PARÊNTESE 63

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Foto: Alexandre Eckert


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editorial

Dar nome

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entrevista

Leilei teixeira – Viver para contar

Luís Augusto Fischer

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fala que eu desenho

Luciana

Pablito Aguiar

folhetim

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Capítulo 1 – A galinha

Nathallia Protazio

quadrinhos em revista

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10 anos com Marjane Satrapi

Vinicius Rodrigues

conto

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O episódio do bodoque

José Falero

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O outro mapa... da cidade do...

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Na parede da memória

René E. Gertz

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A unificação alemã de 1871 e nós

Demétrio Xavier

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Morte e morrer

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Até que a imaginação os separe...

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Capítulo L – Era do Rádio, o final

ensaio fotográfico Alexandre Eckert

nossos mortos Gabriel Lopes-Salomão

ensaio

filosofia na vida real Eduardo Vicentini de Medeiros

porto alegre: uma biografia musical Arthur de Faria

resenha Théo Amon Luís Augusto Fischer

recomendações Roger Lerina

56 63

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O tradutor, de Salvador Benesdra Ora, direis, ouvir os gregos!

Livro, podcast, artes visuais


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Dar nome

E

s colher nome de livro ou de filho, título de texto ou comunicação, pode ser barbada ou encalacrar o autor. O prezado leitor, a gentil leitora podem aí lembrar o tanto de perturbação que já lhe ocorreu numa dessas. Lembrar o finado avô ou apostar no futuro? Uma metáfora arrasadora ou um par de palavras descritivas? Olhem o caso de Nathallia Protazio, nossa colaboradora de tempos, uma cronista de mão cheia e coração grande. Nesta edição 63 ela estreia um folhetim, que como os anteriores – de Rafael Escobar, Júlia Dantas e Marcelo Martins da Silva – terá dez capítulos e, como combinado, vai botar Porto Alegre para dentro da história. Aí tinha que escolher nome.

Capa: ensaio fotográfico: O outro mapa... da cidade do Quintana, por Alexandre Eckert

expediente Parêntese Fundador Luís Augusto Fischer Editores-executivos Luís Augusto Fischer Ângelo Chemello Pereira

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Grupo Matinal Jornalismo

O nome: Duas Vanusas.

Diretor executivo Filipe Speck

O som das vogais já deixa o sujeito preso numa onda: U-a-a-U-a. Depois,

Editora-chefe Marcela Donini

Editor-assistente José Falero

Chefe de reportagem Naira Hofmeister

Colaboradores desta edição: Alexandre Eckert Arthur de Faria Eduardo Vicentini de Medeiros Gabriel Lopes-Salomão José Falero Nathallia Protazio Pablito Aguiar René E. Gertz Théo Amon Vinicius Rodrigues

Reportagem Estúdio Fronteira

Projeto gráfico Déborah Salves

Para assinar:

Editoração Thainá Coimbra

matinaljornalismo

Conselho administrativo Adriana Martorano Ângelo Chemello Pereira Filipe Speck Luís Augusto Fischer Roger Lerina Comercial: comercial@ matinaljornalismo.com.br

www.

.com.br

Escolher nome de livro ou de filho, título de texto ou comunicação, pode ser barbada ou encalacrar o autor.


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editorial não se trata de uma Vanusa, mas de duas. Onde mais, neste vasto mundo, duas Vanusas se encontram? A Lelei Teixeira (com essa sucessão de três ditongos “ei”, sendo dois tônicos) veio com uma citação indireta do famoso “Poema de sete faces” do Drummond, aquele em que um anjo torto mandou o poeta ser gauche na vida. Gauche não é gaúcho, mas tá ali, ali. E aí o gaúcho profundo Demétrio Xavier resolveu encarar a distinção entre a morte e o morrer, de mãos dadas com outros filósofos da cultura, por exemplo Gilberto Gil. O resultado é uma viagem para muito além dos nomes que rotulam uma coisa e outra. O Eduardo Vicentini de Medeiros, filósofo até na carteira de trabalho, cumpre hoje o décimo e derradeiro capítulo de sua nova série “Até que a imaginação os separe”, uma instrutiva viagem pelo patrimônio da literatura brasileira em perseguição desse outro nome, “casamento”. (E promete já uma nova série, dedicada ao cinema.) Gabriel “Gravador” Lopes-Salomão cumpre por nós a missão de chorar um nome que lamentavelmente desapareceu sete verões atrás, o grande Nico Nicolaievsky. O historiador René Gertz repassa com grande destreza, em escassas linhas, a formação de outro nome famoso, o país chamado Alemanha, que completou 150 anos em sua forma atual. E Vinícius Rodrigues apresenta um caso maravilhoso de quadrinhos que abrigam história, memória e humanidade, com a obra de Marjane Satrapi.

Gauche não é gaúcho, mas tá ali, ali.

Nosso parceiro Pablito conversou com Luciana Dornelles Ramos. Alexandre Eckert sobrepõe imagens da cidade recriando lugares com cor e poesia. Uma resenha de Théo Amon é sempre uma pequena aula a ser apreciada, neste caso falando de um romance raro e magnífico. E eu conversei brevemente com Cláudio Moreno para ajudar a espalhar mais ainda a fama de seu excelente podcast “Noites gregas”. Arthur de Faria conta a morte inadvertida da Era do Rádio, com o advento da televisão, e José Falero conta uma história de coragem e medo, com uma funda no meio – só que ele usa outro nome: bodoque.

— Luís Augusto Fischer

Leia o texto de Ana Bender que saiu no site da Parêntese nesta semana

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Fotos: Arquivo pessoal

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As irmãs Marlene e Lelei Teixeira

entrevista

Leilei teixeira – Viver para contar A entrevista com Lelei Teixeira parte do livro que ela publicou há pouco. Histórias sobre família, jornalismo e arte, que foram lançadas no papel a partir das vivências da autora com sua irmã. Luís Augusto Fischer

A

jornalista aqui entrevistada é muito conhecida no meio cultural de Porto Alegre e do estado. Lelei Teixeira já andou em várias redações e costuma – costumava, antes da pandemia – frequentar muito do ótimo que a cultura oferece na redondeza. 4


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Há alguns meses lançou um livro, E fomos ser gauche na vida (Pubblicato Editora), que não precisa de explicação, mas que cresce quando se sabe que foi escrito pela Lelei como resgate de um compromisso que tinha com sua irmã Marlene – daí a primeira pessoa do plural do título. A Marlene faleceu e a Lelei viveu para resgatar o compromisso de fixar por escrito as lembranças de lutas, conquistas, tristezas e alegrias que viveram. O livro está circulando muito e com grande impacto, pela qualidade humana das reflexões, por ser um livro de memórias compartilhadas entre duas irmãs muito próximas (Marlene era professora, Lelei é jornalista), por ser muito bem escrito e por conter uma série de serenas reflexões da autora sobre seu nanismo. Num tempo como o nosso, em que dificuldades, limites e preconceitos estão sendo examinados com lupa, o livro é uma grande lição. Mas lição dada com sabedoria, sem dedo na cara, com um carinho que mesmo o leitor mais distante vai sentir, ao virar as páginas. A entrevista foi feita por email, na virada de novembro para dezembro de 2020. E é uma grande alegria para nós.

Quanto à discriminação, que é grande, eu acredito que a fala pode ajudar muito. Especialmente em relação à curiosidade das crianças.

Parêntese – Teu livro é uma preciosa memória, não só pessoal, mas também de geração e do estado. Queria saber como está sendo a repercussão de leitura. Tens tido algum retorno já, passada uma semana ou pouco mais do começo da circulação do livro? Lelei Teixeira – Antes de tudo, quero agradecer aos parceiros que deram este visual tão bonito ao livro Mariane Rotter pela expressiva foto da capa, Amaro Abreu pelos desenhos das capas internas, tão significativos, Vitor Mesquita, da Pubblicato, pela edição. E agradecer a vocês pela oportunidade de falar para a Parêntese. Sou leitora desde o início. Vamos ao livro! Os retornos são incríveis. Estou impressionada e feliz com a repercussão, os pedidos e as leituras, desde o momento em que coloquei o livro na rua e avisei pelo whatts e pelo face que já estava nas livrarias Bamboletras, Baleia e Isasul em Porto Alegre, e na Miragem, em São Francisco de Paula. Jamais imaginei que teria retornos tão rápidos, tão afetivos e estimulantes em pouco tempo. Retornos vindos não apenas da minha família, de amigos e da minha geração, mas de pessoas bem mais jovens do que eu, de colegas de trabalho que não vejo faz algum tempo, de pessoas que não conheço pessoalmente e que moram em outros países. A emoção é muito grande. P – O livro vive citando parentes teus: dá a impressão de que são milhares de pessoas! Sempre tem primos, tios e agregados os mais variados, entrando e saindo de cena. O livro é dedicado aos sobrinhos-netos. A pergunta é: como o livro está circulando entre eles? Houve alguma surpresa para os leitores-parentes? Eles têm falado algo a respeito? 5


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LT – Não digo milhares, mas são muitos parentes mesmo! E de uma convivência intensa. Meus avós maternos, que me criaram e com quem vivi até a adolescência, tiveram sete filhos, cinco mulheres e dois homens, que, por sua vez, também tiveram muitos filhos. E vivíamos juntos e misturados porque a casa desses avós era a casa de todos. Um porto seguro, barulhento e multifacetado, onde cabia tudo. Sempre havia um cantinho para quem chegava e os netos viviam lá. Minhas tias que eram professoras, e precisavam sair para trabalhar, deixavam os filhos na casa dos pais com a maior naturalidade e a vida seguia seu curso. Mas hoje só tem uma irmã da minha mãe viva, a tia Clori, fundamental na minha criação, que está com 93 anos. E a tia Dilma, 94 anos, que foi casada com um dos irmãos da mãe, o tio Plínio, de quem falo no livro porque foi na casa deles em Novo Hamburgo que Marlene ficou para fazer o Científico e eu, pouco depois, para fazer o Clássico, no Colégio Estadual 25 de Julho. O livro está emocionando muito a família, meus irmãos, minhas primas e primos. É um pouco a história deles também e os retornos são maravilhosos.

P – Outra presença constante é a dos amigos, que também são “um bando e muitos outros”, como tu dizes, lembrando a letra do Bebeto Alves. Na composição do livro eles intervieram? Ajudaram? Atrapalharam? Tu tiveste alguma restrição a contar histórias envolvendo algum amigo? Por quê? LT – Tive uma infância de muito convívio com crianças da minha idade, brinquei muito e vivia solta, ainda na Jaquirana, onde nasci. Quando fui para a escola e nos mudamos para São Francisco de Paula para seguir os estudos, já não foi tão fácil. Eu não tinha ainda noção do nanismo. Na pré-adolescência, tudo o que eu queria era ter amigos. Apesar da timidez, sempre fui muito procurada porque era uma excelente aluna e estava sempre pronta para ajudar quem precisasse. A grande rede de amigos que nós criamos possibilitou que abríssemos asas para a vida. Depois de São Chico, Marlene foi estudar em Novo Hamburgo, como já falei, e em Caxias do Sul. Eu passei por Novo Hamburgo e depois Porto Alegre. E foi em Porto Alegre que ficamos e vive-

Lelei Teixeira (à dir.), em Paris, com Marlene

A grande rede de amigos que nós criamos possibilitou que abríssemos asas para a vida.

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mos um período intenso, de muitas descobertas, fundamental para nós duas. O movimento hippie ainda reverberava, os tempos eram outros e nossa casa estava sempre aberta. Vivemos algumas decepções, normais porque éramos muito ingênuas, mas fizemos amizades incríveis para toda a vida. E a ida da Marlene para a Bahia, com o nosso primo e grande parceiro Júlio, foi a grande revolução. P – O livro é escrito à sombra da morte da tua irmã, Marlene, que era tão próxima de ti que todos, creio, conheciam sempre vocês duas junto. Dá pra dar uma ideia para o leitor da falta que ela faz? LT – Marlene e eu moramos juntas já adultas em Porto Alegre, quando a família toda veio pra cá. Conto no livro como isso aconteceu. Ela veio de Caxias do Sul, onde iniciava o curso de Letras, e foi para a PUC. Eu fui fazer o básico da Unisinos no Colégio Anchieta e nosso irmão estava terminando o Segundo Grau. Depois vieram as primas morar com a gente. Marlene e eu sempre tivemos uma identidade in-

Marlene e eu sempre tivemos uma identidade incrível. Gostávamos das mesmas coisas. Descobrimos a imprensa alternativa em pleno regime militar.

crível. Gostávamos das mesmas coisas. Descobrimos a imprensa alternativa em pleno regime militar. Fizemos uma rede de novos amigos. Mergulhamos na luta política contra a ditadura e, ao mesmo tempo, na arte. Não perdíamos nada, peças de teatro, shows, palestras, filmes, tudo. Ficamos muito conhecidas e até recebíamos bilhetes de alguns atores dizendo que sentiram nossa falta na plateia. Tínhamos vidas independentes e muitos projetos comuns. Marlene terminou a faculdade e foi para a Bahia com o desejo de ficar por lá. Mas voltou depois de seis meses. Eu, ainda no início da faculdade, comecei a trabalhar na Zero Hora como estagiária e nunca mais parei. Pouco depois, Marlene foi para o interior, Cambará do Sul, dar aula. Quando entrou para o mercado de trabalho, a dedicação foi total. Mas nossos finais de semana eram reservados para a arte. E quando Marlene veio transferida para o Colégio Cândido José de Godói e passamos a morar juntas, mais ainda passamos a frequentar os espaços de arte por aqui. P – Outra coisa que salta das páginas do livro é a dureza da infância, tua e da Marlene, talvez mais tua do que a dela. Podes resumir as diferenças de trajetória inicial entre vocês duas? Por que tu foste criada alguns anos longe dela? Como tu vês isso hoje, na maturidade? LT – Eu não chamaria de dureza os tempos de infância. É claro que eu sofria com as dificuldades financeiras da família materna e com a estranheza que provocava, mas adorava aquele burburinho todo. E não me adaptava à vida da fazenda, onde viviam meus pais e meus irmãos, por mais que gostasse de estar com eles. Achava o ambiente sisudo, triste, cheio de regras, enfim. Fui morar com meus avós maternos com apenas três meses porque Marlene adoeceu e nossa mãe não tinha condições de cuidar sozinha das duas pe7


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quenas. Como não tinha afinidades com a sogra, ela buscou a ajuda dos pais e das irmãs na Jaquirana. Acabei me apegando muito a eles, e eles a mim, e o resultado é que não voltei, por mais tentativas que meus pais fizessem. E eles fizeram, disso nunca tive dúvidas. Marlene sempre teve muita culpa por ter sido a “escolhida da mãe”, entre aspas mesmo, mas só revelou na maturidade, depois de alguns anos de análise, processo que vivemos juntas. Choramos muito, o que foi muito bom. P – O livro é cheio de lembranças sobre o papel da canção popular na tua vida. Tu achas que essa experiência é como a da tua geração, em geral, ou há algo particular na relação tua e da Marlene com isso? Por quê? LT – A arte nos ajudou muito em todo o processo de crescimento, amadurecimento e entendimento da nossa condição, mesmo que ainda não verbalizada. Amenizou alguns sofrimentos. Abriu portas. A música foi o nosso refúgio desde crianças porque havia uma solidão grande na nossa trajetória inicial. Nós não falávamos sobre o nanismo. Não pronunciávamos a palavra “anão”. Não gostávamos de encontrar pessoas como nós. Não íamos a reuniões dançantes ou a bailes, tão comuns na época. Uma negação absurda, talvez já alimentada pelo preconceito que percebíamos, mas não entendíamos. Então, salve a arte! Para além dos medos e receios, vivemos nossa adolescência e juventude embaladas pela música, o rock, os Beatles, nossa grande paixão, os festivais da canção que traziam uma geração talentosa de compositores, cantores, músicos maravilhosos, engajados, libertários, que estão em cena até hoje como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Rita Lee/Mutantes, João Bosco, Ney Matogrosso, Martinho da Vila, enfim. Da nossa geração, com certeza. E depois descobrimos os gaúchos Nelson Coelho de 8

A música foi o nosso refúgio desde crianças porque havia uma solidão grande na nossa trajetória inicial. Nós não falávamos sobre o nanismo. Não pronunciávamos a palavra “anão”.

