver contrariado. Aqui é a cidade de novo a nos mover. A nos calar para a escuta de seus sons. Como no através da noite a busca de partilha do diálogo inconcluso com os amigos. Ou o toque dos dedos da cidade em nossos ombros. E na travessia simples pelas ruas de Juazeiro o encontro com os sapos mortos. Ou os vivos. Nós, os sapos encantados a requerer o beijo que nos desencante para nossa busca de reinvenção. Mesmo a saber com Augusto, o dos Anjos, que “o beijo amigo é véspera do escarro” ; e de outro modo que o toque da cidade em nossos ombros tem na sua carnação a sabedoria de que “a mão que afaga é a mesma que apedreja”. Isso se afirma em nós que também guardamos o pequeno demônio de cada dia. Opaco assim vago. Roto assim parco. Feio assim tonto. Cáustico assim meio. E entre os dedos, os veios a nos fazer velhos e belos. E nos vem de novo os veios da madeira tecida pelas mãos de José Lourenço, ou Samico, ou... Ou a força da palavra. É pela palavra gritaria Ney Paiva de sua nave do nada a atravessar o tempo no estremecimento de meu ollhouvido: os vocábulos fúnebres quando se juntam ocultos dentro de nós só os olhos podem tocar isso poderia ter sido dito por rosário fusco mas foi por mim ou terá sido por ti? nem estou mais certo [teus olhos ainda escutam?]7

Eu quase não falo. Eu quase não sei de nada. Não sei mais nada. Apenas parti na nave do nada num através dos trechos íngremes. E o que dizer mais... Nada. ...Sou como rês desgarrada. Nessa multidão boiada caminhando a esmo. Juazeiro do Norte, 17 de novembro de 2009.

2.Post-Scriptum do Cariri: ontoeu. A claridade se revestiu em calma e uma saudade bateu inevitável aqui dentro. O Cariri ficou para trás. Os cheiros agora são outros, os sons remetem a uma modernidade expressada na agitação da cidade grande. Estou vendo coisas... De fato, estou vendo caras cansadas, mas lembro aquelas cheias de vida, de arte, de alegria, de outras verdades reinventadas desde aquele Cariri que se foi. Tomaram seus caminhos na direção de seus lugares, mas levaram na bagagem os souvenirs afetivos e muitas histórias em seus corpos e mentes. Só por um ínfimo de tempo volto lá em pensamento: a Casa Grande em Nova Olinda onde as crianças brincavam sem perceber o tempo que as acometia; um destino-nordeste que as aguarda para inscrever no tempo as histórias de suas gentes. Agora o acontecimento se dá de forma inequívoca, pois nunca mais serei o mesmo depois do Cariri: trago nos pés a sandália de couro do artesão de Nova Olinda: o Cariri habita em mim como marca do que dizíamos da cópula-estética.

Por ser de lá na certa por isso mesmo. Não gosto de cama mole. Não sei comer sem torresmo... Quem somos nós aqui neste lugar. Talvez Foucault de novo nos ajude a decifrar: “não me digam quem eu sou, não me peçam pra permanecer o mesmo”. Essa errância ou essa mutabilidade é o que talvez no fundo faça algum sentido. Encontrar o que nos cabe nas cidades. Ou as que nos habitam. Ou o que é possível de uma sabedoria da escuta. Os sons. Os sons... Inevitáveis os sons, pois é desse Cariri que já estava aqui dentro. E o Último 7  PAIVA, Ney Ferraz. Nave do Nada. Recife: FCCR, 2004. p. 13.

Sandália de couro de artesão de Nova Olinda

8  Dizer e ver em Raymond Roussel. In: FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 11.

Vidas Secas (1963) – Nelson Pereira dos Santos

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Cena da peça: de Santiago do Chile, 1973. (Encenação: Tiago Fortes e Júlia Sarmento)

Um tempo que se agitou e marcou novos trajetos. Necessários trajetos. E nesse estar de volta muitas vozes ressoam aqui dentro: “se você pretende, saber quem eu sou, eu posso lhe dizer...” Eu, o motorista e todos na van com Roberto Carlos a se revelar trilha sonora na trilha da van em velocidade rumo a Crato, ou num seu rebatismo esdrúxulo: Cratolândia. Estou aqui a sentir o cheiro da comida do Coisas do Sertão: uma vivacidade reinventada na carnação de uma certa carne de sol. O chapéu do cangaceiro, a espingarda para foto digital que os visitantes arvoram-se orkutar nos álbuns fotográficos para dizer a todo mundo que estiveram lá, ali, acolá. Os sons em brasa: Brasov e suas performances delirantes de riso e ironia desmedida. A (c)erva correndo solta entre os mundos dos mundos, molhando a garganta das gentes encantadas, imantadas de teatro que produz os efeitos catárticos no meu peito sangrado: Bodas de Sangue e Garcia Lorca trespassado em sonoridades novas: “desperta a noiva na manhã da boda...”. Meu choro desmedido num absurdo instante a me imaginar outro, só, vazio, tristemente tonto, mas uma mão nos meus ombros da amiga querida Bel a acolher o paraoara esvaído em lágrimas. Santiago é aqui, estremecido no corpo nu da mulher desesperadamente tomada pela loucura podre de milicos dementes. A sua própria loucura tomada numa dimensão textual andreniana: “levanta-te!, agora eles já chegaram, eles chegaram,*** no átimo de tempo que separa um grito teu e outro a dizer da próxima desgraça a chegar, estive aí no colo do útero a escutar, estou a ouvir-te ainda, estou a dizer-te levanta!”. 9

O desfalecer de todos os sentidos atados em corpo, vídeo e luz. Santiago é aqui. Sim aqui. Quedo-me agora neste imenso vazio aqui dentro e ponho-me no matutar de tantas imagens que o Cariri me legou, atiro-me na curva do tempo à espera de outros mundos, vidas, encontros. Por ser de lá do sertão, lá do cerrado... Fim.

Belém, 30 de novembro de 2009.

9  Fragmento do texto da peça de Santiago do Chile, 1973. Texto de André Queiroz e direção de Tiago Fortes.

bibliografia ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. 42. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998 • FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. (Org.) Manoel de Barros Mota. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 7. Col. Ditos e Escritos iii. GROS, Frédéric (Org.) Foucault, a coragem da verdade. São Paulo: Parábola, 2004 • PAIVA, Ney Ferraz. Nave do Nada. Recife: FCCR, 2004. • QUEIROZ, André. de Santiago do Chile, 1973. Texto digitalizado.

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Marias Bonitas: entre a mulher mítica e as mulheres reais, uma fratura no sertão Márcia Tiburi Para Daniel Lins

Questão preliminar Dados apresentados no Portal da Violência contra a Mulher informam que cresce estatisticamente o número de assassinatos contra mulheres em todo o Brasil e, de modo muito sério, nos estados do Nordeste, entre eles o Ceará. Crimes passionais de um modo geral demonstram um rio de afetividade mal resolvida — aquele que não seca em uma geografia de seca — que atravessa os relevos da cultura criando fraturas erosivas. Rio estranho em cujas águas nos banhamos sem cessar e, no entanto, sem que tenhamos chance de entender seu leito, seu todo. Só podemos conhecer suas amostras, um copo de água aqui, outro ali e o rio a nos carregar. Se este rio seco define o mote da violência, está dado o intangível de seu caráter no contexto da cultura. A violência é a ontologia que se faz política. Na contramão de qualquer ética, por ser justamente a sua destruição, ela se caracteriza por ser intangível a qualquer chamado de uma racionalidade que vise diálogo, consenso e acordo. Por isso, como coisa sempre mal resolvida é que podemos dizer que ela se define como o que e por meio do que as relações se resolvem mal. Deste ponto de vista, muitos — desde os filósofos do contrato social — veem a violência como algo que pode ser controlada pela lei e pela punição. Mas há mais na violência do que supôs até aqui a nossa filosofia. Há uma pergunta que precisa ser recolocada nos seguintes termos: haverá solução para a questão do irracional a partir da qual costumamos compreender a violência se nem conseguimos delimitá-lo claramente como questão? Afinal, se a violência é um rio — que em meio à seca não deixa de ser seco — só temos como reter dele um copo e, muitas vezes, a pequena amostra do seu conteúdo nos explica o que a violência tem a dizer. Impossível falar dela em termos de dna, a mínima partícula explicativa da violência. Compreender a violência crendo que a compreensão será a solução para a sua prática não é a solução e, no entanto, não é possível descartá-la nem sugerir outra. Neste sentido, uma pergunta mais prática que se expõe nos termos de “como conter a violência?” não tematizaria a ingenuidade com que é tratada a questão desde que se supõe que um chamado racional cancelaria seu processo? Há uma dialética perversa desenrolando a violência que inclui a racionalidade apenas como meio para sua prática no caso de violências administradas e programadas como é o caso do nazismo e dos processos de tortura dos regimes totalitários. Esta dialética perversa que envolve também vítima e algoz é bem melhor compreendida nos termos de um círculo vicioso. Ela vem explicar que a violência é, na verdade, o cenário da falta de

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sentido que só pode ser percebido quando estamos fora dela. O papel do algoz e da vítima não pode ser medido em termos de compreensão e racionalidade. Quem se encontra dentro vive, mesmo que negativamente, uma espécie de sentido total mesmo que pela total ausência de sentido. Na total falta de sentido, a falta já é o sentido que se estabelece como teatro da violência. Como uma espécie de metafísica invertida a violência é turbilhão que arrasta tudo o que possa ser chamado de real para dentro dela mesma. Por isso, é que a violência não é algo que se possa simplesmente dizer que se deva conter, sobretudo quando se trata da combinação bombástica da ação de homens contra mulheres muitas vezes com a confirmação das próprias mulheres. Estamos, neste caso, certamente, falando de uma violência negativa contra as mulheres. Falar em uma violência positiva, como sugeriu André Queiroz no momento do debate sobre este texto, nos levaria a pensar o lugar do feminismo, o que fugiria à intenção deste texto. Portanto, a intenção aqui é muito mais entender a violência como destruição negativa da potência humana e demarcar que seu uso por parte dos homens sempre foi negativo das mulheres e não apenas contra as mulheres. Assim é que à medida que toda violência é soberana, cabe pensar a qualidade, seu estatuto, nas mãos de homens que sempre a tiveram como apanágio, sorte e muitas vezes, uma regalia. O que podem as mulheres em relação a isso? Nestes termos, se é preciso pensar a soberania masculina, do mesmo modo, é preciso verificar, a negatividade das mulheres, como figuras vitimadas pela violência considerando o que poderia ser uma inversão do processo. O que significaria a soberania feminina? Seria ela também violenta? De que espécie de violência estamos falando de fato? Violência é o nome de uma política, a do patriarcado, que não conhece outro método senão a atuação biopolítica — aquela que se dá sobre corpos — com armas mais ou menos sutis que vão da linguagem à ação propriamente física. Seria ingênuo separar uma da outra. É preciso, portanto, pensar a desproporção e o ódio como categoria política do patriarcado no contexto do poder biopolítico. A esperança que muitos nutrem no âmbito de certa publicidade de uma cultura da paz — e, portanto, na contramão da violência — é de que ela possa ser destruída por algum meio que não ela mesma. É preciso perceber a ingenuidade desta posição. Certamente muitos esperam por alguma solução mágica. A pergunta “o que seria tão forte quanto a violência para combatê-la?”, jamais ocorre a estas pessoas que com a confiança ingênua na paz ao mesmo tempo não devem abandoná-la. Mas quem ao optar pela paz teria a chance de ponderar o ódio como fator que torna toda relação desproporcional? A violência de gênero deixa clara a desproporção dos corpos e dos discursos e só pode ser entendida a partir da compreensão do ódio contra o outro. O que seria mais forte do que o ódio, que suas manifestações concretas afirmadas na ponta das facas e nas balas das armas? A violência de gênero é mais uma das tantas manifestações de ódio à diferença em nossa cultura e talvez possamos dizer que ela é a mais original, a mais primitiva por ser justamente uma inversão do necessário laço de amor (calor e aconchego fisicamente falando) que, em uma combinação com a violenta capacidade de lutar, nos permitiu sobreviver. Força tecnológica, física e psíquica são manifestações concretas deste ódio. Neste sentido, não basta tratá-la como um poder barato, nem dizer que “violência é destruição do poder” como fez Hannah Arendt; nem pedir a quem pratica que tome consciência do que fez, ou do que pode fazer; saber que se praticou o mal — ou que ele pode ser praticado — não é solução para evitá-lo, sobretudo quando o ganho por parte daquele que o realiza é alto. Denominá-la como o “mal” acaba por envolvê-la em certa aura mística que também não nos ajuda. É preciso pensar hoje neste curioso lucro como realização perversa do desejo que a violência traz. Devemos fazer foco sobre a violência considerando a dialética perversa que a qualifica enlaçando vítima e algoz, mas também a sociedade em geral por meio de uma mentalidade do medo. Dizer que a raiz da violência é sempre profunda e suas manifestações de superfície, a dor e o medo, atrapalha a sua própria compreensão. Quem é vítima não tem como entendê-la. Quem a pratica só visa o próprio ganho. Voltamos aqui a esta fundamental questão: o tamanho deste ganho define que estamos falando de corrupção e de perversão. Quando tais ações tornam-se formas de ser, dizemos que são hábitos e, neste caso, não estamos mais falando de algo contornável. Trata-se

