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Morte e morrer

Demétrio Xavier

Em 1968, um guri de 26 anos cantava que sabia que, adiante, um dia haveria de morrer. De susto, de bala ou vício; em um precipício de luzes, nos braços da mulher que o quisesse. Caetano pedira a canção a Gil e Capinam (outros dois guris) para, na estreita medida do possível, homenagear o Che Guevara, executado meses antes (e a medida do possível se estreitaria muitíssimo mais, meses depois, com o AI-5.)

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Morte de cinema; de morto de estampa de camiseta: romântica, charmosa, heroica. Nenhum lugar para lembrar a agonia e o medo que podem acompanhar o morrer.

Uns 50 anos depois, nenhuma daquelas três fatalidades havia topado definitivamente com Gil, ou ele com elas – e para as três terão sobrado, certamente, oportunidades. Multiplicaramse os braços de quem quer ao baiano, ao longo das mesmas décadas – e lá estávamos muitos destes, no Araújo Vianna, celebrando as duas coisas.

A percussão no violão e o canto grave sussurrado ao início; o formato popular, com algo de cantador; a interpretação do velho autor intérprete.

E pude assisti-lo, cantando só, ao violão, a canção “Não tenho medo da morte”.

Não tenho medo da morte Mas sim medo de morrer Qual seria a diferença Você há de perguntar É que a morte já é depois Que eu deixar de respirar Morrer ainda é aqui Na vida, no sol, no ar Ainda pode haver dor Ou vontade de mijar

A percussão no violão e o canto grave sussurrado ao início; o formato popular, com algo de cantador; a interpretação do velho autor intérprete (velho, autor, intérprete.)

Desconcertante, e não só porque o assunto tanto o é. Chama a atenção a clareza com que fica exposto um tema que sempre esteve dando voltas, meio escondido, na poesia, na música: morte e morrer, diferença e cotejo. Saí pensando nisso, do Araújo – e como não pensar novamente, nestes dias em que o noticiário trouxe do Amazonas uma inversão na forma como se narrou a pandemia até agora e pôs em primeiro plano a agonia e não a morte?

Desconcertante escrever sobre isso, evidentemente.

Por outro lado, não há por que desconcerto, e isso é certo, quanto ao que

não tem conserto: talvez o primeiro de quem me lembrei tenha sido meu estimado Augusto Meyer, falando do Bruxo autor das Memórias póstumas: “Uma cousa, porém, é escrever sobre a morte e outra, morrer.”

Beleza de ensaio com dois temas principais: o Machado de Assis, de que o teuto-gaúcho sabia tanto, e a própria Morte. Narrativa ambientada em velório, com a inversão magnífica jogada já no título, “Os galos vão cantar”.

Minhas referências sulistas, que me são tão mais fáceis, como coisa que está nos bolsos, não nas gavetas. Algumas assomaram, no Araújo Vianna.

Aquilo, era pra ficar na coxilha, picado de espada, rachado de lançaços, mas não pra morrer como foi, aperreado em cima da cama, o corpo besuntado de unturas e a garganta entupida de melados e pozinhos dos doutores!...

Pobre de mim!... estou vendo que hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-flores da cidade, como bicho de galinheiro!.,

– disse Blau Nunes, contando a morte de Juca Guerra.

Não tenho medo da morte Mas medo de morrer, sim A morte é depois de mim Mas quem vai morrer sou eu

Gil parafraseia Meyer: uma cousa é a morte e outra, morrer.

E se pergunta, enquanto diz que “a morte já é depois”: “como poderei ter medo se não terei coração?”

Seria injusto e meio caricaturesco ou simplificador focar em uma resistência, digamos, “tradicional gaúcha” em expor os próprios medos ou na estratégia de retová-los de honra e emponchá-los de coragem. Exemplos não faltam e trago alguns – mas porque estão nos bolsos, à mão. Não devem ser em absoluto monopólio dessas latitudes.

Quando alguém diz que tem medo de morrer, desconcerta. Morrer desconcerta.

Seria injusto e meio caricaturesco ou simplificador focar em uma resistência, digamos, “tradicional gaúcha” em expor os próprios medos ou na estratégia de retová-los de honra e emponchá-los de coragem.

