CADERNO 3
>> O CAMINHO ATÉ MERCEDES | Foto: Pablo Bernardo
Passeio que não é passagem ou #NãoVaiParar O caminho foi se desenhando sob passos inspirados por caminhadas longas e ancestrais - e começamos a busca para empretecer um dia da semana com espetáculos de artistas pretas e pretos. A construção desse nosso espaço de fabulação, alegrias, reflexão, pensamento crítico e afeto emancipatório, foi se dando em cada gesto, abraço, olhar e troca. Surgia mais um quilombo: a segundaPRETA. Pretas e pretos aquilombados, trabalhando juntos e construindo espaços de visibilidade para seu trabalho. Viemos para ser parte de uma programação PRETA que já acontece na cidade, para somar com os grupos de artistas negros quem vêm militando e provocando diálogos por meio de sua arte. Para estar junto dos nossos buscando espaços que se espalhem por todos os meses do ano, e não apenas nas datas comemorativas que remetem a diáspora. Viemos para estar com os nossos. Um movimento de arte de pretas e pretos para pretas e pretos e com pretas e pretos. Logo, o questionamento sobre o racismo estrutural atravessa o campo da criação e reflete na estrutura produtiva da segundaPRETA. A busca pelo empretecimento significa, para nós, tocar a raiz da estruturação cultural eurocentrada da linguagem artística e promover mudanças significativas na fruição teatral. Inspirados pelos caminhos da Terça Preta, realizada em Salvador pelo Bando de Teatro Olodum, chegamos! Firmamos o ponto no teatro espanca! hipercentro da cidade, facilitando assim o acesso e o diálogo com os trabalhadores da capital. O encontro com a cidade nos interessa e nos fortalece.
Assim, como a saudação as nossas pretas velhas – não em idade, mas em sabedoria e ensinamento para partilhar – escolhemos o caminho de homenagear a cada temporada uma mulher negra viva. Desde então, já reverenciamos Ruth Souza, Zora Santos, Leda Maria Martins, Ana Maria Gonçalves e agora, na nossa quinta temporada, Conceição Evaristo. Passo a passo, batendo laje, no fazer e no aprendizado diário a cada segunda-feira. Esse dia de Exú - responsável e grande mestre dos caminhos; o que permite a passagem o início de tudo, a força natural viva que fomenta o crescimento, o primeiro passo em tudo. Fomos criando corpo. As apresentações desencadeavam reflexões e provocações a cada debate, e pela escrita documentamos o trilhar desse caminho. A coisa tomou forma, veio o cadernoPRETO para guardar memórias. A publicação está em sua segunda edição e traz os registros fotográficos feitos pelo Pablo Bernardo e todas as reflexões e expansões escritas a partir das cenas apresentadas. Com passinhos miudinhos caminhamos para a segundaPRETINHA, para acalentar lembranças, para ampliar a fala com todos os públicos. Ela está tomando forma e já ocupa um domingo dentro da programação há duas temporadas. E, para matar as saudades, criamos as entre-temporadas. =) Que são palco de outras atividades que nos fortalecem para seguir os caminhos da segundaPRETA. Já promovemos duas edições do cinemaPRETO lá no teatro espanca! Também ampliamos a fronteiras afetivas, em um passeio na Casa Lúdica (SP) e agora retornaremos ao Aparelha Luzia (SP) para mais uma ação de entretemporadas e trocas com os pretos de lá. 06
Nessa trajetória, que foi se fazendo a cada passo dado, até o momento, já ajuntamos cerca de 1770 pessoas lá no teatro espanca! para assistir 47 espetáculos/cenas/performances/ experimentos. Recebemos o carinho e troca de cerca de 210 pessoas na bateção de laje que é o fazer a segundaPRETA. Na porta do teatro, a nossa calçada da fama foi crescendo. Além das amadas Etiene Martins com a Livraria Bantu, Zora Santos com seus patuás, Kelma Zenaide com as delícias da Kitutu-Gourmet, chegaram o artista visual Rodney Nicomedes com seus chaveiros de bonecas Abayomis e a Afronta Estamparia da Moara Correa e Carola Cruz. Contamos também com o patrocínio do BDMG Cultural e o apoio do Programa BDMG Pró-Equidade, na segunda e também na quinta temporada. Expandimos as fronteiras ao longo das temporadas e já reverberamos para além de Belo Horizonte. Recebemos espetáculos de São João del Rei (MG), Fortaleza (CE), Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ) e São Francisco do Conde (BA). Além disso, nossos respiros de cá foram fonte de inspiração e troca com os movimentos Segunda Crespa (SP) e Segunda Black (RJ). Sim, a gente se comove de lembrar, olhar e sentir tudo que esse caminho tem provocado na gente, na cidade, em artistas pretas e pretos. Caminhamos para a quinta temporada! A segunda segue PRETA. Reverenciamos os caminhos que nos trouxeram até aqui. Saudamos nossos antigos. Pedimos a bênção aos nossos ancestrais e seguimos, firmes, alimentados de afeto e arte. Provocando, tensionando e refletindo. Sendo chaves e abrindo portões. Avante rumo a 5ª temporada! 07
NESTE CADERNO:
TERCEIRA TEMPORADA de 11/09 a 16/10 de 2017
HOMENAGEADA: LEDA MARIA MARTINS PROGRAMAÇÃO FOTOS CRÍTICAS
ENTRE-TEMPORADA #3 18/12/2017
PROGRAMAÇÃO
QUARTA TEMPORADA de 19/03 a 23/04 de 2018
HOMENAGEADA: ANA MARIA GONÇALVES PROGRAMAÇÃO FOTOS CRÍTICAS
ENTRE-TEMPORADA #4 21/05/2018
PROGRAMAÇÃO
QUINTA TEMPORADA de 28/05 a 02/06 de 2018
HOMENAGEADA: CONCEIÇÃO EVARISTO PROGRAMAÇÃO
>> TEATRO ESPANCA | Foto: Pablo Bernardo
ÍNDICE ______________________ Leda Maria Martins ... 16 ___________________________________ Memórias Póstumas de Neguinho ... 19 __________________________________________________________ Crítica - Sobre memórias dos neguinhos que não morreram ... 22 __________ Ama ... 27 ______________ Sem dono ... 30 ___________________________________ Crítica - Sobre tranças e estilhaços ... 34 _____________________________ Vem... Pra ser infeliz, 2017 ... 37 __________________________________________ Fragmentos do amor no panteão africano ... 40 _______________________________________________________________ Crítica - Elas nas invencoes e nos rasgos das tramas encantatórias ... 44 _____________ Segredo ... 48 ___________________________ O caminho até Mercedes ... 53 ________________________ Protótipo para cavalo ... 56 _____________________________________________________________ Crítica - Sobre treta, segredo e axé: cavalo com fogo nas patas ... 60 ___________ Abena ... 62 _______________________________________________ Crítica - Por cima do mar da ilusão eu naveguei ... 66 _________________________ Cânticos para solitude ... 70 ______________________________________ Crítica - Dona da Voz e Voz da Dona ... 74 ______________ Dar a luz ... 77 ____________________________________ Crítica - Uma canção desnaturada ... 80 _______________ Frágil, eu? ... 82 ____________________ Buraco-Saudade ... 87 _____________________________ Elas também usam BlackTie ... 91 ______________________________________ Crítica - Sobre a impureza do branco ... 94 _________________________________________________________ Festa de encerramento e Ficha técnica - Terceira temporada ... 98 _____________________________ cinemaPRETO comentado ... 100 >> NO TEATRO ESPANCA | Foto: Pablo Bernardo
_________________________ Ana Maria Gonçalves ... 105 _________________ Mariele Vive ... 108 _____________________________________________________________________ Flash mob cerimonial: “Os preto tá tão no topo, que pra abater só um caça da Força Aérea” ... 111 ____________________ Endereço Postal ... 115 _______________________ O catador de risos ... 119 _______________________________________________________ Crítica - Tem dois Neguinhos: Morfologias da diferença ... 122 ______________________ Olha o pesado aí ... 126 ________________________ Sobre todos os dias ... 130 ____________________________________________________ Crítica - Carolina: aquela mulher todas e nenhuma ... 134 _____________________ Mergulhos em si ... 137 _________________ Fibra Óptica ... 141 _______________________________________________________________________ Crítica - O abebê de Oxum ou ainda a possibilidade dos espelhos virados ... 144 _________________ Despejadas ... 148 _______________________ A reticência do ser ... 153 ______________________________________________________ Crítica - Meu estranho diário: apontamentos obscenos ... 156 ____________ Xabisa ... 158 __________________________________________________________ Crítica - “Achei que era festa, mas era teatro” ou Tentativas ... 162 _____________________________ Ensaio sobre fragilidades ... 167 ___________________________________________________________ Se os homens são feitos de barro, nós somos feitas de lama ... 171 _____________________________________ Emprazar, chamar pra comparecer ... 148 ___________________________________________________________ Crítica - Sobre ser seres luminescentes, dançantes e erráticos ... 153 __________________________________________________________ Festa de encerramento e Ficha técnica - Quarta temporada ... 182 _____________________________ cinemaPRETO comentado ... 184 _______________________ Conceição Evaristo ... 189 ________________________________________ Programação Quinta Temporada ... 192/206
TERCEIRA TEMPORADA
LEDA MARIA MARTINS HOMENAGEADA DA TERCEIRA TEMPORADA
>> Foto: Pablo Bernardo
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MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE UM NEGUINHO
>> Lucas Costa
(Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
O solo “Memórias Póstumas de um Neguinho” conta, a partir de histórias pessoais e memórias coletivas, a trajetória de um homem negro em seu processo de autoaceitação. O espetáculo/ performance é dividido em dois movimentos distintos, que acontecem em sequência e se entrelaçam.
FICHA TÉCNICA
Atuação e texto: Lucas Costa | Dramaturgistas: Dan Costa, Lucas Costa e Rogério Coelho | Direção: Cida Falabella | Preparação vocal: Renata Andreia | Direção de vídeo: Thiago Macêdo | Cenário e Figurino: Dan Costa e Stela Maris | Produção: ZAP 18 | Colaboradores: Marcus Alexandre, Rodrigo Ednílson, Denise Costa, Gustavo Falabella Rocha, Tásia de Paula, Sarau Preto, A(r) mando o Black | Duração: 55min | Indicação etária: Livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 11 de setembro de 2017.
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Sobre memórias dos neguinhos que não morreram Por Soraya Martins Elas levam a vida nos cabelos: (…) Antes de escapar, as escravas roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem as cabeças e fecundam, assim, a terra livre.[1]
Na última reflexão que fiz, da segunda temporada da segundaPRETA, sobre o espetáculo Black Boulevard ou Tudo Preto de Novo ou Ensaio Geral, da companhia Espaço Preto, chamei para conversa Machado de Assis, autor canônico da literatura brasileira, embranquecido pela crítica literária. Na ocasião, problematizava sobre o modo torto e redutor que se tem para ver/pensar a arte negra: atrelada somente às mazelas sociais e à religiosidade de matriz africana. Essencialismo Negro! Brinquei a la Machado. Decifra-me ou devoro-te. Agora, e como sempre tenho feito, chamo Leda Maria Martins, da poesia, da acadêmica e do terreiro, que junto com a gente de pele colorida tece teoria e conhecimento poderosos, para encarar a esfinge, ou melhor, matar/problematizar as neguinhas e os neguinhos que, obviamente, também habitam nosso modo de fazer teatro. Decidi. Está propício. Vou misturar Leda e Machado. Que a mistura do dois nos potencialize esteticamente! Memórias Póstumas de um Neguinho, como as memórias do defuntoautor Brás Cubas, coloca a memória e o passado em cena para, a partir deles, ressignificar o presente. O neguinho que levava porrada dos coleguinhas, que pela herança social preestabelecida entraria para a criminalidade fácil, morreu. Morreu o neguinho que a sociedade queria neguinho. Agora é Lucas. Lucas Costa. Lucas imprimindo a marca da sua negritude no corpo, mais especificamente no cabelo, que nas múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro oferece, é aquela que se apresenta como síntese do complexo e fragmentado processo de construção das identidades negras. [1] Eduardo Galeano. 22
O cabelo não é um elemento neutro no conjunto corporal. Foi transformado pela cultura em uma marca de pertencimento étnico/ racial. A ênfase, aqui, no cabelo/beleza não é um desvio da luta antirracista, antes, nessa luta, o estético é indissociável do político. Coloca a negra e o negro no mesmo território dos não-negros, o da humanidade. Memórias do Lucas: voltar ao passado para nele fazer emergir um ressentimento recalcado, existente como potência criadora e fundante para algumas artes, como a literatura de testemunho e o teatro negro. O jogo de colocar as memórias em cena recompõe por intermédio da narração a vida de Lucas – persona-personagem que se encena duplamente-, reconstrói um passado morto, subvertendo não apenas a temporalidade dramática, como também o status do personagem Lucas. Quantos neguinhos dentro de nós ainda precisam morrer? Como encenar esteticamente nossos ressentimentos, nossas fúrias e nossas subjetividades? Chamo a Leda: No encontro, na semana anterior, dia 4 de setembro, para abrir os caminhos da terceira temporada da segundaPRETA, Leda nos falou sobre o que ela chama de “tirania da subjetividade”, o excesso da transposição direta dos lugares de enunciação para o palco, a partir de um texto desabafo, sem ou com pouca mediação criativa, criatividade aqui é no sentido de pensar no como, na forma (e não só no conteúdo/tema), tecer essa subjetividade que está na esfera do palco, que foi removida propositalmente do cotidiano. E eis o decifra-me ou devoro-te: “Como reelaborar esteticamente a experiência para que esse eu (essa dimensão subjetiva) que se expressa seja um eu fingido para a experiência estética?” É sintomático ver na discursividade da cena negra contemporânea a repetição do tema negrura, que transita do individual ao coletivo e vice-versa, uma repetição que não está na ordem da repetição perfomática. É passado que não passa, ainda não foi superado, é presença obsideante, por isso sempre volta. Talvez essa repetição não seja, agora, o ponto a ser problematizado (ou talvez sim, se pensarmos a nossa expansão artística para além da repeticão do enunciado e da enunciação sobre a negrura) e sim o como cuidamos desse discurso esteticamente, fazemos cafuné, colocamos para dormir, o questionamos e nos questionamos. 23
Elaborar, laborar nossas subjetividades recalcadas, nossas fúrias e ressentimentos sociais, criativa e esteticamente, talvez seja o caminho para fissuramos nós mesmos como artistas, para estarmos disponíveis e produzirmos outras possibilidades estéticas em arte. Fico pensando que para mudarmos os padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético-performativo ainda precisamos, nós artistas pretas e pretos, matar nossas neguinhas e neguinhos do teatro.
Soraya Martins é atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve críticas teatrais para o blog Horizonte da Cena e para o projeto segundaPRETA. Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 24
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AMA
>> Cia Espaรงo Preto (Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
“Não há creme alisante que apague nossas raízes”. Uma mulher que nasceu na Costa d’Ouro, atravessou o Brasil colonial e hoje resiste nas periferias. Sua cor foi o que lhe restou. Para todas as Medeias que morrem de amor e não deixam os filhos viverem famintos.
FICHA TÉCNICA
Concepção, atuação, figurino e cenário: Anair Patrícia e Anderson Ferreira | Iluminação:Pedro Amparo | Observadoras de criação: Ana Martins, Andréa Rodrigues e Rainy Campos | Produção: Rainy Campos | Realização:Espaço Preto | Duração: 15min | Indicação etária: 12 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 18 de setembro de 2017.
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SEM DONO >> Will Soares
(Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Um corpo que ocupa espaço. Um outro corpo que ao mesmo tempo se liberta. Qual história vale mais? Uma limpando a bagunça do outro… um outro que trabalha para [não] ser Livre.