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de um modo de vida. E, mais ainda, da redução da vida à sobrevivência na qual estamos contidos. A violência como forma da vida não está simplesmente em nós, antes, é ela que nos domina, nos organiza, nos dá sentido como falta de sentido. Quem pratica a violência, por sua vez, é movido e comandado pelo lucro físico e psíquico, outra expressão para dizer gozo. A total autorrealização de vítima e algoz (seja um indivíduo, um grupo ou uma sociedade) que gozam no medo. Neste contexto da economia do desejo, é preciso perguntar qual seria a vantagem de viver sem ela? Fica fácil ver que a vida já não é outra coisa para quem pratica a violência e é assim que podemos ver que o gozo da violência encontra certa permissão social. Aqui uma questão fundamental sobressai. Trata-se da permissão social do assassinato contra mulheres que devemos perceber e analisar. Desamparadas por qualquer política incapaz de ver urgência na questão, a vítima sacrificial no contexto dos sacrifícios profanos, sobrevive cotidianamente à violência ao mesmo tempo que se entrega ao sentido velado que organiza a vida particular como parte de sacrifício no grande ritual do patriarcado. A devoração do corpo sacro — ao mesmo tempo banido: amado e odiado — de uma mulher encontra sua confirmação na pornografia da sociedade do espetáculo que publicizando a carne sacrificável informa como devemos ver a vida do ponto de vista de nossa entrega à barbárie. É neste sentido que podemos voltar à questão da violência contra a mulher. Violência que não cessa por tratar-se de um gozo disponível em escala social. E como dizer gozo não é falar de prazer puro e simples, mas de autorrealização física e psíquica, é possível dizer também que nesta escala o simbólico e o físico — que constituem a violência em sua dupla face — já não se separam. Deste gozo profundo é partícipe a lei, o sistema, a ordem social, ossatura de nosso ser coletivo, que não deixa espaço para quem se contrapõe a ela, a não ser fomentar aquilo mesmo que critica pelo efeito de desafio. A violência é o fenômeno de força que impede a sua própria contraposição e quando a permite, é muitas vezes, com o efeito de seu próprio fomento. A violência neste sentido é um absoluto sem força contrária. À medida que ela irrompe o que pode contê-la é apenas o seu efeito de evanescimento, sua passagem. O fato de que sobrou a terra arrasada. Quem é soberano o é pela violência, sujeito da possibilidade de praticá-la. Por isso a dificuldade de aprovar leis favoráveis às mulheres, ou de contar com as autoridades quando se trata de defesa ou punição, o que faz pensar que estamos de fato diante de um “padrão cultural” (Blay, 2008) fortíssimo, do qual não é possível separar a cultura sem antes entrar na fratura da própria cultura e correr o risco de perder o que sobrava do osso racional ao qual supomos se deva a sua sustentação. A violência contra a mulher só cessará no contexto de uma revolução — no sentido de mudança estrutural profunda. Enquanto esta mudança é atualizada cotidianamente por quem luta por direitos na prática, resta a quem está na mira dos assassinos, a fuga como quem, na floresta, foge tanto dos lobos quanto do caçador. Se não resta a muitas mulheres mais do que a fuga, é porque quando se trata de pensar a violência, a sociedade do homo homini lupus realiza-se diretamente contra “mulheres”. Desde que não desejamos que assim seja temos que permanecer na luta e, contra a violência masculina, sustentar uma violência qualitativamente outra: da análise, da crítica, da pesquisa e da desmistificação. É preciso, portanto, perceber o jogo de forças, jogo de opostos políticos, aquilo que Heráclito entendeu como a ordem da dialética. É preciso, portanto, pensar a luta e especializar as armas e conhecer as estratégias do inimigo. Mesmo que em nosso contexto social já não se possa mais entender a existência de um “inimigo” que não seja visto pelo senso comum que o mascara como não sendo algo mais do que paranoia de doentes que se sentem gratuitamente perseguidos. O senso comum é este inimigo. Sua expressão contra a luta feminista é uma das armas mais poderosas do patriarcado. Do mesmo modo, é preciso enfrentar a perplexidade que a questão, como o enredamento da coivara que assistimos avançar com o vento, não deixa de promover. Os genocídios do século 20 foram assustadores porque mostraram um incremento da violência jamais visto em termos estratégicos e tecnológicos, ou seja, em termos racionais. O século 21 herda a consciência sobre a violência e os direitos humanos que surgem na luta contra ela, mas pouco adianta invocar a racionalidade humana, até porque não há fundamento para sustentá-la. Do mesmo modo, em plena

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era digital, no ápice do avanço tecnológico, a visão da violência contra as mulheres assusta porque soa como ainda mais desproporcional do que em épocas pré-feministas quando a voz do grupo — metade da humanidade numericamente falando — não participava nem sequer formalmente da democracia. Hoje, a participação ainda que formal das mulheres na democracia é o prenúncio de possibilidades de justiça. Direitos das Mulheres já fazem parte institucional do acordo universal dos “Direitos Humanos” há quase 20 anos. Queremos que um dia esta data não seja mais que memória da barbárie. Por enquanto, é preciso fazer a comparação: mulheres ainda precisam ser protegidas — mesmo que nem sempre sejam — de ameaças sofridas por homens enquanto homens não precisam ser protegidos de mulheres. Eis o sinal mais claro do estágio da questão em nossa sociedade quando se trata de pensar em direitos femininos. No olho do furacão histórico, enquanto mulheres ainda fogem de homens como bichos assustados de seus predadores, mostrando que não se trata de uma relação de inimizade, nem muito menos da guerra dos sexos inventada por algum publicitário jocoso, é preciso ir além das positividades dialéticas e ver sem mascaramentos que se trata de uma relação de algoz e vítima, de sujeito e objeto. Não podemos retroceder à ideia de que uma vítima quer ser sacrificada que justificaria o sacrifício. O desejo do ponto de vista de uma relação ética seria o de uma relação de sujeitos livres que respeitem a si mesmos, o que infelizmente já virou entre nós algo como romantismo ingênuo conforme a construção de muito do discurso vigente. Na inexistência da ética, não é possível considerar os direitos das mulheres sem a passagem pelo sofrimento sob as leis dos homens que dão significado tanto à lei quanto à violência. A entrada em cena de um direito das mulheres, neste quadro de autorreferencialidade do patriarcado, é, de fato, um soco na boca do estômago da história. (Não é possível deixar de dizer que os direitos das mulheres podem bem ser simbolizados pela figura de Maria da Penha em sua cadeira de rodas. Imagem da dor que se transforma em imagem da luta, ela mesma marcada pela dor. Bom lembrar que no cinema, muitos anos antes dos acontecimentos reais da vida desta pessoa, o filme Martha de Fassbinder antecipava no nível de um inconsciente óptico o caráter prototípico da imagem de uma mulher no esplendor de sua juventude que, casada, se torna louca, amedrontada até a impotência e chega à entrevação em uma cadeira de rodas. Maria da Penha tornou-se a heroína política de todas as que sucumbem à violência doméstica. Ela é a exceção a uma regra urgentemente questionada, mas jamais explicitada. Trata-se da condenação à morte real das mulheres em uma sociedade patriarcal. Eis o que me proponho a pensar hoje em seus substratos mais infamantes, aqueles das armadilhas das representações e simulações dos quais mulheres são atavicamente vítimas). Permitam-me, no entanto, dizer algo mais antes de chegarmos à breve análise que desejo empreender aqui. Faz parte do processo de emancipação de nossa sociedade a sua própria autocompreensão. É neste sentido que eu gostaria de voltar à tese acima já insinuada sobre o caráter soberano de toda violência. Neste aspecto, não há violência do pensamento — de um mero texto ainda mais em um país analfabeto — que possa competir com a violência da ação. O jogo de forças é desproporcional. É preciso perceber que, em um mundo violento, desqualificamos a teoria como reflexão que torna o real algo concreto. A teorização responsável é vista em nossa sociedade patriarcal como algo por demais feminino. Desqualificam-na aqueles que esperam a virilidade da prática, a da força, enquanto não supõem que toda prática sem teoria é cega. Por falta de senso quanto ao teor da desproporção entre teoria e prática perdem de vista o sentido da violência que está na base de sua própria relação, aquela que se dá no fio tênue que une teoria e prática. Não devemos, no entanto, despontencializar a teoria, mas o contrário. Ainda que seja certo que a teoria não atinge o objeto, muito menos um objeto como a violência que seria o seu mais exato antagonista, é preciso incrementá-la, fortalecê-la. Embuti-la de certa violência, de uma força que medindo seu objeto, não se deixa medir, de uma força que a tornará poderosa. O que pode a teoria é algo como a delicada violência das palavras contra a violência de outras palavras na busca de inverter razões e sentidos. É preciso, portanto, pensar, escrever, falar como a água batendo em pedra na intenção performativa de uma fala que busca reformular posturas. Perturbar o discurso para causar novas consequências na prática-teoria, na teoria-prática, eis o que é sempre desejável em um mundo que valoriza a partilha.

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O desejo deste texto é de que o avanço da teoria seja ao mesmo tempo que desconstrução de discurso, busca por eliminar o danoso efeito do discurso patriarcal. Que seja muito mais a retirada de véus que nos façam ver longe e, assim, que possamos ver mais perto cada um dos véus, sua necessidade, sua oportunidade e como se colocam sutilmente em nossas vidas aparentemente tão concretas. Diante de um tão longo, ainda que necessário, intróito, é que podemos dar mais um passo nesta elaboração. Uma das camadas sutis que tanto gera a violência, quanto a elimina é o discurso. Que a violência seja um de seus efeitos, define que ela só pode ser combatida com o antídoto adequado, a desmontagem do discurso. O discurso é a chave sem a qual não é possível perceber a fenda que se abre diante de quem olha para os olhos esbugalhados em seu rosto sujo. O discurso é sempre camuflado, ação de escamoteamento. Nessa direção podemos avançar um pouco mais para, quem sabe, lançarmos algum passo na direção de uma desmontagem da violência física do qual todo discurso violento contra as mulheres é apenas a casca.

