PARÊNTESE 63

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Morte e morrer Demétrio Xavier

E

m 1968, um guri de 26 anos cantava que sabia que, adiante, um dia haveria de morrer. De susto, de bala ou vício; em um precipício de luzes, nos braços da mulher que o quisesse. Caetano pedira a canção a Gil e Capinam (outros dois guris) para, na estreita medida do possível, homenagear o Che Guevara, executado meses antes (e a medida do possível se estreitaria muitíssimo mais, meses depois, com o AI-5.) Morte de cinema; de morto de estampa de camiseta: romântica, charmosa, heroica. Nenhum lugar para lembrar a agonia e o medo que podem acompanhar o morrer.

A percussão no violão e o canto grave sussurrado ao início; o formato popular, com algo de cantador; a interpretação do velho autor intérprete.

Uns 50 anos depois, nenhuma daquelas três fatalidades havia topado definitivamente com Gil, ou ele com elas – e para as três terão sobrado, certamente, oportunidades. Multiplicaramse os braços de quem quer ao baiano, ao longo das mesmas décadas – e lá estávamos muitos destes, no Araújo Vianna, celebrando as duas coisas. E pude assisti-lo, cantando só, ao violão, a canção “Não tenho medo da morte”. Não tenho medo da morte Mas sim medo de morrer Qual seria a diferença Você há de perguntar É que a morte já é depois Que eu deixar de respirar Morrer ainda é aqui Na vida, no sol, no ar Ainda pode haver dor Ou vontade de mijar A percussão no violão e o canto grave sussurrado ao início; o formato popular, com algo de cantador; a interpretação do velho autor intérprete (velho, autor, intérprete.) Desconcertante, e não só porque o assunto tanto o é. Chama a atenção a clareza com que fica exposto um tema que sempre esteve dando voltas, meio escondido, na poesia, na música: morte e morrer, diferença e cotejo. Saí pensando nisso, do Araújo – e como não pensar novamente, nestes dias em que o noticiário trouxe do Amazonas uma inversão na forma como se narrou a pandemia até agora e pôs em primeiro plano a agonia e não a morte? Desconcertante escrever sobre isso, evidentemente. Por outro lado, não há por que desconcerto, e isso é certo, quanto ao que 43


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