FICHA TÉCNICA
Atuação : Will Soares | Direção : Lira Ribas e Igor Leal | Figurino: Luiz Dias e Fabrício Lins | Luz: Preto Amparo | Direção de arte: Vitor Paulo | Produção: Beijo no seu preconceito | Duração: 20min | Indicação etária: Livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 18 de setembro de 2017.
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Sobre tranças e estilhaços Por Soraya Martins
Um salão de cabeleireiros com música que guarda e resguarda relações de afeto e quilombagem. Búzios. Um salão que mais que alisar ou relaxar os cabelos, no eufemismo linguístico e real das camuflagens de nossas pretices, trança os cabelos e os tempos. Esse é o cenário escolhido pelo Espaço Preto para tratar de sua Ama, experimento cênico que relê o mito grego de Medeia a partir de um contexto afrobrasileiro e, mais ainda, de um olhar afrocentrado, que mira da periferia, com corpos pulsantes que também falam da experiência do vivido. O Espaço Preto foi ao mito, mas a partir de Agostinho Olavo, lá no Além do Rio, uma das peças que integra Dramas para negros e prólogos para brancos, de Abdias do Nascimento, em que Medeia é uma rainha africana, apaixonada por um branco, que mescla ritos culturais em terras brasileiras. A Medeia aqui é mãe e mulher negra, que no relaxamento tenta eufemizar sua negrura, e mulher numa relação interracial que exige dela se afastar do seu salão-terreiroterreno – espaço de trocas, de conhecimentos contestatórios e de (re) afirmação de identidades e de memórias compartilhadas que voltam ao passado e dele faz emergir uma interpretação outra sobre os modos pretos de sobrevivência, vivências e fluidez. A Medeia aqui é, antes de tudo, Njinga, filha de Iansã, não mata os filhos para se vingar da traição do marido com uma mulher branca, ela trança os cabelos. Esse trançar não se dá com uma ação em cena (que beleza se fosse!) e sim pela encenação da linguagem, mas nem por isso perde a força ao performatizar experiências e vivências em continuo movimento de recriação, remissão e transformação. Não mato, tranço. Esse trançar fala do lugar da estética tanto do corpo feminino, de afirmar identidades, de ser também político quanto do lugar de, esteticamente, elaborar as feridas de Njinga, mas, repito, só no plano da linguagem falada. E se fosse para a cena, no corpo-texto da atriz e do ator, esse trançar que inicia e mantém o cultivo da cultura da diáspora, liga as lutas dos tempos e, em cena, seria um modo de realizar um pensamento, um saber em ato estético-performativo? E as tranças aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos e vestígios… 34
Sem dono. Experimento de Will Soares que coloca em cena fragmentos, fatias de vida de quatro personagens: a mulher que vive no seu mundo dentro de um saco preto, a mulher que só queria uma festa de aniversário, a batalhadora do telemarketing e a mulher, a mesma do telemarketing, que sonha seu sonho de bailarina. Ou todas seriam fragmentos de uma mesma mulher? Todas elas falam, de certa forma, de lugares de vulnerabilidade da existência, mesmo quando são apresentadas ao público via ironia e riso. Aliás, o riso aqui é um riso da tensão, ressentido porque se ri da falta, do não poder sonhar, das estratégias tecidas, entre um telefonema e outro de clientes que só querem mandar e solucionar os seus problemas, para ter minimamente dignidade. Sem dono é composto por estilhaços, fraturas, cacos, ruídos de cenas independentes no todo do experimento. Esses estilhaços, de vidas e de existências e de escolha estética, entram em total contradição com uma representação dramática centrada, composta na perspectiva de um olhar único e de um princípio organizador, cuja progressão obedece às regras de um desdobramento em que as partes individuais engendram necessariamente as seguintes, coibindo os vazios e os começos sucessivos. No experimento, o fragmento induz à pluralidade, à fissura, à multiplicação dos pontos de vista. A fragmentação aqui passa a ser o princípio estético em si. Os quatro fragmentos de cena não são a metáfora ou a metonímia do todo. O mundo é partido, e é inútil pôr-se à procura de um efeito qualquer de quebra cabeça ou de uma lei ordenadora. O que parece mais interessante em Sem dono, nas fatias de vida ali performatizadas, é encontrar exatamente o que não chegou até a nós, o que ficou nas fendas ou o que talvez falte. E sobre faltas… No âmbito da cena contemporânea negra, me vem uma questão tão cara quanto à questão de como atuar de maneira diferente nossos mesmos dramas, que é a discursividade: estamos produzindo textos a serem proferidos em cena? A cena é o lugar da transposição direta dos lugares de enunciação sem mediação textual (a palavra) criativa? Tranças que trançam Sem Dono, Ama, nossa cena e me trançam apertando desde a raiz.
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VEM... PRA SER INFELIZ, 2017 >> Priscila Rezende (Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Um corpo que ocupa espaço. Um outro corpo que ao mesmo tempo se liberta. Qual história vale mais? Uma limpando a bagunça do outro… um outro que trabalha para [não] ser Livre.
FICHA TÉCNICA
Realização: Priscila Rezende | Concepção e performance: Priscila Rezende | Direção: Priscila Rezende | Figurino: Priscila Rezende | Pesquisa de figurino: Priscila Rezende e Gabriela Dominguez | Máscara de Flandres: Natália Cruz Duração: 30min | Indicação etária: 18 anos Áudio: 1- Portela 2017 - Bateria (Esquenta) - Salgueiro Convida_site apoteose 2- Unidos da Tijuca 2017 - Bateria (Esquenta) - Salgueiro Convida 3- Mocidade Alegre 2016 - Bateria (Esquenta) - Apresentação no Salgueiro Este espetáculo foi apresentado na segunda, 25 de setembro de 2017.
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FRAGMENTOS DO AMOR NO PANTEÃO AFRICANO >> Eneida Baraúna (Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Reunindo histórias da mitologia africana, o espetáculo “Fragmentos de Amor no Panteão Africano” apresenta histórias de amor, paixão, encantamentos e disputas entre os Orixás. As mais diversas formas que permeiam o amor são apresentadas nessa livre adaptação dos mitos. Brasil e África se entrelaçam entre os mitos de matriz africana dialogando com outras tradições orais, como a música. Narrativas e Música – um entrelace rico de cultura popular Brasileira.
FICHA TÉCNICA
Contadora de Histórias: Eneida Baraúna | Luz: Preto Amparo | Foto: Zi Reis | Fonte de pesquisa: Livro Mitologia dos Orixás. Autor – Reginaldo Prandi | Duração: 30min | Indicação etária: 14 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 25 de setembro de 2017.
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Elas nas invencoes e nos rasgos das tramas encantatórias Por Mário Rosa
A segundaPRETA e elas. E aqui, neste espaço tão caro de partilha e conversa sobre as artes cênicas e performativas negras, elas e o meu desafio de escrever sobre o que se passou, num elaborar afetivo sobre a experiência de assistir propostas tão diferentes e interessantes na sondagem de questões que perpassam os corpos e as afetividades destas mulheres negras. Elas e as nossas distâncias, possibilidades de fundamentar eticamente relações, de enriquecer um junto e de favorecer deslocamentos para um pensar que efetivamente procura ver o outro, seus incômodos, seus anseios e seus desejos, o que de modo algum nega o que possa aparecer de tenso, desencontrado e lacunar nessas tentativas de aproximação. Elas e as suas poéticas que tentam, cada uma à sua maneira, elaborar dores, afirmar posições e encontrar uma linguagem à altura da necessidade e da vontade de criação de mundos. E aí, do muito que chegou, ressoou, percorreu e atritou fica a síntese provisória do elas– corpos-tempos-vozes-gestos-imagens nas espirais das fabulações e dos desmontes, das recusas e dos encantamentos, das invenções e dos rasgos das tramas encantatórias. Estados de corpos e de presenças num jogo sabido, doído e corajoso. Do corpo e do tempo que subverte dolorosamente a imagem primeirafetiche-identificável, a performance de Priscila Rezende Vem… pra ser infeliz, 2017 utiliza a duração como recurso de questionamento e de desmonte da mulata sambista gostosa exportação. Seminua, de salto alto, com uma máscara de flandres no rosto, no corpo expressões como mulata globeleza, mula, tanajura, cor de jambo, quente e da cor do pecado coladas em letras coloridas, ela ocupou o espaço central do teatro Espanca! e sambou. Sambou sambou.
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sambou
sambou
sambou
sambou
O som de uma bateria de escola de samba seguia num ritmo que por vezes quebrava e insinuava uma interrupção, mas eis que recomeçava e ela lá, numa repetição insistente, em variações simples de movimentos que estamos acostumados a assistir pela TV. Seguimos aquele corpo que dança, observamos os escritos, olhamos para o rosto com a máscara, o salto, o corpo, a dança, certa imponência, o corpo novamente e seu movimento no espaço. Até quando? Sambou, sambou e sambou. A permanência da dança que exaure Priscila e desconforta as pessoas que assistem abre para algo que é sentido e percebido como incômodo no que se vê: a perda de certa cintilância do “pra ser feliz”, já que a mulata globeleza que ela dança prolongadamente revela a carne que não queremos presenciar, expõe as estratégias de objetificação e silenciamento dos corpos negros femininos, deixa a ver o suor, o cansaço na sustentação difícil da imagem e o dourado que se esvai como as letras das palavras que caem do seu corpo. O que não acaba, o que repete, o que volta em novo compasso, o que permanece na batida da bateria é uma longa duração de um passado que não passa e que a proposta de Priscila ativa e atualiza de modo esgarçante. Contudo, na ação, aquele corpo não é ruína e não sucumbe, apesar de todo cansaço e da violência que ele explicita. Ele mais parece, e isso reforça muito a proposta, um campo expandido de experimentação. O que pode este corpo? Ele escapole da representação da fragilidade que desaba, pois o que se entrevê ali é um feixe de forças que ultrapassa as formas reconhecidas. Surge daí uma evidência aparentemente óbvia: o corpo é maior. Ele, o corpo presença da Priscila, o corpo da mulher negra Priscila, que ao final da ação se mantém de pé, quase a nos dizer que o que tende a colar da imagem espetáculo não se mantém se exposto num outro regime de temporalidade, aparece carregado de histórias, sensibilidades, contradições e desejos irredutíveis à crítica ou à negação do olhar do outro. Neste sentido, é um corpo que se afirma muito mais, um corpo atravessado por imagens, impostas e construídas, e que carrega nesta dolorosa travessia as possibilidades de um ir além. Em outro movimento do corpo e dos desejos, Fragmentos do amor no panteão africano, de Eneida Baraúna, nos conta histórias de orixás numa perspectiva que mistura elementos de tradições orais africanas, cartografias do amor romântico ocidental e contribuições de um caldo rico da cultura popular brasileira. Desta operação, de forte carga comunicativa, o que se ressalta é a forte presença de Eneida como contadora de histórias. 45
Do vermelho do vestido, da presença central em cena e a flor próxima ao seu corpo, ela instaura já de início um campo de fabulação em que emergem histórias de Iansã, Ogum, Obá e tantos outros orixás envolvidos em tramas de sedução, desencontros e conflitos amorosos. É ali que ela joga, inventa, desvirtua, encanta, situa, atualiza, modula, carrega e desafia. Tem domínio da tradição, mas procura no livre uso de uma narração particular tornar aquelas histórias próxima de quem assiste. E é com o domínio do corpo que narra, que inclui as modulações da voz, as temporalidades que ativa, um gestual que cria mundos e a musicalidade que entoa, que Eneida segue numa sequencia de narrativas em equilíbrio delicado entre a evocação da figura dos orixás e as histórias bem populares de enlaces amorosos em tons quase novelescos, que podem causar certo desconforto pela reiteração de certas posições de gêneros nas histórias narradas. Nesse sentido, ficam as perguntas: como pensar o perspectivismo africano como inspiração para histórias que se quer elaborar, mas sem que esse procedimento seja a mera cópia do estudado: tão distantes, idealizado e em muitos aspectos de uma referência também problemática? Como aproximar perspectivas (tradições africanas e os modos culturais da vida contemporânea brasileira) nessa incursão pela longa tradição da cultura oral que se abra para o experimento narrativo de outras configurações de corpos, gestos e desejos? Eneida Baraúna parece ter consciência dessas questões e propõe o jogo, jogo quase profano, de uma comunicação direta e sedutora. Dona da história ela se equilibra, constrói e faz os insipientes reparos nas narrativas com despojamento, perspicácia e delicadeza nos modos do narrar. E, numa elevação do entusiasmo dela e de quem assiste, esparrama de vermelho o espaço da contação, esquenta a roda, canta a paixão e novela os contraditórios das tramas que ainda seguem muito perto de nós.
Mário Rosa é Historiador, mestre em arte e educação pela FaE-UFMG, dramaturgo e professor.. 46
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SEGREDO
>> Helvécio Izabel e Lúcio Ventania (Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Uma Série de pesadelos perturba Jabé Enjaí, o corajoso General das forças de defesa do Antigo Império Gana – 1200 d.C. na África subsaariana. A fim de decifrar o tormento, Jabé Enjaí vai ao encontro de Jájabim Jabar Jajaa, o feiticeiro Louco. Tanto as descrições dos pesadelos pelo general, quanto as inquietantes revelações e conselhos do feiticeiro, se dão através de metáforas extraídas de lendas e contos populares Africanos.
FICHA TÉCNICA
Texto: Adaptação de contos Africanos por Lúcio Ventania | Atores: Helvécio Izabel e Lúcio Ventania | Trilha Sonora: Iberê Sansara | Cenário e figurinos: Lúcio Ventania, Helvécio Izabel e Maria Cecilia Alves | Duração: 27min | Indicação etária: 14 anos. Este espetáculo foi apresentado na segunda, 02 de outubro de 2017.
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O CAMINHO ATÉ MERCEDES >> Grupo Emú
(Rio de Janeiro/RJ)
SINOPSE
A dança afro-brasileira de Mercedes Baptista, reconhecida internacionalmente por sua contribuição para a arte, é o elemento base para a construção dos movimentos e interpretação neste trabalho. A dança desloca o corpo de Mercedes por suas memórias. A primeira mulher negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro expressa sua inquietação frente à ausência de lembranças de sua trajetória. O tambor aliado ao corpo afro-físico impulsiona Mercedes na busca por suas referências ancestrais. Uma história atemporal, construída a partir de realidade e ficção, que deu origem ao espetáculo ‘Mercedes’, do Grupo Emú. A apresentação será seguida de uma roda de conversa.
FICHA TÉCNICA
Direção: Thiago Catarino | Texto: Sol Miranda | Pesquisa Musical: Reinaldo Junior | Produção: Diogo Nunes | Direção de Comunicação: Bruno F. Duarte | Atuação: Sol Miranda | Música de Cena: Sabrina Chaves | Linguagem Corporal: Ariane Hime e Elton do Sacramento | Duração: 20min | Indicação etária: Livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 02 de outubro de 2017.
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PROTÓTIPO PARA CAVALO >> Brunno Oliveira e Bremmer Guimarães (Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Neste experimento-manifesto, o amor é uma violência tão cruel quanto a guerra. As granadas estão camufladas em cada signo dado, em cada convenção criada, desde o primeiro assovio do primeiro pássaro no mundo. Um verdadeiro extermínio.
FICHA TÉCNICA
Concepção: Bremmer Guimarães e Brunno Oliveira | Atuação: Brunno Oliveira | Direção e dramaturgia: Bremmer Guimarães | Preparação corporal: Ítalo Freitas | Iluminação: Caroline Cavalcanti | Figurino: Lira Ribas | Produção: Bruno Lélis | Duração: 15min | Indicação etária: 14 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 02 de outubro de 2017.