Castro, Bebeto Alves, Nico Nicolaiewski, Sílvio Marques, Hique Gomes, Nei Lisboa, tantos. E os que conhecemos mais tarde, como Cida Moreira, José Miguel Wisnik, Zeca Baleiro. E Tom Jobim, Elis Regina, Cazuza. Realmente a música, a canção popular, tem um papel fundamental nas nossas vidas. Nos embalou, nos acarinhou, nos fez dançar muito. Assim como o teatro e o cinema. Não perdíamos as peças dirigidas pela Maria Helena Lopes, Irene Brietzke, Luciano Alabarse. Acompanhamos o início da produção cinematográfica por aqui com os jovens intrépidos que criaram a Casa de Cinema. Marlene promovia debates com alunos do Colégio Godói. Participamos da produção de um seminário chamado “Ponha sua cabeça em campo” e por aí afora. Enfim, agitávamos muito. E adorávamos carnaval! Muito pulamos atrás dos trios elétricos em Salvador. P – A reflexão mais contínua do livro se refere ao nanismo, teu e da Marlene. Para o leitor, isso está entre os mais fortes motivos para a leitura, por causa dos relatos de di-


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ficuldades que vocês enfrentaram, relatos sempre delicados, nunca agressivos, e das várias oportunidades de superação dos obstáculos. Não sei se cabe a pergunta, mas enfim: alguma vez tu não tiveste problemas em ser anã? Onde? Como? Com quem? Podes contar alguma história sobre? LT – Nanismo é um problema em uma sociedade que não está preparada para entender a diferença e suas peculiaridades. Uma sociedade pautada pelo senso comum, onde a cor da pele, a condição social, a deficiência física, mental, intelectual, ou qualquer comportamento que não corresponda aos padrões instituídos de normalidade, portanto estranho, chama a atenção e acende o preconceito. A luta por inclusão é recente, mas está explodindo. A acessibilidade ainda é quase zero e, infelizmente, deixou de ser prioridade no governo atual, que nega tudo. As pessoas, de um modo geral, não se dão conta. Já enfrentei muitos problemas em bancos, caixas eletrônicos, ônibus, aviões, elevadores, supermercados, espaços diversos com balcões altos ou muito cheios. Ainda enfrento. Na agência do Banrisul onde tenho conta há bastante tempo, ganhei uma escadinha. E quem percebeu a nossa dificuldade, minha e da Marlene, foi o guarda do banco. E ele foi atrás de uma escada para facilitar a nossa vida. Escrevi muito sobre isso no meu blog “Isso não é comum”. Mas o que ainda me inquieta bastante é que, de um modo geral, as pessoas com nanismo não são levadas a sério. Provocam risos, deboches, piadas. Quem não lembra da expressão “anões do orçamento”, tão usada nos anos 1980, quando descobriram roubos de alguns deputados do chamado “baixo clero”? Ou de outra expressão desabonadora – “salário com perna de anão”? Comento no livro algumas situações constrangedoras como essas, bizarras até, que vivemos por conta disso. E, às vezes, algumas pessoas não sabem o que fazer comigo. Enfim,

são muitas situações. Mas de um modo geral no meio profissional não tive problemas por ser anã. Sempre fui muito respeitada, em alguns momentos com uma dose de exagero porque hiperdimensionavam a minha inteligência. Marlene também viveu isso no meio acadêmico. P – Como tu vês os problemas do nanismo na sociedade brasileira atual? Temos algum motivo para otimismo? Vão diminuir os problemas como os que tu e a Marlene precisaram enfrentar? LT – Estamos avançando. Hoje as pessoas têm mais consciência, mas temos muito para fazer ainda. Há grupos organizados que fazem um trabalho maravilhoso de orientação, como a Annabra/ Associação Nanismo Brasil, com sede no Rio de Janeiro. São inúmeros os tipos de nanismo e há alguns casos graves que precisam de muitos cuidados, tratamento e cirurgia. A medicina precisa avançar mais neste sentido. A mãe de um menino com nanismo de Rio Grande, aqui no RS, Vélvit Severo, criou a “Cartilha Escola para Todos – Nanismo”, simples, lúdica, educativa, que valoriza a diversidade, e trabalha para que a publicação seja inserida nas escolas. Formamos uma rede que não se acomoda e está na luta. Quanto à discriminação, que é grande, eu acredito que a fala pode ajudar muito. Especialmente em relação à curiosidade das crianças quando encontram uma pessoa com nanismo. Vivo isso quase que cotidianamente. E sonegar uma resposta, fazer de conta que nada está acontecendo, fugir do enfrentamento, como já fiz, só fomenta o preconceito. O texto que fecha o livro, no final da página 166, diz: “Não queremos apenas atrapalhar o trânsito ‘feito um pacote tímido’, como diz a canção de Chico Buarque. Queremos parar o trânsito para que nos olhem como seres humanos com direito à vida plena”. É isso! 9


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fala que eu desenho

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Duas Vanusas CAPÍTULO 1

A Galinha Nathallia Protazio

O

nome dela bem que podia ser Vanusa. Eu gosto de Vanusa.

Tá doida? Vanusa não, que a tia não vai gostar. Por que, mano? Porque é o nome dela. Mas não existe só uma Vanusa no mundo. Claro que não. Olha aí. Mas ela não vai gostar de dar o nome dela assim.

folhetim Não. Vou escolher outro! Mas eu gosto mais desse. Mas eu nem falei nada ainda... Eu sei que vou gostar mais desse igual. Alice. Alice é um nome bom pra ela. Alice não. Ela não parece Alice. Por quê? Olha pra ela. Alice é melhor que Vanusa. Vanusa é a cara dela. Não dá. Se a tia fica sabendo... Por favor, mano, deixa. Se a tia descobre ela não vai zangar. Como você sabe? Ué… todo mundo gosta de galinha.

Mas o nome não é dela. Claro que é, se ela se chama Vanusa o nome é de quem?! Mas ela tem uma carinha tão de Vanusa. Como ela pode ter uma cara de Vanusa? É uma galinha.

Mas ela tem uma carinha tão de Vanusa.

Não sei. Eu olho pra ela e só penso nisso. 11


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Talvez Verônica tivesse razão. Todo mundo gosta de galinha. As duas crianças não sabiam de onde ela tinha surgido. Porém, isso parecia não incomodar. Criança é assim, apesar de pensar na origem das coisas, elas não se importam muito se foi deus ou uma explosão. A única coisa que importava naquele momento era a galinha. Vanusa, como foi enfim batizada, por insistência de Verônica e generosidade de Pedro, chegou no meio da madrugada. Enquanto eles dormiam, inocentes da semana que teriam pela frente, ela deve ter pulado alguns muros, peregrinando pelos quintais da Lopo Gonçalves na Cidade Baixa. Já viu uma galinha voar? É um acontecimento meio bizarro, mistura de algo natural por ser ave, mas desesperado por lhe faltar aerodinâmica. Um animal realmente criado para ser comida, onde lhe faltam asas sobram-lhe peitos, coxas e miúdos. Seja como for, por acaso ou destino – dependendo apenas da fé de cada um –, Vanusa fugiu e ali naquela manhã fria de agosto era mais uma vez adotada. O acontecimento não poderia ter vindo num dia mais inoportuno. Já se preparavam pra um sábado inteiro de espera pro almoço de domingo com a tia, quando ainda durante o café da manhã a mãe avisou: A tia de vocês vem hoje. Hoje? Isso. Eu vou precisar viajar uns dias e ela vem pra cuidar de vocês. Você vai viajar, mãe? Vou. Tenho que ir. Pra onde? Vai encontrar o pai? Vou. 12

Cinco meses na cabeça de uma criança é um tempão. É eterno, já que não se lembram onde começa e nem sabem onde termina.

A gente pode ir junto? Não. Preciso ir ver o pai de vocês sozinha. Por quê? Por que a gente não pode ir também? Agora não pode. Assim que der todo mundo se encontra, tá? Mas eu tô com saudade. Eu também tô com saudade do pai. Ele também está com saudades de vocês, mas agora não dá e vocês vão ficar com a tia Vanusa e vão se comportar direitinho, tão me ouvindo? Antes da pandemia tia Vanusa almoçava todo domingo com eles. No início da quarentena eles ficaram cinco meses sem se ver. Cinco meses na cabeça de um adulto é um período fragmentado em semanas, compromissos mensais, tentativas para dar ordem àquilo que nunca se organiza: a vida. Cinco meses na cabeça de uma criança é um tempão. É eterno, já que não se lembram onde começa e nem sabem onde termina. A


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primeira visita foi há duas semanas. Apesar da tia ter passado e repassado o protocolo de afastamento por vídeo-chamada algumas vezes, incluindo na véspera, não teve jeito. Rolou abraço, beijo, chororô de saudade, colinho, história antes de dormir, café da manhã com bolinho de chuva e pipoca no fim da tarde. Um fim de semana que aqueceu o coração para aguentar mais um período. Quando a tia se despediu não imaginava que voltaria tão cedo. Tantos meses separados e agora quinze dias depois um novo encontro. Apesar da vontade, preferiu não perguntar nada pra irmã. Se ela precisava que ela ficasse com as crianças, ela ficaria. As explicações só são necessárias em relacionamentos voluntários. A vida delas sempre foi mais entrelaçada do que fosse possível imaginar. Amar sua irmã, sua família, para Vanusa não era uma escolha. O amor de tia foi uma das três maiores experiências de sua vida. Quando viu Pedro pela primeira vez na maternidade, ela foi tomada por uma sensação de completude misturada com uma angústia tão grande, jamais sentida. Chorou compulsivamente. Uma extensão de si mesma. Ele havia saído de dentro de sua irmã. Uma parte de si alheia à sua existência. Nunca havia imaginado amar alguém assim, antes mesmo de conhecê-lo. Antes de saber quais seriam suas qualidades, opiniões, queixas, valores. Pedro ainda seria, e ela já o amava. Só foi além com o nascimento de Verônica, cujo nome ela mesma escolheu. Madrinha. Agora, com sete e quatro anos de idade, lá estavam as duas crianças, acocoradas no pátio, ele abraçando os joelhos, ela com um graveto na mão, ambos encarando a galinha sem saber o que fazer com a visita de duas Vanusas no mesmo dia.

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Jonas Pasteleiro Pássaros da Cidade Mil e uma manhãs semelhantes

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quadrinhos em revista

10 anos com Marjane Satrapi Vinicius Rodrigues

F

oi um texto do Érico Assis (tradutor e crítico de quadrinhos) publicado no Blog da Companhia das Letras ainda no ano passado que me fez lembrar: em 2020, completaram-se 20 anos do lançamento de Persépolis, obra de Marjane Satrapi. É simbólico que tenha sido publicada naquele momento, pois se trata de uma graphic novel que, de certa forma, ajudou a moldar o mercado de quadrinhos justamente a partir da virada do século. E como se não fosse o suficiente, Persépolis também moldou e remodelou a percepção de muitos leitores acerca das histórias em quadrinhos daí para diante. Marjane Satrapi nasceu no Irã em 1969. Passou sua infância e início da adolescência em Teerã, onde frequentou o liceu francês local. Nesse período, vivenciou todas as turbulências em seu país que culminaram na ascensão de Ruhollah Musavi Khomeini, líder da Revolução Iraniana de 1979, que instaurou um regime teocrático marcado pela repressão às liberdades individuais. O fato de ter crescido no seio de uma família progressista, com pais ligados a movimentos de esquerda, fez com que Marjane pudesse conviver com um olhar crítico sobre a sociedade na qual estava inserida. Diante dessas inquietações em âmbito público e privado, seus pais a enviaram para a Áustria a fim de que ela terminasse lá os seus estudos. No final dos anos 1980, Satrapi retornou ao Irã

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Capas das edições de Persépolis, que Marjane Satrapi publicou originalmente pela L’Association em 4 volumes, entre 2000 e 2003

e, em 1989, ingressou na Faculdade de Artes de Teerã. Em 1994, embarcou novamente para a Europa com o objetivo de se estabelecer profissionalmente na França. Toda essa história está brilhantemente narrada em Persépolis: ali, descortina-se a trajetória de uma menina, assim como a história de um país em plena ebulição e cujas mudanças também exerceram impacto geopolítico para além de suas fronteiras. Traçando esse paralelo entre indivíduo e sociedade, Persépolis consolidou-se como uma das mais bem


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acabadas narrativas de formação produzidas nas últimas décadas.

deira onda de publicações voltadas à autoficção e à narrativa de memórias.

Não há dúvida de que a HQ deve muito do sucesso de seu formato a Maus – A História de um Sobrevivente (lançada originalmente em 1986), pois o contato com a obra de Art Spielgman foi determinante para que Marjane empreendesse seu próprio projeto; além disso, os aspectos formais da história contada, com apelo autobiográfico e constantes referências históricas, evidenciam uma conexão inescapável entre esses dois marcos dos quadrinhos. Porém, considerando o próprio contexto da obra de Satrapi, também parece claro o quanto Persépolis impulsionou um mercado antes um tanto marginal, voltado a HQs que não precisariam ter apelo fantástico ou infanto-juvenil. A graphic novel de Marjane também acabou por abrir um flanco interessante para outros quadrinistas que exploravam, igualmente, questões ligadas ao Oriente Médio e ao mundo árabe, além de ser uma das obras responsáveis por incentivar uma verda-

A carreira de Marjane Satrapi começou a se estabelecer na França no final dos anos 1990, como ilustradora de livros infantis. Seus relatos de juventude, contudo, faziam sucesso entre os colegas artistas, e foi a partir do incentivo deles que a artista resolveu transformar aquilo em quadrinhos. A repercussão da HQ foi praticamente imediata: cerca de três anos após o lançamento de seu último volume, seus quatro números já tinham vendido mais de 1 milhão de cópias, e a obra passara a ser traduzida em diversos idiomas e publicada em muitos países (inclusive no Brasil, onde vendeu mais de 130 mil exemplares).

