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PREFÁCIO Assistir a um filme, ler um livro ou até mesmo apreciar uma obra de arte são atividades que envolvem muitos processos em nossa mente. Esses processos, que são as categorias do pensamento, podem ser chamados de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. A Primeiridade é a mente instintiva, ou espontânea. São as sensações e emoções imediatas, muito rápidas e frágeis e que, por esse motivo, não podem ser controladas. Essa categoria não permite associações ou interpretações, pois a partir do momento em que se tenta explicar o fenômeno, este perde a sua inocência característica de mera qualidade. A Secundidade, por sua vez, é o conflito, ou seja, a interpretação das sensações, como a consciência da existência delas. Finalmente, a Terceiridade é a mente logicamente controlada, ou seja, a razão. Nessa categoria, observa-se a criação de leis de percepção e sua aplicação de forma generalizada, a explicação dos motivos e a definição dos fenômenos. Com este livro, pretende-se retratar o modo como essas categorias se manifestam na personagem principal em suas percepções sobre filmes e diretores, tentando mostrar que não existe maneira certa ou errada de entender uma obra de arte. O uso de apenas uma personagem, que é o “eu protagonista”, é proposital: visa-se reforçar a ideia de que ninguém é só razão, só emoção, só conflito; todos passam pelas três categorias de pensamento, pois elas estão extremamente ligadas e fazem parte da constituição do ser humano. A personagem tem diferentes percepções das obras ao longo da vida, ora mais racionais, ora mais emocionais, ora pendendo entre ambos O livro, como a mente humana, se inicia inquieto, conflitante, em desacordo e em discórdia com tudo, independentemente do que tudo seja. O narrador transcende a razão, ao contrário do que explica a semiótica Pierceana. A sequência proposta é a da busca pela emoção, e o conflito da personagem pelo fato de que por simplesmente tentar chegar à emoção, esbarra-se na racionalidade. O caminho contrário que tenta traçar não
deixa de ser racional, e mesmo entendendo que o importante em cada obra é o que foi apreendido, não deixa de estar contido no ambiente da grande cidade, com todas as suas interferências. Assim como a personagem, na metrópole, suas idéias encontramse perdidas e amontoadas, numa frustrada tentativa de organização em meio ao caos. Segue-se um ensaio sobre a razão, um retorno pela personagem, a quando minunciosas análises críticas, tentativas de categorização e classificação, eram mais importantes do que sentir. A ilustração, inspirada nas grandes obras construtivistas do início do séc. XX, retrata a racionalização da personagem em meio à emoção mostrada na tela do cinema, e sentida por todos os outros espectadores da sala. Finalmente, a estampa da impressão digital anuncia a unicidade de cada interpretação, contrária à infinidade de linhas que a compõem. O texto é o próprio horizonte da metrópole, os prédios. Cada uma de suas janelas é um microcosmo dessa metrópole, guardando uma história diferente, uma vida diferente, mas quando observadas em conjunto, como qual o movimento e a vida da grande cidade, essas janelas agem como células de um organismo vivo, sendo produto de sua união um poema distinto do texto original, mas intrínseco a ele.
São Paulo, 4:30 da manhã. São sempre quatro e meia da manhã. E apesar de sempre ser 4 e meia da manhã, tem sempre barulho na rua. Sempre algum bar aberto. Sempre um drinque para se tomar, alguém com quem transar, algo pra comer.
Isso estava começando a me irritar. Eu amo não ter nada pra fazer. TODO Ócio acaba se tornando produtivo. Todo esse movimento me deixava inquieto. Muito inquieto. E assim eu entendia o porque de Woody Allen conseguir falar tanto tempo de Nova Iorque. Tudo é difícil com tanta interferência. Mais difícil, na verdade. Resolvi levantar, já que, segundo minhas contas, eu tinha dormido às 6 da tarde do dia anterior. Vítima de um porre. Peguei o que sobrou do vinho tinto e acendi um cigarro. Precisava de um café da manhã. E fui caçar um arquivo perdido no computador, de um filme de Pedro Almodóvar. Por sempre ter morado em cidades que não tinham cinema, ou que tinham cinemas que só passavam aqueles filmes “hollywoodiânus” que eram os mesmos havia tantas décadas, acabei me habituando a ver filmes em casa, principalmente os que baixava no computador, era o único jeito de ter contato com Lynch, Pasolini, Bergman, Eisenstein, Fritz Lang, Kieslowski, Kurosawa e tantos outros. Eu não entendia quem chamava “cinema” de “cinema” (o primeiro refere-se aos filmes, o segundo ao local),
JÁ QUE eu havia conhecido tanta coisa pela tela de um computador ou POR um dvd. Era muito difícil ver/assistir a/ler os filmes nessa época. Era árduo, quase um trabalho. Notar cada câmera e cada som e cada expressão do ator e cada cenário e cada fala… Isso estava me cansando Eram tantos símbolos, tantas interpretações e tantos índices a serem decifrados que, para conseguir enxergar tudo, eu tinha de passar o filme em câmera lenta. Tinha estudado tanta, tanta semiótica... Fazia um texto por filme que assistia, interpretando-o. E os analisava, contava para outros amigos bestas. Eu e minhas tentativas de racionalizar tudo. Eu e minhas interpretações,
MINHAS Quanto desequilíbrio… Totalmente Yang, masculino, racional. Segundo Jung, os únicos homens que encontraram o total equilíbrio foram Jesus e Buda. Eu era praticamente o anticristo. às quatro e meia da manhã, Era isso que eu queria
?
