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O tradutor, de Salvador Benesdra

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Morte e morrer

Morte e morrer

Théo Amon

Este volumoso romance1, escrito por um autor que só deixou outro título (não ficcional), é um perfeito desconhecido fora da Argentina. Segundo averiguei, não está traduzido sequer em línguas de circulação mundial, como inglês ou francês. Pelas suas grandes virtudes, que tentarei expor abaixo, merece uma versão em português. Espero que, enquanto isso não acontece, os leitores se sintam movidos a lê-lo no original, atualmente em catálogo.

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Primeiro, algumas palavras indispensáveis sobre o seu obscuro autor. Salvador Benesdra nasceu em Buenos Aires, em 29 de novembro de 1952, filho de uma família de judeus sefarditas. Teve formação em psicologia (com pós-graduação em importantes centros europeus) e, além desta, exerceu profissionalmente o jornalismo e a docência universitária. Leitor voraz e linguista talentoso, sabia sete idiomas e se envolveu em política de esquerda desde a adolescência. Sua obra publicada se resume a um único romance, O tradutor, finalista do Premio Planeta Argentina de 1995, mais um inesperado livro de autoajuda (O caminho total — técnicas

( 1 ) BENESDRA, Salvador. El traductor. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2012. 3ª edição, 2ª reimpressão (2014). 670 pp.

resenha

não ingênuas de autoajuda para pessoas em crise em tempos de mudanças, escrito ao mesmo tempo que aquele). No dia 2 de janeiro de 1996, aos 43 anos, Benesdra se suicidou atirando-se do seu apartamento no décimo andar. Sofrera com crises fortíssimas a vida toda, o que envolveu mais de uma internação em instituições psiquiátricas.

O tradutor foi publicado apenas postumamente (1998), graças a Elvio E. Gandolfo, autor do prefácio na edição que possuímos, que assegurou à obra uma bolsa da Fundación Antorchas e encontrou editora interessada — o próprio Benesdra tentara junto a cerca de dez casas, sem sucesso. Aparentemente, é um livro que ganhou fama de cult na Argentina, sendo muito estimado nos círculos leitores alternativos, embora se trate de um autor ainda largamente ignorado, o que é fácil de explicar pela sua morte precoce e uma obra ficcional reduzida a um título só. Mesmo sem eu conhecer a literatura argentina dos anos 90 em diante (minhas leituras só me levam até Cortázar, Bioy Casares e

Este volumoso romance, escrito por um autor que só deixou outro título (não ficcional), é um perfeito desconhecido fora da Argentina.

Borges, cujas carreiras criativas terminaram pouco antes ou imediatamente depois do filho único de Benesdra), uma análise intrínseca do romance que exponha seus pontos fortes e fracos, e que demonstre que aqueles sobrepujam estes, terá seu valor como resenha crítica. Sigamos a ela.

A narrativa está a cargo do protagonista, Ricardo Zevi, de seus trinta e tantos anos, que mora numa mansarda portenha cheia de janelas (“Periscópio” é o apelido do apartamento). É um nítido alter ego de Benesdra — também judeu do ramo espanhol, também poliglota, também literato de profissão (é tradutor interno de uma editora), também dono de leituras variadas. O relato em primeira pessoa abre com um incidente galante, à primeira vista banal: impressionado com a beleza indiática de uma pregadora adventista que ele encontra divulgando sua religião em um café, Zevi vence o embaraço próprio e a desconfiança da mulher e consegue um encontro. Ela, Romina, é uma interiorana da província de Salta, fortemente empenhada com sua igreja. No seguimento do romance, revela-se que quase não possui experiência sexual e é anorgásmica. Esse é o nó que vai orientar todo o plano, digamos, privado do livro: Ricardo se põe como meta obsessiva arrancar Romina de sua irresponsividade, custe o que custar. Naturalmente, essa questão delicada imporá ao namoro dos dois um complexo jogo de gato e rato, com diversas separações, reaproximações, crises de ciúmes e, mais para o final, um perigoso jogo sadomasoquista com desfecho inesperado.

