Copyright © 2014 Alma Literária Editora Ltda.
ISBN 97885-67766-11-9
Temas de Direito Penal e Processo penal Autor
Humberto Fernandes de Moura (Org.) e outros Coordenação editorial
Maristela Carneiro
Coordenação gráfica:
Algo+ Soluções Editoriais Capa: Alex Pereira dos Santos, projeto gráfico e diagramação
Equipe Algo Mais Revisão
Eveline Machado Impressão
Singular Digital
O autor e a editora empenharam-se para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores dos direitos autorais de qualquer material utilizado neste livro, dispondo-se a possíveis acertos caso, inadvertidamente, a identificação de algum deles tenha sido omitida. Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na internet ou outros), sem permissão expressa da editora. Não é responsabilidade da editora nem do autor a ocorrência de eventuais perdas ou danos a pessoas ou bens que tenham origem no uso desta publicação. Apesar dos melhores esforços do autor, do editor e dos revisores, é inevitável que surjam erros no texto. Assim, são bem-vindas as comunicações de usuários sobre correções ou sugestões referentes ao conteúdo ou ao nível pedagógico que auxiliem o aprimoramento de edições futuras. Os comentários dos leitores podem ser encaminhados à Alma Literária, pelo e-mail:atendimento@algomaissolucoes.com.br
Rua Senador Dantas, 117/1340 20.031-204 – Centro Rio de Janeiro – RJ Tel: (21) 3549-4621 1ª edição – janeiro de 2015
INTR ODUÇÃO
TE MAS DE DIR EITO PENA L E PR OCESSO PENA L O presente trabalho é fruto do esforço de alunos concluintes da graduação que, reunidos com os três professores que organizaram o trabalho, apresentam, em forma de artigos, suas reflexões de final de curso. Os artigos foram reunidos pela proximidade do tema e divididos em Direito Penal e Direito Processual Penal e apresentam temas polêmicos em suas áreas de estudo, com extensa indicação bibliográfica, sendo uma importante fonte de pesquisa a respeito de temas contemporâneos na área penal e processual penal. Sem dúvida foi um projeto que custou muito esforço dos seus participantes servindo para coroar os dois anos que levaram desde a elaboração do projeto de monografia, passando pela sua defesa final e a adequação ao formato de artigo. Trata-se de projeto, até onde saiba, inovador e que muito tem a contribuir para o debate, tanto na área do Direito, quanto na área acadêmica, dado que reúne, em um esforço conjunto, alunos concluintes e professores com larga experiência no âmbito acadêmico e profissional. Espero que apreciem a leitura bem como se sintam motivados a fazer suas próprias reflexões bem como, eventualmente, motivar seus alunos que o façam. Boa leitura!
SUMÁR IO INTRODUÇÃO
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A PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA EXECUÇÃO PENAL
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Marina de Alencar Araripe Coutinho
A INCOMPATIBILIDADE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COM O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
23
Caroline Carvalho Guimarães
POLÍTICA PENITENCIÁRIA: PRISÃO PROVISÓRIA
43
Marcus Vinicius Reis Bastos
A (IN)APLICABILIDADE DO DOLO EVENTUAL NOS CRIMES DE HOMICÍDIO DE TRÂNSITO CAUSADOS POR EMBRIAGUEZ
55
Maíra Feitosa Seródio Araújo
O INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA CRIMINAL SOB UM OLHAR GARANTISTA
75
Lígia Reis Rocha
REDUÇÃO DA IDADE DE IMPUTABILIDADE PENAL: A OMISSÃO DO ESTADO EM FACE DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS COMO FATO IMPEDITIVO 91 Vívian Ludmila Gomes de Oliveira
O ENCARCERAMENTO DA LOUCURA: A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO ISOLAMENTO DOS INDESEJÁVEIS
113
Thayná Regina Navarros Cosme
REFORMA DA LEP E A REMIÇÃO DA PENA PELO ESTUDO: ALGUMAS REFLEXÕES Cristiana Oliveira de Carvalho Marcus Vinicius Reis Bastos
129
O TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO E COMÉRCIO SEXUAL: A INCOERÊNCIA DA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA FRENTE AO PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO DE PALERMO (DECRETO Nº 5.017/2004)
145
Nathália Gomes O. de Carvalho
O CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: TEMERÁRIA VAGUEZA? 163 José Carlos Veloso Filho
DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO: ANÁLISE DE SEUS PRESSUPOSTOS E CONTRIBUIÇÃO PARA DEFINIÇÃO DE PARÂMETROS OBJETIVOS
175
Humberto Fernandes de Moura
A (IN)APLICABILIDADE DAS GARANTIAS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL 191 Felipe Silva Martino
A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA
209
Gustavo Albertoni
O MITO DA IMPARCIALIDADE DO TRIBUNAL DO JÚRI: OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COMO FATOR EXTRAPROCESSUAL DE INFLUÊNCIA NA IMPARCIALIDADE DAS DECISÕES DO TRIBUNAL DO JÚRI. 231 Caroline Maria Vieira Lacerda
A CONSTITUCIONALIDADE DA NOVA CITAÇÃO POR HORA CERTA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
249
Marcela de Alencar Araripe Coutinho
A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA COMO MEIO DE PROVA – LEI Nº 9.296/96
269
Sônia Andrade
INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E VISÃO DA SEXTA TURMA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
289
Indalécio Wanderley Baldez Silva
DIVULGAÇÃO DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E A QUEBRA DE SEGREDO DE JUSTIÇA, SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 9.296, DE 24 DE JULHO DE 1996 315 Ana Luiza do Val Lima
REPRESENTATIVIDADE DOS JURADOS NO TRIBUNAL DO JÚRI Marilia Araújo Fontenele de Carvalho
335
A P A R TICIPAÇÃO DA INIC IA T IV A PRI VADA NA EXECU Ç Ã O PENA L
M A R INA D E A LENC A R A R A R I PE COUT I N HO
Resumo Trata-se de artigo que tem por objetivo analisar as experiências, no Brasil e no mundo, relacionadas à privatização prisional, com foco na falência do sistema carcerário brasileiro e indagando se tal medida seria a mais adequada. Para tanto, após apresentado um breve panorama do sistema de execução penal brasileiro, tem-se a análise de algumas das experiências estrangeiras de privatização penitenciária, bem como a introdução do modelo no Brasil, com suas nuances específicas. Por fim, apresentam-se as críticas ao tema, destacando-se os argumentos quanto à incompatibilidade da livre-iniciativa em relação ao poder de punir. Palavras-chaves: Execução penal; Privatização penitenciária; Terceirização; Poder de punir; Iniciativa privada. A execução penal, segundo a Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), em seu artigo 1º, tem dupla finalidade, qual seja, dar eficácia às decisões condenatórias de cunho criminal e, ao mesmo tempo, possibilitar a reinclusão social do condenado e do internado.
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Em que pese a lei permitir, em determinados casos, que o particular se substitua ao Estado e exerça o direito de figurar no polo ativo da ação penal, tem-se que, na fase executória, a legitimidade para punir será sempre estatal, ou seja, de natureza pública.1 Entretanto, o que se observa na prática é a ineficiência estatal em lidar com a execução penal no Brasil, já que, numa base diária, são violados direitos fundamentais dos presos, os quais vêm a sofrer em medida muito superior do que determina a condenação a eles imposta. Assim sendo, especula-se sobre possíveis medidas que amenizem tais problemas ou, pelo menos, contribuam para a efetivação de garantias previstas na Constituição Federal, bem como na Lei de Execução Penal. Entre tais medidas, vislumbra-se a privatização de prisões ou a terceirização de alguns dos serviços carcerários, cuja aplicabilidade é controversa. A crise do sistema penitenciário, tal como a que ocorre no Brasil atualmente, é apresentada por diversos doutrinadores como a origem do processo de privatização de prisões em vários países, em especial dos Estados Unidos, o modelo mais representativo quanto ao tema. Geisa de Assis Rodrigues, para explicar a tendência da privatização americana, adiciona ao argumento da crise penitenciária a política neoliberal iniciada por Ronald Reagan e que marcou os anos 1980, quando o Estado afastou-se da intervenção econômica e a iniciativa privada passou a ser mais atuante em diversos setores. A autora aduz que a “onda privatizante atingiu a seara penal em alguns países não só quanto à privatização dos presídios, mas até criando um conceito privado de segurança”, o que pode ser compreendido pelo aumento do número de empresas privadas que atuam no ramo da segurança.2 Além disso, a “ideologia de Lei e Ordem”, segundo a qual se busca um endurecimento das penas diante da ânsia da população em ver a punição da criminalidade, bem como a recusa da mesma em aceitar gastos públicos com o setor carcerário, o que é agravado pelo sensacionalismo direcionado para a questão, é um dos fatores que ensejou a ideia de privatizar prisões.3 O envolvimento de particulares no ramo carcerário norte-americano ocorreu por meio de três sistemas distintos: i) o arrendamento de prisões; ii) a contratação de particulares para a utilização de serviços determinados; e iii) a transferência da direção dos presídios à iniciativa privada.4
1
MARCÃO, Renato Flávio. Curso de Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 4-5.
RODRIGUES, Geisa de Assis. Privatização de Prisões: um debate necessário. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 28. 2
3 MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de Presídios e Criminalidade: a gestão da violência no capitalismo global. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 64. 4 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 97.
A PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA EXECUÇÃO PENAL
No primeiro sistema, as empresas privadas financiam a construção da prisão e estabelecem um contrato de arrendamento com o governo federal ou estadual interessado, sendo que, transcorrido determinado prazo, a propriedade do Estado sobre o imóvel se consolida. Tal sistema se mostra mais simples do que o financiamento de prisões por parte do próprio Estado, o que requer maior burocracia e torna os gastos públicos mais evidentes, desagradando os eleitores. O risco para o particular reside no fato de a renovação da locação estar condicionada ao interesse do Poder Público, conforme a população carcerária aumente ou diminua na localidade.5 No segundo sistema, a iniciativa privada é contratada para realizar certos serviços como alimentação, assistência médica ou até atuar nas chamadas “prisões industriais onde empresários podem ser contratados para dirigir ou estabelecer uma prisão de base industrial ou até contratar presos para prestar serviços em companhias vizinhas”. Trata-se de um contrato entre o Poder Público e o particular, no qual este se compromete a fornecer abrigo, alimento, vestimenta e fiscalização em troca do trabalho dos presos. Este sistema foi criticado pelos empresários de fora do sistema prisional, que o consideraram uma “concorrência desleal”, pois teria custos mais baixos e prejudicaria as condições de salário dos trabalhadores comuns. Apesar da aparente vantagem apresentada às empresas dispostas a trabalhar com o sistema prisional, a iniciativa privada não demonstrou interesse significativo no setor, tendo em vista que A grande maioria das prisões industriais continua nas mãos do Poder Público. E não é difícil de entender. Os empresários concebem que é difícil fazer dinheiro com as prisões industriais. Há a constante tensão entre as rotinas de segurança da prisão e as necessidades da produção industrial. Também os presos são frequentemente transferidos ou soltos e isto significa nova mão de obra a ser treinada em um breve espaço de tempo. E ainda há os custos de locação e transporte porque as prisões são geralmente situadas longe dos centros urbanos, onde os artigos feitos na prisão têm de ser vendidos.6
Neste sentido, segundo Marcelo de Figueiredo Freire, as empresas demonstram maior interesse em oferecer serviços e bens determinados do que na privatização de uma prisão por completo. O autor afirma que “O modelo de privatização total não é mais amplamente difundido, as funções de guarda de presos, administração e direção do estabelecimento devem permanecer com o Estado”.7 5 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 98. 6 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 99-100. 7 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 101.
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O terceiro sistema funciona de forma que a iniciativa privada, na figura de organizações não governamentais, construa e administre as prisões. Neste modelo, as empresas atuarão nos estabelecimentos destinados aos presos cujas penas estão em fase derradeira, naqueles destinados aos menores infratores e naqueles em que se recolhem os imigrantes ilegais.8 Além dos Estados Unidos, outros países também adotaram o sistema de participação da iniciativa privada na execução penal, como é o caso da Inglaterra. Inicialmente, a privatização de presídios na Grã-Bretanha se limitaria aos estabelecimentos para presos que aguardavam julgamento; entretanto, já existem empresas interessadas em controlar por completo as unidades penitenciárias. Apesar das semelhanças quanto às causas que ensejaram a desestatização do ramo prisional, o sistema britânico difere do americano em alguns quesitos. Primeiramente, na Inglaterra há maior centralização do poder, o que, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, leva a uma maior uniformização das medidas tomadas. Ademais, a verba que financia o sistema inglês é proveniente de impostos ou empréstimos, diferentemente do americano, no qual o financiamento das prisões é realizado pela emissão de títulos públicos condicionados à autorização legislativa e com valor limitado.9 Marcelo de Figueiredo Freire diferencia os dois modelos, ainda, quanto às características do contrato realizado entre o Poder Público e o particular. O autor afirma que nos Estados Unidos o preso é considerado um terceiro interessado na avença e, portanto, pode pleitear judicialmente o cumprimento dos termos firmados no instrumento contratual, garantindo a observância dos seus direitos. Já no modelo inglês, apenas as partes do pacto, ou seja, a empresa e o Estado, podem ir à juízo com o intuito de reivindicar o seu cumprimento, levando à conclusão que este sistema confere menos garantias aos presos que aquele.10 Em relação ao modelo francês, este difere do americano na medida em que o Estado e a empresa privada contratada para prestar serviços penitenciários gerenciam, em conjunto, o estabelecimento objeto do contrato, o que se denomina de cogestão, sendo que as partes têm atribuições preestabelecidas na avença.11 A experiência holandesa, por sua vez, reúne características distintas dos outros sistemas. Vejamos: 8 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 99. 9 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 103. 10 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 104. 11 ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; SANTOS, Eliane Costa dos; BORGES, Rosângela Maria Sá. O Modelo de Privatização Francês. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 81.
A PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA EXECUÇÃO PENAL
É argumento de objeção à privatização do sistema o de que a privação de liberdade é considerada um monopólio do Estado. As leis criminais deste país, como as brasileiras, preconizam que a execução das sentenças penais deve ser feita por órgãos públicos. O ingresso e a alocação de um preso dentro de um determinado estabelecimento penitenciário é feito (sic) sempre com o controle jurisdicional. Os delinquentes juvenis podem cumprir sua punição em instituições privadas previamente autorizadas pelo governo. A razão para tal fundamenta-se no argumento de que nas instituições privadas há um maior clima de liberdade que favorece a reabilitação. A responsabilidade do Estado subsiste mesmo quando a pena é cumprida em instituições privadas, logo já existe na Holanda – restrito à hipótese de delinquência juvenil – a execução de sentenças penais condenatórias em estabelecimentos privados; o que há de novo é a ideia de vincular-se o trabalho do preso com o lucro do empresário. A utilização da pena como uma forma de acumulação de capital privado vem sendo fortemente contestada, o que nos leva a afirmar que um modelo de privatização total como o norte-americano não ocorrerá na Holanda.12
Conclui-se que na Holanda o consenso é no sentido de não adotar a modalidade de privatização total, sendo que a participação da iniciativa privada no setor carcerário tem caráter subsidiário, resguardando-se ao Estado as atribuições de manutenção, organização e direção dos estabelecimentos prisionais. No Brasil, o assunto da privatização prisional é polêmico, tendo os autores apresentado as mais diversas opiniões contra e a favor do tema. Inicialmente, importa conceituar o instituto da privatização. Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, o conceito de privatização [...] abrange todas as medidas adotadas com o objetivo de diminuir o tamanho do Estado e que compreendem, fundamentalmente: a. a desregulação (diminuição da intervenção do Estado do domínio econômico); b. a desmonopolização de atividades econômicas; c. a venda de ações de empresas estatais ao setor privado (desnacionalização ou desestatização); d. a concessão de serviços públicos (com a devolução da qualidade de concessionária à empresa privada e não mais a empresas estatais, como vinha acontecendo); e. os contracting out (como forma pela qual a Administração Pública celebra acordos de variados tipos para buscar a colaboração do setor privado, podendo-se mencio-
12 FREIRE, Marcelo de Figueiredo. Privatização de presídios: uma análise comparada. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 105.
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nar, como exemplos, os convênios e os contratos de obras e prestação de serviços); é nesta última fórmula que entra o instituto da terceirização.13
Em relação à privatização de presídios, Fábio Maia Ostermann a conceitua como “a utilização de meios privados (a participação de empresas) para a consecução de fins públicos (a melhor administração da justiça na execução da pena)”.14 No Brasil, o sistema de privatização prisional segue o modelo de cogestão (francês), segundo o qual alguns serviços são transferidos para empresas privadas, sendo que a administração geral da penitenciária permanece com o Estado,15 concluindo-se, pois, que, conforme a classificação apresentada por Maria Sylvia Zanella di Pietro, a iniciativa privada participa da execução penal por meio da modalidade de privatização denominada terceirização. Júlio Fabbrini Mirabete discorre sobre a viabilidade da terceirização se serviços referentes à execução penal: É princípio da Lei nº 7.210, de 11.07.84, a cooperação das forças sociais na execução das penas. Nem a lei nem seu espírito impedem que entidade privada gerencie e opere os estabelecimentos penais, ressalvadas as atividades jurisdicionais e executivo-judiciárias dos órgãos da execução penal.16
Segundo este autor, a execução penal, na sua parte material (o que não envolve atividade judiciária ou administrativo-judiciária), pode ser repassada a entidades privadas sem prejuízo ao disposto na Lei de Execução Penal, eis que não afasta a participação do juiz no processo. Mirabete ressalva, apenas, o caso da aplicação de sanções disciplinares, que não poderiam ser aplicadas por particulares, por ter direta influência no desenrolar da execução da pena.17 A Lei de Execução Penal contém previsão quanto à participação da iniciativa privada na questão do trabalho do preso. Em seu artigo 34, §1º, a referida lei permite que o Poder Público celebre convênios com particulares para que sejam implantadas oficinas de trabalho nas penitenciárias. Também o artigo 36 admite que os reclusos trabalhem em serviços ou obras públicas realizados por empresas privadas, desde que
13 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 23-24. 14 OSTERMANN, Fábio Maia. A Privatização dos Presídios como Alternativa ao Caos Prisional. Portal Libertarianismo, disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/fmopdp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012, p. 9. 15 OSTERMANN, Fábio Maia. A Privatização dos Presídios como Alternativa ao Caos Prisional. Portal Libertarianismo, disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/fmopdp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012, p. 10 e 13. 16 MIRABETE, Júlio Fabbrini. A Privatização dos Estabelecimentos Penais Diante da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal). BD Jur, 1992, disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 15 nov. 2011. 17 MIRABETE, Júlio Fabbrini. A Privatização dos Estabelecimentos Penais Diante da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal). BD Jur, 1992, disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 15 nov. 2011.
A PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA EXECUÇÃO PENAL
respeitado o limite de 10% dos trabalhadores da obra, conforme o parágrafo primeiro deste dispositivo. No sistema brasileiro, a base normativa para a realização dos contratos de terceirização é a Lei nº 8.666/93. Terão a duração de cinco anos, período no qual o estabelecimento prisional já construído é passado à empresa contratante, que será responsável pela administração interna.18 O primeiro estabelecimento implantado no Brasil sob estes moldes foi a Prisão Industrial de Guarapuava (PIG), no Paraná, inaugurada em 12 de novembro de 1999. Nela, foram terceirizados alguns serviços como “alimentação, vestuário, higiene, assistência médica, psicológica e odontológica, bem como a segurança interna e a assistência jurídica”.19 Ao governo do Estado do Paraná coube nomear os integrantes da direção, vice-direção e direção de disciplina, os quais exercem tarefa de fiscalização para que a empresa contratada observe os ditames da Lei de Execução Penal.20 Após a experiência em Guarapuava, surgiram, no Paraná, outras prisões terceirizadas, tais como a Penitenciária Industrial de Cascavel, a Casa de Custódia de Curitiba, a Penitenciária Estadual de Foz do Iguaçu, a Casa de Custódia de Londrina e a Penitenciária Estadual de Piraquara.21 Em outros estados da federação, também existem estabelecimentos penais com participação da iniciativa privada, como é o caso do Ceará (Penitenciária Industrial Regional do Cariri) e do Espírito Santo (Penitenciária de Segurança Média de Colatina), somando, ao todo, dezesseis instituições. Ainda existem, nos estados de Pernambuco e Minas Gerais, “projetos de Parcerias Público-Privadas (PPP), na forma de concessão administrativa, com base na Lei nº 11.079/04”.22 As Parcerias Público-Privadas, na modalidade de concessão administrativa, que, segundo a Lei nº 11.079/04, consistem no “contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens”,23 são caracterizadas pelo fato de
18 OSTERMANN, Fábio Maia. A Privatização dos Presídios como Alternativa ao Caos Prisional. Portal Libertarianismo, disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/fmopdp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012, p. 10 e 13. 19 OSTERMANN, Fábio Maia. A Privatização dos Presídios como Alternativa ao Caos Prisional. Portal Libertarianismo, disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/fmopdp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012, p. 13. 20 OSTERMANN, Fábio Maia. A Privatização dos Presídios como Alternativa ao Caos Prisional. Portal Libertarianismo, disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/fmopdp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012, p. 13. 21 OSTERMANN, Fábio Maia. A Privatização dos Presídios como Alternativa ao Caos Prisional. Portal Libertarianismo, disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/fmopdp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012, p. 14. 22 OSTERMANN, Fábio Maia. A Privatização dos Presídios como Alternativa ao Caos Prisional. Portal Libertarianismo, disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/fmopdp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012, p. 15-16. 23 Lei nº 11.079/04, artigo 2º, § 2º, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/ l11079.htm>. Acesso em: 17 set. 2012.
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a remuneração do particular ser responsabilidade do poder público, sendo que o pagamento é efetuado apenas após a realização total ou parcial do serviço contratado.24 Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, “Na concessão administrativa, se o objeto for a prestação de serviço, o concessionário, da mesma forma que na empreitada, vai assumir apenas a execução material de uma atividade prestada à Administração Pública; esta é que detém a gestão do serviço”.25 A matéria da privatização prisional já foi objeto de ampla discussão no âmbito do Poder Legislativo. Entretanto, apesar de a discussão haver chegado a um ponto em que se concebeu um modelo de privatização total de estabelecimentos penais no Brasil, como é o caso do Projeto de Lei nº 2.146/99, os argumentos apresentados mais recentemente vêm resguardando ao Poder Público amplo rol de atribuições indelegáveis, conforme se consignou na Resolução nº 8, de 9 de dezembro de 2002, do CNPCP, senão vejamos: Art. 1º Recomendar a rejeição de quaisquer propostas tendentes à privatização do Sistema Penitenciário Brasileiro. Art. 2º Considerar admissível que os serviços penitenciários não relacionados à segurança, à administração e ao gerenciamento de unidades, bem como à disciplina, ao efetivo acompanhamento e à avaliação da individualização da execução penal possam ser executados por empresa privada. Parágrafo único. Os serviços técnicos relacionados ao acompanhamento e à avaliação da individualização da execução penal, assim compreendidos os relativos à assistência jurídica, médica, psicológica e social, por se inserirem em atividades administrativas destinadas a instruir decisões judiciais, sob nenhuma hipótese ou pretexto deverão ser realizadas por empresas privadas, de forma direta ou delegada, uma vez que compõem requisitos da avaliação do mérito dos condenados.26
Uma parte significativa da doutrina repudia a privatização das prisões pelas mais diversas razões, principalmente em relação ao modelo americano, que é o sistema mais criticado. Segundo Löic Wacquant, professor, pesquisador e autor de diversas obras sobre desigualdade humana, violência e corpo, dominação racial e teoria sociológica, a pobreza, a criminalidade, o desemprego e o subemprego estão em vertiginosa ascensão nos Estado Unidos, o que ocorre à margem da aparência de crescimento econômico, 24 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 159. 25 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 167. 26 BRASIL. Projeto de Lei nº 2.825/03. Disponível em: fichadetramitacao?idProposicao=149996>. Acesso em: 30 ago. 2012.
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
A PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA EXECUÇÃO PENAL
que só aproveita uma minoria. Tal situação teria levado à necessidade do fortalecimento de um Estado punitivo, resultando na triplicação do número de aprisionados em quinze anos, o que causou espanto pelo fato de a criminalidade não haver sofrido aumento no período analisado.27 Tal ascensão do encarceramento se explica, principalmente, pela prisão de pequenos delinquentes e usuários de drogas oriundos da precária classe trabalhadora e, em geral, negros e latinos, que ocupam estabelecimentos prisionais os quais funcionam com lotação acima de sua capacidade. Assim, com o crescimento de gastos que extrapolaram o orçamento previsto para a área e com cada vez mais demanda pela construção de novos estabelecimentos carcerários, ocorreu a proliferação de prisões privadas. O sistema penal norte-americano é o que mais exporta políticas repressivas, bem como modelos de prisões privadas e de exploração de trabalho carcerário. A taxa de encarceramento deste país é bem mais alta que a dos demais, mas, paradoxalmente, sua taxa de criminalidade não excede o padrão internacional. Em relação ao Brasil, Wacquant afirma que Em primeiro lugar, por um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de ‘globalização’) e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades.28
Tal situação, segundo o autor, torna sedutora a “penalidade neoliberal”, que pode ser entendida pela pretensão de “remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social”,29 dando origem a políticas cada vez mais repressoras e culminando em medidas como a privatização prisional. No Brasil, a desestatização penitenciária também é alvo de críticas: os responsáveis pela implantação das prisões privadas não estão preocupados com a dignidade dos presos na execução penal, mas em explorar o trabalho daqueles que demonstrarem rentabilidade, evidenciando o afastamento de tal proposta dos ideais de ressocialização. Outro fator negativo é que as prisões privadas selecionam os presos que serão admitidos no estabelecimento, sendo escolhidos apenas aqueles de bom comportamento e lá permanecendo os que demonstrem aptidão para o trabalho. Neste sentido:
27
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 1ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 80-81.
28
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 1ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 8.
29
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 1ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 7.
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Como as empresas tendem a se concentrar na ponta leve do sistema, um sistema penitenciário de duas camadas pode vir a se estabelecer, no âmbito do qual as companhias se apropriam da fatia menos problemática e teoricamente ‘menos custosa’ da população carcerária, contribuindo assim para o agravamento do processo de precarização dos estabelecimentos públicos.30
Teme-se que as empresas privadas que se interessem em administrar o trabalho dos encarcerados exerçam um forte lobby para a criminalização de novas condutas e para que o tempo de reclusão seja maior, como acontece no exemplo americano.31 Além desses eventuais desvios de efetivação, em relação aos quais se costuma fazer ouvidos moucos, até pelo próprio tom messiânico do discurso privatizador, outras contradições podem surgir. O crescimento no número de presídios e presidiários parece-nos consequência direta da proposta de tornar negócio a administração carcerária, pela própria vocação expansiva do capital privado. Frustra-se, assim, o curso da desejável retração do sistema repressor estatal, sobretudo da diluição da privação de liberdade como a suma forma de execução penal.32
As críticas à privatização, nos termos jurídicos, residem no grau de coerção inerente à administração dos estabelecimentos, do qual decorre o direito de privar a liberdade dos indivíduos e fazer uso da força, o que deveria ser um monopólio do Estado.33 O professor João Marcelo de Araújo Jr. afirma que o Estado não tem legitimidade para transferir o poder punitivo para outra pessoa, física ou jurídica, argumento corroborado pelas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (ONU) e também pelo artigo 34 da Lei de Execuções Penais. No entanto, o artigo 36 da LEP, que diz respeito ao trabalho externo, tem favorecido as empresas ao admitir que os presos prestem serviços a entidades privadas. Hoje em dia, segundo Zygmunt Bauman, a ideia de reabilitação pela pena foi deixada de lado, o que se percebe pela exploração econômica do trabalho dos presos sem objetivo ético e educacional, mas com caráter amplamente utilitarista. A finalidade do lucro se contrapõe ao princípio da intervenção mínima, pois aqueles que deveriam ser responsáveis pela execução penal, no caso da privatização, visam apenas a aumentar seus rendimentos através do trabalho de condenados por 30 MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de Presídios e Criminalidade: a gestão da violência no capitalismo global. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 89. 31 ZACKZESKI, Cristina. Relações de trabalho nos presídios. Criminologia Crítica. Disponível em: <www. criminologiacritica.com.br>. Acesso em: 27 ago. 2011. 32 NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Trabalho Encarcerado e Privatização dos Presídios: reflexões à luz da Convenção nº 29 da OIT. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/11_226.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2012, p. 13. 33 MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de Presídios e Criminalidade: a gestão da violência no capitalismo global. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 86-87.
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crimes não violentos e que apresentem bom comportamento, os quais, por sua vez, nem deveriam estar encarcerados.34 Segundo Erivan Santiago França Filho, a proposta da privatização é inconstitucional, pois [...] como bem aponta o Professor João Marcello de Araújo Júnior [...], “a Constituição Brasileira adotou os princípios decorrentes da teoria personalista do Homem, que se caracterizam por declarar a indisponibilidade da pessoas humana e reconhecer no ser humano os atributos da personalidade”. O eminente professor salienta também que “o objetivo teórico da administração penitenciária é combater a criminalidade, e não obter lucros, objetivo maior das empresas que desejam participar da administração penitenciária [...] Retirando esse lucro da própria existência da criminalidade, tais empresas [...] não irão lutar contra a criminalidade – e se não têm tal interesse, não devem administrar prisões”.35
Afirma ainda o autor que a privatização prisional seria inconstitucional, pois iria de encontro com o capítulo dos direitos e garantias fundamentais da Carta Magna, quando esta veda a submissão do ser humano a tratamento degradante, impõe punição a qualquer discriminação que atente contra os direitos e liberdades fundamentais, exclui penas de trabalho forçado, impõe respeito à dignidade da pessoa humana e consagra o princípio da jurisdição única.36 No entanto, nem todas estas críticas se confirmam, já que, como visto anteriormente, o sistema de execução penal brasileiro veda a transferência do poder de punir ao particular, permitindo, tão somente, a terceirização de alguns serviços, para que o Estado possa concentrar seus esforços na fiscalização dos trabalhos carcerários, bem como na execução da pena em si, cabendo à Administração Pública determinar os parâmetros dos serviços a serem prestados, de forma a garantir o cumprimento do objetivo ressocializador da pena. Para tanto, observa-se que nem todos os serviços são passíveis de terceirização, já que alguns deles influenciam diretamente na vida do apenado dentro do cárcere, como é o caso da aplicação de sanções disciplinares, bem como da direção do estabelecimento penitenciário e do acompanhamento judicial do cumprimento da pena. Assim, evita-se que a empresa contratada possa intervir na duração da pena ou atentar contra a integridade física do preso. Quanto aos serviços a serem terceirizados, os quais devem ser ostensivamente fiscalizados pelo Poder Público, importa consignar que a existência de empresas es34 ZACKZESKI, Cristina. Relações de trabalho nos presídios. Criminologia Crítica. Disponível em: <www. criminologiacritica.com.br>. Acesso em: 27 ago. 2011. 35 FRANÇA FILHO, Erivan Santiago. Da Ilegalidade das prisões privadas. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcelo. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 35. 36 FRANÇA FILHO, Erivan Santiago. Da Ilegalidade das prisões privadas. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcelo. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 36.
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pecializadas no ramo carcerário é um fator preocupante no que tange à formação de um lobby para a expansão do setor. Neste caso, considera-se mais favorável que as empresas, sempre que possível, não sejam especializadas em trabalhos penitenciários, mas que já prestem os serviços para os quais foram contratadas. Por exemplo, a contratação de uma empresa que já confecciona uniformes ou que já produza refeições em quantidade etc. Assim, apesar do âmbito de atuação limitado, tem-se que a terceirização de serviços carcerários pode contribuir para melhor atender às demandas básicas dos presos, como alimentação, higiene, vestuário, saúde, educação, trabalho etc., deixando à Administração Pública a atuação principal na execução da pena, sendo esta a tendência do campo administrativo como um todo, ou seja, concentrar-se na atividade fim, repassando as atividades meio para a iniciativa privada, visando ao princípio da eficiência. Imagine-se, por exemplo, o quão dispendioso é para o Poder Público a realização de um concurso para a contratação de um cozinheiro e de uma equipe de cozinha para o presídio, o que, posteriormente, envolveria uma preocupação diária em adquirir alimentos e materiais para a preparação das refeições. Esta é uma das situações que seriam otimizadas pela terceirização de serviços e, repita-se, permitiria a concentração dos esforços públicos no cumprimento de pena em si. Quanto à aferição de lucro por parte do particular, tem-se que esta é circunstância intrínseca para que a iniciativa privada tenha interesse no setor, o que não significa que mais pessoas venham a ser presas, já que a prisão depende de decisão fundamentada por parte do Poder Judiciário, mas sim que a parceria seja vantajosa para o empreendedor, o Poder Público e o preso. O aumento do valor gasto com cada preso seria uma consequência natural, já que o que se pretende é a melhora das condições do cárcere. Quanto ao trabalho dos presos, não se desconhece que é possível que este venha a ser explorado pela empresa contratada, interessada em obter mão de obra barata proporcionada pela massa encarcerada.37 Novamente, a fiscalização se faz imprescindível para que o particular possa contratar trabalhadores presos, sendo que a natureza das atividades deve contribuir para a ressocialização destes, garantidos os direitos trabalhistas previstos àqueles que cumprem pena privativa de liberdade, bem como observado o limite disposto no artigo 36, §1º da LEP. Ressalta-se que o contrato não é realizado diretamente entre o preso e o empreendedor, sendo a avença precedida pela interferência do ente envolvido, já que o regime jurídico a ser observado é de direito público.38 Consideradas as observações acima, o que se conclui quanto à questão laboral do preso é que qualquer trabalho, desde que não atente contra a dignidade do apenado, será uma alternativa melhor do que o ócio, eis que este estimula conflitos e violência. 37
O salário mínimo do preso pode ser de até 3/4 do salário mínimo vigente, não menos que isso.
BANQUEIRO, Fernanda Ravazzano Lopes. Da Necessidade da Declaração e Respeito aos Direitos Trabalhistas dos Presos e o Papel do Ministério Público do Trabalho no Combate à Exploração da Mão de Obra Carcerária. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/fernanda_ravazzano_lopes_baqueiro. pdf>. Acesso em: 28 set. 2012. 38
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Ainda, considera-se que a preferência por presos de melhor comportamento é um fator positivo no âmbito do cumprimento de pena, já que permite ao Estado concentrar-se naqueles que demandam mais atenção por parte da equipe de segurança do presídio, sendo importante ressaltar que este é um dos serviços indicados pela Resolução nº 8, de 9 de dezembro de 2002, do CNPCP, para que não sejam repassados ao particular. Assim, faz-se conveniente que as prisões que contem com serviços de empresas terceirizadas tenham uma demanda menor pela atuação da segurança, bem como pela aplicação de sanções disciplinares. Não se pretende, neste trabalho, apresentar as soluções para todos os problemas do setor carcerário, uma vez que estes estão assentados em causas profundas que envolvem a falta de vontade política na melhora do sistema, que reflete, por sua vez, o senso comum de que as pessoas que cometem crimes não merecem um tratamento digno. Além disso, a situação do sistema carcerário brasileiro é um reflexo da sociedade desigual e injusta em que vivemos, sendo certo que os criminosos mais danosos à coletividade, quais sejam, aqueles de colarinho branco, dificilmente passarão por uma penitenciária.39 Todavia, todo esforço em conceder melhorias à qualidade de vida dos presos, que, atualmente, sofrem muito além da sanção que lhes é aplicada, é válido e deve ser tentado, sob pena da falência irrecuperável do sistema penal brasileiro. Ressalta-se, por fim, que de nada serve o investimento em melhorar presídios se as disparidades sociais que ocorrem fora dele se perpetuarem, considerando-se a terceirização de serviços penitenciários uma medida de curto prazo, que deve ser aliada a políticas públicas ligadas à educação, saúde, infraestrutura, cultura etc., além da concepção de medidas alternativas à prisão para que o cárcere passe a ser, de fato, uma exceção, a ultima ratio. Ante o exposto, percebe-se que o tema não é de simples resolução, comportando discussões aprofundadas, as quais são importantes para que se delineiem os limites da privatização de forma a evitar excessos, bem como a manter em pauta o objetivo ressocializador da pena.
Referências ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; SANTOS, Eliane Costa dos; BORGES, Rosângela Maria Sá. O Modelo de Privatização Francês. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 81.
39 O que se observa é que os crimes que encontram uma resposta mais significativa do sistema penal nem sempre são aqueles que causam o maior dano à coletividade. Conforme o Sistema de Informações Penitenciárias (InfoPen), do Ministério da Justiça, existem, no Brasil, 34.794 pessoas presas pelo crime de furto simples, contra 60 pessoas presas pelo crime de corrupção passiva (dados referentes ao ano de 2011).
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A IN COMPATIBILIDADE DO DIREIT O PE NAL DO INIMIGO C OM O ES T A DO DEMOCR ÁTICO DE DIREIT O
C A R O LINE C A R VA LH O GUI MARÃES
Resumo Este artigo versa sobre a teoria do Direito Penal do Inimigo desenvolvida por Günther Jakobs, que postula o emprego de um Direito Penal diverso do comum para aqueles considerados inimigos (não pessoas), ou seja, que não oferecem garantias mínimas de um comportamento pessoal. Para Jakobs, esse Direito Penal coexistiria com o Direito Penal do Cidadão. Por meio da análise das características do Direito Penal do Inimigo, este estudo compara as propostas estática e dinâmica de contenção do poder punitivo, bem como relaciona tal teoria com o modelo penal de segurança cidadã, a expansão do Direito Penal, o Direito Penal de Terceira Velocidade e o Direito Penal do Autor. Em seguida, contrapõe o Direito Penal do Inimigo com o garantismo penal e os princípios e direitos fundamentais presentes no Estado Democrático de Direito. Assim, o presente trabalho almeja demonstrar que a construção teórica do Direito Penal do Inimigo deve ser rechaçada, devido a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito. Palavras-chaves: Direito Penal do Inimigo; Estado Democrático de Direito; Garantismo penal. 23
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Introdução Neste artigo, será analisada a compatibilidade entre a teoria do Direto do Inimigo, proposta por Günther Jakobs – professor de Direito Penal e Filosofia do Direito na Universidade de Bonn, Alemanha –, e o Estado Democrático de Direito. Jakobs considera que devem coexistir o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo. Nessa construção teórica, o inimigo recebe um tratamento diferenciado do cidadão. Jakobs entende que tal Direito Penal deve ser limitado, para que todo o Direito Penal não se transforme em Direito Penal do Inimigo. Assim, considera que o Direito Penal do Inimigo é coerente com o Estado de Direito.