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Sobre treta, segredo e axé: cavalo com fogo nas patas Por Soraya Martins
O branco faz letra, o preto faz treta, disse Muniz Sodré em Verdade Seduzida. Treta não no sentido pejorativo da palavra “jeitinho”. Treta de Sodré, nossa treta, aqui significa astúcia e habilidade na luta, é atuar de modo outro, nas fissuras e brechas, “oposto não à técnica da escrita, mas à ordem humana por ela representada até agora”. segundaTRETA– de produções de desejos, de conceitos estéticos fluídos, de artes negras no plural, de diálogos tensionados, de retidão crítica – que coloca luz em modos e modos de se pensar e realizar arte(s) negra(s), que se coloca também no exercício de produção de pensamento/conhecimento. O espetáculo Segredo, de Helvécio Izabel e Lúcio Ventania, compôs mais uma segunda de treta e trouxe para o espaço-território do espanca! o segredo, dimensão fundamental para cultura afro-brasileira da diáspora. Mais que mistério, o segredo encenado pelos dois atores resguarda e mantém uma tradição oral que se performatiza a partir de uma dinâmica de comunicação e de existência e vigor das regras do jogo cósmico. Segredo nagô. Em meio a uma composição de detalhescenário, figurino e objetos de cena minimalistas, gestos e música- os atores nos contam, através de metáforas extraídas de lendas e contos populares africanos, sobre os pesadelos que perturbam Jabé Enjai e sua relação com o feiticeiro louco, Jabar Jajaa. Mais que contar, encenam a figura dos griots africanos, mostrando que a inscrição da memória e do conhecimento se grafa de várias formas, inclusive, na performance oral. A força que está na ave palavra, no contar. A oralitura na boca e nos poros de Ventania e Izabel, que cuidaram da história do Segredo como kalunga cuidava dos ovos da rola no ninho: rolavam e rolavam, mas não caíam. E se abre O caminho até Mercedes, solo de Sol Miranda, que foi buscar na dança afro-brasileira de Mercedes Baptista elementos-base para compor o trabalho. Axé, no sentido de ancestralidade preta que comunica os mundos, trança e espiraliza os tempos, é uma palavracaminho que reverbera no corpo da atriz Sol, a partir da força do axé plantado no e pelo tambor e do corpo afro-físico – energia ancestral – de Mercedes. Entre as lembranças e esquecimentos, dores e delícias 60
que permeiam a trajetória da grande ícone da dança no Brasil; o jogo de perguntas e respostas “todo mundo ficou sabendo menos eu?” “eu preciso saber o que vem depois”; e a memória tecida na pele, o corpo da atriz em performance aparece não simplesmente como um corpo treinado, mas como corpo culturalmente imantado, onde são inscritos saberes e cosmovisões outras. O corpo aqui é um corpo em temporalidade – do antes, do agora, do depois e do depois ainda-, corpo político e de afeto, de luzes sobreviventes dos vaga-lumes. Corpo de Axé. De caminho, passo a passo… Protótipo para cavalo, experimento cênico de Brunno Oliveira e Bremmer Guimarães, vem como um cavalo de corrida, passando com amor e violência pelos lugares que se querer questionar, pelas feridas que se quer tocar e aproxima duas instâncias aparentemente díspares -“o amor é uma violência tão cruel quanto à guerra.” Um microfone, um ator, vários papéis espalhados pelo chão formando uma cama de denúncia, com escritos do tipo: preto, bicha. Um microfone e o desejo/ânsia por falar do ator. Temse a possibilidade de fala. É um manifesto. É importante e necessário que ele fale. Falar e viver é preciso? Ele fala de presença. Corpo, rito, linguagem, gestos, amor, crise, trânsito, subversão. Fala de presença negra. Canta a presença e a negrura. E me suscita várias perguntas: como desenhar uma pretura-presença que vai da palavra (que dependendo de como é dada, o vento leva e só a intenção não basta) ao corpo? Esse trânsito é ou não dispensável? Sim ou não e quando? Como subverter as dicotomias?A palavra solta no tempo-espaço é o si mesmo da dramaturgia? Como a pretura atravessa todos os corpos, independentemente de cor? Essas perguntas não estão restritas a Protótipo que, assim como as cenas contemporâneas negras, é um cavalo novo com fogo nas patas correndo em direção ao mar[2].
[1] Por Elise, de Grace Passô. [2] Referência a Por Elise, de Grace Passô.
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ABENA
>> Cia. Bando
(Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Abena é uma das princesas mais belas de todo o mundo, não havia quem discordasse! Pretendentes de todas as partes esperavam ter sua mão em casamento. Diante de tanto cortejo deu-se uma grande disputa, mas o coração de Abena já estava preenchido de amor por alguém. Mas nessa disputa, quem será o vencedor?
FICHA TÉCNICA
Concepção e realização: Cia. Bando | Dramaturgia: Djalma Ramalho | Elenco: Anderson Ferreira, Andréa Rodrigues, Fabiana Brasil e Rainy Campos | Trilha sonora: Djalma Ramalho | Figurino e Cenário: Anderson Ferreira | Duração: 60min | Indicação etária: Livre Este espetáculo foi apresentado na segundaPRETINHA, no domingo 08 de outubro de 2017.
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Por cima do mar da ilusão eu naveguei Por Anderson Feliciano, Evandro Nunes e Mário Rosa
E foi assim, como num passe de mágicas, em meio a bolas de sabão, instrumentos musicais, árvores, sorrisos, movimentações e expectativas pra contação, tecidos coloridos, crianças, adultos e tantas outras coisas que saltavam ao nosso olhar, que a Cia. Bando nos apresentou Abena, numa área aberta do Parque Municipal, domingo pela manhã, abrindo nossa primeira segundaPRETINHA. Insistindo no propósito de pensar a segundaPRETA como um espaço de visibilidade, de experimentação de novas narrativas e também deslocamentos de imaginários, vemos com entusiasmo a oportunidade de direcionarmos a atenção para o universo infantil. Quase sempre tratado ao longo da história com pouca atenção, apesar de muitas iniciativas recentes de valorização deste segmento das artes cênicas, o teatro feito para as crianças anima pelo que pode apresentar de universos imaginados, de ludicidade, de experimentação, de fabulação de mundos … enfim, o jogo e a invenção, sem necessariamente está comprometido com intencionalidades pedagógicas. No que se refere especificamente ao universo caro à segundaPRETA, acreditamos que o termo afrobetização, que se dá em várias frentes pra toda vida, envolve o campo das artes de muitas maneiras. Nos modos de narrar, no que se narra, nas escolhas formais, nos jeitos de corpos, na musicalidade que também conta a história, nas espacialidades escolhidas e no jogo com a plateia. Nesse movimento, costura-se tramas com miradas que podem falar muito, explicitamente ou não, de como segmentos sociais desejam, sonham, enfrentam realidades, subvertem a ordem do mundo e se relacionam. Tudo isso pra dizer que a obra Abena da Cia. Bando se insere na busca dessa arte poeticamente comprometida. Na investida de um teatro infantil, com foco na contação de histórias, o trabalho de jovens artistas negros da cidade encara o desafio do encontro com público infantil em espaço aberto e assumem com coragem o risco e a delícia de outras histórias, de possíveis jogos e despertares. Se podemos resumir a história da peça, diríamos que Abena narra a disputa acirrada, num reino imaginário, entre a chuva e o fogo pelo coração da linda princesa negra Abena. Parece pouco neste “era quase 66
uma vez!”, porém o que acontece em cena revela muito mais pela boa mescla de elementos: jogo dinâmico, colorido, musical, interativo, aberto ao inusitado, bem humorado e poético. Inventou-se assim um modo de brincar. Um modo que segue a representação e apresenta outras identificações, um modo que não esquece do jogo, da prova dos 9 e que ousa na dramaturgia ir além de um imaginário de referência pra pensar outros encontros, outros corpos, outras possibilidades de integração e aproximação com o mundo que não a hierarquia antropocêntrica. É importante para a boa investida desse trabalho a presença entusiasmada e forte das atrizes e do ator em cena. Talentosas e de instigante inteligência cênica, elas são também referência pelo protagonismo que é aqui relevante comentar: atores negros, corpos negros, um pensamento poético que atravessa esses corpos, a leveza e a beleza de jeitos de corpos tecendo a trama desta cena. São agulha, linha e tecidos. E é nesta costura que o jogo aberto se faz, como a subversão sutil e a impressão de que eles tecem o lúdico da cena com a leveza de bolinhas de sabão … e com os olhos e a força da Andréa, com o jeito arisco da Rainy, com o sorriso bonachão do Anderson e com a ironia da Fabiana … tudo pra manter as bolas no ar no tempo suspenso deste era uma vez. E nesta trilha, o que fortalece ainda mais a obra é a aposta dessa turma que faz da limitação da história desafio pra utilizar vários recursos com o propósito de não perder a narrativa e manter a interação com a plateia infantil. Conseguem em grande parte realizar esse desafio pelo rivalidade que expõe em cena entre os personagens e pelo recurso de leve distanciamento que faz do público cúmplice de um pacto ficcional: a piscadela que firma o jogo e convida à imersão em cena. 67
Anderson Feliciano é mestrando em Dramaturgia e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de performer, dramaturgo e escritor. Evandro Nunes é pedagogo, ator e arte aducador. Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Há 20 anos dentro da área artística, tem experiência em Atuação, Direção Teatral, Produção Cultural, Coordenação Artística e Pedagógica, além de ser professor de teatro. 68
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CÂNTICOS PARA SOLITUDE >> Josi Lopes
(Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Nesse experimento cênico musical, Josi Lopes fala principalmente do encontro com a solitude, da comunicação com o mundo através do corpo/voz e da ressignificação do estado de solidão, da entrega ao desejo, dos devaneios que atordoam os pensamentos, dos obstáculos e alegrias de ser, da plenitude de estar só. SOLITUDE é diferente de SOLIDÃO, é a atitude da força interior, a força ancestral da mulher preta. Gritando aos sete ventos ecoando a voz para o infinito. Sem medo.
FICHA TÉCNICA
Texto e atuação: Josi Lopes | Direção: Michelle Sá | Direção musical: Marcelo Veronez | Preparação Corporal: Benjamin Abras | Iluminação: Tainá Rosa | Duração: 20min| Indicação etária: 15 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 09 de outubro de 2017.
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Dona da Voz e Voz da Dona Por Adilson Marcelino
Josi Lopes em cena é pura energia. Esta palavra, por vezes, tão banalizada, quando, na verdade, guarda em si o âmbar elétrico, como diz a poeta gaúcha. E Josi Lopes, quando canta, é esse âmbar ao qual tudo está ligado, plugado. É como se anunciasse: “Tá tudo aceso em mim”. O público da segunda PRETA, que compareceu no dia 9 de novembro de 2017 na casa Espanca!, no entanto, ficou de frente a uma outra Josi. Ainda que sempre e sempre, seja ela sempre! Ao adentrar pela primeira vez com seu corpo ocupando outro espaço, o do teatro, com sua solitude, Josi Lopes instaurou uma transversal do tempo. E nessa transversal, nós, a plateia, viramos de imediato seus súditos. Porque entrou como Rainha. Ainda que machucada, que preterida em marca em brasa revelada nas coxas que desnuda e revela. E ainda que, quanto mais seu cavalo rechicoteava, de crista emplumada, mais a brasa se desfazia como em hena. “Posso pegar no seu cabelo?”. Denunciava, chorava, indignava e acuava o opressor. Enquanto seu corpo de mulher preta ia se desenhando, fortalecendo-se, impondose. Cânticos para Solitude (trançando o cabelo com o som me enxergo). Anunciado como um experimento cênico musical, Josi fez questão de explicar que Solitude é diferente de Solidão. Está na sinopse e está em sua fala no debate, após a apresentação. Nada mais apropriado e acertado. É como se ecoasse outro poeta, o baiano, e desta vez negro como ela. Como nós. E quando escutar um samba-canção, assim como: “Eu preciso aprender a ser só”. 74
Reagir e ouvir o coração responder: “Eu preciso aprender a só ser.” Pois solidão, quase sempre, é ausência do outro e de si. Já solitude é presença, por demais, de si. Josi Lopes adentrou o teatro com tanta força, que podia se ver ali, a palmos de distância, não só o corpo da mulher preta. Muito mais que isso. Estava ali toda a força ancestral da mulher preta. E quando ecoa sua voz. E quando ecoam seus gestos. E quando ecoa seu orixá. Todo um trajeto, da diáspora à afirmação, refaz-se ante nossos olhos. Da dor à altivez. E quando, por fim, dá-se o banho de assento, mais que o repouso da guerreira, instaura-se ali, por completo, a verdadeira realeza. E nós, súditos, não abaixamos a cabeça como fazem os burgueses de ontem e de hoje. “Rainhinificamos” todes. E nos reconhecemos naquela realeza. Cânticos para Solitude (trançando o cabelo com o som me enxergo) reúne ainda outros bambas: Michelle Sá, Marcelo Vereonez, Benjamim Abras, Tainá Rosa, Tainá Lima.
Adilson Marcelino é negro, jornalista, assessor de imprensa cultural, pesquisador de cinema, criador e editor do site Mulheres do Cinema Brasileiro.
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DAR A LUZ >> Anair PatrĂcia
(Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
Dar à luz. Dar os filhos. Fazer mais que o governo faz. Ela faz e dá destino.
FICHA TÉCNICA
Concepção e atuação:Anair Patrícia | Iluminação:Pedro Amparo | Dramaturgia: Inspirada no texto Dar Luz de Marcelino Freire | Duração: 8min | Indicação etária: 14 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 09 de outubro de 2017.
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Uma canção desnaturada Por Adilson Marcelino
“Tá lá o corpo estendido no chão”. Há muito que, no Brasil, homens e mulheres pretos e pretas e pobres jazem nas calçadas, nas favelas, nas vielas, nos barracos da cidade. Ainda assim, a turba caminha, e só não vale mesmo morrer atrapalhando o trânsito. Quando se achava que o país deixava para trás, pelo menos em certa medida, a imagem de Republiqueta de Bananas, mais um golpe se deu e, desta vez, levando todos e todas em retrocesso de século. Viramos, trabalhadoras e trabalhadores, o povo pré-CLT. Para muitos, inclusive, aquilo tudo foi apenas um hiato e voltamos a ser o que sempre fomos. Corpos. E quase mais nada que isso. E é nessa realidade dura que habita a mulher mãe de Anair Patrícia em “Dar a Luz”, apresentado na segundaPRETA, no dia 9 de outubro de 2017. O impacto já está na sinopse. Raramente se vê uma síntese tão apropriada, tão crua e acachapante: “Dar a luz. Dar os filhos. Fazer mais que o governo faz. Ela faz e dá destino”. Pois a mulher mãe encarnada por Anair é um rascunho de mulher, é um rascunho de mãe. Como mulher, não é dona do seu corpo. Está à mercê. Do abuso doméstico. Da violência doméstica. Seus coitos são estupros, em que o medo e o pavor estampados em sua cara e em todo o arrepio de seu corpo revelam um não ser-mulher, um não ser-sujeito. Já como mãe se reduz ao fazer, ao gestar, ao parir, ao entregar, ao vender. É aí que se torna a mulher possível. A mãe possível. Não porque não queira sê-la, não porque não queira seus filhos. Mas ao entregá-los, ao vendê-los, dá-lhes um destino. Quem sabe melhor que o seu? 80
E por isso se diz que aí se faz Estado. Pois dá destino. O que ele, o Estado, negou-lhe e nega a milhares de mulheres negras e pobres. Entregar. Vender. Não é escolha. Não, não é escolha. É dor. E imensa. Anair Patrícia tem trabalho potente na educação com a periferia. Sua cena tem dramaturgia inspirada no texto “Dar a luz”, de Marcelino Freire. E é também resultado de pesquisa in loco, de ouvir vozes, de registrar relatos. Essa mulher mãe, essa não mulher, essa não mãe trazida à cena é como um açoite. É como um aviso. É como um lembrete. Que país é esse. Do que ele é feito. E o que ele faz com suas filhas e seus filhos. Como notável atriz, Anair Patrícia consegue trazer para a cena essa mulher violentada em grau máximo. Em miséria máxima. Quase a personificação da Canção Desnaturada. Como se, na verdade, essa mulher mãe, essa não mulher, essa não mãe, encarnasse os versos duros do poeta, mas com um destino que gostaria de dar para si mesma: “Pelo cordão perdido, te recolher pra sempre à escuridão do ventre, curuminha, de onde não deverias nunca ter saído”.