Trecho do capítulo “O Cigarro”, da graphic novel Persépolis, de Marjane Satrapi (tradução de Paulo Werneck)

É curioso, no entanto, que o imenso sucesso de Persépolis tenha ofuscando, de certa forma, todo o restante da produção de sua autora – que também é cineasta. Em 2007, Persépolis virou filme (dirigido por Vincent Paronnaud e pela própria Marjane Satrapi): ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes e o César de roteiro adaptado, e foi indicado ao Oscar de melhor longa-metragem de animação. Nesse intervalo entre o lançamento do quarto volume da graphic novel e de sua adaptação cinematográfica, a auto-

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ra publicou mais duas HQs: Bordados e Frango com Ameixas. Ambas seguem uma proposta que se assemelha, em alguma medida, a Persépolis: mostrar o atravessamento das questões culturais do Irã na intimidade das personagens – o que muda é que o foco deixa de ser única e exclusivamente autobiográfico. Frango com Ameixas, publicado originalmente em 2003, traz uma narrativa familiar que acontecera 11 anos antes do nascimento da autora: a história de um tio-avô que abdica da própria existência em função de duas frustrações: uma relacionada a uma mulher, outra relacionada ao seu tar, um instrumento musical de estimação; dois acontecimentos melancólicos, duas histórias de amor. Mas o que desencadeia de fato a tragédia pessoal desse homem que simplesmente desiste de tudo tem menos a ver com o apego materialista ao instrumento ou seu amor à arte e mais com o fato de repensar sua trajetória como a de uma “vida que poderia ter sido e que não

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O que desencadeia de fato a tragédia desse homem tem menos a ver com o apego materialista ao instrumento ou seu amor à arte.

Trecho da HQ Frango com Ameixas (tradução de Paulo Werneck) e cartaz da adaptação cinematográfica live-action da obra (em que Marjane Satrapi retoma a parceria com Vincent Paronnaud, que trabalhou com a artista na direção de Persépolis, o filme)


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O casamento, a busca pelo amor e a sublimação do desejo são os principais temas em questão, apresentados ou por meio de testemunhos em primeira pessoa, ou como histórias que foram ouvidas por essas mulheres.

foi”. Seu dissabor em relação à existência acaba sendo literal: até mesmo o prato que dá nome ao livro e pelo qual o protagonista era apaixonado não lhe dá mais nenhum prazer. Em Bordados, Marjane funciona mais como uma espécie de testemunha, uma ouvinte privilegiada que acaba por dar voz e acabamento gráfico a diferentes narradoras. Bordados, Frango com Ameixas e Persépolis foram publicadas no Brasil com a tradução de Paulo Werneck, e o aspecto da tradução é particularmente caro a Bordados: o título do livro está ligado a uma atividade associada de forma recorrente ao feminino e que, aqui, evoca o encontro de mulheres para “fofocar” (ou “tricotar”, para usar uma outra analogia) em torno do samovar (o objeto com o qual é servido o chá no Irã). No entanto, o termo que dá

nome à obra também tem um outro sentido eventualmente mencionado numa de suas histórias, relacionado à cirurgia de reconstituição do hímen, um procedimento utilizado por algumas mulheres que precisam, por obrigação religiosa, casar virgens. Em Bordados, vemos Marjane dar um acabamento preciso a uma proposta que se desenha ao longo de sua obra tanto nos quadrinhos quanto no cinema: fixar o protagonismo feminino e dar voz a ele. Nesse sentido, seu trabalho é evidentemente inspirador para toda uma geração posterior de quadrinistas mulheres. O enfoque, em Bordados, sobre as mulheres mais velhas no entorno de Marji – a maioria delas vivendo sob a necessidade de dedicarem ao lugar de “esposas” – limita a obra a um determinado espectro temático, o que não tira, de modo algum, sua profundidade e alcance. O casamento, a busca pelo amor e a sublimação do desejo são os principais temas em questão, apresentados ou por meio de testemunhos em primeira pessoa, ou como histórias que foram ouvidas por essas mulheres. “Falar dos outros pelas costas é ventilar o coração”, diz a avó de Marji. E ali, em meio ao ritual do chá, surgem histórias que se relacionam intimamente com o que significa ser mulher no contexto de uma cultura marcadamente opressora, patriarcal e moralista. Há, naturalmente, uma presença mais significativa do contexto iraniano, mas é preciso que se observe o quanto Bordados revela sobre uma triste universalidade nesse sentido. E é a partir desse dado trágico que Marjane Satrapi imprime, aqui, um estilo já testado em Persépolis: unir, de modo muito eficaz, a dor e a graça, o cômico e o sombrio. Mas fora os aspectos que constituem a trajetória artística de Marjane Satrapi, não tenho como falar de sua obra sem 17


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Quando escrevo “convivo”, é porque existe algo permanente aí mesmo: talvez Persépolis seja a obra que mais retomei ao longo da vida

Página de “O Véu”, capítulo que abre Persépolis (tradução de Paulo Werneck). A publicação de uma primeira versão desse capítulo na revista Lapin foi o que originou o projeto da graphic novel

destacar minha relação pessoal com ela. Convivo com Marjane há pouco mais de 10 anos (foi lá por 2009 que conheci Persépolis). Quando escrevo “convivo”, é porque existe algo permanente aí mesmo: talvez seja a obra que mais retomei ao longo da vida – às vezes parcialmente, outras vezes inteiramente e, em algumas situações, apenas em busca de trechos específicos que vêm à minha cabeça. É como um gesto de amor – para nunca esquecer a existência do livro e também para manter a minha existência enquanto leitor dele. Fato é que sempre redescubro Persépolis. Sempre! (Meses atrás, por exemplo, me dei conta de que não lembrava de um pequeno quadro 18

no qual Marjane desenha Marie Curie num dos seus devaneios de infância, e aí lembrei que a autora dirigiu um filme sobre a cientista – Radioactive, de 2019, ainda inédito no Brasil). É algo meio mágico, mas não deixa de ser estranho: rir de novo das mesmas piadas, emocionar-se com as mesmas tragédias, reencontrar a beleza de uma obra de arte apaixonante e apaixonar-se por ela novamente. Todo mundo passa por isso com seus “clássicos” pessoais e esse é, de fato, um assunto sobre o qual muita gente já falou. O enfoque aqui, contudo, é bastante particular, pois minha conexão com Persépolis


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também se deve a outro fator: desde que entrei em contato com o livro pela primeira vez, insiro ele nos programas de leituras das turmas com as quais trabalho como professor no Ensino Médio. Historicamente, esse encontro promovido entre Persépolis e a sala de aula também converge com os primeiros anos de minha vida como professor e com uma espécie de reencontro pessoal com os quadrinhos, que passou a acontecer pouco antes disso. E tem sido curioso acompanhar que, ao longo de 10 anos, a história de Marjane Satrapi ainda demonstre sua força em relação a estudantes de diferentes gerações. Estamos falando de uma HQ que já podemos chamar de “clássica”, que trata de uma história anterior a todos esses leitores (anterior inclusive a mim, que sou o professor responsável pela mediação da obra), que apresenta aspectos ligados à juventude num contexto completamente distinto dos adolescentes brasileiros do século XXI e, ainda assim, sua potência é sempre sentida de alguma forma. Sempre! Persépolis pode ser contemplada nesses programas de leitura por motivos variados, relacionados a diferentes justificativas que ajudam a construir os projetos de leitura de um período ou de outro. Persépolis não esteve nesses programas escolares initerruptamen-

Estamos falando de uma HQ que já podemos chamar de ‘clássica’.

te ao longo da última década, todavia foram raros os anos em que não esteve. Casualmente, marcou presença em 2010 e 2020, em escolas com perfis bem diferentes; na primeira situação, se tratava de uma turma de 2º ano do Ensino Médio; na última oportunidade, em meio ao ano em que fomos surpreendidos pela pandemia de covid-19, a obra foi trabalhada com estudantes de 1º ano. Resolvi consultar pessoas que passaram por essas duas experiências e que entraram em contato com a obra de Marjane nesses dois ambientes escolares tão diversos nas duas pontas da última década. Minha provocação foi muito simples: “fale sobre sua relação com a obra e como foi o seu primeiro contato com ela”. O convite, feito a duas estudantes que estão no Ensino Médio e outras duas que já passaram por esse momento 10 anos antes, resultou numa espécie de mapeamento de alguns dos principais aspectos que compõem a leitura da HQ – sem que isso fosse solicitado; apenas 4 declarações, mas com uma riqueza de elementos que ajuda a iluminar todo o potencial de Persépolis enquanto obra artística de grande relevância.

GABRIELA CASTILHOS, ESTUDANTE DO 2º ANO DO ENSINO MÉDIO Confesso que meu primeiro contato com a obra foi com o puro intuito de produzir um bom trabalho para a escola. Muitas vezes, não me sinto motivada a fazer as leituras escolares, mas essa experiência de fato contrariou meu preconceito. Fico feliz por ter lido Persépolis, um livro tão necessário para enxergar a realidade fora da bolha em que 19


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vivo. O que mais me marcou ao ler a obra foram os relatos da personagem, que são, na verdade, da própria escritora Marjane Satrapi. O modo de viver tratado no livro parece algo absurdo, de outro mundo, porém ele existe, e as pessoas vivem limitadas por todo esse conservadorismo. Por isso é tão bonito ver as pequenas (e grandes) revoluções de Marji ao longo de seu crescimento. Acredito que a coragem dela, se opondo e fazendo questionamentos acerca do que discorda, seja algo esperançoso e acolhedor, abrindo portas para um futuro mais evoluído. Todo trabalho com a leitura literária na escola é um processo complexo, que se constrói a partir de expectativas e que, em sua execução, enfrenta toda a gama de efeitos que podem escapar ao seu planejamento. Sendo assim, é óbvio que nem todos os estudantes conseguem ser tocados ou mesmo se sintam convidados a participar desses processos. Com Persépolis, porém, o retorno costuma ser muito interessante, com um engajamento relativamente bom, que consegue romper certas barreiras acerca do que os estudantes entendem como “leitura escolar”. Em geral, ao estruturar um trabalho com essa obra, compreendo dois caminhos possíveis: um destinado a discutir as relações difusas que podem se estabelecer no encontro entre história, memória e ficção e outro focado nas narrativas de formação; em qualquer um dos caminhos, a ideia é sempre trabalhar a partir de projetos que prevejam 1) o diálogo com outras obras dentro do programa de leituras, 2) o atravessamento interdisciplinar e o contato com outras áreas do conhecimento e 3) a execução de propostas avaliativas de caráter diversificado (estruturadas a partir de diferentes gêneros textuais, quando possível). 20

Todo trabalho com a leitura literária na escola é um processo complexo, que se constrói a partir de expectativas e que, em sua execução, enfrenta toda a gama de efeitos que podem escapar ao seu planejamento.

MARIELLI BITTENCOURT, DOUTORANDA EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA UFRGS Conheci Persépolis ainda no Ensino Médio, há 10 anos, e foi uma leitura que mudou minha perspectiva sobre a literatura e, principalmente, as histórias em quadrinhos. A obra de Marjane Satrapi permitiu que eu visse as histórias em quadrinhos para além dos super-heróis, gerando uma verdadeira imersão na realidade ali reproduzida. Uma das coisas que mais me marcou em relação ao livro foi a maneira harmônica com que a autora apresenta sua história e a história do seu país. Aprendemos sobre o Irã a partir das experiências de Marji, como se o país fosse também um personagem vivo dessa história.


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Desde que comecei a trabalhar com Persépolis na sala de aula, comecei a ficar mais atento ao seu uso em outros espaços escolares: já vi professores e professoras promovendo projetos com leitores do 7º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio; também testemunhei pessoas com muita experiência de vida tendo contato com a obra pela primeira vez. Ainda não consegui elaborar claramente o que significa esse alcance de público tão vasto, mas posso lidar com os fatos: o contato com essa história em quadrinhos nunca leva a uma leitura indiferente, uma vez que sempre resulta em encantamento e reflexão.

ALEXANDRA RAMOS BARROS, GRADUANDA EM LETRAS PELA UERGS Meu encontro com Persépolis na adolescência possibilitou simbolizar as inquietações e o desejo de liberdade de Marji, ressignificando a narrativa que fazia de mim mesma. Costumo dizer que essa obra, em especial, provocou pequenas revoluções para além da literatura, uma vez que, além de fazer parte do meu imaginário enquanto leitora, veio a integrar meu repertório como mediadora de leitura. Acredito na potência desta autobiografia em quadrinhos como um convite ao diálogo e à reflexão acerca dos direitos da mulher, da sua emancipação e consciência política. Uma curiosidade é que as maiores virtudes de Persépolis também costumam ser as responsáveis por sua perseguição sistemática: ao mesmo tempo que pude acompanhar trabalhos sendo feitos a partir da obra em diferentes contextos escolares – alguns bastante próximos

–, igualmente soube dos problemas que eles acarretaram principalmente em relação aos pais dos estudantes envolvidos – desde alegações quanto ao seu conteúdo político e cultural até questões envolvendo sexualidade. Na coluna que escreveu sobre os 20 anos de Persépolis no Blog da Companhia das Letras, Érico Assis relembrou as campanhas feitas para erradicar a obra como leitura no ensino básico e superior nos EUA, apontando que a graphic novel chegou a ser o segundo livro mais contestado nas bibliotecas norte-americanas, segundo a Associação Americana de Bibliotecas. Enfim, a hipocrisia: o moralismo que costuma ser apregoado nesse tipo de ação talvez consiga demonstrar de forma ainda mais clara as qualidades intrínsecas da própria obra.

Uma curiosidade é que as maiores virtudes de Persépolis também costumam ser as responsáveis por sua perseguição sistemática: ao mesmo tempo que pude acompanhar trabalhos sendo feitos a partir da obra em diferentes contextos escolares, igualmente soube dos problemas que eles acarretaram.

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A subjetividade de Marji, tão desprovida de pudores e com um olhar por vezes tragicômico, parece ter um apelo, de fato, muito amplo. No mínimo, Persépolis ainda é um marco por continuar convidando muita gente a repensar o alcance das histórias em quadrinhos enquanto linguagem artística, fazendo com que muitos reconheçam que uma das grandes narrativas do nosso tempo foi, enfim, produzida por uma quadrinista.

MARIANA TEDESCO DE BACO, ESTUDANTE DO 2º ANO DO ENSINO MÉDIO Ler Persépolis no 1° ano foi, sem dúvida, uma experiência muito legal e importante. A princípio, a escrita de Marjane não me agradou muito por ser demasiado direta e enxuta. 22

Porém, conforme a história se desenvolvia, eu compreendi a escolha da autora: ela tinha muito a contar – e foi justamente isso que me encantou. Compartilhando com o leitor várias de suas experiências, a autobiografia de Marjane vai muito além da simples vida de uma iraniana. Com ela, me informei sobre as adversidades de viver em um país governado por regimes conservadores e em constante conflito político e social com origens de muito tempo atrás, mas que até os dias atuais afetam seus cidadãos – tudo isso através do olhar muitas vezes divertido de uma menina que, ao longo das páginas, vi se tornar uma mulher. Os acontecimentos narrados em Persépolis vão de 1980 a 1994. A obra começou a ser publicada no ano 2000. Li a graphic novel pela primeira vez em 2009. E ainda vejo adolescentes sendo tocados por ela em 2021. Histórias bem contadas tem essa capacidade de flutuar no tempo e no espaço e encontrar seus leitores, independente de época, gênero, origem ou idade. A subjetividade de Marji, tão desprovida de pudores e com um olhar por vezes tragicômico, parece ter um apelo, de fato, muito amplo. No mínimo, Persépolis ainda é um marco por continuar convidando muita gente a repensar o alcance das histórias em quadrinhos enquanto linguagem artística, fazendo com que muitos reconheçam que uma das grandes narrativas do nosso tempo foi, enfim, produzida por uma quadrinista. Definitivamente, isso não é pouco. Não tenho dúvida de que nos próximos 10, 15, 20 anos ainda estaremos celebrando com vivacidade a obra-prima de Marjane Satrapi.


