Max Gonรงalves 00
Max Gonรงalves
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
APRESENTAÇÃO
Conheço Max há muitos anos. Somos amigos, verdadeiros amigos. Quando decidi fazer este prefácio lutei com minha consciência para ter certeza de que a amizade não estaria substituindo meu senso crítico. Quando recebi os 16 contos e outros eventuais para formarem os 16 finais, qualquer dúvida acabou. Decidi ler como se estivesse lendo o livro, esperei receber todos, me sentei uma tarde e li. Me emocionei de tal maneira que não consegui parar de ler. A sutileza e a arte de transformar qualquer acontecimento banal num conto emocionante me mostraram que, mais que um amigo, Max é um mágico das palavras e das emoções. Ele nos leva a viver momentos de intensidade únicos quer nos contos-crônica de sua riquíssima vida no paraíso do Rio de Janeiro, com Vinícius, Tom, e a bossa nova e também momentos com sua Elis com quem viveu uma paixão única, ou ainda em suas aventuras em contos de uma profunda beleza como Silêncio, Ternura, O Jogo, que nos mostram o outro lado do autor, suas dores, sua luta para preservar a sinceridade e a capacidade de sobreviver sorrindo ao mundo que até o martirizou.
00
Garotos de Ipanema
E Max é muito rico como personalidade, o jovem preso político, o músico, o poeta, o empresário de imenso sucesso no mundo da tecnologia e o homem de tantas paixões. Foi um dos jovens martirizados no Brasil do passado e nunca ouvi dele uma palavra sequer de revolta ou dor. Foi o empresário que trouxe a tecnologia de ponta para o Brasil, o brilhante matemático que criou empresas para o Brasil do futuro. Sempre queimado do sol do mundo, com um sorriso de um imenso carinho e de uma imensa solidão e tristeza misturados. Meio sem jeito, despertando amores e escrevendo sempre. Este livro de uma forma doce, engraçada, irreverente e cheia de ternura mostra que literatura pode ser assim. É como se ele estivesse falando, nos aprisionando em seu mundo e nos mostrando caminhos e saídas inusitados. Guardo sempre em minha memória uma situação que passei com ele. Foi no lançamento de um especial da Globo, baseado em seu conto sobre as bruxas, que Marcos Paulo transformou num grande momento da tevê brasileira. Estávamos no lugar da moda em São Paulo, ele chegou com o mesmo andar de sempre, o sorriso, a camisa branca, a pele queimada e despertando encanto nas mulheres que queriam falar com ele, ficar perto. Quando estávamos no meio da apresentação, saí para fumar e aí, espantada, vi Max saindo e caminhando sozinho buscando um táxi. Ele podia ter qualquer uma naquela noite, já era imensamente rico para ter motoristas e mordomias e estava ali, caminhando sozinho atrás de um táxi. Perguntei o que fazia, porque estava indo assim. - Estou vivendo uma grande paixão, não dá para misturar com esse burburinho.
Max Gonçalves 00
Sorri e descobri o poeta abençoado, que largava a glória pela paixão. Esse livro é fruto de paixão, da paixão de Max pelas palavras, pelo mundo, pelos amigos, pelas mulheres e pelo amor verdadeiro. Imperdível, leia e tente parar se for capaz, não vai dar.
Marilia
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
PREFÁCIO
O carioca Max Gonçalves se tornou um nobre cidadão do mundo por méritos próprios, dele e dos cariocas: a lábia. Se quem tem boca vai a Roma, Max, além de Roma foi à Atenas, Washington, Miami, Paris, onde o encontrei de Mercedes e motorista uniformizado, com segurança circulando pelos lugares da moda durante a Copa do Mundo de 1998 e onde tinha mesa cativa no Budda bar. Falando um legítimo francês e, se precisasse, alemão, italiano, inglês e português, Max mostrou aos franceses a figura de um encantador playboy brasileiro e integrante ativo do jet set, nos representando melhor na Copa do que a seleção do Zagallo. Quero crer que veio da sua boca a razão de tanto sucesso pelo mundo. Entre seus amigos estão estadistas, chefes de estado, presidentes, empresários, colunáveis, ricos, riquíssimos, famosíssimos. E, claro, a mulherada. De todas as idades e nacionalidades. Sedutor, bonito, maduro e gastador, ganhou muitas de muitos países e de muitos maridos. Ou vocês pensam que é qualquer um que tem no Brasil, depois de Jorginho Guinle e Ivo Pitanguy, o telefone de Bob Zagury, Brigite Bardot, Aristóteles Onassis, Bill Clinton, Bill Gates, para ligar a
00
Garotos de Ipanema
qualquer hora do dia ou da noite? Na lista de namoradas, Elis Regina tem lugar de destaque. Entre os amigos de boemia, Vinícius de Moraes, tá bom? Tudo conquistado com recursos próprios: o papo sempre ilustrado e a intimidade com a arte do piano, da poesia e dos quadros lhe abriram portas de palacetes. Se deixar sentar-se ao lado e falar, pode esquecer os outros compromissos. Max é insubstituível. Romântico, boêmio, praieiro, festeiro, artista, culto, leitor, historiador e falador, como testemunha vivo de uma época de glória do Rio de Janeiro e da MPB, não lhe restava alternativa senão já, em respeito ao Brasil, escrever em livro sua convivência com “seres de outro planeta”. Garotos de Ipanema é o livro da Primavera e do Verão, para ler na praia, na rede ou na mesa. Um livro pequeno e sem ostentação, na simplicidade dos personagens, mas um livro indispensável para todos os órfãos de boas histórias e da intimidade de famosos que fizeram por merecer a fama e a curiosidade dos mortais e normais. Garçom, por gentileza, uma garrafa de Black Label on the rocks. Os Garotos de Ipanema chegaram! Cacau Menezes Jornalista
Max Gonçalves 00
“Para minha irmã Fatima e meus filhos Brunna, Alexandre, Max e Marcello , meus netos e Mica “
00
Garotos de Ipanema
Garotos de Ipanema Projeto Gráfico e Diagramação Editora Núcleo Ilustrações dos Contos Alexandre Luz Revisão Final Arte da Capa Alexandre Luz, sobre foto de Max Gonçalves Edição Brunna Tayer
Max Gonรงalves 00
ร NDICE
Bruxas ................................................................................ Amor .................................................................................. Recados .............................................................................. Silencio ............................................................................... Mariana ............................................................................. Acaso .................................................................................. Bottles Club ........................................................................ Hello ................................................................................... Diana ................................................................................. Ternura ..............................................................................
00
Garotos de Ipanema
Max Gonรงalves 00
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
BRUXAS
“Yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay” (Provérbio espanhol) Vinícius de Moraes repetia sempre isso, principalmente quando estava tentando começar um namoro, trocar de mulher, viver a vida louca. Eu respondia: - O que é isso, poeta? Superstição? E ele dizia: - Mulher bruxa é pior que baiana, te enfeitiça e você não consegue sair, só chorando muito ou tomando banho de erva brava. E continuávamos a beber porque afinal já passava das dez horas da manhã e era quarta-feira. Numa véspera de sábado resolvemos tentar definir o que seria uma mulher bruxa. Estávamos na eterna Ipanema, num dos bares daquelas esquinas quase no mar e Tom discutia minha escolha de Shirley Horn cantando “Come a little closer” como uma das dez melhores canções de jazz do mundo. Vinicius, sério e de ressaca, saiu com sua frase preferida: - Essa mulher é uma bruxa! E assim, a partir dessa afirmação categórica do poeta, entramos no assunto e resolvemos definir mulher bruxa e criar um manual contra elas.
00
Garotos de Ipanema
- Mulher bruxa é sempre alta ou gorda, as magras e pequenininhas não têm perigo. - E magra alta? - É perigoso - As louras? Podem ser bruxas? - Claro. As vikings. As mais perigosas. Se transformam. Beijam e não perdem o olhar frio, vazio, sempre em outro mundo. - Mulata também? - Aí, não, né, mulata é candomblé, macumba, África mãe, são bruxas da natureza, se mexem como cobras e riem como mulher no cio. Te comem por dentro e cheiram a alecrim. - Mas, afinal, como você descobre se ela é bruxa ou não é? - Companheiro, é difícil. Elas sabem disfarçar. Tem homem casado há 60 anos que ainda não descobriu. Outro dia um amigo meu quebrou a perna, andando, assim, nem estava bêbado, nem nada, nem estava olhando bunda de mulher, nada, andando como espanhol vaidoso e bumba! Caiu e quebrou tornozelo, braço, nariz, um desastre! Descobrimos no hospital que ele era casado com uma mulher bruxa. Dezesseis anos e ele pensava que era feliz, uma traição aqui, outra ali, mas nada sério, ainda a chamava de “meu amor” e até beijava na boca. Até que ganhou na loteria, uma mixaria de dinheiro, mas mulher bruxa, já sabe, ele não dividiu o dinheiro e se quebrou todo. E era morena, grande, fogosa, tinha um olhar de sedução, no entanto era bruxa. - Mas afinal, temos que nos proteger, vamos fazer um manual contra elas. Vocês entendem tudo de mulher, fazem música para elas, poesia para elas, tem gente amando por aí, recitando teus versos e a música do maestro, e o perigo solto, as bruxas ameaçando, não dá, temos que resolver isso e hoje!
Max Gonçalves 00
Vinicius ficou sério, estava no segundo whisky, precisava de três para curar a ressaca, mas dois já começavam a clarear seu pensamento. Ainda não dava para fazer poesia, mas para criar um manual contra bruxas era possível. Pedimos papel, arrumamos uma bic de garçom e, como todas as bics de garçom, quase sem tinta. Colocamos o papel no centro da mesa, afastamos os copos, secamos em volta e, com ar de executivos inteligentes, começamos a pensar. A energia estava chegando quando uma garota do outro mundo parou e pediu, cheia de jeito, um autógrafo do poeta e do maestro. Ainda virou para mim e perguntou: - Você faz alguma coisa? É famoso? Respondi o de sempre: - Não, sou só professor de ballet dos dois, eles estão dançando muito bem! Ela me olhou com espanto, balançou o corpo e foi para o mar. Ipanema era Ipanema ainda. Cheirava a maresia e tinha prédios pequenos, cheia de casas, ar de cidade do interior e muita, mas muita mulher bonita. Começavam a aparecer os biquínis tipo fio dental e o píer estava lá, a lata tinha apenas um mês e ainda era assunto de todas as conversas. A lata, para quem não sabe, aconteceu porque um navio africano, de frete, meio velho, foi perseguido pela guarda marinha e jogou ao mar, em frente a Ipanema, um carregamento de latas cheias com uma das melhores marijuanas do mundo. A maré trouxe essas latas para a areia e assim, numa bela manhã de sol, nas areias de uma das praias mais lindas do mundo, era só pegar a lata e ficar feliz por muitos dias. Com o tempo surgiram os caçadores de latas, que cobravam um fee para mergulhar atrás do tesouro. As notícias falavam em mais de 30 mil latas e já havia mais de cem mil falsificações. Uma lataria em Marechal Hermes, subúrbio do Rio, já
00
Garotos de Ipanema
entregava a lata com o produto dentro, até com cheiro de mar e sal nas bordas, começando a enferrujar, trabalho perfeito! Depois da interrupção discutimos ainda por uns quinze minutos o corpão da garota e terminamos dando nota, porque o maestro sempre se queixava da nossa absoluta falta de gosto para mulher. - Mulher tem que ter ritmo, balançar certo, não pode ser só bunda e coxas e um seio cheio de graça, tem que ter mais, vocês estão ficando velhos, qualquer coisa queimada e de voz arrastada vocês dão dez. Que é isso! Dez é para musa, eu dou dez para Edith Piaf que é muito feia, mas que mulher! Aí todos concordamos, quem não ia dar dez para Edith Piaf, só louco. Também concordamos num oito com louvor para a menina que passara e voltamos ao assunto de nossa reunião, o manual contra bruxas. - Temos que abrir o manual com uma declaração – falou o poeta – não podemos começar condenando. Mulher não se condena, se entende, se foge, se for preciso, mas condenar, nunca! Aceitamos, afinal se a bruxa é bonita porque condenar? Depois de três caipirinhas - trocamos de bebida porque a ressaca do poeta já passara - ainda nem tínhamos escrito a primeira palavra. O papel estava lá, as bics estavam lá, mas texto que é bom, nada. Tentávamos concentrar-nos quando passou um carro com a bandeira do Fluminense. Aí participamos, “vai Flu”!, Eu disse bem alto, afinal tínhamos Rivelino no Maraca. O poeta, vascaíno, me olhou com um desprezo arrasador e sacou: - Viemos trabalhar ou falar bobagens? Se gosta tanto do Rivelino vai ser gandula para ficar perto dele, dar bola para ele, teu herói. Como sempre esta frase inesperada nos levou a discutir
Max Gonçalves 00
futebol. Foram mais de dez caipirinhas e muita mulher boa passando para, finalmente, voltarmos ao conteúdo de nossa reunião, o manual contra as bruxas. Mas era impossível parar, não chegávamos a acordo nenhum, até usamos palavras duras para defender nossas paixões. O maestro, Fluminense como eu, dava opiniões contundentes contra o espírito vascaíno do poeta e, de repente, um vizinho de mesa, um desconhecido, se meteu falando do Flamengo, e então esquentou o tempo. - Você não faz parte desta reunião, não se meta, não se manifeste, — dizia o poeta com a autoridade de seus cabelos brancos. - Vocês são metidos a bestas, todos podem falar, só porque não somos famosos temos que ficar calados, isto é um bar e não é de vocês. Como o assunto estava explodindo, o Manuel, português, dono do bar, vascaíno, pediu silêncio e ofereceu uma rodada gratuita de bebida para todos se trocássemos de assunto e não brigássemos mais. Recebeu uma ovação, juras de amor entre todos e pedidos de bis, afinal, quem não gosta de beber de graça num bar de Ipanema! Voltamos ao nosso assunto e como o poeta dizia que o sábado estava chegando, resolvemos apressar os trabalhos. Cada um iria escrever umas cinco linhas de introdução e depois comparávamos, editávamos e assim faríamos o manual a seis mãos, uma verdadeira salada alemã. Concentrei-me e comecei a trabalhar. Não entendia nada de bruxas e de mulher era discutível. Eu me apaixonava muito e a toda a hora. Num mesmo dia era capaz de ter mais de três grandes paixões e todas para a vida inteira. Acordava no dia seguinte, fazia poesia, tocava música, ia para a praia, contava
00
Garotos de Ipanema
para a turma das minhas paixões da véspera e no pôr do sol já tinha esquecido tudo. Assim comecei a pensar e escrever o que seria essa tal de mulher bruxa, e foi saindo um texto assim: “Mulher é sempre mulher. Não se entregue com medo. É bom ficar apaixonado. Todas elas merecem, até as bruxas! Os cuidados que se tem de tomar são simples. Contra mulher bruxa todo o cuidado é pouco. Não se importe com o coração, esse ela vai levar de qualquer maneira: tenha cuidado com a liberdade, essa, mesmo com o coração comprometido, tem de ser mantida, e bruxa gosta de tirar a liberdade e ela não faz isso de uma vez, ela vai aos poucos, com cheiros, balanços, jeitos de fazer amor, palavras quentes, ela te aprisiona e quando você vê a praia foi esquecida, o bar nunca mais e até os amigos ficaram para trás.” “Preserve a alegria e não abandone os amigos, mulher bruxa gosta de tristeza aqui e ali e de assustar com palavras de comando. Mesmo que você já tenha descoberto que ela é bruxa, mantenha o equilíbrio e as palavras de carinho. A ternura e o carinho permanentes são capazes de aquietar a bruxa e tiram a força de suas mágicas.” “A mulher bruxa quando está apaixonada pode ajudar você. Entregue o comando a ela e fique só fazendo amor. Deixe que ela use você como objeto sexual, as finanças vão crescer. Mantenha a liberdade e a alegria e não esconda nada, elas sabem tudo, até o segredo do cofre.” “Quando se cansar dela não se separe quebrando pratos ou dividindo os CDs. Espalhe lágrimas, chore de saudade antes de a saudade chegar e ande cabisbaixo, solitário e entristecido. Se ela perguntar como e por que, diga que é para o bem dela,
Max Gonçalves 00
você está sofrendo para ela ter um futuro melhor, você não é suficientemente bom para ela. Exagere nos seus erros, diga que sempre sonhou com uma mulher como ela, mas o tempo fez você perder esse direito.” “Guarde luto por um mês. Não frequente bares, nem vá à praia. Faça amor escondidinho e ouça música baixo como quem está rezando. Nunca mostre alegria durante o período de luto e só tome vodka pura. É tiro e queda contra bruxaria brava.” “Não se apaixone, durante esse tempo, por louras ou mulatas, só morenas. E têm que ser altas e de pernas fortes. De preferência bruxas também, bruxa contra bruxa dá lobisomem e então você vai fazer amor como um leão.” “Não tente ir ao futebol, seu time vai perder. Jogar no bicho, nem pensar. Pôquer, jamais. O período de luto é sério e sem ele as bruxas tomam conta e você nunca mais se levanta.” “Não coma coxinha de galinha nem empada de camarão, são mortais e podem envenenar você para sempre. Caviar e champanhe não têm perigo.” “Ande sempre pela direita, esquerda só serve para políticos. Não atravesse no sinal, alguém vai avançar. Atravesse sempre fora do sinal e não olhe para os carros, eles vão parar.” “Passados os trinta dias de luto faça uma grande festa. Com carnes saborosas e vinho vermelho. Muita música e poesia, afinal, você está livre de novo e a bruxaria passou. Faça amor com uma loura, se enrosque, se apaixone, fale alto e a encha de beijos em todos os lugares. Procure os amigos, conte histórias e ria sem parar. Uma caipirinha é de bom tom e todos os dias da semana vão ser sábado.” “Mas lembre-se sempre: não tem remédio contra bruxa, não existe vacina e assim até a loura da comemoração pode ser uma.
00
Garotos de Ipanema
Entregue-se com prazer, sabendo que o mundo é a grande paixão de quem está vivo.” “Não esqueça o carinho, os pequenos presentes, as palavras doces, a flor sempre escondida, aquela música que fala ao coração, o romantismo. Bruxa não resiste ao romantismo, mesmo cheia de magias ela se entrega, e não diga nunca que você já teve outra bruxa, elas gostam de ser únicas.” Quando parei de escrever o poeta e o maestro começaram a aplaudir. - Como você pode se concentrar tanto, estamos em Ipanema, meu amigo, o centro do mundo e das mulheres gostosas, já passaram duas infernais por aqui, bruxas, mas lindas, o Manuel já deu mais duas rodadas de bebida de graça e o Rivelino já fez dois gols e você aí escrevendo. Fenômeno, amigo, fenômeno. Seu texto está aprovado por unanimidade. Vamos mandar imprimir e distribuir gratuitamente pela praia. - E vocês... Não escreveram nada? - Pra quê? Já é quase sábado e trabalhar nem pensar! - Fui explorado, declarei, e fiz cara de ofendido. - Manuel, mais duas caipirinhas de graça para nosso escritor e manda vir aquela loura que está no bar. - Loura, nem pensar, respondi, está ficando de noite e a esta hora só morenas. O maestro se levantou e disse solenemente. - Fica adiada para amanhã a publicação e leitura do manual contra as bruxas. Até lá todas as mulheres do mundo estão liberadas para amar e nós, homens sem medo, temos total liberdade para nos apaixonar por elas. Saiu andando naquele seu andar cadenciado, andar de maestro, no ritmo certo.
Max Gonçalves 00
O poeta olhou para mim e repetiu a pergunta de sempre. - Anoiteceu, é hora de beber, não achas? - Onde? - Vamos ao Rond Point em Copacabana e depois vamos ouvir uma boa música, e se der sorte encontramos umas bruxas para aprender como elas são. Seguimos pela noite de Copacabana, e como não podia deixar de ser, amanhecemos abraçados a duas bruxas maravilhosas. Pra que escrever manual contra isso? pensei, olhei de novo para minha bruxa loura e me entreguei a uma paixão sem remorsos. Como diria Vinicius: - Oxalá!
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
AMOR
Poemas de Vinícius, música francesa, pequenos recados em papel cheiroso, até uma tentativa de poema mal escrito e mal rimado. Coisas do amor, diziam os amigos íntimos e a turma do pôquer. “Tá louco!”, diziam os mais chegados, família e empregados. A mulher só queria saber quem era a outra, a que ia levá-lo para uma outra vida, mas nada mudara, até um detetive contratado constatou que não existia outra ou era tão escondida que não valia a pena se preocupar. Ela, a mulher atual, resolveu segui-lo. Ele saía, ela ia atrás e nunca via nada, sempre a mesma rotina absurda e repetitiva, sem nenhuma imaginação. Mas por que esse ar de felicidade absoluta? E as cartas, os recados e as roupas diferentes e jovens? Nada fazia sentido, era sonho e pesadelo ao mesmo tempo. Como ela era nossa amiga recorreu a nós. - O que fazer? perguntava assustada. - Tenho certeza que é outra mulher, ele está até mais inteligente! Por causa dessa última informação, que ele estava mais inteligente, resolvemos adotá-lo no grupo para descobrir o mistério.