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FRĂ GIL, EU?
>> Suellen Sampaio e Evandro Nunes (Belo Horizonte/MG)
SINOPSE
A partir de trechos dos livros “Angela Davis –mulheres, raça e classe”, de Davis, e “Rosa Parks – não à discriminação”, de Nimrod e da poesia corpórea de Suellen Sampaio que este trabalho vem sendo construído. Três mulheres negras que em diferentes tempos expressam toda sua força demonstram que não são frágeis. No trabalho será usado, a dança, a cena e a imagem para contrapor a fragilidade.
FICHA TÉCNICA
Atuação: Suellen Sampaio | Concepção: Evandro Nunes | Fotografia: Demétrio Alves | Duração: 20min | Indicação etária: 12 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 16 de outubro de 2017.
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BURACO-SAUDADE (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
Como vestir uma roupa que não lhe cabe? Como lembrar de afetos que não existem? Lembranças que não existem, memórias de ausências. Três mulheres que a partir do buraco-saudade no peito, buscam ressignificar símbolos, formas, crença, presença e afeto.
FICHA TÉCNICA
Concepção: Ana Martins, Michele Bernardino e Rikelle Ribeiro | Cenário e figurino: Lira Ribas | Orientação dramatúrgica: Guilherme Diniz | Foto: Anna Miranda | Duração: 15min | Indicação etária: 16 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 16 de outubro de 2017.
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ELAS TAMBÉM USAM BLACKTIE (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
Três mulheres negras. Jazz. Histórias onde se encontram e improvisam um final de luta. Sim, ELAS TAMBÉM LUTAM. Jam. Talvez a voz não saia e um grito rouco seja música. Ladies and gentlemen, Senhoras e senhores, com vocês: ELAS
FICHA TÉCNICA
Atuação: Andréa Rodrigues, Gislaine Reis, Leonardo Brasilino, Rainy Campos | Concepção: Lira Ribas | Texto: Andréa Rodrigues, Gislaine Reis e Rainy Campos | Dramaturgia: Andréa Rodrigues | Direção: Lira Ribas | Trilha Sonora: Leonardo Brasilino | Iluminação: Marina Artuzzi | Cenografia e Figurino: Anderson Ferreira e Lira Ribas | Produção: Fabiana Brasil | Foto: Lira Ribas | Duração: 20min | Indicação etária: 16 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 16 de outubro de 2017.
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Sobre a impureza do branco Por Soraya Martins
No último dia da terceira temporada da segundaPRETA, o público foi brindado com sete mulheres em cena. Foram três trabalhos que, por coincidência da Deusa, dialogaram entre si e nos ofereceram possibilidades de expansão para se pensar, mais uma vez, sobre teatro, as questões caras para os corpos femininos da negrura no palco, as fissuras e os processos criativos. Frágil, Eu?, de Suellen Sampaio e Evandro Nunes, tecido a partir de trechos de livros como “Mulheres, Raça e Classe”, de Angela Davis e “ Rosa Parks- não à discriminação”, de Nimrod, traz para a cena o quotidiano, as dificuldades e as solidões da mulher negra. Elaborada a partir da repetição de gestos e movimentos, nos voleios do corpo da bailarina Suellen, que sentada em uma cadeira, “protegida” por um véu branco de tule, remetendo, ao mesmo tempo, a um vestido de noiva e a um leito nupcial, Frágil, Eu? borda fragilidades ao forjar o lugar de fala da mulher negra marcado por uma concepção romântica de afeto, em que a mulher ainda precisa do outro para se realizar. Uma partitura de movimentos e gestos. Repetição. Exaustão. Exaustão. E o que emerge dessa repetição-exaustão? Como tecer, “partiturar” gestos outros criativos que possam ressignificar dores, traumas, quereres e desejos de um corpo mapeado por práticas de identidades individual e coletiva racializadas e marcada pelo gênero? A repetição é somente para dar a ver o posicionamento socioeconômico e afetivo de eterna limiaridade dessas mulheres? Como expandir gestos e perspectivas? Me lembrei de Nola Darling, a protagonista da série “Ela quer tudo”, escrita e dirigida por Spike Lee. A Nola se realiza nela e por ela mesma e faz da exaustão e das dificuldades de, por exemplo, ter que pagar o seu aluguel para conseguir morar no Brooklin, comprar material para compor seus quadros, ser artista, material mesmo para sua realização pessoal e profissional. Para se recriar positiva e constantemente Nola Darling. Quando se pensa em colocar o corpo feminino da negrura em cena…. como ampliar o foco do olhar e mediar esse corpo com criatividade e subjetividades outras, com axé para além do que se pode ver? Questionamentos aparecem para criar situações de precariedade, de tropeço e, também, de queda. Pensando a queda, claro, como 94
possibilidade de criação de outras poéticas e subjetividades, porque Elas também usam Black-Tie (cena de Andréa Rodrigues, Gislaine Reis, Rainy Campos e o músico Leonardo Brasilino, com direção de Lira Ribas), usam mais do que Black Tie, usam três corpos de mulheres para transformar as dores de ser mulher preta em vários âmbitos – das relações familiares, passando pelo “eu namoraria você se não tivesse dando um tempo”, até as relações abusivas no trabalho – em Jazz. O percurso que vai da confirmação das relações de opressão até o ato de vingança/luta é tecido por uma ironia, não uma qualquer, mas uma ironia melancólica no sentido de “rir” da exposição de uma ferida aberta: o racismo nas suas dimensões mais perversas. Elas tensionam esse riso melancólico e dele fazem emergir três microproduções do desejo que irrompe com uma passividade. No Jazz: três corpospresenças tecendo um cantopolítico que faz do ressentimento potência criadora, que no jogo da cena tenta mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético-performativo. Elas também… são corpos culturais, de enunciado e enunciações pretas, em semiose e semióticos, significando, performatizando identidades, produzindo outras possibilidades subjetivas, éticas e estéticas em arte. Cava, Cava, Cava… E chegamos no Buraco-Saudade, de Ana Martins, Michele Bernadino e Rikele Ribeiro, que, de início, com fita crepe demarcam no chão o espaço teatral e estabelecem o jogo de ficção versus realidade. O palco está montado! Todas vestidas de noiva. Mulheres que “desde cedo aprenderam que era importante vestir o branco sagrado do matrimônio, só não sabiam que o vestido não era feito para seus corpos”.[1] O tema é recorrente e urgente: a solidão da mulher negra. Os desejos, os sonhos e as incompletudes dessas mulheres são tecidos através de histórias ficcionalizadas mescladas com histórias reais e memórias do que nunca se viveu. Buraco-Saudade é um experimento que lança mão da ironia e do deboche: “A deusa me livre de ter um namorado, mas quem me dera!” Três mulheres que acreditam 95
desacreditando no amor salvador, daí o jogo que potencializa a proposta cênica via ironia e deboche. Aqui, esses dois elementos são usados também como forma estética, com total consciência de que a ferida afetiva, racial e de gênero ainda está aberta. Três personagens que tem quereres afetivos, querem se realizar, mas, e sobretudo, entendem que primeiro precisam ressignificar os seus lugares sociais como/de mulheres negras. Três Nolas Darling (acabei de assistir toda a série!) que se recriam na e pela dor, e melhor, traçam outro devir poético- linguagem- a partir dessa própria dor. E borda-se lagartas nas borboletas dos nossos carinhos… E assim se deu a terceira temporada! O que esperar da quarta? Eu pessoalmente espero, nesse quilombo, deslocamentos, fissuras, equilíbrio precário, exatamente para continuarmos quilombo.
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FESTA DE ENCERRAMENTO
SARARAU Show: Josi Lopes, Michelle Sá, Julia Dias, Rodrigo Santos, Ohana Santana, Manu Ranilla e Heberte Almeida Técnico de som: Jhonatta Vicente dj: Alexandre de Sena Realizada no dia 16 de outubro de 2017.
FICHA TÉCNICA - TERCEIRA TEMPORADA
Imagens: Pâmela Bernardo, Pablo Bernardo e Alisson Damasceno Edição e Fotografias: Pablo Bernardo Fotos “Abena”: Djalma Ramalho Assessoria de imprensa: Alessandra Brito Debate: Soraya Martins, Mário Rosa e Tatiana Carvalho Equipe: Alexandre de Sena, Aline Vila Real, Ana Martins, Ana Paula Freitas, Eneida Baraúna, Grazi Medrado, Josi Lopes, Priscila Rezende, Sabrina Rauta e Suellen Sampaio Coordenação técnica: Preto Amparo Equipe do Teatro Espanca: Alexandre de Sena e Aristeo Serranegra
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ENTRE-TEMPORADA #3 cinemaPRETO comentado ORI
Raquel Gerber e Beatriz Nascimento (Brasil, 100min, 1989) Sobre um panorama de um documento – história sobre os Movimentos Negros no Brasil (anos 70/80), ÔRÍ conta a história de uma mulher Beatriz Nascimento, historiadora e militante, que busca sua identidade através da pesquisa da história dos “Quilombos” como estabelecimentos guerreiros e de resistência cultural, da África do século XV ao Brasil do século XX. Esta pesquisa revela a História dos povos bantus na América e seu herói civilizador Zumbi dos Palmares.
VENDEDORA DE SONHOS
Primeira série do Coletivo Coisa de Preto “Coletivo Coisa de Preto” foi criado para abordar situações cotidianas da população afro-brasileira, residentes nas periferias, vilas e favelas dos grandes centros. E assim, re-afirmar nossa maneira de lutar pela vida, de ser na vida, de habitar o mundo. Uma estética da encruzilhada. O coletivo é formado por: Hérlen Romão, Marcos Nascimento, Thiago Nascimento, Labibe Araújo, Beatriz Alvarenga, Cida Reis, Gabi Guerra, Gil Amâncio, Érica Lucas e Jean Francisco.
Realizado no dia 18 de dezembro de 2017.
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Conversadores: Coletivo Coisa de Preto, Gil Amâncio e Tatiana Carvalho Costa
>> Tatiana Carvalho Costa (curadoria e mediação) Realizadora audiovisual e mestre em Comunicação Social (UFMG). Integrante do coletivo Elas Pretas e coordenadora do projeto de extensão universitária Pretança. Professora nos Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA e colaboradora do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT - NUH/UFMG. Realiza trabalhos de pesquisa acadêmica e de produção audiovisual relacionados às subalternidades contemporâneas.
QUARTA TEMPORADA
ANA MARIA GONÇALVES HOMENAGEADA DA QUARTA TEMPORADA
>> Foto: Pablo Bernardo 105
>> A quarta temporada da segundaPRETA homenageia Ana Maria Gonçalves. Na recepção desta escritora, pensadora e debatedora de coragem penso na forma que podemos recebê-la, no gesto que convida a estarmos juntas pra conversarmos, pensarmos e celebrarmos nossos avanços nesse mundo que parece insistir em se escrever como impasse e retrocesso. Tropeçamos, mas continuamos os movimentos em constante invenção, pois é de sabor que também vivemos. E seguindo a lógica das cerimônias do povo preto, a festa já começou. Não podemos parar, NÃO VAMOS PARAR. Vem com a gente, Ana! Exu mandou chamar. Serviremos nosso banquete lá na encruzilhada da segundaPRETA. Sente-se à mesa, compartilhemos desse momento aquilombadas. É festa! Separamos nossas melhores especiarias e ervas, que aqui foram semeadas pelos nossos, para temperarmos o encontro. Passado, memórias e o presente sempre atualizado inspiram a receita que segue o saber do meu corpo, a partilha de muitas vozes que me acompanham e a intuição que também me guia.
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Estaremos lá: corações de manteiga, corpos-pimentas, palavrasgengibres, gestos-dendês, que em misturas geram aconchegos, ardências, achados, surpresas, reviravoltas e afinidades. Passo a passo, começaria aquecendo uma panela de pedra, que me parece ser o que a presença dela causa em nós; e imediatamente colocaria a manteiga, pensando nas palavras dela e naquele pensamento que se faz matéria viva e fluida. Em seguida a pimenta entraria sem medida, porque faz arder as entranhas e nos coloca em alerta, ela é mestra nesses itens. E como é importante não perder neste prato as ardências das nossas diferenças, dos nossos impasses e desafios. Sigamos com eles, com ela! Depois tem o gengibre na medida certa, que suaviza a ardência e cura o corpo, energizando nossas almas. Pois precisamos de sonhar novos sonhos, de fortalecer entre os nossos, de resistir e criar. E seguiria com todas as ervas que nossos ancestrais nos deixaram. Não nos esqueçamos deles, não nos esqueçamos do que nos dá chão pra seguir e firmar presentes. Sigo no incremento deste prato … Quero muito servir numa mesa enorme com toalha branca, Ana na mesa com todo o quilombo junto se alimentando e partilhando saberes e sabores da palavra, do gesto, da delicadeza e dessa força tamanha. Por Zora Santos, Anderson Feliciano e Mário Rosa
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MARIEL 108
Por Ana Martins
LLE VIVE Eu morri! Eu morri ontem Minha cabeça fora atravessada Meu Orí... Antes de ontem eu morri também. Eu morro todos os dias, moça. Eu subo e desço morro E morro. Minha cabeça dói. Parece que cinco tiros a atravessaram. Mas tem tanto sonho aqui dentro... Meu corpo dói. A sensação é que fui arrastada no asfalto quente. Eu morri ontem. Parece que tomei 111 tiros... meu corpo dói, moça. Minha cabeça pesa. Meu rosto está quente como se tivesse sangue escorrendo... uma enxurrada... Ontem eu morri. Morri na certeza que sangue derramado na terra vira semente. Eu morro, mas a minha voz continua, meu grito, meu canto. Minha cabeça é sagrada. E o sagrado está além da minha cabeça. 109
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FLASH MOB CERIMONIAL: “OS PRETO TÁ TÃO NO TOPO, QUE PRA ABATER SÓ UM CAÇA DA FORÇA AÉREA” >> Sabrina Rauta (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
Flash Mob Cerimonial, uma intervenção performática musical, tendo como licença poética elevando negras e negros vivos e também referenciando as pessoas negras que vieram antes de nós. Acontece em cada segunda-feira da quarta temporada dentro ou fora do teatro. A cerimônia sucede com um: “seja todas bemvindas à segundaPRETA” passando informações sobre o projeto.
FICHA TÉCNICA
Atuação: Sabrina Rauta | Direção de corpo: Elisa Nunes e Suellen Sampaio | Concepção textual: Sabrina Rauta | Duração: 5 minutos Esta ação foi executada nas segundas, 16 e 19 de março de 2018.