Exemplos não faltam e trago alguns – mas porque estão nos bolsos, à mão.

Não devem ser em absoluto monopólio dessas latitudes.

Há vários anos, um cantor ainda enlutado pela morte do parceiro, com o qual formava uma dupla sertaneja, dava entrevista do tipo “pinga-fogo” ou “bate-pronto” e chegou perto da formulação de Gil, de uma forma – perdão – algo engraçada:

Pergunta: “– Um medo”... Resposta: “Por incrível que pareça, de morrer!!”

A quem isso pareceria incrível, se não em um âmbito de esforçada, trabalhosa negação do assunto chato?

Juca Guerra! Que nome! “Cambará macho não morre na cama”. Esses são para morrer como o Che (bueno, ainda não se tinha recuperado o relato dos momentos finais e da execução, em sua feiúra). Não como bicho de galinheiro. Assim afirma Blau - muito mais, aliás, do que o poderia fazer Simões Lopes; esse era homem de farmácia e não de guerra, acostumado às unturas, melados e pozinhos da medicina do início do século passado - e nem um pouco a espadas e lanças.

Mas as guerras não são permanentes ou totalmente constantes, mesmo no Rio Grande do Sul tradicional. Ainda bem; não há mal que dure cem anos, nem tento que não se corte.

Como seguir desafiando a morte, provocando-a, convocando-a, talvez – é o que afinal estou arriscando dizer aqui – em grande parte por um medo de morrer retovado de honra destemida?

Não quero morrer de doença Nem com u’a vela na mão Eu quero é guasquear no chão Com um balaço bem na testa E que seja em dia de festa De carreira ou marcação

João da Cunha nos obriga a pensar nas decantadas temeridades gaúchas, no arriscar-se em peleias ou provas equestres e de qualquer outra espécie. Serão parte daquela estratégia?

Saí do Araújo Vianna e ainda andava às voltas com esses assuntos, caminhando pela Osvaldo Aranha – aquele que foi ferido gravemente jogando a vida em uma quixotesca carga de lança na ponte do Ibirapuitã; aquele que morreu, subitamente, em sua cama, décadas depois.

Pensei até mesmo nos suicídios de campeiros fronteiriços, pesquisados no trabalho belo de Ondina Fachel. Enforcar-se no maneador ou no laço talvez seja mais morte do que morrer, como tombar num duelo de Borges em “El encuentro” ou “El sur”.

Pensei nisso de deliberar e manejar a própria morte, muitas vezes e em

Mas as guerras não são permanentes ou totalmente constantes, mesmo no Rio Grande do Sul tradicional. Ainda bem; não há mal que dure cem anos, nem tento que não se corte.

distintas culturas considerado algo digno. Mesmo quando essa associação é poética, como quando Julio Cesar Castro conta com surpresa a morte de seu amigo: “Alfredo Zitarrosa agarró y se murió”.

Pegou e morreu!! Surpresa, sim; espanto, inesperado – mas quanto de vontade de conferir potência e negar a dolorosa passividade do momento final.

Hernán Figueroa Reyes cantava “o Tata está velho... Se um dia há de ir-se, que nem se dê conta, ao tranquito, nomais. Deusinho, te peço que apague sua vida qual se apaga um palheiro, sozinho, sem pitar.”

Há menos arrogância aí, mas a ideia é a mesma: que a morte, coisa natural da vida, “como comer, caminhar”, diz Gil, não obrigue o pai a um morrer.

Pensei no patriarca Júlio de Castilhos.

Amaro Juvenal, no Antônio Chimango, falava da morte daquele Coronel Prates com espanto:

Um dia... ansim, de repente, Esta notícia correu: - O Coronel Prates morreu! A muitos custava crer; Como havia de morrer, Se ele nunca adoeceu?

Mas Júlio (o Coronel Prates, do poemeto) teve, sim, seu morrer. Mantevese arrogante ou lendário mesmo nele, ou assim se conta, com a famosa resposta a quem tentou animá-lo nos instantes finais dizendo “coragem!!!”

“Coragem eu tenho; o que me falta é ar.”