O Direito Penal do Inimigo De acordo com Jakobs (2010), pertencem ao Direito Penal o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo. São tipos ideais que, comumente, aparecem misturados, sendo que o primeiro é a regra. O Direito Penal do Cidadão é dirigido à pessoa que cometeu um crime, mas que oferece garantias de obediência ao ordenamento jurídico. O Estado a vê como alguém que cometeu um erro e que não delinque de maneira persistente por princípio. Já o Direito Penal do Inimigo é destinado ao indivíduo que se autoexcluiu ou que coloca em risco a existência do Estado, ou seja, que se desvia por princípio. O inimigo não é uma pessoa, pois não oferece garantias de um comportamento pessoal. Desse modo, é um perigo para a sociedade (JAKOBS, 2010). Por se basear na teoria dos sistemas sociais, Jakobs considera que a pessoa existe em razão de sua relação social. Pessoa é o sujeito que tem responsabilidades. O conceito de pessoa é uma construção social, e não algo posto pela natureza. Por tal razão, não basta ser humano para ser visto como pessoa jurídico-penal para Jakobs (MORAES, 2010). Por um lado, no Direito Penal do Cidadão, a pessoa que comete um delito recebe como punição uma pena, a qual significa que o crime não é relevante, pois não afetou a vigência da norma. Por outro, no Direito Penal do Inimigo, a medida aplicada contra o inimigo é a coação – custódia de segurança –, que não denota nada, apenas pretende ser efetiva. Desse modo, as sanções aplicadas cumprem, respectivamente, as funções de contradição (imposição de dor) e eliminação de perigo (JAKOBS, 2010). Ademais, o tratamento diferenciado destinado ao inimigo pode ser vislumbrado na coexistência de duas formas de regulação. No caso do cidadão, o Estado aguarda a exteriorização da conduta criminosa para agir. Assim, são puníveis os atos executórios. No caso do inimigo, é necessário que o Estado se antecipe à prática do delito, para
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combater a periculosidade do autor do crime e preservar o direito de segurança dos cidadãos. Com isso, são puníveis os atos preparatórios (JAKOBS, 2010). São considerados inimigos quem pratica, por exemplo, as seguintes condutas delituosas: crimes sexuais, crimes econômicos, crimes relacionados às drogas, crimes organizados, crimes graves e terrorismo (JAKOBS, 2010). O Direito Penal do Inimigo é legítimo devido ao direito de segurança dos cidadãos e à necessidade do Estado em manter a sua configuração. No entanto, o Direito Penal do Inimigo deve ser restringido ao imprescindível, pois nem todo criminoso é um inimigo. Além disso, considera que, em um Estado de Direito, não se pode ter linhas e fragmentos do Direito Penal do Inimigo no Direito Penal geral (JAKOBS, 2010). Com isso, Jakobs propõe que tal fenômeno seja integrado ao ordenamento jurídico ordinário, mas que seja claramente delimitado, para que não ocorra o entrelaçamento de todo o Direito Penal com pedaços do Direito Penal do Inimigo. Em suma, o Estado deve distinguir o que é dirigido ao inimigo e o que é destinado ao cidadão. Se isso não for feito, o Direito Penal do Inimigo pode contaminar o Direito Penal do Cidadão. Portanto, na visão de Jakobs (2010), o Direito Penal do Inimigo não representa uma afronta ao Estado de Direito, pois só seria se viesse mascarado de Direito Penal do Cidadão ou de processo penal comum.
As Propostas Estática e Dinâmica de Contenção do Poder Punitivo É importante compreender, entretanto, se o Direito Penal do Inimigo é realmente compatível com o Estado Democrático de Direito, tal como percebe Jakobs. Nas últimas décadas, tem-se observado, na política criminal, a expansão do Direito Penal, que pode ser evidenciada pelo ressurgimento do punitivismo e pelas inúmeras explicações teóricas favoráveis às políticas repressivas, tais como Direito Penal simbólico, Direito Penal em várias velocidades e Direito Penal do autor (MELIÁ, 2010; ZAFFARONI, 2007). Nesse contexto, há duas táticas de delimitação do tratamento diferenciado do inimigo executado pelo poder punitivo e permitido pela legislação: a estática e a dinâmica (ZAFFARONI, 2007). A proposta de Jakobs é estática, pois admite o tratamento diferenciado destinado ao inimigo de forma limitada e acredita que isso irá conter o Estado de Polícia presente em todo Estado de Direito concreto. Portanto, Jakobs não visa ao fim do Estado de Direito – ele considera que a sua tática evitará a contaminação de todo o Direito Penal com fragmentos do Direito Penal do Inimigo (ZAFFARONI, 2007).
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O Direito Penal do Inimigo proposto por Jakobs não representa nenhuma novidade, por ser herança de um modo de pensar ocidental baseado no autoritarismo político. Trata-se do renascimento de uma ideia totalitária (CUSSAC, 2007; PRADO, 2011). Jakobs, por meio de sua proposta estática, erra por não perceber que a admissão do conceito de inimigo político no ordenamento jurídico só é possível em um Estado Absoluto. Ademais, a tática de contenção de Jakobs, ao não considerar que todos são iguais perante a lei e admitir um tratamento diferenciado destinado aos inimigos, contraria o princípio do Estado de Direito ideal, que é essencial como orientador de todo Estado de Direito concreto (ZAFFARONI, 2007). A limitação imposta por Jakobs ao Direito Penal do Inimigo culmina na restrição dos princípios do Estado de Direito (ZAFFARONI, 2007). Como a definição de quem é inimigo não é concreta, existe um juízo subjetivo na individualização que pode culminar no enquadramento de qualquer pessoa socialmente indesejável como inimigo e no risco de considerar quase todo o Direito Penal como Direito Penal do Inimigo (CONDE, 2010; ZAFFARONI, 2007). A proposta de contenção de Jakobs ignora que a realidade é dinâmica. Por isso, só é plausível do ponto de vista estático. Mesmo que se permita um espaço limitado ao Direito Penal do Inimigo, o Estado de Polícia que integra todo Estado de Direito concreto não irá parar de pulsar (ZAFFARONI, 2007). Assim, o Estado de Polícia vai querer ultrapassar os limites e avançar até se transformar no Estado Absoluto, totalitário, autoritário (CONDE, 2010; MELIÁ, 2010; ZAFFARONI, 2007). Ademais, a diferenciação entre cidadão e inimigo pressupõe a existência de uma guerra, mas não se trata da guerra em um sentido bélico, que envolve confrontos entre Estados, pois o Direito Penal Militar e de Guerra já trata desse tipo, o que tornaria desnecessário invocar um Direito Penal do Inimigo, mas sim de uma guerra permanente e irregular (ZAFFARONI, 2007). Na guerra permanente, não se pode invocar o cumprimento das limitações penais, pois se trata de uma guerra, nem das limitações do Direito Internacional Humanitário, pois não é uma guerra clássica (ZAFFARONI, 2007). Nota-se que o Direito Penal do Inimigo representa, na verdade, uma medida de exceção, e não deveria sequer ser intitulado como Direito Penal (MELIÁ, 2010). Assim, a expressão Direito Penal do Cidadão é redundante, pois todo Direito Penal é voltado para o cidadão (CALLEGARI; DUTRA, 2007; MELIÁ, 2010; QUEIROZ, 2008). A tática dinâmica parte do pressuposto de que todo Estado de Direito contém um Estado de Polícia, que está retido, após um longo processo de luta contra o poder absoluto. Por não ter deixado de existir, o Estado de Polícia tenta sempre se livrar do controle que lhe é imposto. Com isso, há uma dialética contínua entre Estado de Direito e Estado de Polícia (ZAFFARONI, 2007).
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O Estado de Polícia busca se livrar da contenção ao agir no Direito Penal, por ser a área mais frágil do Estado de Direito. Portanto, quanto maior for o espaço dado pelas legislações penais ao poder punitivo menor será a contenção do Estado de Polícia (ZAFFARONI, 2007). O poder jurídico não consegue conter toda a presença do poder punitivo, devido às suas limitações. Desse modo, cabe ao Direito Penal propor uma contenção que somente aceite a passagem do poder punitivo menos irracional (ZAFFARONI, 2007). Como o Direito Penal do Inimigo cede um espaço ao poder punitivo, ele não pode ser admitido. Caso contrário, significaria aceitar o retrocesso depois de um difícil processo de conquista dos direitos e das garantias inalienáveis (CALLEGARI; DUTRA, 2007). Portanto, os considerados inimigos não podem receber um tratamento diferenciado. Se cometerem alguma infração penal devem ser individualizados, presos, processados, julgados e condenados, como acontece com qualquer pessoa, e devem ter assegurados seus direitos e garantias (ZAFFARONI, 2007).
O Direito Penal do Inimigo e o Modelo Penal de Segurança Cidadã Na sociedade contemporânea, estão cada vez mais presentes os sentimentos de insegurança e medo. Isso gera uma maior preocupação com as novas maneiras de criminalidade, como o crime organizado e o terrorismo. Esse medo da criminalidade proporciona consequências sociais no âmbito individual e coletivo. No primeiro, percebe-se que as pessoas alteram as suas condutas para evitar que sejam vítimas de um crime, ou seja, são atingidos a qualidade e o estilo de vida dos cidadãos. No segundo, observa-se que o medo acarreta a diminuição das interações sociais, o abandono dos locais públicos e a ruptura do controle social informal (CALLEGARI; WERMUTH, 2010). Há um alarmismo em relação à segurança que culmina no anseio popular pelo aumento da presença e pela eficácia das instâncias de controle social, sendo que o Direito Penal e as instituições do sistema punitivo são declarados meios mais aptos a garantir a segurança dos cidadãos (CALLEGARI; WERMUTH, 2010). Desse modo, o Estado usa diversos meios sociais, como a política criminal, para controlar os riscos e diminuir o medo da sociedade (RIPOLLÉS, 2005). A política criminal voltada para a resolução das necessidades da sociedade de risco apresenta quatro características principais. A primeira é a evidente ampliação dos âmbitos sociais que são objetos da intervenção penal. A segunda é a notável alteração do alvo da política criminal, que passou a ser a criminalidade dos poderosos,
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pois estes são os únicos capazes de desenvolver as atividades delitivas características da sociedade de risco. A terceira é o destaque dado à intervenção penal a despeito de outros mecanismos de controle social. A quarta é a necessidade em adaptar as especiais dificuldades na persecução da nova criminalidade – utilização de novas técnicas delitivas, definição de quais são os riscos não permitidos e a individualização da responsabilidade – aos conteúdos do Direito Penal e Processual Penal (RIPOLLÉS, 2005). Entretanto, houve uma mudança no modelo de intervenção penal, com o surgimento da segurança cidadã. Apesar de esse modelo ser equiparado ao discurso da sociedade de risco, são realidades distintas. O modelo penal de segurança cidadã não se refere às áreas de riscos tecnológicos, mas sim à criminalidade tradicional. Assim, tal modelo utiliza fenômenos próprios da sociedade de risco para abordar as propostas securitárias, como se fosse um aspecto adicional na manifestação da expansão do Direito Penal ligado à consolidação da moderna sociedade de risco, sendo que são correntes distintas que tratam de realidades sociais e perspectivas ideológicas diferentes (RIPOLLÉS, 2005). O modelo de segurança cidadã considera que a causa essencial da criminalidade tradicional é o abrandamento da repressão e a impunidade da maioria dos quem praticam esses crimes. Desse modo, preconiza que haja o aumento das penas, a retirada das garantias e a procura pelo abandono da impunidade (CALLEGARI; WERMUTH, 2010). Um novo desenvolvimento na composição das bases analíticas do modelo penal da segurança cidadã foi o uso da diferenciação entre quem faz jus ou não a ser tratado como cidadão em uma comunidade. Foi Jakobs quem estabeleceu, na política criminal moderna, a mais completa oposição entre cidadão e indivíduo. O Direito Penal do Inimigo expressa duas contribuições importantes ao modelo penal de segurança cidadã: a depreciação de passar de criminoso a inimigo e a expansão da intervenção penal com base em características pessoais do agente, e não no fato cometido por ele. Trata-se de uma proposta específica para agradar as demandas sociais de segurança cidadã (RIPOLLÉS, 2005). O Direito Penal do Inimigo se baseia na ideia de periculosidade, sendo que, assim, não é necessário esperar a produção de um dano ou o surgimento de um perigo identificável para intervir penalmente. Isso implica na aceitação pela ciência jurídico-penal da chamada expansão securitária, sob o rótulo de legislação de guerra ou de emergência. Por meio dessa expansão, é possível punir atos praticados em fases anteriores e distantes da execução do crime com penas equiparadas às das intervenções posteriores e mais próximas da conduta lesiva ou perigosa, além da generalização e do aumento das penas de prisão, da restrição de obtenção de benefícios penitenciários, do retorno ao cumprimento sucessivo de pena e medida de seguran-
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ça e do aumento dos internamentos de segurança antes e depois do cumprimento de pena (RIPOLLÉS, 2005). Diante das dificuldades de configuração do Direito Penal moderno, deve-se acreditar na perfeita coerência entre a modernização e o atual sistema de garantias penais e processuais penais, o que impede a adoção de propostas que almejem reinterpretar tais garantias, como ocorre no modelo penal de segurança cidadã (RIPOLLÉS, 2005).
O Direito Penal do Inimigo e a Expansão do Direito Penal A expansão do Direito Penal é percebida pelo aparecimento de novos tipos penais nas legislações e pela alteração dos já existentes em um ritmo acelerado; pela flexibilização das regras de imputação e pela relativização dos princípios garantistas (CALLEGARI; DUTRA, 2007; COSTA; RODRIGUES, 2008; MELIÁ, 2010). Isso ocorre em razão de o Direito Penal ser visto como o melhor meio para resguardar os bens jurídicos relevantes (COSTA; RODRIGUES, 2008). O Direito Penal simbólico e o ressurgimento do punitivismo são decorrentes dessa política criminal (COSTA; RODRIGUES, 2008; MELIÁ, 2010). A expansão do Direito Penal apresenta algumas características próprias. A primeira é a identificação e a solidarização da coletividade com as vítimas dos crimes, devido ao medo de se transformar em uma. Assim, o Direito Penal deixa de ser um mecanismo de defesa dos cidadãos em face do arbítrio estatal punitivo, ou seja, como Carta Magna do criminoso, e passa a ser visto como Carta Magna da vítima. Isso ocasiona um consenso restritivo dos riscos permitidos, pois as pessoas se enxergam como vítimas potenciais de um delito e não admitem que alguns riscos sejam tidos como permitidos. A segunda é a politização do Direito Penal por meio do uso da ideia de segurança pelos políticos. A terceira é a instrumentalização do Direito Penal, ou seja, a noção de que tal Direito deve impedir que os riscos tornem-se casos reais de perigo. A quarta é o desprezo pelas formalidades e garantias penais e processuais penais inerentes ao Direito Penal liberal (CALLEGARI; WERMUTH, 2010). O Direito Penal simbólico, em um sentido crítico, se caracteriza pela criminalização de certos fatos que busca apenas obter efeitos meramente simbólicos. Assim, a sociedade terá a impressão de tranquilidade por meio da atuação do legislador, que pretende se mostrar atento e decidido, sendo que há uma divergência entre os objetivos utilizados pelo legislador e a agenda real escondida sob os pronunciamentos expressos (MELIÁ, 2010). O Direito Penal simbólico não soluciona a questão da criminalidade – ele somente é utilizado para agradar a opinião pública e a mídia, que exigem a tomada de
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providências pelo Estado para reprimir a criminalidade violenta presente nas grandes cidades (ALMEIDA, 2004). O retorno ao punitivismo é evidenciado pela criminalização de novos tipos penais e pelo endurecimento dos existentes de forma rápida, o que contraria a tendência de descriminalização. Há um clima punitivista no debate político e uma tendência do legislador em reagir com solidez na luta contra a criminalidade (MELIÁ, 2010). O Direito Penal simbólico e o retorno ao punitivismo são fenômenos que se relacionam fraternalmente. Aquele identifica certos autores como outros, não integrados na identidade social. Para tanto, precisa dos aspectos vigorosos do punitivismo exagerado. Da junção do Direito Penal simbólico e do punitivismo, apareceu o Direito Penal do Inimigo (MELIÁ, 2010).
O Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal de Terceira Velocidade Silva Sánchez diferencia o ordenamento jurídico-penal em velocidades. O Direito Penal de primeira velocidade é aquele em que são aplicadas penas privativas de liberdade e são conservados os princípios processuais clássicos, as regras de imputação e os princípios político-criminais. O Direito Penal de segunda velocidade é aquele em que são cominadas penas pecuniárias ou restritivas de direito aos novos tipos penais e, devido a menor gravidade das sanções, são flexibilizados os princípios e as regras clássicas. O Direito Penal de Terceira Velocidade é aquele em que são aplicadas penas privativas de liberdade e são flexibilizados as regras de imputação e os princípios político-criminais (MELIÁ, 2010). Percebe-se, assim, que o Direito Penal de terceira velocidade evidenciado por Sánchez se assemelha ao Direito Penal do Inimigo proposto por Jakobs, que apresenta, como já dito, as seguintes características: antecipação da punibilidade, pois o ponto de vista do ordenamento jurídico-penal é prospectivo, voltado para o fato futuro; as penas cominadas em abstrato são, de forma desproporcional, altas, sendo que o adiantamento da barreira de punição não é observado para diminuir, correspondentemente, a pena aplicada e certas garantias processuais são mitigadas ou até mesmo retiradas (MELIÁ, 2010). Ressalta-se, no entanto, que o Direito Penal de Terceira Velocidade, ao contrário do Direito Penal do Inimigo, não apresenta como ideia principal a luta contra a periculosidade do sujeito, apesar de não renunciar a ela. Os fundamentos determinantes da existência da proposta de Silva Sánchez são a conveniência de reagir firmemente diante dos crimes especialmente graves e a imprescindibilidade de garantir a efetividade da persecução penal diante dessas condutas. Assim, o que explica a adoção do Direito Penal de Terceira Velocidade é a lesividade marcante
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de tais crimes, que resultaria na troca, pela sociedade, de certas dimensões de liberdade pelo reforço da segurança (RIPOLLÉS, 2005). Apesar disso, o Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal de terceira velocidade apresentam estruturas similares, pois ambos propõem a redução das regras estritas de imputação de responsabilidade, a antecipação da intervenção penal por meio de sua atuação em fases anteriores ao cometimento do crime, o aumento das penas privativas de liberdade e a supressão ou diminuição das garantias penais e processuais (RIPOLLÉS, 2005).
O Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal do Autor O sistema punitivo pode se basear no fato cometido ou no autor do delito. Assim, para a doutrina, há um Direito Penal do fato, quando o primeiro elemento prevalece, e um Direito Penal do Autor, quando o segundo predomina (MORAES, 2010). A escola penal clássica, que perdurou de meados do século XIII a meados do século XIX, se preocupava em analisar o fato-crime, e não o criminoso. Para essa escola, o criminoso é alguém que viola, de forma livre e consciente, na posse do livre-arbítrio, a lei penal. O classicismo penal não considerava que quem comete um delito é anormal em relação aos outros membros da sociedade, sendo que a única distinção entre um e outro é o fato. Assim, a escola clássica fixou os limites do Direito Penal do fato, fundado na ideia liberal de livre-arbítrio e responsabilidade moral, em que a imputabilidade e a gravidade objetiva do delito eram consideradas na dosimetria da pena (ANDRADE, 2003). Já a escola positiva, que surgiu na década de 70 do século XIX, deixou de apreciar a objetividade do fato-crime para centralizar a sua análise na subjetividade do autor-delinquente. Nessa escola, o fato-crime não foi ignorado, mas passou a ser avaliado sob a perspectiva do autor do crime. Desse modo, o programa positivista delimitou um Direito Penal do Autor, baseado no determinismo e na responsabilidade social, em que a pena é fixada de acordo com o potencial de periculosidade social do criminoso (ANDRADE, 2003). No Direito Penal do fato ou do ato, o crime é percebido como um conflito que resulta uma lesão jurídica, realizado por um ato humano como escolha independente de um ente responsável – pessoa –, o qual pode ser reprovado e ser retribuído na proporção de sua culpabilidade (ZAFFARONI et. al., 2003). No Direito Penal do autor, o fato corresponde a um sintoma da personalidade. Nele, o que é defeso, arriscado e reprovável é a personalidade do agente, e não o ato. O Direito Penal do autor tanto pode se basear na periculosidade quanto na culpabilidade. No primeiro caso, o sujeito que comete um crime apresenta uma personalidade perigosa, a qual deve ser reparada. Trata-se de uma visão determinista do homem, que
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concebe a incapacidade do agente de se autodeterminar. No segundo, o sujeito possui uma personalidade direcionada ao crime, que é demonstrada quando ele começa a repetir as condutas que antes eram decididas livremente. Assim, a censura é feita em razão da personalidade que o ato indica. Percebe-se, diante disso, que o direito penal de periculosidade é sempre Direito penal do autor; no entanto, isso não ocorre no Direito Penal de culpabilidade, que pode ser do autor ou do fato (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009). Nota-se que, na proposta de Jakobs acerca do Direito Penal do Inimigo, o agente é punido pelo seu modo de vida, e não pelo fato delituoso que cometeu (CALLEGARI; DUTRA, 2007). Nesse modelo, são analisadas a periculosidade, as características e a atitude interna do sujeito, sendo que o agente é punido pelo o que ele é, não pelo o que ele fez (AMARAL, 2010; COSTA; RODRIGUES, 2008; MÉLIA, 2010). O Direito Penal do Inimigo se preocupa com o criminoso, e não com o fato delituoso cometido. Nesse modelo, o que importa é a atitude permanente de descaso pela ordem jurídica e a disponibilidade de infringi-la. Assim, o incipiente Direito Penal do Autor, que antes era voltado ao criminoso reincidente ou habitual, agora é reforçado pelo aumento dos sujeitos submetidos a esse novo Direito Penal (RIPOLLÉS, 2005). O Direito Penal do Inimigo não condiz com o princípio liberal do Direito Penal do fato, que retira da responsabilidade penal os simples pensamentos do autor, ou seja, que afasta a aplicação de um Direito Penal que se baseie na atitude interna do agente (MELIÁ, 2010). Ao almejar a supressão de certos grupos de pessoas, o Direito Penal do Inimigo refuta as proposições do Direito Penal do fato e retoma as noções autoritárias do Direito Penal do autor (PRADO, 2011). No entanto, em uma sociedade moderna, em que se espera algo mais do que a simples liberdade de pensamento, é imprescindível que o fato seja o conteúdo principal do tipo penal, e não o autor. Assim, deve-se privilegiar o Direito Penal do fato em detrimento do Direito Penal do Autor. Ademais, em um Estado Democrático de Direito, os cidadãos, em geral, são punidos de acordo com a sua culpabilidade, e não com a sua periculosidade. Portanto, a pena deve reagir diante dos crimes cometidos por autores culpáveis, e não perigosos (MELIÁ, 2010).
O Direito Penal do Inimigo e o Garantismo Penal Os axiomas garantistas são proposições prescritivas, pois não retratam o que acontece, mas o que deve acontecer. No Direito Penal, as garantias exercem a função de vincular e, assim, deslegitimar o uso absoluto do poder punitivo. O sistema penal é considerado garantista se observar os dez seguintes axiomas: i) nulla poena sine crimine — princípio da retributividade; ii) nullum crimen sine lege – princípio da legalidade; iii) nulla lex (poenalis) sine necessitate – princípio da necessidade; iv) nulla necessitas
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sine injuria – princípio da lesividade; v) nulla injuria sine actione – princípio da materialidade; vi) nulla actio sine culpa – princípio da culpabilidade; vii) nulla culpa sine judicio – princípio da jurisdicionariedade; viii) nulla judicium sine accusatione – princípio acusatório; ix) nulla accusatio sine probatione – princípio do ônus da prova; x) nulla proabatio sine defensione – princípio do contraditório (FERRAJOLI, 2006). Ao serem inseridos nas codificações e nas Constituições dos ordenamentos desenvolvidos, os princípios axiológicos fundamentais do garantismo se transformaram em princípios jurídicos do Estado de Direito (FERRAJOLI, 2006). A teoria do garantismo penal almeja a construção de um modelo normativo que atenda as necessidades de um Estado Democrático de Direito, em que a democracia é substancial, não formal. Tal modelo é visto como um mecanismo de garantia dos direitos fundamentais (PRADO, 2011). Além disso, o garantismo adota a noção de Direito Penal mínimo, de ultima ratio, que se contrapõe ao Direito Penal máximo, de prima ratio. O Direito Penal é condicionado e restringido ao máximo e assegura não só o grau máximo de proteção das liberdades dos cidadãos diante do arbítrio punitivo, mas também o ideal de certeza e racionalidade, em que as intervenções do Direito Penal são previsíveis (FERRAJOLI, 2006; PRADO, 2011). Assim, o garantismo penal é contrário ao Direito de Emergência, que visualiza o Direito Penal e o Processo Penal como meios de proteção do próprio Estado a despeito das garantias e dos direitos individuais (PRADO, 2011). O Direito Penal do Inimigo destrói diversas proposições do Direito Penal garantista e liberal, em razão das seguintes características estarem presentes em tal construção teórica: i) adiantamento da punibilidade com o fim de combater o perigo oferecido pelo inimigo, de modo que são punidos os atos anteriores ao cometimento de um crime, inclusive os atos meramente preparatórios, pois basta o agente pertencer a um grupo organizado; ii) aumento excessivo e desproporcional das penas, especialmente ao se observar que a pena não é diminuída nos casos de atos preparatórios; iii) mitigação ou extinção dos direitos e garantias penais e processuais dos inimigos (PRADO, 2011). Ademais, o garantismo penal preconiza que o Estado não pode ser vislumbrado como o único responsável pela concessão dos direitos fundamentais, pois tais direitos poderiam ser tomados dos indivíduos em qualquer tempo. No entanto, o Direito Penal do Inimigo aceita a retirada dos direitos fundamentais ao conceber que os indivíduos podem se autoexcluir da sociedade jurídico-penal (CAETANO, 2010). Além do mais, o garantismo busca diminuir a violência e aumentar o âmbito de incidência das liberdades, enquanto o Direito Penal do Inimigo procura legitimar e estender as práticas violentas do Estado contra os indivíduos. Tal teoria se aproxima do Direito Penal autoritário, contrário ao Estado de Direito e, consequentemente, ao
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garantismo penal, por penalizar o modo de vida de alguém, e não seus atos (CAETANO, 2010). Percebe-se, assim, que a teoria do Direito Penal do Inimigo representa um risco ao Direito Penal garantista e democrático (CAETANO, 2010).
O Direito Penal do Inimigo e os Direitos e Princípios do Estado Democrático de Direito A teoria do Direito Penal do Inimigo pode ser questionada ao ser confrontada com direitos e princípios presentes no Estado Democrático de Direito, como a presunção de inocência, igualdade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana.
O direito à presunção de inocência A presunção de inocência ou de não culpabilidade impede que o investigado ou acusado sofra as consequências jurídicas de seu ato antes do trânsito em julgado da sentença condenatória criminal (MENDES et. al., 2008). No âmbito legislativo, o Direito Penal do Inimigo resultaria na criação de crimes de suspeita ao instituir legalmente grupos de risco que representam perigo à sociedade e não se importar se já houve o início de uma atividade criminosa. Portanto, o mero fato de pertencer a tal grupo já indicaria a periculosidade do agente, pois há uma presunção de que haverá um ataque concreto no futuro (CUSSAC, 2007). Entretanto, não se pode prever, como almeja o Direito Penal do Inimigo, de que modo o ser humano agirá no futuro, pois o homem atua de acordo com juízos de valor e, caso os atos humanos seguissem juízos de periculosidade, não existiria Constituição cidadã (CUSSAC, 2007). No âmbito judicial, ocorreria uma situação semelhante, já que o juiz também deveria atuar com presunções. Ademais, a proposta de Jakobs não precisa a partir de qual momento o suspeito de ser um inimigo passará a ser tratado como tal, nem quais parâmetros serão utilizados para classificar alguém como inimigo. Assim, pode-se indagar: a partir de que instante alguém será considerado perigoso sem violar a presunção de inocência, a qual preconiza que todos devem ser considerados inocentes até que seja comprovada a sua culpabilidade (CUSSAC, 2007)? Outro problema na proposta de Jakobs diz respeito ao direito de defesa do inimigo. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos e os tribunais constitucionais europeus estabeleceram que as imputações sempre devem aludir a fatos delitivos, sendo
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que não se pode penalizar um modo de ser. No Direito Penal do Inimigo, o único fato que existe é o pertencimento a um grupo de risco. Portanto, a defesa se reduziria a esse aspecto. Haveria, assim, uma limitação inconcebível ao direito de defesa (CUSSAC, 2007). Resta claro, portanto, que o Direito Penal do Inimigo contraria a presunção de inocência (CUSSAC, 2007; PRADO, 2011).
O direito à igualdade O direito à igualdade é fundamental em uma democracia. A Constituição Federal de um Estado Democrático de Direito deve assegurar a igualdade perante a lei, ou seja, na elaboração de uma lei, é preciso reservar tratamento igual para situações idênticas. No âmbito penal, a igualdade reside na aplicação da mesma lei e sistema de sanção para quem praticou o mesmo crime (SILVA, 2008). A partir de uma perspectiva valorativa da igualdade, nota-se a proibição da desigualdade, ou seja, do tratamento diferenciado não razoável. Com a aceitação do Direito Penal do Inimigo, coexistiriam dois direitos penais, o que, aparentemente, geraria uma desigualdade perante a lei de uns e outros. Além disso, é mais difícil ainda visualizar a compatibilidade do Direito Penal do Inimigo com a vedação à discriminação ou ao tratamento diferenciado sem justificativa (CUSSAC, 2007). A construção teórica do Direito Penal do Inimigo não responde qual é a razão para se tratar de maneira diferenciada o cidadão e o inimigo nem qual é o valor superior do ordenamento jurídico que legitima tal diferença. No entanto, ressalta-se que não é cabível existirem leis que discriminem pessoas ou grupos em um Estado Democrático da maneira como faz o Direito Penal do Inimigo (CUSSAC, 2007). Ademais, como, provavelmente, os inimigos seriam os socialmente indesejáveis, devido à ambiguidade da definição de inimigo e à sua natureza volátil e expansiva, tal situação ocasionaria a discriminação (CUSSAC, 2007). Portanto, o Direito Penal do Inimigo lesa o direito à igualdade ao tratar de forma diferenciada cidadão e inimigo (AMARAL, 2010; CALLEGARI; DUTRA, 2007; CUSSAC, 2007; PRADO, 2011).
O princípio da legalidade O princípio da legalidade compreende a exclusividade do Poder Legislativo em criar leis penais, sendo que esse princípio é inerente ao Estado de Direito e permite a segurança jurídica e o controle do poder punitivo estatal. Dentro desse princípio, estão
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presentes: o princípio da reserva legal, o princípio da taxatividade e a irretroatividade da lei mais severa (QUEIROZ, 2008). A observância do princípio da legalidade é indispensável a partir do momento que qualquer intervenção punitiva possa atingir algum direito fundamental, como liberdade, honra e intimidade. Desse modo, como a intervenção penal restringe certos direitos, ela deve se sujeitar a controles minuciosos (CUSSAC, 2007). Um deles é a necessidade de previsão legal dos crimes e das penas, sendo que a lei penal deve ser clara e precisa (CUSSAC, 2007). Trata-se do princípio da taxatividade, que prescreve a elaboração de tipos penais claros e precisos e rejeita a criação de tipos penais de conteúdo vago ou obscuro (QUEIROZ, 2008). Sob esse aspecto, a doutrina do Direito Penal do Inimigo não se mostra em conformidade com a taxatividade, devido ao conceito ambíguo de inimigo (CUSSAC, 2007). A proposta de Jakobs não é clara ao definir quem é o inimigo. Para ser assim considerado, basta alguém oferecer perigo aos bens jurídicos. Dessa forma, o Direito Penal do Inimigo ofende o princípio da legalidade, pois inúmeras condutas poderão ser consideradas criminosas (CALLEGARI; DUTRA, 2007; COSTA; RODRIGUES, 2008). A definição de quem é o inimigo e o modo como se faz tal classificação são tarefas árduas para a doutrina do Direito Penal do Inimigo. A incerteza de quem deve ser considerado juridicamente inimigo surge em razão do emprego das ideias de segurança cognitiva e não pessoas, o que afeta a ideia de segurança jurídica (CUSSAC, 2007). O princípio constitucional de legalidade determina não só a submissão da jurisdição sancionadora às leis que preveem crimes e cominam penas, devido à segurança jurídica e à legitimidade democrática da intervenção punitiva do Estado, mas também a sujeição estrita, a qual evita a punição de condutas parecidas com as previstas no tipo penal. Portanto, é difícil conceber que a definição ambígua de inimigo e a incerta conceituação dos grupos de risco que ensejam a aplicação de um regime excepcional se adaptem ao princípio da legalidade (CUSSAC, 2007). Ademais, tal princípio prevê a punição legal de tipos de ação, e não de tipos de autor; o reconhecimento dos comportamentos nocivos, e não dos agentes danosos, e o julgamento baseado na prova dos fatos, e não da inquisição sobre pessoas (FERRAJOLI, 2007). O Direito Penal do Inimigo pune o inimigo pelo que ele é, e não pelo que ele fez. Assim, não importa o cometimento de um crime, mas sim a presença de uma característica determinada baseada em parâmetros meramente potestativos, como o perigoso ou o suspeito, sendo que são utilizados os diagnósticos políticos, e não as provas. Percebe-se, no Direito Penal do Inimigo, a noção de que a justiça deve olhar o acusado em vez do crime; a sua periculosidade em vez de sua responsabilidade e o reconhecimento do inimigo em vez de a prova de seu ato criminoso. Com a adoção dessa teoria, o
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processo deixaria de ser um procedimento que verifica empiricamente as acusações e se transformaria em uma técnica de inquisição sobre a pessoa (FERRAJOLI, 2007). Desse modo, nota-se que a teoria do Direito Penal do Inimigo contraria o princípio da legalidade (CALLEGARI; DUTRA, 2007; COSTA; RODRIGUES, 2008; CUSSAC, 2007; FERRAJOLI, 2007; PRADO, 2011).
O princípio da proporcionalidade O princípio da proporcionalidade é amplamente visto como a manifestação de um modelo constitucional ligado à noção de liberdade e democracia. Assim, visa a impedir o emprego imoderado das sanções que privam ou limitam a liberdade e restringir o uso das penas ao necessário. Além disso, o princípio da proporcionalidade intensifica a proibição de conceder às leis penais a atribuição de reger as intenções, de interferir na moralidade dos cidadãos ou de reduzir o livre desenvolvimento da personalidade (CUSSAC, 2007). O princípio da proporcionalidade em sentido amplo origina outros princípios, que representam a concretização daquele. O primeiro é o princípio da adequação, o qual exige a adequação entre a sanção e o objetivo de tutelar certo bem jurídico. O segundo é o princípio da necessidade, que preconiza o emprego do Direito Penal somente quando os ataques aos bens jurídicos forem graves e intoleráveis. Assim, o Estado deve optar por uma medida que alcance a finalidade de proteger determinado bem jurídico com a menor interferência possível nos direitos individuais. O terceiro é o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, o qual alude à classe e quantidade de pena a ser determinada. Por meio desse princípio, o legislador deve procurar o equilíbrio entre a pena cominada em abstrato e a gravidade do crime, e o juiz deve, ao aplicar a pena em concreto, observar a gravidade do delito (CUSSAC, 2007). Assim, há dúvidas se o princípio da proporcionalidade é compatível com as noções de periculosidade ex ante – anterior ao cometimento de um fato delituoso – e segurança estatal como valor supremo presentes na teoria do Direito Penal do Inimigo. Em primeiro lugar, as normas que retiram as liberdades e os direitos fundamentais dos inimigos não se coadunam com o princípio da adequação ao fim. A valorização da segurança coletiva, que culmina na retirada de garantias mínimas dos seres humanos, não é um objetivo constitucionalmente legítimo (CUSSAC, 2007). Em segundo lugar, especificamente quanto ao princípio da necessidade, é questionável a equiparação entre atos preparatórios e executórios e autoria e participação, bem como a transformação da imputação pessoal em mero pertencimento a grupo organizado (CUSSAC, 2007).
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Em terceiro lugar, se o pressuposto da responsabilidade penal passa a ser a situação de risco, a periculosidade ex ante, o pertencimento a um grupo organizado, a pena é substituída pela medida de segurança pré-delitiva. Consequentemente, surge a necessidade de antecipação ao ataque e de prevenção. Com isso, ressurge a ideia de pena indeterminada; pois, enquanto permanecer a periculosidade ou a ausência de segurança cognitiva, continuará sendo imprescindível o resguardo da segurança do sistema e, assim, o regime restritivo de direitos do inimigo será mantido, sem limite temporal. Desse modo, a pena terá como função a preservação da segurança coletiva, e não a tutela dos bens jurídicos, e como finalidades o isolamento, a inocuização e a exclusão do perigoso (CUSSAC, 2007). Entretanto, a maior afronta ao princípio da proporcionalidade se encontra na abnegação ao dogma do bem jurídico. Como, no Direito Penal do Inimigo, a punição não terá como base a lesão a um bem jurídico, mas sim o mero pertencimento a um grupo de risco, a pena também não será consequência de uma infração prévia. A justificativa da punição se transfere para o juízo de periculosidade, em que se faz uma previsão sobre um comportamento futuro hipotético. Portanto, o prognóstico criminal é estruturado na fonte de perigo de um ser humano. Não se pode fundamentar a restrição de direitos com base em um simples cálculo irracional e não científico sobre uma conduta futura, como faz a teoria do Direito Penal do Inimigo. Assim, não seria imposta uma sanção coerente com o Direito (CUSSAC, 2007). Percebe-se, portanto, que o princípio da proporcionalidade é violado pela construção teórica do Direito Penal do Inimigo (CUSSAC, 2007; PRADO, 2011).
O princípio da dignidade da pessoa humana A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que agrega todos os direitos fundamentais dos cidadãos (SILVA, 2008). O seu significado é amplo, pois engloba desde o respeito à pessoa como valor em si mesmo até a satisfação das necessidades humanas (MENDES et. al., 2008). O tratamento diferenciado entre cidadão (pessoa) e inimigo (não pessoa), baseado no conceito meramente normativo de pessoa, esbarra na dignidade da pessoa humana. Todo indivíduo apresenta dignidade humana, que é intrínseca ao homem. Trata-se de um atributo ontológico, inerente à espécie humana (PRADO, 2011). Assim, ao conceder ao inimigo a condição de não pessoa, o Direito Penal do Inimigo viola o princípio da dignidade da pessoa humana (AMARAL, 2010). O Direito Penal do Inimigo ofende toda Constituição de um Estado Democrático de Direito ao desprezar a realidade da definição de pessoa e convertê-la em um mero mecanismo normativo (PRADO, 2011).