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ENDEREÇO POSTAL >> Preto Amparo
(São Francisco do Conde/BA e Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
E se eu pulasse? E se eu não tivesse medo? E se eu desejasse o inevitável? E se tudo um dia retornasse? Vamos começar uma revolução subjetiva, Por fim às felicidades privadas! Mais-valia confiscar toda tristeza! Sonhando poemas épicos, Com ares de sessenta e oito E tintas do cotidiano! Mandaremos notícias…
FICHA TÉCNICA
Concepção e atuação: Preto Amparo | Apoio técnico: Alexandre de Sena | Duração: 15 minutos | Indicação etária: Livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 19 de março de 2018.
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O CATADOR DE RISOS >> Rodrigo Santos (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
“O Catador de Risos” é um espetáculo interventivo criado nas bases da pantomima, mímica e do palhaço para dialogar não só, mas essencialmente com a vida existente nos espaços públicos. Trata-se de um estado de jogo onde o corpo do ator conversa com as mais inusitadas situações que a rua pode proporcionar. O silêncio da voz potencializa a fala do corpo. Não existe um roteiro fixo de ação a ser seguido. O ator constrói as cenas de acordo com as reações do público passante ou ocioso em relação a sua figura como mimo-palhaço. Sendo assim, o público participa efetivamente no processo de composição de cada momento e é o grande responsável pela história que será contada. Corpo em estado de troca, imagem, improviso e jogo são o combustível para o desenrolar do espetáculo em que o ator não mede esforços para recriar na rua a magia da própria vida, provocando por um momento o desejo de voltar a ser criança.
FICHA TÉCNICA
Atuação: Rodrigo Negão | Duração: 30 minutos | Indicação etária: Livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 19 de março de 2018.
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Tem dois Neguinhos: Morfologias da diferença Por Anderson Feliciano Ainda no seu caminhar tropeçante e sob as bênção de Exu, a segundaPRETA deu inicio a sua 4ª temporada e continua firme na lapidação de pensamentos que possam ampliar as possibilidades de se pensar uma cena que, se valendo dos códigos da negrura, nos possibilite fabular sobre outros possíveis mundos, outras múltiplas imagens de nós mesmos. Frágeis imagens que alargam nosso negro universo simbólico. Prologo: Na noite calorenta do dia 19 de março de 2018, nas encruzilhadas da vida, dois homens pretos, assim como João Cândido, bordam um espaço/tempo de uma nova produtividade. Primeiro Ato: Estamos todos sentados. Ele entra. Está tudo escuro. Ele entra todo vestido de preto. Ele também é preto. Naquele espaço/tempo fabulado por Preto Amparo, ele é tema. O corpo dele quer se expandir. Ele inventa uma espécie de mapa. Dentro dessa espécie de mapa estão cercadas nove laranjas. Ele veio se despedir. Não sabemos de quem. Refere-se a todo tempo há um ele. Se burlando do lugar de fala, ele fala. Ironiza e ninguém fala nada. Ele tenta sentir e é ou quer ser-humano e “vocês estão tristes”. Segundo Ato: Estamos todos de pé. Ele sai. Não está tudo escuro. Ele sai vestido de palhaço. Ele também é preto. Naquele espaço/tempo fabulado por Rodrigo Santos, na rua, ele é sujeito da cena. O corpo dele se expande. Ele inventa uma coreografia em que nossos corpos bailam juntos. Ele veio fazer rir. É um corpo preto lançando mão da linguagem clawnesca que mistura códigos da negrura e inventa um modo de brincar. Entreato: Fazendo uso de uma formulação sintética de Fanon: “não há negro, há negros”, trago para um diálogo crítico os trabalhos de Preto Amparo 122
e Rodrigo Santos que realizam um deslizamento, ainda que sutil, da ideia inequívoca de uma política da identidade. Cada um a seu modo esquiva-se do famigerado essencialismo imposto pelo olhar do outro. Tanto Pedro, quanto Rodrigo compreendem que “o corpo preto é tema, é testemunho, é forma, é palco, é cena”. (1) O esforço da analise não se pretende ser comparativo, almeja, ao colocá-los juntos, lado a lado, reivindicar a “liberdade como condição primeira e inalienável de toda produção artística”.(2) Pareceme relevante, nesse momento, pontuar mais uma vez, que se trata da abertura da nossa 4ª temporada e os trabalhos apresentados engrossam o caldo e somam vozes ao manifesto que articula a pluralidade de temas, formas, materiais e motivos. Terceiro Ato: Está tudo escuro. Escutamos Jorge Ben. Ele parece não caber naquele corpo. E no esforço de ir além, cria-se uma coreopolítica que desarticula lugares de fala. E ele continua falando. Ele e o corpo falam. A potência do corpo parece se perder no excesso de palavras. A irônia, no decorrer do trabalho, se perde. Mas as laranjas se movem. Quarto Ato: O jogo continua. Estamos todos e todas abertos ao sentir. O riso nos aproxima e se instaura um nós que é circular. O palhaço se move. A coreopolítca aqui é outra. É um outro jeito de corpo. É um aberto para o outro. Os corpos se tocam, se abraçam, existe um campo de cuidado e respeito que se intensifica ainda mais o jogo. Coro I: O corpo dele. As laranjas. O chapéu. O saco plástico. As laranjas no saco plástico. A mão, se me lembro bem, a direita, suando no saco plástico. Preto Amparo, em fabulação, propõe um jeito de juntar estética, memória e política. Lá, a palavra surge como potência e limite. O que pode vir depois do abandono? Encontrar as palavras que coincidam com o sentir não seria uma proposta política que falta ao que vemos no experimento? 123
Coro II: O palhaço preto de Rodrigo Santos em seu Caçador de risos desenha sutilmente uma cartografia do riso, dos corpos, dos limites, dos clichês e instaura um jeito delicado de transversalizar com leveza corpos, gêneros, estilos … ultrapassa riscos e sustenta a alegria de um junto. Encruzilhada: Endereço Postal de Preto Amparo e o Caçador de Risos de Rodrigo Santos, juntas, lado a lado, abre pra se pensar um devir-negro no teatro. Surge no esforço de análise dessa afirmação a proposta de quebrarmos o brinquedo, desarticularmos uma ideia de “somos todos iguais” e indícios para se pensar uma cena negra que não representa nada, mas apresenta “linhas de transformação que saltam para fora do teatro e assumem uma outra forma, ou se convertem em teatro para um novo salto”. (3)
(1) José Fernando Peixoto de Azevedo (2) Hélio Menezes (3) Gilles Deleuze 124
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OLHA O PESADO AÍ >> Lucimélia Romão e Laura Cerqueira (São João del Rei/MG)
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SINOPSE
A cena “Olha o pesado aí”, com duração de 15 minutos, é inspirada no livro “Quarto de Despejo” da Carolina Maria de Jesus. Duas mulheres negras revivem situações corriqueiras do dia a dia na favela e as dificuldades de uma mãe solo em conseguir sustento para si e para seus filhos.
FICHA TÉCNICA
Direção: Cia Carolinas | Dramaturgia: Cia Carolinas baseado na obra “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus | Concepção cênica: Cia Carolinas | Elenco: Laura Cerqueira e Lucimélia Romão | Figurino: Cia Carolinas | Concepção de Luz: Eliezer Sampaio | Operação de Luz: Eliezer Sampaio e Lucas Barbosa | Produção: Kelly Cristina Spínola | Provocações: Quatroloscinco Teatro do Comum e Luís Firmato | Duração: 20 minutos | Indicação etária: 12 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 26 de março de 2018.
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SOBRE TODOS OS DIAS >> Tatiana Henrique (Rio de Janeiro/RJ)
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SINOPSE
E se as palavras de Carolina se tornassem sagradas? Como são! O que você escreveria na história de uma mulher preta? Fala-se de uma, fala-se de todas(?) O individual e o coletivo. A escritura de Carolina se torna oríkì.
FICHA TÉCNICA
Performer: Tatiana Henrique | Ambiência sonora: Hebert Said | Duração: 20 min | Indicação etária: 10 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 26 de março de 2018.
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Carolina: aquela mulher todas e nenhuma Por Anderson Feliciano Início de outono, segunda-feira 26 de março de 2018, os ventos de Iansã e um tanto de folhas sagradas pra nos afastar de todo mal. E outra vez estávamos lá na encruzilhada da segundaPRETA. Era a primeira vez que recebíamos dois trabalhos de fora de Belo Horizonte: Olha o pesado aí, de Lucimélia Romão e Laura Cerqueira (São João Del Rei) e Sobre todos os dias de Tatiana Henrique (Rio de Janeiro), que curados sobre as bênção de Exu, foram inspirados pela obra de Carolina Maria de Jesus. Ela, nossa vedete da favela, e seu Quarto de Despejo se fizeram presentes nas propostas estéticas das duas cenas. Sua voz ecoou e criou um modo de brincar e um tempo ritualístico que abria a possibilidade de desarticulação da maneira redutora que estamos acostumadas a vê-la. Naquela noite ela era todas nós e nenhuma. De acordo com Alzira Perpetua (1), especialista na obra de Carolina, as anotações diárias, da catadora de papel que colecionava livros, vão imprimir um caráter bastante caótico à escrita, transformando o diário numa obra fragmentada, onde vários eus se evidenciam. Argumenta também que a diarista é duas: aquela que viveu e aquela que escreve; e esses dois eus podem desdobrar-se, imediatamente, em muitas outras. E são essas muitas outras Carolinas presentes em seu Quarto de Despejo que serão corporificadas nas cenas apresentadas. Lucimélia e Laura de forma simples, delicada e bem humorada conseguiram orquestrar as muitas vozes de Carolina em sintonia com as delas. Pareciam ter plena consciência que as escrevivências da Vedete da favela eram caminho e não fim. Valendo-se de um modo de brincar e de uma estética da precariedade, que nesse caso é potência, nos conduziram pelos becos de uma favela como aquelas pintadas por Heitor dos Prazeres. As cantigas entoadas por elas e um jeito de corpo de quem carregava livros na cabeça, e não latas d’água, minava estereótipos e abria-se para a fabulação de outras imagens simbólicas de nós mesmas. Dançando e cantando distribuíam o peso que carregavam na cabeça, livros de escritoras negras, com homens que estavam na plateia. Para além da interpretação simplista que podemos cair de início, me parece mais relevante deixar ecoar pela memória: dá licença que eu vou. 134
Com elementos recorrentes do universo da negrura como: tambor, barro, bacia com água, feijão servido em copos de alumínio, Tatiana, vestida de branco, em sua performance ritual, “não queria ser Carolina”, desejava que sua voz ecoasse e também fizesse coro com as vozes daquela mulher que fala pela voz de outras (2). Em uma coreopolítica, que muitas vezes caia na representação, ela apontava caminhos que por uma ansiedade do corpo se perdiam. A necessidade de “tenho que fazer tudo” não contribuía com o tempo necessário para que o jogo com a plateia se instaura-se. O tempo em Sobre todos os dias me parecia fundamental e de maneira sutil se potencializou no instante em que a performer distribuiu vários papéis com escritos de e sobre mulheres negras para pessoas do público que orquestradas por ela liam e repetiam, instaurando naquele momento uma sobreposição de vozes e tempos que transformava aquela experiência do “real” numa experiência capaz de esteticamente também afetar. Aqui, neste momento o exercício também não será de comparação, pretende como na semana passada, aproximar as cenas para tentar articular um pensamento que pretende desarticular as estruturas racistas que insistem em nos invisibilizar. Sabemos, como aponta Benjamim, que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral”.(3) Nesse sentido compreender o contexto, no qual a vereadora Marielle Franco foi assassinada, e articulá-lo as muitas vozes daquela mulher que é todas e nenhuma configura-se num desvio dessa regra geral e possibilita, nem que seja por algumas horas, a fabulação de outros mundos possíveis. Cria-se uma espaço/tempo onde, aquelas que historicamente, sempre foram silenciadas, possam entoar seu canto. Surge dessa forma, não descolada da vida, mas na vida mesma rastros de afectos alegres que nos possibilitam conceber o depois com outras perspectivas. E que as muitas vozes de Carolina, Marielle, Lucimélia, Laura e Tatiana embaladas pelo canto de Nanã, sejam espalhadas pelo mundo, pelos ventos de Iansã.
(1) Elzira Perpetua (2) Ricardo Aleixo (versos do poema: Aquela Mulher) (3) Walter Benjamim 135
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MERGULHOS EM SI >> Charlene Bicalho (Vitรณria/ES)
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SINOPSE
A performance “ritual” propõe um mergulho em busca de memórias afetivas, traumas e curas, durante o eterno devir mulher negra cotidiano. Os cabelos, se apresentam como fios d´água, condutores de busca, das identidades submersas de Charlene Bicalho, seja nas águas doces de Minas Gerais ou nas águas salgadas do Atlântico. Os ensaios para criação da performance ocorrem desde 2013, mas nunca foram exibidos. Já os objetos resultantes dos ensaios compuseram as seguintes exposições coletivas: “Horizonte” (2013-14), na Galeria de Arte Espaço Universitário da UFES, com curadoria de Neusa Mendes (ES) e em “Tentativas de esgotar um lugar” (2014-15), no Museu de Arte do Espírito Santo, com curadoria de Júlio Martins (MG).
FICHA TÉCNICA
Concepção: Charlene Bicalho | Orientação: Winny Rocha | Duração: 20 minutos | Indicação etária: livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 02 de abril de 2018.
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FIBRA ÓPTICA >> Vanessa Nhoa (Rio de Janeiro/RJ)
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SINOPSE
Uma mulher negra de meia idade resolve expandir a carreira artística e conta as dificuldades de montar seu primeiro show como cantora, trazendo relatos que acompanharam sua caminhada envolvendo o mundo midiático e a velocidade que as informações são passadas como a luz pela FIBRA ÓPTICA.
FICHA TÉCNICA
Texto e Direção: Vanessa Nhoa | Trilha sonora: Jonathas Cherem | Consultoria de Figurino: Tay Oliveira | Figurino: Fernando Cozendey | Duração: 20 min | Indicação etária: 18 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 02 de abril de 2018.