Desmanchar um discurso patriarcal A violência contra a mulher começa na instauração discursiva patriarcal e se conclui em assassinatos reais. O assassinato, por sua vez, sustenta discursos eles mesmos violentos contra as mulheres. Não nos iludamos sobre a linearidade do processo que se resolve em círculo vicioso. O processo de construção de uma “imagem” da mulher sempre é informado por um discurso, que, na contramão, é alimentado pelas imagens que ele mesmo provoca. Por fim, perdem-se discursos e imagens na mesma teia inconsciente da qual quem faz o melhor uso é sempre o esperto. Incluam-se aí os intelectuais, nós mesmos, que, além do bem e o mal, não escaparemos do discurso se não procurarmos perfurá-lo, criar a brecha revolucionária da exceção. Só o que pode invertê-lo é, desde sempre, a análise até as últimas consequências. É bom lembrar dos dois parágrafos em que Gilberto Freyre (2004, p. 192) se dedica a comentar a vida das mulheres em seu clássico Nordeste. Ao mesmo tempo em que se mostra ali a verdade sobre as mulheres submissas e santas, também surge o retrato do descaso e da negação sofrida pelas próprias mulheres no campo da teoria. Ainda é preciso avançar e muito para atingir a ordem do discurso exposta por Foucault. Profundíssimo substrato da ação, metafísica posta em palavras, tê-la em mente é produzir suspeita: ou bem todos os autores que negligenciam a questão são algozes, ou são vítimas de seus próprios discursos. Dizer isso, mais que atacar alguém, é reconhecer o substrato patriarcal que reside em todo discurso, do qual se livram apenas poucas incomuns, porque autoquestionadas, falas de desmontagem. Mas para que o patriarcado, sustentado pelos poderes, inclusive o intelectual, quereria desmontar a si mesmo? Todo aquele que desmonta o patriarcado deve saber que se põe como Lampião e Maria Bonita, com a cabeça a prêmio e sempre corre o risco de reanimá-lo pelo ódio, esta potente força negativa que também instaura a vida. O destino de quem se contrapõe é sempre a morte, real ou simbólica, a posição do heroísmo que nem a todos anima. Por isso, o intelectual precisa acostumar-se à condição de pária se não quiser vender a própria alma no terreno da falta de ideias. (Não esqueçamos, portanto, que os intelectuais, como donos do discurso que, muitas vezes, se enganam sobre seus próprios processos, também participaram da invenção da mulher cangaceira — como participaram da construção da mulher ideal de um modo geral — no contexto da invenção do cangaço como um todo. Assim é que, ou fazemos a desmontagem dos mitos, ou somos coniventes com eles). Assim como Durval Albuquerque Júnior, na contramão dos poderes publicitários de nosso tempo, dissecou o nordeste enquanto invenção, eu gostaria aqui de usar seu método foucaultiano e participar do projeto de desinvenção do nordeste pela desinvenção da mulher do nordeste desde já deixando claro que este projeto não é criação minha, mas avança em nossa história em diversas teorias feministas, assim como na amplitude do pensamento livre de Daniel Lins que é referencial deste texto, a quem é dedicado. Para desinventar a mulher

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nordestina é necessário avançar na análise de alguns de seus mitos tendo como contraponto a condição das mulheres reais, cuja história pede socorro a cada novo assassinato, a cada ato de violência doméstica. Resgata-se com isto a proposta de olhar contra os universais, que o senso comum habilita diariamente como informante do real, na busca pela singularidade das vidas que, do contrário, sucumbem quando tratadas como meros objetos vistos por qualquer sujeito do poder como coisa sua. A fratura entre a idealização das mulheres e a condição real de mulheres é o hiato a partir do qual podemos entender a zona onde o discurso patriarcal confina as mulheres como em um campo de concentração, cujas portas precisamos abrir sem medo, ou, em palavras mais arcaicas, apesar de todo o pater potestas a cada dia redivivo do qual ainda não conseguimos nos livrar.

A invenção Tomando o cangaço como etnoficção, gostaria de pensar a condição da mulher cangaceira como figura construída pela narrativa que, da lenda transmitida oralmente aos meios de comunicação de massa, é pilar de nosso imaginário sobre o Nordeste. Quem conta um conto define e modifica a história a partir de seus próprios valores. Interpreta-a. Ou mente. Gostaria, assim, de partir para a análise de Maria Bonita, metonímia da mulher nordestina — a cangaceira –, figura sobrecarregada de alto peso simbólico, que foi pintada com as tintas do patriarcado, este poder autoritário ao alcance de todos que é o gozo fálico — no que ele se refere ao poder da fala. Assim como as mulheres gaúchas são muitas vezes tratadas no universo dos preconceitos sustentados em discursos como Anitas Garibaldis, que usam ocultamente “uma faca na bota”, as mulheres nascidas nos estados do Nordeste brasileiro são tratadas como Marias Bonitas, ou como a Paraíba-masculina-mulher-macho, exímias usuárias de uma peixeira (lembro aqui que uma análise da vida e da morte de Anayde Beiriz, mulher de João Dantas, também seria interessante caso pudesse ser empreendida). A peixeira imaginária das mulheres nordestinas mostra um perigo, de morte ou castração, que justifica — pelo discurso — que a mulher seja inimiga e que, como tal, seja justa a sua subjugação, e antes, como prevenção, sua caçada, e antes, no terreno dos afetos, que mereça o ódio. Já que não se podem matar todas — afinal quem procriaria, quem cuidaria, quem protegeria os homens? — que se encontre uma função para elas, mas que a peixeira imaginária jamais seja esquecida e que possa ser invocada como a culpabilidade oculta. Carta na manga que explica o que o covarde precisava — não fez mais do que defender-se de uma bandida. Não esqueçamos que bandida é aquela que faz parte de um bando, e que a etimologia da palavra refere-se também aquela que é banida. Por trás destas imagens está o mito da donzela guerreira (Galvão, 1998) que, na intenção de ser livrado de seu caráter perigoso, foi adaptado na afirmação de uma política que precisa ser analisada com cuidado. Chamemos política do amor a esta diplomacia que ameniza a função da donzela guerreira por sua domesticação. Não sendo mais donzela, a guerreira permanece amante e esposa com cujo amor — e cuja morte — cresce a dignidade do herói. O teor das narrativas que as envolvem depende da caracterização destas mulheres como guerreiras. Fortes, assumem atributos masculinos. Associadas aos homens emprestam-lhes sua valentia. Esta convivência, ideologicamente caracterizada como amor, aparece como o estado sentimental que é tido como natural às mulheres. Desde sempre se lhes imputa no campo do discurso o universo do sentimento por oposição à racionalidade masculina. É pelo amor que podem participar da vida dos homens. Este amor, visto pelo lado dos homens, é, por sua vez, a chave simbólica do interesse que têm sobre uma mulher. Como forma de relação o amor é a única política que homens desenvolvem em relação a mulheres que, se não são suas amadas, são suas odiadas. Reconhece-se assim, que, como um governante, a mulher tem um poder, mas que precisa ser recalcado, não reconhecido, e que traz frutos econômicos literais quando domesticado. O amor é rendição para a mulher. Mas é também, ontem como hoje, o elo que define a posse do homem sobre a mulher, o que

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faz desta posse salvaguarda, poder de proteção que é também, necessariamente, poder de polícia. O casal unido compõe uma espécie de primitiva cena mítica do patriarcado unido pelo ideal do amor que autoriza o homem a ter uma mulher enquanto ela é autorizada a participar do mundo masculino como coisa de um homem. Por meio do atributo da coragem ela dignifica o mundo do homem ao qual pertence. Esta coragem da mulher que vem dignificar o homem, evita, por sua vez, que ela seja simplesmente morta como uma inimiga. Como esposa ela pode permanecer dentro do campo do lar, campo de concentração em que a exceção é praticada em seu nível mais simples. É com esta coragem como garantia (o dote) que a mulher-macho interessa ao homem justamente enquanto ela afirma algo deste homem. Destas mulheres valentes (meio masculinas) serve-se o imaginário popular na hora de construir o herói masculino de cada mito. São mulheres simbolizadas como poderes, como talismãs, como moedas e que acrescem à imagem do homem. O homem, por usa vez, vem relacionar-se com sua própria masculinidade por meio da participação na vida da mulher–macho que, enquanto mulher, é negada. É assim que valem as “mulheres-macho” no imaginário do patriarcado, como confirmação de uma força que é útil aos homens por ser a correspondência do masculino que, na mulher, aparece como uma força da natureza que se auto-afirma sobre a natural fraqueza. Não seria força se não pudesse, em um corpo, sobrepujar a fraqueza. A mulher guerreira, mulher-macho, aparece como uma exceção que, enquanto tal, precisa ser reconduzida à submissão sem, no entanto, perder sua característica. Dialética? Sim, mas negativa. Não é possível dizer que o homem se relaciona com o homem na mulher, fazendo-se, assim, também mulher. Mas que a mulher tanto na mulher, quanto no homem, é sempre uma figura menor, a ser ocultada ou parcialmente mostrada. A esposa é, assim, uma função essencial da afirmação narcísica que faz parte desta política do esposo: além da coragem da guerreira que será posse do homem, ela poderá na continuidade simbolizar a posse da beleza, e da capacidade de dar a vida que os homens jamais assumiram, no discurso patriarcal, como fraqueza de seu próprio corpo. O corpo forte possui um corpo fraco que são ações de discurso, pois a fraqueza e a força não valem como verdades absolutas. A aliança entre discurso e ação sobre corpos aparece claramente quando do discurso sobre a esposa. O lugar da esposa na história da política define a posse da vida nua, aquela zoé de que falava Aristóteles quando explica em sua Política o lugar do corpo das mulheres, dos escravos e dos animais como habitantes do óikos, a casa que pertence a um homem. Assim não há Ulisses sem Penélope, nem Menelau sem Helena, nem Agamenon sem Clitemnestra ou, sem muita vantagem sobre a esposa, a amante Cassandra. Mesmo quando os maridos morrem traídos (Agamenon) ou os noivos se suicidam (Hemon) é porque suas esposas negaram-lhes a honra. Não é o amor que um homem perde, mas a honra. Não é sua ligação emocional a uma mulher, mas o poder político que ela representa enquanto moeda sua. Na tragédia grega, a mulher, por usa vez, tem a obrigação de matar-se com o gládio ou por enforcamento. Morrem as esposas porque são costela de um homem, parte a ser negada quando cessa a vida que importa, a do homem à qual pertence a vida de uma mulher. Caberia perguntar por que, por exemplo, se deveria manter viva uma esposa na tragédia grega quando o herói — ao qual esta mulher acrescia em força e coragem — era o marido que morreu na guerra. Não é apenas a inutilidade da vida de uma mulher, mas a sua morte que coroaria o heroísmo fundamental do marido, do qual o seu próprio não passava de uma obrigação secundária. A magnanimidade da vida do homem seria o sentido total que o suicídio da esposa vem manifestar via negativa. Por trás disso, também está a artimanha do discurso. Sabe-se que a tragédia grega participa da história do patriarcado ocidental como representação secundária das mulheres. Texto para ser saboreado como deixa claro Nicole Loraux, a tragédia instaura-se por uma fala que serve a uma audiência faminta de sangue feminino. “Gozo intenso do prazer de ouvir”, nos diz Loraux (1995, p.8). O discurso é o método que legitima qualquer ação. Sabemos que criar razões é a melhor arma, associada à força ela é imbatível. Quem pode com isso se este é o objetivo do patriarcado? Gostaria, nesta análise, de não salvar nem mesmo os intelectuais desta espécie de farra do discurso, metodologia subterrânea, por onde o gozo oral se opõe ao politicamente correto como face risível do que seria, para além da caricatura, verdadeiro, ou se serve do

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ambiente teórico do senso comum cujo trunfo é o convencimento universal de tudo e todos, letrados e não, para instaurar as políticas do patriarcado cada vez mais fortalecido em sua base imoral. É esta base antiética do discurso que compôs o mito da mulher nordestina e que sustentou, como sabemos, a construção, pelos jornalistas de seu tempo, de Lampião como Rei — um deus em tempos semi-secularizados — e os cangaceiros como semi-deuses, diante do que subterraneamente era, no inconsciente da época, experimentado como abuso da soberania de homens (e mulheres livres que os acompanharam) que desafiaram a ordem quando apenas o grupo dominante teria no imaginário do poder o direito de dele fazer uso, inclusive o do poder de ser. Foi este ser tão ofensivo também endeusado por quem fez deles um discurso de negação. Este discurso — mesmo negativo — tangia as mulheres, em um lugar especial. Ao criar o mito do homem, era preciso falar das mulheres que, repito, vistas como posse de homens manifestariam a soberania dos mesmos homens, figuras dêiticas que mereceriam toda sorte de sacrifício, os que vão do amor à morte. Mulheres — de qualquer lado do poder, o clandestino ou o policial, no qual incluo o governo e a sociedade civil — cumprem a obrigação de disponibilidade ao lado dos homens. Figuras abnegadas do amor e da morte, o fio que as une a seus homens não foi desatado em nenhuma das narrativas de que temos notícia mesmo quando o amor não tinha garantia românticas, mesmo quando a morte não era simplesmente boa. Falar era fácil. Diante destas colocações é que me parece possível empreender uma interpretação feminista da tragédia de Angico. Inverter a perspectiva será o método, olhar primeiro para Maria, para somente por meio dela mostrar que, tanto quanto o seu, era impossível supor o desejo de Virgulino. Maria Bonita é o personagem de três mitos que vem ser recontados por meio de sua imagem e do que se disse sobre ela: o mito da guerreira donzela entrelaça-se ao mito do amor romântico e ao mito da esposa fiel. Três questões que não escondem valorações que o tempo patriarcal exige das mulheres, indivíduo-moeda como fora um dia o escravo e é até hoje o funcionário, o burocrata de uma grande empresa, professores doutores em uma universidade. Por trás de todos estes mitos, jaz uma cena ainda mais profunda que precisamos analisar. Trata-se da mítica cena de uma mulher morta que sustenta o desejo que vem no tropel de estranha luxúria que podemos experimentar no elo perigoso, elo que une discurso e imagem. Analisemos suas ressonâncias.