00
Garotos de Ipanema
O poeta distribuiu livros de Sherlock Holmes para treinarmos, deu dois dias para lermos as aventuras do detetive mais famoso do mundo e aprendermos alguma coisa. Nara Leão, com uma lógica assustadora, falou: - Se lendo livro a gente aprendesse a ser detetive não precisava academia de polícia, bastava que só chamassem quem sabe ler. Convocamos o Helio Pelegrini, o maior psicanalista do Brasil, que ouviu com atenção a história da transformação do Zé Manuel e, depois de pensar algum tempo, perguntou: - Ele mudou de nome, ganhou apelido novo, alguma coisa assim, porque se continua Zé Manuel fica difícil de acreditar. Zé Manuel não muda, é Zé Manuel até o fim. Ela é que devia ter casado com um Felipe, um Marcos Vinicius, alguém com nome de imperador. Esses mudam fácil, mas Zé Manuel, humm... Marina Morena, a nossa amiga filha da Rute Almeida Prado, que tinha esse nome em homenagem a Caymmi, continuava no nosso pé. - Se vocês que são parte das maiores inteligências de nosso país não descobrirem, quem vai descobrir o que aconteceu com meu Zé Manuel? Convidamos o Zé para o encontro matinal da sexta-feira no bar da Montenegro. Ele relutou, tinha que deixar de trabalhar, mas ao conhecer a lista de presenças e ter certeza de que o poetinha e o maestro estariam lá, jogou tudo para o alto, colocou uma polo vermelha e uma calça branca e, com jeito e ar de turista americano, sentou-se na nossa mesa. Dava para envergonhar ter aquele Zé branco, cabelo esticado e roupa assustadora na nossa mesa sagrada, mas pela Marina faríamos qualquer coisa. Começamos com caipirinha e o Zé aceitou com alegria. Para
Max Gonçalves 00
chegarmos mais rápido à verdade, dissemos a ele que sempre que alguém novo se juntava a nós tinha que beber duas caipirinhas enquanto o poetinha bebia uma. Se não cumprisse o ritual tinha que sair da mesa e nós nunca mais sequer olharíamos para ele. A estratégia era embebedá-lo rápido e, quando ele estivesse com olhar vidrado, cambaleando, entraríamos direto no assunto, forçaríamos a resposta redentora e Marina iria saber a verdade. Depois de trinta e sete minutos, ele já tinha bebido oito caipirinhas e continuava tranquilo, com ar de interesse, maravilhado com aquela vida irresponsável de Ipanema, e até já tinha arriscado duas palavras inteiras. Apelamos para a arma secreta, avisamos que depois de quarenta minutos o poetinha passava para o uísque e aí a proporção tinha de ser três para um, ou seja, para cada copo do poeta, três copos do aspirante à fama. Zé Manuel concordou na hora e até anunciou solenemente que pagaria a primeira rodada e se apressou, para nosso espanto, a pedir um uísque para cada um de nós e três para ele. O outro Manuel, o português, dono do bar, com a lógica de um cantor de fado, perguntou. - Queres os três de uma vez? Em três copos? Não achas mais fácil pedir um triplo ou gostas mesmo é dos copos? Zé Manuel, com uma paciência e uma tranquilidade impossível para quem já tinha tomado oito caipirinhas, explicou ao Manuel que aquilo era um ritual de aceitação, assim cada copo que o dono do bar trouxesse para o poeta, tinha que trazer três para ele. O Manuel incrédulo replicou:
00
Garotos de Ipanema
- Vais morrer de coma alcoólico e esses aí não vão nem ao teu enterro. Mais meia hora e nada, Zé Manuel parecia ficar mais sóbrio e dono da situação a cada três copos que bebia. Segundo as contas, já eram nove de uísque e oito caipirinhas. Foi aí que, com a sutileza de um elefante, Edu Lobo, recém-chegado à mesa e sabendo do objetivo daquele encontro para quem não sabe o Edu era meio apaixonado pela Marina - estava ansioso para culpar o Zé, conseguir a separação dos dois e então iniciar a conquista da mulher amada. Então, como dizíamos, sutilmente falou. - E aí, Zé, estás cheio de gatinhas, estás corneando tua mulher com uma loura ou uma morena? Caiu um silêncio estarrecedor, todos olhamos para o Edu e esperamos a resposta. Zé Manuel, meio sem graça, com ar de quem vai ter que se expor além dos limites, respondeu. - É, caras, para vocês vai parecer esquisito, mas casei virgem e até hoje só tive a Marina, me desculpem, mas sou assim, devo ser um chato para vocês, e sem histórias nem romances fica pior ainda. Caímos numa gargalhada conjunta e sonora e ríamos tanto que o Zé Manuel até ficou bêbado de repente, e sem entender nada começou a rir também. Afinal, com uma simples resposta resolvêramos metade do problema, a outra era entender a mudança do Zé. Marina nunca iria aceitar esta conclusão simplista, afinal até de perfume ele tinha mudado e precisava haver uma explicação. Impossível conseguir qualquer coisa naquela hora, Zé estava completamente bêbado, a cabeça não ficava mais em ne-
Max Gonçalves 00
nhuma posição possível e, pelos nossos cálculos, no máximo em onze minutos ele estaria apagado sem regresso. Zé tinha sido carregado pelo garçom, o Esteves, e colocado num táxi que o largou na portaria do prédio. Dali até a cobertura, onde moravam, foi carregado pelo porteiro Otacílio e pelo garagista Fagundes. Aberta a porta por uma Marina aflita, eles o levaram até a cama de casal que estava pronta, com novos lençóis de fio egípcio, e cheirava a lavanda. Nervosa e educada, Marina perguntou assustada se ele estava vivo. - Está sim, respondeu Otacílio, mas está bêbado que nem um gambá. Com esta frase se retiraram. Marina estarrecida olhava para aquele homem que virara um desconhecido, e agora ainda mais, porque em doze anos de casado nunca bebera nada, nem cerveja gelada. Como o Zé não ia responder nas próximas horas, ela foi para o telefone e não nos deixou em paz, queria saber tudo e nos culpava pela nossa indiferença perante o seu sofrimento. Tínhamos combinado não dizer nada até resolver a metade do problema que faltava. De qualquer forma, não ia adiantar, ela não acreditaria e ainda perderíamos a nossa única Marina Morena. Assim justificamos aquele pileque bravo pelo amadorismo do Zé. Nos desculpamos e prometemos que em mais uma semana teríamos tudo resolvido e saberíamos o porquê de tantas mudanças. Numa reunião de emergência, decidimos nos dividir em duas equipes. Uma iria a nossos encontros no bar da Monte-
00
Garotos de Ipanema
negro, iríamos todos e deixaríamos o Zé à vontade, aos poucos poderíamos analisar seu comportamento e descobrir a verdade. A outra adotaria uma estratégia de reuniões tête-à-tête: cada um de nós tentaria sair com ele sozinho para um drinque, um jantar e até um cinema se fosse preciso, buscaríamos penetrar naquele imenso segredo e descobrir o motivo da mudança. E nada! Passou a semana e tivemos que implorar à Marina Morena um adiamento, explicamos que a ciência da investigação era muito mais difícil do que fazer poesia ou música, demos outras razões e conseguimos mais uma semana. Antes de nos dar esse prazo ela fez questão de dizer que depois que ele estava saindo com a nossa turma tinha piorado ainda mais, até livro de poesia estava lendo antes de dormir e isso, para Marina, era indicação certa de amor novo. - Só homem apaixonado lê poesia, homem detesta essas coisas. - E os poetas? - perguntamos. - Ah, se não for bicha, é garanhão, ou faz poesia para dar ou para impressionar as mulheres. E assim, reduzidos a esta simples definição, ganhamos mais uma semana para trabalhar. A primeira reunião tête-a-tête, como não podia deixar de ser, foi com o Edu, afinal ele tinha interesse direto no assunto, queria resolver tudo rápido e libertar a Marina daquele Zé Manuel. Combinaram um encontro no Garcia, uma bebida e talvez até uma comida se a conversa se esticasse muito. Edu foi direto ao assunto. - Está todo mundo estranhando essa tua transformação, Zé, todos querem saber por que e a maioria aposta que arranjaste um amor novo, uma amante, enfim alguma estás aprontando. Zé, animado, perguntou:
Max Gonçalves 00
- Estou melhor assim? - Claro, respondeu Edu. Era o momento de agradá-lo para arrancar a verdade. - Pois é, sabe, eu estava me sentindo muito chato, estava chato até para mim mesmo, me olhava no espelho e saía deprimido, comecei então a pensar em como ela podia gostar de mim daquele jeito, tinha que mudar. - Então existe uma ela, respondeu Edu, já antecipando a solução e se achando o melhor dos sherloques improvisados. - Claro, respondeu rindo o Zé Manuel. - Conta pra mim quem é essa deusa, vai? - É a maior das deusas, mas não posso te contar, você vai rir de mim. Apesar de todas as insistências, vários uísques, até um almoço de lagosta, Zé permaneceu irredutível e não disse o nome tão procurado por todos nós. Quando Edu nos reportou o encontro em detalhes fomos obrigados a reunir o grupo. Já existia a confissão, Zé estava mudado por causa de uma mulher. Existia uma confissão anterior em que ele dizia ter casado virgem, existia o trabalho do detetive que não encontrara nada, existia a Marina fuçando tudo do Zé: carteira, caderninho de endereços, telefone, enfim, passando o pente fino na vida dele e nada. Depois de levantar todos os fatos, como acontecia nos livros do Sherloque Holmes, convocamos um doutor Watson, que não podia deixar de ser outro senão nosso psicanalista, o Helio. - Elementar, ele disse. Depois de tudo que me apresentaram tenho certeza de que o Zé está apaixonado, paixão brava, daquela que se carrega por uma vida inteira.
00
Garotos de Ipanema
E dita esta frase se levantou solene porque dali a pouco estaria atendendo mais um cliente. Ficamos respondidos e estarrecidos. O mistério continuava. Resolvemos contar tudo que sabíamos a Marina, mostrar que tentamos e que até tínhamos o motivo, só não tínhamos o nome. De fato todas as mudanças tinham sido por amor, mas quem era a musa do Zé? Mistério profundo... Marina chorou sem parar, se fosse grega teria se descabelado e jogado areia no rosto, como era carioca e vaidosa, chorou até sem lágrimas para não desmanchar a maquilagem. Pedimos mais duas semanas e ela concordou sem reagir. Do lado dela a busca também só mostrava sinais, mas nada de concreto. Tinha encontrado recortes de poesia do poeta na carteira, sublinhadas aquelas palavras célebres: ...posto que seja imortal enquanto dure... E tantas outras que indicavam o inevitável. Zé Manuel estava totalmente apaixonado. Como não podia deixar de ser, comentamos o fato de que ele havia se casado virgem, Marina não só confirmou como deu mais uma ligeira choradinha, sem lágrimas, ao lembrar tanta paixão. - Ele é capaz dessas coisas, e agora tudo para a outra... Mais uns soluços em seco e depois caminhamos todos juntos pela praia em direção ao bar. Edu falou baixinho, com voz grave e muito séria; - Por que você não faz o mesmo, arranja um namorado ? Vamos ver a reação dele. Para desânimo e tristeza do nosso Edu, Marina respondeu; - Não dá, quanto mais ele muda mais eu gosto dele. Se fosse antes até era capaz, ele era muito chato, muito igual, mas agora... E assim ficou selado o futuro daquele amor impossível, Ma-
Max Gonçalves 00
rina se confessava perdida de amor pelo novo Zé Manuel. Em desespero resolvemos beber, chegamos mais cedo e ninguém arriscava palpite. Tínhamos falhado, Marina, com razão, começava a duvidar de nossa capacidade de tudo saber. O maestro arriscou umas palavras: - E porque não nos abrirmos com ele e contarmos a história toda? Piorar não vai. Na falta absoluta de outra ideia combinamos com o Zé Manuel um encontro na sexta-feira cedo, no bar da Montenegro, com direito de esticar até sábado. Tudo acertado, convocamos o psiquiatra Helio que iria apenas escutar e determinar com seu conhecimento se ele estava dizendo a verdade ou não. Organizamos os lugares de modo que o Zé ficasse entre o poetinha, e eu, olhando de frente o maestro e, nas laterais, Helio, o psiquiatra ouvinte, e Edu, proibido de abrir a boca. Amanheceu como só amanhece em Ipanema, sem chuva, sem vento, com cheiro de mar e areia fresca. Tudo certo para o grande dia. Zé chegou na hora, sorridente, com uma camisa florida, típico americano perdido pelo mundo, a calça branca e até um chapéu Panamá. Fui encarregado de conduzir o assunto. Assim decididas as caipirinhas, distribuídos os lugares, entrei direto no tema e com detalhes marcantes, como todas as lágrimas secas de Marina, não escondi nada. Para nossa surpresa Zé caiu na gargalhada e saiu pulando da mesa. Como era muito cedo para ter futebol, o garçom Evaristo veio socorrê-lo pensando tratar-se de um ataque cardíaco fulminante, mas o Zé ria e pulava, tirou o maestro para dançar
00
Garotos de Ipanema
e girava pelas mesas como se tivesse ganhado na loteria. Finalmente conseguimos acalmá-lo e reclamamos; - Tá doido, homem? Fala agora, confessa o nome dela. Sorridente e cheio de razão, Zé falou: - Ela é a Marina, gente. Faz uns meses ela começou a sair de tarde, sempre que eu saía ela saía também, e aí pensei: tem homem nisso, ela está se apaixonando por outro. - Me olhei longamente no espelho e concluí que tinha de mudar. Quem ia gostar de um cara chamado Zé Manuel que só tinha roupa cinza e preta? Quem ia gostar de um chato assim? Falei com meu barbeiro, cara experiente em mulheres, e ele me aconselhou a roupa branca com sapatos combinando, mudamos o corte do cabelo, lembram que até comecei a beber? E não é que deu certo? Pouco a pouco a Marina se chegava mais, fazia amor a toda a hora e ainda perguntava se eu não estava cansado. Fiquei amigo de vocês, mas continuava desconfiado, ela saía muito e sempre queria saber por onde eu tinha andado. Confiei em mim e no barbeiro e disse pra mim mesmo: -Vou vencer esta batalha. Agora vocês vêm e contam que o outro era eu mesmo, aleluia! E lá saiu Zé Manuel dançando por entre as mesas, numa alegria de guri novo. Enquanto ele dançava perguntamos ao psiquiatra Helio o que era aquilo. - Amor, verdadeiro amor.
Max Gonรงalves 00
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
RECADOS
Lúcio Flávio Guilhermo Ror, com esse nome de rei, era um mulato bonito, meu empregado, que fazia tudo na casa e que nós chamávamos de Lula. Meus filhos adoravam seu jeito, sua alegria permanente, sua forma de levar a vida sorrindo e de esquecer que existiam problemas no mundo. Era bem humorado de nascença, talvez pelo nome imponente, ou por ser um príncipe mulato perdido em Ipanema. Preferia homens, era um homossexual elegante, como ele se definia. - Veado jamais e gay é coisa de quem não sabe se é veado ainda, eu sou homossexual assumido e como diz o meu patrão essa palavra latina quer dizer que gosto do mesmo sexo, homo igual, sei lá... ou será homo de homem? Olha esqueci, mas é uma palavra que tem tudo a ver com sexo entre iguais. Mas deve ser homem porque se é mulher é lésbica, assim homo é de homem e...É isso ai. Assim eram as explicações do Lula, imponentes. Repetia e transpirava o ambiente da casa, livros, cartas, poesia, música, o entra e sai de artistas, cantores, enfim ele era parte do cenário e não queria ser coadjuvante. Era uma época sem celular, sem Facebook e sem Twiter.
00
Garotos de Ipanema
Ainda escrevíamos cartas, bilhetes, notinhas e telegramas e guardávamos tudo. Era uma papelada enorme misturada aos contos, poesias, músicas, artigos de jornal. A parte da casa que mais atraía Lula era o escritório, ele sempre ia para lá quando as crianças estavam no colégio e sobrava um tempo para a preguiça. Nessa época eu namorava e morava com uma bailarina clássica, uma das melhores ou a melhor do Brasil, e vivia entre pas de deux, coreografias de Balanchine, livros mostrando sapatilhas e corpos sedutores em posições impossíveis e ainda a música de Tchaikowiski, Ravel ou os modernos autores americanos. Nora era uma experiência nova na minha vida. Sempre tivera uma queda por mulheres mais arredondadas, mais carne e mais altura, mais tipo brasileira e assim aquela moça musculosa, fina, com força nas pernas e andar de Carlitos - toda bailarina parece Carlitos andando - era uma descoberta e ia me apaixonando aos poucos, sem pressa, descobrindo as virtudes de seu corpo e entendendo sua alma. Tínhamos um cachorro que ostentava o nome de Kublai Khan e que o maestro Tom dizia ser o dálmata mais afinado do mundo, por quê? Não me perguntem, para mim ele latia como os outros, talvez com um pouco mais de carinho por ser parte de uma vida de artistas. A casa de Ipanema tinha dois andares e ficava a 500 metros da praia. Nesses dias eu estava trabalhando num possível livro de cartas que eu tinha arquivadas. Algumas para mim, outras para meu pai e ainda outras que eu tinha recolhido nos rascunhos do Vinícius e do Pablo Neruda. Como o trabalho avançava rápido, Tom, o maestro, me em-
Max Gonçalves 00
prestou algumas cartas. Por consenso aprovamos que eu podia usar os recados de Ellis, os escritos pequenos que diziam tanta coisa. Nora tinha seus horários e sua disciplina absoluta. Quando estavam montando espetáculos a dedicação era total, ela acabava tendo mais ausências que presenças e assim perdíamos a opinião feminina. Por um desses acasos, no meio de todo este tempo, ela foi convidada para fazer uma temporada no ballet da Sicília e se foi para Taormina. Acompanhei a ida, algumas lágrimas na despedida, as juras absolutas de amor eterno e, como não existiam internet nem celular, iniciamos as cartas que acabaram fazendo parte do projeto. Sozinho na casa, passei a ter Lula como confidente literário, a criação tem essas manias, alguém precisa estar de plantão para ouvir, só para ouvir, sem permissão de criticar. Como Lula era um gay cheio de energia, seus gritos e fantasias me faziam sentir melhor que Garcia Marques. Foi também por essa época que Lula se apaixonou por um policial civil que dava plantão na Urca e era, segundo ele, um Apolo, um deus grego, alguma coisa que só para olhar já servia, imagina namorar! E segundo Lula, ele era muito inteligente, um homem informado, que lia livros grossos e até falava algumas palavras em francês. Inesperado para um guarda que tinha até um apelido nobre – Shakespeare – e, segundo ele, merecia esse apelido. Para Lula, Shakespeare se escrevia assim: Sheik espirra, e ele afirmava que era um sheik de verdade. Conversávamos sobre as cartas e Lula se encantava com o conteúdo, ficava maravilhado com as cartas de amor e sempre
00
Garotos de Ipanema
me perguntava como alguém podia inventar coisas tão bonitas. Numa noite em que Vinícius estava aborrecido com a vida, bebendo uísques devagar, reclamando que eu estava trabalhando demais, que o bar nos esperava e que a vida se vive na rua, não se vive num escritório e, sem alternativa, transformou Lula em seu público favorito e começou a incentivá-lo a escrever cartas. - Ouve, Lula, – ele dizia – a carta dobra qualquer mulher e se dobra mulher e amolece o coração dela, imagina o que não faz com um veado. Lula reagia de imediato e dizia que seu Apolo não era veado: - Que mania, seu Vinícius, chamar de veados, somos meninas que nascemos errado. Veado ofende e logo o senhor que escreve coisas tão bonitas. Vinícius respondia: - Ok, de agora em diante só te chamo de veadinho. E assim iam os dois matando o tempo com suas veadagens, eu podia trabalhar e ainda ter o ouvido do poeta para me inspirar e dar aqueles toques sutis que melhoravam infinitamente o meu trabalho. E a sessão terminava quando o poeta me intimava a ir para o piano e tentar criar um momento no qual surgisse inspiração para uma nova melodia. Amor demais ou amor de menos, terminávamos sempre com uns acordes meio bossa, meio jazz, mais uns uísques ou umas vodkas, a moda estava começando, depois saíamos pela noite de Ipanema e acabávamos em Copacabana, matando as saudades de todas as mulheres que não estavam com a gente e agarrando discretamente as que estavam a nosso lado.
Max Gonçalves 00
*** Por esse tempo também tínhamos, Antonio Guerreiro, David Zing e eu, um estúdio de fotografia na rua São Clemente, em Botafogo, em cima de um belo restaurante português chamado Bismarck. Aliás, vivemos uma história deliciosa com este restaurante. Os portugueses, dois irmãos, eram atenciosos demais com a gente. Como fazíamos sempre fotografias de mulheres e éramos os fotógrafos da Playboy, eles se esmeravam em nos levar comidinhas e bebidinhas a toda a hora. Quando davam sorte, esbarravam com um monumento de mulher, pelada e confiante, e se achavam já sobejamente remunerados pelo trabalho. Mesmo assim acabamos criando forte amizade com aqueles dois irmãos que passaram a fazer parte da família. Trabalhávamos de noite e eles eram os parceiros ideais. Depois de apagarmos as luzes descíamos para um chope gelado, muita gargalhada e bolinhos de bacalhau, carne e pérolas de peixe, como eles chamavam com orgulho os bolinhos de linguado, cherne, namorado e outros bichos mais. A turma de Ipanema descia , às vezes, até Botafogo para ficarmos juntos e até eles já adotaram os irmãos como os melhores portugueses do ano. O restaurante era típico. Todo de ladrilhos brancos, mesinhas de mármore e cadeirinhas confortáveis de madeira. As paredes não tinham nenhum enfeite, mas davam uma grande sensação de limpeza. Um dia nos comunicaram oficialmente que o restaurante es-
00
Garotos de Ipanema
tava completando dez anos, uma data histórica, e iriam fazer um jantar para os amigos da casa. Reunimos a patota e discutimos o presente que iríamos dar, afinal aniversário sem presente é como amor sem sexo, não tem graça. Depois de muita discussão, muito vinho verde e uma infindável coleção de bolinhos de tudo que a casa servia, concluímos que o presente seria uma bela foto do almirante Bismarck e do seu famoso navio de guerra. Fizemos a foto em tamanho gigante, em sépia envelhecida, para ser colocada na parede dos fundos, a maior de todas, dando um ar solene àquele lugar. Yonita Guinle, que tinha um antiquário a duzentos passos do restaurante e que era frequentadora assídua de lá, nos arranjou uma belíssima moldura de madeira, segundo ela, com mais de 50 anos e oriunda de um castelo francês, comprada por fazendeiro do sul que a dera de presente à amante, para que esta nela colocasse a imagem de sua gloriosa nudez no apartamento de Copacabana cujo aluguel ele pagava , além das habituais ofertas de presentinhos de todo o tipo. Ninguém sabe se foi pelo quadro ou não, mas se separaram seis meses depois e ela levou tudo que havia lá dentro. Deixou apenas o retrato na parede. Ignoramos se foi por lembrança, esquecimento ou implicância, mas ele jamais se perdoou e acabou levando a relíquia para casa onde sua mulher frequentemente perguntava, com certa desconfiança, quem era aquela moça e ele respondia que tinha vindo com a moldura. Como as medidas da mulher oficial eram exageradas e a jovem do retrato não podia se comparar a toda aquela abundância, a esposa terminou por nutrir um ódio infinito pelo quadro.
Max Gonçalves 00
Quando ele faleceu, antes mesmo de tratar do enterro, ela vendeu-o ao antiquário da Yonita pelo simbólico preço de cinco reais. Assim herdamos a bela moldura que iria enfeitar nossa fotografia e transformar aquele restaurante frio, branco, vazio, num lugar quente e cheio de arte. No dia da festa foram necessários seis homens para carregar a foto e entregá-la aos irmãos, curiosos e angustiados para saber o que lhes tínhamos trazido. Quando abrimos o pacote e mostramos aquela cena maravilhosa, o almirante e seu barco, notamos nos dois leve tristeza e até sinais de desapontamento, mas creditamos tudo ao nervosismo do dia e ao corre-corre da festa. Passaram mais de 30 dias e nada do quadro ser alçado ao lugar devido. Questionamos os irmãos do porquê de ele não estar lá, naquela parede tão carente de um enfeite. Eles, envergonhados, nos responderam que não tinham entendido nada, o que significava aquele cara estranho e aquele barco mais estranho ainda. Além do mais o cara não era nem português. Enraivecidos, falamos com veemência. - Como não entendem?! É o almirante Bismarck que dá o nome a este lugar, um herói. - Mas que almirante, que nome! –– Responderam os portugueses, não só com espanto, mas com autoridade surpreendente. - O restaurante chama-se Bis Marques, porque somos dois Marques, meu irmão e eu. Que história é essa de almirante, vê lá se vou deixar um cara que não conheço pendurado na parede?
00
Garotos de Ipanema
E assim descobrimos depois de dez anos que o restaurante não era Bismarck, mas Bis Marques.
***
Voltando ao nosso Lula, ele estava cada dia mais encantado com seu Apolo, o Scheik Espirra era a maravilha de todos os seus pensamentos e o centro de sua vida emocional, mas havia pequeno problema: ele nem desconfiava da existência do Lula. Uma ou duas vezes Lula o abordara com perguntas sobre o trânsito, pedira para ser ajudado a atravessar a rua onde raramente passava qualquer carro, mas ficara nisso. Perante tanta beleza Lula era tímido e assim amargava a impossibilidade de expressar seus sentimentos. Foi então que surgiu a ideia das cartas. Instigado pelo poeta, que afirmava que ele deveria entregar a carta na mão do Sheik e se afastar antes que este pudesse fazer qualquer pergunta, para criar assim o mistério e ampliar as possibilidades da sedução, Lula se sentava numa pequena mesa de apoio no escritório, da qual ele já se apossara como sua, e num papel cor de rosa, cheiroso, com uma bic enfeitada com um leãozinho, tentava escrever a carta redentora. Na mesma hora eu trabalhava nas cartas dos poetas e escritores tentando criar uma sequência e transformá-las em livro.