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O abebê de Oxum ou ainda a possibilidade dos espelhos virados Por Anderson Feliciano Ainda no exercício de uma escrita crítica que almeja articular os trabalhos apresentados na 4ª temporada da segundaPRETA, trago para um diálogo as cenas Mergulho em si de Charlene Bicalho (ES) e Fibra Óptica de Vanessa Nhoa (RJ), mas que diz também ter coração capixaba. Como pontuado no texto anterior o esforço da análise não se pretende ser comparativo, almeja, ao colocálas juntas, lado a lado, reivindicar a “liberdade como condição primeira e inalienável de toda produção artística” (Menezes, 2016). Como fio condutor para minha reflexão trago para o centro da análise, como no trabalho apresentando por Charlene, o espelho. Mas não sua face que reflete, interessa-me a outra face. Desde 1944, para não precisarmos irmos tão longe, que Abdias Nascimento e seu icônico Teatro Experimental do Negro têm entre as inúmeras motivações ideológicas o desejo de criar um teatro onde o negro e a negra não sejam apenas tema, mas que possam ser protagonistas de sua própria história. Tem me chamado muito a atenção nas cenas apresentadas nessa temporada os outros modos de se apresentarem os mesmo dramas e como a política da identidade produz pressupostos sobre onde as pessoas estão, de onde elas partem e para onde podem estar indo. Muitas vezes a sensação que tenho é que o presente parece ser sufocado por um passado colonial que insiste em permanecer e nossos dramas representados já estão normalizados, codificados, institucionalizados. E acredito que é diante dessa encruzilhada que podemos fortalecer um pensamento crítico sobre nossas poéticas. Como desarticular a ideia inequívoca de uma politica da identidade? Como fazer do corpo lugar de passagem, de passagens? Não me interessa para nada nesses escritos encontrar uma resposta, insisto apenas num diálogo que, de repente, pode fortalecer pensamentos que possam dar conta de nossa complexa forma de estar negra e negro no mundo. Comecemos por um Mergulho em si. Adentremos no tempo/espaço ritualístico inventado por Charlene Bicalho e nos posicionemos 144
diante do espelho que ela traz no centro da cena. Como não pensar em Narciso e seu eterno contemplar a si mesmo? Mas aqui o jogo se dá de outra forma. É necessário estarmos alertas para o risco e o contemplar aqui assume outras perspectivas. E surge então o abebê de Oxum. É nele que nos miramos. Por isso me interessa a outra face do espelho e suas possibilidades de fabulação. E ainda imersos nas memórias, fotografias, jeito de corpo e nos áudios de Charlene, a vemos sentar diante do espelho. Em silêncio cortou vários pedaços de fitas vermelhas e acariciou seus cabelos crespos. Com olhar fixo no espelho cortou uma mecha do cabelo e o amarrou com um pedaço da fita. O que se deu depois foi que várias pessoas do público repetiram seu gesto e de forma sutil criaram uma cartografia de corpos e cabelos e cortes que potencializavam o trabalho. Surgiam então, minhas primeiras inquietações. E se virássemos o espelho? Como fazer do corpo passagem? Mas como em Fibra Óptica não tínhamos tempo pra pensar. As informações nos chegavam com toda velocidade e não conseguíamos processá-las. Mas o corpo negro de Vanessa Nhoa continuava nos interrogando e se iluminava. Com humor ela ria de si mesma ao representar os dramas vividos por mulheres atrizes negras. Enquanto tentávamos pensar, ela numa proposta que privilegiava o corpo-palavra, propunha um tempo outro, onde a velocidade e a aceleração do corpo com os jogos de luzes instauravam um outro espaço. Verborrágica, ela tinha muito a dizer e o que ela apontava é fundamental. Daí foram surgindo outras perguntas: qual a potência política desse discurso? Como sermos aquele corpo que sempre se questiona? Como encontrar em meio ao emaranhado dessas fibras ópticas linhas de fugas? E Charlene vai nos dando pistas. O cabelo é apenas a ponta do iceberg. E como aponta Nilma Lino Gomes: “cabelo crespo e corpo podem ser considerados expressões e suportes simbólicos da identidade negra no Brasil. Juntos, eles possibilitam a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra” (Gomes, 2008). E o mergulho em si proposto por ela é, assim como aponta também 145
Fanon, uma “tentativa de retomada de si e de despojamento, é pela tensão permanente de sua liberdade que podemos criar as condições de existências ideais em um mundo humano” (Fanon, 2008). Para além de suas qualidades propriamente cênicas, as obras apresentadas no dia 02 de abril, em diálogo com as anteriores, abrem interrogantes que podem potencializar muito nossos diálogos. O que nos resta agora é virarmos o espelho e contemplarmos a outra face.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. FLUSSER, Vilém. Do Espelho. Ficções Filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998. GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, 2a edição. MENEZES, Hélio. Arte Negra /Artes de Negros: uma conversa entre forma, tema, autoria e com em Territórios. São Paulo: O Menelick 2° Ato, 2016. 146
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DESPEJADAS >> Grupo Nรณis de Teatro (Fortaleza/CE)
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SINOPSE
Quantas mulheres tiveram seus nomes excluídos da história? Quantas tiveram sua importância minimizada? Quantas lutaram, morreram e fizeram parte dos grandes acontecimentos históricos? Quantas mais fazem parte das lutas diárias e anônimas, seguindo seu curso para tornar esta vida menos marginalizada? Diante de toda essa estrutura vigente, o Nóis de Teatro, desde maio de 2017 está em processo de montagem do novo espetáculo com o nome provisório de “Despejadas” e surge do desejo de diálogo cênico sobre a temática da mulher da periferia. Com base no livro da Carolina Maria de Jesus- Quarto de Despejo- lançamos esse olhar para esta obra que reflete o Brasil de 1960. Quais conflitos de ontem que se juntam, se multiplicam aos de hoje? Quais demandas desse Brasil pré-golpe de 1960 e desse atual, nas quais a descrença democrática se torna cada vez maior? O que dizer dessa mulher periférica de ontem e hoje? Aqui estamos, corpos Kamikaze prestes a lançar bombas como Espertirina. Espere por Nóis, ouça nossa história e veja o que vamos fazer.
FICHA TÉCNICA
Direção: Edna Freire | Elenco: Amanda Freire, Kelly Enne Saldanha e Nayana Santos | Apoio- Dorotéia Ferreira | Assistente de Direção: Henrique Gonzaga | Produção: Grupo Nóis de Teatro | Duração: 20 min | Indicação etária: 14 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 09 de abril de 2018.
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A RETICÊNCIA DO SER >> Colectivo Amarginal (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
1, 2, 3 teste…! “A reticencia do ser” dentro da segundaPRETA é uns dos processos para a continuidade de um futuro espetáculo. Um texto experimento sobre o feminicídio no Brasil onde, estatisticamente, a maioria das mulheres mortas são negras.
FICHA TÉCNICA
Colectivo Amarginal | Atuação: Sabrina Rauta, Henrique Gabriel, Rafael Santos | Direção: Sabrina Rauta | Texto: Henrique Gabriel | Dramaturgia: Sabrina Rauta | Duração: 25 min | Indicação etária: 16 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 09 de abril de 2018.
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Meu estranho diário: apontamentos obscenos Por Anderson Feliciano Não era meia noite em Paris. Eram 8 horas da noite em Belo Horizonte, numa segundaPreta. Na encruzilhada das ruas escuras do baixo belô, com casa lotada e gente espalhada até o teto e ainda com as bênçãos de Exu adentramos no universo marginal e obsceno de Carolina Maria de Jesus e Charles Bukowski. Tendo como ponto de partida obras literárias de escritores tidos como marginais, o grupo Nóis de Teatro (CE) com sua Despejadas e o Coletivo Amarginal (BH) com sua A Reticência do Ser com seus processos colaborativos abrem precedentes para pensarmos uma cena preta polifônica que surge, a meu ver, do resultado de pensamentos coletivos e de uma visão artística compartilhada. Visão muitas vezes sustentada por nossas memórias traumáticas, uma estética precária e corpos pulsantes que surgem como interrogantes. Pela terceira vez nessa temporada, nossa querida Vedete da favela e as múltiplas vozes de seu Quarto de Despejo ecoaram e de forma contundente atualizaram um passado que insiste em não passar. Fruto de um processo colaborativo a cena Despejadas não representa mais a voz de uma autora, mas articula no embate de diversas vozes envolvidas na criação de um sistema polifônico e complexo um jogo muito potente. Em consonância com esse jogo de vozes a presença dos corpos de Amanda Freire, Kelli Enne Saldanha e Nayana Santos arquitetavam uma poética capaz de fissurar aquele silenciamento imposto a mulheres negras há séculos. Era no desencontro da potência desses corpos/vozes com o sistema eugenista que estava sendo representando que frágeis imagens de nós mesmas foram desarticuladas. No primeiro momento, de forma mais representativa, duas atrizes nos recebiam em sua casa para um café. Enquanto preparavam o mesmo conversavam sobre o cotidiano de pessoas que vivem nas favelas. Com ações simples como coar café, cortar o pão e servi-los ao público elas iam costurando as diferentes vozes que povoavam aquele universo. Já num segundo momento, de forma mais performativa, vemos um “bicho” entrar em cena. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. o bicho, meu Deus, era uma mulher. 156
E ela sempre esteve lá. Invisibilizada, mas sempre lá. Não a vimos, mas ela estava lá e também tinha voz. E por isso falava, explicava, confessava, acusava, gritava, cantava e inventava linhas de fuga. Seu corpo e sua cor não cabiam naquele sistema imposto, mas ela permanecia lá. O corpo dela gritava. O grito do corpo dela e as outras vozes fissuravam outra vez a possibilidade de qualquer piedade. Ele era altivo, forte na sua fragilidade gorda e desnuda. Já não podem mais silenciá-la. Então as luzes se apagam. Despejadas e sem saber pra onde irmos, encontramos no meio do caminho um bar. Somos convidadas a sentarmos e a fazermos parte daquele jogo “obsceno” como os escritos de Bukowski, que é uma proposta recorrente nos trabalhos do Coletivo Amarginal. Naquele mundo marginal, repleto de cigarros, bebidas, corpos outros, inventado pelo coletivo a potência dos corpos de Rauta, Gabriel e Rafael eram o que, a princípio, instaurava uma poética desestruturante. Coletivo que tem uma instigante investigação no campo da performance e que sempre aposta na precariedade do humano e numa estética suja e obscena não se intimidaram e saltaram no escuro. Fiéis aquilo que acreditam e sem medo de errar, apresentaram um experimento cênico performático que perdia sua potência numa concepção naturalista. Ao tentarem representar um conflito que girava em torno do feminicídio inventaram uma coreopolítca que se sucumbiam no universo da teatralidade e o jogo não se instaurava. Mas aqueles corpos insistiam em pulsar e com isso traziam, mesmo que frágeis, rastros de um processo de investigação, no mínimo curioso e que merece ser melhor aprofundado. A poética particular dos escritos de Gabriel se perdia naquele universo bukowskiniano e não dialogava com a dramaturgia sonora composta por Rauta e ainda com a forte presença de Rafael. Até resultava desses desencontros algo interessante, mas que não se sustentava naquele espaço/ tempo ficcionalizado por eles. Enquanto isso os sorrisos negros de Rauta, Gabriel e Rafael de fato nos traziam felicidade. Do corpo desequilibrante de Rafael Santos resultaram os momentos mais interessantes da proposta. Seu jeito de corpo perdido naquele gestual violentamente delicado, seus olhares assustados e sua relação mais sincera para com o público abriam brechas que nos permitiam vislumbrar a força da união de um jovem artista talentoso em diálogo com a viceralidade do coletivo. E pouco depois das nove horas da noite fomos expulsas do bar.
Nina Caetano: * A textura polifônica de grupos teatrais contemporâneos. * A performance morreu? Antes ela do que eu. (2011) 157
XABISA
>> Michelle Sรก
(Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
Xabisa é uma palavra da língua Xhosa, dialeto de origem sulafricana, que, em português, significa “Valorize”. No espetáculo de mesmo nome, duas pessoas estão em uma caverna onde, individualmente, buscam por riquezas. A caverna remete ao Mito de Platão, à escravidão negra e, também, à exploração de ouro no Brasil. Ao procurar por preciosidades, entre obstáculos físicos e socioculturais, os personagens encontram a si mesmos. Na peça as diferenças entre homem e mulher são colocadas em xeque, utilizando uma linguagem teatral negra contemporânea e cômica. O trabalho propõe um encontro cultural afro-brasileiro, trazendo referências da cultura Bantu, da dança Gumboot – ambas originárias da África subsaariana, e dos jogos de palhaço.
FICHA TÉCNICA
Elenco: Michelle Sá e Alexandre de Sena | Direção Coletiva: Esio Magalhães, Michelle Sá e Alexandre de Sena | Roteiro dramatúrgico: Michelle Sá e Alexandre de Sena | Preparação Vocal: Josi Lopes | Preparação Corporal: Nath Rodrigues | Direção Musical: Stanley Levi | Produção executiva: Aristeo Serra Negra | Duração: 50 min | Indicação etária: Livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 15 de abril de 2018.
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“Achei que era festa, mas era teatro”* ou Tentativas Por Ana Martins segundaPRETA é segunda, mas também pode ser domingo. Domingo de Feira Hippie, de Duelo de MC’s e também de segundaPRETINHA. Que foi dia de Xabisa. segundaPRETINHA naquele dia me possibilitou algumas tentativas de caminhada para outra forma de teatro para crianças que, como a segundaPRETA, coloque a rua em questão, a rua como parte de conhecimento em diálogo, para que os caminhos sejam abertos. Ao entrar, o público vê um ator e uma atriz dançando e se aquecendo para iniciar. Início. Escuta. Fala. Desencontro. Urgência de contar algo sobre si. Contar como se deu a construção do que sou eu, menino/menina. Duas tentativas de contar uma história em palavras, verbalmente, em português, que se confunde, se interrompem e não se escutam. Se desencontram. Tentativas do ator Alexandre de Sena e da atriz Michele Sá em falar. Tentam falar de como era a infância, das brincadeiras de meninos e de meninas… A urgência de quem nunca pode falar é posta, as falas que não ouvimos de nossas meninas e meninos negros/as. Como você se fez menino? Como você se fez menina? Nas falas a tentativa de contar a falta de escuta de como se deram nossos corpos, vozes, tentativas de acerto, erro e Ser. “Vamos tentar contar isso como palhaços?” Foi a minha tentativa de entender o que quase pude escutar no silêncio dos atores ao colocarem seus narizes de palhaço… preto! Destes Palhaços Pretos, não aqueles palhaços… Não aqueles que mostram o que é de ridículo para acharem o caminho de seu personagem. Dos Palhaços de cá, cujo os corpos e jeito sempre foi posto como ridículo. E ali não havia nada de ridículo. O que estava posto era jogo, o jogo de um ator e uma atriz, nos mostrando Estes Outros Palhaços. E começa a tentativa de contar uma jornada de palhaços, carregando seus pesos, suas “mochilas feitas de pantomima” e carregadas nos ombros cheios memórias e ainda com desejo de chegada a algum 162
lugar e com desejo de encontrar riqueza. Mas qual? A partir do momento que o nariz preto (!) é posto não se fala mais português, não há confusões. Como se aquele nariz preto (!) nos mostrasse outra forma de comunicar, de contar uma história, como se ele nos transportasse para um outro tempo. É isso que o teatro faz, te leva para uma outra história. É como se fosse a sua música preferida, aquela que vem carregada de memórias, que te faz no meio da festa ser transportada para outro tempo. Outro tempo que também é o aqui e o agora. Mas esse “nariz preto” nos leva a uma jornada de resgate da história do povo preto. Neste momento também se fala outra língua, uma língua inventada, mas que o público entende por também estar na jornada. Ou não entende e faz como uma criança na plateia que repete o que foi dito pela atriz e exclama: “ eu não entendo a língua que vocês falam”, mas acompanhava o que acontecia ali, demonstrando que a comunicação vai para além do português. Ela estava naqueles corpos que estavam disponíveis, escalando montanha, passando por abismos e trabalhando em mina. Os corpos da atriz e do ator foram colocados em evidência, nenhuma parte do corpo foi negada nesta trajetória, pois o teatro que a maioria de nós artistas negros vivenciamos é um teatro que nega o nosso corpo, a nossa forma de ser e estar no mundo ou nos obriga a estar sempre nos mesmos lugares. Porque não evidenciar os corpos que já estão ali, porque não falar de algo que também nos foi negado? (…) Há dois caminhos, duas jornadas. São caminhos solitários até a uma mina… mina de ouro? Diamantes? Mina de descobertas de rastros deixados por nós e para que nos encontremos? As batidas nas paredes da mina feitas com as palmas da mão dos palhaços, que convidam o público a escavar aquela histórias juntos através dos sons produzidos e até achar alguma riqueza. Mas qual? Ao escavarem essa mina não percebem a presença um do outro até que se descobrem ali, no mesmo lugar, na mesma situação, no mesmo barco. A partir desse momento há uma descoberta do outro: o Palhaço (Alexandre) vê que a palhaça (Michelle) tem cabelo no “sovaco” e acha engraçado. Ao perceber o estranhamento do outro, coloca mais em evidência isso, que para nós mulheres, é tido como ruim, nojento e etc. O palhaço quer ver e tocar os cabelos debaixo do “sovaco” dela e acaba esbarrando no peito dela que responde segurando-os. Ele acha engraçado e olha para o seu corpo como se 163
se perguntasse “por que eu não tenho? Ela tem cabelo no sovaco e eu não tenho peito?.” Mas espera! Não é teatro para criança? O corpo em evidência ali também coloca que as nossas formas de estarmos no mundo pode ser construído socialmente. Como nos fizemos meninas? Como nos fizemos meninos? Jogar com essas construções sociais dos corpos também pode estar em teatro para criança. Corpo é festa, descoberta e teatro. Ao final da peça uma nova conversa em português. Dessa vez começam a conversar ao mesmo tempo coisas diferentes, que se completam, mas já se entende, já se encontram. Até dizerem a mesma coisa em tempos diferentes e depois ao mesmo tempo. Fazem memória de Outros Palhaços/as Negros/as e dizem da necessidade de contarmos a nossa história, da necessidade de ter e saber dos vários lados de uma história. Parecem conversar com pessoas queridas, partilhando sonhos e memórias. Um texto cheio de complexidade e apontamentos de um outro mundo possível, que por algum momento me questionei o quanto as crianças conseguem acompanhar essa parte. Mas logo vem a minha cabeça: não subestime as crianças. E aí, acabou! “Uai, o teatro acaba assim? E a riqueza?” O resgate da nossa história está para além da mina, está no resgate das pessoas que gostamos e em quem veio antes de nós. Se no começo era as tentativas de ser, agora deixam de ser tentativas pois buscamos fazer caminhos com os nossos rastros deixados. Fazendo o nosso teatro, o nosso teatro para crianças. O nosso teatro que é festa, é corpo, é história. Pois estamos com os nossos. Acredito que encontrei a riqueza que estes Palhaços, em Xabisa, procuravam.