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conto

O episódio do bodoque José Falero Obra criada para o programa IMS Quarentena – Programa Convida ( ).

T

o dos os meninos do beco eram intrépidos por natureza – exceto o pequeno Dô.

Ouvidos sempre atentos, olhos sempre desconfiados, postura sempre pronta a dar meia-volta, pernas sempre dispostas a correr, assim aquele pinguinho de gente guardava, desde seus primeiros verões, uma impressionante relação de respeito com os perigos da vida. Via-os sucederem-se aqui e ali como quem observa fogos de artifício: intrigado, seduzido, por vezes mesmo fascinado, mas grato pela distância segura entre eles e seu nariz. Claro que não faltaram amiguinhos para enredá-lo na alcunha de “bunda mole”. Crianças costumam ser cruéis. Contudo, ainda que a cada chacota Dô sentisse vontade de comportar-se como os outros meninos do beco, sua determinação nesse sentido jamais vencia a queda de braço contra seus instintos. Frustração. Frustração que levava a mais chacotas. Mais chacotas que levavam a desejo redobrado de imitar os amiguinhos. Desejo redobrado de imitar os amiguinhos que levava a maior frustração. Bem, desse círculo vicioso para o desenvolvimento de problemas de autoestima ao longo da vida era um pulo. Um pulo que felizmente nunca seria dado. Porque, para a sorte

do pequeno, de vez em quando era ele quem ria por último, justamente graças a seus cuidados, e então reforçava, de maneira gloriosa e retumbante, a satisfação com o próprio modo de ser e estar no mundo. Foi o que aconteceu no episódio do bodoque, por exemplo. Para início de conversa, Dô não era lá muito fã de bodoques, pois serviam principalmente para caçar passarinhos, e, por mais que se esforçasse, não conseguia compreender a vantagem de abatê-los. Na verdade, abatê-los, expulsá-los da existência, impedi-los de cruzar o azul do céu em voos certeiros, condená-los a jamais cantar ao nascer do sol, tudo isso parecia-lhe mesmo uma estupidez completa, um desperdício injustificável. Desnecessário comentar que não refletia com estes meus termos de marmanjo afetado; aquilo que lhe ia em algum lugar entre o cérebro e as tripas talvez nem fosse propriamente uma reflexão; era antes um sentimento, mais ou menos como o que decerto experimentaria caso testemunhasse alguém jogando um sorvete no lixo, em pleno verão.

Quem, neste mundo de tradições, estaria em posição moral de recriminá-lo?

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Não gostava de bodoques, portanto. Se possuía um – e se, mais do que isso, fazia uso dele quando convidado a caçar passarinhos –, quem, neste mundo de tradições, estaria em posição moral de recriminá-lo? Naquela tarde, quando Lu o chamou para ir praticar a estupidez completa, para ir promover o desperdício injustificável, não foi senão a espada das tradições o que Dô sentiu atravessar-lhe a alma, enquanto dava de mão no bendito bodoque e saía à rua. O único prazer que conseguia extrair das caçadas era o de ver os amiguinhos atribuírem seu fracasso absoluto ao azar ou à falta de mira, sem jamais suspeitarem que, na verdade, errava os disparos todos de propósito. E Lu, o melhor caçador entre os meninos do beco, talvez fosse o que tivesse menores chances de descobrir seu segredo, já que lhe sobrava em pontaria justamente o que lhe faltava em perspicácia. Não só acreditava piamente na falta de habilidade de Dô, como precipitava-se a concluir que aquele devia ser um mal de família. – A fruta nunca cai longe do pé. Era o que dizia cada vez que uma pedra disparada pelo companheiro acertava apenas as folhas das árvores, em

Viu o brasão maligno, o símbolo do horror, estampado na lataria.

alusão a uma fofoca antiga, segundo a qual o pai de Dô, poucos instantes antes de morrer em um confronto com a polícia, teria errado seis tiros a pouca distância do policial que alvejava. – A fruta nunca cai longe do pé. De tanto Lu repetir o ditado, referindo-se, ainda que de maneira indireta, a uma história que envolvia polícia, aconteceu justamente que uma viatura policial apareceu, como se invocada por ritual satânico. Os ouvidos sempre atentos de Dô não o decepcionaram: foi ao captar o som de freio de mão sendo puxado, quase imperceptível àquela distância, que o pequeno decidiu lançar seus olhos desconfiados para o outro lado da praça, vendo, então, o brasão maligno, o símbolo do horror, estampado na lataria. Na mesma hora, atirou seu bodoque o mais longe que pôde e empenhou-se em recomendar, com sussurros e mímicas, que Lu fizesse o mesmo. Este, porém, a princípio não entendeu nada, e mesmo depois de entender, quando os policiais já adentravam a praça, achou que não havia motivo para imitar o amigo; em vez disso, o que fez foi caçoar dele, com um estalo de língua e uma pequena risada. – Bunda mole! Tá vendo como a fruta nunca cai longe do pé? Entretanto, não foram necessários mais do que uns poucos segundos para que Lu, mesmo com sua pouca perspicácia, compreendesse que estava em maus lençóis. – E esse bodoque, seu merdinha? – rosnou sem rodeios o policial que vinha à frente. Ato contínuo, olhou dentro dos olhos de Dô. – E tu? Hem? Cadê teu bodoque? – Não tenho bodoque, não, senhor,

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não gosto de bodoque. – Não? O pequeno tornou a negar, desta vez limitando-se a sacudir a cabeça, sem dizer palavra. – Então vai, vai, anda, anda, te some daqui! Dô obedeceu imediatamente, saindo em disparada. Mas, antes de afastar-se muito, teve tempo de ouvir, às suas costas, o tom particularmente venenoso que o policial adotou para voltar a dirigir-se a Lu: – Não, não, tu não vai a lugar nenhum! Tu fica aqui, que agora tu aprender a não sair estourando lâmpada de poste por aí. E não adianta chorar… Quando Dô chegou ao outro extremo da praça, já esbaforido, atreveu-se a olhar para trás, por cima do ombro, antes de virar a esquina e seguir correndo para casa. O que viu, de relance, foi o policial segurando Lu no alto, pelo tornozelo, de cabeça para baixo, ameaçando soltá-lo dentro da vala de esgoto, enquanto o menino chorava a não mais poder. Apesar de assustado, Dô logo pegou-se aos risos, sussurrando assim para o vento, enquanto corria: – Quem é o bunda mole agora? Na noite daquele mesmo dia, leitor, lhe digo que esse pequeno sonhou com seu pai. E desta vez o sonho não amenizou apenas a saudade, mas também um outro sentimento, menos definido, embora igualmente amargo. Sorrindo, o homem acariciou o rosto da criança, encarando-a cheio de orgulho.

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– Não te preocupa, meu filho. O pai também errava os tiros de propósito. 25


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ensaio fotográf ico

O outro mapa... da cidade do Quintana Alexandre Eckert

O

mapa envelhecido da cidade Apaga-se aos poucos... Pela falta de lembranças Pelo ampliar do esquecimento. Percebo um esboço desenhado Uma poesia adormecida Gravada nas minhas memórias Que às vezes flutuam... Afastadas pelo passar do tempo. Desfilam nestes instantes Um turbilhão de emoções Tantas lembranças de algo Que nunca deixou de existir.

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Sinto uma saudade esquisita De lugares que foram apagados Da falta constante de sorrisos Do olhar profundo nos olhos Da alegria dos reconhecimentos. A cidade se transforma Partindo do seu invisível Buscando novos signos Outros pontos de origem Para se reinventar...

Junto às suas mutações Construo novas imagens De outro urbano Que há muito percebo, Bem além de mim. E assim sigo Mudando direções Trocando um possível real Por um novo e criativo Imaginário. Deixo-me levar Pelos pensamentos, Adentrando em ilusões. Busco imagens E margens aleatórias Que se transformam... Em outra narrativa Paralela e poética.


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Mostrando uma cidade Diversa e distópica Que talvez tenha perdido Nas suas próprias memórias Sua verdadeira E original poesia.

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nossos mortos

Na parede da memória Gabriel Lopes-Salomão

D

esde que eu era apenas um bebê meu pai tinha aquela câmera. Uma Olympus Pen. Foi com ela que eu comecei a gostar de fotografia. Na 4ª série, cheguei a levá-la escondida, jurando que impressionaria alguém. Fazia mais pose para tirar as fotos do que as pessoas que eu fotografava. Não deu certo, ou pelo menos não parece ter surtido efeito.

A fotografia e a música fizeram parte da minha vida desde sempre. Pequenino, já colocava sozinho os discos na vitrola. Caetano, Verdi, Beatles, Bach, Chico, Beethoven, Rolling Stones, Martinho, Focus, Caymmi, Lamartine e por aí me perdia. É o que faço até hoje. Há muitas histórias a serem contadas. Mas o que trouxe essas memórias à tona? Sempre gostei de lidar com o agora. Nunca fui de fazer planos. Mas sempre reparei nas direções a que as nossas decisões nos levam e em como coisas que Nico Nicolaiewsky em foto de Gabriel Lopes-Salomão

Fotos: Gabriel Lopes-Salomão

Naqueles tempos meu mundo se resumia a ouvir música, brincar no pátio e

visitar os avós nos finais de semana.

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às vezes parecem não ter sentido em determinado momento se encaixam ou convergem para algum ponto na linha da nossa existência. A música, a fotografia, o gosto pela estrada herdados das histórias motociclísticas de meu pai; a dedicação e o carinho que via em cada gesto de minha mãe. E eis que, num domingo de saudade, vendo todo esse emaranhado de vidas, histórias e maravilhas e tristezas que ocupam o tempo para sempre, recebo um chamado do professor Luís Augusto Fischer pedindo para que eu escrevesse algumas linhas sobre um artista que admiramos comumente. Minha primeira reação foi sair correndo. Expliqueilhe: “Professor, me tornei fotógrafo justamente por não ser bom com as palavras”. Mas, por envolver pessoas que muito admiro, resolvi arriscar. Foi num final de tarde do ano de 1984, na rua Ladislau Neto, no bairro

Ipanema, que o vi pela primeira vez. Eu e meu amigo Caio Franarin tínhamos 12 anos e estávamos sentados na mureta em frente à casa de sua mãe (Marilourdes, produtora desde sempre do Tangos & Tragédias e atual da Sbórnia), quando dois magros amalucados apareceram com um punhado de papéis numa pastinha, conversando entre si, agitados. Pararam, nos cumprimentaram e entraram na casa. “Sabe quem são esses caras?” – Caio me perguntou. “Não”, respondi curioso. “São Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky”. Mal sabia que estava testemunhando o nascimento do Tangos & Tragédias, um dos espetáculos musicais mais incríveis, originais, carismáticos, autênticos e longevos do planeta. Estavam alinhando os últimos detalhes para a estreia do espetáculo no Espaço IAB, no centro de Porto Alegre, que logo chegaria aos palcos do Theatro São Pedro e de lá para tantos outros lugares. 37


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Mas maiores que o próprio espetáculo eram os dois magros. Comecei a acompanhar o trabalho do Nico. Um coração genial. Quem não se derrete escutando “Feito um picolé no sol”? E daí acontece aquela mágica; todos aqueles rastros, todos os caminhos curvos e torcidos da vida às vezes se encontram. Acho que foi em 1997 que fiz as fotos que ilustram este texto. Em uma apresentação do Tangos no novo teatro da PUC-RS. Aquela Olympus, aquela liberdade toda de poder fuçar nos discos dos meus pais, as amizades,

os amores e tudo o que houve depois e todos os cruzamentos de histórias de vidas acabaram trazendo uma chamada do Fischer num domingo. No domingo em que completavam 7 anos sem o Nico neste plano. “Nicão continua conosco”, me diz o Hique. E completa: “Ninguém morreu!” (já cantava Luiz Melodia). Eu, que tão pouco fiz, mas sigo fazendo, sou eternamente grato. À arte e aos arteiros. Fotografar os palcos era uma predileção. “Mas daí é fácil”, di-

E daí acontece aquela mágica; todos aqueles rastros, todos os caminhos curvos e torcidos da vida às vezes se encontram. Acho que foi em 1997 que fiz as fotos que ilustram este texto.

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riam alguns. Sim, mas nem sempre. A foto mostra a verdade das pessoas. Às vezes o artista não está bem, às vezes a luz não está boa, às vezes o próprio fotógrafo não está bem. Mas, como o Caio me disse: “O Nico ajudava o fotógrafo, né?”. É. Ele era música em forma de gente. Nico hoje mora comigo. Mora na gente; e uma centelha está eternizada em forma de sais de prata e celulose na parede do Gravador Pub.

Nico hoje mora comigo. Mora na gente; e uma centelha está eternizada em forma de sais de prata e celulose na parede do Gravador Pub.

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ensaio

A unificação alemã de 1871 e nós René E. Gertz

E

m janeiro de 1871, 150 anos atrás, no contexto da vitória militar da Prússia sobre a França, foi criado o Império Alemão, que vigorou até o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Por interesses políticos, há referências a ele como Segundo Império (Reich), enquanto o primeiro teria sido o velho Sacro Império Romano-Germânico, desaparecido em 1806, e Hitler pretendeu ter instaurado o terceiro, em 1933. Foi a unificação de 25 unidades políticas, das quais 22 eram “monarquias” e três “repúblicas” (as cidades hanseáticas de Bremen, Hamburgo e Lübeck). A Prússia, porém, exerceu a hegemonia, tanto no processo de unificação quanto na configuração da nova entidade política. Cerca de 65% da área era prussiana, e na população o percentual era apenas pouco menor. Numa comparação com a Alemanha atual, o território era 50% maior, com extensões sobretudo a leste, em especial na direção nordeste. Além da importância da Prússia como tal, seu possível contrapeso, as demais unidades incorporadas, estavam muito fragmentadas, bastando referir o fato de que o Reino da Baviera, a segunda maior, tinha apenas 10% da população, para contrapor aos 60% de prussianos. Justifica-se perguntar: isso teve algo a ver conosco? Nos afetou? Nos deixou algum legado? 40

O primeiro aspecto que vem à mente é o demográfico, a vinda de imigrantes para o Brasil. Até meados do século XVIII, o território que viria a constituir o Império Alemão antes recebia que “exportava” pessoas. Mas esta tendência inverteu-se a partir de então, de forma que por volta de 1800 mais ou menos 750.000 alemães haviam ido para o leste europeu, e uns 300.000 para a América do Norte. Mudanças na agricultura e na estrutura fundiária, no contexto de um intenso processo de industrialização, explicam os excedentes populacionais. Durante o período imperial, junta-se apreciável crescimento vegetativo, evidenciado no fato de que havia 41 milhões de habitantes em 1871, 49 milhões em 1890 e 64 milhões em 1910. Nas décadas posteriores a 1870, uma média anual em torno de 100 mil se deslocou para os Estados Unidos, chegando a um total de mais de 5 milhões, até a Primeira Guerra – enquanto para o Brasil vieram apenas cerca de 250.000, até 1940. Ao contrário daquilo que se pode imaginar, portanto, o Brasil foi menos afetado por este processo. Além de menos atrativo por natureza, em função da divulgação de problemas enfrentados por

Justifica-se perguntar: isso teve algo a ver conosco? Nos afetou? Nos deixou algum legado?