Júlio, lá em 1903, antes da Espanhola; Che e Gil; Juca Guerra, Machado de Assis, seus morreres e suas mortes, entremesclados nos dias em que o noticiário falou mais da agonia do que da perda de tantos manauaras. Dias de respiração cortada, dias sem oxigênio, em que cada brasileiro se chocou para além do suportável contra seu medo dessas duas coisas: a morte e o morrer.

Qual seria a diferença, você há de perguntar...

Júlio, lá em 1903, antes da Espanhola; Che e Gil; Juca Guerra, Machado de Assis, seus morreres e suas mortes, entremesclados nos dias em que o noticiário falou mais da agonia do que da perda de tantos manauaras. Dias de respiração cortada, dias sem oxigênio, em que cada brasileiro se chocou para além do suportável contra seu medo dessas duas coisas: a morte e o morrer.

ate que a imaGinacao os separe – cena 10

Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Eduardo Vicentini de Medeiros

Úrsula é um romance com marcado teor abolicionista escrito por uma mulher negra.

No eixo racial do espectro político maranhense da segunda metade do século XIX, é o que poderíamos chamar de um feito inesperado e surpreendente.

Úrsula é um ponto completamente fora da curva da produção literária nacional, retrospectivamente acolhido como o marco inaugural da literatura afro-brasileira – foi lançado em 1859.

Tudo isso é bem conhecido e justamente celebrado na renovação do cânone promovida nas últimas duas ou três décadas de crítica literária.

Tentarei iniciar a nossa conversa por uma via alternativa, com um détour provisório na inescapável questão racial, para encontrá-la ao final sob ângulo distinto.

Para dar o primeiro passo precisamos explorar a distinção entre a Velha e a Nova Comédia no distante mas onipresente contexto grego. Vejamos como Northrop Frye, em Anatomia da Crítica, caracteriza uma particular recorrência de enredo do gênero:

A estrutura do enredo da Comédia Nova grega, tal como transmitida por Plauto e Terêncio, em si mesma menos uma forma do que uma fórmula, tornou-se a base da maior parte da comédia, especialmente em sua forma dramática mais altamente convencionalizada, até nossos dias. Será da maior conveniência desenvolver a teoria da construção cômica tirando-a do drama, e usando apenas incidentalmente ilustrações extraídas da ficção. O que normalmente acontece é um jovem aspirar a uma jovem, seu desejo ser contrariado por alguma oposição, comumente paterna, e perto do fim da peça alguma reviravolta no enredo habilitar o herói a realizar sua

filosofia na vida real

Úrsula é um ponto completamente fora da curva da produção literária nacional, retrospectivamente acolhido como o marco inaugural da literatura afro-brasileira.

vontade. Neste modelo simples há vários elementos complexos. Em primeiro lugar, o movimento da comédia é habitualmente um movimento de uma classe social para outra. No começo da peça as personagens obstrutoras dominam a sociedade da peça, e a audiência reconhece que são usurpadoras. No fim da peça, o truque no enredo que reúne herói e heroína faz uma nova sociedade cristalizar-se em torno do herói, e o momento que essa cristalização ocorre é o ponto resolutório da ação, a revelação cômica, anagnórisis ou cognitio.

O surgimento dessa nova sociedade assinala-se frequentemente com algum tipo de reunião ou ritual festivo, que aparece no fim da peça ou presume-se ocorrer imediatamente depois. Casamentos são comuníssimos, e às vezes realizam-se tantos, como nas quádruplas núpcias do fim de As You Like It [...]

Úrsula está a léguas da dicção cômica. Obedece antes à máxima “tragédia pouca é bobagem”. Mas é quase irresistível forcejar o encaixe do seu enredo ultrarromântico no modelo proposto por Frye e extrair algumas consequências.

A peça central do quebra-cabeça é o personagem Tancredo e suas duas tentativas de casamento, obstaculizadas pela interposição de figuras patriarcais.

Adelaide, órfã de uma prima de sua idolatrada mãe, é o primeiro e arrebatado amor de Tancredo. Após intensa disputa sentimental com os seus genitores, sobre as inconveniências deste relacionamento, Tancredo acaba por receber a relutante bênção de seu pai para casar-se com Adelaide. Na condição de que cumpra previamente um compromisso de trabalho em uma cidade distante ao longo de um ano. Como veremos, a imposição desta condição fará toda a diferença no enredo.