Maria, bonita e morta Questionemos primeiro a beleza, e o que nela tem função de atração e repulsa sempre apagada pelo ideal da sedução que oculta o desejo-ódio de nossa cultura. Élise Gruspan-Jasmin conta-nos que “em algumas narrativas contemporâneas e posteriores ao cangaço, mas principalmente nos versos da literatura de cordel, Maria Bonita distingue-se por sua beleza excepcional, a qual seduziu o “Rei do Cangaço”, mas também por sua dureza, coragem e determinação” (2006, p. 121). Relatos de jornalistas pesam na hora da construção do mito tanto quanto o cordel, a mais fundamental forma poética do sertão. Guardemos esta dupla banda de invenção do discurso. Vê-se, no entanto, nos relatos de jornalistas certa verborragia que denuncia o prazer da fala que, no cordel seria certo direito da forma expressiva ainda que esta não se livre de ideologias. Na notícia, o narrado muitas vezes não faz mais que saber o quanto falar é fácil quando se trata de criar narrativas que não exigem fundamento. O povo que ouve a notícia e que forma sua sensibilidade no cordel tem um único ouvido incapaz de distinguir o que é verdade e o que é ficção e, assim, a fama é feita como uma tessitura frágil da qual a má fé nunca espera que arrebente a linha. Assim é que Maria Bonita sofreu sob a fala de seus intérpretes, aqueles que, a exemplo do filósofo Leibniz que pensou ter descoberto como Deus pensava criando a Teodiceia como obra de sua fantasia, imaginaram conhecer o desejo de Maria Bonita. Daniel Lins (1997, p. 56-57) deixa bem claro

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que, ao falarmos da invenção mítica do cangaço, o que está em jogo é o desejo de cada um projetado na vida de cada outro. Neste caso, o desejo é sempre o que oculta um subterrâneo. Maria Bonita não foi só excomungada enquanto mulher, mas por ser a “rival” do desejo coletivo dirigido a Lampião, ao mesmo tempo inimigo e “bandido de cada um” (1997, p. 57). O discurso é também um sortilégio. Por meio dele é que Lampião me olha caolho a cada vez que dele falo, e, como quem tem um só olho é rei, penso que sou também eu o rei; reconhecido ao encetar a compreensão e a interpretação, eu também sei, participo do ritual de consagração como sacerdote, sábio, guardião. Não sou mais um mortal qualquer, pois falo e minha fala cria mundos como um deus que diz Fiat Lux. Enquanto o jornalismo da época divertia-se com as celebridades bandidas, como quem tem acesso ao clandestino pelo espetáculo no primeiro Big Brother Brasil de que se tem notícia, construindo sua lenda com a imagem da rainha cabocla que encenava a disputa dos poderes entre o governo e sua negação que era o cangaço, a poesia — ou a literatura — que sempre trabalhou no processo de idealização da mulher, não fez diferente. Se Maria Bonita foi para os jornalistas uma “Madame de Pompadour”, bela e guerreira, e ao mesmo tempo fútil, do mesmo modo, foi para os poetas uma espécie de Helena, por todos desejada, mulher que apenas um rei conquistaria. Uma conquista que lhe traria lucros além do mero prazer, pensamos nós que projetamos nela o desejo de sermos desejados pelo rei. Pensemos neste prazer que recolhe a beleza para si mesmo. Ler o acontecimento Maria Bonita como a bela que conquistou o rei — em que podemos ler a fera seduzida pela beleza, a barbárie pela civilização, a natureza pela cultura, o mal pelo bem — foi a estratégia capaz de suplantar o que nela poderia ter sido projetado como ameaça. A beleza de Maria vem compor um balanço agradável. Era preciso manter a corda bamba em que a beleza oscila com a ameaça à base da qual o prazer tem chance de sobreviver. Assim é que podemos pensar que não foi apenas a projeção de um desejo de beleza sobre a cabeça de Maria, mas também a sua difamação, como bela e impura, o que veio a combinar muito mais com o que se podia dizer dela enquanto mulher poderosa no contexto do cangaço. Assim como Maria é elogiada na construção do mito, ela é depreciada com o objetivo de tanger o momento perverso do prazer. Além de bela, o imaginário sobre Maria avançou em outros valores úteis ao patriarcado. A característica da ambiciosa e da interesseira tal como apresentada por alguns jornalistas e cordelistas não poderia ficar ausente no projeto que faz oscilar elogio e depreciação, amor e ódio. A depreciação moral foi algumas vezes acompanhada de um juízo contrário à mítica beleza de Maria como no caso do relato de Joaquim Góis que descreve o corpo “vulgar” de Maria com detalhes mórbidos que deixam transparecer a perturbação de seu próprio desejo como em trechos em que diz de “uma boca carnuda escondendo desejos” (Apud Lins, 1997. p. 58). O desejo escondido é uma projeção de quem o supõe. Algo que salta aos olhos de quem assiste. Tal discurso é, no entanto, um caso raro que serve de exceção às narrativas sobre a beleza de Maria. A função desta exceção é fundamental: a beleza de Maria, sendo o ideal, o atributo perfeito, naturalmente valeria mais quando posta sobre uma realidade imperfeita. A imperfeição moral teria a dupla função de intensificar e subordinar a beleza. Muito bela e nada moral, eis a tensão que fundou o mito de Maria. O que nela haveria de podre seria o mote do real encantamento que apenas sobrevive na tensão. Criada por Deus, a beleza de Maria seria maculada pela condição de uma moça que, mais que humana, é marcada por certo caráter mundano elevado à verdade metafísica. Há neste ponto, algo que se diz apenas negativamente enquanto é ocultado no discurso. Este dado oculto é a classe social: apenas uma moça pobre se voltaria de tal modo ao poder, fascinar-se-ia com o luxo e a riqueza do bandido, assim como hoje dizemos das jovens que se encantam com o poder dos traficantes nas favelas. Quando falamos do desejo da estudante Geyse Arruda fazemos o mesmo. Quem se encanta com o quê? Quem deseja o quê? Apenas alguém na contramão da burguesia e da aristocracia se impressionaria com a valentia do herói e a promessa da aventura? Quem julga assim é burguês. É assim que usamos o discurso do desejo para ocultar o preconceito de classe. Assim é que se falou de Maria Déa, sem que seu desejo fosse conhecido. Nenhum discurso de jornalistas ou cordelistas quis manter o direito da pessoa individual contra o ditame universal. São discursos do poder, não fariam diferente. Pois ao poder e sua arma — o

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discurso — não importa o desejo de Maria. O que importa do suposto desejo de Maria não é Maria. Não conhecemos, não nos deixou narrativas sobre si mesma. Conhecemos a maledicência e o método da instauração de discursos, tanto quanto traços do desejo negado de seus detratores. Maria Bonita foi, de qualquer modo, na ordem dos discursos pelos quais ficou conhecida sem nunca ter sido conhecida, uma figura da tensão. Marcada com o selo de uma ambiguidade que permitiria sustentar o bem e o mal não em síntese, mas em tensão, sua imagem sobreviveu entre a beleza e o crime, entre aquilo que agrada ver e que ao mesmo tempo causa certo desprazer. Combinou perfeitamente com o ideal do sublime, como uma espécie de prazer desprazeroso, de gosto pelo excesso, pela iniquidade moral, que está na origem dos sentimentos estéticos (se levarmos em conta a separação tão em uso entre belo e sublime, que ingleses e alemães de Burke a Kant, e que influenciou a mentalidade europeia do século xix e do século xx), desde a antiguidade e que o nosso tempo conhece muito bem. Como a imagem de uma mulher bonita Maria Bonita servia na tensão: como amenização da ameaça sem que a ameaça fosse eliminada, o que era essencial para que a tensão que caracteriza o sublime fosse mantida. Sua beleza tornava a ameaça visível e, ao mesmo tempo, mantinha-a sob controle. O sublime aparece como um prazer permitido em relação aquilo que não poderia ser permitido. A ameaça do cangaço tinha na bela figura de uma mulher, uma rainha, a garantia de uma dignidade de que dependiam não apenas os cangaceiros, mas também aqueles que os admiravam. Maria foi assim, um dispositivo de compreensão. De mitificação como encarnação do ideal — com que as mulheres pagam o preço de serem ainda, no patriarcado, um corpo nu, ou a mera vida. Este prazer-desprazer, esta sensação tensa que sustenta o mundo em sua órbita não deixou, não deixa, de fazer suas vítimas, o que faz pensar que o poder é vampiro, pois não vive sem sangue. A idealização acontece na tensão. O ideal se serve do não-ideal. Assim, a construção do mito de Maria descerá mais um degrau. Cena sublime em Angico. Mais que restos mortais, cabeça de uma cangaceira junto a seu bando, cada um feito cabeça. Maria Bonita feita cabeça. A pesquisa de Gruspan-Jasmin aponta relatos em que o “raro typo de belleza cabocla”, ou o “bello typo de cabocla nordestina” elogiado em tom que não escapa à idealização, vem revelar algo mais na cena trágica. O que diz Afranio Melo é mais que significativo: segundo ele Maria Bonita era “Bonita ainda depois da morte. Serena sem um rictus.” Apenas a morte — como lugar da tragédia que liga o ser humano ao ideal contrário à vida concreta do animal — é garantia de idealização. A morte como forma idealizada de uma mulher seria aquilo que, no contexto do ideal romântico, a faz mais que bela, a figura de um sentimento sublime. Já aqui não é a idealização espiritual somente, mas seu deslizamento em uma idealização negativa. Se os jornalistas não perderam de vista a beleza daquela que se tornou pura cabeça separada de um corpo perdido — e que necessariamente foi negado –, é porque confirmam a perspectiva da poesia na qual o momento especial da materialização do emblema sem o qual o mito não teria tanta força. O herói transformado em troféu. A heroína, do mesmo modo, transformada em objeto, bola da vez, mas, sobretudo, emblema de um corpo negado, ali subjugado. Como o herói, nenhuma diferença. No entanto, ali, reduzida à cabeça, ela é mais permanece que é bela, “sem um rictus” é que podemos contemplá-la. A transformação de Maria Bonita em cabeça surge como cena em que a percepção do ideal é apelo. O ideal torna-se “cabeça”: uma mulher é mais ideal quando não tem corpo, eis a ironia que subjaz ao ritual da morte do bando. Quando morta, a cabeça perde sua qualidade de Medusa, transforma a todos os cidadãos banais em Perseus que a podem ver sem horror. Aqueles que conceberam a cabeça de Maria e a de seus companheiros como troféus transformam-se eles mesmos em heróis vencedores de um inimigo, mas, sobretudo, capazes de ver a morte, o rosto terrível como mera bela forma que, caída inerte sob a violência das armas, controla-se pela violência do olhar. O que acontece a Maria Bonita no começo do século 20 não está desligado do que aconteceu a muitas mulheres no século 19 que, representadas enquanto mortas, eram vistas como o emblema da própria beleza. A própria história da pintura nos dá notícias disso, assim como a própria literatura que servem de confirmação estética de uma política completamente sem ética. Assim, a morte de Maria Bonita

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é parte essencial da construção do mito de sua beleza como sempre foi para qualquer mulher desde a conhecida afirmação de Edgar Alan Poe em sua “Filosofia da Composição” publicado em 1846: “...a morte, pois, de uma mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo...” (poe, 1960, p.506). Não impressiona que tenha sido mote da poesia e de todos os discursos misóginos que estão na base dos mitos. No fundo do mito, o gozo escópico, do olhar voyeur, não cessa. A violência é, por fim, também da ordem apotropaica do olhar que se protege atacando para não sucumbir. Ela salva o sujeito pela morte do outro. Contra uma mulher ela é a redenção do perverso: o prazer da proscrição que a sociedade apóia diariamente. Proscrição que está nas imagens, nos discursos e na vida cotidiana que imita o espetáculo. Enquanto tivermos o elogio da mulher nua na pornografia como um pedaço de carne feita para agradar nossos olhos patriarcais teremos mulheres mortas na vida real. A violência patriarcal é sempre um acordo entre o ficcional e o real em que quem sai perdendo são sempre as mulheres. Inverter esta ordem é o que se deseja com um feminismo consequente e comprometido com o futuro.