*Fala de uma jovem negra do Programa Pro-Jovem depois que assistiu o espetáculo Ana Martins gosta de funk e de dar rolê pela cidade. É da ZN, atriz, arteeducadora, graduada em teatro pela UFMG, mestranda em educação e do Programa de Ações Afirmativas-Faculdade de Educação-UFMG.
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ENSAIO SOBRE FRAGILIDADES >> Anderson Feliciano e DemĂŠtrio Alves (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
Fragilidade: (do nosso dicionário particular) menino correndo na chuva; ventania dentro.
FICHA TÉCNICA
Performer: Anderson Feliciano e Demétrio Alves | Direção: Mário Rosa | Composição sonora: Jhonatta Vicente | Fotografia: Daniel Pitanga Este espetáculo foi apresentado na segunda, 23 de abril de 2018.
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SE OS HOMENS SÃO FEITOS DO BARRO NÓS SOMOS FEITAS DA LAMA >> Juhlia Santos e Giovanna Heliodoro (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
O projeto “Se os homens são feitos de barro, as mulheres são feitas da lama” consiste em uma performance que aborda questões sobre a higienização social no que tange à raça e ao gênero. As imposições sociais lançadas ao negro com um recorte no gênero trans, são questionadas de forma não-panfletária, a fim gerar liberdade de pensamentos e reflexões referentes ao tema. O projeto é protagonizado por duas artistas travestis negras que convidam mulheres cis negras, lésbicas oriundas do Kilombo Manzo. A performance demonstra temas pertinentes nesse tempo da caça à gênero e raça.
FICHA TÉCNICA
Trilha ao vivo musicistas: Daniele Milena, Laiza Lamara, Vicki Cardoso | Atrizes: Juhlia Santos, Giovanna Heliodoro | Figurino: Juhlia Santos | Direção musical: Daniele Milena | Direção artística: Idylla Silmarovi | Produção: Juhlia Santos | Iluminação: Idylla Silmarovi e Juhlia Santos | Duração: 20 min | Indicação etária: 18 anos Este espetáculo foi apresentado na segunda, 23 de abril de 2018.
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EMPRAZAR, CHAMAR PRA COMPARECER >> Suellen Sampaio (Belo Horizonte/MG)
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SINOPSE
Caminhos de corpos em trajetória de nascimento e renascimento, a cena é um experimento em que os corpos dançantes se relacionam consigo e o outro, percorrendo as atmosferas de morte, amor, ressurreição e a corporeidade africana e suas simbologias. “Emprazar” vem com o intuito de reunir artistas de setores diversos, convoca para celebrar a valorização dxs negrxs em seu lugar de destaque e empoderamento.
FICHA TÉCNICA
Direção artística: Jade Inácia | Performers / dançarinos: Jeiza Fernandes, Paulo Santos e Suellen Sampaio | Produção: Jenyfer Freitas | Duração: 20 min | Classificação Livre Este espetáculo foi apresentado na segunda, 23 de abril de 2018.
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Sobre ser seres luminescentes, dançantes e erráticos Por Soraya Martins E nesse último dia da temporada, boca não disse palavra. Pra quê? Os corpos estavam lá tecendo todo o discurso via imaginação – mecanismo de produção de imagem para o pensamento-, eles estavam lá, não numa simples representação, aqui ela não cabe. Elescorpos- estavam lá pensando outras formas de estar negra e negro no mundo. E nós, ali, vimos nesses e desses corpos uma capacidade de resistência histórica, logo, política, em sua vocação para a recriação e sobrevivência. Sobrevivência de vaga-lumes, seres luminescentes, erráticos, dançantes e resilientes que, apesar de tudo – e esse tudo é gigantesco, é doloroso, é traumático, é da ordem das nossas fúrias e melancolias e ressentimentos- desenham constelações. Das constelações, Ensaio sobre a fragilidade de dois corpos masculinos da negrura fabulando questões, relacionando e compartilhando o sensível: dois corpos em diferença, em relação, que divide um comum da pretura, que não é igual. Execução de movimentos e gestos pontuais, o mesmo bum-bum musical que imprime ritmo e preenche o espaço-tempo dilatado daqueles corpos que se tocam… rostos, pernas, peitos, pés, dedos… os chupam… ele-daquele, aquele-dele, desenhando um infinito que, a partir da diferença, remete às várias instâncias de tensão, do desejo, da fome, da falta, das subjetividades…das fragilidades, que nesse ensaio é tudo outra coisa que não a fraqueza. A minha íris preta capta essa imaginação/ produção de imagem do lugar da partilha do sensível, das fissuras e ressignificações da fragilidade a partir da própria fragilidade que entra na disputa por narrativas outras. Por emergência do novo de onde se pode refletir sobre subjetividades, singularidades, quereres, imposições, gênero, questões raciais e sociais, afetos correlatos, traumas e também construir espaços e relações que podem reconfigurar, material e simbolicamente, um território comum sem ser igual. Uma poética da relação em que está em jogo a capacidade de lidar com as imagens-sentido e incorporar essas imagens ao próprio sentido. Nesse ensaio, o modo de imaginar-tecer imagens- aponta para um modo de fazer uma poéticapolítica. Saber-vaga-lume. Saber hieroglífico das realidades/identidade(s) constantemente submetidas à censura, à lama… Se os homens são feitos de barro, nós somos feitas da lama reconhece nessa lama uma 178
autoridade no conhecimento que diz respeito a uma história política em devir. Giovanna Heliodoro e Juhlia Santos, dois corpos em diferença que se contrapõem e se reconhecem. Corpos da negrura de duas mulheres trans, corpos enlamaçados, subalternizados. Desses corpos subalternizados vazam lamas que inscrevem saberes a partir de outras tessituras, ainda que beirando o chão, ainda que se deslocando lentamente dentro do contexto racista e genocida e transfóbico nosso de cada dia, esses corpos vaga-lumes, seres erráticos, no sentido mais potente dessa palavra, desenha constelação. Dizer isso a partir do experimento de Giovanna e Juhlia é afirmar que o modo delas de performar//imaginar a lama é um modo de fazer política. Elas lançam uma luz particularmente viva sobre seus lugares de enunciação. Lançam mão de um performar que se instala com a exposição dos corpos em diferença para depois desvelar, como diz Tatiana Carvalho, o próprio ato performativo e implodir, por exemplo, as construções sociais acerca do feminino e do masculino: ela tira a calcinha, se lambreca de lama; ela se barbeia/depila na fé cega e amolada da navalha; ela veste uma cueca. Elas não precisam de signos que validem sua(s) identidade(s). Elas mostram as subjetividades de seus corpos e os ressignificam. Corpos-lama. Elas nos convidam para limpar seus corpos sujos de racismo e transfobia. Elas são. São Juhia e Giovanna produzindo performance que vem à luz com um programa de construção futurista, pedindo outro devir, criando espaços para novas epistemes, novas narrativas. Elas são, pois, um ethos decolonial, senão uma iniciativa epistêmica da produção dos desejos, uma espécie de revolução em constante transmutação que decidem formar uma comunidade de lampejos apesar de tudo, de pensamentos e conhecimentos a transmitir. Elas, imaginação. Elas, política. A imaginação é política! E sobre o debate pós-experimento. Podem xs subalternxs falar? Elas dizem: Nós, Giovanna e Juhlia, “podemos falar”, mas porque estamos num lugar de passibilidade social. “Falamos bem”, “nos 179
vestimos bem”, somos acadêmicas, tivemos possibilidades de acesso. Elas perguntam: vocês escutariam nossas outras manas que estão se prostituindo nas ruas, que “não falam bem”, “não se vestem bem” e não são acadêmicas? Emprazou… … para Emprazar, chamar pra comparecer também entrar para dançar sua dança, buscar sua liberdade de movimento, afirmar seus desejos e emitir seus próprios lampejos. Mais três corpos negros, mais uma vez tudo o que eles representam e tudo que eles ainda podem representar, para além de uma leitura somente política- de extrema importância e urgência-, uma leitura também estética, mediada pela criação. Os três corpos, aqui, dançam a partir de gestos e passos e movimentos de uma dança afrobrasileira já muito decodificada, mas o lampejo vem da tentativa de imprimir o novo vindo dessa decodificação. Essa busca pelo novo, ou melhor, por imprimir uma marca estética singular – também errante, dançante e resiliente – escolhe a linguagem como forma de tensionamento: minha íris preta aprender, para mim passa um filme das quatro temporadas da segundaPRETA em que começamos pensando somente num lugar para apresentar nossas feituras artísticas. Lampejou, lampejou, lampejou… e agora pensamos/fissuramos/reconstruímos também as formas estéticas das nossas feituras. E assim nos construímos seres artistas errantes, vagalumes. Esses corpos vão ao passado, e no espaço intervalar entre as memórias e os esquecimentos da(s) cultura(s) negra(s) em diáspora, tensiona os próprios corpos dançantes hoje como uma tentativa, sempre retomada, de uma “fidelidade recriada”. Nasce daí outras possibilidades das corporeidades vir à tona, de invenção das formas, a partir das fissuras, quedas, riscos, subjetividades e singularidades, fragilidades… imagens. Imaginação! Não assume a imagem, em sua própria fragilidade, em sua intermitência vaga-lume, a mesma potências, cada vez que ela nos mostra sua capacidade de reaparecer, de sobreviver? Isso é sobre nossas sobrevivências vaga-lumes. É sobre uma tecnologia de aquilombamento chamada segundaPRETA, no feminino.
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FESTA DE ENCERRAMENTO Show: Bloco Swing Safado Realizada no dia 23 de abril de 2018.
FICHA TÉCNICA - QUARTA TEMPORADA
Imagens: Pâmela Bernardo e Pablo Bernardo Edição e Fotografias: Pablo Bernardo Assessoria de imprensa: Alessandra Brito Debate: Soraya Martins, Anderson Feliciano, Tatiana Carvalho, Mário Rosa, Sabrina Rauta e Suellen Sampaio Equipe: Alexandre de Sena, Aline Vila Real, Andréa Rodrigues, Ana Martins, Ana Paula Freitas, Alessandra Brito, Grazi Medrado, Jhonatta Vicente, Josi Lopes, Michelle Sá, Rainy Campos, Evandro Nunes, Elisa Nunes, Suellen Sampaio, Priscila Rezende e Zora Santos Grupo Espanca: Alexandre de Sena, Aline Vila Real, Gustavo Bones e Aristeo Serranegra
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ENTRE-TEMPORADA #4 cinemaPRETO comentado THE WATERMELON WOMAN
Cheryl Dunye (Estados Unidos, 1996, 90 minutos) Sinopse: Cheryl é jovem, negra e lésbica. Ela mora na cidade da Philadelphia com sua melhor amiga Tamara e está absorvida por um projeto pessoal: fazer um filme sobre sua busca por uma atriz negra da Philadelphia que apareceu em filmes dos anos 30 e que era conhecida como “A Mulher Melancia”. Seguindo várias pistas, Cheryl descobre seu nome artístico e seu nome real e infere que ela teve um longo caso com Martha Page, uma mulher branca, das poucas diretoras de Hollywood. Enquanto se aventura por essas descobertas, Cheryl se envolve com Diana, que também é branca - o que tensiona sua amizade com Tamara. “The Watermelon Woman” estreou em 1996 no Festival de Cinema de Berlim Realizado no dia 21 de maio de 2018.