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imigrantes vindos para fazendas agrícolas em São Paulo, justamente a Prússia havia editado o Rescrito de von der Heydt, em 1859, que proibia campanhas pela migração para cá, legislação que foi estendida a todo o Império, a partir de 1871. Se até então haviam vindo cerca de 28 mil alemães, na primeira década imperial vieram cerca de 15 mil, na segunda 19 mil – portanto, uma fração pequena do fluxo que ia em direção aos EUA (lembre-se que a maior intensidade de vinda para o Brasil só aconteceria durante a brutal crise geral alemã da década de 1920, num total de 75 mil). Com a formação do Império Alemão, alemães e descendentes no Brasil, portanto, não vieram a constituir fator de política internacional por causa de seu número, mas por sua suposta ou efetiva localização geográfica e sua relação com a “pátria-mãe”. Segundo opinião difundida na época em países como França, Inglaterra, Estados Unidos, a massa dos alemães que migrava para os EUA integrava-se, de imediato, no melting pot norte-americano, americanizando seus nomes e passando a falar apenas inglês. No Brasil, aconteceria algo diferente: concentrados em algumas regiões do sul do país, manteriam sua lealdade à cultura e mesmo à política alemãs. Este foi o ponto. Mesmo que Bismarck tenha manifestado moderação na discussão desencadeada na Alemanha sobre seu direito de possuir colônias e que a Alemanha só as tenha adquirido na década de 1880, quando as demais potências as tinham há muito tempo, não há dúvida de que a questão colonial entrou na ordem do dia, após a unificação – uma frase que se tornou famosa na época foi “Exigimos nosso lugar ao sol” (“Wir verlangen auch unseren Platz an der Sonne!”). Pela dificuldade em ocupar espaços nas regiões coloniais tradicionais (África e Ásia), as “colônias alemãs” do Brasil seriam uma

Segundo opinião difundida na época em países como França, Inglaterra, Estados Unidos, a massa dos alemães que migrava para os EUA integrava-se, de imediato, no melting pot norte-americano, americanizando seus nomes e passando a falar apenas inglês.

alternativa viável e realista, pois sua incorporação ao império seria facilitada pela colaboração dos alemães aqui estabelecidos. Ainda que a historiografia internacional apresente divergências a respeito, interessam aqui o surgimento e a consolidação da ideologia do “perigo alemão”, e uma consequente divisão bastante profunda entre os formadores de opinião no Brasil, com “francófilos” e “germanófilos”, que experimentou um crescendo até a Primeira Guerra. Muitos livros, muitos artigos, muitos debates públicos giraram em torno deste “perigo” – alguns jornais brasileiros abriram colunas permanentes para o tema. Outro efeito da implantação do Império Alemão foi o desencadeamento do Kulturkampf, a “guerra cultural”, alegada necessidade de separação entre 41


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Igreja e Estado, que – em termos extremamente simplificados – refletiu a predominância luterana da Prússia, e os consequentes reflexos negativos para o catolicismo, cabendo destacar apenas dois aspectos: a expulsão dos jesuítas, em 1872, e a fundação da Zentrumspartei, o Partido do Centro, para defender os interesses católicos. Se no Rio Grande do Sul temos instituições de ensino de projeção controladas por jesuítas, isto se deve aos inacianos que vieram para cá em virtude de sua expulsão da Alemanha, naquele tempo. O Partido do Centro não teve importância no período imperial brasileiro, porque o Estado brasileiro era confessional-católico, e o catolicismo não precisava articular-se através de um partido específico. Mas quando veio a República, com sua insistência no caráter laico do Estado, incluindo ameaças à Sociedade de Jesus, foi fundado um Partido do Centro, aqui no Rio Grande do Sul. Ele não “deslanchou” em termos eleitorais, e Júlio de Castilhos propôs a seus líderes um acordo, no sentido de incorporar alguns representantes em seu Partido Republicano Rio-Grandense – nomes de deputados como Englert e Kroeff foram representativos da ala “centrista” do PRR. Este movimento também deixou outras marcas em nosso estado, na vida cultural – uma Typographia do Centro exerceu papel muito importante nos campos religioso, literário e educacional, até a década de 1950. Por último, cabe fazer referência ao sistema imperial alemão como tal. Aqui, deve-se lembrar que ele foi caracterizado como Sonderweg, como “via peculiar”, no jargão dos cientistas sociais brasileiros, mais conhecido como “via prussiana”. Novamente correndo o risco de fazer uma simplificação empobrecedora, este Sonderweg pode ser visto sob duas perspectivas: uma cultural, outra política. Do ponto de vista cultural, a Alemanha se caracterizaria por 42

uma forma de ser diferente dos seus vizinhos, em especial da França e da GrãBretanha. Enquanto nestes países teria predominado a “civilização”, lá teria vigorado a “cultura”, algo mais profundo, mais elaborado, menos superficial. No campo político, o século XIX se caracterizaria pela consolidação da democracia liberal, ao menos nos dois citados países vizinhos, enquanto na Alemanha teria vigorado um regime autoritário, preocupado em estabelecer uma convivência entre tradição e modernidade, com as instituições de representação cidadã mais típicas dos outros países, os parlamentos, tutelados, ainda que com eventuais concessões no campo social (a legislação previdenciária, por exemplo). Na cultura historiográfica alemã, parece dominar, por isso, uma prevenção muito enraizada contra esta situação, pois argumenta-se que este sistema aplainou o caminho para a implantação do nazismo, logo adiante. Por isso, quando o “muro” caiu, em 1989, e veio uma nova unificação, o conhecido historiador Jürgen Kocka escreveu um artigo para o influente semanário Zeit implorando, “por favor, não venham com um novo Sonderweg – qualquer parcela de desocidentalização constituiria um preço demasiadamente elevado para a unidade alemã”. Neste ponto, há indícios de que a cultura historiográfica brasileira se agarrou à tradição prussiana. Nas últimas décadas, vão se consolidando, por aqui, manifestações de simpatia pelo Sonderweg político iniciado no Rio Grande do Sul, por Júlio de Castilhos – ainda que por suposta inspiração em Augusto Comte, e não em Otto von Bismarck –, levado para o nível nacional por seu discípulo Getúlio Vargas, continuado pelo “prussiano” Ernesto Geisel... Assim, a influência do prussiano Império Alemão, hoje, parece ser maior no Brasil que na própria Alemanha.


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Morte e morrer Demétrio Xavier

E

m 1968, um guri de 26 anos cantava que sabia que, adiante, um dia haveria de morrer. De susto, de bala ou vício; em um precipício de luzes, nos braços da mulher que o quisesse. Caetano pedira a canção a Gil e Capinam (outros dois guris) para, na estreita medida do possível, homenagear o Che Guevara, executado meses antes (e a medida do possível se estreitaria muitíssimo mais, meses depois, com o AI-5.) Morte de cinema; de morto de estampa de camiseta: romântica, charmosa, heroica. Nenhum lugar para lembrar a agonia e o medo que podem acompanhar o morrer.

A percussão no violão e o canto grave sussurrado ao início; o formato popular, com algo de cantador; a interpretação do velho autor intérprete.

Uns 50 anos depois, nenhuma daquelas três fatalidades havia topado definitivamente com Gil, ou ele com elas – e para as três terão sobrado, certamente, oportunidades. Multiplicaramse os braços de quem quer ao baiano, ao longo das mesmas décadas – e lá estávamos muitos destes, no Araújo Vianna, celebrando as duas coisas. E pude assisti-lo, cantando só, ao violão, a canção “Não tenho medo da morte”. Não tenho medo da morte Mas sim medo de morrer Qual seria a diferença Você há de perguntar É que a morte já é depois Que eu deixar de respirar Morrer ainda é aqui Na vida, no sol, no ar Ainda pode haver dor Ou vontade de mijar A percussão no violão e o canto grave sussurrado ao início; o formato popular, com algo de cantador; a interpretação do velho autor intérprete (velho, autor, intérprete.) Desconcertante, e não só porque o assunto tanto o é. Chama a atenção a clareza com que fica exposto um tema que sempre esteve dando voltas, meio escondido, na poesia, na música: morte e morrer, diferença e cotejo. Saí pensando nisso, do Araújo – e como não pensar novamente, nestes dias em que o noticiário trouxe do Amazonas uma inversão na forma como se narrou a pandemia até agora e pôs em primeiro plano a agonia e não a morte? Desconcertante escrever sobre isso, evidentemente. Por outro lado, não há por que desconcerto, e isso é certo, quanto ao que 43


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não tem conserto: talvez o primeiro de quem me lembrei tenha sido meu estimado Augusto Meyer, falando do Bruxo autor das Memórias póstumas: “Uma cousa, porém, é escrever sobre a morte e outra, morrer.” Beleza de ensaio com dois temas principais: o Machado de Assis, de que o teuto-gaúcho sabia tanto, e a própria Morte. Narrativa ambientada em velório, com a inversão magnífica jogada já no título, “Os galos vão cantar”. Minhas referências sulistas, que me são tão mais fáceis, como coisa que está nos bolsos, não nas gavetas. Algumas assomaram, no Araújo Vianna. Aquilo, era pra ficar na coxilha, picado de espada, rachado de lançaços, mas não pra morrer como foi, aperreado em cima da cama, o corpo besuntado de unturas e a garganta entupida de melados e pozinhos dos doutores!... Pobre de mim!... estou vendo que hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-flores da cidade, como bicho de galinheiro!., – disse Blau Nunes, contando a morte de Juca Guerra.

Seria injusto e meio caricaturesco ou simplificador focar em uma resistência, digamos, “tradicional gaúcha” em expor os próprios medos ou na estratégia de retová-los de honra e emponchá-los de coragem. Exemplos não faltam e trago alguns – mas porque estão nos bolsos, à mão. Não devem ser em absoluto monopólio dessas latitudes.

Gil parafraseia Meyer: uma cousa é a morte e outra, morrer.

Seria injusto e meio caricaturesco ou simplificador focar em uma resistência, digamos, “tradicional gaúcha” em expor os próprios medos ou na estratégia de retová-los de honra e emponchá-los de coragem. Exemplos não faltam e trago alguns – mas porque estão nos bolsos, à mão. Não devem ser em absoluto monopólio dessas latitudes.

E se pergunta, enquanto diz que “a morte já é depois”: “como poderei ter medo se não terei coração?”

Quando alguém diz que tem medo de morrer, desconcerta. Morrer desconcerta.

Não tenho medo da morte Mas medo de morrer, sim A morte é depois de mim Mas quem vai morrer sou eu

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Há vários anos, um cantor ainda enlutado pela morte do parceiro, com o qual formava uma dupla sertaneja, dava entrevista do tipo “pinga-fogo” ou “bate-pronto” e chegou perto da formulação de Gil, de uma forma – perdão – algo engraçada: Pergunta: “– Um medo”... Resposta: “Por incrível que pareça, de morrer!!” A quem isso pareceria incrível, se não em um âmbito de esforçada, trabalhosa negação do assunto chato? Juca Guerra! Que nome! “Cambará macho não morre na cama”. Esses são para morrer como o Che (bueno, ainda não se tinha recuperado o relato dos momentos finais e da execução, em sua feiúra). Não como bicho de galinheiro. Assim afirma Blau - muito mais, aliás, do que o poderia fazer Simões Lopes; esse era homem de farmácia e não de

Mas as guerras não são permanentes ou totalmente constantes, mesmo no Rio Grande do Sul tradicional. Ainda bem; não há mal que dure cem anos, nem tento que não se corte.

guerra, acostumado às unturas, melados e pozinhos da medicina do início do século passado - e nem um pouco a espadas e lanças. Mas as guerras não são permanentes ou totalmente constantes, mesmo no Rio Grande do Sul tradicional. Ainda bem; não há mal que dure cem anos, nem tento que não se corte. Como seguir desafiando a morte, provocando-a, convocando-a, talvez – é o que afinal estou arriscando dizer aqui – em grande parte por um medo de morrer retovado de honra destemida? Não quero morrer de doença Nem com u’a vela na mão Eu quero é guasquear no chão Com um balaço bem na testa E que seja em dia de festa De carreira ou marcação João da Cunha nos obriga a pensar nas decantadas temeridades gaúchas, no arriscar-se em peleias ou provas equestres e de qualquer outra espécie. Serão parte daquela estratégia? Saí do Araújo Vianna e ainda andava às voltas com esses assuntos, caminhando pela Osvaldo Aranha – aquele que foi ferido gravemente jogando a vida em uma quixotesca carga de lança na ponte do Ibirapuitã; aquele que morreu, subitamente, em sua cama, décadas depois. Pensei até mesmo nos suicídios de campeiros fronteiriços, pesquisados no trabalho belo de Ondina Fachel. Enforcar-se no maneador ou no laço talvez seja mais morte do que morrer, como tombar num duelo de Borges em “El encuentro” ou “El sur”. Pensei nisso de deliberar e manejar a própria morte, muitas vezes e em 45


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distintas culturas considerado algo digno. Mesmo quando essa associação é poética, como quando Julio Cesar Castro conta com surpresa a morte de seu amigo: “Alfredo Zitarrosa agarró y se murió”. Pegou e morreu!! Surpresa, sim; espanto, inesperado – mas quanto de vontade de conferir potência e negar a dolorosa passividade do momento final. Hernán Figueroa Reyes cantava “o Tata está velho... Se um dia há de ir-se, que nem se dê conta, ao tranquito, nomais. Deusinho, te peço que apague sua vida qual se apaga um palheiro, sozinho, sem pitar.” Há menos arrogância aí, mas a ideia é a mesma: que a morte, coisa natural da vida, “como comer, caminhar”, diz Gil, não obrigue o pai a um morrer. Pensei no patriarca Júlio de Castilhos. Amaro Juvenal, no Antônio Chimango, falava da morte daquele Coronel Prates com espanto: Um dia... ansim, de repente, Esta notícia correu: - O Coronel Prates morreu! A muitos custava crer; Como havia de morrer, Se ele nunca adoeceu? Mas Júlio (o Coronel Prates, do poemeto) teve, sim, seu morrer. Mantevese arrogante ou lendário mesmo nele, ou assim se conta, com a famosa resposta a quem tentou animá-lo nos instantes finais dizendo “coragem!!!” “Coragem eu tenho; o que me falta é ar.” Júlio, lá em 1903, antes da Espanhola; Che e Gil; Juca Guerra, Macha46

do de Assis, seus morreres e suas mortes, entremesclados nos dias em que o noticiário falou mais da agonia do que da perda de tantos manauaras. Dias de respiração cortada, dias sem oxigênio, em que cada brasileiro se chocou para além do suportável contra seu medo dessas duas coisas: a morte e o morrer. Qual seria a diferença, você há de perguntar...