Nos sentimentos filiais de Tancredo, pai e mãe estão em polos opostos. E este detalhe é fundamental para marcar sua distância em relação à figura paterna:

Não sei por quê; mas nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura.

Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher.

A peça central do quebra-cabeça é o personagem Tancredo e suas duas tentativas de casamento, obstaculizadas pela interposição de figuras patriarcais.

Neste intervalo fora de casa, que soa como um desterro, morre a mãe de Tancredo. Ato seguinte, seu tirânico pai toma Adelaide como segunda esposa, pisoteando o desejo manifesto do filho, bem como a promessa que lhe fez de aceitar seu casamento com Adelaide após seu regresso. O primeiro amor, futura e prometida esposa de Tancredo, se transforma em vil e desavergonhada madrasta.

A cena onde ele descobre a traição do pai é reveladora. Ao voltar do semivoluntário exílio, já informado da morte da mãe, Tancredo abala-se casa adentro, em busca do esperado reencontro com Adelaide:

No salão havia um turbilhão de luzes; no fundo, reclinada em primoroso sofá, estava uma mulher de extremada beleza. Figurou-se-me um anjo. A esplendente claridade, que iluminava esse salão dourado, dando-lhe de chapa sobre a fronte larga e límpida circundava-a de voluptuoso encanto.

Era Adelaide.

Adornava-a um rico vestido de seda cor de pérolas, e no seio nu ondeava-lhe um precioso colar de brilhantes e pérolas, e os cabelos estavam enastrados de jóias de não menor valor.

Distraída, no meio de tão opulento esplendor, afagava meigamente as penas de seu leque dourado.

Alucinado por beleza tão radiante, corri para ela, exclamando:

– Adelaide! minha Adelaide! E naquele momento, seduzido pelos seus encantos, louco pela ventura de vê-la, esqueci a mágoa, que me doía no coração, da perda de minha mãe. Estendi-lhe os braços, e as expressões morreram-me nos lábios; e depois, curvando-me ante ela, ia tomar-lhe as mãos, e beijá-las com efusão; mas ela então altiva e desdenhosa disse-me com frieza, que me gelou de neve.

– Tancredo, respeitai a esposa de vosso pai!

O pai de Tancredo, mas também a pérfida e cumpliciosa Adelaide, cumprem a função de “personagens obstrutoras”, para usar a expressão de Frye, confortavelmente instalados nos papéis de marido e mulher de um casamento tradicionalmente patriarcal.

A dupla decepção face à traição do pai e da outrora mulher amada precipita Tancredo em uma atordoada e meditabunda cavalgada para longe da casa dos pais.

Pano rápido, cena seguinte. Tancredo se acidenta gravemente e é salvo pelo escravo Túlio, que o abriga na casa de

Seu tirânico pai toma Adelaide como segunda esposa, pisoteando o desejo manifesto do filho.

Luísa B., sua adoentada senhora, já viúva, fragilizada por uma paralisia.

Outro pano rápido. No idílio curativo, Tancredo recebe os cuidados de Úrsula, filha de Luísa B., “um anjo de beleza e de candura”, por quem se apaixona.

A decepção com o falso e dissimulado amor de Adelaide resulta na descoberta do verdadeiro e correspondido amor de Úrsula.

Como bom moço e alma generosa, Tancredo retribui Túlio com o dinheiro suficiente para sua alforria. Guardem este ponto da concessão da alforria. Voltaremos a ele ao final do détour racial.

Restabelecido do acidente, Tancredo resolve partir e retomar seus afazeres, não sem antes pedir exitosamente a mão de Úrsula à Luísa B. :

– Agora, senhora – continuou o mancebo dirigindo-se a Luísa B... que apenas ouvia-lhe a voz –, agora não me negueis o único bem que ambiciono na vida. Senhora, eu amo a Úrsula, e fora preciso não conhecê-la para sair desta casa sem levá-la no pensamento e no coração. É Úrsula, senhora, o anjo dos meus sonhos, é a esperança da minha vida. Viver sem ela d‘ora em diante fora morrer mil vezes, sem nunca encontrar o descanso da sepultura. Não me negueis. Úrsula é a esposa que convém a minha alma, é a esposa que pede o meu coração. Sereis vós surda à minha súplica?