bibliografia Albuquerque Júnior, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009 • Blay, Eva A. Assassinato de Mulheres e Direitos Humanos. São Paulo: ed. 34, 2008 • Galvão, Walnice Nogueira. A Donzela-Guerreira, um estudo de gênero. São Paulo: SENAC, 1998 • Freyre, Gilberto. Nordeste. 7ª. ed. Revista. São Paulo: Global, 2004 • Gruspan-Jasmin, Élise. Lampião, Senhor do Sertão. São Paulo: Edusp, 2006 • Lins, Daniel. O homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1997 • Lins, Daniel; Souza, Ilda Ribeiro de Souza. Sila, uma cangaceira no divã. Fortaleza: Expressão, Gráfica e editora, 2005 • Loraux, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

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João Cabral de Melo Neto – música para canhotos Ney Ferraz Paiva Para Raul Thadeu da Pont Souza, in memoriam.

joão cabral está vivo em sevilha vivo sem o esqueleto de pedra que o mantinha um morto vive ainda mais da música que lhe cai do coração dos vivos é quanto uma cidade pode dar a um touro uma cabra um defunto

Tenho pensado um João Cabral toureiro, um João Cabral cigano, um João Cabral dançarino. Um que a despeito de não gostar de música, fazia música para passos tortos, trocados, canhotos. Música para despertos, vigilantes, para os que não têm como ficar distraídos. Um João Cabral amigo de toureiros, cantores, bailarinos, guitarristas de flamenco. Que fazia festas em sua casa em Sevilha. A mim interessa o poeta João Cabral que não se quis chamar Poeta. Um João Cabral disposto ao erro, ao risco, ao extremo. Há por toda sua obra esse feixe de sinais, entre tantos outros. As vozes do canavial, da feira, do frevo. Um João Cabral que aprendeu a olhar a rua, o espaço banal de todos os homens — deslocar-se, entrar/sair, usando apenas o nome comum como de qualquer passante, exilar-se tanto no Recife quanto em Sevilha; a parte isso, um poeta nem um pouco disposto a nomear o comum, a ceder à comunidade do comum, do geral, do genérico — nem se repetir, nem se baratear; e que permaneceu afastado do grande público, da popularidade, num ambiente de cultura onde inexistem leitores, mas consumidores. Um João Cabral entregue a fazer o que tinha a ser feito, sem generosidades e, por vezes, sem amabilidades e humor, escrevendo, atraindo, mobilizando os mais complexos e diferentes recursos de produção do poema (tema, tratamento, formato, estilo etc.) com a mão esquerda, para desaprender o já aprendido — essa foi a aposta que ele fez, descentrar-se das cenas da poesia que se iam armando Brasil afora, e com a qual perdeu, fracassou, não se estabeleceu sem o alvará das representações que até hoje é expedido. Sobretudo porque se recusou a ceder ao senso poético esganiçado no senso comum modernista. E mesmo à estocagem das imagens e da tipologia dos concretistas. Sem a linguagem magoada dos que se colocam contra. Um João Cabral que almejava outro “desenvolvimento” técnico da percepção. Um iniciado nas rodas e lidas literárias por Vicente do Rego Monteiro, Willy Lewin, Gastão de Holanda, Murilo Mendes, Lêdo Ivo, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Pierry Reverdy. Por este último, não faltou quem o confundisse com um surrealista em seu livro de estreia. Mais um ato perverso de reprovação por parte da crítica e dos arquivistas do que uma inocente distração.

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Quando mesmo que era que poetas estreavam? No Brasil dos anos 1930 estreavam e proliferavam romancistas. Montava-se a expedição realista, que se punha a escavar os restos, as perdas do “Brasil profundo”, arremessado aos confins do nada. A Máquina do mal. O arquivo da origem, da emoção, da identidade — a que no Brasil do século xxi ainda se recorre e faz prosperar nossos mais diletos equívocos, confessando, propagandeando, divulgando dores que muitos jamais se põem a sofrer. Nietzsche a ressoar: Aqui todos os grandes sentimentos apodrecem: apenas têm o direito de fazer barulhos os pequenos sentimentos ao ruído seco das matracas! Dispensável citar os nomes e as obras, uma vez que tão idênticas-e-assemelhadas-e-confundidas na escrita na geografia nas veredas do Nordeste; tão previsíveis, básicas, simplistas, que nem sempre é preciso distingui-las, uma vez que só se distinguem pelas personalidades, pelos vultos ou vedetes em que, com o passar dos anos, seus autores se transformam. Mais fisionomia que filosofia. Mais perfumaria que ética. A contribuição do que escreveram, com o agravante de ter que pensar o Nordeste em suas múltiplas manifestações, tanto fez como tanto faz. Quem leu um leu todos. E quem restituir, sem ter lido, não pode se purgar por não gostar, uma vez que não se deve perder por isso uma caçada, sequer uma refeição. Diz-nos, em todo caso, Graciliano Ramos, com suas Linhas Tortas, rara exceção e um sobrevivente em meio a esses: “Seria ótimo que todos os romancistas do Brasil tivessem passado uns meses na Colônia Correcional de Dois Rios, houvessem conhecido as figuras admiráveis de Cubano e Gaúcho. Podem tomar isso como perversidade. Não é. Eu acharia bom que os meus melhores amigos demorassem um pouco naquele barracão medonho. É verdade que eles sofreriam bastante, mas talvez isto minorasse outras dores complicadas que eles inventam. Existe ali uma razoável amostra do inferno — e, em contato com ela, o ficcionista ganharia”. E o Nordeste também. O Nordeste, em qualquer de suas dimensões, não estratificado, a girar na roda do movimento do mundo. Escrito com as chamas do extravio de seu inferno.

✴✴✴

O sono, um mar de onde nasce Um mundo informe e absurdo, Vem molhar a minha face: Caio no ponto morto e surdo. (Willy Lewin)

Uma poesia canhota, dissonante, desentoada, que mal começava. Pedra do Sono (1942) fornece os acordes preliminares de um pensamento crítico-poético em torno das leis e das máquinas de poder que controlam e nomeiam a escrita. Sem se escusar ao Nordeste e sua gente — ao povo, ao vulgo, ao populacho, o livro vai expondo de forma assimétrica a secura de um ambiente maior, de um território ainda mais cáustico, o da cultura brasileira, o papel que ela cumpre no desenvolvimento humano: seus engates, seus funcionamentos, suas operações. Isto se constituiria uma antropologia poética? No dizer de Décio Pignatari, sim. Mas isto não seria impor mais uma lei do gênero?

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O Último Poema

Não sei quem me manda a poesia nem se Quem disso a chamaria.

Mas quem quer que seja, quem for esse Quem (eu mesmo, meu suor?),

seja mulher, paisagem ou o não de que há preencher os vãos,

fazer, por exemplo, a muleta que faz andar minha alma esquerda,

ao Quem que se dá à inglória pena peço: que meu último poema

mande-o ainda em poema perverso, de antilira, feito em anitverso. ✴✴✴

250 exemplares, editados e pagos pelo próprio autor, bastariam para dissuadir a Máquina arcaica? Uma escrita sem as abstrações que se multiplicavam a partir das visões do Nordeste, abertas como se abrem coisas secretas, para logo em seguida serem outra vez arquivadas, ocupar o lugar da tradição. As visões do Nordeste passadas e repassadas de uma instituição a outra, de uma ordem a outra. A tradição realista secretou uma vez mais o Nordeste. Pelo que pegou do estereótipo e pelo que documentou do estereótipo. O Nordeste vira uma descrição estereotipada de si próprio. E aí mais se secreta. Esconde-se o Nordeste. Guarda-se. Classifica-se. O Nordeste que está todo lá em Jorge Amado. Encalacrado numa topologia privilegiada do lugar, das personagens, dos costumes etc. Entre o monumental e o popular. Duas entradas, sempre as mesmas. E há os que não cessaram de atravessá-las. Os grandes átrios do edifício da literatura, consolidados pelo dogmatismo e pelo realismo socialista que o partidão impunha. João Cabral (e por que não dizer Guimarães Rosa, Osman Lins, quantos mais?) volta-se para o espaço literário, para o tempo, para as imagens concretas, e menos, bem menos para os adereços da paisagem nordestina. Ele é um dos raros poetas que fora da Europa segue as linhas do desenvolvimento artístico característico do Ocidente. Ele não opera a poesia do cotidiano, mas uma poesia profana, racional. Rompe com a espontaneidade natural da descrição. Com seus encantos juvenis. Ao modernismo social das descobertas e revelações que imediatamente se arquivam para formar outro feixe histórico de realidades oficiais, João Cabral faz opção pela modernização — pelas conexões de pensamento e

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de teoria vinculadas aos processos de desenvolvimento social que a poesia abre como campo de pesquisa e experimentação. Ações de prática e ações de teoria. O que em João Cabral jamais significa fazer uma poesia com sentido social, engajada. Por isso mesmo que a franca adesão ao intelectualismo de Mallarmé em que oscila Pedra do Sono não compreende um laço sutil de concepção de escrita. Temos aí um João Cabral esquivo, que não guarda sequer analogia formal com a lírica estabelecida. João escapa à impostura dos “bons sentimentos”. O Nordeste não recebe o tratamento pessoal de um nordestino que escreve, aristocrático e dominador. A ele não interessa a moral familiar, apaziguadora, para dentro dos engenhos e canaviais de sua infância. Nem as nostalgias que daí resultam. Não há busca por um tempo perdido. Uma visada de autocompreensão do ambiente do qual se distancia. Primeiro Recife. Depois Rio de Janeiro. E daí o mundo. Exausto de uma cultura de representação, o poeta flagra e deflagra singularidades. Não tem o que esperar. Nem do homem nem do Diabo nem de Deus. Oposto às ações de espera, aos cansaços que a esperança impõe ao nordestino, faz uma poesia dramática, sem a cláusula do nacionalismo, e que não se encaminha para as curiosidades, mas, antes, se liga a uma urgência política do corpo e da cidade. Que não define as fronteiras do sertão, mas que as abre ao povo que há-de vir. Linhas, devires, acontecimentos. A questão para João Cabral não é fazer da poesia um documento, mas desterritorializar a língua, inventar na poesia um nordeste estrangeiro, que sai de dentro dos cenários das significações disponíveis, inclusive publicitárias, cúmplices de um nordeste idiotizado, ingênuo, alienado, em que todos devem reconhecer-se, mesmo que como miragem. Lições de pedra. Intensidades livres. Não mais uma outra e mesma “República” de Platão, as pessoas comuns aprisionadas, sem atitude individual, a vida qualquer amarrada aos seus rastros. A educação pela pedra.

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la captar sua voz inenfática, impessoal, (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la.

similitude atribuída ao discurso verdadeiro e falso por Hesíodo? Atos de pensamento, mais do que figuras retiradas do cotidiano através do olhar, de uma tagarelice do vivido. Seriam estas as lições? As visões? Participar do “escrevível” a partir de um olhar descentrado das formas reinantes da escrita, que tratam a todos como expectadores da história, habilmente negociada pelas moedas do certo e do errado, da lei, da justiça. Pelo que esses mesmos seriam os mecanismos revertedores da Máquina que tudo arquiva, empenhada em fazer proliferar uma unidade insustentável do discurso. A essa máquina outra — a máquina de comover (expressão de Le Corbusier), a que João Cabral não cessa de operar em O Engenheiro (1945). Fazedor de imagens insólitas, deformadas, sem nenhuma sublimação.

A Lição de Poesia

2.

A noite inteira o poeta em sua mesa, tentando salvar da morte os monstros germinados em seu tinteiro. Monstros, bichos, fantasmas de palavras, circulando, urinando sobre o papel, sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão da ideia fixa, carvão da emoção extinta, carvão consumido nos sonhos.