Júlio, lá em 1903, antes da Espanhola; Che e Gil; Juca Guerra, Machado de Assis, seus morreres e suas mortes, entremesclados nos dias em que o noticiário falou mais da agonia do que da perda de tantos manauaras. Dias de respiração cortada, dias sem oxigênio, em que cada brasileiro se chocou para além do suportável contra seu medo dessas duas coisas: a morte e o morrer.


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f ilosof ia na vida real

Até que a imaginação os separe – Cena 10 Úrsula, de Maria Firmina dos Reis Eduardo Vicentini de Medeiros

Ú

r sula é um romance com marcado teor abolicionista escrito por uma mulher negra.

No eixo racial do espectro político maranhense da segunda metade do século XIX, é o que poderíamos chamar de um feito inesperado e surpreendente. Úrsula é um ponto completamente fora da curva da produção literária nacional, retrospectivamente acolhido como o marco inaugural da literatura afro-brasileira – foi lançado em 1859. Tudo isso é bem conhecido e justamente celebrado na renovação do cânone promovida nas últimas duas ou três décadas de crítica literária. Tentarei iniciar a nossa conversa por uma via alternativa, com um détour provisório na inescapável questão racial, para encontrá-la ao final sob ângulo distinto. Para dar o primeiro passo precisamos explorar a distinção entre a Velha e a Nova Comédia no distante mas onipresente contexto grego. Vejamos como Northrop Frye, em Anatomia da Crítica,

caracteriza uma particular recorrência de enredo do gênero: A estrutura do enredo da Comédia Nova grega, tal como transmitida por Plauto e Terêncio, em si mesma menos uma forma do que uma fórmula, tornou-se a base da maior parte da comédia, especialmente em sua forma dramática mais altamente convencionalizada, até nossos dias. Será da maior conveniência desenvolver a teoria da construção cômica tirando-a do drama, e usando apenas incidentalmente ilustrações extraídas da ficção. O que normalmente acontece é um jovem aspirar a uma jovem, seu desejo ser contrariado por alguma oposição, comumente paterna, e perto do fim da peça alguma reviravolta no enredo habilitar o herói a realizar sua

Úrsula é um ponto completamente fora da curva da produção literária nacional, retrospectivamente acolhido como o marco inaugural da literatura afro-brasileira.

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vontade. Neste modelo simples há vários elementos complexos. Em primeiro lugar, o movimento da comédia é habitualmente um movimento de uma classe social para outra. No começo da peça as personagens obstrutoras dominam a sociedade da peça, e a audiência reconhece que são usurpadoras. No fim da peça, o truque no enredo que reúne herói e heroína faz uma nova sociedade cristalizar-se em torno do herói, e o momento que essa cristalização ocorre é o ponto resolutório da ação, a revelação cômica, anagnórisis ou cognitio. O surgimento dessa nova sociedade assinala-se frequentemente com algum tipo de reunião ou ritual festivo, que aparece no fim da peça ou presume-se ocorrer imediatamente depois. Casamentos são comuníssimos, e às vezes realizam-se tantos, como nas quádruplas núpcias do fim de As You Like It [...]

A peça central do quebra-cabeça é o personagem Tancredo e suas duas tentativas de casamento, obstaculizadas pela interposição de figuras patriarcais.

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Úrsula está a léguas da dicção cômica. Obedece antes à máxima “tragédia pouca é bobagem”. Mas é quase irresistível forcejar o encaixe do seu enredo ultrarromântico no modelo proposto por Frye e extrair algumas consequências. A peça central do quebra-cabeça é o personagem Tancredo e suas duas tentativas de casamento, obstaculizadas pela interposição de figuras patriarcais. Adelaide, órfã de uma prima de sua idolatrada mãe, é o primeiro e arrebatado amor de Tancredo. Após intensa disputa sentimental com os seus genitores, sobre as inconveniências deste relacionamento, Tancredo acaba por receber a relutante bênção de seu pai para casar-se com Adelaide. Na condição de que cumpra previamente um compromisso de trabalho em uma cidade distante ao longo de um ano. Como veremos, a imposição desta condição fará toda a diferença no enredo. Nos sentimentos filiais de Tancredo, pai e mãe estão em polos opostos. E este detalhe é fundamental para marcar sua distância em relação à figura paterna: Não sei por quê; mas nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura. Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher.


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Neste intervalo fora de casa, que soa como um desterro, morre a mãe de Tancredo. Ato seguinte, seu tirânico pai toma Adelaide como segunda esposa, pisoteando o desejo manifesto do filho, bem como a promessa que lhe fez de aceitar seu casamento com Adelaide após seu regresso. O primeiro amor, futura e prometida esposa de Tancredo, se transforma em vil e desavergonhada madrasta. A cena onde ele descobre a traição do pai é reveladora. Ao voltar do semivoluntário exílio, já informado da morte da mãe, Tancredo abala-se casa adentro, em busca do esperado reencontro com Adelaide: No salão havia um turbilhão de luzes; no fundo, reclinada em primoroso sofá, estava uma mulher de extremada beleza. Figurou-se-me um anjo. A esplendente claridade, que iluminava esse salão dourado, dando-lhe de chapa sobre a fronte larga e límpida circundava-a de voluptuoso encanto. Era Adelaide. Adornava-a um rico vestido de seda cor de pérolas, e no seio nu ondeava-lhe um precioso colar de brilhantes e pérolas, e os cabelos estavam enastrados de jóias de não menor valor. Distraída, no meio de tão opulento esplendor, afagava meigamente as penas de seu leque dourado. Alucinado por beleza tão radiante, corri para ela, exclamando: – Adelaide! minha Adelaide!

Seu tirânico pai toma Adelaide como segunda esposa, pisoteando o desejo manifesto do filho.

E naquele momento, seduzido pelos seus encantos, louco pela ventura de vê-la, esqueci a mágoa, que me doía no coração, da perda de minha mãe. Estendi-lhe os braços, e as expressões morreram-me nos lábios; e depois, curvando-me ante ela, ia tomar-lhe as mãos, e beijá-las com efusão; mas ela então altiva e desdenhosa disse-me com frieza, que me gelou de neve. – Tancredo, respeitai a esposa de vosso pai! O pai de Tancredo, mas também a pérfida e cumpliciosa Adelaide, cumprem a função de “personagens obstrutoras”, para usar a expressão de Frye, confortavelmente instalados nos papéis de marido e mulher de um casamento tradicionalmente patriarcal. A dupla decepção face à traição do pai e da outrora mulher amada precipita Tancredo em uma atordoada e meditabunda cavalgada para longe da casa dos pais. Pano rápido, cena seguinte. Tancredo se acidenta gravemente e é salvo pelo escravo Túlio, que o abriga na casa de 49


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Luísa B., sua adoentada senhora, já viúva, fragilizada por uma paralisia. Outro pano rápido. No idílio curativo, Tancredo recebe os cuidados de Úrsula, filha de Luísa B., “um anjo de beleza e de candura”, por quem se apaixona. A decepção com o falso e dissimulado amor de Adelaide resulta na descoberta do verdadeiro e correspondido amor de Úrsula. Como bom moço e alma generosa, Tancredo retribui Túlio com o dinheiro suficiente para sua alforria. Guardem este ponto da concessão da alforria. Voltaremos a ele ao final do détour racial. Restabelecido do acidente, Tancredo resolve partir e retomar seus afazeres, não sem antes pedir exitosamente a mão de Úrsula à Luísa B. : – Agora, senhora – continuou o mancebo dirigindo-se a Luísa B... que apenas ouvia-lhe a voz –, agora não me negueis o único bem que ambiciono na vida. Senhora, eu amo a Úrsula, e fora preciso não conhecê-la para sair desta casa sem levá-la no pensamento e no coração. É Úrsula, senhora, o anjo dos meus sonhos, é a es-

A narrativa de Úrsula é estruturada a partir dos casamentos frustrados de Tancredo.

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perança da minha vida. Viver sem ela d‘ora em diante fora morrer mil vezes, sem nunca encontrar o descanso da sepultura. Não me negueis. Úrsula é a esposa que convém a minha alma, é a esposa que pede o meu coração. Sereis vós surda à minha súplica? Neste momento da trama surge o segundo macho alfa obstrutor, o Comendador Fernando, tio por parte de mãe de Úrsula, que, assumindo as funções de pater familias, resolve que, face à morte iminente da irmã, o melhor a fazer é casar-se com Úrsula, como forma de saldar os mal-feitos do passado, em especial o assassinato confesso do cunhado! Eu falei...tragédia pouca é bobagem na pena romântica de Maria Firmina. Vários panos rápidos. Úrsula foge, acaba louca e morre. Comendador Fernando e seus capangas, na tentativa de encontrar Úrsula e colocar seu plano matrimonial em ação, acabam torturando e matando a escrava Susana, serva doméstica de Luísa B. e conselheira de Úrsula, assassinando o recém-alforriado Túlio e, claro, apunhalando fatalmente o boníssimo Tancredo. A esta altura você deve estar pensando: onde foi parar aquele lance do enredo da Nova Comédia? Risos numa hora dessas? Já explico, ao menos esquematicamente. A narrativa de Úrsula é estruturada a partir dos casamentos frustrados de Tancredo. A trama não oferece o alívio do “ponto resolutório da ação, a revelação cômica, anagnórisis ou cognitio”. Não há, portanto, a instauração da nova sociedade, que emerge das estruturas corrompidas do velho patriarcalismo. Em sentido es-


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trito, não há “reunião ou ritual festivo”. Não há casamento. Ou pelo menos, não o casamento redentor de Tancredo e Úrsula, da renovação e instauração de uma nova ordem. No contexto ampliado de Úrsula, a nova ordem seria marcada pelo fim do patriarcalismo escravocrata. A percepção da vileza, imoralidade e irreligiosidade da escravidão é evidente nas falas do núcleo de personagens negros, Túlio, Susana e Pai Antero. Percepção que é agudamente compartilhada por Úrsula e Tancredo. “As almas generosas são sempre irmãs.” Tancredo não apenas garante a alforria de Túlio mas elabora claramente o credo abolicionista, por exemplo nessa peça de diálogo com o escravo que lhe prestou solidariedade: – A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou –, não me chameis amigo. Calculastes já, sondastes vós a distância que nos separa? Ah! O escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que… – Cala-te, oh! Pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio – interrompeu o jovem cavaleiro –, dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos. Túlio, meu amigo, eu avalio a grandeza de dores sem lenitivo que te borbulha na alma, compreendo tua amargura, e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravizou a seu semelhante. Sim – prosseguiu – tens razão; o branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspiu sobre a pureza dos seus sentimentos! A tragédia de Úrsula reside na impossibilidade deste “truque no enredo que reúne herói e heroína” e “faz uma nova

Maria Firmina parece nos indicar que não há plot twist no horizonte que pudesse reverter a ordem patriarcal escravocrata do Segundo Reinado.

sociedade cristalizar-se em torno do herói”. Maria Firmina parece nos indicar que não há plot twist no horizonte que pudesse reverter a ordem patriarcal escravocrata do Segundo Reinado. A crítica filosófica nos legou a clássica imagem do casamento patriarcal como uma forma de escravidão. Úrsula acrescenta carne, osso, drama e dor ao símile da crítica. Uma imagem encarnada na persistência do racismo em nosso desde sempre esgarçado tecido social. Se a carta de intenções da série Até que a razão os separe previa construir “um sismógrafo das revoluções que chacoalharam a instituição política do casamento no Brasil, entre a metade do século dezenove e os dias que correm”, creio que chegamos ao fim provisório do percurso, que a rigor, é o seu começo cronológico, batendo de cabeça na fissura de uma das principais placas tectônicas do solo que pisamos. Se esta fissura não for definitivamente resolvida, dificilmente sairemos do buraco fundo da desigualdade racial. Maria Firmina dos Reis sabia que, afinal de contas, o buraco do racismo era mais embaixo. 51


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SÉRIE AS ORIGENS

porto alegre: uma biograf ia musical

Capítulo L – Era do Rádio, o final Arthur de Faria

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televisão havia estreado no Brasil no dia 18 de setembro de 1950. A pioneira foi a TV Tupi, de São Paulo – seguida pela Tupi carioca no ano seguinte. No extremo sul do país, a capital do estado inchara barbaramente: Porto Alegre tinha então 394 mil habitantes, quase um terço a mais do que apenas dez anos antes. Em 1951 Getúlio Vargas volta ao poder, desta vez nos braços do povo, em eleição democrática. Mas para sair da vida e entrar na história em agosto de 1954. E aí chegamos a 1955, quando o showbiz gaúcho, todo articulado ao redor do rádio, começa a fazer água: Assis Chateaubriand coloca 50 aparelhos de TV na praça da Alfândega e transmite direto do Clube do Comércio a primeira demonstração da novidade. As telinhas mostravam o que estava acontecendo a poucas dezenas de metros de distância: o melhor escrete das Emissoras Associadas apresentou-se. Mostraram sua música a quem se aglomerou para ver a Grande Orquestra Farroupilha regida por Salvador Campanella, o grupo 52

Manchete do Jornal Última Hora: a morte de Vargas

Tropeiros da Tradição, dirigido por Paixão Côrtes, e o popularíssimo Conjunto Farroupilha. Levaria menos de cinco anos para que essa transmissão experimental se transformasse numa emissora, com tudo o que se tinha direito. A TV Piratini era inaugurada em 20 de dezembro de 1959. Eles ainda não sabiam. Mas para os artistas que trabalhavam nas principais rádios, famosos, prestigiados, contratados e ganhando razoavelmente bem, o sonho começava a acabar.


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Sonoplastas na Gaúcha, em 1945

De forma ainda mais radical do que já acontecera duas vezes no século - com o cinema falado e a popularização do rádio –, a profissão de músico teria de se reinventar barbaramente. No começo, parecia apenas uma nova frente de trabalho, e promissora: gaúchos se mostrando para gaúchos. Mas ainda não havia o videoteipe, tudo feito ao vivo. Mais ainda do que no rádio, onde alguns horários sempre foram preenchidos com discos. Na TV pré-videoteipe, não tinha como: tudo o que era visto estava acontecendo ali, naquele momento. Mas foi tão rápido que, olhado daqui, parece uma epidemia de filme-catástrofe – ou 2020. No final de 1966, míseros sete anos depois, já não havia nenhum programa de auditório em nenhuma rádio da capital. O departamento de radioteatro da

Gaúcha havia sido extinto – e, no começo da década de 1970, a Farroupilha também fecharia o seu. Se, em 1950, 40% das verbas publicitárias brasileiras iam para o rádio e 1% para a TV, em 1969 a proporção era de 13% para 43%. Bem que havia avisado a Revista TV, já em dezembro de 1959, pouco antes da inauguração oficial da TV Piratini. O advento da televisão em Porto Alegre é um fato consumado. Aí está o Canal 5 com sua imagem perfeita, plantando um marco pioneiro no Rio Grande do Sul. E com isso ganha nova força e atualidade a pergunta que vem sendo feita: irá a televisão abalar o prestígio mantido até aqui pelo rádio? Quase um ano antes, em janeiro, tinha sido a Revista do Rádio a perguntar em manchete: A Televisão Matará o Rádio? 53


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Matar, não mataria, mas ia tontear um bocado. Para a música seria uma bomba: nunca mais a mesma estrutura de empregos e estabilidade.

a Grande Orquestra Farroupilha e manda embora até o Conjunto Farroupilha.