Neste momento da trama surge o segundo macho alfa obstrutor, o Comendador Fernando, tio por parte de mãe de Úrsula, que, assumindo as funções de pater familias, resolve que, face à morte iminente da irmã, o melhor a fazer é casar-se com Úrsula, como forma de saldar os mal-feitos do passado, em especial o assassinato confesso do cunhado! Eu falei...tragédia pouca é bobagem na pena romântica de Maria Firmina.

Vários panos rápidos. Úrsula foge, acaba louca e morre. Comendador Fernando e seus capangas, na tentativa de encontrar Úrsula e colocar seu plano matrimonial em ação, acabam torturando e matando a escrava Susana, serva doméstica de Luísa B. e conselheira de Úrsula, assassinando o recém-alforriado Túlio e, claro, apunhalando fatalmente o boníssimo Tancredo.

A esta altura você deve estar pensando: onde foi parar aquele lance do enredo da Nova Comédia? Risos numa hora dessas? Já explico, ao menos esquematicamente.

A narrativa de Úrsula é estruturada a partir dos casamentos frustrados de Tancredo.

A trama não oferece o alívio do “ponto resolutório da ação, a revelação cômica, anagnórisis ou cognitio”. Não há, portanto, a instauração da nova sociedade, que emerge das estruturas corrompidas do velho patriarcalismo. Em sentido es-

A narrativa de Úrsula é estruturada a partir dos casamentos frustrados de Tancredo.

trito, não há “reunião ou ritual festivo”. Não há casamento. Ou pelo menos, não o casamento redentor de Tancredo e Úrsula, da renovação e instauração de uma nova ordem.

No contexto ampliado de Úrsula, a nova ordem seria marcada pelo fim do patriarcalismo escravocrata. A percepção da vileza, imoralidade e irreligiosidade da escravidão é evidente nas falas do núcleo de personagens negros, Túlio, Susana e Pai Antero. Percepção que é agudamente compartilhada por Úrsula e Tancredo. “As almas generosas são sempre irmãs.” Tancredo não apenas garante a alforria de Túlio mas elabora claramente o credo abolicionista, por exemplo nessa peça de diálogo com o escravo que lhe prestou solidariedade:

– A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou –, não me chameis amigo. Calculastes já, sondastes vós a distância que nos separa? Ah! O escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que…

– Cala-te, oh! Pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio – interrompeu o jovem cavaleiro –, dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos. Túlio, meu amigo, eu avalio a grandeza de dores sem lenitivo que te borbulha na alma, compreendo tua amargura, e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravizou a seu semelhante. Sim – prosseguiu – tens razão; o branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspiu sobre a pureza dos seus sentimentos!

A tragédia de Úrsula reside na impossibilidade deste “truque no enredo que reúne herói e heroína” e “faz uma nova sociedade cristalizar-se em torno do herói”. Maria Firmina parece nos indicar que não há plot twist no horizonte que pudesse reverter a ordem patriarcal escravocrata do Segundo Reinado.

A crítica filosófica nos legou a clássica imagem do casamento patriarcal como uma forma de escravidão. Úrsula acrescenta carne, osso, drama e dor ao símile da crítica. Uma imagem encarnada na persistência do racismo em nosso desde sempre esgarçado tecido social.

Maria Firmina parece nos indicar que não há plot twist no horizonte que pudesse reverter a ordem patriarcal escravocrata do Segundo Reinado.

Se a carta de intenções da série Até que a razão os separe previa construir “um sismógrafo das revoluções que chacoalharam a instituição política do casamento no Brasil, entre a metade do século dezenove e os dias que correm”, creio que chegamos ao fim provisório do percurso, que a rigor, é o seu começo cronológico, batendo de cabeça na fissura de uma das principais placas tectônicas do solo que pisamos. Se esta fissura não for definitivamente resolvida, dificilmente sairemos do buraco fundo da desigualdade racial.

Maria Firmina dos Reis sabia que, afinal de contas, o buraco do racismo era mais embaixo.

SÉRIE AS ORIGENS

capituLo L –era Do raDio, o finaL

Arthur de Faria

Atelevisão havia estreado no Brasil no dia 18 de setembro de 1950. A pioneira foi a TV Tupi, de São Paulo – seguida pela Tupi carioca no ano seguinte.