Max Gonçalves 00
Quando vi o desespero do Lula, que depois de uma semana conseguira escrever apenas cinco linhas após ter rasgado mais da metade dos caríssimos papéis cheirosos, disse, como quem não quer nada, se ele queria ouvir um trecho de uma carta de Neruda a uma morena chilena por quem o poeta se apaixonara perdidamente. O rosto de Lula se iluminou e ele, sorridente de novo, respondeu: - Sou todo ouvidos. Assim li um trecho do poeta Neruda que dizia: “... A angústia de não te ter a meu lado me faz pensar mais em nós dois. É como se, por milagre, pudesse recriar em meu pensamento teu carinho, tuas mãos perdidas por meu corpo e teu beijo barulhento e cheio de sorrisos. Caminho pela beira do mar repetindo teu nome e acreditando que os ventos do sul vão levar meu apelo e que vais escutar esta minha confissão de amor. Um amor feito de esperança e espera, de distância e saudade, mas sempre um amor infinito, sem amarras ou limites, mais que uma paixão, este meu amor virou a minha razão de viver...” Lula se encantou e descaradamente me pediu emprestada a carta dizendo que iria copiá-la para a entregar a seu amado Sheik. - Você não pode fazer isso, – disse eu enfaticamente – inspire-se na carta, use até algumas palavras, mas copiar, não, é roubar inspiração, é contra tudo que defendemos. Um dia te explico o que é direito autoral, agora não, mas prometo corrigir tua carta, vai lá, escreve a tua versão. Depois de três dias sem dormir, trabalhando atordoado para ter tempo de se sentar na mesinha e escrever, recebi a versão Lula, que classifiquei como recado, porque era pequena
00
Garotos de Ipanema
e estava centrada no cheiroso papel cor de rosa. “Para ti, meu soldado, criei a angústia de não te ter a meu lado, mas te garanto que amor de homem é milagre de pensamento e sei como ninguém aonde botar as minhas mãos em teu corpo e nem vais saber se são de homem ou mulher. Tem um poeta que caminha pela praia a repetir o nome da amada, eu não quero nem ir à praia, quero te ter com vento sul ou sem ele. Meu amor não espera, vou logo ao que interessa e não tenho limites e sei lá, amarras, ou amarás. Quero ser teu, meu Sheik, és minha vida com razão.” Apesar de minha insistência, Lula só me deixou corrigir os erros de português e dizia que havia copiado somente as palavras de que ele gostara mais. Todo arrumado e cheiroso, usando uma colônia Coty para homens, foi para a Urca atrás de seu Sheik. Voltou de tarde e me contou que seguira o plano à risca. Entregara a carta, dera um ligeiro sorriso e saíra como uma grande dama rebolando pela calçada de pedrinhas. Durante três dias ele foi para perto do guarda e voltava cabisbaixo, pois este, o guarda, parecia nem conhecê-lo nem se lembrar dele. - Uma segunda carta será a solução! — me disse ele num fim de tarde no escritório. - Bem que o Senhor podia me ler e me emprestar outra desses poetas, e eu adapto pro meu amor. Relutei um pouco, mas acabei cedendo a seus apelos e li um trecho de uma carta de Vinícius para uma deusa baiana, a Jesus, que viria a ser uma de suas esposas no futuro.
Max Gonçalves 00
“Voltei com tua imagem dentro de mim. Recordo teu cheiro e bem querer e sei que estou possuído por teus encantos. Quero te beijar na boca, afagar teus cabelos e me perder em teu corpo. Quero a eternidade em cada momento de nosso amor e quero mais ainda gritar teu nome, dançar pelas ruas, iluminar as praças e, numa valsa sem fim, te possuir devagar e com ferocidade, descobrindo teu balanço e tua cor.” Lula vibrou, era exatamente isso que ele queria dizer ao seu Apolo, esta segunda carta seria o marco do início de seu amor. De novo, parecendo aqueles pais chatos que repetem a mesma coisa cem vezes para os filhos, lembrei a ele que copiar era impossível e bla bla bla... Dois dias depois, dias de trabalho intenso, me mostrou a sua versão e foi logo avisando que eu só poderia corrigir os erros de ortografia, mas jamais mexer no conteúdo do recado. “Voltei a te escrever porque só sobrou teu cheiro da primeira carta. Não me olhas e sei que sabes ler e assim possuído de encanto vou beijar a tua boca e não vou me perder no teu corpo porque sei muito bem fazer o que vais gostar. Não posso afagar teus cabelos porque estão raspados, mas vou segurar tua cabeça e vais te imaginar em meu colo como se fosses um príncipe de cabeleira colorida. Vou acender as luzes da praça e vou te deixar me possuíres bem depressa, quando estiver tocando uma valsa e todos dançando e ninguém olhando para nós. Descobri que despertas uma ferocidade em mim e vou te balançar.” Por mais que eu reclamasse ele terminou com aquele argumento definitivo: - A carta é minha, o Sheik é meu e o senhor não é nem veado para entender essas coisas. Com esses argumentos indiscutíveis, parei de reclamar, com-
00
Garotos de Ipanema
binamos uma nova estratégia. Ele entregaria a carta e pediria a resposta olhando seu Apolo nos olhos. Nada de saídas gloriosas, dessa vez era vai ou racha. Lula voltou estranho. Curioso, tentei abordar o assunto, mas ele se esquivou: - Falamos mais tarde, patrão, foi muito duro o que aconteceu. Esperei a hora certa e lá pela madrugada, as crianças dormindo, uma música de Tom tocando baixinho, a voz da Ellis e eu lendo pela décima vez uma carta da Nora, vinda da Sicília e ainda com cheiro de mar, ele me contou que o nome do guarda é Astrogildo, Astrogildo Simões. - Nome não importa, não é bonito, mas se o físico compensa podes criar um apelido, ou chamá-lo de Sheik Espirra, sempre. - Mas não é só isso, imagina que ele é analfabeto e assim não conseguiu ler a minha primeira carta. - Analfabeto? Guarda e analfabeto? - É, ele decorou as questões do exame, é aquele exame de cruzinhas e assim foi aprovado. - Mas isso não é crime, respondi. - Não, mas o pior é que ele me pediu para ir amanhã à sua casa e ler as cartas para ele. Confesso que estou com medo de sua reação. Se ele tiver veadofobia pode até me dar um tiro. - Perigoso, temos que pensar numa estratégia, vamos deixar para amanhã, vai ter sol e tudo é mais fácil com sol e calor. No outro dia, sob um sol delirante como só existia em Ipanema, com um céu azul de doer nos olhos, nos sentamos no bar da Montenegro e com a assessoria do poetinha e do maestro, encaramos o problema. - É arriscado, falou o maestro.
Max Gonçalves 00
- É engraçado, falou o poetinha. - Vamos nos concentrar e ver o que ele vai fazer. Depois de muita discussão, resolvemos que era necessária uma terceira carta e assim, quando Lula a fosse entregar, iria sugerir que um amigo, um irmão ou uma irmã lessem para ele e fizessem a surpresa. E como seria a terceira carta? - Romântica, falou o maestro. - Sacana, falou o poetinha. - Direta, eu sugeri. Fiquei encarregado de encontrar, nas cartas famosas, uma que servisse de inspiração e fosse ao mesmo tempo romântica, sacana e direta. Depois de uns mergulhos, uns chopes gelados, uns testes de areia para nossas novas amigas, decidimos ir embora. Para quem não sabe o teste de areia consistia em fazer que a candidata a nossos amores se sentasse na areia, sem toalha, e assim quando ela levantava mediamos a circunferência deixada por seu bumbum. Não podia ultrapassar certa medida, porque se isso acontecesse significava bunda mole, tipo gelatina, bonita em pé e se desmancha quando é apertada. Segundo consenso da turma de Ipanema, bunda mole faz barulho na hora do amor e tira qualquer tesão. Inevitavelmente fazíamos o teste em todas as novas conquistas e sempre terminávamos em grandes discussões. - Essa aí está no limite, um balancinho é legal, vocês estão ficando exigentes demais, assim não vamos ter renovação, vamos ficar sempre com as mesmas. Esse era o argumento mais forte. Ficar sempre com as mesmas era um risco impensável, afinal estávamos no pedaço do mundo que tinha mais mulheres bonitas que grão de areia e a
00
Garotos de Ipanema
renovação era obrigatória. Acabávamos aprovando as do limite e até as que passassem um pouco, mas tivessem outras graças aparentes. Enfim, criamos o tipo: - Sempre por baixo. Ou seja, com aquelas só fazíamos amor estilo papai e mamãe para não ter o desprazer do balanço exagerado e dos barulhos de gelatina se desfazendo. Graças a Caetano, que defendia o amor de ladinho, acabamos abrindo uma possibilidade para essa posição, afinal Caetano sabia tudo de posições. Era o nosso equilibrista. Voltei para o escritório, da minha janela acompanhei o final da tarde, o sol se escondendo no mar, não resisti e corri para o Arpoador, onde, em tardes como aquela, terminava o dia com uma ovação ao sol que se perdia numa oração para a felicidade permanente. Depois de muito estudar encontrei uma carta de Chico Buarque dirigida a uma desconhecida com quem ele havia cruzado nas suas caminhadas, e que dizia : “Não diga não, não diga não, não diga não. Tropeço encantado por teu andar, e como um súdito fiel te sigo por qualquer caminho. Não diga não a esta vontade de me enrolar em teu corpo, de te possuir aos poucos e rapidamente, e ainda te sussurrar ao ouvido palavras de futuro. Quero te ter assustada e mulher, confiante e menina e sempre, sempre ouvindo um sim cheio de malícia e cheiro bom, aquele cheiro de amor em paz.” Segundo Chico, esse recado deixado na sua caixa de correio renderá semanas de sexo e terminará com juras de eternidade. Lula gostou. Insistiu em sua adaptação, apesar de que já tinha
Max Gonçalves 00
até abandonado meus princípios e aceitava uma cópia integral para terminar aquela angústia de meu empregado e amigo. E veio a sua versão: “Diga sim, mas diga sim mesmo. Estou tão decidido que não tropeço em nada e não sou súdito de ninguém. Queira você ou não vou te agarrar e possuir como um homem, sem fofoca. E não quero ninguém assustado, afinal é muito bom, eu sei fazer de tudo e cheiro muito bem.” Por mais que eu ponderasse que estava meio direto demais e que faltava poesia, Lula, teimoso, disse de novo que quem conhecia o Astrogildo era ele. Eu era apenas assessor e assessor obedece. Lá se foi Lula para a Urca e voltou bem animado. O Sheik tinha comprado nosso plano e prometeu que esta noite iria pedir à sua irmã Marialva, que morava no Méier e, segundo ele, a mais bonita e inteligente do lugar, para ler as cartas. - Se não for tarde, telefono. Lula, a partir das sete horas, se sentou ao lado do dito telefone e não arredou pé. Às nove e dezessete em ponto o toque redentor. Lula só dizia sim e pediu afobado um lápis ou caneta para anotar um endereço. Rua das Bicas, 109, porta da esquerda. Terminado o telefonema, ele cantava e bailava pela casa e me dizia que o Apolo tinha dito para ele ir a este endereço onde a porta estaria aberta e a promessa de amor pairava no ar. Lula se enfeitou todo. Trocou de camisa umas seis vezes, colocou tanto perfume que o cachorrinho da casa começou a espirrar e partiu glorioso num táxi amarelo rumo ao seu destino.
00
Garotos de Ipanema
Fui dormir tranquilo, afinal nosso plano tinha dado certo. Fui acordado quando raiava o dia por um Lula cabisbaixo, entre chorando e se lamentando, com a camisa fúcsia rasgada no colarinho e um olhar meio perdido. - Mas o que aconteceu, homem? - Patrãozinho, não sei o que fazer, traí os meus princípios, quem sou eu, o que vai ser de mim? Pressenti que se o deixasse continuar eu iria perder as últimas horas de sono numa discussão existencial que não valia a pena, assim fui duro. - Conta logo o que aconteceu, para de veadagem. - Imagina, cheguei lá, tudo escuro, a porta aberta, um apartamento arrumadinho e cheirando bem, fiquei meio perdido na sala, mas vi uma luzinha por baixo de uma das portas e fui para lá. Assim que entrei, umas mão cheirosas me agarraram e fui levado para uma cama grande, cheia de almofadas, e sem entender nada comecei a beijar e ser beijado e fomos tirando a roupa e aí o susto. Não era o Apolo que estava ali, era a Marialva. Tentei reagir, mas foi impossível, o diabo da neguinha era bonita, sabia tudo e assim acabei fazendo aquilo com uma mulher pela primeira vez na minha vida. E gostei, patrãozinho, gostei e fizemos mais e mais e ela já não tinha nem forças para gritar. Quando acalmamos ela me confessou que cobrava 50 reais, mas que se encantara de tal maneira com as minhas cartas que estava me dando de graça e até tinha gozado várias vezes. Confessei que eu era homossexual, ela riu e descaradamente disse que são os melhores. Perguntei pelo Apolo e ela me tirou a esperança: - Ele não gosta de veado, é machão.
Max Gonçalves 00
Quando eu ia saindo, meio atabalhoado e até tropeçando no tapete, aquela mão peluda me agarrou e o machão do Sheik Espirra me obrigou a um boquete inesperado. - Fiquei espiando, agora termina o serviço. E assim Lucio Flavio Guilherme Ror se transformou em bissexual e nunca mais parou de escrever cartas e recados. - Dá sempre certo, — ele me disse — vou ter que deixar de ser seu empregado, virei poeta e letrista. E assim perdi meu Lula e Ipanema ganhou um poeta popular e bissexual.
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
O SILÊNCIO
Eu sabia que tinha chegado o momento de mudar tudo. Aquela hora em que pequenos consertos não vão mais dar jeito na vida. Tudo tinha acontecido tão errado até ali que só uma mudança radical poderia transformar alguma coisa. Separei-me da mulher, mudei de cidade, mudei do Brasil, comecei tudo de novo. Escolhi um lugar onde não havia nenhuma referência, não conhecia pessoas nem espaços que trouxessem qualquer lembrança, enfim, não sabia aonde ir e nem precisava de telefone. Consegui um emprego no qual só precisava trabalhar no computador e, melhor ainda, em casa. Dava atendimento via internet, meu pagamento chegava via internet e meus clientes eram eternos desconhecidos, representados por letras, alguns números e pela sua identificação virtual. Aos poucos descobri na vizinhança onde comer, onde fazer pequenas compras e cada dia caminhava para um norte diferente. Assim fui conhecendo minha geografia. Perto de casa havia um parque à beira do rio, com toda a vida habitual dos parques, atletas amadores, passeadores de cachorros, crianças correndo, mães conversando, namorados namorando, executi-
00
Garotos de Ipanema
vos apressados pelo caminho errado. No verão o parque enchia de gente e barulhos, na primavera também, nos outros tempos era cinza e quieto, ainda bonito, mas descolorido pelo tempo. Emagreci e fiquei bastante saudável, comia pouco até por preguiça e andava muito. Não bebia, não tinha amigos, não tinha surpresas, nem grandes tristezas nem pequenas alegrias, parecia um robô moderno e até pensar tinha ficado no esquecimento. Foi então que comecei a perceber o silêncio. Um dia, de repente, reparei que fazia mais de meses que eu não dizia nenhuma palavra. Até para se fazer compras a palavra ficou inútil. Basta seguir com o carrinho entre as prateleiras, encher o carrinho com as necessidades ou os desejos e depois passar no caixa e pagar. Sem falar. Fiquei até preocupado se tinha desaprendido a falar, mas, ao mesmo tempo, os sons na minha cabeça eram cada vez maiores e mais claros. Parecia que o silêncio externo incentivava os sons internos e, como numa sinfonia egoísta, eu falava comigo mesmo, ouvia e percebia a música com uma clareza estonteante, os sons do rádio ou da TV me dominavam por inteiro, eu entendia melhor tudo que estava em volta de mim e até a leitura tinha significado todo especial. Era lendo que eu conversava com os personagens, ria sem mexer a boca, chorava sem lágrimas e me encantava e desencantava com os cenários descritos, que passei a apreender viva e claramente. Pensei até em começar a adaptar livros para cinema ou tevê de tal maneira eu conseguia, através daquele grande silêncio, perceber o que estava escrito. Comecei a me encantar com esse silêncio e a exercitá-lo sem tréguas. O que eu tinha percebido por acaso tornou-se uma razão de vida.
Max Gonçalves 00
Dono do meu silêncio, eu caminhava pelas ruas ouvindo as conversas com clareza infinita. Bastava seguir duas pessoas falando para, em instantes, por suas entonações, saber quem mentia, quem estava cheio de raiva ou solidão e perceber quem ouvia ou quem só falava. A maioria das pessoas só falava, não ouvia, e compreendi então que eu já tinha sido uma delas, um falador como os outros, que não tem tempo nem vontade de escutar. Falar é um trabalho tão grande que, de fato, torna a função de escutar uma inutilidade. As pessoas falam, não escutam. A percepção desta verdade me confortou muito, mostrou que durante tantos anos de minha vida, como não ouvi, só falei, não pude escolher o caminho certo e sequer pude dar respostas. Reparei que, quando pensamos estar respondendo, apenas falamos expressando nossa vida e não conseguimos perceber que, para responder, temos de expressar e entender a vida de quem pergunta. A mais simples resposta exige, antes de ser emitida, que se conheça muito bem quem pergunta. Até os filhos, as mulheres, os pais. Quando perguntamos, eles respondem a realidade deles e nem nos apercebemos porque, no fundo, queremos, sempre que perguntamos alguma coisa, que os outros concordem com a gente. Se não, ignoramos simplesmente a resposta e a arquivamos nas inutilidades. Existem as perguntas sociais que no fundo são apenas introduções ao inútil absoluto, como saber o nome, onde a pessoa mora, pegar o celular e transformar um ser humano numa referência cheia de números. Alguns, além de telefone, têm rádio, facebook, identificação de sms e mais um sem números de maneiras de alcançá-los, mas quando necessário é como antes, não respondem se não quiserem.
00
Garotos de Ipanema
No meu silêncio imaginei uma forma de contato automático em que a máquina responderia: “Agora ele ou ela não quer falar com você, não incomode.” Seria mais direto e evitaria perda de tempo presente e futura. Podia haver versões sofisticadas como: - Você hoje não é interessante suficiente para mim, quem sabe amanhã, continue tentando, se isto o faz feliz. Enfim começariam a ter sentido todos aqueles números e identificações que são trocados entre sorrisos e promessas. E assim comecei até a contar os dias de silêncio. Como um prisioneiro que conta os dias para a liberdade eu era o oposto, era a liberdade que eu contava e guardava como um bem maior. Descobri nas geografias à beira de minha casa um bar onde não precisava falar. Eles tinham um menu com fotos de drinques, desde o mais elaborado até um copo de água. Não só achei original como me pareceu que faziam aquilo para pessoas como eu, que tinham desaprendido a falar e que não queriam recomeçar. Na verdade eu me sentia até superior aos outros, era uma viagem para meu ego olhar os faladores e cruelmente ter pena deles. Na verdade, eu queria aumentar minha autoestima e me sentir um pouco aquele herói necessário que todos temos de ser para seguir em frente. Sentava em qualquer mesa, apontava meu drinque e vivia o ambiente. A percepção dos ruídos era cada dia mais forte dentro de mim. Instintivamente me aproximava daqueles ruídos interessantes, alguns únicos, e ia vivendo, naquela sinfonia de conversas, as alegrias, as tristezas, os conflitos e até as pequenas felicidades dos faladores em volta. Até o sexo não precisava de palavras. Vislumbrei um clube de lap dance, daqueles que as mulheres vão se despindo aos
Max Gonçalves 00
poucos e os homens vão pagando aos poucos. Tudo leva você a pedir uma dança exclusiva onde você não pode sequer tocar naquela mulher sonhada, que se esfrega em você e te excita para nada, porque se você tocar nela o prêmio é um negão te expulsando do lugar aos pontapés. No meu silêncio percebi que as meninas faziam um negócio paralelo. Na hora da saída escolhiam o seu par, negociavam e iam para o segundo tempo, no qual atendiam a domicílio as necessidades levadas ao extremo pelo primeiro tempo em que você só podia ver. Descobri também que podia definir o preço com um simples sinal e, depois de pago e acertado o negócio, caminhávamos até minha casa. O dinheiro desencadeava nas moças a vontade falar e elas imediatamente começavam a contar histórias. Como eu não respondia, elas falavam mais e mais, se contradiziam porque aceitavam o meu silêncio como uma concordância ou uma reprimenda. Acabavam sempre me dizendo o nome verdadeiro, as que tinham filhos falavam da família, o silêncio lhes dava uma intimidade enorme e até criávamos um elo de felicidade e confiança. Assim comecei a ter amigas naquele lugar e bastava eu chegar na hora certa que elas já vinham para perto de mim e começávamos a nossa noite de prazer. Elas nem reparavam que não sabiam meu nome, mas também para quê? Conheciam meu dinheiro, minha casa, meu jeito de fazer sexo e minha enorme paciência de escutar. Eu não pedia nada e assim me parecia mais e mais com um namorado ou marido ideal, aquele que paga e não pede, sequer reclama, e entra e sai da vida delas como se nunca tivesse existido. Não criava grandes amores, mas também não criava nenhum conflito.
00
Garotos de Ipanema
Por esse tempo descobri na internet que havia grupos de auxílio a quem fala demais. Uma espécie de AA para faladores viciados. Encantei-me com isso e como eles tinham um grupo não longe de minha casa resolvi ir até lá. Não sei por que tomei esta decisão, seria para saber se meu silêncio era a resposta, ou entender por que as pessoas falavam tanto, ou até por que, no meu íntimo, eu começava a ficar amedrontado com aquele silêncio todo. Será que eu ainda estava vivo? Seria necessário falar para provar que se está vivo? Ninguém me chamava pelo nome, o telefone não existia nem tocava, eu apenas tinha certeza de minha existência pelo dinheiro que recebia e pelos meus clientes via internet. Notei que até ali eu não tinha nome, minha identificação era FDE 25, assim eles me acionavam e com a repetição dos problemas alguns até perguntavam pela minha saúde e se estava feliz, falavam do tempo e das banalidades que acabamos confundindo com intimidade. Seriam amigos no mundo virtual. Os exércitos da modernidade nos quais basta um computador para estar vivo. De fato, se não fosse o computador e a internet, eu estaria morto, eu não existiria mais, apesar de não ter sido enterrado e ainda respirar normalmente. Me preparei para a primeira reunião dos faladores. Troquei de roupa umas três vezes e me olhei no espelho. Estava certo de que, se não me vestisse como um falador, eles descobririam logo minha farsa e me expulsariam antes mesmo de começar a sessão. Tinha que me vestir como um falador, parecer um. Deveria levar uma pasta na mão, eu não tinha nem celular, mas eles não poderiam descobrir isso, assim a pasta era ótima, todos os meus objetos de falador contumaz estariam guardados lá. O celular passou a ser um objeto público. As pessoas le-
Max Gonçalves 00
vam no cinto da calça, a maioria na mão, prontas para acionar aquela maquininha infernal. Sem falar, mas enviando textos, as pessoas caminham esbarrando nos outros muito mais que antigamente. Acredito que logo vai ser criado um seguro para esbarrões na rua ou lugares públicos ocasionados por celulares. E existem os equipamentos que você coloca na orelha, como um brinco ou um enfeite de índio, e assim você fala sem precisar usar as mãos e nem sequer olhar para o telefone. Esses são os faladores profissionais. Caminham pelas ruas, elevadores, aeroportos e até restaurantes falando e rindo sozinhos como os macaquinhos do circo. Já encontrei uma vez dois desses faladores que estavam caminhando juntos, mas falando um com o outro através do enfeite da orelha. Tentei entender por que e logo desisti, afinal, aquela não era a minha praia. Cheguei cedo à reunião. Era na entrada de uma escola infantil, na porta da sala havia formulários para serem preenchidos. Aquilo me deu um conforto extraordinário, assim não precisaria dizer meu nome, de onde vim e todas aquelas coisas que se vê no cinema quando os AA se encontram. Preenchi o questionário com cuidado exagerado e quando perguntavam, questão 12, o que eu esperava dos encontros, respondi que queria entender o silêncio. Foram chegando pessoas e, como era de se esperar, todos falavam sem pausas e assim não tiveram tempo de me notar. Apesar de ser uma sala ampla, aberta, sem colunas, eu parecia estar escondido, de tal maneira fui ignorado por aquele grupo. Eles se identificavam por falar sem descanso, não podiam notar o silêncio ou entender o que eu estava fazendo lá.