O outro plano, que chamaremos de público, centra-se no trabalho de Zevi. Ele é funcionário da Turba, uma editora esquerdista especializada em obras de política e economia em suas vertentes progressistas de todo o mundo, várias das quais traduzidas pelo herói. Lembremos que a ação inicia em meados de 1991, meses antes da dissolução da União Soviética. Os tremores que sacudiam todo o pensamento de esquerda nessa época de transição, já aberta pela reunificação alemã pouco antes, acompanham e dão o tom à vertente laboral (e laboriosa) do livro. Isso porque a situação da Turba está, digamos, bastante turva: os Gaitanes, família dos proprietários, arrocham os funcionários com políticas internas cada vez mais confusas de reestruturação hierárquica, informatização, realocação funcional, estratégias de bonificação e aumento salarial, planos de demissão voluntária e diversos choques

O relato em primeira pessoa abre com um incidente galante, à primeira vista banal: impressionado com a beleza indiática de uma pregadora adventista que ele encontra divulgando sua religião em um café, Zevi vence o embaraço próprio e a desconfiança da mulher e consegue um encontro.

com a comissão interna que representa os empregados. O adjetivo “laborioso” que usei linhas acima não é um mero trocadilho: este é um dos pontos fracos de O tradutor. As dissensões internas nos quadros da editora, as repetitivas assembleias dos funcionários, as intrigas palacianas cansam. O autor até tenta associá-las às transformações políticas que estavam se dando na Argentina, com as privatizações e o menemismo, mas todo esse lado do argumento falha em se soldar convincentemente ao ambiente histórico maior e aos dilemas pessoais do protagonista. A prolixidade dessas passagens, aumentada pela grande densidade de terminologia trabalhista, poderia ter sido aparada em favor de maior dinamismo, o que beneficiaria muito a leitura.

Por outro lado, os planos público e privado do enredo, se não perfeitamente amalgamados, fazem um belo jogo de bate-rebate, em que a um progresso profissional corresponde um progresso amoroso, ou onde, inversamente, um retrocesso em um plano é contrastado por um pequeno ganho no outro. Em perspectiva distanciada, onde distinguimos o movimento linear resultante do zigue-zague às vezes confuso dos eventos individuais, O tradutor se revela uma obra de muita força, com um senso de propósito, uma marcha dinâmica que nem sempre nos é brindada em ficção mais recente. Nesse sentido, a implantação histórica um pouco artificial e nem sempre coesa do livro é amplamente compensada pela trajetória pedregosa do herói romanesco, coerente com uma definição lukacsiana muito difundida: um indivíduo em busca de valores autênticos num mundo degradado.

Os valores de Ricardo Zevi — homem imensamente culto, excessivamente cerebral, esquerdista comprometido mas não acrítico, imbuído de muita justiça social e um bocado de machismo platino — entram em crise porque forças incontroláveis se põem no caminho deles. São forças tanto exteriores, como a crise mundial da esquerda e as chicanas dos seus patrões, quanto interiores, entre as quais se destaca sua considerável libido. Ricardo é um grande apreciador do sexo oposto, o que seguidamente o coloca em relações muito desiguais com o fito único de satisfação sexual. Seu caso com Romina, a princípio calcado na atração física ímpar que ela exerce sobre ele, acaba desdobrando novas frentes precisamente pelo esforço que ele faz para buscar mais terreno em comum com

O adjetivo “laborioso” que usei linhas acima não é um mero trocadilho: este é um dos pontos fracos de O tradutor. As dissensões internas nos quadros da editora, as repetitivas assembleias dos funcionários, as intrigas palacianas cansam.

ela do que o sexo, onde eles têm as dificuldades já citadas. É aí que o romance atinge alguns dos seus momentos mais leves e cativantes, como a iniciação de Romina no mundo da leitura não religiosa, o início dos seus estudos universitários, a pequena comédia da vida a dois no Periscópio, e os debates em que muito do mundo conceitual de Ricardo é desmontado pelos questionamentos simples e precisos de Romina.

No entanto, mesmo todo esse esforço nivelatório se mostra inócuo para superar a inibição sexual de Romina, que se transforma na obsessão de Ricardo. Por todo o livro, será esta a mola-mestra a impelir a peripécia privada, que vai de fantasias eróticas variadas até arriscadas intervenções de terceiros provocadas por Ricardo — culminando num festim de perversão, delírio alucinatório e redenção inesperada. Nesses episódios, vistos sempre da perspectiva agora paranoica do herói, Zevi-Benesdra dá livre curso ao seu estilo complexo, colorido, impregnado de forte imagética e algumas soluções verbais inesperadas (várias colocações verbo-substantivo ou substantivo-adjetivo lembram Borges pelo efeito inusual e surpreendentemente lógico). Façamos aqui um parêntese para examinar este trunfo maior do romance: sua peculiar prosa.