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O Direito deve respeitar a dignidade dos homens, como pessoas responsáveis e capazes de se orientar por parâmetros de sentido, valor e verdade, bem como o caráter de pessoa do ser humano, que se alicerça na liberdade do homem de optar ou não por seguir seus mandamentos. Desse modo, o Direito Penal do Inimigo não pode ser reconhecido como Direito (PRADO, 2011). Portanto, é inequívoco que o Direito Penal do Inimigo fere o princípio da dignidade da pessoa humana (AMARAL, 2010; PRADO, 2011).
Conclusão Percebe-se que a proposta estática de contenção do poder punitivo, vislumbrada na teoria do Direito Penal do Inimigo, não foi acertada, pois somente é compatível com o Estado Absoluto. A melhor tática de contenção do poder punitivo é a dinâmica, em que o Direito Penal preserva as garantias e os direitos de todos, o que permite a manutenção do Estado de Direito. Desse modo, o inimigo não deve sofrer tratamento diferenciado. Nota-se, ademais, que a construção teórica do Direito Penal do Inimigo representa a adoção do modelo penal de segurança cidadã, reflete a ideia de expansão do Direito Penal, se assemelha ao Direito Penal de Terceira Velocidade e retoma as noções do Direito Penal do Autor. Observa-se, além disso, que a teoria do Direito Penal do Inimigo contraria o garantismo penal, bem como afronta diversos direitos, garantias e princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito. Com isso, o Direito Penal do Inimigo é incompatível com tal modelo de Estado. Portanto, o Direito Penal do Inimigo deve ser rechaçado. É inconcebível a coexistência de um Direito Penal do Cidadão e um Direito Penal do Inimigo, como propõe Jakobs. Aqueles considerados inimigos devem ser tratados como pessoas, pois não perdem tal atributo em razão de seus modos de vida. Assim, deve ser empregado a eles o Direito Penal comum.
Referências ALMEIDA, Gevan de Carvalho. Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira/Gevan de Carvalho Almeida. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. AMARAL, Alberto Carvalho. O Direito Penal do Inimigo e o Afuzilamento dos Desiguais. Revista Associação dos Defensores Públicos do Distrito Federal, Brasília, ano 5, nº 5, p. 9 – 54, dez., 2010.
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A INCOMPATIBILIDADE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COM O ESTADO...
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P OL Í TICA PENITENCI Á RIA : PRIS Ã O PR OVISÓR IA
MA R C U S V INIC IU S R EIS BASTOS 4 0
Resumo As diretrizes encontradas no Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária e no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) estipulam, dentre outros objetivos, combater o que denominam de abuso na aplicação da prisão provisória (ou prisão cautelar ou prisão processual), evitando-a sempre que possível. Este trabalho esboça uma avaliação preliminar sobre algumas ações voltadas a enfrentar o problema da prisão provisória e o aludido excesso em sua aplicação. Busca-se examinar a dinâmica da atuação dos órgãos estatais envolvidos na concepção e efetivação da política pública em análise, menos sob a perspectiva jurídica e mais sob o enfoque da observação do modo de funcionamento do aparelho estatal, perquirindo sobre o comportamento das agências públicas responsáveis e de seus membros. A palavra foi dada ao homem para esconder seu pensamento. STENDHAL As diretrizes da política criminal brasileira, em especial aquelas voltadas à política penitenciária, são estabelecidas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e 40
Juiz Federal. Professor do Curso de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
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Penitenciária (CNPCP), órgão vinculado ao Ministério da Justiça.41 Seus termos estão explicitados no Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP),42 o qual é expresso em afirmar ter como objetivo, verbis: [...] criar uma nova espiral, da cidadania e da responsabilização: reduzir as taxas de encarceramento, descriminalizar condutas, ter modelos distintos de prisões para cada segmento, combater a seletividade penal, buscar menos justiça criminal e mais justiça social, investir na justiça restaurativa, empoderar a população para busca de solução dos conflitos, priorizar as penas alternativas à prisão, eleger o sistema prisional como problema central, fortalecer o Estado na gestão do sistema penal, combater todos os níveis da corrupção, enfrentar a questão das drogas nas suas múltiplas dimensões (social, econômica, de saúde, criminal), fortalecer o controle social sobre o sistema penal e ter política, método e gestão específica para o sistema prisional.43
Um dos eixos apontados no documento balizador das políticas públicas em sede penitenciária trata da prisão provisória e da pretendida correção naquilo que se denominou um abuso em sua aplicação (identificado no PNPCP como medida 06). Cuida-se de combater a banalização da prisão cautelar, vista como medida rotineiramente utilizada pelos juízes, os quais são frequentemente vistos como autoridades homologadoras das prisões em flagrante realizadas pela polícia, ausente um efetivo controle sobre sua necessidade e legalidade. Intenta-se: (i) garantir a defesa técnica plena e efetiva; (ii) criar meios rápidos e eficientes para instrução do pedido de liberdade provisória; (iii) apoiar a proposta de alternativas penais à prisão provisória, especialmente o monitoramento eletrônico; (iv) melhorar a eficiência das secretarias de juízos; (v) determinar o fim da carceragem nos distritos policiais; (vi) manter os mutirões carcerários para identificar situações irregulares; (vii) apoiar as medidas necessárias para o voto do preso provisório; (viii) promover a integração dos sistemas informatizados que contêm dados prisionais e judiciais; (ix) aplicar a execução provisória da pena.44
41 A Lei nº 7.210, de 11.07.84 (Lei de Execução Penal), em seus arts. 62 a 64, estabelece as regras gerais aplicáveis ao CNPCP. 42 Aprovado na 372ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Criminal e penitenciária (CNPCP), em 26 de abril de 2011. Seu inteiro teor se encontra disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?ViewID=%7BE9614C8C-C25C4BF3-A238-98576348F0B6%7D&params=itemID=%7BD1903654-F845-4D59-82E8-39C80838708F%7D;&UIPartUID=% 7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 26 set. 2013. 43
Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, p. 1, in fine.
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Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, p. 7.
POLÍTICA PENITENCIÁRIA: PRISÃO PROVISÓRIA
Este trabalho esboça uma avaliação preliminar sobre algumas ações voltadas a enfrentar o problema da prisão provisória e o aludido excesso em sua aplicação. Busca-se examinar a dinâmica da atuação dos órgãos estatais envolvidos na concepção e efetivação da política pública em análise, menos sob a perspectiva jurídica e mais sob o enfoque da observação do modo de funcionamento do aparelho estatal, perquirindo sobre o comportamento das agências públicas responsáveis e de seus membros. Não se desconhece, a propósito, a relação que forçosamente se estabelece entre essas variáveis, ditas internas, e fatores outros (externos), que terminam por condicionar e interferir na ação do Estado.45 Entende-se política pública como um fluxo de decisões públicas, orientado a manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa realidade. Decisões condicionadas pelo próprio fluxo e pelas reações e modificações que elas provocam no tecido social, bem como pelos valores, ideias e visões dos que adotam ou influem na decisão.46
As ações assim concebidas não possuem uma racionalidade manifesta. Têm como finalidades últimas a consolidação da democracia, justiça social, manutenção do poder e da felicidade das pessoas, presentes as controvérsias que a própria conceituação de cada um desses objetivos encerra. Trata-se de ações (i) institucionais, vale dizer, proclamadas por autoridades públicas; (ii) decisórias, isto é, que envolvem a prática de um conjunto ou sequência de decisões, que, por sua vez, consubstanciam escolhas de fins e meios; (iii) comportamentais, eis que implicam na adoção ou na omissão de algo; e (iv) causais, isto é, ações que têm efeito no meio social.47 A análise concentrar-se-á sobre dois aspectos da atuação estatal, a saber, (i) a implantação do sistema penitenciário federal e (ii) a utilização dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), cotejando-os com o tratamento que se pretende dar ao preso provisório. A I Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), realizada em Brasília entre 27 e 30 de agosto de 2009, elegeu o sistema penitenciário como um de seus eixos temáticos. Intentou, a partir das diretrizes estabelecidas no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci),48 caracterizadas por enfrentar os problemas da criminalidade, da violência e da sensação de insegurança mediante a aplicação
45
SARAVIA, Enrique e FERRAREZI, Elizabete (org.). Políticas públicas – Coletânea. Brasília: ENAP, 2007, p. 26-27.
46
SARAVIA, Enrique; FERRAREZI, Elizabete. Op. cit., p. 28.
47
SARAVIA, Enrique; FERRAREZI, Elizabete. Op. cit., p. 31.
Maiores Informações são obtidas em: <http://portal.mt.gov.br/main.asp?ViewID=%7B337926C4-789A-478F-BB19788B27526F72%7D&params=itemID=%7BEE1D83AB-C3E7-4F04-A2FB-7A21B 48
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conjunta de políticas de segurança e ações sociais, consolidar um novo paradigma49 para o tratamento da matéria. Nesse sentido, postula-se uma ação de segurança pública como sendo orientada [...] por uma abordagem sistêmica, que valorize a gestão pautada na promoção dos direitos humanos e na valorização profissional. Desse modo, transforma a relação entre direitos humanos e eficiência policial, não apenas na compatibilidade, mas na necessária complementaridade. No mesmo sentido, as ações sociais preventivas e a ação policial são entendidas como complementares na política de segurança.50
Trata-se de conceber a política de segurança pública como sendo uma tarefa própria a diversos atores. Às organizações policiais, devem se somar as redes sociais, as municipalidades, a Defesa Civil. Reconhece-se, por outro lado, que a violência e a criminalidade constituem expressões significativas das desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira.51 No que diz respeito ao sistema penitenciário nacional, um dos eixos temáticos da Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, estabeleceu-se os seguintes objetivos: (i) Obtenção da autonomia administrativo-financeira do Sistema Penitenciário, concebendo-se modelos de financiamento e gestão da política criminal e penitenciária com foco na participação, na prevenção à criminalidade e na promoção de segurança; (ii) Estabelecimento e organização de mecanismos de controle formal (corregedorias, ouvidorias e inspetorias) dos órgãos e agentes integrantes do sistema; (iii) Apoio às defensorias públicas criminais e penitenciárias, de sorte a permitir que possam agir com eficácia para assegurar aos presos o devido processo legal e o estrito reconhecimento de seus direitos (princípio da legalidade); 49 O termo paradigma é tomado a partir da descrição que lhe deu Thomas Kuhn. Paradigma é identificado como realizações científicas que possuem duas características: (i) “[...] suas realizações foram suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidários” e (ii) “[...] suas realizações eram suficientemente abertas para deixar toda espécie de problemas para ser resolvida pelo grupo redefinido de praticantes da ciência”. Nesse sentido, “o paradigma é um objeto a ser melhor articulado e precisado em condições novas ou mais rigorosas. [...] A existência de um paradigma coloca o problema a ser resolvido. Frequentemente, a teoria do paradigma está diretamente implicada no trabalho de concepção da aparelhagem capaz de resolver o problema". O paradigma determina não apenas o que será objeto de investigação, mas também o método adequado para a realização desta empresa. (KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 6ª ed. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001). 50
Texto base da I Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg). Brasil: Ministério da Justiça, 2009, p. 14.
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Texto base da I Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg). Brasil: Ministério da Justiça, 2009, p. 14.
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(iv) Programa de qualificação permanente dos trabalhadores e gestores da administração penitenciária; (v) Definição de um padrão nacional de atuação das polícias militares na execução penal, distinguindo papéis e evitando a superposição de órgãos policiais; (vi) Criação da infraestrutura necessária ao atendimento da população carcerária feminina, dado o aumento em termos proporcional de mulheres nos diversos estabelecimentos prisionais.52
Para os propósitos deste trabalho, importa considerar a diretriz indicada sob o item (iii), relativa à situação jurídica do preso, ao reconhecimento de seus direitos e à sua submissão ao devido processo legal.53 Segundo informações prestadas pelo Departamento Penitenciário Nacional, a população carcerária total no Brasil, em dezembro de 2010, chegou a 496.251 (quatrocentos e noventa e seis mil, duzentos e cinquenta e um) detentos. Nesse número estão incluídos 164.683 (cento e sessenta e quatro mil, seiscentos e oitenta e três) presos provisórios (33,18% do total da população carcerária).54 Naquela data, o déficit de vagas no sistema era de 164.624 (cento e sessenta e quatro mil, seiscentos e vinte e quatro – 33,17%). Em dezembro de 2011, a população carcerária alcançou 514.582 (quinhentos e catorze mil, quinhentos e oitenta e dois) detentos.55 O déficit de vagas correspondia a 208.085 (duzentos e oito mil e oitenta e cinco – 40,43%). O Brasil apresentava a taxa de 269,79 presos por 100.000 habitantes, indicador que coloca o país na terceira posição entre os dez países mais populosos do mundo no que diz respeito à taxa de encarceramento.56 Em junho de 2012, marco temporal mais recente de que se dispõe, a população carcerária chegou a 549.577 (quinhentos e quarenta e nove mil, quinhentos e setenta 52
Texto base da I Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg). Brasil: Ministério da Justiça, 2009, p. 34-36.
A cláusula do devido processo legal (CF art. 5º, LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal“) significa que a prestação jurisdicional (pela via do processo) far-se-á, necessariamente, em estrita observância à lei (processual), assegurando-se o contraditório, a plenitude do direito de defesa e a isonomia processual. Trata-se de garantia que aponta para um julgamento justo (fair trial). 53
54 Os dados se referem a presos cumprindo pena privativa de liberdade em quaisquer dos regimes, submetidos à medida de segurança e presos provisórios. Informações obtidas em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D ;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 26 fev. 2013. 55 O número inclui presos submetidos à pena de prisão (nos três regimes) e à medida de segurança. Não inclui (ou não distingue) presos provisórios. Informação vista em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIP artUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 26 fev. 2013. 56 Cf., nesse sentido, informações contidas em reportagem publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 25 de março de 2012, caderno cotidiano.
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e sete) detentos. O déficit de vagas correspondia a 240.503 (duzentos e quarenta mil, quinhentos e três – 43,76%). O Brasil apresentava a taxa de 288,14 presos por 100.000 habitantes.57 Conforme dados fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, sistema Geopresídios, a partir de informações coletadas nas diversas unidades prisionais do país ao longo de 2012, a população carcerária do país é de 505.416 (quinhentos e cinco mil, quatrocentos e dezesseis) detentos, dos quais 196.711 (cento e noventa e seis mil, setecentos e onze) presos provisórios (38,92% do total de presos).58 A capacidade projetada de vagas do sistema penitenciário monta a 336.219 (trezentos e trinta e seis mil, duzentos e dezenove), havendo um déficit de 169.197 (cento e sessenta e nove mil, cento e noventa e sete) vagas (33,47% do total de presos).59 O quadro precedentemente exposto, por si só, indica a subsistência de uma anomia, verdadeira anarquia e desorganização em sede de execução penal. Se o sistema prisional opera com um déficit de vagas no importe de, aproximadamente, quarenta por cento (40%), não é crível supor terem os internos respeitados os seus direitos mais básicos. Em uma população carcerária na qual os presos provisórios – presos que não cumprem pena, sujeitos à prisão processual, detenção que antecede o trânsito em julgado da condenação – correspondem a trinta e oito por cento (38%) do total, salta aos olhos o total descompromisso com o atendimento das normas da lei de execução penal60 e das diretrizes integrantes do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Em sistemas penais de grande expansão, caso do brasileiro, onde a hipertrofia do direito penal se associa à utilização indiscriminada da prisão cautelar como meio de antecipação de pena, é significativo o número de presos sem julgamento.61 As ações levadas a efeito pelo Estado brasileiro, especialmente pela União Federal, ente federativo detentor da maior parte dos recursos empregados no sistema 57 O número inclui presos submetidos à pena de prisão (nos três regimes) e à medida de segurança. Não inclui (ou não distingue) presos provisórios. Informação vista em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIP artUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 26 fev. 2013. 58 Dados disponíveis em: <http://www.cnj.jus.br/geo-cnj-presidios/?w=1440&h=900&pular=true>. Acesso em: 26 fev. 2013. 59 Recente reportagem publicada na revista The Economist, edição de 22 de setembro de 2012, expõe as precárias condições de encarceramento vigentes na América Latina e aponta ter a população carcerária brasileira crescido, entre 1992 e 2011, 251%. Essa taxa de crescimento somente é superada por El Salvador (crescimento na ordem de 338%). Os dados são do International Centre for Prison Studies (ICPS), University of Essex (<http://www.prisonstudies.org/>, acesso em: 26 fev. 2013). A reportagem publicada na The Economist pode ser vista em: <http://www.economist.com/ node/21563288>. Acesso em: 26 fev. 2013. 60 Lei de Execução Penal art. 84: “O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado. § 1º O preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes.” 61 ZACKSESKI, Cristina. O problema dos presos sem julgamento no Brasil. In: Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Ano 4, 2010.
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prisional, se dá de forma contraditória, quando cotejada com os termos do citado PNPCP. Assim é que, não obstante a declarada intenção de diminuir as taxas de encarceramento, descriminalizar condutas e promover mais justiça social e menos justiça penal, trabalha-se no sentido de implantar e consolidar um sistema penitenciário federal. Trata-se de ação voltada à construção e implantação de penitenciárias federais, distribuídas ao longo do território nacional de sorte a contemplar cada uma de nossas grandes regiões geográficas. Referidos estabelecimentos destinam-se a receber condenados tidos por perigosos, seja porque integram organizações criminosas que não raro operam a partir do sistema prisional, seja porque adotam comportamento violento no curso do cumprimento da pena, sendo apontados como elementos desestabilizadores do sistema. Atualmente, encontram-se em funcionamento 4 (quatro) penitenciárias federais, localizadas, respectivamente, em Porto Velho/RO, Mossoró/RN, Campo Grande/MS e Catanduvas/PR, disponibilizando 832 (oitocentas e trinta e duas) vagas para condenados à pena privativa de liberdade (208 vagas por estabelecimento prisional). Está prevista a conclusão de uma quinta penitenciária na cidade de Brasília/DF.62 Dita ação em nada contribui para enfrentar o problema do excessivo número de presos provisórios, eis que não podem ser encaminhados para os referidos estabelecimentos prisionais. Traduz, por outro lado, ação política com o manifesto propósito de reforçar o sistema judicial penal, na medida em que concebe válvula de escape para as diversas Unidades da Federação administrarem seus respectivos sistemas penitenciários. A principal fonte financiadora das atividades públicas em sede de execução penal é o Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), criado pela Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994, e regulamentado pelo Decreto nº 1.093, de 3 de março de 1994.63 A tabela abaixo indica os créditos orçamentários do FUNPEN e sua efetiva realização.
62 As informações sobre o sistema federal foram colhidas em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?ViewID=%7B887A0EF2F514-4852-8FA9-D728D1CFC6A1%7D&params=itemID=%7B5AC72BD6-09F6-49AE-BDB0-9A5A1D5A28B9%7D;&UIP artUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 26 set. 2013. 63 As informações sobre o Fundo Penitenciário Nacional, sua gestão e projetos que apoia podem ser vistas em: <http:// portal.mj.gov.br/main.asp?ViewID=%7BC0BE0432-C046-47D6-916A-9A3CF77E3AF5%7D&params=itemID=%7B962 415EA-0D31-4F48-ACAF-D9ED8FB27E6E%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 26 set. 2013.