00
Garotos de Ipanema
A porta da sala se abriu e uma senhora, com jeito de mãe compreensiva, nos convidou a entrar. O barulho continuou lá dentro, as pessoas arrumavam os lugares e já bombardeavam a mãe fictícia com as habituais perguntas inúteis: - Podemos sentar onde queremos? - Podemos mexer na cadeira? Podemos ir ao banheiro durante a sessão? Enfim tudo aquilo que era óbvio, e que meu silêncio já havia respondido, era agora perguntado aos berros, como se quem falasse mais alto merecesse ter resposta primeiro. Finalmente todos instalados a mãe compreensiva começou a falar. - Vocês estão aqui porque vamos, juntos, descobrir como podemos vencer esta compulsão de falar sem parar. Estão aqui porque, de alguma forma, descobriram que esta ansiedade de falar sem parar está prejudicando vocês nos empregos, terminando com os amigos e até colocando casamentos em risco. Falar é uma das grandes virtudes da vida. A possibilidade de nos identificarmos através da palavra nos diferencia dos animais e nos torna únicos no mundo, nos dá a oportunidade de mostrarmos aos outros quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir. A palavra é que vence a solidão, aproxima as pessoas e nos dá individualidade. Sem falar somos apenas uma figura inexpressiva e desconhecida. Somos atores extras, como se estivéssemos na foto da realidade sem uma função específica, só para preencher um lugar. O silêncio é precioso, mas precisa ser conquistado com a palavra, precisa ser entendido pela palavra, e qualquer som com que convivemos deve ter, através de nossa palavra, uma individualidade. Mas exagerar nas palavras acaba tornando banal o que é
Max Gonçalves 00
único, acaba tornando feio o que é bonito e acaba nos diminuindo aos olhos dos outros, quando queremos o contrário. A internet e os emails estão criando o silêncio barulhento. Somos capazes até de gritar através dos sinais escritos, expressamos alegria e tristeza com uma exclamação: – UAU! - e assim vamos horas e horas. - Achar o ponto certo de usar a palavra passou a ser importante demais, por isso vocês estão aqui hoje, reunidos, para dividir experiências e mostrar o que está criando esta aflição em vocês. Vamos combater juntos a ansiedade da fala. O difícil vai ser o início em que vocês têm que escutar uns aos outros e não apenas falar. Vamos tentar, leva tempo, mas dá certo, vocês são minha trigésima segunda turma e até agora perdemos muito poucos dos que aqui vieram, e muitos estão há mais de cinco anos equilibrados e com sucesso. - Cada um de vocês, neste primeiro dia, terá que vir aqui na frente e falar de sua experiência e dos motivos por que estão aqui. Por favor, não devem falar enquanto os outros estão falando, esperem sua hora.” Quando ela terminou, fiquei sem saber o que fazer. Poderia sair logo, não tinha nem vontade nem motivo para ir lá à frente e começar a falar, nem sabia mais como fazer isso. Resolvi ficar e escutar os primeiros faladores, tinha sempre a esperança de não chegar a minha hora e como estava escrito no papel que recebi na entrada, poderia sair a hora que eu quisesse. Reconfortado, voltei a prestar atenção. A primeira a falar foi uma moça de 23 anos que tinha sido mandada embora de seu emprego e perdera o noivo por não conseguir parar de falar. Julgava-se inteligente e capaz, mas reconhecia que quando começava a falar não parava mais. Mesmo sendo
00
Garotos de Ipanema
proibido, dos 14 que estavam na sala apenas eu fiquei em silêncio. Todos falavam ao mesmo tempo com ela e, para desespero da mãe compreensiva, ninguém conseguia escutá-la ou obedecia às regras. Acabei saindo sem ninguém notar e me pergunto até hoje se aquela senhora teria conseguido algum sucesso. Voltei à minha rotina e passei a repetir o de sempre e por um tempo não notei mais o meu silêncio. Tinha se tornado parte de mim e o que antes era uma conquista passou a ser o cotidiano. Um dia o inesperado. Eu estava no bar onde já era uma figura conhecida, parte constante do cenário e todos os que trabalhavam me cumprimentavam rindo, às vezes alguém sentava na minha mesa e falava sem parar. Era como um confessionário de igreja, só não tinha punições nem obrigações. Como eu não respondia eles sentavam e saíam sem pressa e sem sentido. Ela sentou na minha frente. Era bonita, linda, morena e suas mãos tinham uma expressão única, estavam sempre no lugar certo, ela sentou em silêncio e assim ficou todo o tempo. No outro dia voltou, sorria e ficava quieta e em silêncio, como entendendo e respeitando quem eu era. Assim fomos indo, cada dia eu ansiava mais por saber se ela viria ou não. Comecei a chegar mais cedo e sair mais tarde e assim fomos ficando juntos e eu comecei a perceber que estava me apaixonando por aquela moça silenciosa e companheira. Éramos namorados do silêncio, éramos companheiros de pequenas descobertas. Mesmo sem falar já sabíamos o que gostávamos de beber e comer, sabíamos nossas cores prediletas e até o que mais nos encantava quando estávamos juntos. Ela mudou de perfume umas três vezes e de repente, não sei como, descobriu o que eu gostava mais e passou a usá-lo, como uma forma de dizer que queria me agradar.
Max Gonçalves 00
Um dia, como devia ser, saímos juntos e fomos para minha casa, nos amamos sem parar e fomos descobrindo nossos sexos, nossos prazeres, nossas vontades, nossos desejos escondidos. Fomos criando hábitos e rindo sem parar, fomos ficando juntos, mais e mais e apaixonados ficamos dentro de uma rotina. Ela chegava ao final da tarde no bar, nunca vinha direto para minha casa, nunca invadia minha liberdade, nunca criava emoções nem aflições inúteis, chegava na hora, simplesmente, sorria e nos entregávamos um ao outro como se soubéssemos tudo um do outro e acredito que sabíamos, conhecíamos intimamente nosso corpo e sabíamos criar prazer e sexo, inovar nossos desejos e inventar sonhos. Como deveria ser um dia ela não apareceu, simplesmente. Esperei mais uns dias e então compreendi que, sem adeus, até logo ou mesmo um aceno, ela tinha partido como tinha chegado, em silêncio. Como a paixão não tem remédio, comecei a perguntar por ela, tentar saber seu nome, de onde vinha e para onde teria ido. Comecei a falar com todos aqueles que eu conhecia em silêncio e, para minha surpresa, eles nem notaram. Nenhum deles se assustou com minhas palavras ou com a minha voz, era como se durante todos estes anos eu tivesse sido um falador como os outros. Até comprei um telefone na esperança de que ela entrasse no bar e perguntasse por mim. Eles então lhe dariam meu numero e voltaríamos a nos encontrar, só que desta vez no mundo dos faladores, e eu sentia uma vontade imensa de dizer àquela moça adorável o que não consegui com meu silêncio. Queria dizer apenas: - Te amo, fica comigo...
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
MARIANA
O poetinha já tinha partido, viajara para o espaço dos boêmios, daqueles que tinham vivido a vida sem medo, dos que souberam encantar com palavras e amores a passagem pelos lugares bonitos deste mundo. O maestro também viajara afinado, com certeza, afirmando que Nova York era melhor que o Rio de Janeiro e muito pior que o Cantão da Serra, onde plantara seu refúgio à beira da montanha. Ellis e Nara também tinham desaparecido deixando cicatrizes no meu coração, daquelas que não se curam e estão sempre lembrando que estão lá, e até doem às vezes, uma dor feita de lágrimas que pensávamos esquecidas. Ipanema não existia mais. As ruas continuavam lá, ainda era um lugar com alguns encantamentos, mas o cheiro de mar, as manhãs, a preguiça de pequena cidade, as casas com cara de descanso e luz, os bares que mais pareciam uma pintura, com os garçons informados e irreverentes, tinham virado foto e desenho de cartunista. Faltavam as esquinas e as moças douradas e a irresponsabilidade de todo o dia, sem exceção, ser véspera de Sábado e o Domingo que não chegava nunca.
00
Garotos de Ipanema
Era tempo de modernidades, facebooks, celulares, internets, blogs, sites, enfim um mundo virtual tão imenso que pouco ou quase nada sobrava para o mundo real. As próprias pessoas não eram mais o que eram, mas o que pareciam ser, comparadas com as personalidades que vendiam nas comunidades sociais. Todos podiam se apresentar ao mundo através de uma informação na qual expunham a personalidade que idealizavam ter, misturada com algumas observações banais e centenas de fotos escolhidas para parecerem muito mais jovens e bonitas que a realidade fria do espelho. Minha primeira impressão de Mariana aconteceu assim, eu a tinha conhecido pelos lugares da ilha, a ilha do sul onde construíra meu abrigo, à beira da lagoa, e o enchera de lembranças e saudades, o eterno piano, os grandes espaços, os quadros, os livros, o silêncio, a independência de ir e vir. Estava separado há quase um ano de um casamento longo que me deixara umas poucas cicatrizes, um livro de fotos e desenhos, diário de um grande amor. No inventário final ela levara os móveis, talheres, taças e jarras, porta retratos e CDs, os sofás e bancos Louis Vuitton, alguns tapetes persas, toalhas antigas que vinham de gerações em minha família e muitas coisas mais que não falavam ao coração. Me deixara com a sensação de que havíamos ficado juntos tempo demais, que acabáramos perdendo a ternura, e sem ela, a felicidade. No meu abrigo o vento fazia barulho, mexia as árvores, esfriava a beira da lagoa, mudava o cenário. Os ventos de inverno desfolhavam as árvores e enchiam de pedaços de flor o meu jardim. Os ventos de verão traziam promessa de sol ou levavam o sol embora, eram quentes como as lembranças da paixão.
Max Gonçalves 00
Ao contrário do que suspeitavam as notícias, eu ficava muito sozinho por aqui, minha filha era a presença constante, com seu sorriso, seu carinho. Quando saía para sua vida me deixava um vazio como se a cada minuto eu pudesse compensar os tempos distantes, quando não pude acompanhar todo o seu crescimento de mulher. Mariana me encantara à primeira vez pela sua identificação no Facebook. Ela dizia: “A vida é muito curta para acordar com arrependimentos. Ame as pessoas que te tratem bem... Beije devagar. Perdoe rápido ....” Sempre acreditei em beijos devagar, aqueles que vamos conquistando com sabedoria e amor e que vamos transformando numa parte delicada de nossa vida. Amor sempre tem que ter delicadeza, mesmo na ânsia da paixão, rasgando, mordendo, se agarrando e se soltando, a delicadeza é fundamental, sem ela o amor perde a razão, perde o futuro e dá o gosto amargo da derrota. E perdoar é fundamental. Lembro de uma vez, ainda na sempre azulada e cheirosa Ipanema, tínhamos chegado de manhã em casa, Ellis tinha estreado um novo show onde se apresentava vestida de Carlitos e cantava O Equilibrista. Sempre que eu via essa cena, sentia pequenas lágrimas se formando, pressentia que começava a existir um adeus em nossas vidas e me perguntava: - Por quê? Afinal, andávamos sempre juntos, o tempo conspirava com a gente e podíamos misturar-nos, mesmo vivendo realidades diferentes. O piano era nosso principal ponto de encontro e quando nos descobríamos, mesmo de ressaca brava, tentávamos no-
00
Garotos de Ipanema
tas e arranjos novos. Assim foi com O Equilibrista e por isso ainda mais me impressionavam aquelas notas, os sons esticados, uma forma de lamento que acabou existindo, e como tudo se fechava naquela máscara de Carlitos, o palhaço triste da realidade. Numa dessas voltas, mergulhada já num lado escuro de sua vida, que nenhum amor podia salvar, ela me perguntou: - E se um dia você não me perdoar tudo que te arrasto a fazer, meus maus humores, se você não me perdoar, o que vai acontecer? Falei então para ela que o amor e o perdão caminham juntos e que quem ama viver perdoa quase tudo, tinha sido assim a minha vida inteira, perdoar tinha o sabor especial de deixar a alma leve e o pensamento livre e que ficávamos mais jovens e bonitos depois de um perdão. Mariana tinha humores fortes. Apesar de seu corpo bonito dar uma sensação de fragilidade ela precisava ter a palavra final e, como tinha escrito no Facebook, acabava por perdoar. Me encantava assim mesmo, era feita de durezas de independência, escondia a ternura e o carinho e precisava muito de amor . Possuía pernas encantadoras, os músculos levemente desenhados e o movimento que faziam quando ela passava era sedutor. Os decotes generosos deixavam adivinhar pequenos seios, daqueles que Neruda dizia caber na palma da mão e que você podia escolher — guardá-los para sempre ou admirá-los em silêncio. Por Mariana acabei lembrando uma crise do poetinha. Uma manhã me telefonou impositivo e direto mandando, não pedindo, que fosse já para o bar da Montenegro. - Mas eles não servem café da manhã, — tentei responder, para esticar a preguiça.
Max Gonçalves 00
- Quem toma café da manhã é frouxo, homem bebe e intelectual que se preza ainda não dormiu. Eram tantas afirmativas que senti logo que se tratava de uma crise pesada. Apressei-me a ir para nosso templo de criação, como Tom chamava o bar, quando se sentava na mesa da esquina. Cheguei logo, mas já estavam lá o maestro, a Cybele do quarteto em Cy, com cara e roupa de quem ainda não tinha dormido, até o Ronniequito de terno para ir para seu emprego na Globo. O poetinha foi direto ao assunto. - Meus amigos, preciso de vocês para resolvermos uma questão, necessitava da opinião de uma mulher, chamei a Cy, ela entende de mulher. Ficamos todos meio surpresos, o poetinha era o homem das respostas, não perguntava nunca, respondia sempre, aquela situação era única, ele perguntando muito sério. É sobre amor e nada melhor do que juntar um time de pessoas experientes como eu, tinha que ser porque no mínimo não conseguira alguma coisa que queria ou tinha levado um fora bravo, coisa rara. - Conta logo o que aconteceu, parece até filme de suspense. - Vamos com calma, quero que vocês entendam a resposta que estou procurando. A questão é entender o pré-amor. Ficamos todos espantados. - O que é isso, poetinha, o que é pré-amor? - Tá aí, vocês sempre ansiosos e não entendem nada. Deixa-me explicar, sem cortes e sem avanços, fiquem calados até eu terminar e depois falem o que quiserem, mas tentem escutar. E assim, ouvimos, entre espantados, crentes, descrentes, e até, em alguns momentos aterrorizados, o que vinha a ser pré-amor.
00
Garotos de Ipanema
- Pré-amor, minha gente, é quando começamos a ficar enfeitiçados, quando o coração bate mais forte por aquela mulher que apareceu de repente na nossa vida, tem que ser mulher inesperada e por um acaso absoluto. Não pode existir nada antes, ela tem que ter aparecido como se viesse de lugar nenhum e num tempo improvável. Tem que ser feita de surpresas, ter corpo bonito, sem ser exagerado, aliás não pode ser exagerada em nada, tem que ter até umas crises de humor e não saber direito o que sente por você. - Enfim, tem que ser a quase mulher amada e você tem que estar completamente despreparado para ela. Entendam, não pode ser a mulher dos sonhos, aquela musa inspiradora, aquela que estava escrito que será tua mesmo que o destino a leve para longe. - Precisamos pensar o que fazer com uma mulher assim, isso acontece muito na vida dos outros, mas na nossa só temos pensado e escrito no pós-amor, naquilo tudo que a mulher abandonada significou, na tristeza da ausência, mas nunca escrevemos sobre a quase presença, o quase amor, aquela sensação de que pode ser, mas também jamais será. - Vocês já repararam que comemoramos só as separações? Que nos juntamos para o luto, mas jamais fizemos uma festa de pré-amor? Olhei para os outros e vi que todos estávamos muito espantados para entender o que o poetinha estava dizendo, queríamos logo que ele chegasse no final, que desse o exemplo prático, que contasse por que precisava tanto de companhia naquela hora. Falei: - Mas a descrição que você fez é a da paixão, lembra que todas as paixões nascem do acaso ? Qual é a diferença? E veio a explicação.
Max Gonçalves 00
- O pré-amor vem antes da paixão, ele acontece no segredo das sensações, você nem nota e de repente só pensa nela, não quer acreditar e vai até tentando se apaixonar por outras, mas está lá, como arma secreta te atacando quando você está mais indefeso, é o amor que ainda vai ser ou que nunca será. - Pensem no seguinte: o que fazer com o coração quando ele te leva para essa mulher? Me aconteceu ontem de manhã cedo, num colégio de meninas, todas de uniforme, e o Max estava comigo, nem notou e passei o dia em angústia e sem entender. Aliás, foi crescendo sem eu desconfiar, oculto, típico pré-amor. Me lembrei então do acontecido. Não tinha sido ontem, mas Vinícius era assim, tudo era ontem ou amanhã, afinal a semana era feita da véspera de sábado, logo todos os dias eram ontem ou amanhã. Fora alguns dias atrás, tínhamos virado a noite pelos bares de Copacabana, terminado no Rond Point com a Dolores Duran, e amanhecia o dia. Encontramos um vendedor com uma cestinha e cinco fofos cachorrinhos recém-nascidos. Ele nos parou e ofereceu um. O poetinha, afinal estávamos com toda a bebida da noite e os encantos da madrugada na cabeça, comprou todos eles. Quando entramos no carro, eu tinha um conversível americano que jamais fechava a capota, mesmo quando chovia, perguntei a ele: - O que fazer com isso? Não temos lugar para eles, nem tempo, nem empregados. Se eu entrar com um que seja, a Ellis vai me responsabilizar pela crise que nossa Betinha - uma Cocker dourada muito ciumenta que tínhamos em casa - vai ter. - Já sei, disse o poeta, vamos para a porta do colégio das freiras no Arpoador e damos para as meninas que estão che-
00
Garotos de Ipanema
gando. Assim, ao mesmo tempo vemos o mais bonito nascer do sol de Ipanema, nos livramos dos cachorrinhos, e ainda admiramos aquelas meninas bonitas e vamos dormir sonhando com elas. Dormir de dia só se tiver muito sonho e muita fantasia, senão vira pesadelo. Assim fomos para a porta do colégio e antes resolvemos batizar e dar nome aos bichinhos. Viraram Rubem, Braga, Tom, Marília e Nara. Na porta do colégio as meninas vieram correndo, encantavam-se com os cachorrinhos e assim, escolhendo a dedo as que votamos mais bonitas, entregamos quatro deles e guardamos um para se, de repente, surgisse uma bela perdida. Em instantes uma madre furiosa nos abordou no carro e de dedo em riste ameaçou chamar a polícia e nos prender. “Como nos atrevíamos a fazer isso na porta do colégio?” No meio da bronca violenta ela reconheceu o poeta. - Você é o Vinícius de Moraes? O poeta, tímido e amedrontado com tudo, respondeu que sim, que fora sem má intenção, era para proteger os bichinhos e garantir o futuro deles, afinal eram meninas ricas e de bom gosto. A madre imediatamente falou: - Guardo os cachorrinhos, mas o senhor tem de entrar agora e dizer umas palavras às meninas do último ano, a aula de português é a primeira e assim teremos o senhor em pessoa falando com elas, e olhe que estudamos todos os seus textos. O poeta engasgou, entre a bebedeira, a ressaca e a noite não dormida ficou estarrecido com o convite. Me olhou incrédulo e falei: - É ultimo ano, já são meninas quase mulheres, tem até noivas no meio.
Max Gonçalves 00
Isso, e a presença assustadora da madre nos olhando com ar sério de quem guarda os segredos do céu, convenceram-no a entrar e afrontar o inesperado Entramos na sala de aula e para meu espanto as janelas grandes, iluminadas e sem cortina davam para a praia. Aquele mar enorme entrando e trazendo consigo o azul do céu. Dava até para ver os biquínis coloridos e os corpos cheios de graça. Como elas conseguiam estudar naquele cenário me parecia impossível. Talvez por isso fossem só mulheres, homem teria fugido antes da primeira aula. O poeta fez questão de me levar e disse que se não ficasse a seu lado ele não subiria e pronto. Obrigado, segui em frente e estava lá, diante de todas aquelas quase mulheres, vestidas de azul e branco, atentas e curiosas. Éramos os invasores, pessoas vindas de um mundo que por certo não era o delas. Uma salva de palmas nos acolheu, o poetinha agradeceu e perguntou à madre se não tinha um uísque para ajudar. Todos riram, pensaram ser uma brincadeira, só eu sabia o quanto de verdade tinha naquilo, o último já tinha sido tomado há mais de três horas e começava a ficar perigoso. Aí ele falou, misturou poesia com histórias, de tempos em tempos dizia: - O Max aqui a meu lado pode confirmar que é verdade. E eu confirmava tudo, ansioso para acabar aquele encontro porque a qualquer momento podia virar escândalo. No final me deu a palavra: - Diga alguma coisa, afinal você também merece. Merece o quê? Pensei. Mas falei. Contei passagens de nossa história tão grande e como podia existir amor em tudo, falei dos cachorrinhos e de que elas estavam deixando de ser meninas para sempre. O sonho da boneca tinha acabado e agora era o desafio de serem mulheres.
00
Garotos de Ipanema
Acabamos tomando todo o tempo de duas aulas e todos pareciam felizes. Quando nos despedimos a madre disse que podíamos responder a perguntas e aí elas começaram. Eram perguntas sobre tudo, sobre os poemas, as músicas, as mulheres, elas pareciam conhecer a vida do poeta de cor e sabiam de todas as fofocas daquela Ipanema encantada. Antes de sairmos, as meninas, porque já era recreio, vieram falar sem a presença aterradora da madre e assim rolaram olhares, afagos da alma e muita brincadeira. Uma delas não largava o poeta, era bonita, mais para mulher que para menina e senti no ar que fascinava mais que as outras. Finalmente partimos, sem os cachorrinhos e cheios de encanto, o poetinha silencioso foi para casa, na Nascimento Silva, deu um até mais e senti alguma coisa, mas era dia, e eu estava sem a noite anterior e me fui para a cama recuperar aquelas horas, afinal amanhã seria véspera de sábado e tudo ia começar de novo. Voltando à nossa reunião o poeta, solene, repetiu: - O Max assistiu a minha aula no colégio e quando eu ia saindo, comportado, com ar e andar de professor, ela apareceu. Me olhou nos olhos e disse que não passava um dia sem ler meus livros. Imaginava-se acarinhando meus cabelos brancos, queria ficar silenciosa a meu lado e me ver escrever todas essas palavras que, juntas, viravam poesia e bonita. Passamos a nos encontrar, eu me sentia estranho, ela era de um mundo que não tinha porta dos fundos, não tinha saída e eu fiquei embaraçado e confuso. Aí descobri que isso é pré-amor e preciso de vocês para definir aonde vamos e como se comportar nesta hora. Cy, mulher e direta, perguntou logo.
Max Gonçalves 00
- Quantos anos ela tem? - Ora, Cy, idade só serve para carteira de identidade, para o amor o que conta são outras coisas, um mundo de pequenas coisas que acabam formando um universo de presença, de carinhos, de saudades. Não perguntei isso, é uma mulher meio menina ou uma menina meio mulher. - E por que pré-amor? Você está ou não está apaixonado por ela? - É isso aí, ele respondeu, tem horas que estou muito apaixonado, tem horas que não, tem horas que me pergunto se ela sente paixão ou admiração, não sei o que dizer nem para onde ir. Outra qualquer estaria cavalgando as noites a meu lado, invadindo meus lugares e descobrindo que a vida é feita de certezas que viram dúvidas e não de dúvidas que viram certezas. - Então pré-amor é isso: uma dúvida que pode nunca virar certeza? - É, talvez, — ele falou — e que fazer com isso? Discutimos até o sol esquentar e começarem a chegar os chopes dourados e Ipanema acordar de novo para um dia de praia. Decidimos então fazer uma festa de pré-amor e convidar a moça menina ou menina moça que ainda, para alegria de todos, se chamava Glória. Assim, para a festa existir, tínhamos que antes garantir a Glória, sem ela não haveria pré-amor e terminaríamos fazendo as habituais festas de adeus. Demos uma semana ao poeta para convencer a Glória e combinamos com o garçom Eustáquio que a festa devia começar perto do pôr do sol e que ele tinha que levar mesas, cadeiras, bebidas e pequenas comidinhas para o calçadão do Arpoador, único lugar onde a festa teria razão de existir.
00
Garotos de Ipanema
Depois de muito convencimento, rolou um dinheirinho maior e ficou tudo acertado. Faltava apenas a Glória. Voltei para minha vida, sabia que tinha de partir e deixar a companhia encantada de Ellis, o mundo escuro me fazia mal, me deprimia, tirava de dentro de mim todas as forças de que eu precisava para viver e para amar. Assim nos separamos, ela me levou pela mão para seu show e foi cantando cheia de uma emoção nova, sem aviso cantou Atrás da Porta de Chico e saí cambaleando de tristeza pela noite. As lágrimas vinham sem querer, a saudade já era absurda, mas quem sabe, assim, talvez nos reencontrássemos de novo num mundo claro, sem os mergulhos imensos no escuro da vida. Passei a tropeçar pela minha realidade, meio sem rumo me entreguei ao trabalho e tentava esquecer, ou melhor, não pensar. Essa fuga do artista sempre me assustara. A vida inteira tinha convivido com isso. Esses mergulhos numa escuridão quase sem volta, esses momentos em que o riso e a dor eram uma coisa só, me tiravam de qualquer equilíbrio e me diziam que era tempo de partir. Tínhamos grande intimidade, éramos amigos além de amores, falávamos muito, trocávamos segredos, risos e lágrimas, a música era uma constante. Brincávamos com os sons, inventávamos notas, andávamos de mãos dadas pela rua e não tínhamos medo de nada. Por tudo isso aqueles momentos quase sem volta, num mundo artificial onde a realidade era levada ao extremo e o corpo pagava um preço grande demais, me faziam sentir numa prisão, como se o pesadelo das torturas e do passado voltassem a assustar.