Se tivéssemos que inventar uma receita estética para o estilo de Benesdra, arriscaríamos a seguinte fórmula: a uma matriz marcadamente kafkiana (aí não só de estilo, mas temática também, como refletido na labiríntica degradação profissional do herói) soma-se um componente de Raduan Nassar e também uma pitada de Saramago e Borges. Claro, não estamos afirmando nenhum dado filogenético aqui – não conhecendo nada das leituras de Salvador Benesdra fora os autores que aparecem na narrativa, é impossível dizer qualquer coisa sobre suas influências reais. Mas justifico minha impressão, e de trás para frente: Borges já expliquei no parágrafo anterior; Saramago desponta no horizonte pelo pulso magistral com que uma torrente expressiva é conduzida por um leito sóbrio, de léxico rico mas pontuação precisa, que não deixa que o volume da frase transborde; a lembrança de Raduan Nassar se impõe pela mistura de sensibilidade e energia com que as realidades e ficções do eros, em seus componentes tanto afetivos quanto físicos, são dissecadas em um trabalho de ourives, apoiado por inventivas metáforas. Mas, novamente, isso tudo são associações minhas, sem qualquer gancho comprovável que pos-

Claro, não estamos afirmando nenhum dado filogenético aqui – não conhecendo nada das leituras de Salvador Benesdra fora os autores que aparecem na narrativa, é impossível dizer qualquer coisa sobre suas influências reais. Mas justifico minha impressão, e de trás para frente.

A sucessão de alguns períodos longos muitas vezes desemboca num período final mais assertivo, em chave de ouro, dando o arremate a um parágrafo coeso em que uma mesma ideia é examinada por vários ângulos, ligada a situações análogas e, quando é o caso, seguida em suas ramificações hipotéticas (a neurose crescente do herói o favorece).

sa reivindicar uma efetiva “filiação” (se é que um termo desses ainda tem lugar na literatura comparada). As únicas certezas são Borges e Kafka, que são citados no texto — e é revelador que Kafka figure na mão do protagonista sob a forma de um exemplar de O castelo, figura tutelar da fraseologia que vamos descrever a seguir.

A frase de Benesdra pode ser bastante longa, com encadeamento de orações, paralelismos e apostos, frequentemente elidindo vírgulas no caminho para favorecer uma leitura mais vertiginosa. A sucessão de alguns períodos desse tipo muitas vezes desemboca num período final mais assertivo, em chave de ouro, dando o arremate a um parágrafo coeso em que uma mesma ideia é examinada por vários ângulos, ligada a situações análogas e, quando é o caso, seguida em suas ramificações hipotéticas (a neurose crescente do herói o favorece). Como exemplo desse tipo de parágrafo ritmado, leia-se o seguinte trecho mais para o fim do livro, quando o protagonista foge do manicômio aonde um delírio cósmico-megalomaníaco o levara:

Ao subir no táxi e constatar a banalidade de toda a cena, a tranquilidade distraída do taxista, a rotineira intransitabilidade da cidade com seus engarrafamentos impossíveis de segunda-feira de manhã, senti de imediato que começava a me subir à cabeça um orgulho incomensurável, uma certeira suspeita de que tinha conseguido escapar de um verdadeiro massacre psiquiátrico com o único recurso de certa habilidade de prestidigitador, a mesma que tinha me permitido escapar sem pagar de supermercados e grandes livrarias em alguns tempos difíceis da minha adolescência, muito antes de que me ocorresse a necessidade de alguma intervenção extrassensorial ou paranormal para escapulir pelas brechas da atenção dos demais. Pela primeira vez desde que havia começado a ter os pensamentos extravagantes senti que não seria nenhuma tragédia comprovar que toda a travessia mental dessas semanas tinha sido um mero delírio, uma convicção tão vazia

e arbitrária como a de um Otelo fabricando-se infidelidades impossíveis no ar com uma lógica de ciúmes paranoides, como a de um marido atando cordas que não soube compreender que estavam soltas para seguir assim soltas, e não para que ele as unisse contranatura em uma explicação impossível que só delata seus próprios medos. Senti-me suficientemente forte para afrontar essa realidade e para escapar eventualmente da engrenagem exterminadora da repressão social, sem ter por isso que me transformar em herdeiro de uma linhagem de médiuns, telepatas ou super-homens. Mas também sabia que no fundo toda a imagética fantástica daquelas semanas de aparentes prodígios seguia me atraindo irresistivelmente.