Conversadoras: Cineclube Aranha, Nivea Sabino, Sabrina Rauta, Suellen Sampaio e Tatiana Carvalho Costa
>> Cineclube Aranha (parceria) O Cineclube Aranha é um espaço dedicado à cinefilia e ao debate crítico sobre o cinema a partir de um olhar feminino. 184
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QUINTA TEMPORADA
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CONCEIÇÃO EVARISTO HOMENAGEADA DA QUINTA TEMPORADA
>> Foto: Otávio Fortes 189
>> Ela nascida em Minas, hoje do Mundo, é polígrafa, ficcionista, poeta, ensaísta, e nutre um gosto ancestral pelo ouvir e contar história, coisa que aprendeu com sua mãe e com uma tia muito estimada, que ela bem define como sua escrevivência. Ela nutre em mim, em nós, o desejo de emendar um tempo a outro, de poder olhar, sem pressa e sem medo, a cobra celeste colorida beber água no rio, de manipular o barro com a maestria da mãe de Ponciá, de fazer nascer de nossas vivências cotidianas as cenas que nos guiam, de ver poesia em cada movimento da vida. Como nós, ela também vem de uma família simples, de uma caminhada nada resignada, por isso ultrapassamos os muros que foram construídos para impedir corpos negros como os nossos, o dela, de seguirmos adiante. Hoje somos artistas, mestras, doutoras, e ela, além disso tudo, também é uma escritora reconhecida internacionalmente que vem proporcionando que o mundo leia, viva e sinta essa sua essência de mulher preta brasileira, mineira, belorizontina! Ao fechar os olhos, a vemos aqui - dona de um olhar sereno, de uma voz doce, de uma andar firme, de uma escrita vigorosa - nos convidando a ler o mundo com nossos olhos negros, a compormos com nossos corpos pretos uma estética, ética e poética negra na cena, a construirmos um espaço de troca de forma afetuosa, emancipatória, sincera, como aprendemos com os que vieram antes de nós. Com uma docilidade e uma escrita certeira, Conceição Evaristo segue nos encantando e, com muita honra, a temos aqui em nossa Segunda Preta, onde a negrura que nos aquilomba nesse dia regido por Exu coloca-nos nesse lugar de uma encruzilhada e assim vamos escre(vi) vendo a cena que melhor nos representa. Por Etiene Martins e Evandro Nunes
Etiene Martins é graduada em jornalismo e em publicidade e propaganda, especialista em comunicação e saúde. É diretora da Livraria Bantu, empreendimento especializado em literatura negra, e do Jornal Afronta uma publicação que tem como público alvo a população negra da capital mineira e região metropolitana. 190
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>> Foto: Fernanda Abdo
NADA MAIS É >> Laia Cia. de Danças Urbanas (Belo Horizonte/MG) 28/05 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Desconstruir “nada mais é” que jogar a casa construída no chão e reconstruir o novo. É desmantelar costumes. É desprender das formas e redescobrir-se por intermédio das próprias ruínas, para malear os corpos e os pensamentos cristalizados. “Nada mais é” define-se como algo mais simples do que se pensa e molda as diferentes tradições. A obra de dança se estrutura a partir da desconstrução de três pilares sociais que alicerçam nossa formação enquanto indivíduos e que nos afetam desde a infância: o machismo, a crença religiosa – quando essa cerceia nossa liberdade – e o racismo. FICHA TÉCNICA
Direção: Victor Alves | Assistente de direção: Meibe Rodrigues | Dramaturgia: Marcelo Oliveira | Coreografia: Criação colaborativa | Pesquisa dança de salão: Igor Arvelos | Pesquisa Dancehall e Vogue: Fabiana Santos | Elenco: Fabiana Santos, Maiara Martins, Roberland Martins, Igor Árvelos, Victor Alves e Warley Martins | Luz: Ricardo da Mata | Texto: Meibe Rodrigues e Marlos Gomes | Trilha sonora: Danilo Baurog e Vic Alves | Figurino: Fabiana Santos e Patrícia Santos | Fotografia: Fernanda Abdo | Ano: 2017 | Duração: 55 min | Classificação Livre 192
>> Foto: Julia Ribeiro
VELHO/FEITICEIRO >> Kascha (Ouro Preto/MG) 04/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
O mistério do sagrado e do profano realizados por um feiticeiro velho- jovem-homem-animal- objeto. O mistério da fé, da crença, da movimentação em transe. A busca de identidade em meio a repreensão de homens brancos, configura a ideia de um velho feiticeiro buscando sua liberdade, a diáspora de seu corpo, a realização-aceitação de sua ancestralidade. A força de um corpo que resistiu ao sofrimento, ao en(branquecimento) compulsivo de uma sociedade racista. É a esse corpo que será reverenciado nessa performance. A todos os corpos negros que ousaram resistir e continuam desafiando a morte diariamente seja no campo ou na grande cidade, é a isso que o velho feiticeiro traz em sua essência. A performance do corpo, da vida, do mistério, da ancestralidade, da dualidade sagrada e profana.” FICHA TÉCNICA
Intérprete-Criador-Performer: Kascha | Iluminação e Sonoplastia: Giovany De Oliveira | Duração: 9 min | Recomendação etária: 14 anos
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>> Foto: Jonata Vieira
BOI BÍBLIA BALA >> Grupo Teatro do Amanhã (Contagem/MG) 04/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
O senador Adolfo, do Partido dos Trabalhadores Cristãos que estava resistente em se candidatar ao governo do estado, aceitou entrar na disputa depois do apelo da cúpula do partido. O parlamentar afirmou nesta noite que passou a considerar a candidatura por temer o esfacelamento do PTC no estado se não houver aglutinação de forças políticas. Adolfo informou também que conversas neste fim de semana serão fundamentais para garantir apoio político e viabilizar o seu nome. FICHA TÉCNICA
Texto e Atuação: Jonata Vieira | Duração: 25 min | Classificação Livre
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>> Foto: Jhonatta Vicente
O REINO É DAS BICHAS
>> Jhonatta Vicente e Ventura Profana (Belo Horizonte /MG e Rio de Janeiro/RJ) 04/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
“O Reino é das bichas” é Uma sátira religiosa em encontro aos fundamentos das bichas. A profanação se dirigiu ao projeto de moralização do poder político que se instaurava no Rio de Janeiro com a eleição do atual prefeito Marcelo Crivella, também Bispo da instituição religiosa Igreja Universal do Reino de Deus. Contudo, a potência performática não se enclausura nas paredes institucionais. “Eu não vou morrer” canta Ventura Profana em culto à Deusa Travestí. O trabalho é antes de qualquer coisa, um clamor por socorro, justiça e restituição. Parem de nos matar!!! Ventura Profana e Jhonatta Vicente resgatam vestígios de uma educação evangélica, criando um paralelo entre o genocídio à TLGBs e a crucificação de Cristo. FICHA TÉCNICA
Performers – Ventura Profana e Jhonatta Vicente |Style: As Talavistas Galla | Duração: 40 min | Classificação Livre
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>> Foto: Divulgação
PRINCESA DANDARA >> Efigênia Marya (Belo Horizonte/MG) 10/06 | 20h | PARQUE MUNICIPAL SINOPSE
Três brincantes perpassam a história de Dandara Zumbi dos Palmares através de jogos e brinquedos e brincadeiras. FICHA TÉCNICA
Atuação e criação coletiva: Efigênia Marya, Gabriela Meneses e Wermerson Moreira | Trilha ao vivo: Almin Bah e Cassiano Luiz | Figurino: Wermerson Moreira | Texto: Efigênia Marya e Gabriela Meneses | Assistência de Direção: Andréa Rodrigues | Duração: 30 min | Classificação Livre
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>> Foto: Ariane Lazário
CAMPO DE MANDINGA >> Jack Diniz (Belo Horizonte/MG) 11/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Uma cena curta que envolve dor e alegria, questionamentos sociais, fala do orgulho de assumir quem somos transformando a dor em combustível para mover o amanhã. FICHA TÉCNICA
Ator: Jack Diniz | Duração: 4 min | Classificação Livre
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>> Foto: Foto: Glênio Campregher
OS NEGROS >> Coletivo Impossível (Belo Horizonte/MG) 11/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Em Os Negros, um tribunal é instalado para que uma corte composta por brancos julgue os crimes supostamente atribuídos a um grupo de negros. Entre cômicos depoimentos e estranhas reconstituições, logo percebemos que uma grande farsa fora montada para chamar a atenção para questões raciais. FICHA TÉCNICA
Direção: Rogério Lopes | Direção de Arte: Tereza Bruzzi e Cristiano Cezarino | Direção Musical: Júlia Dias | Assistência de Direção: Rikelle Ribeiro | Preparação Vocal e Musical: Helena Mauro | Preparação Corporal: Mônica Tavares e Júlia Dias | Diretores(as) de cena: Rogério Lopes, Helena Mauro, Júlia Dias e Mônica Tavares | Atores convidados: Ariadina Paulino e Simon de Oliveira | Atores: Alexandre Ventura, César Divino, Dê Jota, Diony Moreira, Jéssica Garcêz, Lucas Fabrício, Marlília Ribeiro, Michelle Martuchelli, Thalis Bispo e Will Soares | Cenografia: Maria Laura de Vilhena e Laysla Araújo | Cenotecnia: Artes Cênica Produções | Figurinos: Edsel Duarte, Amanda Gomide e Lohanye Garcia | Confecção de figurinos: Maria Antônia, Edsel Duarte, Amanda Gomide, Lohanye Garcia e Layanne Nascimento | Maquiagem: César Martins | Confecção de máscaras: Edsel Duarte | Iluminação: André Salles | Produção Executiva: Lucas Prado | Programação Visual: Djalma Ramalho | Registros audiovisuais: Naum Produtora | Comunicação nas mídias sociais: Michelle Martuchelli | Duração: 1 hora | Recomendação etária: 16 anos 198
>> Foto: Divulgação
VULNERÁVEL >> Felipe Jawa (Belo Horizonte/MG) 18/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Performance que propõe a todos a experimentarem a vulnerabilidade em diversas instâncias a partir do embate do corpo no espaço imerso em palavra. O conteúdo é a exposição de uma autoetnografia íntima que se manifesta numa amálgama de linguagens – música, poesia, dança, arquitetura – construindo uma amálgama física sintese da resconstrução da relação corpo, espaço, tempo dissolvendo a interface artista/ público. FICHA TÉCNICA
Performer mediador: Felipe Jawa | Duração: 40 min | Classificação: 14 anos
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>> Foto: Divulgação
NEGRO >> Marcel Diogo (Contagem/MG) 18/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
A performance intitulada “NEGRO” reflete sobre o racismo no Brasil. A miscigenação do povo brasileiro ocorreu de forma violenta e conta inclusive com políticas de governo para o branqueamento da população. A “democracia racial” é um mito. Não existe convivência harmoniosa entre grupos etnicorraciais, muito pelo contrário, os diferentes tons de pele estabelecem uma hierarquização social que especialistas denominam colorismo ou pigmentocracia. A performance consiste em retirar o próprio sangue do braço por meio de uma seringa e utilizá-lo para escrever com um pincel a palavra negro na parede. Pardo, moreno, mulato, cafuzo, são exemplos de nomenclaturas utilizadas para “dissolver” a população negra no Brasil. Biopolíticas do Estado brasileiro para apagar o negro do território nacional contribuíram para uma desigualdade social “cromática” no país. Apesar do Estado e todo o aparato de opressão e invisibilização, é preciso sinalizar que sangue negro corre em nossas veias.” FICHA TÉCNICA
Performer: Marcel Diogo | Duração: 20 min | Recomendação etária: 14 anos 200
>> Foto: Ariane Lazário
SINAL VERMELHO >> Grupo Traços Periféricos (Belo Horizonte/MG) 18/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Três mulheres e um homem. Quatro corpos pretos em alerta. Quatro corpos presentificados em vermelho a jogar com a rua. Experienciam no espaço a corpoiese preta em alerta, estados do trajeto cotidiano. Os corpos estão em estado de urgência na rua e por isso o encontro da cor vermelha questiona o perigo e a paixão. A proposta é sobre experimentar a transitoriedade com o público e espaço na vida cotidiana, na presença e paixão de existir. Estamos em sinal vermelho. FICHA TÉCNICA
Atores: Adriana Chaves, Ana Elisa, Daniele Fernandes e Saulo Calixto | Duração: 20 min | Classificação Livre
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>> Foto: Fabrício Belmiro
APARECIDA >> Breve Cia (Belo Horizonte/MG) 25/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Ao enterrar sua mãe, Aparecida desenterra sua identidade negra a as histórias de sua ancestralidade. Volta a suas origens para desenterrar tudo aquilo que a fez obedecer, emudecer e negar sua mãe homônima. FICHA TÉCNICA
Concepção: Breve Cia | Dramaturgia: Marcos Tito | Atuação: Renata Paz | Sonorização: Marcos Chagas | Fotografia: Fabrício Belmiro | Duração: 15 min | Classificação Livre
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>> Foto: Denilson Tourinho
O MURO >> Denilson Tourinho (Belo Horizonte – MG) 25/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Cenas da vida e das artes são retomadas para negritar que as vozes que habitam em mim vão se repetir, repetir, repetir… Escutou? As vozes que habitam em mim. FICHA TÉCNICA
Atuação e concepção: Denilson Tourinho | Duração: 15 min | Classificação Livre
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>> Foto: Divulgação
O CANTAR DOS QUE NÃO SE RENDEM >> Daniel Magalhães (Ouro Preto/MG) 25/06 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
A proposta é apresentar uma cena que nasceu a partir de improvisações e partituras em dupla, e seguiu por transformarse em uma só ideia e necessidades de expressão individual. Após várias experimentações corporais o texto cru, de forma devastadora me deparei com a poesia palestina através da busca incessante de vozes não tão acessadas ou ouvidas. Surge então a poesia nacional palestina nas décadas de 1950 e 1960 o movimento que adquiriu força e vitalidade, tais que em muitos momentos representou e ainda representa um brado de combate e esperança para os palestinos que vivem sob a ocupação de Israel ou no exílio. Inclusive muitos moram e vivem aqui, clandestinamente e em condições precárias. A democracia israelense não suporta que os palestinos cantem, disse uma vez o poeta Tawfic Zayyad, e é por esse motivo que resolvi cantar por eles em forma de poema interpretado, utilizando das palavras de Samih Al-Qassim. FICHA TÉCNICA
Ator e produtor: Daniel Magalhães | Caracterizador e sonoplasta: Ricardo Maia | Iluminador: Luís Gustavo | Duração 40 min | Classificação Livre 204
>> Foto: Divulgação
ENCRUZILHADA DAS MULHERES
>> Chica Reis e participação de Marcos Matheus (Belo Horizonte/MG) 02/07 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Encruzilhada de mulheres é uma apresentação de contação de histórias por Chica Reis acompanhada pelo músico e ator Marcos Matheus. Baseada nos contos de Mãe Beata de Yemonja, itans, contos e lendas afrobrasileiros onde a figura central é a mulher. FICHA TÉCNICA
Contadora de histórias: Chica Reis | Atuação e musicalidade Marcos Matheus | Iluminação: Geraldo Octaviano | Duração: 40 min | Classificação Livre
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>> Foto: Thais Arruda
FALA DAS PROFUNDEZAS >> Núcleo negro de pesquisa e criação - NNPC (São Paulo/SP) 02/07 | 20h | TEATRO ESPANCA SINOPSE
Um grupo de pessoas têm cor, essas cores. Têm pele, essas peles. Têm corpo, esses corpos. Têm eletricidade, essas eletricidades. Tem contradição, essas contradições. Têm tecnologia, essas tecnologias. Têm fricção, muita fricção. Têm sonho, esses sonhos. Têm voz, essas vozes que ecoam. Têm história, essas histórias que, aliás, vai começar ou já começou? FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e direção: Gabriel Cândido | Atuação: Deni Marquez, Ellen de Paula, Gabriela Felipe, Jere Nunes e Tásia de Paula Sonoplasta-musicista: Jéssica Melo | Iluminação: Natália Peixoto | Foto e vídeo: Thais Arruda | Produção: Núcleo negro de pesquisa e criação | Duração: 40 min | Classificação Livre
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>> BLACK BOULEVARD OU TUDO PRETO DE NOVO OU O ENSAIO GERAL… | Foto: Pablo Bernardo
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8 5ª temporada Homenageada CONCEIÇÃO EVARISTO :: 28/05 – 20h – Espetáculo de dança Nada mais é - Laia Cia. de Danças Urbanas (Belo Horizonte/MG) :: 04/06 – 20h – Experimentos cênicos Velho/Feiticeiro – Kascha (Ouro Preto/MG) Boi Bíblia Bala – Grupo Teatro do Amanhã (Contagem/MG) O Reino é das bichas – Jhonatta Vicente e Ventura Profana (BH/MG e RJ/RJ) :: 10/06 – 10h – segundaPRETINHA Princesa Dandara – Efigenia Marya (Belo Horizonte /MG) :: 11/06 – 20h – Experimento e espetáculo Campo de Mandinga – Jack Diniz (Belo Horizonte/MG) Os Negros – Coletivo Impossível (Belo Horizonte/MG) :: 18/06 – 20h – Experimentos cênicos Vulnerável – Felipe Jawa (Belo Horizonte/MG) Negro – Marcel Diogo (Contagem/MG) Sinal Vermelho – Grupo Traços Periféricos (Belo Horizonte/MG) :: 25/06 – 20h – Experimentos cênicos Aparecida – Breve Cia (Belo Horizonte/MG) O muro – Denilson Tourinho (Belo Horizonte/MG) O cantar dos que não se rendem – Daniel Magalhães (Ouro Preto/MG) :: 02/07 – 20h – Experimentos cênicos Encruzilhada das mulheres – Chica Reis e Marcos Matheus (Belo Horizonte/MG) Fala das profundezas – Núcleo negro de pesquisa e criação - NNPC (São Paulo/SP) Horário: 20h Local: Teatro Espanca! Rua Aarão Reis, 542 - Centro Ingressos: R$ 10 (inteira), R$ 5,00 (meia) Residentes fora dos limites da Avenida do Contorno pagam meia-entrada Exceto dia 10/16 - 10h - segundaPRETINHA Praça do Trenzinho - Parque Municipal -Entrada gratuita
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