Max Gonçalves 00
Hoje todas essas saudades existem dentro de mim, às vezes um pequeno som, uma canção, uma lembrança me traz aquela lágrima que não aparece, mas que passeia pelos olhos. Me pergunto até se este presente tão cheio de informação, com todos ao alcance de um clique, não acaba apagando a realidade, criando saídas e fazendo do amor um produto de consumo, como sapatos e bolsas, uma vaidade a mais. Quase esqueci a festa do pré-amor e fui lembrado por um telefonema matinal dizendo que a Glória finalmente tinha aceitado. Com a Glória garantida a festa era inevitável. O dia estava iluminado. Feito de presente e em homenagem à Glória. O poetinha telefonou cedo e declarou que a tarde seria feriado para todos e devíamos nos encontrar para umas primeiras bebidinhas e uma conversa franca sobre o futuro dos pré-amores. Era uma tarde cheia de preguiça e as caipirinhas já tinham chegado. Escondi a tristeza, não era afinal todo o dia que encontrávamos a Glória e logo entramos direto no assunto: - Já começo a entender o pré-amor, — disse o poetinha, — é um sentimento assim como quando você sabe que vem uma gripe e ainda não tem nada, é a sensação de que apesar de tudo, de todas as diferenças e do inusitado, o amor pode vencer, a Glória virar poesia e realidade. Todos concordamos e a prova final seria aquela tarde. A Glória ainda era um mistério absoluto. Sempre vestida de uniforme branco e azul, as meias altas, a blusa fechada, segundo Vinícius o símbolo perfeito da mulher casta e pura, quase uma heroína de Nelson Rodrigues sem as fatalidades delas. Senti que ele tinha até medo de entrar nesse mundo já que todas as outras que se tornaram amores eram mulheres, com M maiúsculo, com passados e histórias de lágrimas e sorri-
00
Garotos de Ipanema
sos, corpo chegado a um carinho masculino, experientes nos acontecimentos da paixão. Insistimos que pré-amor era uma condição passageira, que tinha de ser rápida e não admitia histórias, nem discussões. Aquela tarde era o limite, depois do pôr do sol ou a Glória virava amor ou virava esquecimento. Todos de acordo passamos a esperar e soubemos que a Glória viria nos encontrar ali, no barzinho. Era para ter o primeiro choque com a realidade. Dali seguiríamos em procissão para a festa do final do dia. Nino, o chef famoso, que tinha até um restaurante com seu nome e era um dos nossos, já tinha ido para o Arpoador para supervisionar as mesas, os arranjos de flores e as comidinhas. Toquinho iria tocar violão e assim o som estava sendo instalado para o poeta fazer um concerto especial dedicado à sua Glória. Até as meninas do quarteto em Cy viriam para fazer vocal. Enfim era Vinícius, com todas as suas seduções e ainda apoiado pelos amigos. O azul começava a mudar de tonalidade quando nós todos, depois de uma tarde de sorrisos e caipiras, já tínhamos iniciado a vodka e o uísque, e foi nessa hora que vimos entrar aquela deusa pelo bar. Seria essa a Glória? Ela vinha direto para nossa mesa, balançando um corpo perfeito, num vestido justinho que deixava a gente adivinhar quase tudo, cor de bronze, o cabelo indeciso entre o louro e o moreno dava aquele toque de classe. O poeta disse não, essa não é a minha Glória. Quem seria? Ela se chegou, sem medo, afinal estavam ali alguns dos boêmios mais famosos de Ipanema e aquela segurança toda mostrava uma mulher extraordinária, resolvida, sem nenhuma frescuragem.
Max Gonçalves 00
Delicada, disse um oi para todos nós e antes de falar pediu uma cadeira para sentar. Estávamos tão estarrecidos que tínhamos esquecido a boa educação e foi ela falar e logo nos levantamos todos, tropeçando uns nos outros, como garotos que encontram a primeira mulher bonita. Ela riu, outra maravilha o seu riso, e se sentou ao lado do poetinha e começou a falar com aquele tom de voz de mulher encantada, sem agudos, sem reticências, sem balançar a cabeça ou mexer as mãos. Falar simplesmente. - Me chamo Patrícia, sou a mãe da Glória, ela me disse do convite e resolvi vir também, somos muito amigas e ela pode se atrasar porque tem aula de francês de tarde, mas deve estar chegando. Vocês não se importam? Foi o não mais sonoro que se ouviu naquele bar, uníssono, cheio, um não para ninguém botar defeito. De imediato começaram os jogos da sedução. Todos queriam falar ao mesmo tempo, era tanto charme que o garçom Fagundes coçava o bigode e finalmente quando alguém pediu champanhe ele, embasbacado, tropeçou, engasgou de vez e disse baixinho que ia tentar. Ninguém reparou numa menina bonita, vestida de minissaia jeans, pernas queimadas já prometendo que seria uma grande mulher, blusa decotada e um sorriso de esperança. Chegou à mesa na hora em que o poetinha recitava um de seus bestsellers para a sua mãe. Foi uma Glória esquecida que disse: – Olá. Olhamos para ela já com ares paternais e a sentamos em nosso meio. O poeta tinha de um lado a Glória e do outro a Patrícia e caminhando abraçado com as duas fez o trajeto até o Arpoador onde curtimos um dos mais gloriosos pôr de
00
Garotos de Ipanema
sol de Ipanema, ao som de Toquinho, com as comidinhas e as bênçãos de todos, e uma nova musa em Ipanema – Patrícia, a mãe da Glória. Assim nunca mais se falou de pré-amor, as dúvidas existenciais tinham morrido naquele fim de tarde e Glória, por certo, amargava sua primeira decepção amorosa. Entre a menina que estava sendo mulher e a mulher que jamais seria menina, Ipanema ficou com a mãe e viramos pais da Glória e não mais enamorados pela Glória. A Mariana da minha história não era um pré-amor, nem tinha mãe chamada Patrícia, mas assumia, às vezes, um jeito de menina que amedrontava, que lembrava as indecisões da paixão e me transportava àquele tempo em que amor era discutido em bares, que poesia era profissão e que saudade trazia lágrimas. Era mais, muito mais Patrícia que Glória, mas às vezes escorregava para aquele ar infantil, de menina bem comportada, que age sempre certo e, com um olhar que franzia os cantos do olho claro, condenava o que estávamos fazendo e um dedinho irreverente ditava regras e me afastava de seu carinho. No entanto ela, na sua existência virtual, falara de beijos demorados e perdão, coisa de mulher, coisa de Patrícia, jamais coisas da Glória. E ainda falava de acordar sem arrependimentos, assim senti, graças ao mundo virtual, aos facebooks, aos sites, que com tudo isso, mais os celulares e a internet, jamais iria existir a dúvida do pré-amor nos dias de hoje e jamais uma Glória poderia substituir uma Patrícia. E nenhuma Glória, daquelas que enfeitam a vida poderia ser melhor que Mariana.Como dizia o poeta, mulher só existe uma, aquela que ocupa teus pensamentos. Oxalá!
Max Gonรงalves 00
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
ACASO
Aconteceu. Depois da separação a casa na beira do lago tinha um ar totalmente diferente. Não era mais o ponto de retorno e o resultado de um projeto que eu tinha criado para viver o grande amor. Para, de forma silenciosa, construir um tempo de sol e primavera com a mulher que eu amava tanto. A casa não guardava mais os risos e as histórias do passado. As dores iam se aquietando e o que antes era silêncio virou festa. Os amigos voltavam, era como se de repente a liberdade tivesse retornado e as comemorações não podiam parar. Entravam pela minha vida pessoas novas. Mulheres, cada vez mais mulheres, meninas querendo ser mulheres, amigos trazendo como troféus aquelas conquistas e, bem intencionados, me dando de presente peitos e bundas estranhos, sem perguntar sequer se eu gostava ou não. Mas era parte da festa da liberdade mostrar que não havia tristezas nem remorsos que pudessem resistir àquilo tudo. E as variantes eram fantásticas. Uma feijoada com casais e umas convidadas intelectuais, cheias de boa intenção, fazendo questão de mostrar a inteligência antes dos peitos. Um passeio de barco com meninas de programa que vinham pela festa,
00
Garotos de Ipanema
pelo dinheiro e pelo segredo, porque afinal esta era uma ilha e nós já as conhecíamos todas de outros lugares. Desde a academia de ginástica até a balada barulhenta elas estavam sempre lá. Juravam que nunca tinham feito aquilo, mas afinal as bolsinhas de marca, os sapatinhos novos, os vestidos atraentes eram cada vez mais caros. Faziam questão de afirmar que só estavam ali porque era com pessoas como nós e que era a primeira vez. Com champanhe e muita alegria comemorávamos esse batismo e, apesar de ainda estarmos na primavera, fazíamos todos os dias serem verão e, ainda por cima, parecerem sábado. Meu irmão, o poetinha Vinícius, devia estar se remexendo na tumba arrependido de ter bebido tanto e não ter esperado esta minha separação. Mas não podia ter remorsos, me lembro de quando ele se separou da Jesus em Salvador. Jesus era uma mulata de um metro e oitenta, tudo certo, cheirando a festa, sempre sorridente, tão generosa que sempre tinha uma parte da roupa caindo, ou era a blusa, e aí aparecia um peito todo torneado e da mesma cor dourada de seu corpo, ou o short curtinho que ia descendo e quase revelando a bunda mais famosa da Bahia. Tinha sido o oitavo casamento do poeta e como sempre ele jurara a todos nós que seria o último. - Casar nunca mais! - ele repetia. Aprendi com todas que a última tem que vir de nossas origens e nossas origens são africanas. Uma tarde, lá por Itapoã, depois de uma praia de sol e muita caipirinha, quando ia anoitecendo, Jesus me pegou pela mão e, como se fosse o momento mais importante de nossas vidas, perto de um daqueles coqueiros que só crescem na Bahia, tirou o quase fio dental e mostrou uma pequena tatuagem que
Max Gonçalves 00
acabara de fazer. Ah, esqueci-me de contar, Jesus tinha um Jesus tatuado na bunda esquerda, não era grande, nem tinha cara de sofrimento, claro que não podia ter, estando naquele lugar, mas parecia com os jesuses dos santinhos, apenas sorridente, como dizendo que afinal tudo tinha valido a pena para terminar naquele lugar sagrado, bunda de mulata baiana. Pois é, ela solenemente me mostrou em primeira mão que no lugar mais oculto daquela bunda maravilhosa ela havia mudado o nome de Jesus e escrito letra a letra o novo nome dele. Vinícius. Mas mesmo assim, tendo substituído Jesus no paraíso e tudo, chegando a hora, o poeta se separou e me intimou a ir para perto dele. - Só você pode me entender, você já passou por isso, no final a culpa é nossa, nos entregamos por inteiro e depois que elas levaram tudo, temos que nos reconstruir. Lá fui eu para Itapoã, comer caranguejo e acarajé, beber de tarde, de manhã, de noite e de madrugada toda a amargura da separação e fazer as festas necessárias para afugentar a tristeza. As festas tinham que ter música, poesia, putas, mulheres sérias e as candidatas a nova esposa. Como eu tinha me separado também, viramos mercadoria dupla e não existe festa sem amigos. O melhor amigo tem que estar próximo. Afinal ele era aquele que a mulher casada, mesmo sem gostar, tem de aceitar ter perto do marido, afinal é o melhor amigo dele, mas a esposa torce para que ele quebre a perna ou pegue febre alta ou ainda um feitiço qualquer a fim de não estar disponível para as farras proibidas e perigosas. E tínhamos ainda o nosso segredo de guerra. Quando a festa não engrenava ou as mulheres ficavam difíceis, fazendo aquele
00
Garotos de Ipanema
ar doce cheio de promessas, mas dizendo não, no final trazíamos Dorival Caymmi e aí tudo mudava. O velho com aquele vozeirão, a seriedade de um só casamento e contando que só tivera uma única mulher na vida, a sua mulher, e entoando “Marina morena Marina...”, elas amoleciam, acreditavam em nós e conseguíamos manter mais uma noite com uma princesa na cama e acordar acompanhados, o que era de lei. “Homem que se separa e acorda sozinho está amargando desgraça e envergonhando a raça”, palavras do poeta ditas em voz alta e com um olhar de rancor, quase como cachorro de mau humor. E o luto da separação tinha solenidades e acontecimentos obrigatórios. Era quase como a abertura do parlamento inglês. Se todos os passos não fossem seguidos corretamente, o luto não valia. Assim tínhamos a obrigatoriedade de três grandes bebedeiras. A primeira era a da angústia e da incompreensão, durava de dois a três dias e largávamos a falar mal dela, só víamos defeitos naquela mulher e deixávamos o rancor e a raiva dominarem. - Imagina só que me casei com isso... - E por aí ia a lista de críticas, maledicências e até palavras de baixo calão. A segunda durava mais, podia durar até quatro dias e era a da saudade. Voltava o coração a comandar e as palavras se adoçavam, os gestos eram mais contidos, a música mais triste e só lembrávamos os grandes momentos. Até dávamos umas gargalhadas inesperadas, quando as recordações ajudavam, e até falávamos de sexo com carinho. Muitas vezes uma lágrima presa se desprendia e chorávamos a mulher perdida. A bunda voltava a ser bonita, a celulite era esquecida, os peitos inigualáveis e perdoávamos todos os seus atos de bruxaria. Era uma
Max Gonçalves 00
bebedeira regada a Chico Buarque e Maria Betânia e o orgulho não existia mais. Acabávamos fazendo umas poesias e se havia músico por perto, virava canção e até podia acabar cantada no Brasil inteiro. Dividíamos a nossa saudade com o mundo e assim enterrávamos a distância. Essa bebedeira é uma época de muitas mulheres. Elas gostam de homem perdido, curtindo grande amor e aceitando de coração aberto que macho que é macho tem saudade de mulher. Até as mulheres pagas cobravam menos neste período, davam abatimento para levantar o coração e, quando surgiam as poesias e as músicas, se ofereciam de graça pelo prazer da eternidade. A terceira bebedeira era a do esquecimento, essa era em tom de balada e já acontecia quando o coração começava a se apaixonar de novo. O poetinha me chamava de barão, dizia que eu não perdia a classe nunca e assim, luto que se preza tinha que ter um baderneiro perto, daqueles que dizem palavrão, passam a mão na bunda das mulheres e até discutem preço com puta, e não respeitam nem mulher casada ou acompanhada, mesmo se bem acompanhada. Depois dessa vinha a fase do amor, voltavam os sorrisos, os telefonemas apaixonados, a escolha ficava difícil entre as mulheres que já tinham vaga no coração e as inesperadas que apareciam de repente para tornar a escolha mais difícil. Mas como tudo que é natural acabávamos entregando o coração a uma delas, nos escondíamos das outras e quando notávamos estávamos vivendo um grande amor. A vida passava a ter sentido, os dias eram mais azuis, o tempo passava depressa e achávamos graça até em piada velha, daquelas que já tínhamos ouvido mais de 863 vezes.
00
Garotos de Ipanema
Não reclamávamos dos serviços e até achávamos que os baianos eram rápidos. Fila de banco era como entrada para show de Caetano, todo o mundo rindo. E começava tudo de novo, dores trocadas por amores até outro ciclo do adeus. Sabíamos que um dia iria aparecer a mulher ideal, aquela que nunca mais deixaria a solidão e a dor atormentarem o coração e nos tornaríamos todos iguais a Dorival Caymmi, homens de uma mulher só, em nosso caso, a última. Mas vamos voltar à minha história. Como o poetinha já tinha partido para outra, eram amigos novos que faziam as solenidades necessárias. As bebedeiras eram substituídas por jantares sofisticados, almoços ao cair da tarde, passeios de barco em tardes de sol. E todo dia apareciam programas e mulheres, algumas interessantes, outras menos interessantes, eventualmente uma chata - ninguém escapa - mas eram mulheres e mereciam nosso respeito, afeto e muito carinho. A palavra tinha que ser sempre gentil e o gesto carinhoso, afinal elas eram o que de mais bonito existia no mundo, mesmo as que não sabiam falar, mas sabiam andar como ninguém. Com o tempo o gosto ficava mais sofisticado e tínhamos que abandonar algumas, esquecer outras, cumprir a ordem de nunca acordar só, mas tentar não acordar arrependido. Afinal só se acorda uma vez por dia, exceto em dias de ressaca brava em que se acaba acordando a toda a hora e não dormindo nunca. É também a época das maravilhosas surpresas. Mulheres que chegam de mansinho e vão iluminando o coração e fazendo bater mais depressa a esperança. Às vezes é a namorada do amigo e respeito é necessário, outra vez é a moça de outra terra que vem com ar sincero, olhar
Max Gonçalves 00
cheio de força e coragem e a ilha começa a ficar pequena e dá aquela saudade quando ela vai embora, às vezes sem saber que deixou tanta lembrança, lembrança bonita. Voltam os dias de solidão pela casa grande, tempo para pensar, chorar as dores da partida e dores antigas que só os filhos perto e os olhares amigos conseguem aquietar. Mas como sempre o ciclo recomeça e vamos, sem querer e até sem saber direito por que, esquecendo nossos pensamentos numa só pessoa e deixando a vida chegar mais uma vez. E como tudo que se escolhe vai virando único, descobrimos uma ternura nova, descobrimos afinal que alguém também nos quer, às vezes sem saber, mas descobrimos sobretudo que o amor ainda existe, que as festas vão ficando iluminadas quando a pessoa mais querida está perto e ficam mais aborrecidas e até insuportáveis quando a pessoa mais querida não está. A ex-mulher amada se perde nas lembranças, eventualmente vira amiga, quase sempre vira apenas memória, e até as referências significativas vão se arquivando no inevitável adeus ao que passou. Volta o tempo da conquista, voltamos a ser Quixotes destruindo moinhos, inseguros até com o que vamos falar e nesta época de comunicação imediata e global ansiamos por um e-mail, uma mensagem no Facebook ou um telefonema redentor. Já tive amigo que nessa hora se deu conta de que a ex- mulher era a mulher nova por quem ele ansiava e foi à luta para a reconquista. Mas é difícil, tem de ser mulher diferente, reconquista é coisa de quem está enfeitiçado e não descobriu. Fui assim deixando o tempo me levar, o tempo estava curto para tanta novidade, por uma dessas coincidências que só a solidão explica, voltei a escrever, a minha editora acordou e ensaiávamos um novo livro, até uma revista de mulheres ma-
00
Garotos de Ipanema
ravilhosas ia publicar um conto de memórias minhas com o poetinha, sobre aquele Rio de Janeiro que, na época, era o recreio do paraíso. A música voltava devagar, o piano passava a ser companheiro diário e até reclamava de ter de trabalhar tanto. As viagens tinham novo sabor e cheiro, a liberdade já tinha substituído a saudade e as dores iam se aquietando devagar e gentilmente. Como não podia deixar de ser, foi chegando de mansinho o gosto de amar e, nessa hora em que a felicidade e a esperança voltavam, vinha sempre a pergunta. - Você está com uma cara nova, está ótimo, que é isso homem, estreando namorada ? Onde conheceu? E a resposta, que resposta dar? - Foi por acaso, aliás o acaso é o maior aliado do amor, ele traz o que você não espera, aliás ele só traz o que você não espera e, por isso, é fundamental. E terminava dizendo o que tenho certeza que o poetinha diria: - Homem, pensa bem, sem acaso não existe amor, só existe repetição. - Como você descobriu isso? - perguntava incrédulo o que não sabia amar. - Por acaso, respondi.
Max Gonรงalves 00
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
BOTTLES CLUB
Elis acordava afinada. Não importava a hora em que fôssemos dormir, o que tínhamos feito na véspera, festa ou não, ela acordava afinada. Cantarolava no banheiro e seguia pela casa sem perder uma nota sequer. Morávamos no São Conrado, na ladeira da Niemeyer, no Rio de Janeiro. Era um condomínio de casas que tinha sido construído por um arquiteto chamado Fernando. Como ele era português, o condomínio era conhecido como o do Fernando português. Era o endereço que dávamos e nossa casa era a primeira, de frente para aquele mar enorme do Rio, no alto da ladeira. Tínhamos um terraço na frente da casa e era ali que tudo acontecia. De manhã com sol, sem vento ou chuva, tomávamos o café da manhã ali, depois esticávamos os colchões e tomávamos sol, depois o jantar e juntávamos ali a moçada da música. O piano, de um quarto de cauda, ficava na porta que dava para o terraço, era só abrir aquela porta e ele estava ali, parte do cenário. Tínhamos dois empregados - uma mulata bem bonita chamada Teresa e o Genivaldo, do Recife, baixo e forte, especialista em fazer caipirinhas. Naquela época só se tomava caipirinha de
00
Garotos de Ipanema
limão, ninguém sonhava em fazer caipirinha de outras frutas, era heresia. Foi aí que Genivaldo começou, fazia de qualquer fruta: laranja, morango, maçã e até de banana, que era horrível. Genivaldo era mais cenógrafo que empregado, o que ele gostava mesmo era do terraço. Era ele quem de manhã transformava aquele espaço em lugar de festa. Sozinho carregava a mesa do café da manhã, que era de ferro branco com umas cadeirinhas super incômodas, mas bonitinhas, e Elis adorava aquele conjunto. Assim, como o café era sempre rápido, eu nem reclamava. Tudo pela beleza. Depois ele transformava o terraço em solário, tínhamos uns colchões enormes, fofos, que substituíam as cadeiras e eram muito mais confortáveis. Ali tomávamos sol, fazíamos amor sob o olhar complacente de Teresa que ainda tomava conta de Genivaldo para ele não espiar. Aquele era um direito de Teresa, só ela podia testemunhar nosso amor . De noite Genivaldo criava o seu cenário favorito, trazia um bar para o terraço, espalhava três mesinhas de bar com umas cadeiras superconfortáveis. Afinal, as noites eram sempre longas e o conforto, indispensável. Aí começava a chegar o pessoal. Elizete vinha cedo, morava ali perto e vinha atrás da caipirinha e de um papo antes de dormir. O poetinha chegava depois e dizia que tinha vindo por minha causa, não era para visitar a Elis, mas para checar o amigo. Levantava a minha moral e me olhava com aquele olhar de quem dizia: “tô com crédito, quando eu precisar tu tem que me socorrer”. E ele sabia que eu estaria lá. Quantas vezes eu acalentara o choro da mulher que ele abandonava por um novo amor, houve duas que eu herdei, de papel passado
Max Gonçalves 00
e tudo, ele transferiu a mulher para mim garantindo que eu faria amor para ela, não iria falhar no ato sexual e ainda iria escrever uma poesia ou outra, ele até ia corrigir, mas com uma cláusula de garantia - eu tinha que ficar seis meses totalmente apaixonado por elas. Acabou dando certo e foram duas heranças bem vividas. Uma teve até comemoração em conjunto e fotografia do Antonio Guerreiro que adorava esse ar de suruba. Havia dias em que chegava o maestro, com aquele ar de menino, aquele sorriso de quem conhecia o Frank Sinatra e aquele jeito que parecia que ele estava sempre mastigando. O maestro só não era mineiro por acaso. Tinha todo o feitio e andar das Minas Gerais. Chegavam depois o Chico, o Edu, o Ivan, a Nara, a Danusa, o Francis, a Vanda e tantos outros. Genivaldo era a vedete. Suas caipirinhas eram famosas, ele até inventava uns verdes para colocar no copo, dizia que era folha de mexerica, para nós era mato mesmo. O primeiro a se sentar no piano era sempre o Francis, estudara piano clássico na Áustria, seu pai Luis Antonio Walter Hime era dono da Siderúrgica Hime, a maior do Brasil; como dizia Fernanda Montenegro, era o único milionário do grupo e naquela época ser milionário valia a pena. O Toquinho chegava mais tarde, meio tímido agarrava o violão e ai mudava tudo. A Elizete reclamava da hora e dizia que tinha de dormir cedo, pois já era uma senhora. O Ciro Monteiro dizia então: - Não é só uma senhora, é uma puta senhora e ninguém se atreva a confundir com uma senhora puta, senão tem que se ver comigo. Com isso se iniciava uma briga, a nossa lady da música de-
00
Garotos de Ipanema
testava palavrões e avançava para Ciro dizendo que não entendia como com aquela voz rouca, falta de educação e mau gosto em se vestir, ele conseguia vender discos. O maestro então assumia os trabalhos, fazia as pazes entre os presentes e Elizete ia embora com ar de dama feliz. Naquela época, no Rio de Janeiro existia um lugar em Copacabana chamado Beco das Garrafas. Era uma rua sem saída, onde não entravam carros, cercada de edifícios dos dois lados. Naquele beco havia quatro pequenas boites, era o nome que se dava para bares fechados com música, ainda não existiam as discotecas, nem se pensava em casas gigantes. A vida noturna era feita de bares e boites, espalhadas por Copacabana e umas poucas em Ipanema que começava a nascer. O beco se chamava das garrafas porque quando a turma que frequentava os bares começava a fazer muito barulho os moradores jogavam garrafas. Era guerrilha urbana, a garrafa quando caía fazia um barulhão. Sobravam cacos para todo o lado, mas isso é que transformava o beco num lugar único. O Bottles era o último lugar do beco, encostado no muro, com pequeno toldo preto. Lá dentro um belo piano de cauda inteira e 42 mesinhas. Todo o domingo acontecia uma Jam Session, músicos amadores e profissionais se misturavam tocando jazz moderno e tradicional. Grandes nomes apareceram ali, naquelas sessões de domingo foi revelado o Sergio Mendes, um garoto de Niterói que tocava um piano fabuloso, o Arakem, que era irmão do Cauby Peixoto e tocava Sax, o DoUmm, que iria se transformar no maior baterista do mundo, o Nego Balanço que era um ritmista fabuloso, enfim o programa de domingo era obrigatório, tinha de ser no Bottles.