(p. 538-9)

Quando o narrador apresenta não ideias definidas, mas sensações difusas, as metáforas ficam mais coloridas e margeiam pelo poético — como no parágrafo de abertura do livro:

Disse a mim mesmo que talvez era certo no fim das contas que as ideologias estão mortas.

Trecho de O tradutor Disse a mim mesmo que talvez era certo no fim das contas que as ideologias estão mortas; regozijei-me olhando pela janela do bar como o sol quente da primavera de Buenos Aires começava a fundir todas as convicções do inverno. Suspeitava pela primeira vez que podia haver um prazer na vertigem de flutuar nesse caldo uniforme que tinha se apoderado faz tempo de todo os espaços do planeta. O sol derramava sua festa de distinções sobre todos os objetos dessa esquina, mas eu sentia que por todas as partes estava drenando uma noite cinza de gatos universalmente pardos, uma apoteose da indiferenciação que pela primeira vez não conseguia me despertar medo.

(p. 17)

Esse tom, mantido uniformemente e matizado com grande perícia durante as quase setecentas páginas, garante uma perfeita correspondência temático-formal entre o que sabemos da personalidade do protagonista (pelo que ele diz de si e pelas suas trocas com as demais figuras, testemunhadas por nós em estilo direto) e como ele se expressa. Disso emerge um personagem inteiramente convincente, com uma voz inconfundível, como a das pessoas que conhecemos na vida real. Para mim, é esse o mérito maior do livro, que lhe garante um lugar como um excelente romance sul-americano do fim do século.

Um último reparo diz respeito a pequenos vícios de composição: os capítulos são quase independentes, isto é, apesar do fio condutor único constituído pelos personagens centrais, pouco vaza de um para o outro. É quase como se tivesse sido escrito um livro sobre o romance turbulento com Romina, outro sobre a insta-

bilidade na editora, e depois os capítulos dos dois tivessem sido revezados que nem num embaralhamento de cartas. Defeitos colaterais são também os personagens secundários, pouco desenvolvidos e, por isso, de aparência espectral: um amigo com quem Ricardo, no divertido capítulo III, discute sobre a nova namorada, entre amáveis palavrões de mesa de bar, nunca mais é mencionado na história; os pais do herói, que aparecem só nas últimas vinte páginas do livro, também cheiram a figurantes ex machina.

É uma pena, porque diversos desses elementos usados apenas no momento mais oportuno, para tocar a intriga adiante, teriam potencial para ser empregados coesivamente, de modo atmosférico, permeando a história como outros tantos Leitmotive (penso aqui em Thomas Mann, que o prefaciador esquece de mencionar ao dizer, acertadamente, que O tradutor é “assimilável a certa literatura alemã, do tipo Musil, ou Broch”). Um desses elementos até chega a esboçar tal função: o início do enredo profissional pega Zevi traduzindo um livro do fictício Brockner (caricatura do francês Pascal Bruckner?), filósofo da cultura e pensador neofascista que, extrapolando dados da etiologia animal e da história trabalhista recente, advoga um novo nietzscheanismo alinhado às realidades do mundo industrial pós-guerra. Essa filosofia mambembe, porém expressada com vigor por Brockner, contribui subliminarmente para o reenquadramento ético de Zevi no seu trato com a mulher e a empresa, e assim é um dos maiores combustíveis da trama toda. Contudo, Benesdra acaba não aproveitando toda a força que a ressurgência mais cerrada desse motivo injetaria no que Elvio E. Gandolfo chama de “um dos melhores romances argentinos que se escreveu desde 1810”. Suponho que poderia tê-lo corrigido, não fosse o seu trágico fim. Será? Mistérios de escritor suicida...

Essa filosofia mambembe, porém expressada com vigor por Brockner, contribui subliminarmente para o reenquadramento ético de Zevi no seu trato com a mulher e a empresa.

Autor: Salvador Benesdra Obra: El traductor Editora: Eterna Cadencia Ano: 2012

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