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R$ 1,00
Período 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Crédito Autorizado 78.365.041 129.128.010 172.035.697 295.107.209 109.982.582 204.728.125 288.295.914 308.757.559 216.032.429 166.157.349 224.098.871 364.252.144 430.939.081
Crédito Utilizado 38.162.047 43.984.935 83.586.047 122.201.952 27.094.231 144.995.971 265.241.208 132.924.494 121.436.104 146.236.958 159.074.050 303.490.675 201.107.529
Recurso Utilizado 8.760.765 25.531.388 69.494.560 122.200.797 27.094.214 104.892.835 218.004.767 75.522.501 74.318.668 110.892.208 78.866.439 119.568.775 39.204.216
Fonte: Ministério da Justiça.64
O descompasso existente entre o volume de crédito autorizado e o montante de recursos efetivamente empregados é significativo. Pondo de lado a política de contingenciamento dos recursos orçamentários, prática comum na administração pública brasileira, salta aos olhos a incapacidade gerencial do Estado brasileiro, por suas diversas esferas governamentais, de realizar os montantes efetivamente postos à disposição. No ano de 2007, último exercício acerca do qual se tem informação quanto à execução orçamentária do FUNPEN, os valores utilizados correspondem a 19,49% dos créditos disponíveis. Esses valores, conforme informações prestadas pelo Ministério da Justiça, destinam-se, em sua maior parte, à geração de vagas e modernização dos estabelecimentos penais já existentes. A tabela a seguir apresenta o quantitativo de vagas criadas em cada Unidade da Federação, a partir da criação do FUNPEN (1994): UF AC AL AM AP BA CE DF ES GO
Valor 754 1.727 1.502 393 3.344 1.481 3.550 33.44 1.926
UF MA MG MS MT PA PB PE PI PR
Valor 664 5.747 1.324 1.955 1.263 2.534 2.973 1.645 1.463
UF RJ RN RO RR RS SC SE SP TO
Valor 2.640 1.461 1.432 203 2.398 2.906 521 27.223 1.511
Vagas geradas: 78.184. Fonte: Ministério da Justiça.65 64 Ver: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BC0BE0432-C046-47D6-916A-9A3CF77E3AF5%7D&Team=&par ams=itemID=%7B248B987D-F52B-4CE9-805C-948A83B8BDA1%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 27 fev. 2013. 65
Ver:
<http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BC0BE0432-C046-47D6-916A-9A3CF77E3AF5%7D&Team=&pa
POLÍTICA PENITENCIÁRIA: PRISÃO PROVISÓRIA
A principal fonte de financiamento da política penitenciária nacional, como se vê, destina-se a incrementar as condições de aprisionamento. A ênfase recai no aumento de vagas do sistema prisional e na construção de novas unidades. Trata-se de reforçar a infraestrutura necessária à aplicação da pena privativa de liberdade, assegurando-se a expansão do sistema penitenciário, então visto unicamente como um conjunto de ações e medidas voltadas à prisão dos autores de ilícitos penais. Observadas as ações precedentemente expostas – instituição das penitenciárias federais e destinação dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional –, chega-se a um paradoxo. É que a direção tomada, em ambos os pontos, é diametralmente oposta àquela declarada no PNPCP como sendo a opção preferencial. Assim é que, em vez de “criar uma nova espiral, da cidadania e da responsabilização”, alimenta-se a [...] espiral da criminalidade [com ações voltadas a] apoiar o endurecimento penal, aumentar as taxas de encarceramento, adotar o modelo de superprisões, ignorar a seletividade penal, idolatrar a pena privativa de liberdade, eleger as facções criminosas como problema central, apoiar a privatização do sistema penal, combater apenas a corrupção da ponta, judicializar todos os comportamentos da vida, potencializar o mito das drogas, enfraquecer e criminalizar os movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos e considerar o sistema prisional adjacente e consequente das polícias.66
Não se ignora que o processo de implementação de uma política pública depende de inúmeras decisões, nem que, tampouco, deva ser visto como uma etapa em que necessariamente serão executadas as decisões tomadas na fase de formulação. É que, como observa Maria das Graças Rua, frequentemente uma política pública é concebida por um órgão (ou um nível de governo), tendo sua implementação confiada a outro órgão (ou outro nível de governo), sabendo-se, de antemão, que não irá realizá-la. Trata-se, nesse sentido, de decisão meramente simbólica.67 Por outro lado, há diversas variáveis que podem impedir a implementação de determinada política pública (e.g., reação de interesses contrariados, recusa ou omissão dos agentes públicos envolvidos, reação ou omissão dos possíveis beneficiários).68 Não obstante essas constatações, há que se esperar e reclamar consistência e coerência na atividade estatal. Ausência de uma racionalidade manifesta não é (ou não deve ser) sinônimo de irracionalidade (de nenhuma racionalidade). Uma vez estabelerams=itemID=%7B72D42864-4966-4207-854E-A876EDEF2572%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 27 fev. 2013. 66
Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, p. 1.
RUA, Maria das Graças. Análise de políticas públicas: conceitos básicos. In: RUA, Maria das Graças e CARVALHO, Maria (org.). O estudo da política: tópicos selecionados. Brasília: Paralelo 15, 1998, p. 15. 67
68
RUA, Maria das Graças. Op. cit., p. 17.
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cidos os parâmetros pelos quais se orienta determinada política pública, atividade que se supõe seja fruto de amplo processo de formulação e discussão e que reflita o consenso obtido, há que se atuar no sentido de realizá-los, ou seja, os recursos e instrumentos de que dispõe o Estado devem ser direcionados à efetivação daqueles objetivos (fins). Trata-se de superar uma concepção meramente formal de política pública, caracterizada pela expectativa de que a ação estatal se dê em conformidade com os princípios e regras que a governam, em prol de sua acepção substancial, voltada à efetiva realização daqueles fins, de sorte a repartir com equidade os benefícios da cooperação social. Esse é o raciocínio que Rawls desenvolve, quando se dedica a expor o que entende por justiça formal e substancial. À ideia de justiça formal, caracterizada pela aplicação imparcial e consistente (estável) de normas e instituições, esboçadas a partir de princípios gerais que estabelecem os direitos e liberdades fundamentais e os critérios de divisão entre os indivíduos das vantagens obtidas pela cooperação social, contrasta a noção de justiça substancial, disposição de reconhecer os direitos e liberdades dos indivíduos e de repartir com equidade aqueles benefícios.69 Justiça formal (e, mutatis mutandis, a noção formal de política pública) traduz-se numa adesão a princípios, numa obediência a um dado sistema. Justiça formal não é sinônimo de justiça substantiva, embora a primeira exclua injustiças significativas. Há, contudo, relação de dependência entre o desejo por justiça formal (por obediência a um sistema) e a justiça substantiva (material) das instituições e a possibilidade de sua reforma (de forma a se adequar ainda mais ao ideal de justiça).70 As ações desenvolvidas pelo Estado brasileiro no âmbito do sistema penitenciário, como se intentou demonstrar, orientam-se, em grande medida, em direção diversa daquela proclamada quando da descrição da política pública que, a propósito, afirma abraçar. A adoção sistemática de medidas destinadas a fortalecer a aplicação da pena corporal (criação de novos estabelecimentos penais, instituição de novas vagas nos estabelecimentos já existentes) não só consolidam a “espiral da criminalidade”, mas também se revelam ineficazes para assegurar aos presos um mínimo de dignidade. É que a taxa de encarceramento é significativamente superior à capacidade do Estado em suprir a demanda por novos espaços prisionais. Nesse quadro, avulta de forma dramática a situação do preso provisório, que, além de ter desconsiderada a sua situação jurídica (trata-se de alguém que não possui pena a cumprir), é encaminhado ao sistema prisional sem qualquer salvaguarda. O Estado brasileiro revela-se, no particular, incapaz de realizar os valores democráticos,
69 HAWLS, John. A theory of justice. Original edition. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1971, parágrafo 10, p. 58-60. 70
HAWLS, John. Op. cit.
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assegurando aos presos o respeito à sua dignidade.71 Ao assim proceder, desconsidera os pressupostos da política pública que se comprometeu realizar e trai os próprios fundamentos do Estado de Direito, o qual se destina a tutelar a liberdade do indivíduo contra as diversas modalidades de exercício arbitrário do poder.72 Tratando do desenvolvimento daquilo que denomina “ciência normal”, Thomas Kuhn afirma que: [...] para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada [...] Quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência da natureza, um indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da geração seguinte, as escolas mais antigas começam a desaparecer gradualmente.73
O Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária propugna, como visto, pela superação de um paradigma em detrimento de outro. Postula o abandono do círculo vicioso da criminalidade, onde ações de segurança pública são vistas e empregadas exclusivamente como meios de repressão à prática do crime, em favor da adoção da “espiral da cidadania e da responsabilização”. Cuida-se de privilegiar a justiça social em detrimento da justiça penal, solucionando conflitos à margem do sistema penal, descriminalizando condutas, reduzindo a aplicação da pena privativa de liberdade. Mudança de paradigma importa na modificação do problema a ser resolvido, pois aquele determina não apenas o objeto da investigação, mas também o método adequado para levá-la a cabo.74 Se a política pública em matéria criminal e penitenciária pretende, declaradamente, fortalecer o controle social sobre as diversas instâncias da persecução criminal e, ao mesmo tempo, reduzi-la (refiro-me à persecução penal), deve esforçar-se para conduzir ao centro da cena não propriamente o fenômeno do ilícito penal, mas o fato mesmo da criminalização, indagando sobre sua conveniência, necessidade e utilidade. As ferramentas adequadas ao desate deste (novo) problema, ainda que não totalmente identificadas, não são coincidentes com as até então utilizadas. Ampliar o sistema prisional, verbi gratia, agrega pouco neste sentido. O atingimento dos objetivos explicitados nos documentos base do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP) e no Programa Nacional 71 ZACKSESKI, Cristina e BUENO, Samira. Sistema prisional brasileiro: uma análise dos dados sobre as condições de encarceramento no início do século XXI (texto não publicado). 72
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed., rev. e ampl. São Paulo: RT, 2006.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 6ª ed. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001, p. 38-39. 73
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KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 48.
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de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) demanda a adoção conjunta de políticas de segurança e ações sociais. A opção por trilhar esse caminho, contudo, não tem se revelado suficiente para, até o momento, realizá-lo minimamente.
Referências BEYLE, Henri (Stendhal). O vermelho e o negro. Trad. Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2003, (p. 127). FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed., rev. e ampl. São Paulo: RT, 2006. HAWLS, John. A theory of justice. Original edition. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1971. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 6ª ed. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001. RUA, Maria das Graças. Análise de políticas públicas: conceitos básicos. In: RUA, Maria das Graças e CARVALHO, Maria (org.). O estudo da política: tópicos selecionados. Brasília: Paralelo 15, 1998. SARAVIA, Enrique e FERRAREZI, Elizabete (org.). Políticas públicas – Coletânea. Brasília: ENAP, 2007. ZACKSESKI, Cristina. O problema dos presos sem julgamento no Brasil. In: Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Ano 4, 2010. ZACKSESKI, Cristina e BUENO, Samira. Sistema prisional brasileiro: uma análise dos dados sobre as condições de encarceramento no início do século XXI (texto não publicado). Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP) – Texto base. Brasília: Ministério da Justiça, 2011. Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG) – Texto base. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.
A (IN)APLICABILIDA DE DO DOLO EVE N T UAL NOS CR IME S D E H OM IC ÍD IO DE TR ÂNSITO CAU S A DOS POR EMBR IAG UEZ
M A ÍR A FEITO SA S ER Ó DI O ARAÚJ O
RESUMO Frente ao anseio da população na aplicação de penas mais rigorosas aos crimes de trânsito, o presente artigo vem esclarecer pontos primordiais na caracterização do tipo penal no que diz respeito à aplicação do Código Penal ou Código de Trânsito Brasileiro quanto aos homicídios de trânsito causados por embriaguez. O apreço do tema em tela baseia-se na análise da Teoria do Crime, trazendo estes elementos palpáveis para a distinção dos institutos do dolo e culpa. Posteriormente, passa-se ao diagnóstico jurisprudencial proveniente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, dentre os órgãos da 1ª e 2ª Turma Criminal, e o posicionamento dos julgadores quanto à aplicação do dolo eventual ou culpa consciente. Palavras-chaves: Homicídio no trânsito; Embriaguez; Dolo eventual; Culpa consciente.
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Introdução Atualmente, o Brasil é o quinto país com o maior número de vítimas no trânsito, ostentando o título de um dos mais altos índices de mortes trágicas decorrentes, principalmente, da conjunção bebida e direção. O álcool, fator preponderante na ocorrência de acidentes, é uma das poucas drogas psicotrópicas que tem o seu consumo admitido e incentivado pela sociedade. Diante do caos instalado, o quadro político-criminal fora colocado em constante evidência, ensejando na propagação da pressão midiática, bem como na súplica da população à imposição de penas cada vez mais duras visando a escassear o denominado câncer da sociedade: os crimes de trânsito. Diante disso, fez-se essencial a edição de leis que viessem a moderar as práticas desacauteladas praticada nas estradas e vias terrestres brasileiras. O Código de Trânsito Brasileiro, Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, instaurou-se, de forma especializada, no momento imprescindível à coibição de comportamentos levianos no trânsito, tipificando penalmente em seus artigos 302 (homicídio culposo) e 306 (embriaguez ao volante) punições mais severas àquelas condutas genuinamente previstas apenas pelo Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940). O relatório final do Anteprojeto de Código Penal, finalizado em 18 de junho de 2012, traz consigo em seu artigo 121, § 6º, a previsão da modalidade gravíssima de culpa ao tratar da embriaguez do agente em direção veicular, afastando, nesses termos, o Código de Trânsito Brasileiro ao agravar a pena do homicídio praticado sob embriaguez para o mínimo de 4 (quatro) e o máximo de 8 anos de prisão. A promulgação da nova Lei Seca (Lei nº 12.760/12) passou a tratar com rigor e tolerância zero os motoristas embriagados, sofrendo estes árduas punições administrativas e penais. Pretende-se, portanto, rechaçar a equação "homicídio + embriaguez = dolo eventual” criada atualmente nos Tribunais, visto que a denominada “impunidade” verberada pela sociedade não corrobora a finalidade jurídica pleiteada, adentrando no patamar legislativo da questão, esfera esta impassível de apreciação jurisdicional sob pena de ingresso do Poder Judiciário em competência diversa daquela prevista na Constituição Federal. Partindo dessa premissa, entende-se como necessária a análise doutrinária e jurisprudencial da problemática aqui conduzida, almejando a consolidação de uma das teses e a futura pacificação do tema.
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Teoria do Crime A teoria do crime é o principal pilar do direito penal. Assim, torna-se imprescindível sua apreciação como ponto de partida para o completo entendimento da matéria em questão. Conceito analítico No Brasil, adota-se a teoria tripartida, criada no final do século XIX, iniciada por Luden e sistematizada por Von Liszt e Beling, adotada também em todo o continente europeu, a qual fragmenta o crime em elementos: fato típico, ilícito (antijurídico) e culpável. O delito é um todo unitário e indivisível, isto é, ou o agente comete o delito (fato típico, ilícito e culpável), ou o fato por ele praticado será considerado um indiferente penal.75
Fato típico: conduta Devido à importância da conduta, oportunizando a diferenciação posterior entre o dolo e a culpa, far-se-á considerações sobre este elemento como principal integrante do fato típico.
Conceito Toda conduta é dirigida por uma vontade e consciência. Vontade é o querer do ser humano. Consciência, para Zaffaroni, “é o resultado da atividade das funções mentais. Não se trata de uma faculdade do psiquismo humano, mas do resultado do funcionamento de todas elas”.76 É a possibilidade/capacidade do ser humano de refletir sobre seus atos, sobre o que é real e o que é imaginário. A natureza dessa vontade pode ser dolosa, culposa ou preterdolosa.77
Teoria finalista da ação Edificada por Hans Welzel, defende que o desvalor do resultado não constitui elemento diversificador. A diferença desta teoria para as demais está na ação.78 Acredita-se que a ação voluntária deve ser conjecturada frente à finalidade do ato.
75
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. v. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 142.
Apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13ª. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 229. 76
77
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13ª. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 212.
78
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. v. 1. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 229.
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Sobre a definição de conduta, Mirabete discorre: “A conduta é uma atividade final humana e não um comportamento simplesmente causal. Não se concebe vontade do nada ou para o nada, e sim, dirigida a um fim.”79 Ainda no que concerne à teoria finalista, verifica-se a inclusão dos elementos subjetivos dolo e culpa como institutos integrantes do injusto – mais precisamente como componentes do fato típico. Atualmente, a teoria finalista da ação tornou-se o alicerce para o nosso Código Penal pátrio, focando a finalidade da ação como eixo central para a tipificação da conduta.
Dolo Grande parte dos crimes capitulados na codificação penal brasileira são essencialmente dolosos; a exceção é o delito culposo, devendo ser estabelecido expressamente no tipo penal a ocorrência do crime nesta modalidade, sob pena de ser considerado fato atípico.80
Conceito O dolo é a vontade consciente de realizar a conduta típica, isto é, basta que a atuação do agente objetive, na exata medida em que seus pensamentos coincidem, o preenchimento do tipo penal incriminador.81 Com muita propriedade, Fragoso traça as seguintes explanações sobre o assunto: “[...]dolo é a consciência e vontade na realização da conduta típica. Compreende um elemento cognitivo (conhecimento do fato que constitui a ação típica) e um elemento volitivo (vontade de realizá-la).”82
Espécies de dolo De acordo com o art. 18, inciso I do CP: “Diz-se o crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.”83 Na primeira parte do dispositivo, quando o legislador determina que o dolo seja caracterizado quando o resultado é quisto pelo agente, certifica-se a ocorrência do dolo direto – em outras palavras, quan79 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 27ª ed. rev. e atual. Até 4 de janeiro de 2011. São Paulo: Atlas, 2011. p. 87. 80
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. v. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro, Impetus, 2011. p. 142.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 7ª ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 233. 81
82
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 27ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 289.
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7.12.40. Código Penal. DOU de 31.12.40. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 1 abr. 2013. 83
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do a conduta é realizada animicamente a fim de se obter aquela finalidade pretendida. Já na segunda parte da capitulação supracitada, o legislador tipifica também a assunção do risco como maneira de produzi-lo, institucionalizando, assim, o dolo indireto. Fragmentando o dolo indireto, percebemos duas subdivisões distintas: o dolo alternativo, sendo aquele em que o agente quer, entre dois ou mais resultados, qualquer um deles, ou o dolo eventual.84 O dolo eventual, foco do presente estudo, é conceituado da seguinte forma: mesmo não querendo diretamente o resultado, o agente aceita a possibilidade de produzi-lo. Assim, mesmo antevendo ser possível a concretização de futura lesão, realiza o comportamento, uma vez que sua vontade é direcionada à conduta e não ao resultado final.85 Nota-se a distinção entre dolo direto e dolo eventual de modo esclarecedor, conforme explana Damásio: “[...] o primeiro é a vontade por causa do resultado; o segundo é a vontade apesar do resultado.”86 Exemplificando a conduta daqueles que atuam sob o dolo eventual e sua consequente indiferença perante o resultado lesivo, adota-se, para melhor entendimento dos institutos, a fórmula de Frank: “Seja como for, dê no que der, em qualquer caso, não deixo de agir.”87 Vale ressaltar, por fim, que o sujeito não almeja a produção do resultado (dolo direto), apenas o prevê; embora não queria propriamente atingi-lo, pouco se importa com a sua ocorrência.
Culpa Analisando as premissas anteriores, constata-se o instituto da culpa como importantíssimo para a solução da situação-problema aqui tratada. Examinar-se-á adiante o conceito e as modalidades de culpa abarcadas pela nossa legislação.