Em 29 de dezembro de 1962, Mauricio Sirotsky e seus sócios inauguram a TV Gaúcha, segunda emissora do Estado.

Quando as emissoras de rádio e televisão suprimiram as apresentações ao vivo de suas programações, foi uma calamidade. Músicos e cantores ficaram desempregados; compositores ficaram sem uma vitrine para mostrar as suas composições. Artistas de fora não vinham mais.

E então, em 1963, o videoteipe invade esse mundo feito um Godzilla possuído. No instante em que a primeira fita viajou com um programa pronto do Rio ou São Paulo para outra cidade, perdeu imediatamente o sentido manter um escrete de artistas em cada estado, quando cada rede podia ter uma orquestra só, um cast só. Evidentemente, na sua sede. Que, pra facilitar, era numa das duas cidades onde moravam as estrelas de maior renome nacional. Era só gravar e mandar os teipes pras emissoras afiliadas. De uma só tacada, a Piratini demite todo o elenco de rádio e teleteatro, dissolve Por aqui se entrava para o fascinante mundo da televisão (atualmente, prédio da TVE)

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Demosthenes Gonzalez lembrava bem:

Era o império dos enlatados. O termo “enlatado”, hoje em desuso, descrevia justamente a forma como vinham as fitas (os teipes): dentro de latas. A partir daí, a concorrência com o que se produzia no centro do país tornou-se ainda mais desigual. No meio disso, a situação já mudara também do lado empresarial: em 1963, Maurício Sirotsky seria o único dos sócios a se manter quando a rede paulista Excelsior compra a Rádio e Televisão Gaúcha S/A.


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A TV Excelsior, que nascera já na era do videoteipe, era dos mesmos donos da companhia de aviação Panair, o que facilitava ainda mais a circulação das fitas com os programas gravados de São Paulo para o Rio (e vice-versa). E Porto Alegre sem gerar nada, só recebendo latinhas. Oposição de primeira-hora ao governo militar, a Excelsior não vai durar muito: resiste só até 1968 quando, perseguida e à beira da falência, vende a Gaúcha para Maurício, seu irmão Jayme Sirotsky e Fernando Ernesto Corrêa. O trio se associa então à novata e crescente Rede Globo – aliada dos militares – e compra também o jornal Zero Hora, que era a antiga Última Hora, de Samuel Wainer, outro inimigo da ditadura. Foi nesse momento que Elis Regina, Manfredo Fest, Breno Sauer, Primo, Portinho – músicos de quem falaremos longamente em outros capítulos – tiveram a coragem de ir embora em busca de trabalho. Nem todos tiveram o mesmo destino de Elis, que chegou ao Rio absolutamente desconhecida em 1964 e, no ano seguinte, já em São Paulo, era o maior salário da televisão brasileira, apresentando O Fino da Bossa. Que, é claro, era retransmitido em videoteipe em Porto Alegre. Com Elis, Jair Rodrigues e grande parte dos maiores artistas da música brasileira disputando um espaço a cada semana. E aí você imagina a concorrência: O Fino da Bossa, o Jovem Guarda de Roberto Carlos & Cia, e, pra não ir muito longe, os festivais da canção que começavam a mobilizar o Brasil da ditadura pré-AI-5. Tudo prontinho, em videoteipe. Correndo por fora, ainda havia os enlatados americanos, como a série Bat Masterson. Não tinha como concorrer.

Aí até a maior estrela internacional do rádio local voltou pra casa: dois anos depois da chegada do videoteipe, em 1965, o maestro Karl Faust retorna à sua Alemanha natal. E para um empregão que só atesta a excelência do maestro da rádio Gaúcha: produtor da mais importante gravadora erudita do mundo, a Deutsche Gramophon. Até o final dos anos 1980, ele produzirá quase 300 discos, indo da música erudita contemporânea a Beethoven e Chopin, com artistas como a Filarmônica de Berlim e regentes como Claudio Abbado (seguindo sem preconceitos: trabalhou até com Brian Eno). Quando se aposentou, escreveu crítica de música erudita até o final do milênio. Em Porto Alegre, deixou a lembrança da melhor orquestra popular que, segundo muitos, a cidade teve. E ainda deu aulas para músicos como o pianista gaúcho Roberto Szidon, dirigiu um coral de música erudita e arranjou e ainda foi a São Paulo arranjar e reger, anônimo, discos da orquestra fantasma de estúdio Românticos de Cuba. Com o rápido crescimento do número de lares que possuíam um aparelho de televisão, o rádio perde, literalmente, sua posição de destaque na sala de estar das famílias. O mundo de muita gente caiu. Se, por um lado, a vida de compositor em Porto Alegre não tinha sido fácil em toda essa Era do Rádio, por outro, cantores, instrumentistas, locutores e radioatores viviam numa espetacular bolha de prestígio local. Um mundo mais simples, comunitário, provinciano. Para o bem e para o mal. Um mundo que se acabara para sempre. E olha que ainda nem falamos nos Beatles. 55


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resenha não ingênuas de autoajuda para pessoas em crise em tempos de mudanças, escrito ao mesmo tempo que aquele). No dia 2 de janeiro de 1996, aos 43 anos, Benesdra se suicidou atirando-se do seu apartamento no décimo andar. Sofrera com crises fortíssimas a vida toda, o que envolveu mais de uma internação em instituições psiquiátricas.

O tradutor, de Salvador Benesdra Théo Amon

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ste volumoso romance , escrito por um autor que só deixou outro título (não ficcional), é um perfeito desconhecido fora da Argentina. Segundo averiguei, não está traduzido sequer em línguas de circulação mundial, como inglês ou francês. Pelas suas grandes virtudes, que tentarei expor abaixo, merece uma versão em português. Espero que, enquanto isso não acontece, os leitores se sintam movidos a lê-lo no original, atualmente em catálogo. 1

Primeiro, algumas palavras indispensáveis sobre o seu obscuro autor. Salvador Benesdra nasceu em Buenos Aires, em 29 de novembro de 1952, filho de uma família de judeus sefarditas. Teve formação em psicologia (com pós-graduação em importantes centros europeus) e, além desta, exerceu profissionalmente o jornalismo e a docência universitária. Leitor voraz e linguista talentoso, sabia sete idiomas e se envolveu em política de esquerda desde a adolescência. Sua obra publicada se resume a um único romance, O tradutor, finalista do Premio Planeta Argentina de 1995, mais um inesperado livro de autoajuda (O caminho total — técnicas (1) BENESDRA, Salvador. El traductor. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2012. 3ª edição, 2ª reimpressão (2014). 670 pp.

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O tradutor foi publicado apenas postumamente (1998), graças a Elvio E. Gandolfo, autor do prefácio na edição que possuímos, que assegurou à obra uma bolsa da Fundación Antorchas e encontrou editora interessada — o próprio Benesdra tentara junto a cerca de dez casas, sem sucesso. Aparentemente, é um livro que ganhou fama de cult na Argentina, sendo muito estimado nos círculos leitores alternativos, embora se trate de um autor ainda largamente ignorado, o que é fácil de explicar pela sua morte precoce e uma obra ficcional reduzida a um título só. Mesmo sem eu conhecer a literatura argentina dos anos 90 em diante (minhas leituras só me levam até Cortázar, Bioy Casares e

Este volumoso romance, escrito por um autor que só deixou outro título (não ficcional), é um perfeito desconhecido fora da Argentina.


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Borges, cujas carreiras criativas terminaram pouco antes ou imediatamente depois do filho único de Benesdra), uma análise intrínseca do romance que exponha seus pontos fortes e fracos, e que demonstre que aqueles sobrepujam estes, terá seu valor como resenha crítica. Sigamos a ela. A narrativa está a cargo do protagonista, Ricardo Zevi, de seus trinta e tantos anos, que mora numa mansarda portenha cheia de janelas (“Periscópio” é o apelido do apartamento). É um nítido alter ego de Benesdra — também judeu do ramo espanhol, também poliglota, também literato de profissão (é tradutor interno de uma editora), também dono de leituras variadas. O relato em primeira pessoa abre com um incidente galante, à primeira vista banal: impressionado com a beleza indiática de uma pregadora adventista que ele encontra divulgando sua religião em um café, Zevi vence o embaraço próprio e a desconfiança da mulher e consegue um encontro. Ela, Romina, é uma interiorana da província de Salta, fortemente empenhada com sua igreja. No seguimento do romance, revela-se que quase não possui experiência sexual e é anorgásmica. Esse é o nó que vai orientar todo o plano, digamos, privado do livro: Ricardo se põe como meta obsessiva arrancar Romina de sua irresponsividade, custe o que custar. Naturalmente, essa questão delicada imporá ao namoro dos dois um complexo jogo de gato e rato, com diversas separações, reaproximações, crises de ciúmes e, mais para o final, um perigoso jogo sadomasoquista com desfecho inesperado. O outro plano, que chamaremos de público, centra-se no trabalho de Zevi. Ele é funcionário da Turba, uma editora esquerdista especializada em obras de política e economia em suas vertentes progressistas de todo o mundo,

O relato em primeira pessoa abre com um incidente galante, à primeira vista banal: impressionado com a beleza indiática de uma pregadora adventista que ele encontra divulgando sua religião em um café, Zevi vence o embaraço próprio e a desconfiança da mulher e consegue um encontro.

várias das quais traduzidas pelo herói. Lembremos que a ação inicia em meados de 1991, meses antes da dissolução da União Soviética. Os tremores que sacudiam todo o pensamento de esquerda nessa época de transição, já aberta pela reunificação alemã pouco antes, acompanham e dão o tom à vertente laboral (e laboriosa) do livro. Isso porque a situação da Turba está, digamos, bastante turva: os Gaitanes, família dos proprietários, arrocham os funcionários com políticas internas cada vez mais confusas de reestruturação hierárquica, informatização, realocação funcional, estratégias de bonificação e aumento salarial, planos de demissão voluntária e diversos choques 57


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com a comissão interna que representa os empregados. O adjetivo “laborioso” que usei linhas acima não é um mero trocadilho: este é um dos pontos fracos de O tradutor. As dissensões internas nos quadros da editora, as repetitivas assembleias dos funcionários, as intrigas palacianas cansam. O autor até tenta associá-las às transformações políticas que estavam se dando na Argentina, com as privatizações e o menemismo, mas todo esse lado do argumento falha em se soldar convincentemente ao ambiente histórico maior e aos dilemas pessoais do protagonista. A prolixidade dessas passagens, aumentada pela grande densidade de terminologia trabalhista, poderia ter sido

O adjetivo “laborioso” que usei linhas acima não é um mero trocadilho: este é um dos pontos fracos de O tradutor. As dissensões internas nos quadros da editora, as repetitivas assembleias dos funcionários, as intrigas palacianas cansam.

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aparada em favor de maior dinamismo, o que beneficiaria muito a leitura. Por outro lado, os planos público e privado do enredo, se não perfeitamente amalgamados, fazem um belo jogo de bate-rebate, em que a um progresso profissional corresponde um progresso amoroso, ou onde, inversamente, um retrocesso em um plano é contrastado por um pequeno ganho no outro. Em perspectiva distanciada, onde distinguimos o movimento linear resultante do zigue-zague às vezes confuso dos eventos individuais, O tradutor se revela uma obra de muita força, com um senso de propósito, uma marcha dinâmica que nem sempre nos é brindada em ficção mais recente. Nesse sentido, a implantação histórica um pouco artificial e nem sempre coesa do livro é amplamente compensada pela trajetória pedregosa do herói romanesco, coerente com uma definição lukacsiana muito difundida: um indivíduo em busca de valores autênticos num mundo degradado. Os valores de Ricardo Zevi — homem imensamente culto, excessivamente cerebral, esquerdista comprometido mas não acrítico, imbuído de muita justiça social e um bocado de machismo platino — entram em crise porque forças incontroláveis se põem no caminho deles. São forças tanto exteriores, como a crise mundial da esquerda e as chicanas dos seus patrões, quanto interiores, entre as quais se destaca sua considerável libido. Ricardo é um grande apreciador do sexo oposto, o que seguidamente o coloca em relações muito desiguais com o fito único de satisfação sexual. Seu caso com Romina, a princípio calcado na atração física ímpar que ela exerce sobre ele, acaba desdobrando novas frentes precisamente pelo esforço que ele faz para buscar mais terreno em comum com


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ela do que o sexo, onde eles têm as dificuldades já citadas. É aí que o romance atinge alguns dos seus momentos mais leves e cativantes, como a iniciação de Romina no mundo da leitura não religiosa, o início dos seus estudos universitários, a pequena comédia da vida a dois no Periscópio, e os debates em que muito do mundo conceitual de Ricardo é desmontado pelos questionamentos simples e precisos de Romina. No entanto, mesmo todo esse esforço nivelatório se mostra inócuo para superar a inibição sexual de Romina, que se transforma na obsessão de Ricardo. Por todo o livro, será esta a mola-mestra a impelir a peripécia privada, que vai de fantasias eróticas variadas até arriscadas intervenções de terceiros provocadas por Ricardo — culminando num festim de perversão, delírio alucinatório e redenção inesperada. Nesses episódios, vistos sempre da perspectiva agora paranoica do herói, Zevi-Benesdra dá livre curso ao seu estilo complexo, colorido, impregnado de forte imagética e algumas soluções verbais inesperadas (várias colocações verbo-substantivo ou substantivo-adjetivo lembram Borges pelo efeito inusual e surpreendentemente lógico). Façamos aqui um parêntese para examinar este trunfo maior do romance: sua peculiar prosa. Se tivéssemos que inventar uma receita estética para o estilo de Benesdra, arriscaríamos a seguinte fórmula: a uma matriz marcadamente kafkiana (aí não só de estilo, mas temática também, como refletido na labiríntica degradação profissional do herói) soma-se um componente de Raduan Nassar e também uma pitada de Saramago e Borges. Claro, não estamos afirmando nenhum dado filogenético aqui – não conhecendo nada das leituras de Salvador Benesdra fora os autores que aparecem

na narrativa, é impossível dizer qualquer coisa sobre suas influências reais. Mas justifico minha impressão, e de trás para frente: Borges já expliquei no parágrafo anterior; Saramago desponta no horizonte pelo pulso magistral com que uma torrente expressiva é conduzida por um leito sóbrio, de léxico rico mas pontuação precisa, que não deixa que o volume da frase transborde; a lembrança de Raduan Nassar se impõe pela mistura de sensibilidade e energia com que as realidades e ficções do eros, em seus componentes tanto afetivos quanto físicos, são dissecadas em um trabalho de ourives, apoiado por inventivas metáforas. Mas, novamente, isso tudo são associações minhas, sem qualquer gancho comprovável que pos-

Claro, não estamos afirmando nenhum dado filogenético aqui – não conhecendo nada das leituras de Salvador Benesdra fora os autores que aparecem na narrativa, é impossível dizer qualquer coisa sobre suas influências reais. Mas justifico minha impressão, e de trás para frente.