✴✴✴ ✴✴✴

Certo está que poesia não educa — nem poeta é educador. Esta não é uma questão para João Cabral. Pelo que consta em sua biografia ele nunca se pôs a falar a pedagogos. Acontece que ele de alguma maneira parece querer fazer uma inversão nas funções de poder, nas suas regras metodológicas. Ele declina da “pedra” sua carnadura feminina, sua fluição, sua voz. Estabelece um contraste, e mais, uma antítese entre o ambiente viril de quem aprende e o modo de abordagem de quem ensina. E quem saberá captar, aqui-agora, nestes Brasis e Espanhas, a música da “cartilha muda”? Soletrar. Adensar. Não interpretar. O agravo objetivamente feito contra o discurso. Gemidos ao invés de música/gritos que escapam à representação/que reagem a qualquer significação. E para onde terá ido aquela semelhança, ou melhor,

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Não, não se trata de fazer passar lições, nem mensagens, nem impressões. Antes, uma marca estética que resulta permanentemente da experimentação, da “tentativa”, da sujeira. Uma monstrografia da invenção. Urinar sobre o papel (e por que também não espargir sangue e esperma?), exibir as partes pubentas para se tornar escritor. Imprimir ali uma marca viva. Concentrar sobre o suporte a realidade do corpo, do que resultará um objeto que tanto poderá ser poema, música, dança. João Cabral não precisou sequer de uma década para destituir de vez as musas. Elas não tinham segredos a lhe contar. Destituiu as musas e os santos. Os rituais místicos. O sagrado. Toda emoção está extinta. E uma melodia poética repugnante circula, ecoa.

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Sempre será curioso notar que em algum tempo e de alguma forma pareceria natural que Glauber Rocha utilizasse os poemas de João Cabral nas falas do poeta Paulo Martins (Jardel Filho), em Terra em Transe (1967). Glauber, como todos sabem, aproveita poemas de Mário Faustino, ao que parece para intensificar a ainda mais o estranhamento e a desfiguração tanto gramatical quanto cênica do filme. Glauber desprende, aparta o cinema do romance e o traz para as convergências inesperadas da poesia, sem recorrer ao arquivismo realista que não se cansa de recortar o Nordeste com seu naturalismo artístico, e que de modo sofisticado e tecnicamente irretocável tenta explicar o Brasil. Glauber não consola os simples, não indica a eles onde fica o paraíso na terra. Se na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos. Afinal, o que fariam de posse de um guia de viagens como esse? Seriam desfeitos pela proliferação metafísica da civilização dentro dos contornos de poder, que impõem às cidades prometerem o que jamais cumprem, sobretudo se situadas na Ásia, África ou América Latina. O imenso latifúndio de fome e lixo que a tecnologia e os governos esnobam. Uma saída de emergência para o sul não é mais, como aos pássaros, favorável. Então, acabe-se de morrer o Nordeste! E viva, e perdure o Nordeste que não quer mais ser visto como um sumidouro. O Nordeste que é um penetrável, um desterritório, um labirinto de possibilidades e sensibilidades. Do encontro. Onde se vive e se experimenta o novo, o diverso, o não pensado. O “mistério maior/ do sol da luz da saúde”. Post scriptum: “Homem, nesta terra, só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino. Não é com rosário, não, Satanás! É no rifle e no punhal!”. (“Capitão” Corisco, Deus e o diabo na terra do sol)

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Paulo Bruscky: um artista nordestino? Nina Velasco e Cruz

Nos primeiros minutos do filme As Aventuras de Paulo Bruscky de Gabriel Mascaro, somos apresentados ao personagem título: um avatar é criado com as feições de um senhor careca, de barba e sobrancelhas grossas brancas, estatura baixa, pele morena e uma barriga um tanto saliente. O personagem aparece então submerso no fundo do mar virtual do Second Life e sai em direção à praia. Encontra-se logo com um rapaz moreno e magro, deitado em uma toalha tomando sol. Segue-se o diálogo: “Tudo bem camarada? Meu nome é Paulo Bruscky. Acabei de entrar no Second Life. (...) Queria ver se conhecia algumas pessoas, alguns lugares interessantes e me divertir um pouco aqui. Vim ver qual é. Tem alguma sugestão?”

✴✴✴

Partimos da pergunta: Paulo Bruscky é ou não um artista nordestino? A questão que colocamos aqui é uma cilada. A princípio, a resposta é tão simples e óbvia, que poderíamos pensar que não faz sentido uma interrogação como esta. Sim. Paulo Bruscky, filho do russo Eufemius Bruscky e de Graziela Barbosa Bruscky, original de Fernando de Noronha, nasceu e viveu grande parte de seus 60 anos de vida em Recife, Pernambuco. Se assumirmos que Pernambuco é um estado que faz parte da região do nordeste do Brasil, não há dúvidas de que Paulo Bruscky é um nordestino. Também podemos admitir que se trate de um artista, já que pelo menos duas publicações recentes de peso o atestam: dois livros no formato “catálogo” de arte foram editados nos últimos três anos dedicados exclusivamente à sua obra. Mas por que será que ainda assim faz sentido a interrogação inicial? Poderíamos, no entanto, complicar um pouco mais a resposta e dizer: nenhum artista pode ser caracterizado pela região em que vive, e toda arte é universal. Nesse caso, não faria sentido afirmar que qualquer artista seja nordestino, ou dar relevância a esse fato. Acrescentando mais um argumento para a resposta negativa, poderíamos dizer que a obra de Paulo Bruscky foge ao estereótipo cristalizado sob o rótulo de Arte Nordestina. Ou ainda que, no caso da arte contemporânea, a indistinção entre arte e vida torne difícil delimitar as fronteiras da arte, e possivelmente, talvez até mesmo o adjetivo “artista” não seja muito adequado ao sujeito Paulo Bruscky. Afinal, ele mesmo não se considera tal, tendo questionado quase sempre os dispositivos institucionalizantes da arte. Não. Essa seria a resposta certa.

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Não importa qual a resposta à pergunta, pretende-se que se saiba o que é ser “nordestino” e que esse adjetivo tenha alguma importância para se caracterizar um artista qualquer na contemporaneidade. Certamente, a posição geográfica no mapa não é suficiente para resumir o que se impõe nesse termo quando atribuímos às pessoas nascidas em determinados Estados brasileiros. ✴✴✴ O cartão postal apresenta de um lado a cédula do título de eleitor Cancelado com a identificação e a foto de Paulo Bruscky, endereçado a Daniel Santiago, selado e carimbado oficialmente, com o selo Via Aérea e com o carimbo não oficial da Mail Art. Do outro lado, vemos as rubricas e as datas das eleições nas quais o portador votou e novamente o carimbo de Cancelado. O remetente é Paulo Bruscky, que apresenta seu endereço em forma de carimbo estilizado.

Podemos identificar a iniciativa da Arte Postal como uma forma de ir além das fronteiras de nacionalidade ou de território, se constituindo, antes de tudo, como uma forma de ir contra o regime de poder implicado por essas noções. A ação consistia basicamente na intensa troca de correspondência entre artistas do mundo inteiro, formando uma grande rede em que a circulação importa mais do que a forma e o coletivo se impõe em relação ao indivíduo. Para os artistas de países como o Brasil, onde uma ditadura repressiva impunha limitações à criação artística, esse foi um meio profícuo para burlar barricadas, abrindo uma brecha para a subversão dos limites do território vigiado pelo regime autoritário. “O corpo artístico construído pela arte postal é internacional por princípio. As barreiras políticas e sociais não são limites dentro dessa rede” (FREIRE, 2006, p. 138). O discurso regionalista que sedimenta a ideia de nordestino está intimamente ligado à emergência da formação discursiva nacional-popular, que pressupunha a possibilidade de delimitar uma identidade nacional a partir das diferenças identitárias regionais. Essas diferenças são postas em relação a uma geografia que vai muito além de uma divisão objetiva do território físico. “A noção de região, antes de remeter à geografia, remete a uma noção fiscal, administrativa, militar (vem de regere, comandar). Longe de nos aproximar de uma divisão natural do espaço ou mesmo de um recorte do espaço econômico ou de produção, a região se liga diretamente às relações de poder e sua espacialização; ela remete a uma visão estratégica do espaço, ao seu esquadrinhamento, ao seu recorte e à sua análise, que produz saber.” (ALBUQUERQUE JR, 2009, p. 36). A Arte Postal é vista como uma estratégia potente de ação micropolítica, não apenas por colocar em circulação um conteúdo contestatório de forma relativamente mais livre (o controle da correspondência não chegou a ser efetivo pelos agentes de informação da polícia 1), como também por questionar o lócus da obra de arte e de seu autor. Ao colocar em evidência as noções de rede e coletividade produz-se uma desterritorialização que questiona os conceitos de autoria e de obra. ✴✴✴

✴✴✴ O movimento Mail Art (Arte Correio ou Arte Postal) nasce de alguns membros do grupo Fluxus, um dos mais importantes coletivos de artistas do mundo na cena da década de 60. Imbuídos da vontade de dar novo fôlego à arte pós-vanguarda, o grupo tem um papel fundamental na difusão da arte conceitual e na construção de uma ideia de obra de arte que transcenda os limites entre arte e vida, propondo obras/processos que englobam uma crítica aos suportes tradicionais da arte e a todo o sistema institucional que a sustenta. Através do contato com Ken Friedman, um dos organizadores da mail list internacional criada pela ação Arte Correio, Paulo Bruscky é um dos pioneiros da iniciativa no Brasil.

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O convite da exposição Bruscky em Brusque (1981) reproduz em um cartão postal o mapa turístico e informativo da cidade de Brusque (sc) com o subtítulo: “Berço da fiação Catarinense”. O personagem da ação se coloca no centro do mapa, com os pés apoiados nas letras “us” de seu nome, que se encontra simetricamente acima de seu homônimo, ressaltando a semelhança sonora. O local onde vai ser realizada a exposição, a biblioteca municipal, é circulado no mapa à caneta e o convite leva o selo da Arte Postal. ✴✴✴

1  Paulo Bruscky e outros artistas chegaram a ser presos durante a abertura da Exposição Internacional de Arte Correio em Recife em 1976 e um inquérito foi aberto para saber se a Arte Correio tinha ligação com comunistas internacionais. Após três dias encarcerado sob tortura psicológica, Bruscky foi liberado sob a condição que não fizesse mais Arte Correio.

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As exposições de Arte Postal organizadas por Bruscky normalmente ocupavam espaços públicos não identificados com a fruição estética, como hospitais, prédios de correios e bibliotecas públicas. A ideia era encontrar espaços alternativos ao circuito oficial da arte, como mais uma forma de questionar a institucionalização da produção artística, um ponto forte em toda a produção de Bruscky2 . “Há de se ressaltar que a exposição coletiva é importante para tornar público esse circuito marginal de comunicação. Organizar exposição de arte postal é dar a ver a rede e reforçar sua pertinência num contexto opressor, haja vista a importância da arte postal nos países latino-americanos durante os anos de chumbo.” (FREIRE, 2006, p. 140). O jogo de palavras e a poesia visual também são uma constante em sua obra. Grande parte do poder da arte postal está na produção de atos de fala, como no caso do refrão “Hoje, a arte é este comunicado” e na criação de carimbos, como “Arte Via Aérea” e “Mail Art”, além da apropriação de carimbos que remetem diretamente ao funcionamento dos correios, como a série “Sem Destino”. A brincadeira com seu nome próprio, buscando uma possível identificação com a cidade Brusque (sc), revela um questionamento sobre a própria identidade do artista e de sua territorialidade. Será que haveria nessa coincidência alguma ligação oculta entre o artista e aquela cidade catarinense? Em outra série, Bruscky em Brusque 2 (1989), revisita Brusque fotografando as placas rodoviárias, outdoors que levam seu nome, muitas vezes se autoretrando junto a esses marcos, como se fosse um turista de si próprio. A desnaturalização de sua identidade também pode ser percebida em outras obras performáticas/fotográficas do artista. Em Alto-Retrato (1978), por exemplo, o artista se fotografa junto a uma fita métrica em posição frontal e de perfil, ressaltando a medida de sua altura: 1,78cm. Vemos aqui também uma referência ao contexto político da época, já que as imagens remetem ao padrão fotográfico utilizado tradicionalmente pela polícia para o fichamento de suspeitos. O surgimento da fotografia coincide com a sedimentação sociedade disciplinar, tendo sido logo integrada a instituições disciplinares, como a polícia, o manicômio e a escola (CRUZ, 2008). Em Eu Comigo (1977), outra performance fotográfica, uma cópia em fotocópia do artista aparece deitada em uma cama ao lado do próprio, que aperta sua mão em reconhecimento. Na foto seguinte, Bruscky faz uma expressão de horror da estranheza proporcionada por esse encontro. Já em Persona (1993), uma das obras da série de Selos de Artista, Bruscky recorta os rostos de diversos retratos 3x4 e cola diretamente o cabelo ao pescoço. Abaixo de cada imagem resultante lemos o nome do artista, formando uma cartela de selos. O formato 3x4 remete diretamente ao padrão de identificação do indivíduo em nossa sociedade. A ausência dos traços faciais cria uma confusão na leitura dessas imagens, que são associadas ao nome do artista. ✴✴✴

2  Paulo Bruscky nunca comercializou sua obra, tendo como meio de sobrevivência apenas seu salário como funcionário público do Hospital Agamenon Magalhães em Recife.