Conceito Aduz, em lição ímpar, José Cerezo Mir que “culpa é a conduta mal dirigida, normalmente destinada a um fim penalmente irrelevante, quase sempre lícito” e acresce 84 FRANCO, Alberto Silva; BETANHO, Luiz Carlos; FELTRIN, Sebastião Oscar. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. p. 87-88. 85
JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 286.
86
JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 286.
87
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 72.
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que “a direção finalista da ação, nos crimes culposos, não corresponde à diligência devida, havendo uma contradição essencial entre o querido e o realizado pelo agente.” Aqui, “o fim perseguido pelo autor é geralmente irrelevante, mas não os meios escolhidos, ou a forma de sua utilização”.88
Modalidades de culpa Incorporadamente à inobservância do dever objetivo de cuidado, citam-se as modalidades de culpa: imprudência, imperícia e a negligência. A modalidade que melhor se encaixa no tipo culposo quando analisado o homicídio no trânsito causado pela embriaguez relaciona-se à imprudência. Imprudente é aquele que age sem atenção, não visando aos bens futuros que podem ser atingidos devido a sua conduta. Nesse sentido, preleciona Damásio: “[...] a imprudência é a prática de um fato perigoso.”89 1.4.3 Espécies de culpa: distinção entre culpa inconsciente, culpa consciente e dolo eventual As espécies de culpa são denominadas culpa consciente e culpa inconsciente. A culpa inconsciente é a denominada “culpa comum”, visto que o resultado não é passível de previsão. Também por este prisma aduz Luiz Regis Prado: “Não prevê o resultado, embora possível, transgredindo, desse modo, sem saber, o cuidado objetivo exigível. O agente não conhece concretamente o dever objetivo de cuidado, apesar de lhe ser conhecível.”90 Em contrapartida, na culpa consciente (culpa com previsão), a ação é imbuída de displicência ao acreditar o agente que o resultado trágico não ocorrerá, o que lhe impede de interromper sua conduta visando a evitá-la, não a tendo como concreta, por consequência, não a aceitando. Embora a previsão seja elemento do dolo, nesta espécie de culpa há de forma absoluta a sua implicação.91 Exige-se a previsibilidade para a corporificação da culpa consciente, ou seja, a análise da atitude tomada por um homem prudente ao agir naquela determinada circunstância em comparação à conduta do agente causador da lesão levando em consideração as condições pessoais e momentâneas em que se deu o fato.92
88 Apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13ª. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 280. 89
JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 297.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte especial: arts. 1º a 120. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 143. 90
91
CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte geral. 10ª ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2003. p. 142.
92
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 27ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 300.
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A culpa consciente contém um dado importante: a confiança de que o resultado não venha a produzir-se assentado na crença em uma habilidade ou na presença de uma circunstância impeditiva que resulte no erro de execução do agente.93 Nessa esteira, temos como principal discussão a distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente. Esses institutos convergem ao tratarmos da previsão do resultado e, categoricamente, divergem na anuência da produção do mesmo. Para fins práticos, devemos observar como o agente conduz a ação, isto é, se para este indivíduo há completa indiferença do resultado que advém da sua conduta leviana em dirigir veículo automotor após embriagar-se. Para a aferição da conduta, há os seguintes indicadores: risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta (ex.: a vida); poder de eventual resultado devido à omissão; meios de execução empregados; e desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico.94 A divergência entre os institutos é mínima. Portanto, para a apreciação do caso em concreto, é imprescindível a análise da ação do agente, lembrando sempre que para atestar a aplicabilidade do dolo eventual deve pairar absoluta certeza no elemento volitivo do autor no momento do delito e da sua completa abnegação ao resultado “morte”. Verificando o magistrado a incidência de dolo, patente se torna a aplicação do artigo 121 do Código Penal. Dissemelhante, entendendo o julgador a favor da inexistência de provas que possam corroborar o instituto doloso, bem como a completa subsunção do fato à culpa, fixa-se o homicídio caracterizado no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro.
Análise Jurisprudencial – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) A seguinte adentrar-se-á no posicionamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios colhendo pontos importantes em suas decisões ao confrontar os julgados e suas deliberações acerca da impetuosa divergência no que diz respeito ao tema discutido. Os elementos expostos abaixo foram angariados via sítio eletrônico do tribunal em questão, instrumento este imprescindível à pesquisa e exclusivo para a consolidação do estudo abaixo relatado. 93
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 27ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 290.
94
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 27ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 292.
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Quadro Geral Faz-se imperativo trazer à baila o diagnóstico acerca da matéria e o consequente cotejo jurisprudencial em se tratando da aplicação da culpa consciente e do dolo eventual nos casos analisados. Explana-se, assim, o diagnóstico constatado no TJDFT: Ressalta-se, por oportuno, que a análise jurisprudencial acima realizada pauta-se estritamente em 23 acórdãos, não excluindo, assim, a ocorrência de demais julgados relativos ao assunto em debate. A tabela acima demonstra os principais recursos e ações analisadas pelo 2º grau, destacando desde já que, devido à necessidade de objetividade nos questionamentos mais importantes, analisar-se-ão com precisão os seguintes instrumentos processuais: Recurso em Sentido Estrito, Apelação e Habeas Corpus. Adiante, discorreremos apenas acerca dos julgados proferidos pela 1ª e 2ª Turma Criminal do TJDFT, órgãos confrontantes na deliberação acerca do tema, para que, posteriormente, possamos analisá-los em suas semelhanças, contrastes e evoluções.
Julgados da 1ª Turma O órgão em questão apresenta uma forte tendência em convergir ao fundamento da culpa consciente nos homicídios de trânsito. Capta-se também a demasiada disposição na aplicação da culpa, principalmente quando a via impetrada é através do RESE (Recurso Especial em Sentido Estrito) ou HC (Habeas Corpus), o que nos leva a inferir a esquiva dos julgadores em remeter os réus ao Tribunal do Júri em virtude dos crimes praticados no trânsito.
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TABELA 1 – Análise de Acórdãos
Órgão Julgador
1ª Turma
2ª Turma
3ª Turma
CÂMARA CRIMINAL
Posicionamento:
C.C.*
D.E.**
C.C.
D.E.
C.C.
D.E.
C.C.
D.E
RESE
4
4
0
5
0
1
-
-
Apelação
0
2
0
1
-
-
-
-
Habeas Corpus
2
0
0
1
-
-
-
-
Reclamação
1
0
-
-
-
-
-
-
Embargos Infringentes
-
-
-
-
-
-
0
2
Total:
7
6
0
7
0
1
0
2
Fonte: Elaborado pelo autor.
* C.C. refere-se à culpa consciente. **D.E. refere-se ao dolo eventual
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Estudando os acórdãos, caso a caso, suas diferenciações, os detalhes que os ligam e os afastam, trazem-se à pauta as principais fundamentações expostas nos dizeres dos togados. A favor do dolo eventual Primeiramente, analisaremos os julgados que favorecem o dolo eventual ao explorar o Recurso em Sentido Estrito (RESE). Em clara divergência ao posicionamento majoritário da Turma, preleciona o desembargador César Loyola a respeito da incompatibilidade da via do Recurso em Sentido Estrito na análise probatória do caso, justificando a pronúncia do acusado pautado na natureza da decisão (interlocutória mista não terminativa), na qual reconhece apenas o vínculo do juízo de admissibilidade. Da mesma forma, assevera o desembargador Edson Alfredo Smaniotto aplicando o dolo eventual em suas decisões a favor da conservação da sentença prolatada em 1ª instância. Nessa linha, defende também o cabimento da qualificadora referente à impossibilidade de defesa da vítima, nos moldes da jurisprudência emanada pelo Superior Tribunal de Justiça. Ressalta-se a modificação de posicionamento do próprio desembargador quando analisados julgados em datas posteriores, modificando sua posição quanto à aplicação de qualificadoras em homicídios dolosos no trânsito, firmando seu entendimento quanto à inadequação destas ao instituto do dolo eventual. Salienta-se que, as qualificadoras comumente conduzidas em denúncia são as do inciso III e IV do artigo 121 do Código Penal, quais sejam (grifos nossos): “III – [...] outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – [...] recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;”95 Certificar-se-á, posteriormente, a dificuldade de a tese acima narrada consolidar-se, visto que, para a 1ª Turma, em regra, não há o que se falar em dolo eventual combinado com qualificadoras. Essencialmente, dada a natureza do crime perpetrado sob o instituto do dolo eventual, repele-se a tese da incidência de qualificadoras, visto que para a integração deste fator é necessário que haja a premeditação da conduta, a qual se vislumbra apenas no dolo direto. De forma consonante aos demais, o desembargador George Lopes Leite ilustra seu entendimento, apoiando o dolo eventual sob prisma do princípio in dubio pro societate, bem como na previsibilidade do agente, o qual teria optado por beber e dirigir, mostrando-se, dessa forma, indiferente ao resultado.
95 BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7.12.40. Código Penal. DOU de 31.12.40. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 15 abr. 2013.
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Destaca-se, também, a modificação de postura do desembargador ao atualmente rechaçar a tese do dolo eventual nos crimes de homicídio no trânsito praticados mediante embriaguez. Consecutivamente, passa-se à análise dos Recursos de Apelação, nos quais adotam, em sua totalidade, o emprego do dolo eventual. Menciona-se, primeiramente, a interposição das apelações com inconformismo da sentença prolatada pelo Tribunal do Júri fundada no artigo 593 do Código de Processo Penal (grifo nosso): “Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: [...] III - das decisões do Tribunal do Júri, quando: [...] d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.”96 Para a 1ª Turma, de forma unânime, não é possível reformar decisões do Tribunal do Júri justificadas na capitulação legal acima mencionada, visto que vigora o princípio da soberania dos veredictos, amparado constitucionalmente, necessitando, para o seu perfeito enquadramento, da completa dissonância das provas à decisão, o que não ocorre nos casos em que se peleja a configuração da culpa consciente em contrapartida ao dolo eventual. Corroborando o exposto acima, entende o desembargador George Lopes Leite em sua fundamentação: “A jurisprudência tem assinalado que decisão manifestamente contrária à prova dos autos é aquela sem qualquer embasamento na prova produzida, baseada, portanto numa realidade fantasiosa só existente na imaginação dos jurados.”97 Na visão da desembargadora Sandra de Santis, ferrenha defensora da culpa consciente, não cabe aos julgadores em 2ª instância modificar aquilo que foi anteriormente decidido pelo juiz natural da causa, qual seja, o Tribunal do Júri. Nesse contexto, assevera-se que, perante a 1ª Turma Criminal, as apelações interpostas no sentido de modificar a decisão do júri visando ao enquadramento da conduta delitiva sob o prisma da culpa consciente são, em sua totalidade, negadas provimento quanto ao mérito, podendo haver, conforme caso concreto, reparações no que diz respeito à dosimetria da pena imposta pelo magistrado em 1ª instância. A seguir, reportar-se-ão às decisões majoritárias proclamadas pela 1ª Turma Criminal do TJDFT adotando, usualmente, a culpa consciente como resolução dos casos apreciados.
96 BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7.12.40. Código Penal. DOU de 31.12.40. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 16 abr. 2013. 97 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso de Apelação Criminal. APR nº 499.046. 1ª Turma. Relator: Des. George Lopes Leite. Brasília, DF. 25 de abril de 2011. DJ de 03.05.2011. p. 5.
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A favor da culpa consciente Ante a conflituosa aplicação dos institutos em discussão, repara-se o posicionamento manifesto, em clara evidência, da 1ª Turma Criminal a favor da culpa consciente quando o meio empregado é o Recurso em Sentido Estrito (RESE). Primeiramente, cumpre destacar a data em que todos os RESEs a favor do dolo eventual foram julgados em meados do ano de 1996 até 2008, o que certamente enseja em uma conclusão ilusória, visto ser uma tese superada pela própria Turma ao deparar-se com as circunstâncias atuais, conforme veremos mais à frente. No ensinamento dos magistrados, o dolo eventual está sendo utilizado pelos Tribunais como forma de política criminal. Ocorre que, mesmo diante dos lamentáveis resultados advindos de extrema leviandade dos condutores na direção de veículo automotor, não é de competência do Judiciário aplicar penas duras pautadas na revolta popular, havendo, para tanto, desarmonia entre a decisão emanada pelos magistrados e a letra da lei editada pelo Poder Legislativo. Corroborando o exposto, certifica o desembargador George Lopes Leite, de forma antagônica ao seu posicionamento anteriormente explanado, a primazia do princípio in dubio pro reo, além de tecer as seguintes palavras quanto à natureza das decisões judiciais: “Não cabe ao Poder Judiciário usurpar a competência do legislador, que é atribuir à conduta a sanção adequada, sob pena de violação aos princípios da especialidade e legalidade.”98 Afirma, ainda, que, embora o agente aja com irresponsabilidade, na maioria dos casos, torna-se também vítima de sua própria leviandade. Portanto, é da responsabilidade do magistrado avocar sua responsabilidade no julgamento quando há dúvidas suficientes à aplicação da culpa, excetuando a atuação do Júri nos crimes ocorridos no trânsito, visto que “Está em jogo a liberdade individual e o homem não pode se angustiar pelas possibilidades do julgamento popular”.99 Surge então, como defensora robusta do posicionamento pro reo, a desembargadora Sandra de Santis, que adota em grande parte das suas decisões a culpa consciente, justificando-as com base no princípio da especialidade das normas, o que resulta na inaplicabilidade do Código Penal, isto é, no decaimento da competência do Tribunal do Júri, haja vista ter o legislador se omitido propositalmente na edição do Código de Trânsito Brasileiro ao rejeitar, de todo modo, a incidência do dolo eventual nestes casos. Citando o prestigiado Cesare Beccaria em sua obra Dos delitos e das penas, expõe, em seus dizeres a favor da inflexibilidade do Poder Judiciário aos clamores públicos 98 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em Sentido Estrito. RSE nº 520.674. 1ª Turma. Relator: Des. George Lopes Leite. Brasília, DF. 19 de maio de 2011. DJ de 21.07.2011. p. 4. 99 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em Sentido Estrito. RSE nº 520.674. 1ª Turma. Relator: Des. George Lopes Leite. Brasília, DF. 19 de maio de 2011. DJ de 21.07.2011. p. 4.
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(grifo nosso): “[...] nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.”100 Na ilustração da desembargadora, o princípio da igualdade é claramente afrontado quando casos ocorridos sob a mesma ótica são recepcionados de formas diferentes, ora aplicando o dolo eventual, ora aplicando a culpa consciente. Essa divergência é aferida, principalmente, das denúncias oferecidas pelo Ministério Público, onde as mesmas situações são molduradas em tipos penais diversos, ora Código Penal (dolo), ora Código de Trânsito Brasileiro (culpa). Perseguindo o deslinde da questão, a desembargadora expõe como alternativa para a solvência do confronto entre dolo e culpa o Projeto de Lei no 2.592/2007, criado pelo deputado Beto Albuquerque, já aprovado pela Câmara dos Deputados e aguardando votação do Senado Federal desde abril de 2013. Sugere-se a modificação no Código de Trânsito Brasileiro em seu artigo 302 (homicídio culposo) quanto à pena de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, atualmente prevista, para 5 (cinco) a 12 (doze) anos de reclusão. Segundo a nova lei, os infratores dos delitos de sinistro que envolvam a prática de “racha”, ou sob efeito do álcool, ou substância análoga, seriam julgados pelo juiz singular, corroborando o espírito de aplicação da culpa consciente. Expõe a desembargadora em suas deliberações nos Recursos em Sentido Estrito, nos quais é aplicada a culpa consciente, de modo que fórmulas objetivas como “álcool ou racha + velocidade excessiva + homicídio = dolo eventual” devem ser afastadas. Defendendo também a culpa consciente nos julgamentos de RESE, o desembargador Jenuíno Rissato aduz que, caso o dolo eventual seja aplicado à conduta, estaríamos afirmando que o agente seria um possível suicida, uma vez que a direção vinculada à embriaguez traz riscos tanto à vítima quanto ao agente causador. Dessa feita, não havendo indícios de ser o acusado um possível suicida, rejeita-se a possibilidade deste em anuir suas lesões, tampouco sua própria morte, as quais seriam frutos da sua conduta abastada de imperícia, não dolo. Consecutivamente, analisar-se-ão os Habeas Corpus, os quais foram impetrados em razão da segregação do acusado sob fundamentos da garantia de ordem pública, preservação da paz social e conveniência da instrução criminal. Para a desembargadora Sandra de Santis, a existência da culpa consciente é aplicável a todos os crimes de trânsito. Assim, mesmo havendo indícios da ocorrência de dolo eventual na visão do magistrado de 1º instância, este por si só não é suficiente para que seja decretado o cárcere do acusado, posto ser medida da ultima ratio do Direito Penal.
100 Apud DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em Sentido Estrito. RSE nº 590.358. 1ª Turma. Relator: Desa. Sandra de Santis. Brasília, DF. 28 de maio de 2012. DJ de 06.06.2012. p. 4.
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Na interpretação da desembargadora, o writ não é a via adequada para a arguição de dolo ou culpa. Entretanto, a constrição do acusado não é cabível quando fundada na circunstância de embriaguez + velocidade excessiva = dolo eventual. Diante das dúvidas intrínsecas ao elemento volitivo do réu nos crimes desta natureza, a prisão pode ser efetuada apenas após o devido processo legal, prevalecendo o princípio da presunção de inocência tutelado constitucionalmente. Adota também o mesmo posicionamento da desembargadora Sandra de Santis o desembargador Edson Alfredo Smaniotto, que afirma a prescindibilidade da comprovação irrefutável de o agente ter agido sob dolo eventual, inadmitindo o aprisionamento sem o devido processo legal. Julgados da 2ª Turma De forma por si só esclarecedora, expõe-se que, dentre todos os julgados proferidos pela 2ª Turma, nenhum foi deliberado a favor da culpa consciente. Assim, visando a buscar respostas e fundamentações enérgicas dos desembargadores acerca do tema, passa-se à análise dos julgados.