Max Gonçalves 00
Uma noite, o Luca, que era o dono do Bottles, chegou à nossa reunião do Terraço. Entre caipirinhas e música trouxe a triste noticia, ia ter que fechar a casa. Não estava dando, ainda agora aumentara o aluguel e precisava colocar um toldo maior de alumínio para proteger os clientes das garrafadas. Em meio à consternação geral decidimos fazer alguma coisa. Marcamos uma reunião para o outro dia, convocamos todo mundo, até os irmãos Castro Neves. Eram trigêmeos, o Oscar, um dos maiores músicos do Brasil, que depois iria se mudar para Los Angeles e nunca mais voltar, até hoje o melhor arranjador de bossa nova que já tivemos. Os outros eram Ico, um arquiteto que tinha feito o primeiro motel elegante do Rio, chamava-se Motel Havaí e tínhamos entrada gratuita a qualquer hora, e o Zeca, que não fazia nada, nunca trabalhara, mas segundo o folclore local era a pessoa que conhecia todo o mundo. Você falava em Pelé e ele dizia: - Íntimo, ainda ontem ficamos uma hora no telefone. O Emerson, e ele respondia: - Me convidou para ir para Londres com ele, mas não sei se vou, ele é meio pegajoso. E por aí continuavam suas histórias. Dizem até que aquela velha piada do papa na realidade foi uma história que aconteceu com o Zeca. Para quem não conhece vamos lá. O nosso maior playboy e ídolo no que se refere à conquista de mulheres era Baby Pignatari. Digno herdeiro das tradições de Rubirosa e Jorginho Guinle, Baby só namorava estrelas, estrelas de Hollywood, estrelas francesas e italianas. Herdara uma enorme fortuna e dizia que gastar dinheiro atrás de mulher bonita é uma benção e que só homens de bom gosto entendem isso. E eram anéis do Cartier, colares do Bulgari, e até umas coisinhas do H. Stern.
00
Garotos de Ipanema
Quem não gostava dele, dizia quando ele chegava: - Olha, o Baby chegou, não vai ter mais nenhuma puta pobre no lugar. Mas o fato é que ele tinha classe, elegância, fumava de piteira, piteira para charuto, um arraso! Pois foi com o Baby que aconteceu o caso. Ele dizia que o Zeca era um falador e um dia fez a aposta temerária. Avisou ao Zeca que estava indo para Roma e queria visitar o papa. O Zeca disse imediatamente: - Conheço o papa. E assim Baby lançou o desafio: - Te levo pra Roma. Se você conhecer o Papa te dou mesada o resto da vida, se não te deixo lá, sem passagem de volta e sem dinheiro. Lá foram os dois para Roma, não existia ainda celular, nem e-mail, não se revistava ninguém no aeroporto e o terrorismo era uma piada. Nós que ficamos começamos a nos preocupar. O que fazer, iam largar o Zeca sozinho e já o imaginávamos pedindo esmola na porta do Vaticano e tudo. Pensamos até em organizar uma vaquinha para comprar a passagem de volta. Mas era complicado porque na realidade tínhamos que comprar três passagens. Uma ida e volta para quem fosse atrás do futuro mendigo de Roma e outra de volta para ele. Não dava. Aguardamos ansiosos as noticias e uma noite chegou o telefonema tão esperado. Baby estava meio rouco, até gaguejou, o que para um playboy é pecado capital, playboy não gagueja, playboy sabe tudo. Aí ele falou: - É , o homem é fogo. Nós ansiosos perguntávamos: - Como foi? - Chegamos à praça do Vaticano, cheia de gente e Zeca me disse: “Está vendo aquela janela à direita, a segunda depois do
Max Gonçalves 00
enfeite”? Ali é que ele vai aparecer, me espera um instante aqui e não deixa de olhar para lá. Assim Zeca sumiu e quinze minutos depois, debaixo de palmas da multidão, aparecem na janela o Papa e Zeca do seu lado. Atordoado, Baby pergunta a uma pessoa próxima. - Quem é aquele ali? O estranho responde. - Aquele padre todo enfeitado eu não sei quem é, mas ao lado dele é o Zeca. E assim Zeca conseguiu sua pensão para toda a vida, e nunca mais duvidamos de suas histórias. A reunião começou, todos falavam ao mesmo tempo, e demorou um pouco até chegar a hora das decisões. Finalmente elaboramos um plano. Iríamos fazer todos uma temporada para levantar o lugar. Shows quatro vezes por semana com os grandes nomes da Bossa. Nos revezaríamos nos instrumentos, eu ficava com o piano e o Arakem com os metais, o DoUm na bateria - ele também dali a seis meses partiria para Los Angeles para nunca mais voltar - o Nego no ritmo, o Oscar no violão e até se conseguiu um cello para melhorar os graves. Nessa época tínhamos três grandes jornais: o JB, O Globo e a Última Hora. Este último era do Samuel Wainer e ele era casado com a Danusa Leão. Assim conseguimos uma campanha de páginas inteiras para anunciar o mês da Bossa no Bottles Club. O Sergio Porto, conhecido como Stanislau Ponte Preta, autor das Cariocas que hoje virou série de TV na Globo, ia escrever os anúncios. O Mauricio Toscano, um italiano que vivia no apartamento do Francis Hime e era desenhista, ia fazer os layouts. Faltava alguém para promover os espetáculos.
00
Garotos de Ipanema
Naquela época não existia a figura do promoter. O que hoje é comum - só dá promoter, corretor e desenhista de interiores - naqueles tempos era raridade. Foi aí que decidimos: o Zeca, ele conhece todo o mundo. Com autorização do Baby usamos seu assalariado para ser o grande promoter do projeto. Depois de muita matemática chegamos ao valor de 23,86% da receita da noite para os músicos e para quem fizesse o show, o restante era para salvar o Bottles. Decidimos também iniciar com artistas que estavam começando, deixaríamos os grandes nomes para o meio e fim da temporada, quando já tivéssemos um público mais acostumado com o lugar e a promoção mais adiantada. Resolvemos iniciar com Nara Leão e Chico Buarque, os dois estavam despontando, tinham ganhado um festival e assim seriam o ideal para a grande abertura do mês da Bossa. Acabei ficando com o piano. O Sergio Mendes fazia barulho demais e o Chico e a Nara queriam um som mais intimista. Chico e Oscar no violão, Arakem no sax, DoUm na bateria, o Nego nos címbalos e o Jorginho no baixo. As meninas conhecidas, namoradas, amantes de última hora, enfim todas as mulheres disponíveis partiram para limpar e decorar o lugar. Toquinho tinha uma namorada que era dona de uma loja de flores, e acabamos com o estoque dela enfeitando as mesas. Cada mulher que chegasse receberia uma flor. Enfim tudo pronto. Só faltava o público. Chamamos o Zeca e perguntamos: - Vai ter público ? Falaste com todo o mundo? Gordo e bonachão, ele respondia: - Fiquem calmos, só usei 9% do meu caderninho, basta para a primeira noite.
Max Gonçalves 00
Marcamos o show para as onze horas, era um horário elegante e pegávamos a turma depois do jantar. Os boêmios começavam a noite sempre às onze horas. Às dez e meia não havia viva alma. Chico, nervoso, fumava um atrás do outro, Araquém andava sem parar e gente que é bom, ninguém. Às onze ouviu-se aquela barulhada, Luca vem correndo e diz: - Tem mais de cinquenta pessoas aí fora, só que eles vieram para ouvir o Zeca tocar e quando disse que ele não tocava eles querem ir embora. Eu falei: - Mas tem Chico, Nara! Ai chamei o Luca, o Araquém e o Zeca e disse. - Luca, vai lá fora e diz que o Zeca, a pedido deles, vai tocar esta noite. - Mas como! - disse o Zeca, - Não toco nada, nem aquilo, de tão nervoso que estou. - Não precisa tocar. Araquém, empresta a ele um Sax e tu, Zeca, fica na frente do piano, vamos botar a luz em cima e você finge que está tocando. O Araquém te cutuca para começar e aí você vai fingindo. O público começou a entrar, lotou o espaço, tinha até gente em pé e o grande artista da noite não foi o Chico, nem a Nara, mas o Zeca Castro Neves, que nunca tinha tocado uma nota na sua vida. Nós salvamos o Bottles e até hoje foi aquele o único concerto do gordo Zeca. Que Chico, que nada! A noite foi do Zeca. Em memória do grande amigo Zeca Castro Neves, que morreu atropelado saltando do táxi pela porta errada, a do trânsito. Até na sua morte foi original! Saravá!
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
HELLO
Isso mesmo, Hello com dois ll. Assim ela se identifica no Facebook. E neste seu mundo virtual, misturadas com suas palavras e seus sentimentos, havia centenas de fotos. Em todas elas a sua beleza surpreendente, sua vida de charme, brilho, uns recados constantes mostrando solidão entre risos e imensa vontade de viver. Hello é mulher elegante, muito bonita, com presença impecável. Tínhamos nos conhecido na superfície dos relacionamentos. Íamos desde o “Olá, como vai?”, até uma eventual conversa menos superficial, mas não sabíamos nada um do outro. Éramos parte daqueles mistérios que existem no grupo de amigos. Todos se conhecem e poucos sabem alguma coisa de verdade sobre o outro. É a essência do grupo de amigos, não se conhecer, não saber de onde vêm os sorrisos e as lágrimas escondidas daqueles com quem saímos com frequência, mas sempre em grupo. Acabamos sendo convidados para festas de aniversário, viagens de férias, muitos encontros em casa de um e de outro, mas a emoção que nos acorda e nos acalanta, dificilmente repartimos nesses grupos. Falta tempo e afinal
00
Garotos de Ipanema
temos que estar alegres, coloridos e falar bobagens, é para isso que somos convidados. Acabei recebendo Hello como hóspede em meu abrigo do lago. Ela vinha de outro país. Passaria poucos dias na ilha do sul e combinamos misturar trabalho que vinha fazer com uns dias no sol de lá. E nestas luzes do sul, com sol de verão começando a esquentar a água e a areia, em lugar de dividirmos apenas os dias acabamos dividindo a vida e nasceu uma ternura grande entre nós. Como dizia o poetinha: “a alma sabe escolher, é pena que não acredito que a alma existe”. Existindo ou não, nos escolhemos pela alma e dividimos tempos, segredos do coração, palavras doces e tristes e sorrisos sonoros, quase gargalhadas. Dividimos as solidões descobrindo quem éramos. Nos conhecemos como só se conhece quem se gosta muito. Hello é uma mulher excepcional, cheia de força e sobrevivência, e sabe que viver é aventura bonita e não uma trapalhada sem solução, mesmo tropeçando às vezes no inesperado. Em poucos dias ela encantava o lugar, acordava sorrindo, buscava o sol e misturava seu cabelo dourado com os reflexos da água e das luzes do sul, criando novas cores e enfeitando caminhos antigos. Os budas sorriam, amanhecia em harmonia e nosso pequeno mundo logo se ia enchendo de palavras, histórias, lembranças, partes de vida que flutuavam no espaço encantado da descoberta. O abrigo do lago tem grandes silêncios. A madeira pela casa produz o som antigo e o eco dos lugares cheios de passado. Os livros e a música. O meu eterno piano. E as lembranças.
Max Gonçalves 00
*** No meu passado, quando Elis e eu estávamos juntos, ela sempre me dizia que uma mulher inteligente amedronta, inteligente e bonita apavora, e completava: “Se me apresentares uma mulher bonita, torce para ela não abrir a boca, vai que ela começa a falar e é inteligente e aí vou morrer de ciúmes, só fala com as feias, ok?” Eu ria e concordava, logo ela que iluminava minha vida com canções, afetos inesperados, coragens, e depois de noites acordados, nos aconchegávamos no piano e tentávamos acordes novos, sons da madrugada, como ela dizia. A doçura de Elis sempre me cativou. Quando ela entrou no mergulho escuro de sua ansiedade e vi que nenhum amor podia salvá-la, ainda conseguia me encantar com estes breves momentos em que amor vira ternura, carinho vira pedido e beijo vira solução. Sempre nos beijamos devagar, como se o segredo fosse esse, como se assim pudéssemos afastar o medo e juntos sobreviver. Quando me senti fraco e não podendo mais viver aqueles tempos escuros, nos separamos com muitas lágrimas, com a mesma ternura do primeiro encontro e com uma saudade infinita. Ela estava fazendo um show chamado O Equilibrista entre as fantasias de Carlitos e os cabelos longos, sempre que a via no palco, escondia milágrimas que me doíam pelo peito e que acabavam por me aprisionar naquela aventura de som e beleza. Lembro-me da minha última ida ao show. Ela, sem programar, cantou Atrás da Porta, do Chico, e foi um adeus, que jamais desconfiei seria o longo adeus, não um simples até logo e que eu poderia reencontrá-la pela vida, inesperadamente e
00
Garotos de Ipanema
nos sorriríamos, nos abraçaríamos, nos amaríamos como nos filmes franceses. Hello, por ser bonita e inteligente, me lembrava sempre dessa frase. Comecei a entender porque amedrontava tanta gente, porque gerava a controvérsia de quem só sabe condenar e não sabe viver. *** Hello tinha esta força de me trazer muitas lembranças boas, reanimava o amor em minha vida e me enchia de memórias antigas, já misturadas com as memórias carinhosas e inesquecíveis que ela ia criando pelo abrigo do sul. Ela me fez lembrar um tempo com o poetinha, que agora deveria estar andando pelo céu dos boêmios, já bem acompanhado, Tom e tantos outros até Elizete já estavam por lá. Pixinguinha e Cartola também, enfim, deve estar bom naquele endereço. Mas, voltando à nossa história, entre um casamento e outro do nosso poetinha, recebi um dia a intimação habitual de ir imediatamente para o bar da Montenegro. Como sempre, naquela Ipanema mágica, era véspera de sábado, sabia que apesar da hora as caipirinhas estariam na mesa, as meninas iriam balançando para o mar e o maestro, sempre atrasado, chegaria reclamando de muito trabalho e contando o último telefonema daquele chato do Frank, que era o Sinatra, e de como inglês não combinava com bossa nova. Daríamos notas às meninas de Ipanema, íamos reparar e
Max Gonçalves 00
comentar que, para felicidade do mundo, os biquínis estavam diminuindo e as mulheres ficando independentes. Mas naquela manhã Vinícius foi direto ao assunto. - Estou apaixonado por uma mulher diferente. E ela, como toda mulher bonita, rica, inteligente, fina, compreensiva, tem outro. Toda mulher realmente bonita sempre tem outro. Dá trabalho, mas temos que tirá-la dele, preciso de vocês, precisamos de uma estratégia vencedora. - Mas quem é essa mulher afinal? E logo você, o nosso poeta, o rei da conquista, precisa de nós?”— Falei, com ar de riso. Meio tímido e quase sem graça, coisa rara, o poetinha falou. - Ela se veste de Chanel, todos os detalhes são certos, tem aquela voz meio rouca, meio arrastada nos r que só mulher muito fina consegue ter, são anos de treino, e ainda por cima tem aquele olhar que pode ser promessa ou condenação, esse olhar então precisa de vinte anos de exercício diário. Olhar de rainha da Inglaterra. - E o nome dela? Perguntamos. - Heloisa. Só podia ser. Esse nome é ao mesmo tempo nome de rainha, heroína de livros e até daquelas madames de Napoleão. Heloise era dona do salão onde ele conheceu Josephine e abalou a França com seu casamento. Convencidos da paixão, perguntamos o que fazer. - Ora, bolas, isso é que eu estou perguntando a vocês. - Mas por que é tão difícil? – falei, - usa os segredos de sempre, cria um poema no ouvido dela, coloca aquele terno esquecido e aquela gravata vermelha, penteia o cabelo e olha para todos com um meio olhar, fala baixinho. Coisa de milionário, de família com gerações de milionários. Vez por outra
00
Garotos de Ipanema
deixa escapar uma palavra em francês e assim vai indo. Ele me olhou incrédulo e com um sarcasmo duro, para aquela hora da manhã e numa quarta-feira, respondeu. - Estou falando de Heloisa, de paixão, de amor, daquelas que aprisionam o coração e não dessas que balançam para nós todos os dias. Preciso de alguma coisa especial, coisa de Napoleão. O maestro falou, cadenciado. - Ela sabe que você bebe todo o dia? Ela sabe que você já se casou oito vezes? Ela sabe que tuas paixões duram menos que comercial de rádio? Ficamos em silêncio, aquilo era briga de cachorro grande. Vinícius se levantou, silêncio geral, ele jamais abandonava um copo no meio e o seu estava quase cheio. Solenemente declarou. - Meu amigo, parceiro de tantos anos, essas palavras tem cheiro de ressaca amorosa. Estás dominado por uma lógica burguesa que faz tremer todos os poetas vivos e mortos do mundo. Logo tu, o maior artista de todos nós, íntimo do Frank. Andas por Nova York como se fosse Ipanema, bebes manhatans em bar de hotel cinco estrelas, usas chapéu Borsalino e sobretudo cor de camelo bem tratado. Logo tu, Brutus, vens esfaquear minha esperança com essas ocorrências banais do dia a dia. Estou falando de amor por uma deusa, mas não a comum das nossas deusas, uma deusa de outro paraíso, o paraíso das mulheres intocáveis, que arrastam os erres e que se enfeitam para acordar. Mulheres que só dormem em lençol de seda e bebem champanhe como quem bebe água. E continuou: “Logo tu, meu irmão, vens me afrontar com a minha própria vida. Essa eu conheço, meu maestro, não precisas falar dela, quero é que fales da Heloisa, desse tipo de mu-
Max Gonçalves 00
lher que eu não conheço nada”. “Assim esquece que tua Teresa te negou amor esta noite e te tornou num músico carrancudo, daqueles que escrevem ópera que acaba mal, volta a ser o embalo das garotas de Ipanema e ajuda teu irmão.” Demos uma salva de palmas ao discurso e até o Ciro Monteiro, sobrinho de Nonô e que nunca acordava de manhã, só depois das quatro da tarde, mas que viera de um encontro de negócios na gravadora, aplaudiu sem parar e ainda falou com sua voz rouca. “Poeta é poeta, não discuta com ele, vai perder...” Decidimos então salvar o poeta e partimos para a elaboração do plano da conquista. Com tanta genialidade junta a Heloisa não duraria um dia sem ficar perdidamente apaixonada e se tornar a lady maior de nosso grupo. Já tinham até pensado em comprar uma cadeira de braços, estofada em veludo carmim, para ela se sentar em nosso boteco, naquela mesa de esquina. Alguém até sugeriu comprarmos aqueles protetores de olho que os cavalos usam para quando ela estivesse com a turma ninguém olhar para as meninas que se balançavam a caminho do mar. Seria atenção total para nossa lady. Passado o período das brincadeiras, concordamos em fazer um reconhecimento. Para isso o poetinha tinha que escolher dois de nós para que fossemos apresentados à candidata a diva maior de Ipanema e, a partir da observação e conhecimento dela, elaborar o plano de ataque. - Aliás, — disse Ciro,— a CIA faz isso, observa, conhece e ataca. Nunca deu certo, mas eles seguem esse padrão e se a CIA faz deve ser bom.
00
Garotos de Ipanema
A lógica fina do nosso sambista fez com que todos concordássemos, afinal, mesmo não dando certo no final era coisa da CIA. Coisa de americanos. Assim fomos escolhidos Edu e eu para o reconhecimento. O poetinha se encarregaria de organizar o encontro e depois, em reunião plenária, com nosso profundo saber sobre a vítima, planejaríamos a estratégia do amor perfeito. Coincidência ou não, para nossa sorte, dali a dois dias havia um jantar beneficente no Copacabana Palace. Era para levantar fundos para os velhinhos da Casa de Repouso do Eterno Socorro. Apesar do nome ainda havia alguns velhinhos vivos naquela eternidade. Traje obrigatório, passeio completo, ou seja, terno para homens. O marido de Heloisa era um dos patronos e ficou muitíssimo feliz de ter a presença do ilustre Vinícius de Moraes. A atração da festa seria um leilão em que cada convidado poderia dar ou sugerir o que seria leiloado a fim de angariar fundos. Imediatamente providenciamos uma coleção autografada de livros do poeta que seria entregue por ele mesmo ao vencedor. Resolvemos regular a bebida, tudo muito fino e, mesmo sabendo que amanhã seria sábado, e que, como toda a sexta- feira, ousados e temerários, sairíamos para beber sem remorso e em busca da companhia perfeita para o final de semana, nos preparamos para a festa com cuidado especial. O Copa estava esplêndido. Todo enfeitado, os salões todos ocupados e fomos recebidos, de cara, pela maravilhosa Heloisa e seu marido, o futuro candidato a ex ou eventualmente a ser um dos milhares de homens sérios corneados pelo mundo afora. O poeta foi recebido como herói. Era inesperado para qualquer um encontrá-lo ali, naquele meio e lugar. Ele era o oposto
Max Gonçalves 00
daquilo tudo, o irreverente independente que trocara a diplomacia - expulso pela revolução - pela boemia e a poesia, por uma vida de música e liberdade. Ele, que abandonara os salões, estava ali numa festinha de vaidades a cortejar uma bela mulher. E Heloisa era bonita, muito bonita. Abraçou com carinho nosso Vinícius e sussurrou no seu ouvido. - Não acredito que você veio. - Por você vou até a festa de criança. Ela nos colocou na mesa de honra, ao lado de dois casais, e estrategicamente definiu seu lugar ao lado de nosso apaixonado. Senti que já existia certa afeição no ar, mas a dúvida era saber que tipo de afeição. A mulher sofisticada que mostra ser amante das artes e dos artistas, ou a mulher se apaixonando que se entrega aos poucos, sem saber como. O poeta falava ao ouvido de Heloisa sempre que esta voltava para a mesa. O marido sorria, aquele sorriso educado de quem não está entendendo nada, ou não quer entender. Heloisa e o marido se levantavam a toda hora. Era um vai e vem para receber convidados e atender a todos os pequenos detalhes da festa, que a essa hora já estava enorme. Os salões, todos cheios. Duas orquestras tocavam em ambientes diferentes e o povo circulava sem parar. Beijinhos daqui e dali. Gritinhos de prazer, daqueles que duas amigas dão quando se encontram e que mais parecem gritinhos de terror. Deviam ser muito chiques esses gritinhos porque todas se esmeravam em gritar mais que as outras. O poetinha começou a beber aceleradamente e eu segui a proposta. Afinal, sobreviver naquele ambiente era mais difícil que numa prisão turca e mesmo assim ele continuava firme.