No extremo sul do país, a capital do estado inchara barbaramente: Porto Alegre tinha então 394 mil habitantes, quase um terço a mais do que apenas dez anos antes.

Em 1951 Getúlio Vargas volta ao poder, desta vez nos braços do povo, em eleição democrática. Mas para sair da vida e entrar na história em agosto de 1954.

E aí chegamos a 1955, quando o showbiz gaúcho, todo articulado ao redor do rádio, começa a fazer água: Assis Chateaubriand coloca 50 aparelhos de TV na praça da Alfândega e transmite direto do Clube do Comércio a primeira demonstração da novidade.

As telinhas mostravam o que estava acontecendo a poucas dezenas de metros de distância: o melhor escrete das Emissoras Associadas apresentou-se. Mostraram sua música a quem se aglomerou para ver a Grande Orquestra Farroupilha regida por Salvador Campanella, o grupo Tropeiros da Tradição, dirigido por Paixão Côrtes, e o popularíssimo Conjunto Farroupilha.

Levaria menos de cinco anos para que essa transmissão experimental se transformasse numa emissora, com tudo o que se tinha direito. A TV Piratini era inaugurada em 20 de dezembro de 1959.

Eles ainda não sabiam.

Mas para os artistas que trabalhavam nas principais rádios, famosos, prestigiados, contratados e ganhando razoavelmente bem, o sonho começava a acabar.

porto alegre: uma biografia musical

Manchete do Jornal Última Hora: a morte de Vargas

Sonoplastas na Gaúcha, em 1945

De forma ainda mais radical do que já acontecera duas vezes no século - com o cinema falado e a popularização do rádio –, a profissão de músico teria de se reinventar barbaramente. Gaúcha havia sido extinto – e, no começo da década de 1970, a Farroupilha também fecharia o seu.

Se, em 1950, 40% das verbas publicitárias brasileiras iam para o rádio e 1% para a TV, em 1969 a proporção era de 13% para 43%.

No começo, parecia apenas uma nova frente de trabalho, e promissora: gaúchos se mostrando para gaúchos. Mas ainda não havia o videoteipe, tudo feito ao vivo. Mais ainda do que no rádio, onde alguns horários sempre foram preenchidos com discos. Na TV pré-videoteipe, não tinha como: tudo o que era visto estava acontecendo ali, naquele momento.

Mas foi tão rápido que, olhado daqui, parece uma epidemia de filme-catástrofe – ou 2020.

No final de 1966, míseros sete anos depois, já não havia nenhum programa de auditório em nenhuma rádio da capital. O departamento de radioteatro da

Bem que havia avisado a Revista TV, já em dezembro de 1959, pouco antes da inauguração oficial da TV Piratini.

O advento da televisão em Porto

Alegre é um fato consumado. Aí está o Canal 5 com sua imagem perfeita, plantando um marco pioneiro no Rio Grande do Sul.

E com isso ganha nova força e atualidade a pergunta que vem sendo feita: irá a televisão abalar o prestígio mantido até aqui pelo rádio?

Quase um ano antes, em janeiro, tinha sido a Revista do Rádio a perguntar em manchete: A Televisão Matará o Rádio?

Matar, não mataria, mas ia tontear um bocado. Para a música seria uma bomba: nunca mais a mesma estrutura de empregos e estabilidade.

Em 29 de dezembro de 1962, Mauricio Sirotsky e seus sócios inauguram a TV Gaúcha, segunda emissora do Estado.

E então, em 1963, o videoteipe invade esse mundo feito um Godzilla possuído.

No instante em que a primeira fita viajou com um programa pronto do Rio ou São Paulo para outra cidade, perdeu imediatamente o sentido manter um escrete de artistas em cada estado, quando cada rede podia ter uma orquestra só, um cast só. Evidentemente, na sua sede. Que, pra facilitar, era numa das duas cidades onde moravam as estrelas de maior renome nacional. Era só gravar e mandar os teipes pras emissoras afiliadas.

De uma só tacada, a Piratini demite todo o elenco de rádio e teleteatro, dissolve a Grande Orquestra Farroupilha e manda embora até o Conjunto Farroupilha.