3 “três”
Razão. A racionalidade humana está tão, mas tão fincada dentro de cada um, que até sensações têm de ser racionalizadas o tempo todo. Romances racionalizados. Gozadas racionalizadas. Olhares racionalizados. Sempre que eu penso no auge da racionalização, lembro de Stanley Kubrick. Tudo tão belo, pensado, simétrico, trabalhado... Arre! (Desculpe-me o “Arre!”, esqueci que isso não me irritava, ainda.) Deve dar muito trabalho ser tão racional assim, ainda mais para quem fica do outro lado da tela a decifrar tudo. Pegar e conseguir traduzir todas as intenções e sensações em mecânica, em técnica. Eu amava tudo. Amava a desconstrução. A desconstrução era o único caminho para depois ser construída uma grande verdade. E eu amava tentar trilhar exatamente o que o cineasta percorria até chegar no resultado estético exposto. E proposto. Depois de tudo - supostamente – entendido, eu ia até alguns daqueles amigos “intelectuais” e contava a estória para eles. Identificava tudo o que havia apreendido, mas encarava como verdade absoluta. Não havia discussão com minhas impressões, eu era genial – exceto pelo fato de que não era. Foi mais ou menos nessa época que rodei todos os grandes diretores, procurei entender seu estilo, suas roupagens, tramas, sua visão de mundo. Tracei seus perfis, estudei suas vidas e tentei entender tudo, mas tudo o que os havia feito chegar até ali. Eu estava o mais longe possível do equilíbrio. Eu achava que tudo pudesse ser expresso por argumentos racionais, que tudo pudesse ser explicado. Todos os livros, os filmes, os quadros e as canções não passavam de construções. Literalmente uma construção, de carne e osso, de rolo de filme, de concreto. Até aí, um prédio não é diferente de arte. E nem estou falando de prédios com toda uma arquitetura rebuscada, mas sim desses dentes que se estendem a cada rua dessa cidade, prontos para nos mastigar. Eram os prédios contra a fumaça, mas eu não enxergava. Era eu, pronto a ser engolido. Era eu no meio desses dentes. Ainda aficionado por São Paulo, ia a todos os seus cinemas, seus teatros, suas bibliotecas e seus saraus. Eram todos mais dentes. Inclusive um sarau de filmes – por mais absurdo que isso pareça – do qual participava. Nele, cada um contava um filme à sua maneira. Era fantástico, de uma pluralidade de significados incontestável, consistia nas impressões de uma pessoa sobre uma obra e eu comecei a me perguntar se não era essa a parte importante...
E assim com qualquer outro.
Já era possível sentir o jazz, sem pensar nas escalas que Miles Davis e Coltrane usavam. Possível sentir as cores sem pensar na técnica, em Kandinsky, Sentir as mulheres de Modigliani, sentir Fellini sem pensar em suas câmeras, Mas nos seus sonhos... Sonhos. Assim, David Lynch não me era mais um desafio, assim, Buñuel não me era mais um desafio,
Transcendental.
E a tentativa de solucionar uma dúvida não é nada mais do que uma maneira de se livrar do incômodo. Quase uma libertação, um rompimento com esse compromisso de decifrar tudo,
No fim. Toda dúvida é um incômodo.
Parece que tudo o que vivemos e experimentamos é para, no fim, conseguir sentir. Todos os casos e acontecimentos são para que, no fim, consigamos sentir. Relevando tudo o que acontece externamente.
Solução. Resolução. Dissolução. De todas as telas, todos os rolos de fita, todos os filmes.
Azul Branco Vermelho. União de todos os ideais. Repercussão de todos os “frêimes”.
E tudo é tão maior, agora. Sabe o que eu penso da trilogia das cores, de Kieslowski? É azul, branca e vermelha. Exatamente: azul, branca e vermelha. Não é necessária Definição nenhuma. Assim como o título em português, Não que a liberdade não seja azul. Mas só a palavra “azul” daria conta.
Sentir. Nada mais era importante.
Eu sentia.
POSFÁCIO
n’Outro dia encontrei um velho amigo, um daqueles que frequentava o sarau de filmes comigo. Ele me cumprimentou e depois disso perguntou: - Meu caro, o que me diz da obra de Fellini? Eu sorri. Sorri sinceramente, feliz, como não sorria há tempos. Afinal, um sorrriso era o melhor (e o único) jeito de explicar o que eu achava de Fellini.
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Aléssio Perez Bárbara Sarquis Maria Eugênia Garcia Rafaella Blasotti Vítor Guimarães CSOS2-C