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Vemos o avatar de Paulo Bruscky sendo entrevistado pelo avatar de Gabriel Mascaro no ambiente virtual do Second Life. O cineasta pergunta: “Você faz o que mesmo?” Bruscky responde: “Sou inventor e faço arte”. “Então você é pintor?”, retruca Mascaro. “Não, eu trabalhei com mídias tradicionais, mas hoje eu trabalho com mídias contemporâneas.” “Como assim?” “Com filmes, com vários suportes, com eletrografia, livro de artista, performance, poesia sonora... e por aí vai.” ✴✴✴ A década de 60 se caracterizou por um questionamento aos suportes tradicionais da obra de arte, especialmente a pintura e a escultura. No Brasil, um dos principais movimentos artísticos dessa época é o Neoconcretismo carioca, no seio do qual o surge o conceito de “não-objeto” criado por Ferreira Gullar para dar conta de obras como os Bichos de Lygia Clark e os Bólides de Hélio Oiticica. No contexto internacional, a crítica de arte Rosalind Kraus publica em 1979 o antológico ensaio “A escultura no campo ampliado” para ressaltar a elasticidade que a categoria “escultura” teria adquirido ao longo das duas décadas anteriores para se adequar aos experimentos do minimalismo, da land art e às instalações multimidiáticas que surgem nessa época. No entanto, em regiões periféricas como o “nordeste”, a pintura parece ter tido uma sobrevida maior do que o que aconteceu no panorama das grandes metrópoles. Segundo a tese defendida por Albuquerque Jr (2009), a pintura figurativa teve grande importância na instituição do Nordeste como espaço da tradição e da saudade, por um lado (através das pinturas como as de Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres) e de revolta e utopia, por outro (como testemunha a pintura social de Portinari). Apesar de o autor estar se referindo a um período histórico específico, mais especificamente entre as décadas de 30 e 50, o sentimento de desterritorialização que a arte abstrata moderna hegemônica nos grandes centros criava continuou a ser combatido no nordeste, até mesmo no auge do experimentalismo das décadas de 60 e 70. “Extrapolar seu limite, apostar em outros meios expressivos, significava blasfemar e ‘imitar’ o estrangeiro, as tendências vindas de grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Europa e Estados Unidos.” (TEJO, 2009, p. 9) Segundo a crítica e curadora Cristiana Tejo, o fato de Paulo Bruscky ter como uma constante a utilização de meios não tradicionais da arte, especialmente por estar desvinculado da pintura como suporte, teria sido um dos motivos pelos quais o meio artístico de Pernambuco hostilizou durante muito tempo seu trabalho (idem). Bruscky transitou por quase todo e qualquer suporte ou meio possíveis, sempre em busca de uma melhor adequação às suas ideias. De máquinas fotocopiadoras à película Super-oito, passando por carimbos, fotografia, vídeo, telégrafo, jornal, eletrografia, fax e internet, o artista pode ser considerado um pioneiro no que chamamos hoje de arte e mídia (MACHADO, 2007). A ideia de intermédia, um dos pilares do já citado grupo Fluxus, traduz bem esse pensamento: “(...) o sentido de intermédia frequentemente inclui arte oriunda de diferentes raízes, de muitas mídias que se multiplicam em novos híbridos.” (FRIEDMAN, 1999 apud FREIRE, 2006, p. 29) Apesar de representarem ainda uma minoria no panorama artístico pernambucano, nos últimos anos pelo menos dois coletivos ligados à poética midiática atualizaram as questões de autoria e colaboração que permeiam grande parte da trajetória de Bruscky: Re:combo3 e Media Sana4. ✴✴✴

3  O Re:combo foi um grupo de artistas, músicos, engenheiros de software e Djs que trabalhou com projetos de arte digital e música de forma colaborativa, entre os anos de 2002 e 2008. 4  O Media Sana é um coletivo de artistas multimídia que atua nas relações entre a comunicação e a cidadania. http://www.mediasana.org/

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As Cosmococas de Oiticica, criadas com a co-autoria de um cineasta, Neville d´Almeida, representam simultaneamente um questionamento do papel do espectador no museu e na sala escura. As salas onde são exibidas recebem elementos estranhos à galeria tradicional (redes, bolas de encher, piscina, etc) as projeções acontecem nas quatro paredes e no teto, criando uma forma de fruição bem diferente da do dispositivo da sala escura. Além disso, o uso de fotografias em diapositivos no lugar de imagens em movimento questiona a linguagem cinematográfica em sua forma narrativa clássica. A referência à história do cinema na proposta de Bruscky ao usar o vagão de trem como sala de projeção não se limita ao fato desse meio de locomoção ter figurado em diversos filmes das primeiras décadas de sua invenção (o exemplo mais evidente é a primeira exibição dos irmãos Lumière). Podemos também relacioná-lo a um dispositivo de exibição que não figura nas histórias oficiais do cinema a não ser por sua curiosidade, apesar da popularidade que adquiriu por certo período de tempo. Trata-se do Hale´s Tour, um espetáculo cinematográfico comercializado por George Hale nos Estados Unidos na primeira década do século xx, em que os espectadores experimentavam uma viagem de trem simulada ao entrar em um vagão para assistir cenas cinematográficas produzidas por câmeras situadas no ponto de vista de um trem em movimento. A inversão/invenção do projeto de Bruscky retoma a origem do cinema em sua potência, pura imagem em movimento. ✴✴✴

A projeção seria a inversão do processo cinematográfico normal, ou seja, transformar os espaços entre os dormentes do paralelo dos trilhos em fotogramas fixos e o projetor (trem) em movimento. O roteiro seria de uma estação/cidade para outra e a projeção das imagens para dentro do vagão será feita através de uma abertura no piso do mesmo, onde seria acoplado um sistema de espelhos. ✴✴✴ O início da produção audiovisual de Paulo Bruscky coincide com o surgimento do chamado Ciclo de Super-8 de Pernambuco5 e com o surgimento dos primeiros experimentos em videoarte no eixo Rio/São Paulo. No entanto, é difícil dizer onde se encontra a experiência com imagem em movimento do artista. Se por um lado, grande parte dos filmes de Bruscky foi realizada com câmeras Super-8, provavelmente pelo acesso fácil a esse equipamento, a estética de seus filmes se distanciava bastante do que era produzido pelos cineastas pernambucanos com esse suporte. Por outro lado, mesmo se aproximando mais dos experimentos de videoarte realizados pelos cariocas e paulistas, percebemos um questionamento da linguagem cinematográfica inexistente no grupo dos chamados pioneiros da videoarte brasileira. A obra/processo Cinema de Inver(n)s(ç)ão (1982) pode ser considerada paradigmática, até mesmo por prescindir de qualquer suporte. O projeto se enquadraria no conceito de Quasi-cinema criado por Hélio Oiticica, segundo o próprio Bruscky (in: MACHADO, 2006, p. 81). A ideia de fato se assemelha bastante ao propósito que norteou Oiticica em suas experimentações com o meio cinematográfico na série Cosmococas (1973), ao esgarçar o dispositivo hegemônico da “forma cinema”6 . Trata-se de um posicionamento frente à decadência do modelo narrativo-ficcional cinematográfico, além de um questionamento da posição espectador/espetáculo imposto pela arquitetura da sala de cinema herdada do teatro italiano. 5  Movimento que reuniu realizadores na década de 70 como Jomard Muniz de Brito, Amin Stepple, Geneton Moraes Neto, na vertente mais experimentalista e Fernando Spencer, Celso Marconi e Athos Cardoso na produção documental. 6  Expressão cunhada por André Parente para se referir “a forma particular de cinema que se tornou hegemônica, vale dizer, um modelo estético determinado histórico, econômico e socialmente” (PARENTE in: MACIEL, 2009, p. 24).

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Na ponte Conde de Boa Vista, uma dezena de pessoas chamam a atenção dos passantes. Paradas com cartazes em mãos, parecem tentar se comunicar com outro grupo aglomerado na Ponte Duarte Coelho. A tentativa fracassada acaba quando os participantes do ato performático jogam seus cartazes na água do rio Capiberibe, fazendo com que suas mensagens flutuem em direção ao mar. ✴✴✴ A performance é sem dúvida uma das modalidades artísticas mais presentes na trajetória artística de Paulo Bruscky, especialmente aquelas que têm a cidade como tema. Não apenas Recife, uma presença constante em sua obra, mas também Montreal, Paris, São Paulo, Nova Iorque, Brusque (sc), entre outras. Segundo Cristina Freire (2007, p. 82), Bruscky se relaciona com a cidade como um texto a ser lido. Em diversas ocasiões, o artista se apropria dos signos oferecidos pela cidade para compor sua poesia visual. É o caso da obra Vervendo (1996), em que muros da cidade contendo pinturas com a palavra “Vendo” são ressignificados a partir do deslocamento desse texto e da ênfase na repetição, ressaltando o caráter poético dos signos oferecidos pela cidade. Em MIJE (1982), Bruscky ressalta a coincidência/acaso da sigla estampada nos muros do Ministério da Infância e Juventude de Paris, em uma atitude em que o humor e a irreverência faz referência ao espírito dos dadaístas. A proposta de Artexpocorponte (1972) retoma a temática da comunicação, a partir da constatação de sua impossibilidade. O uso das pontes como lugar de passagem e de ligação entre dois territórios não se faz por um acaso. As pontes escolhidas pelo artista para essa performance são as mais antigas e conhecidas da cidade, uma das imagens mais veiculadas de Recife em cartões postais. No entanto, aqui elas ganham novo sentido, na medida em que não leva a lugar algum 7. A distância entre elas parece intransponível e a comunicação entre os que estão numa e noutra margem se mostra uma impossibilidade. O rio, então, leva as mensagens para outros lugares, outros continentes, tornando imprevisível seu destino. 7  Aqui há a inversão da função poética da letra de Lenine: “A ponte não é para ir nem pra voltar/A ponte é somente pra atravessar/Caminhar sobre as águas desse momento”.

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✴✴✴ No ambiente virtual do Second Life vemos uma escada em espiral que não leva a lugar algum e ouvimos os passos de alguém subindo com passos apressados. Ao fundo, em off, a voz de Bruscky declara:“É claro que cada época tem a sua escrita, e é preciso ser contemporâneo pelo menos de si próprio, porque os historiadores nem sempre falam a verdade. A arte é que deixa um registro da história mais bem feito, mais real”. Quando os passos cessam, vemos o avatar de Bruscky saltando do alto da escada e ouvimos o som de um corpo que cai. ✴✴✴ O filme de Gabriel Mascaro, As aventuras de Paulo Bruscky (2009), é resultado de um projeto que ganhou o prêmio Rucker Vieira de roteiros de documentário patrocinado pela Fundaj no ano de 2008, quando o tema sugerido havia sido “novas representações do nordeste na arte contemporânea”. O roteiro inicial se constituiu da troca de e-mails entre o diretor e o artista, sendo cada sequência uma missiva entre os dois. Por conta de uma contingência, no momento da realização do filme Paulo Bruscky não pôde estar presente. A solução encontrada foi produzir um documentário em machinima, um novo gênero cinematográfico desenvolvido inteiramente em realidade virtual. A ideia um tanto inusitada de criar um documentário no Second Life sobre Bruscky está em sintonia com uma das principais características de sua trajetória artística. A construção de um personagem autônomo, que se desvincula da corporeidade de um sujeito autor, pode ser percebida em diversas performances do artista. É o caso, por exemplo, da exposição/performance Arte Cemiterial (1971). Bruscky propõe seu próprio velório, distribuindo convites para a missa de ação de graças usando como formato o tradicional santinho. A ação propunha o transporte de seu caixão em um carro fúnebre dirigido pelo próprio Bruscky pelas ruas de Recife até a Galeria da Empetur. Em certo sentido, o artista se torna um avatar de si mesmo, ao experimentar imaginariamente a sensação da morte em seu enterro performático. Nada mais natural do que fazer um documentário sobre o personagem Paulo Bruscky abusando das possibilidades de ação virtual que o Second Life possui, não apenas atualizando o suicídio do artista, como também revelando sua vitalidade em cenas de dança e sexo. Se o discurso das entrevistas apresentadas no filme nos soa institucionalizado e repetitivo (de fato, Bruscky não acrescenta muito em seus depoimentos ao que já foi publicado sobre suas experiências), o humor e a ironia que caracterizam quase a totalidade de seus trabalhos aparecem com força no filme, tornando-o muito mais do que um documentário sobre um artista nordestino contemporâneo. Retornando a questão inicial, se Paulo Bruscky é ou não um artista nordestino, continuamos no impasse. Não podemos negar que ao colocarmos a questão do Nordeste estamos lidando com uma série de enunciados discursivos que se consolidaram ao longo da história recente do país e que trazem a marca de um embate em que estratégias de poder se cruzaram, criando convenções consagradas historicamente (ALBUQUERQUE JR, 2009). Se a ideia de uma identidade nordestina é uma invenção recente, é evidente que não podemos simplesmente negar a sua existência, ou reinventá-la do zero. Estamos dialogando com um determinado consenso que se construiu ao longo das primeiras décadas do século xx e que informou uma série de discursos para o qual essa categoria era operante. Um consenso que cria também um estereótipo calcado nas oposições “tradição x modernidade”, “rural x urbano”, “pobreza x riqueza”, “escassez x abundância”, em que o lado pejorativo é sempre associado à região. Mas então, como escapar dessa armadilha? Como responder a essa questão sem uma confirmação ou uma negação? Talvez o melhor seja não responder e manter a ambiguidade da interrogação.