00
Garotos de Ipanema
Propus delicadamente, umas duas vezes, que fossemos dar uma volta. Ele firme disse que não, ficaria ali, sofrendo pela mulher amada, esperando, mesmo que por segundos, que ela sentasse a seu lado e ele pudesse segredar sua paixão. Perguntei o que ele já tinha dito. - Comecei falando do encanto de sua voz, aqueles rrs arrastados me levavam à loucura, depois falei de seus olhos, tão claros, tão cheios de promessa e medo. Quando comecei a falar de suas pernas, ela se levantou e partiu. Não sei se para me mostrar que eram pernas de verdade ou apenas pela loucura da festa, mas parei nas pernas. *** A minha Hello também tinha pernas fantásticas, mas era mais moderna, mais consciente de tudo que tinha de bonito e as oferecia assim, sem restrições, no Facebook , nas praias douradas do mundo, nas piscinas coloridas, era a inveja das outras mulheres e o encanto de todos os homens. *** Voltando à nossa história, depois de algum tempo o casal retornou apressado à mesa, informou que a solenidade ia começar e que tinham feito uma surpresa. Quando Heloisa falou em surpresa, olhou para o poeta com um olhar de cumplicidade e culpa.
Max Gonçalves 00
Nessa hora o poetinha já estava no oitavo uísque e temi o que podia acontecer. O cabelo branco já tinha escorregado pela cabeça abaixo e a voz tinha um tom mais baixo. Apagaram-se as luzes, aquele suspiro geral que acontece em festas grandes quando as luzes se apagam, não sei se de prazer ou medo, mas enfim todos ficam meios ansiosos para saber se o que vem vai ser divertido ou aquela sequência chata de discursos. Vinícius disse entre dentes que Heloisa era bonita até no escuro, vi então uma surpresa no seu olhar e um riso malandro, riso de carioca feliz. Um locutor com timbre de cantor de tango anunciou que daria a palavra à senhora Heloisa e por aí foi. Heloisa se levantou e com ares de rainha de desenho animado se dirigiu ao centro do palco, fez todos os agradecimentos, falou dos sorteios de duas passagens de navio para o Caribe, uma coleção de livros do poeta Vinícius de Moraes, que os entregaria pessoalmente e, por fim, a grande surpresa. Mandou apagar as luzes e quando elas se acenderam estava Toquinho no palco, com aquele ar de menino safado, chamando o poetinha para acompanhá-lo. Tomado de espanto, nosso poeta se levantou e foi andando em estágios lentos, devido à grande quantidade de uísque, até o palco iluminado onde Toquinho o recebeu com um a mais, balançando o copo ao som das pedrinhas de gelo, lembrando a marca registrada do poeta em seus shows. Apesar de tudo, o show foi excepcional como sempre. A popularidade dele naquela época era imensa e todos sabiam as letras de cor e acompanhavam a voz rouca, e às vezes desafinada, do autor.
00
Garotos de Ipanema
A surpresa chegou no final. - Para encerrar, ele disse, quero prestar uma homenagem a Heloisa, por quem estou aqui e a quem dedico este poema de encerramento. E lá foi o “Para viver um grande amor” com as mudanças que ele ia introduzindo. “Para viver um grande amor, é preciso muita concentração e muito siso. Muita seriedade e pouco riso. Para viver um grande amor, Heloisa, é mister ser homem por inteiro, ser homem de uma só mulher, como eu quero ser para você, minha Heloisa.” Nessa hora eu queria me esconder ao lado daquele marido que ainda tentava sorrir ao ouvir uma confissão dessas, feita na frente de 500 convidados e toda a imprensa do Rio de Janeiro. Arrisquei uma frase boba: - Todo poeta precisa de uma musa quando bebe demais. Eles fingiram que acreditaram, mas logo me perguntaram se eu era poeta também. E Vinícius continuava. “Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro, seja lá como for, e assim vou ser para você, Heloisa.” Por ironia cada vez que o poeta falava o nome da amada, um holofote fortíssimo a iluminava e os convidados, sem saber o que fazer, batiam palmas. Era o amor mais aclamado que eu já tinha visto em minha vida e o marido, na sombra, parecia um príncipe Philip com ar de quem não entende nada de nada. Até os versos finais, que falam de galinha e farofinha depois do amor, ele dedicou àquela mulher e depois da última frase: “...Para viver um grande amor”, se levantou e sem cambalear, com ares de atleta, veio para a mesa onde, iluminado por to-
Max Gonçalves 00
dos os holofotes, deu um beijo definitivo na mulher amada sob palmas e pedidos de bis. Ao ouvir esses pedidos e sentindo o sucesso o poetinha repetia os beijos que eram retribuídos com calor pela Heloisa, encantada com a fama e vivendo, com certeza, seu primeiro ato erótico em público, a própria rainha da noite. De tão empolgado o nosso poeta beijou os cabelos ralos do marido e disse solenemente: “- Quem faz amor com um monumento desses merece meus beijos.” Começaram as danças e nem com toda a paixão o poeta se rendeu. Continuou no uísque e nos beijos e, sempre que a favorita Heloisa voltava para a mesa, se debruçava entre palavras de amor e pedidos de carinho eterno. Esta, a Heloisa, já estava achando natural aquele namoro público, e até o marido consentia com um sorriso toda aquela beijação. Nos despedimos e, depois de muitos sussurros ao ouvido de Heloisa, o poeta deu o último beijo no candidato a corno e se retirou com os olhos brilhando. No carro não falamos nada. Propus um último drinque e sentados no Rond Point o poeta me confessou que marcara um encontro para amanhã com ela, a dona de seus pensamentos. Ela viria ao seu apartamento na Nascimento Silva e ele me prometeu contar, sem detalhes, por respeito ao marido, o que viriam a fazer. ***
00
Garotos de Ipanema
No abrigo do lago eu e minha Hello estávamos saindo de grandes amores. Daqueles que deixam marcas de adeus, mas deixam também mágoas de adeus. Tive alguns amores que não deixaram mágoas, os melhores, que me fizeram crescer. Amor que deixa mágoa nos faz sentir menores, parece que roubaram nosso tempo de vida e levaram muito de dentro da gente. Levaram sonhos e saudades que não mereciam, levaram carinhos que se perderam e esqueceram as lembranças que tornam tudo bonito, as lembranças daqueles momentos em que criamos aventuras e rimos da vida como só os que estão apaixonados sabem rir. Hello tinha tudo de rainha e também era Heloisa, o poetinha ficaria com inveja e uma ponta de ciúme, se a tivesse conhecido. Ela tinha o mesmo andar ritmado e solene da outra Heloisa, mas tinha encanto na pele, ternura nos sorrisos e tudo que íamos vivendo juntos, como por mágica, virava poesia. Estava trabalhando neste livro e senti que ela seria o primeiro nome de mulher de todas estas lembranças, seria a Ipanema de nossos sonhos, a França de nossas criações e boemias e o paraíso de meus amores. *** Voltando à aventura do Copacabana esperei mais de uma semana, sem notícias, para abordar o poeta e saber como tinha sido aquela tarde na Nascimento Silva. Sentados perto do mar, numa véspera eterna de sábado, ele me disse.
Max Gonçalves 00
- Terminamos. - Mas como? Nem começaram ainda! - Respeite a minha dor e não fale bobagens, não vê como estou triste? De fato não conseguia descobrir aquela tristeza, era o mesmo calção de banho, a mesma cara de sonhador, o mesmo copo de caipirinha, o mesmo ar de espera, as mesmas críticas ao mundo. Por tudo isto, perguntei: - Como foi? Conte. - Foi uma tarde de amor maravilhosa, atrás daquele ar de dama existe uma mulher da vida, ela sabe tudo, brinca de ser vulgar, o que no amor é uma benção, sabe truques e carinhos, faz de tudo em todas as posições. Interrompi o discurso de sacanagem e falei. - E com tudo isso vocês terminaram, por quê? você brochou na hora ? - Não me ofenda, sou homem de brochar? Sou homem de amar e quando se ama de verdade não existem fracassos, só vitórias. - Mas por que acabou? - Porque ela quer ser minha amante, disse que até já avisou o marido e que ele ficou muito orgulhoso dela, afinal não é qualquer um que é corneado pelo poeta da moda. Até autorizou que ela conte tudo às amigas. - E você quer coisa melhor, meu poeta? Uma amante casada com o marido torcendo para dar certo. - Mas esse é o problema. Quando estou com ela sinto que estou numa suruba, não é mais amor a dois, é amor a três, eu, ela e o marido. Imagina que outro dia ela estava de quatro, que bela posição, e aí interrompeu tudo e disse que ia ensinar
00
Garotos de Ipanema
aquele jeito de fazer amor para o marido. - “É bom demais!”, ela dizia. Me senti como se fosse um diretor de filme de sacanagem. Rebaixado de poeta a pornógrafo, com direito a carteirinha e tudo, mas ainda resisti, mesmo com a sensação de um decadente, continuei firme com ela. - E como foi a briga? Por quê? - Sexo anal. - O quê ??? Perguntei, estarrecido. - Isso mesmo, no momento da performance maior da minha vida, fazendo sexo anal com uma lady que jamais pensei iria tirar a roupa para mim, ela pega o telefone e se equilibrando naquela posição estranha, liga para o marido e diz com alegria: - Ele está comendo o meu rabo, ele me ama..... Foi demais, ao ser reduzido de amante a comedor de rabos, solenemente terminei nosso caso e disse adeus. Expliquei para minha Heloisa que amor combina com comidinhas, um caviar e um champanhe, um chocolate crocante ou até umas ostras saborosas com vinho branco. Mas com rabo, amor não combina, não. Assim terminou um dos mais rápidos amores de meu amigo e hoje, quando ele não está mais aqui, fico pensando se aquele tempo, de longas conquistas, de tanta poesia, de saudades e de detalhes não é bem melhor que as baladas de hoje, aonde meninas chegam, fazem amor, saem e sequer sei o nome delas, nem se tem marido, nem sei se fui amante ou descobridor. Com certeza não vira amor e não faz história. ***
Max Gonçalves 00
Minhas longas conversas com a Hello dos dias de hoje fizeram história, a descoberta silenciosa de como é bom ficar junto em paz e a certeza de que existe beleza em tudo. Pena eu não poder apresentá-la aos garotos daquela Ipanema da bossa e sentir seu ar de aprovação e ciúme diante de uma mulher que sabe viver a vida. Ela partiu do abrigo, mas deixou seu cheiro e seu jeito doce, apagou muitas lembranças e criou uma infinita, silenciosa e meiga saudade. Deixou por todos os lugares, pelos espaços daquele abrigo a sua marca tão única, me encheu de amor, um amor sem data de início e sem fim, amor de outono, diria Cartola, amor com ritmo e intenções, como diria Tom. Pois é, o poetinha diria: “a vida só se dá pra quem se deu. Vai atrás”
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
DIANA
Parece mágica! Sempre que chego a Roma o céu está azul e o sol ilumina tudo. Tenho uma relação única com esta cidade, uma relação de alegria, me sinto bem aqui, é como voltar para casa sabendo que não é a minha casa. Sempre vivi grandes retornos nestas geografias tão antigas. Primeiro meu pai, que era um pesquisador da língua latina e que se sentia em casa em Roma. Pelas mãos dele caminhei os caminhos do passado e fui aprendendo história com intimidade. Foram, com certeza, os momentos mais próximos que tivemos como pai e filho. Ele sempre tão reservado, tão fechado no seu mundo de letras e livros e tão ausente de minha vida, parecia que nesta cidade precisava de mim a seu lado. Precisava de minha pessoa, de meu jeito de ser filho, e tentava me passar o que sabia, como se pensasse que deveria guardar para sempre as ideias e palavras que me dizia, era uma herança de saber. Sua história era cheia de segredos que não estavam nos livros ou nos guias turísticos. No Vaticano era a história da papisa Joana, a única mulher
00
Garotos de Ipanema
que, obviamente disfarçada de homem, se tornou Papa. Uma das Bórgia, a família que, ao mesmo tempo em que enchia de arte toda a Itália, se dava o direito de quebrar todas as regras e viver sonhos impossíveis. As histórias das bacanais, das festas no Fórum Romano, enfim, eram momentos cheios de graça e prazer. Me recordo de nossos risos infinitos, meus e de minha irmã, que de repente descobríamos um pai diferente, engraçado, próximo, cheio de amor e nos transmitindo segredos, o que para nós, carentes de pai, soava como confissões de amor. Não era mais o professor de todos, mas o nosso pai. Ele sempre terminava contando uma grande história de amor. Para ele, Roma e toda a Itália só podiam ser compreendidas se entendêssemos que no final sempre existiria uma grande história de amor. Romeu e Julieta, O Mouro de Veneza e tantos e tantos outros amores impossíveis que tornavam este canto do mundo um cenário único para se viver o grande amor de nossas vidas. “Aqui a gente termina sempre por se apaixonar, ou nas ruas elegantes das grandes cidades, ou nos campos da Toscana, da Úmbria e do Veneto, ou ainda nas cidades medievais, em San Gemignano ou numa Siena encantada ou na mágica Veneza, não dá para fugir, vai acontecer.” E eu, menino, perguntava animado: “Vai acontecer comigo, agora?” E todos riam com a minha pressa de ficar apaixonado e minha irmã, com aquelas frases que só irmãos sabem dizer me falava, séria: “Você precisa crescer e estudar muito para poder se apaixonar.” Eu acreditava nela e começava a estudar sem descanso, esperando que por isso, rapidamente, me apaixonaria por alguém
Max Gonçalves 00
na Itália, em Roma mais especificamente. Acho que me tornei bom aluno por causa dessas promessas e dessas histórias de meu pai. Foi a ansiedade da paixão que me moveu, por paixão aprendi tanta coisa e com certeza foi por paixão que aprendi a viver. Diana tinha cinco irmãs, eram seis mulheres, todas estranhas e bonitas, mulheres do sul, gaúchas, como ela costumava dizer, cheias da força das terras do sul, das fazendas sem fim e da ansiedade das fronteiras. Quem vive em terras de fronteira quer sempre correr o mundo. É como se a fronteira fosse a porta do mistério que tinha que ser descoberto, e só podia ser descoberto com a coragem de correr mundo. Nos conhecemos em minha casa do lago. Uma noite um grupo bonito, barulhento e cheio de vida, invadiu meu abrigo e me encheu de alegria. Ela chegou com irmãs, uma amiga elegante e decotada, falando um português que parecia italiano e com muitas certezas. Sabia tudo. Qualquer assunto ela invadia com a segurança que só certas mulheres muito especiais podem ter e atropelava os argumentos dos outros, os meus também. Encantei-me com ela desde o primeiro momento, me entreguei ao jogo de sedução e fui conquistando as irmãs com palavras que eram para ela. E como estávamos no verão, passamos a viver a irresponsabilidade daqueles dias num jogo de esconde-esconde, fingindo sempre e deixando que o coração cativasse aos poucos uma relação maior. Mais de uma vez senti saudades dela, sua voz única, seu sotaque de italiano gauchesco e a doçura, a imensa doçura de seu ser mulher.
00
Garotos de Ipanema
Senti inveja doce de sua vida, da organização de sua família, de ela ter sempre um norte e ser parte de um todo maior. Ao contrário eu sempre fui o solitário sorridente, sempre deixei que minhas milágrimas do passado ficassem escondidas num olhar de alegria e num eterno silêncio de minhas verdades. Sempre fui o aventureiro sem retorno e sempre me ocultei quando a tristeza era grande demais para continuar sorrindo. Tudo nela também sempre me encantou. Era o feitiço de Roma, a mulher das histórias de meu pai, aquela paixão que poderia levar minha vida de volta a essas histórias. Como de muitas vezes, quando eu retornava a lugares onde andara com o poetinha, lembranças me assaltavam. Tínhamos muitas histórias de Roma. A Itália sempre tivera um amor especial pelo Vinícius, sua música, seu jeito de fazer shows com o copo de uísque na mão, sentado irreverente e mais preocupado com as palavras que com a afinação. Vários cantores famosos gravaram suas músicas e ele se sentia em casa nesta terra de deuses e mulheres elegantes. Me lembro de uma vez em que morava em Lisboa e recebi seu chamado imperativo. “Vem já para cá, para com essa mania de ganhar dinheiro e vem ficar com a gente. Vamos estrear um show daqui a quatro dias, a Mina e o Toquinho vão cantar comigo e preciso de um texto novo e não vou ficar falando de mim e da minha música que vai parecer cabotino”. Para o poeta usar a palavra cabotino é porque as coisas não estavam andando bem. Assim, larguei o trabalho e embarquei para a cidade de que gostava tanto a fim de resolver a crise do poeta ou virar parte dela.
Max Gonçalves 00
Telefonei para o Tom para saber se tinha sido só eu o eleito mas me disseram que ele estava com o Frank em New York. O poeta tinha razão, estávamos perdendo o maestro para o poder econômico. Agora eram Frank, Ella Fitzgerald, Sammy Davies, Sarah Vaughn e não tínhamos mais espaço nesta agenda tão internacional e tão rica de personalidades. Cheguei com sol, como sempre, e ele estava lá, me esperando meio encabulado, boné de francês cobrindo os cabelos brancos, um pouco mais gordo e foi logo me abraçando e falando ao mesmo tempo. “Estou na casa da Mina, vais ficar com a gente, mas no caminho te explico tudo”. Hoje cheguei de madrugada num aeroporto deserto e, mesmo estando escuro, senti que o sol brilharia no dia seguinte. Ia encontrar Diana depois de nossa descoberta. Num último dia de verão, fim de carnaval, ao som das escolas e com todas as fantasias coloridas, deixáramos nossa paixão valer mais, terminamos o jogo da sedução e aceitamos devagar e urgentemente nosso desejo. Perdíamos o medo na aflição de não nos perdermos um ao outro. E fui a Roma por causa dela. Desde minha separação, apesar de tantas mulheres em volta e ao lado, sentia aquela nostalgia da mulher de Roma, a mulher impossível por ter tantas responsabilidades, tanta coisa boa numa família impecável, tanta coisa correta num mundo burguês e eu chegava oferecendo apenas a minha solidão e meu amor. Sonho impossível, coisas de Quixote, mas sempre me entreguei aos desafios do coração por mais que me fizessem sofrer no futuro. Voltando ao Vinícius, sentamos num carro elegante com
00
Garotos de Ipanema
um motorista de uniforme e logo comecei a rir. “Que é isso, poeta, de novo os tempos de embaixador?” “Não enche o saco, a Mina é uma estrela nesta terra. É a Maria Callas da música popular.” “E já viraste o Onassis da vida dela ou ainda tenho chance?” “Para com isso, temos que falar coisas sérias e preciso explicar o que vais ver.” Fiquei curioso, mas conhecendo meu amigo fingi estar desinteressado. Se insistisse muito ele não me contaria nada, ficaria no mistério da primeira frase. Com Diana era diferente, eu tinha que insistir sempre, ela se escondia da verdade e estabelecia regras para tudo. Nunca vi amor com regras, mas sempre, toda a minha vida, fui um aprendiz de feiticeiras, as bruxas que me ensinaram tudo e que continuavam me guiando pela vida afora. Assim me deixei levar por seus ensinamentos, para mim bastava estar ali, a seu lado, vivendo a sua vida, nem que fosse por momentos breves, e me encantando com a felicidade que ela me dava. Podia gritar para ela que tínhamos que abandonar tudo e viver um presente diferente, um presente de aventura e paixão constante, de carinhos sem fim, mas o aventureiro era eu, tinha de ser sincero e ensinar também que para todos os aventureiros deste mundo a solidão é o caminho final. Desde o cowboy americano cavalgando no pôr do sol, até os heróis modernos entrando no avião e deixando lágrimas atrás, a aventura termina sempre assim. Voltando ao amigo Vinícius, finalmente ele falou: “Sabes, a Mina tem certa mania meio diferente, sei lá se chamo de mania, mas enfim vais ver e precisava de tua ajuda.” Vai tudo começar de novo, pensei. Estas palavras, que já ou-
Max Gonçalves 00
vira tantas vezes na minha vida, significavam que muita coisa ia acontecer nos próximos dias, e ainda mais agora que tanto o poetinha como eu estávamos sozinhos, sem namorada firme ou amor continuado. “Mas estás namorando a Mina?” — perguntei. “Coisas do coração que ainda não posso chamar de amor, mas estamos numa boa.” “Que bom!”— eu disse. “É, só que ela tem umas coisas estranhas e tens que saber antes de chegar a casa, afinal vais ser nosso hóspede e as regras se aplicam a ti também.” “Uau, é suruba, então, companheiro! Por que não me disseste logo? Teria trazido umas cuecas novas.” E comecei a rir. “Para com isso, afinal, és meu amigo ou vieste para me romper os ...” “Desculpa, querido, mas o que é de tão esquisito que tenho de saber e viver contigo?” “Bem, é que a Mina é naturalista, mas naturalista mesmo, convicta.” “Espera ai, estás me dizendo que ela é nudista e falas com tanto cuidado que deve vir alguma encrenca pela frente.” “É isso, mas além de nudista ela tem um monte de regras a que deves obedecer.” “Quais?” “Em casa só podemos andar nus e ela exige que fiques na casa, ela pensa que estou escondendo nosso romance e que tenho vergonha dela, assim tens de ficar ali para eu ser acreditado como amante e, como ela está fazendo o show com a gente e o Toquinho, estar com uma namorada que não admite esta situação é impossível. Tu és a minha solução.”
00
Garotos de Ipanema
“E aí, se eu tiver tesão por ela, como é que fica?” “Não fica, todo o respeito é obrigatório e não vais me envergonhar.” “Mas que envergonhar, vai ser uma homenagem para ela eu ficar de pau duro pela casa, e ela até pode pensar que é pela tua bunda murcha.” “Para com isso, me respeita, afinal sou um poeta, escritor, um homem sério.” Começamos a rir, até o homem sério tudo ia muito bem, mas depois de tantas e tantas aventuras, amores desfeitos, festas sem fim, homem sério não dava mesmo. Diana insistia nas regras e, inteligente e viva como ela era, as regras ficavam mais sofisticadas a cada hora. Tinha regra até para o sentimento, já ia além da simples conduta e entrava na área escura da psicanálise. Una casalinga desperata, ou seja, uma dona de casa ensandecida, é como ela se definia, e assim justificava nossa paixão, aquietando seus medos e ficando mais longe dos impulsos do coração. Não era mais um sentimento, mas o resultado de uma crise, como no tempo de Vinícius eu seria a solução apenas temporária, mesmo que isso entristecesse meu coração. Eu continuava aceitando tudo, queria sua pele morena, seu corpo magro e elegante perto de mim, seu sorriso e sua força, mulheres do sul. “Chegamos — disse Vinícius — é na cobertura.” Estávamos num belo edifício do Pariolli que, voltado para o sol, ficava ainda mais atraente e acolhedor. Subimos num elevador e depois, por uma escada estreita, chegamos a uma grande porta de madeira. O som da campainha era musical e continuado.