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A sucessão de alguns períodos longos muitas vezes desemboca num período final mais assertivo, em chave de ouro, dando o arremate a um parágrafo coeso em que uma mesma ideia é examinada por vários ângulos, ligada a situações análogas e, quando é o caso, seguida em suas ramificações hipotéticas (a neurose crescente do herói o favorece).

sa reivindicar uma efetiva “filiação” (se é que um termo desses ainda tem lugar na literatura comparada). As únicas certezas são Borges e Kafka, que são citados no texto — e é revelador que Kafka figure na mão do protagonista sob a forma de um exemplar de O castelo, figura tutelar da fraseologia que vamos descrever a seguir. A frase de Benesdra pode ser bastante longa, com encadeamento de orações, paralelismos e apostos, frequentemente elidindo vírgulas no caminho 60

para favorecer uma leitura mais vertiginosa. A sucessão de alguns períodos desse tipo muitas vezes desemboca num período final mais assertivo, em chave de ouro, dando o arremate a um parágrafo coeso em que uma mesma ideia é examinada por vários ângulos, ligada a situações análogas e, quando é o caso, seguida em suas ramificações hipotéticas (a neurose crescente do herói o favorece). Como exemplo desse tipo de parágrafo ritmado, leia-se o seguinte trecho mais para o fim do livro, quando o protagonista foge do manicômio aonde um delírio cósmico-megalomaníaco o levara: Ao subir no táxi e constatar a banalidade de toda a cena, a tranquilidade distraída do taxista, a rotineira intransitabilidade da cidade com seus engarrafamentos impossíveis de segunda-feira de manhã, senti de imediato que começava a me subir à cabeça um orgulho incomensurável, uma certeira suspeita de que tinha conseguido escapar de um verdadeiro massacre psiquiátrico com o único recurso de certa habilidade de prestidigitador, a mesma que tinha me permitido escapar sem pagar de supermercados e grandes livrarias em alguns tempos difíceis da minha adolescência, muito antes de que me ocorresse a necessidade de alguma intervenção extrassensorial ou paranormal para escapulir pelas brechas da atenção dos demais. Pela primeira vez desde que havia começado a ter os pensamentos extravagantes senti que não seria nenhuma tragédia comprovar que toda a travessia mental dessas semanas tinha sido um mero delírio, uma convicção tão vazia


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e arbitrária como a de um Otelo fabricando-se infidelidades impossíveis no ar com uma lógica de ciúmes paranoides, como a de um marido atando cordas que não soube compreender que estavam soltas para seguir assim soltas, e não para que ele as unisse contranatura em uma explicação impossível que só delata seus próprios medos. Senti-me suficientemente forte para afrontar essa realidade e para escapar eventualmente da engrenagem exterminadora da repressão social, sem ter por isso que me transformar em herdeiro de uma linhagem de médiuns, telepatas ou super-homens. Mas também sabia que no fundo toda a imagética fantástica daquelas semanas de aparentes prodígios seguia me atraindo irresistivelmente. (p. 538-9) Quando o narrador apresenta não ideias definidas, mas sensações difusas, as metáforas ficam mais coloridas e margeiam pelo poético — como no parágrafo de abertura do livro:

Disse a mim mesmo que talvez era certo no fim das contas que as ideologias estão mortas. Trecho de O tradutor

Disse a mim mesmo que talvez era certo no fim das contas que as ideologias estão mortas; regozijei-me olhando pela janela do bar como o sol quente da primavera de Buenos Aires começava a fundir todas as convicções do inverno. Suspeitava pela primeira vez que podia haver um prazer na vertigem de flutuar nesse caldo uniforme que tinha se apoderado faz tempo de todo os espaços do planeta. O sol derramava sua festa de distinções sobre todos os objetos dessa esquina, mas eu sentia que por todas as partes estava drenando uma noite cinza de gatos universalmente pardos, uma apoteose da indiferenciação que pela primeira vez não conseguia me despertar medo. (p. 17) Esse tom, mantido uniformemente e matizado com grande perícia durante as quase setecentas páginas, garante uma perfeita correspondência temático-formal entre o que sabemos da personalidade do protagonista (pelo que ele diz de si e pelas suas trocas com as demais figuras, testemunhadas por nós em estilo direto) e como ele se expressa. Disso emerge um personagem inteiramente convincente, com uma voz inconfundível, como a das pessoas que conhecemos na vida real. Para mim, é esse o mérito maior do livro, que lhe garante um lugar como um excelente romance sul-americano do fim do século. Um último reparo diz respeito a pequenos vícios de composição: os capítulos são quase independentes, isto é, apesar do fio condutor único constituído pelos personagens centrais, pouco vaza de um para o outro. É quase como se tivesse sido escrito um livro sobre o romance turbulento com Romina, outro sobre a insta61


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bilidade na editora, e depois os capítulos dos dois tivessem sido revezados que nem num embaralhamento de cartas. Defeitos colaterais são também os personagens secundários, pouco desenvolvidos e, por isso, de aparência espectral: um amigo com quem Ricardo, no divertido capítulo III, discute sobre a nova namorada, entre amáveis palavrões de mesa de bar, nunca mais é mencionado na história; os pais do herói, que aparecem só nas últimas vinte páginas do livro, também cheiram a figurantes ex machina. É uma pena, porque diversos desses elementos usados apenas no momento mais oportuno, para tocar a intriga adiante, teriam potencial para ser empregados coesivamente, de modo atmosférico, permeando a história como outros tantos Leitmotive (penso aqui em Thomas Mann, que o prefaciador esquece de mencionar ao dizer, acertadamente, que O tradutor é “assimilável a certa literatura alemã, do tipo Musil, ou Broch”). Um desses elementos até chega a esboçar tal função: o início do enredo profissional pega Zevi traduzindo um livro do fictício Brockner (caricatura do francês Pascal Bruckner?), filósofo da cultura e pensador neofascista que, extrapolando dados da etiologia animal e da história trabalhista recente, advoga um novo nietzscheanismo alinhado às realidades do mundo industrial pós-guerra. Essa filosofia mambembe, porém expressada com vigor por Brockner, contribui subliminarmente para o reenquadramento ético de Zevi no seu trato com a mulher e a empresa, e assim é um dos maiores combustíveis da trama toda. Contudo, Benesdra acaba não aproveitando toda a força que a ressurgência mais cerrada desse motivo injetaria no que Elvio E. Gandolfo chama de “um dos melhores romances argentinos que se escreveu desde 1810”. Suponho que poderia tê-lo corrigido, não fosse o seu trágico fim. Será? Mistérios de escritor suicida... 62

Essa filosofia mambembe, porém expressada com vigor por Brockner, contribui subliminarmente para o reenquadramento ético de Zevi no seu trato com a mulher e a empresa.

Autor: Salvador Benesdra Obra: El traductor Editora: Eterna Cadencia Ano: 2012


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Ora, direis, ouvir os gregos! Luís Augusto Fischer

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m fenômeno para aplaudir e deixar a gente feliz: o sucesso notável que está fazendo o podcast “Noites gregas”, com Cláudio Moreno (com direção e edição de Filipe Speck). Conhecido professor da cidade há décadas, o Moreno tem uma longa estrada de contador de histórias tendo como referência o mundo da mitologia grega. Fui seu colega por anos no Sarau Elétrico, em que semana a semana ele deliciava a plateia com uma das talvez incontáveis fábulas, como não diria a ministra aquela, terrivelmente humanas. Agora, a revista Piauí de fevereiro oferece um relato muito inteligente so-

Conhecido professor da cidade há décadas, o Moreno tem uma longa estrada de contador de histórias tendo como referência o mundo da mitologia grega.

bre o podcast, assim como a Ilustrada, da Folha de S. Paulo, esses dias – nada menos que duas das mais exigentes publicações culturais do país. E ambas afirmando a excelência do material, reconhecendo o “tom cáustico” do narrador, que alia conhecimento do material com perspectiva arejada e verve certeira, que oferece comparações talvez inesperadas entre aquele mundo aparentemente tão distante e o cotidiano de gente como a gente. Aproveitei para perguntar umas coisas ao Moreno. Aqui a breve conversa. Se o prezado leitor não ouviu ainda, bá, entre lá num desses lugares em que se homiziam os podcasts e não perca a chance. Para divertir e instruir, dos 10 aos 100 anos, com histórias elementares e outras labirínticas, tudo contado de modo inteligente e ameno.) Parêntese – Que tal esse reconhecimento? Os veículos mais cabeça do país proclamando a qualidade tua e do podcast, que tal? Cláudio Moreno – É claro que a gente fica até espantado quando, de repente, entra no território proibido do centro do país – acho que alguns por aí vão dizer que isso é provincianismo, mas duvideodó que também não se sintam triunfantes quando conseguem atravessar o campo de força... P – Te passa pela cabeça que esse reconhecimento poderia ter acontecido antes se tu vivesses no centro? CM – Não, não me passa pela cabeça que o reconhecimento poderia ter vindo antes – não desta vez. Entendi 63


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que algo mudou, para melhor: quando se trata de um livro, sempre estamos limitados pelo pouco alcance das nossas editoras aqui, e quase sempre acreditamos, com razão, de que seria diferente se morássemos lá em Gotham City. Mas agora é pela rede, meu caro. Como eu já tinha vislumbrado mais ou menos com o [site de questões de língua portuguesa] “Sua Língua”, a internet é de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo. Acho que o “Noites Gregas” surgiu no momento certo para garantir sua sobrevivência. É claro que o sotaque poderia criar alguma barreira, mas, no meu caso, o conteúdo é supranacional, quase universal, excluindo os islâmicos e os orientais root. Como disse o Zagallo, parece que estão tendo que me engolir.

Autor: Cláudio Moreno Podcast: Noites Gregas Plataformas: Spotify e Apple

P – Quanto da alma do teu podcast depende da tua condição de professor calejado? CM – Quanto às vantagens de ser professor a vida inteira, não há como negar. Tenho acesso a dezenas de depoimentos e comentários no Twitter, Insta, Face e o escambau, e mais da metade deles ressaltam a fluência da explicação, a falta de arrogância (dando aula eu sou meigo e lhano), o respeito pelo ouvinte, etc. – as qualidades que dar aula durante 50 anos acaba aprimorando. Soma a isso a verdadeira escola que foi o Sarau Elétrico, com aquela mistura de textos literários com stand up comedy, e pronto: faço aquilo que sei fazer melhor, que é contar histórias – e mitologia grega é covardia. Parte do nosso sucesso vem também da comparação com dezenas de sites e podcasts que tratam do assunto – feitos assim com muito entusiasmo e pouco estudo, como sói acontecer com algumas figuras que ainda não amadureceram. 64

Tenho acesso a dezenas de depoimentos e comentários no Twitter, Insta, Face e o escambau, e mais da metade deles ressaltam a fluência da explicação, a falta de arrogância (dando aula eu sou meigo e lhano). Cláudio Moreno


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recomendações Versão da história para o teatro, a peça Música para Cortar os Pulsos estreou em 2010, ficou três anos em cartaz e ganhou o Prêmio APCA de Melhor Peça Jovem. Dez anos depois, o mesmo texto foi adaptado ao cinema com o título Música para Morrer de Amor. O filme teve sua estreia mundial no NewFest – Festival LGBTQ+ de Nova York, em 2019.

Três jovens de vinte e poucos anos amam e vivem com intensidade e derramamento, descobrindo que na vida, assim como nas canções sentimentais, só os clichês são verdade. Isabela sofre por um coração partido, Felipe quer muito se apaixonar e Ricardo, seu melhor amigo, está apaixonado por ele. Música para Morrer de Amor (Editora Incompleta, 218 páginas, R$ 45), de Rafael Gomes, reflete tanto sobre as obras das quais extraímos nossa educação sentimental quanto sobre amar desavergonhadamente na companhia delas. As vozes dos protagonistas, assim como três solos de instrumentos que juntos formam uma melodia, embaralham alguns paradigmas do enredo romântico e confirmam outros, questionando padrões de sexualidade e duvidando da certeza sobre os próprios sentimentos.

A publicação inclui o texto original da peça e o roteiro do longa-metragem, além de mais de uma centena de notas escritas pelo autor-diretor Rafael Gomes, detalhando o processo de adaptação entre as duas linguagens, as especificidades de cada formato e curiosidades de bastidores. O volume traz também um ensaio ficcional inédito sobre a chegada do autor aos 40 anos, caderno especial de fotografias e documentos e playlists comentadas.

PODCAST ESTAÇÃO CONFESSIONÁRIO Estreou nesta semana a primeira temporada do podcast Estação Confessionário. Os nove episódios, com duração entre 45 e 60 minutos, vão ao ar todas as quartas, na radioweb Rede Estação Democracia, até 17 de abril. Estação Confessionário é uma extensão de Confessionário – Relatos de Casa, uma websérie sobre violência doméstica e de gênero com direção e

Foto: Reprodução

MÚSICA PARA MORRER DE AMOR | RAFAEL GOMES

Foto: Incompleta/Divulgação

LIVRO

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criação de Deborah Finocchiaro e Luiz Alberto Cassol.

e exploração, em diferentes contextos e camadas da sociedade.

Apresentado pela atriz Deborah Finocchiaro, o programa reúne convidadas e convidados que abordam diversos tipos de abuso, violência, machismo

Todos os episódios serão disponibilizados no site da radioweb ( ), nas lojas de app e no Spotify Confessionário Relatos de Casa.

BASTIDORES, SÉRIE DO INSTITUTO INHOTIM Um episódio especial da série Bastidores, do Instituto Inhotim, vai ao ar neste sábado (20/2), a partir das 11h, mostrando o restauro de uma das obras mais icônicas do centro de arte contemporânea: Invenção da Cor, Penetrável Magic Square #5, De Luxe (1977), de Hélio Oiticica, mais conhecida apenas como Magic Square. O vídeo acompanha todas as etapas de restauro da instalação em site-specific e traz depoimentos da equipe técnica do Inhotim. Foi a segunda vez que a obra foi restaurada: houve processo seme-

As produções do Inhotim estão disponíveis no YouTube... ... Facebook ... e no Instagram

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lhante em 2013 e um novo restauro foi necessário porque ela fica muito exposta às condições climáticas. As instruções que Oiticica deixou ainda em vida para a construção/restauro de suas obras são extremamente específicas e peculiares, incluindo materiais como vassouras de pelos em vez de pincéis e rolos de pintura. Todo o procedimento levou quatro meses – de agosto a novembro de 2020 – e aconteceu no período em que o Inhotim estava fechado à visitação devido à pandemia de Covid-19. Agora, os visitantes já podem voltar ver e, literalmente, entrar no Magic Square. A série Bastidores e outras produções do Inhotim estão disponíveis no YouTube, Facebook e Instagram.

Foto: Brendon Campos/Divulgação

ARTES VISUAIS


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