Demosthenes Gonzalez lembrava bem:

Quando as emissoras de rádio e televisão suprimiram as apresentações ao vivo de suas programações, foi uma calamidade. Músicos e cantores ficaram desempregados; compositores ficaram sem uma vitrine para mostrar as suas composições. Artistas de fora não vinham mais.

Era o império dos enlatados.

Por aqui se entrava para o fascinante mundo da televisão (atualmente, prédio da TVE)

O termo “enlatado”, hoje em desuso, descrevia justamente a forma como vinham as fitas (os teipes): dentro de latas. A partir daí, a concorrência com o que se produzia no centro do país tornou-se ainda mais desigual.

No meio disso, a situação já mudara também do lado empresarial: em 1963, Maurício Sirotsky seria o único dos sócios a se manter quando a rede paulista Excelsior compra a Rádio e Televisão Gaúcha S/A.

A TV Excelsior, que nascera já na era do videoteipe, era dos mesmos donos da companhia de aviação Panair, o que facilitava ainda mais a circulação das fitas com os programas gravados de São Paulo para o Rio (e vice-versa). E Porto Alegre sem gerar nada, só recebendo latinhas.

Oposição de primeira-hora ao governo militar, a Excelsior não vai durar muito: resiste só até 1968 quando, perseguida e à beira da falência, vende a Gaúcha para Maurício, seu irmão Jayme Sirotsky e Fernando Ernesto Corrêa. O trio se associa então à novata e crescente Rede Globo – aliada dos militares – e compra também o jornal Zero Hora, que era a antiga Última Hora, de Samuel Wainer, outro inimigo da ditadura.

Foi nesse momento que Elis Regina, Manfredo Fest, Breno Sauer, Primo, Portinho – músicos de quem falaremos longamente em outros capítulos – tiveram a coragem de ir embora em busca de trabalho. Nem todos tiveram o mesmo destino de Elis, que chegou ao Rio absolutamente desconhecida em 1964 e, no ano seguinte, já em São Paulo, era o maior salário da televisão brasileira, apresentando O Fino da Bossa.

Que, é claro, era retransmitido em videoteipe em Porto Alegre. Com Elis, Jair Rodrigues e grande parte dos maiores artistas da música brasileira disputando um espaço a cada semana.

E aí você imagina a concorrência: O Fino da Bossa, o Jovem Guarda de Roberto Carlos & Cia, e, pra não ir muito longe, os festivais da canção que começavam a mobilizar o Brasil da ditadura pré-AI-5. Tudo prontinho, em videoteipe.

Correndo por fora, ainda havia os enlatados americanos, como a série Bat Masterson.

Não tinha como concorrer.

Aí até a maior estrela internacional do rádio local voltou pra casa: dois anos depois da chegada do videoteipe, em 1965, o maestro Karl Faust retorna à sua Alemanha natal. E para um empregão que só atesta a excelência do maestro da rádio Gaúcha: produtor da mais importante gravadora erudita do mundo, a Deutsche Gramophon. Até o final dos anos 1980, ele produzirá quase 300 discos, indo da música erudita contemporânea a Beethoven e Chopin, com artistas como a Filarmônica de Berlim e regentes como Claudio Abbado (seguindo sem preconceitos: trabalhou até com Brian Eno). Quando se aposentou, escreveu crítica de música erudita até o final do milênio. Em Porto Alegre, deixou a lembrança da melhor orquestra popular que, segundo muitos, a cidade teve. E ainda deu aulas para músicos como o pianista gaúcho Roberto Szidon, dirigiu um coral de música erudita e arranjou e ainda foi a São Paulo arranjar e reger, anônimo, discos da orquestra fantasma de estúdio Românticos de Cuba.

Com o rápido crescimento do número de lares que possuíam um aparelho de televisão, o rádio perde, literalmente, sua posição de destaque na sala de estar das famílias.

O mundo de muita gente caiu.

Se, por um lado, a vida de compositor em Porto Alegre não tinha sido fácil em toda essa Era do Rádio, por outro, cantores, instrumentistas, locutores e radioatores viviam numa espetacular bolha de prestígio local.

Um mundo mais simples, comunitário, provinciano. Para o bem e para o mal.

Um mundo que se acabara para sempre.

E olha que ainda nem falamos nos Beatles.

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