Max Gonçalves 00
A porta se abriu e uma italiana grande, morena, de voz grave, que eu já vira tantas vezes na TV, me acolheu com um querido abraço, beijos e barulhos. Retribuí com o mesmo carinho e com o mesmo barulho e imediatamente fiquei excitado, ela estava totalmente nua e aquele abraço apertado era demais para uma chegada inesperada. Fomos para um pátio e logo uma empregada marroquina, magra, com belo corpo e também completamente nua, levou as minhas malas com um sorriso atraente e me perguntou se queria beber alguma : “água, vinho branco.” Mina me pegou pela mão, sorridente e carinhosa, disse-me para ir com ela ao pátio ensolarado onde já três espreguiçadeiras estavam prontas para tomarmos sol. “Vamos às regras” — disse. “Vinicius já deve ter falado, mas não sou tão chata como ele quer fazer parecer e as regras são simples. Aqui em casa andamos sempre nus, não importa a hora e mesmo que tenhamos convidados ficamos assim, nus.” “Com certeza, respondi, sempre obedeço a todas as regras.” Nessa hora chega à varanda o nosso poeta completamente pelado, mas sempre com o boné na cabeça. “Mas o boné pode?” Começou todo o mundo a rir e assim inaugurei minha temporada nudista com os famosos italianos. Diana era muito generosa, como todas as mulheres resolvidas, e me levara a seu vinhedo em Frascati, me fizera descobrir e entender seus momentos de paz, seus refúgios e ia me introduzindo docemente em seus segredos, mostrando-me a beleza de seu amor e de seu carinho. Quanto mais se pode conhecer quem se ama, mais se pode amar. Na casa de Mina as coisas começavam a virar rotina, ia me
00
Garotos de Ipanema
acostumando com meu corpo nu pela sala enfeitada, a empregada e a arrumadeira que pareciam gostar da situação e todo o inusitado do dia a dia. Mas como sempre acontecia, o poetinha queria mais. Depois de dois dias veio o motivo final. Estávamos nus ao sol de Roma, com um copo de vinho branco na mão e uma caipirinha na mesa quando ele me segredou. “Precisas me ajudar. A Mina não se depila e estou perdendo o tesão, faz dois dias que não funciono, porque vencer aquela floresta e me engasgar a toda a hora não dá mais.Tens que dizer a ela para se depilar, inventa uma história, sei lá, tu tens esse poder de influenciar os outros e assim resolves o meu problema.” “Espera ai, estás simplesmente querendo que eu diga a ela que quero que ela tire os pelos da dita cuja, mas como? Ela vai pensar que estou interessado, vai parecer falta de respeito contigo, afinal aquela xereca é tua.” “Mas de repente matamos dois coelhos com uma porrada. Se ela aceitar tua cantada é porque não está de fato apaixonada pela minha pessoa, mas apenas pelo companheiro de música, de show.” Entendi logo que além de tudo o poetinha queria também se livrar de qualquer compromisso. Era uma forma de transformar aquela intimidade numa brincadeira e assim acabar qualquer compromisso. Comecei a pensar como fazer, como abordar assunto tão delicado, como chegar perto dela e dizer: “Vamos reformar tudo, raspas os teus pentelhos e viras uma garota de Ipanema, ou ainda, como uma nudista aceita ter tantos pelos? Afinal, pareces vestida com tudo isso.” Não, tudo parecia muito grosseiro, era um trabalho e tanto.
Max Gonçalves 00
O poeta, se eu conseguisse, ia ficar me devendo mais essa. E estávamos só nós em Roma, faltavam os outros para fazermos uma reunião e decidir como falar com a Mina, uma das cantoras mais famosas do mundo, que devia cortar os seus pentelhos. Mas havia o Toquinho. Marcamos um encontro, só eu e ele, sem a sua namorada. Ele logo me disse que se eu tentasse fazê-lo aceitar o nudismo e ir nos visitar estava fora de questão, por ele até ia, mas sua namorada ia dizer sempre “não” e ele gostava dela. Falei que não era nada disso, que ficasse tranquilo, era uma reunião de trabalho. Nos sentamos num café na Praça Navona. Antes do vinho branco e durante as primeiras taças, falamos do show. Tinha preparado uma abertura onde contava rapidamente, intercalando com músicas conhecidas, a biografia dos dois. Mudamos algumas músicas, criamos outras, facilmente chegamos ao acordo e estava pronta a abertura do show que estreava dali a dois dias. Aí entrei no assunto, devagar, porque Toquinho ia logo dizer que não queria saber nada disso. Acabei pedindo auxílio, apelando para nossa velha amizade e ele aceitou discutir o assunto. Assim entrei direto no conteúdo. “Amigo, o poetinha quer que eu mande a Mina cortar os pentelhos porque ele está perdendo o tesão com toda aquela floresta e como faço isso sem magoá-la? Vai, me ajuda!” Toquinho caiu numa gargalhada sonora e por mais que eu fizesse cara de zangado acabei rindo também, só quando a gente fala alto e para outros é que entende como é engraçado tudo aquilo. “É por causa das regras que ela obriga a obedecer. A regra
00
Garotos de Ipanema
um e mais importante é ficarmos nus o dia inteiro, aí de fato de tanto olhar aquela floresta, a gente passa a não ver mais nada. É como se a vida selvagem, representada por aquilo, nos atraísse e tirasse os olhos de qualquer outro lugar.” “Só vejo duas soluções, — falou Toquinho,— ou ela assume que tem de cortar tudo ou quase tudo ou vocês fazem uma revolução e mudam as regras.” Mas a revolução seria de nós dois contra ela e possivelmente a empregada marroquina e a cozinheira italiana que também mantinham uma bela floresta cada uma, seguindo o padrão que a patroa impunha. “Umas fotos escondidas, ampliadas, podem mostrar a ela como é feio”, — disse Toquinho. “Impossível, — eu disse,— ela vai perder a confiança, pensar que estamos fotografando tudo e não se pode dizer a nenhuma mulher, nem à mais feia do mundo, que ela é feia, ela vai ficar sua inimiga.” “Concordo, — disse Toquinho, — assim, temos que arranjar alguma saída.” Depois de quatro garrafas de vinho e duas pizzas, chegamos a um plano. Eu diria a Mina, em segredo, que o poeta ia fazer aniversário dali a dois dias, uma grande mentira, e que ele adorava mulheres raspadinhas, ou quase raspadinhas, e que ela podia surpreendê-lo assim, dar esse presente para ele. Concordamos com este plano, tomamos mais um vinho para comemorar e saímos cantando pelas ruelas, e fomos até a Fontana de Trevi jogar umas moedinhas para nosso plano dar certo. Conversei com o poeta que concordou imediatamente e
Max Gonçalves 00
ainda elogiou nossa inteligência. “Vocês deviam ser militares, o Brasil ia melhorar muito.” Era o tempo da revolução, os militares mandavam e ninguém entendia o projeto que eles tinham para nosso Brasil. Me enchi de coragem e, no final da tarde, Vinícius se declarou com dor de cabeça e foi para o quarto deixando Mina e eu sozinhos. Baixei a voz e usando toda a minha capacidade de sedução, sussurrei que dali a dois dias era o aniversário do nosso poeta e que ele adorava uma xereca raspadinha, e que poderíamos fazer esta surpresa para ele. Ela se espantou, pensou que era só dali a uns três meses o aniversário, mas como não existia internet, nem Facebook, ninguém me desmentiu. Finalmente, confiante e alegre, ela me disse : “vamos fazer essa surpresa para ele.” Meio surpreendido com o plural, acabei aceitando e concordando. “Claro, querida, vamos fazer isso.” “No final da tarde entro com um bolo que uma minha amiga faz e é delicioso, e com a raspadinha.” Começamos a rir e dali em diante, durante um dia e meio, sempre que estávamos sozinhos falávamos no ouvido um do outro que a raspadinha estava chegando. Vinícius aguardava ansioso, me confessou que até o tesão tinha voltado só na expectativa da operação raspagem da dita cuja. Finalmente chegou o dia. Às seis da tarde, o sol ainda glorioso no céu de Roma, nossa Mina se levantou da espreguiçadeira, deu um beijo na boca do poeta, um beijinho no meu rosto e anunciou que ia preparar uma surpresa. Ainda acrescentou para o poeta: “Você pensou que ia me esconder que dia é hoje?” Quando ela saiu o poeta disse que queria me dar um beijo
00
Garotos de Ipanema
por eu ter conseguido aquele milagre: uma italiana raspar seus pentelhos e ainda por cima uma italiana famosa. Reclamei, beijo não, já estamos nus e sozinhos, se ainda rolar beijo e alguém descobrir vamos virar a gozação de todos. Relaxamos, tomamos uma caipirinha e ficamos esperando o grande momento. De repente, ouvimos aquela voz lindíssima cantando o Feliz Aniversário em duas línguas, português e italiano, e nos chamando para a sala. Levantamos excitados para ver como tinha ficado. Entramos no escuro e de repente as luzes se acendem e Mina está lá, com sua floresta intacta, e ao lado dela uma desconhecida, completamente raspada. O presente que ela trouxe. Nosso desânimo só não foi maior porque a raspadinha era linda. Linda demais e começamos logo a disputar sua paixão. Nesse dia aprendi que em Roma e na Itália as regras da paixão não podem ser quebradas. Assim quando minha Diana recomeça com novas regras, aceito sempre. Afinal, depois de tantos anos ela é quase romana. Minha esperança é o quase e, como quase pode virar sempre, vou me alegrando pelo sol de Roma e deixando meu coração bater mais rápido quando ela aparece.
Max Gonรงalves 00
00
Garotos de Ipanema
Max Gonçalves 00
TERNURA
Seu nome, ela me disse, era Margareth, podia ser Ivonete ou Patrícia ou qualquer um desses nome sem nome que elas adotam para seus serviços. Entrou com a desenvoltura e a facilidade que só elas possuem. Afinal, eram três horas da manhã e eu estava num quarto de hotel e, se não fosse pelo serviço da internet, jamais nos conheceríamos. Meio sem jeito ofereci uma bebida e ela disse que não bebia. - Sempre? — Perguntei, com cara de quem não acredita e ela sorriu. Tinha um sorriso bonito, meio infantil, que não acompanhava a saia curta ou a blusa comprida, o decote e o corpo bem brasileiro. Pernas bonitas, bunda grande e bem feita. Perguntei se ela gostava de música e ela me cortou o papo. - Querido, temos uma hora e você tem que pagar adiantado. Assim me paga e vamos começando porque tenho que sair às quatro em ponto. Foi tirando a roupa, parecia até uma esposa chegando a casa e se despindo com aquela intimidade que só o casamento dá, imaginei que iríamos falar do dia que acabou, dos problemas das crianças, enfim, conversa de fim de noite antes de o sono chegar.
00
Garotos de Ipanema
Diminuí a luz e vi que seu corpo era bonito, queimada de praia, se mexia bem, andava pelo quarto sem nenhuma vergonha, com orgulho de ser assim. Gosto de mulheres que sabem ficar nuas, que gostam de ficar nuas e que assumem a nudez com prazer, com sabedoria. Ela sentiu que não dava para começar assim, faltava alguma coisa, estávamos naquela hora em que uma aventura tinha perdido o sentido, eu até estava gostando dela, mas não dava para deitar e pronto. Nem o Viagra funcionava assim. Quase como um ritual ela começou a falar da família. Parecem treinadas para isso. Se o homem não for do tipo machão e empurra, elas falam da família para facilitar e criar um ambiente. Me contou que tinha duas irmãs, todas eram scorts e trabalhavam na mesma agência, ela era a do meio e, para ela, a mais bonita era a mais velha. - Um arraso, – ela repetia com gestos largos e sem nenhuma vergonha de sua esplendorosa nudez. Começamos a beber, acho que ela esqueceu que tinha me dito que não bebia e assim fomos ficando mais à vontade, falando mais alto e rindo por qualquer coisa. Ela me tirou a roupa, riu porque eu estava sem jeito e me chamou de bonito. Senti que eram anos que ela fazia isso, até as pequenas mentiras saiam naturalmente, pareciam grandes verdades. Coloquei uma música suave, das que encantam sem fazer barulho e fomos criando aquela intimidade. Começamos a nos tocar com suavidade e aos poucos fomos explorando o corpo, ficando íntimos um do outro e, sem nenhuma vergonha, nos agarrando com força e muito desejo. Ríamos por nada e até brincamos com ela me colocando a camisinha, era uma profis-
Max Gonçalves 00
sional, um espetáculo à parte vê-la colocar com rara perfeição aquela borracha cheirosa e oleosa, parte da cultura moderna do medo, símbolo do sexo responsável. Imaginei que se você chega a casa e diz para a mulher ou para o marido “Querido, trepei a noite inteira, mas com camisinha”, ela ou ele vão ficar até orgulhosos, afinal você é uma pessoa responsável. E de repente foi aquela loucura, talvez amor, mas muito, muito excitante, sexo de corpo presente, nos agarrávamos um ao outro e fazíamos tudo, naturalmente. E ríamos muito, nos desafiávamos, ela me dizia que era bom, dizia e repetia aquelas coisas que a gente gosta de ouvir, sussurrava elogios, pedia para fazer com mais força, ditava o ritmo e mudava de posição. Sugeriu sexo anal e disse que só estava fazendo comigo por amor, seria uma mentira? Seria parte do serviço que eu estava pagando? Afinal eu era principiante naquele negócio de amor aos pedaços. De repente, o celular dela começou a tocar uma musiquinha chata. - É hora, – ela disse, com uma carinha triste, quase sincera, mas que para mim, naquele momento, era a própria expressão da verdade. - Posso pagar mais uma hora? - E o meu outro cliente? O cara da agência vai me ligar já, já. Eles são foda. - Mas eu queria tanto... - Escuta, vou dizer para ele que estou cansada e você paga só para mim. Imagina que eles ficam com trinta por cento e mais o aluguel do espaço na internet. - Para mim tudo ótimo.
00
Garotos de Ipanema
Ela sumiu no banheiro com o celular ligado e voltou pouco depois. - Tudo bem, vamos usar a banheira, é legal, grande. E assim fomos para a banheira, ela misturou a água quente e a fria e ria , ria, como uma menina brincando. - Que hotel legal, faz tempo que não uso uma banheira assim. E por aí fomos, crianças brincando de água e sabão, crianças brincando de amar e sentir o sexo crescer, até camisinha usamos na banheira e ela ria como se esta fosse a primeira vez, como se toda aquela alegria tivesse nascido ali, naquela hora e naquele banheiro. No mínimo eu podia dizer que ela gostava do que fazia e muito. Depois da banheira nos secamos descobrindo ainda mais o corpo do outro. Brincamos com os pequenos defeitos e perguntamos o que cada marca representava. Inventamos histórias de Quixote e batalhas que nunca fizemos, mas acima de tudo fomos com delicadeza ficando íntimos, e começamos, sem querer, a falar a verdade. De fato as irmãs trabalhavam também, a mais velha tinha um senhor que a sustentava e não se importava com o trabalho dela. Margareth tinha um namorado que jogava vôlei e era casado. A mais nova ia para o Japão no outro mês. Já era a segunda vez e ela até falava algumas palavras em japonês. Ganhava bem e era mole trabalhar. Ia para uma casa noturna especializada em lingerie. Segundo ela, os japoneses eram loucos por esses lugares em que todas as mulheres, desde a porteira até as garçonetes, trabalhavam de lingerie. Tinham que fazer sexo no lugar, mas segundo a irmã contava, eram boxes individuais e os japoneses pagavam uma fortuna. Alguns até levavam a mulher que assistia calada e
Max Gonçalves 00
não se metia, coisa da cultura deles, ela me dizia orgulhosa de saber tanto. Estávamos deitados na cama, enrolados um no outro e com preguiça de nos mexermos. Criei coragem, fui buscar bebida e mudar a música, voltamos a nos enroscar e eu estava tão excitado que ficamos fazendo sexo, talvez amor, por muito tempo. Confessei a ela minha solidão, meio sem jeito, achando que ia quebrar o momento, mas não, ela se interessou e me disse logo: - Eu também me sinto assim, de repente é como se nada tivesse sentido, as pessoas não me entendem e fico quase deprimida. Achei fantástico o quase deprimida, era melhor do que deprimida, mas não resolvia também. Ela me perguntou se eu tinha alguém - Não sei, até vivo com alguém, mas não sei se estou com alguém, fomos nos separando com o tempo, perdemos o encanto e ficamos assim, juntos e mais separados que nunca. Não trepamos mais, o carinho acabou faz tempo e o diálogo é uma repetição de incriminações de um para o outro. - Ah, já sei, todos os casamentos que não dão certo acabam assim, depois ou um ou outro se arranja e vai na dele ou na dela e aí o casamento acaba de verdade. Mas já tinha acabado faz tempo. Perguntei se ela já fora casada. Ela disse que não, antes de começar a trabalhar como scort tinha vivido com um advogado, bonito e jovem, que a trocou por outra para casar. - E aí, você sabe, estava acostumada com as coisas boas e não sabia trabalhar. Minhas irmãs me convenceram e comecei a fazer isso, dá para ganhar muita grana e se divertir um bocado. Já tive convites para viajar, viver com os caras, mas ainda
00
Garotos de Ipanema
estou escolhendo, adoro morar sozinha e fazer o que quero. Sou livre mesmo. Continuamos falando assuntos que vinham de dentro, éramos íntimos sem ser, mas tínhamos a liberdade de falar o que vinha à cabeça, sem censura. Era isso, não tínhamos censura e quando somos casados essa censura está presente em tudo. Vai crescendo com os anos de casados até terminar por ser dominante e parte de nossa personalidade. E é tão forte que viramos artistas de nós mesmos: “Não vou falar isso, ela não vai gostar”; “Não vou contar esta história que me aconteceu, ela vai interpretar de outra forma e vai dar briga”. Ela, a esposa, também pensa assim e vamos formando a incontrolável solidão a dois, com a desculpa de que os anos mudam o relacionamento, que a amizade vale mais que o amor, bobagens para justificar o injustificável. Ela me disse que seu pai era judeu, daqueles praticantes que levam tudo a sério e, como ele tinha se separado da mãe dela, no final as abandonara completamente. Mandava dinheiro, mas só. Companhia, amor, nem pensar. Ela continuava passeando nua pelo quarto, abrindo gavetas, mexendo em tudo, era a criança sem freio ou restrições, brincando jogo de adultos sem nenhuma culpa. E assim começamos a falar de amor, o que ela entendia por amor. - É muito bom, acho que só me apaixonei umas três vezes, mas foi ótimo, me sentia mais livre, mais viva, mais participante, todas as coisas que eu fazia todo o dia e eram sempre iguais pareciam diferentes, pareciam ter outras cores, outros contornos. As músicas que eu ouvia tinham mais sentido e eu me sentia muito mais bonita. Me olhava no espelho e sorria, gostava mais de mim nessas horas.
Max Gonçalves 00
- E o trabalho? – perguntei. - Ah, era mais fácil, os meus clientes é que lucravam porque eu era muito mais solta e alegre, até gozava, às vezes mais de uma vez. Você sabe, nesse meu negócio não dá para gozar sempre, num carnaval há dois anos bati todos os meus recordes. A agência me marcou oito programas num dia, foi uma loucura, faturei como nunca. Ela continuava a falar e passear, parecia uma cena de filme, aquela mulher nua, linda, contando histórias de sua vida, uma vida diferente, sem parâmetros de moral ou freios de comportamento. De uma forma especial eu invejava sua liberdade, sua forma de vida e a capacidade de nada esconder e de ser assim, simplesmente uma moça que fazia sexo por dinheiro. Há muito tempo que eu não passava horas tão boas, alegres, soltas, me sentia um herói conquistador, estava me achando mais bonito que normalmente e recuperava meus anos, sentia até uma dignidade que nada tinha a ver com o que estava vivendo, afinal eu contratara uma mulher para ter sexo e brincar de amor. Enquanto ela falava, eu pensava que aquele quarto de hotel tinha ganhado, com ela, uma dimensão nova. Não era mais o lugar frio e vazio que são todos os espaços de hotel. O lugar passageiro, sem retornos, contornos ou história. Era um lugar ideal, virtual, solto no mundo, um lugar onde não existia vergonha, nem passado, nem futuro. Um lugar de sonho que terminava no dinheiro que ela displicentemente largara em cima de uma mesinha inútil, como aquelas que existem em todos os hotéis e que não sabemos por que estão ali. De repente nos olhamos no espelho, nus, excitados e começamos a nos abraçar, com carinho, com cuidado e fomos fazendo amor devagar e urgentemente, conscientes de que a
00
Garotos de Ipanema
hora e o tempo começavam a nos assustar porque dali a pouco ela iria embora. Margareth, Ivonete ou o que fosse, passaria a ser apenas uma lembrança, talvez uma saudade. Para mim seria um segredo, até porque não saberia explicar o que estávamos passando. Talvez no futuro eu conseguisse entender, afinal outras vezes eu tinha pagado por um sexo rápido e sem culpas ou compromissos, mas daquela vez estava sendo diferente, não era uma aventura banal, era um momento único. Seu corpo era suave, cheio de curvas e desejos, ela fazia barulhos gostosos, gritava ás vezes e me dizia que estava gozando, “já foram três vezes”, me disse ela, “e costumo gozar uma vez apenas, hoje está acontecendo diferente.” E ouvindo tudo isso eu me sentia mais e mais herói, único, seria verdade? Não importa, era bom, e como poderia existir uma sociedade sem mentiras? No mínimo seria insuportável, difícil de viver. A verdade tinha que ser guardada para uma mulher e um amigo especiais, só para eles, para ter a força de uma verdade verdadeira. A verdade da internet era ridícula, pública, sem sentido. “Hoje estou me sentindo com saudades de meus filhos.” Ou: “Li um poema que dizia que cada dia deve ser vivido como se fosse o último”, e mais e mais coisas que parecem verdades e são apenas tentativas de parecer brilhante para toda a audiência pública. A verdade tem que estar guardada e ser usada como uma janela que se abre com cuidado e, frequentemente, que se abre com razão e coração e que não traz medo nem vergonha, apenas prazer. Tínhamos acabado de fazer amor, cansados, contentes, infantis e o sol enchia o quarto de cores diferentes, parecia um
Max Gonçalves 00
outro mundo. Margareth era mais morena de manhã. Nua ainda, parecia maior, mais forte e sempre muito bonita. Tinha um ar de quem gosta do dia e ria com som diferente, som de menina rindo. Pedimos um café enorme, tudo que estava no menu, frutas, queijos, sucos, ovos, pães amargos e doces. Discutimos assuntos sérios. Ela me perguntou se a imaginação devia ser sempre mentirosa ou devia ser verdadeira. Enquanto falava ela fez um bonequinho com o miolo do pão e me perguntou o que eu achava. Perguntei se era essa a visão que ela tinha do ser humano e ela riu e me disse que não comia todos os seres humanos de manhã, só os de quem ela gostava muito, e assim me agarrou e fizemos mais uma vez um sexo sem mentiras, cheio de tesão e vontade, cheio de gritos e sussurros. Me senti como o bonequinho de miolo de pão, ia desaparecendo da vida dela assim, um adeus agradável, sem lembranças ou remorsos. Ela se vestiu, me disse para não me levantar, me beijou na boca e disse adeus. Me levantei horas depois, tinha dormido sem pensar, um sono pesado e gostoso. Comecei a viver minhas memórias, tentar um passado com ela, tinha sido tão bom. Nessa hora, um dia novo que já estava quase acabando, descobri que não tinha nenhuma informação sobre ela, nem o nome, nem o telefone, nem o e-mail. Vasculhei meus sentimentos e não sabia encontrar uma definição para tudo aquilo. Seria amor? Não, para amor faltavam o tempo, lembranças acumuladas, pequenas brigas, separações e reencontros, manias, viagens, implicâncias, eventualmente filhos, aquele monte de coisas que o amor acumula. Sexo? Sim,
00
Garotos de Ipanema
mas faltava o antes e o depois. Amizade? Tínhamos o acaso que é o maior determinante da amizade, mas faltava o futuro, faltavam as pequenas crises que testam qualquer amigo, faltavam conversas e olhares e aquelas coisas que só fazemos com amigos. Tesão? Faltava o olhar, faltava vê-la com outras roupas, em outras geografias, faltava andarmos juntos explorando o desejo, faltava tempo para o desejo aumentar. Me levantei, me olhei no espelho, me senti mais novo, tive aquela sensação que nos abraça às vezes quando recuperamos o tempo, quando nos libertamos do todo o dia sempre igual e recobramos parte da liberdade adolescente. Andei pelo quarto, senti os cheiros da noite passada, a desarrumação geral, copos e toalhas por todo o lugar, lembranças escondidas e foi então que vi o dinheiro ainda na mesinha e um bilhete curto. “Amor não tem preço.” Foi nessa hora que encontrei o sentimento certo. Entre nós, naquela noite e meio dia tinha acontecido apenas uma coisa, quase banal, mas muito difícil de acontecer. Ternura.
Max Gonรงalves 00
00
Garotos de Ipanema