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bibliografia

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009 • BRUSCKY, Paulo. Cinema de Inversão/Invenção. In Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. Arlindo Machado (org.). São Paulo: Itaú Cultural, 2003 • CRUZ, Nina Velasco. “Fotografia digital, estética e sociedade de controle”. In: Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008 • FREIRE, Cristina. Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia. Recife: CEPE, 2007 • MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007 • SANTOS, Priscila. Redescobrindo Paulo Bruscky — Os três caminhos de sua produção audiovisual. Artigo apresentado no xxix Congresso Brasileiro de Comunicação (Intercom) em setembro de 2006, disponível em: http://www.intercom.org.br/ papers/nacionais/2006/resumos/R0989-1.pdf • TEJO, Cristiana. Paulo Bruscky: arte em todos os sentidos. Recife: CEPE, 2009.

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Sobre os autores: André Queiroz é escritor e ensaísta. Doutor em Psicologia. Mestre e Licenciado em Filosofia. Professor no Programa de Pós Graduação

Luiz Manoel Lopes é Doutor em Filosofia. Professor Adjunto de Filosofia da Universidade Federal do Ceará — Campus no Cariri. Coorde-

em Psicologia e no Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. É autor dos seguintes livros: A Morte falada (1998); Foucault — o paradoxo das passagens (1999); Tela atravessada — ensaios sobre cinema e filosofia (2001); O Sonho de nunca (2004); Outros nomes, sopro (2004); O Presente, o intolerável — Foucault e a história do presente (2004); Em direção a Ingmar Bergman (2007); Antonin Artaud, meu próximo (2007). Coorganizou os seguintes livros: Foucault hoje? (2007); Barthes e Blanchot: um encontro possível? (2007); Pensar de outra maneira — a partir de Cláudio Ulpiano (2007); Apenas Blanchot! (2008).

nador do curso de Comunicação Social e Jornalismo. Membro do gt — Pensamento Contemporâneo (anpof) e líder do Grupo de Pesquisas Filosóficas (ufc — Cariri). Membro do Conselho da Secretaria Municipal de Cultura de Juazeiro do Norte.

Daniel Lins é filósofo e sociólogo. Professor associado da Universidade de Paris iii. Professor de Filosofia da Faculdade de Educação da

Márcia Tiburi é Doutora e Mestre em Filosofia. Graduada em Filosofia e Artes. Professora do Programa de Pós Graduação em Arte, Educação e História da Cultura da Universidade Mackenzie. Publicou as antologias As Mulheres e a filosofia (2002); O Corpo torturado (2004); Mulheres, filosofia ou coisas do gênero (2006). Publicou os livros: Uma outra história da razão (2003); Diálogo sobre o corpo (2004); Filosofia cinza — a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (2004); Metamorfoses do Conceito (2005); Filosofia em comum — para ler junto (2008). Publicou os romances Magnólia (2005) e A mulher de costas (2006). É colunista da Revista Cult e participante do programa Saia Justa do Canal gnt.

Universidade Federal do Ceará. É autor, dentre outros, dos seguintes livros: Espinosa em Deleuze/ Deleuze em Espinosa; Juízo e Verdade em Deleuze; Sila, uma cangaceira no divã; La Passion selon Lampião. Organizou os livros: Nietzsche/ Deleuze: jogo e música; Nietzsche/ Deleuze: razão nômade; Nietzsche/ Deleuze: arte e resistência; Nietzsche/ Deleuze: bárbaros, civilizados.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior é Doutor, Mestre e Graduado em História. Pós Doutor pela Universidade de Barcelona. É

Luizan Pinheiro é Doutor em Artes Visuais/História e Crítica de Arte. Professor da Universidade Federal do Pará. Autor dos livros: Adolescendo Solar (2009); In:Posturas estéticas (a sair).

colaborador da Universidade Federal de Pernambuco, e Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Presidente da anpuh — Associação Nacional de História. É autor, dentre outros, dos seguintes livros: A Invenção do Nordeste e outras artes; Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional; História: a arte de inventar o passado. Coorganizou o livro: Cartografias de Foucault.

Nina Velasco e Cruz é Doutora, Mestre e Graduada em Comunicação. Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social e

Jorge Vasconcellos é Doutor em Filosofia. Professor de Estética Filosófica e Teoria do Cinema. Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia — Mestrado Acadêmico — da Universidade Gama Filho/ugf. Professor Adjunto dos Cursos de Cinema e Artes Dramáticas do Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro/UniverCidade. Líder do Núcleo de Pesquisas em Filosofia Francesa Contemporânea/nuffc, ligado ao Diretório dos Grupos de Pesquisas do cnpq. Autor de, entre outros, Deleuze e o Cinema. Recentemente foi aprovado em 1° lugar em Concurso de Provas e Títulos como Professor Adjunto da área de Arte e Pensamento do Curso de Produção Cultural do PURO-uff.

Ney Ferraz Paiva é ensaísta e poeta. Autor dos livros: Não era suicídio sobre a relva (2001); Nave do nada (2004); Val de Cães (a sair).

152 a reinvenção do nordeste

do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Coorganizadora dos seguintes livros: Foucault hoje? (2005); Barthes e Blanchot: um encontro possível? (2005).

a reinvenção do nordeste 153


Fotografias usadas nesta obra

Ficha técnica

Davi Pinheiro é fotógrafo profissional desde 2005, trabalhando como freelancer. Já realizou cobertura fotográficas em vários eventos cul-

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

turais no Estado do Ceará para diversas instituições, como: Secretaria de Desenvolvimento Agrário, Petrobrás e Sistema Fecomércio/SESC/ SENAC/IPDC. Fotografa também para publicações, e recentemente participou do projeto Terreiro da Tradição organizado pelo Serviço Social do Comércio.

SEMINÁRIO ARTE & PENSAMENTO: A REINVENÇÃO DO NORDESTE ORGANIZAÇÃO GERAL André Queiroz PALESTRANTES

PRESIDÊNCIA DO CONSELHO NACIONAL Antônio Oliveira Santos

Jorge Vasconcellos André Queiroz Luis Manoel Lopes

DEPARTAMENTO NACIONAL

Páginas 4 e 5. Reisado de Congo em Juazeiro do Norte – ce | Página 6. Palha trançada tipica do artesanato cearense | Página 8. Bordado tipico do artesanato cearense | Páginas 12 e 13. Brincantes do Cordão do Coroá – ufc | Páginas 20 e 21. Discipulos do Mestre Pedro – Juazeiro do Norte | Página 29. Reisado do Mestre Sebastião | Páginas 36 e 37. Reisado de Caretas – Boi Coração | Página 43. Reisado dode Caretas | Páginas 50 e 51. Reisado do Mestre Sebastião | Páginas 56 e 57. Discipulos do Mestre Pedro | Página 61. Boi de Quixadá | Página 62. Damas do Boi do Quixadá | Páginas 66 e 67. Mateus dos Discipulos do Mestre Pedro | Página 73. Membolador Passarim – ce | Página 74. Tocador do grupo metamorfose do sertão do SESC Ler de São Gonçalo do Amarante | Página 79. Tocador do Discipulos do Mestre Pedro | Página 80. Indigena da etnia Pitaguary / Caucaia – ce | Páginas 86 e 87. Reisado de Cartes / Juazeiro do Norte – ce | Página 93. Iguarias das feiras livres | Página 94. Iguarias das feiras livres | Página 103. O vaqueiro e seu filho | Página 104. Igreja matriz da cidade de Quixadá – ce | Página 109. Interior casa tipica do sertão nordestino | Página 115. Mestre Maria do Horto / Juazeiro do Norte – ce | Página 116. Rosto pintado do maracatu, dança tipica nordestina | Página 121. cia Catariana de Teatro / Fortaleza – ce | Página 122. Boneca de pano, artesanato tipica nordestino | Páginas 126 e 127. Reisado SESC Nossa Senhora da Saúde / Comunidade Varjota / Fortaleza – ce | Página 131. Tocador da dança de coco / Pecém – ce| Página 132. Tocador de rabeca. | Página 137. Mestre Assis Rufino / Quixadá – ce | Página 143. Mestre Cachoeira. | Página 144. Pintura de indio / Sede do Brincantes do Cordão do coroá. | Páginas 150 e 151. Paisagem tipica nordestina / Caucaia – ce.

Márcia Tiburi

DIREÇÃO GERAL

Nina Velasco e Cruz

Maron Emile Abi-Abib

Daniel Lins

DIVISÃO ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA

Durval Albuquerque Muniz

João Carlos Gomes Roldão

Luizan Pinheiro

DIVISÃO DE PLANEJAMENTO E DESENVOVIMENTO Álvaro de Melo Salmito DIVISÃO DE PROGRAMAS SOCIAIS Nivaldo da Costa Pereira

PUBLICAÇÃO EDITOR Serviço Social do Comércio

CONSULTORIA DA DIREÇÃO GERAL Juvenal Ferreira Fortes Filho

COORDENAÇÃO

Luis Fernando de Mello Costa

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO E MARKETING Caio Henrique Quinderé Castello Branco

DEPARTAMENTO REGIONAL — CEARÁ

REVISÃO DE TEXTO

PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL

Aécyo Flávio Braúna Bittencourt

Luiz Gastão Bittencourt da Silva

José Ednardo Abreu Gadelha Carlos Roberto Nogueira de Vasconcelos

DIRETORIA REGIONAL

As fotografias foram feitas por Davi Pinheiro durante pesquisa realizada para o mapeamento e registro dos grupos de tradição oral pertencentes ao Projeto Terreiro da Tradição, que ocorre no dr ce.

Antonia Regina Pinho da Costa Leitão

FOTOGRAFIA

DIRETORIA ADMINISTRATIVA-FINANCEIRA

Davi Pinheiro

Domingos Sávio da Costa DIRETORIA DE PROGRAMACAO SOCIAL Maria Gorett Nogueira da Silva

VÍDEOS Caio Henrique Quinderé Castello Branco CÂMERA DO VIDEO Edilson Freitas EDIÇÃO DO VIDEO Rui Ferreira Marcus Vinicius da Silva Monteiro ENTREVISTAS Ricardo Guilherme Vieira dos Santos PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

154 a reinvenção do nordeste

Viraluz Design & Editorial


¶ Esta obra foi composta em Minion Pro (tipografia projetada pelo designer Robert Slimbach), utilizada para corpo de texto (10/15) e títulos (36/36) e Myriad Pro (tipografia projetada pelos designers Robert Slimbach & Carol Twombly com Fred Brady & Christopher Slye) utilizada para as legendas (8/10) e notas (7/10). Impresso em papel couché mate (240 g/m2 - capa e 120 g/m2 - miolo) pela Expressão Gráfica & Editora, em outubro de 2010.


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