A favor do dolo eventual Examinam-se, a seguir, os Recursos em Sentido Estrito remetidos à 2ª Turma, sendo, em sua totalidade, julgados a favor do dolo eventual na caracterização de homicídios no trânsito praticados sob embriaguez, remetendo o julgamento do acusado ao Tribunal do Júri. Para a desembargadora Aparecida Fernandes, subsistindo a pronúncia como decisão de natureza de admissibilidade da denúncia, não há o que se adentrar em uma persecução do elemento subjetivo, posto que haveria uma latente incompatibilidade de natureza processual. Corroborando a posição acima relatada, assevera a desembargadora que a desclassificação da capitulação inclusa no Código Penal só poderia concretizar-se caso houvesse a certeza da inexistência de dolo. Portanto, em sua visão, a mera dúvida acerca do elemento volitivo é suficiente para a remessa dos autos ao Tribunal do Júri, juízes constitucionalmente investidos, vigorando, para tanto, o princípio in dubio pro societate – tese também compartilhada pelo desembargador Roberval Casemiro Belinati. O posicionamento do desembargador Sérgio Rocha permeia-se nas mesmas linhas da visão da desembargadora Aparecida Fernandes acima explanada, acreditando que, havendo indícios de crime doloso com o devido preenchimento dos requisitos da pronúncia, é manifesta a possibilidade de apreciação da causa pelo Tribunal do Júri. Acerca do cabimento das qualificadoras de motivo torpe, perigo comum e meio que dificultou a defesa da vítima, estabelece critérios restritos para a aplicação. Acre-
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dita o desembargador que o fato de o réu ter se embriagado e assumido a direção de veículo automotor, mesmo que no momento da direção haja de maneira reprovável, não há o que se falar em torpeza. Entende ainda que a qualificadora de perigo comum pode ser enquadrada nos casos de dolo eventual pautada na conduta do acusado, isto é, na comprovação de direção desordenada pondo em risco a columidade da população. Por fim, avalia a qualificadora do meio que dificulta a defesa da vítima como incompatível ao dolo eventual, destacando que a qualificadora supracitada apenas deve ser caracterizada em casos de dolo direto, ou seja, quando o agente prevê meticulosamente sua conduta e o resultado que pretende atingir. Contrariamente aduz o desembargador Souza e Ávila, solidificando seu posicionamento duro quanto à aplicação do dolo eventual e, conforme caso específico, das qualificadoras imputadas pelo Ministério Público. Na visão do julgador, as qualificadoras de motivo torpe, perigo comum e meio que dificultou a defesa da vítima deverão ser mantidas, por entender ser o Júri competente para a análise das circunstâncias do delito. Nessa linha, defende também a fórmula exata de: velocidade excessiva + embriaguez + evasão do local = assunção do resultado e o consequente dolo eventual. Surge, então, o posicionamento do desembargador Arnoldo Camanho de Assis, explanando que, diante da fase processual em que o RESE é interposto, a aplicação do in dubio pro societate é obrigatória, exigindo apenas os indícios de autoria e materialidade do fato. Para o desembargador, há elementos extrínsecos que podem caracterizar o dolo eventual e a assunção do risco, sendo a embriaguez, velocidade excessiva e manobras arriscadas as principais características de indiferença do agente ao resultado que possa vir a se efetivar. Por fim, de forma semelhante aos demais, explana o desembargador Silvânio Barbosa dos Santos que a desclassificação para crime culposo na esfera do judicium accusationis deve ser pautada em inexistência de dolo; caso contrário, faz-se necessária a pronúncia do réu. Consecutivamente, passa-se a explorar a fundamentação dos desembargadores da 2ª Turma no julgamento de Habeas Corpus. Sob a alegação fundada em constrangimento ilegal da prisão preventiva, quando fundada na garantia de ordem pública, percebe-se que esta foi decretada reportando-se à conduta fatídica do delito, qual seja: embriaguez agravada com uso de substância entorpecente, alta velocidade, manobras arriscadas na pista, dentre outras.
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Para a desembargadora Maria Ivatônia, as circunstâncias em que se deu o crime são indispensáveis para o juízo íntimo do julgador, visto que serão sob estes aspectos que haverá a determinação da prisão preventiva do acusado. Reportando-se às questões de política criminal, cita a desembargadora em seu voto: [...] a presente situação exige do Poder Judiciário pronta e rigorosa atuação, quando provocado, a fim de coibir, até preventivamente, se possível essa prática danosa, evitando, assim, que a inconsequência de pessoas continue a ceifar e mutilar vidas. Não é por outro motivo que o episódio cercou-se do clamor público, sendo esse também justificativa hábil a embasar a medida. (grifos nossos).101
Da mesma maneira que a desembargadora Maria Ivatônia, entendem o desembargador Souza e Ávila e o desembargador Roberval Casemiro Belinati, fundamentando o encarceramento do paciente no resultado advindo da conduta. Por fim, passa-se à análise do Recurso de Apelação, interposto com fulcro no artigo 593, II, alínea “d", do Código de Processo Penal, isto é, buscando a nulidade do julgamento do Júri respaldado na decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Na ótica do desembargador Roberval Casemiro Belinati a aceitação da tese supracitada apenas se torna plausível quando os juízes naturais tenham destoado perceptivelmente do conjunto probatório produzido durante o trâmite processual. A nulidade de julgamento realizado perante o Júri é de extrema exceção, observando estritamente aquilo que está descrito na lei e pacificado pela jurisprudência, sob pena de infligir o princípio da soberania dos veredictos resguardado no artigo 5º, XXXVIII, alínea “c”, da Constituição Federal. Filiam-se à tese acima apresentada, fruto do arranjo jurisprudencial emanado pelo desembargador Roberval Casemiro, os julgadores João Timóteo de Oliveira e Silvânio Barbosa dos Santos. Com todo o exposto, constata-se a forte inclinação da 2ª Turma Criminal do TJDFT na aplicação do dolo eventual, posto que em todos os recursos e/ou ações autônomas por ela apreciadas chegou-se à conclusão do dolo, visão esta ratificada por todos os desembargadores. 2.3 Essência dos argumentos: o que há de comum nos fundamentos Não obstante ao atual posicionamento das Turmas em comento entre a aplicação do dolo eventual e culpa consciente, devidamente analisados nos tópicos anteriores, faz-se mister ressaltar os pontos comuns que, dentre as suas fundamentações, ganham expressiva aparição. 101 Apud DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Habeas Corpus. HC nº 315.381. 2ª Turma. Relator: Desa. Maria Ivatônia. Brasília, DF. 19 de junho de 2008. DJ de 07.08.08. p. 8.
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A impetração dos Recursos em Sentido Estrito (RESE) trazem, em sua maioria, quando não reconhecida a culpa consciente, o acolhimento do pedido de exclusão das qualificadoras imposta no oferecimento da denúncia pelo membro do Ministério Público. De forma majoritária, entendem ambas as Turmas que a pronúncia do acusado nos moldes do homicídio doloso eventual (Art. 121 –Código Penal) impede a aplicação de qualificadoras, tendo em vista a patente incompatibilidade que há entre a natureza do crime (assumir o risco) e a possível maquinação do agente na realização de sua conduta. Referente ao Recurso de Apelação, perante ambas as Turmas, o reconhecimento da soberania dos veredictos é absoluto, excluindo, para tanto, a possibilidade do provimento de apelação com fulcro no artigo 593, inciso III, alínea “d”, do Código de Processo Penal, qual seja, decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. Na ótica dos órgãos julgadores, a aderência do Tribunal do Júri a uma das teses defendidas em juízo não enseja nulidade do julgamento, visto que para ambas as arguições (dolo eventual e culpa consciente) há supedâneo comprobatório nos autos. Com todo o exposto, conclui-se que mesmo diante dos mais diversos argumentos e posicionamentos dos desembargadores em suas Turmas, há colocações que, mesmo respaldadas em teses diferentes, tornam-se compulsórias, como visto na aplicação absoluta da soberania dos veredictos por ambos os órgãos julgadores.
Essência dos argumentos: o que há de divergente dos fundamentos Frente ao relatado, torna-se necessário ponderar as principais fundamentações defendidas sob o cotejo de ambas as Turmas Criminais. Dentre as mais diversas fundamentações utilizadas pelos julgadores nos acórdãos analisados, percebe-se que a divergência maior entre os posicionamentos encontra-se nas análises dos Recursos em Sentido Estrito (RESE) e Habeas Corpus (HC), sendo os instrumentos causadores de desarmonia entre as colocações dos desembargadores. Vale ressaltar que, comparativamente, a posição da 1ª Turma Criminal relaciona-se ao princípio in dubio pro reo ao assegurar que, na 1ª fase do procedimento do júri, o princípio in dubio pro societate reinaria apenas no tocante à dúvida de autoria do fato. Adota, portanto, o in dubio pro reo no caso de dúvidas sobre o elemento volitivo do agente, o que, certamente, recai na desclassificação do crime doloso para culposo com a devida remessa dos autos ao juízo competente (juiz singular). O princípio in dubio pro reo reina, para a 1ª Turma Criminal do TJDFT, como gênero de variadas teses, devidamente explanadas anteriormente, nas quais traz a bala, em suma, as seguintes fundamentações: agindo o motorista com dolo eventual (assu-
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mindo o risco de matar), estaria ele consentindo também com sua própria morte, o que torna a configuração do dolo inviável; o legislador, ao criar o Código de Trânsito Brasileiro, teria de forma consciente não previsto a possibilidade de crime doloso, ausentando, propositalmente, este instituto nos crimes de trânsito; a transmissão de responsabilidade do juiz singular ao Júri seria uma maneira do magistrado eximir-se de sua responsabilidade jurisdicional. Inversamente, defende a 2ª Turma Criminal do TJDFT a superveniência do princípio in dubio pro societate, sustentando, para todos os fins, a competência do Tribunal do Júri, na apreciação dos crimes dolosos contra a vida, tendo em vista a garantia constitucional do juiz natural da causa. Quanto ao Habeas Corpus depreende-se que, para a 1ª Turma, de acordo com o princípio do devido processo legal, a política criminal jamais deve ser motivo basilar ao encarceramento do paciente. Distintamente assenta os julgadores da 2ª Turma a possibilidade de aprisionamento do acusado, mesmo que no início da persecução criminal, posto que o clamor social nasce pautado na gravidade da conduta e nos resultados dela advindos. Deve, então, o Judiciário, com fins repressivos, determinar a prisão do paciente visando a desestimular a sociedade à prática de delitos, mediante o "medo da punição” (prevenção geral negativa prevista na Criminologia), e, quem sabe assim, evitar a combinação “direção + bebida alcoólica”. Enfim, há de se ressaltar que ambos os posicionamentos encontram esteio no ordenamento jurídico brasileiro, razão pela qual a divergência jurisprudencial assenta-se de forma cada vez mais gritante, necessitando dos tribunais superiores não somente uma deliberação de casos isolados, mas também o estabelecimento de instrumentos que vinculem os tribunais “a quo”, repelindo o que tanto aflige os operadores do direito: a insegurança jurídica.
Conclusão Com todo o exposto, fez-se clara a divergência jurisprudencial que se instaurou em virtude da ínfima diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente, devidamente demonstrados no decorrer do trabalho. A discordância manifesta existente entre duas das Turmas do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios nos permite exprimir particular posicionamento sobre o tema em questão. Harmonicamente à teoria finalista, não prospera o clamor social que tanto pugna peremptoriamente a aplicação do dolo eventual nos crimes de homicídio de trânsito causados por embriaguez, vez que não se pode constatar de forma inequívoca a vontade do agente que, mesmo ao dirigir embriagado e em alta velocidade, tenha pretendido objetivamente atingir o resultado morte em terceiros.
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Aliar-se à tese do dolo eventual é aceitar a possibilidade de o agente anuir na morte de outrem, mas principalmente na de si próprio. A inexistência de um possível suicida rechaça, categoricamente, a tese do dolo eventual nos casos de homicídios cometidos no trânsito sob o efeito do álcool, partindo do pressuposto de que ninguém, em seu juízo perfeito, assumiria o risco de matar não só uma terceira pessoa como a si mesmo. Nessa tela, cabe ressaltar o princípio da especialidade, respaldado na edição de Código especializado na esfera do Trânsito, no qual furtou-se, intencionalmente, à previsão de homicídio doloso. Utópica é a posição de acolher desordenadamente a tipificação da conduta dolosa como forma de prevenção de crimes ao acreditar que a penalização mais dura resolverá o problema servindo de desestímulo para possíveis delinquentes. A dificuldade de análise dos elementos extrínsecos da conduta que possam asseverar a vontade do agente no momento do fato é, decerto, frágil; o dolo, elemento subjetivo do tipo, não deve ser presumido, posto que padece de comprovação; e a embriaguez não pode ser quesito para se inferir a finalidade do agente ao agir de maneira ilícita, o que ocasionaria, futuramente, um temeroso caos jurídico instalado no Poder Judiciário. Conclui-se, nessa linha, que a arbitrariedade em remeter o acusado ao julgamento perante o Tribunal do Júri é desproporcional, tendo em vista a competência exclusiva deste na apreciação dos crimes dolosos e seus conexos. Para tanto, não há outra opção em casos de dúvida quanto à intenção do agente que não resulte na aplicação do in dubio pro reo, protegendo o acusado diante da inexatidão das normas, observando, assim, o Direito Penal Garantista.
Referências BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13ª. São Paulo: Saraiva, 2008. BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.848, de 7.12.40. Código Penal. DOU de 31.12.40. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 1 abr. 2013. CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte geral. 10ª ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2003. DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Habeas Corpus. HC nº 315.381. 2ª Turma. Relator: Desa. Maria Ivatônia. Brasília, DF. 19 de junho de 2008. DJ de 07.08.08.
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DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso de Apelação Criminal. APR nº. 499.046. 1ª Turma. Relator: Des. George Lopes Leite. Brasília, DF. 25 de abril de 2011. DJ de 03.05.2011. DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em Sentido Estrito. RSE nº 520.674. 1ª Turma. Relator: Des. George Lopes Leite. Brasília, DF. 19 de maio de 2011. DJ de 21.07.2011. DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em Sentido Estrito. RSE nº 541.627. 1ª Turma. Relator: Desa. Sandra de Santis. Brasília, DF. 06 de outubro de 2011. DJ de 26.10.2011. p. 4. DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em Sentido Estrito. RSE nº 590.358. 1ª Turma. Relator: Desa. Sandra de Santis. Brasília, DF. 28 de maio de 2012. DJ de 06.06.2012. FRANCO, Alberto Silva; BETANHO, Luiz Carlos; FELTRIN, Sebastião Oscar. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. V. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 27ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. v. 1. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 27ª ed. rev. e atual. Até 4 de janeiro de 2011. São Paulo: Atlas, 2011. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 7ª ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte especial: arts. 1º a 120. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
O INSTITUTO DA R E INC IDÊNC IA C RI M I NAL SOB UM OLH A R GA RA NT IS T A
LÍG IA R EIS R O CHA
RESUMO Este artigo analisa o instituto da reincidência em face da Teoria do Garantismo Penal. Passando em revista aos diversos conceitos de reincidência observados no ordenamento jurídico brasileiro, e aos diversos efeitos advindos de sua adoção, tanto os observados na aplicação da pena quanto na execução da mesma, intenta-se perquirir sobre sua compatibilidade com os princípios norteadores do garantismo penal, como descritos na obra de Luigi Ferrajoli. Avulta, dentre eles, os princípios da legalidade, da intervenção mínima, da ofensividade e da culpabilidade. Esses princípios, cuidadosamente expostos, constituem o pano de fundo sobre o qual se avaliará o instituto da reincidência, tendo sempre em mente que a teoria garantista não se satisfaz com um modelo de resposta penal centrado no autor da conduta, mas tem, de forma impreterível, de estar associada a um direito penal do fato.
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Introdução Ao longo do tempo, o instituto da reincidência, que proporciona maior rigor na aplicação da pena àquele que, tendo contra si uma sentença transitada em julgado, comete novo crime, tem sofrido raras críticas por parte da doutrina e jurisprudência brasileiras. É um instituto tão amplamente aceito pela sociedade e por grande parte dos aplicadores do direito que é, por isso, muitas vezes, defendido e aplicado sem o questionamento dos fundamentos legais que o amparam. Porém, ao denominar o Estado brasileiro como garantista, faz-se necessária uma análise mais crítica sobre esse instituto e sua conformidade ou não com os princípios norteadores do garantismo penal. Por isso, o presente artigo tem como objetivo investigar se o agravamento da pena pela reincidência é compatível com o modelo garantista de Ferrajoli, desenvolvido no livro Direito e razão: teoria do garantismo penal.
Reincidência A reincidência, como já mencionado, se configura quando o agente comete novo crime após o trânsito em julgado da sentença que o tenha condenado por crime anterior. É uma das circunstâncias agravantes elencadas pelo Código Penal brasileiro, em seu artigo 61, sendo, por isso, apreciada na segunda fase de dosimetria da pena. A reincidência, porém, não é uma circunstância comum, mas preponderante, prevista no artigo 67 do Código Penal. Logo, a pena se aproximará do limite indicado por ela. Diferentemente do que ocorre com as demais circunstâncias, a reincidência não se limita a prejudicar o réu na aplicação da pena, mas ainda estende seus efeitos, alcançando o condenado na fase da execução desta, dificultando e, muitas vezes, até impossibilitando a concessão de diversos direitos. Como exemplo, temos, pela literalidade do artigo 33 do Código Penal, que o reincidente sempre começará o cumprimento de sua pena em regime fechado, independentemente do quantitativo da pena que é a ele aplicada. Logo de plano na categoria a qual é incluída, a reincidência recebe críticas. Circunstância significa uma particularidade, um acidente que é ligado, impreterivelmente, a um fato ou situação. A reincidência não diz respeito ao fato examinado. Dessa forma, a reiteração delitiva não pode ser entendida como circunstância (KARAM, 1994). Ao longo do tempo, a classificação da reincidência no Brasil sofreu diversas alterações, passando da perpetuidade, por exemplo, para a prescrição da reincidência em 5 anos, da adoção da reincidência genérica e específica para a consagração, em regra, da reincidência genérica, mesmo que em alguns momentos ainda se possa encontrar no ordenamento brasileiro resquícios da específica (YAROCHEWSKY, 2005).
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Referente à classificação, a reincidência também é criticada. Yarochewsky (2005) afirma que, mesmo se a reincidência pudesse ser condição para o agravamento da pena – o que para ele não é possível, por ser um claro exemplo de Direito Penal do autor –, só poderia ser caso o Direito Penal adotasse a reincidência real ou própria, em que o agente, para ser reincidente, tem de cometer uma nova infração após ter cumprido parcial ou totalmente a pena que lhe foi atribuída pela prática do crime anterior. Porém, o Brasil adotou a reincidência ficta e, com isto, acabou permitindo, muitas vezes, que um agente, sendo reincidente, nunca chegue a cumprir uma parcela de sua pena, só possuindo contra ele uma sentença condenatória transitada em julgado. Por isso, a reincidência no sistema penal brasileiro não pode se fundamentar em qualquer função da pena, pois é claro que o cumprimento desta não é um dos requisitos para se atribuir a etiqueta de reincidente (YAROCHEWSKY, 2005). Consequentemente, não há razoabilidade alguma em aumentar a dose de um remédio sem que o paciente já tenha tomado doses menores deste. Se o remédio – que é a pena – ainda não foi ministrado, não há como concluir que ele não tenha provocado o efeito desejado (YAROCHEWSKY, 2005).
Argumentos favoráveis ao Aumento de Pena pela Reincidência Vários são os argumentos utilizados para se justificar o agravamento da pena pela reincidência. As concepções tradicionais, mais frequentemente tendentes à tentativa de fundamentar a reincidência afirmavam ser a reiteração delitiva "uma elevação da intensidade criminosa”, “uma acentuada inimizade com o direito”, “um desprezo permanente contra os bens jurídicos” (KARAM, 1994) e, até mesmo, uma atitude mais reprovável pelo conhecimento do caráter ilícito da ação. Os positivistas defendiam que o tratamento diferenciado destinado ao reincidente se fundamentava na maior periculosidade. Na verdade, seria uma defesa da sociedade perante o reincidente, pois este, em sua repetida atividade criminal, demonstra maiores periculosidade e temibilidade que as demonstradas por um delinquente primário (YAROCHEWSKY, 2005). Lombroso desenvolveu a teoria do delinquente nato, uma espécie de ser atávico, degenerado, marcado por uma série de características físicas e estigmas corporais que demonstravam a persistência dele no crime. Dessa forma, a reincidência revelava o criminoso nato (YAROCHEWSKY, 2005). Logo, o agravamento da pena é em razão do maior perigo que o reincidente oferece à segurança geral, devendo ser entendida como medida preventiva e não como medida repressiva (YAROCHEWSKY, 2005).
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Carrara (2002) via na reincidência a revelação da ineficiência e da insuficiência da pena anterior. Para ele, quando um mesmo indivíduo volta a delinquir, não há como negar que a pena resultante da condenação anterior não produziu o efeito esperado pelo legislador. O aumento da pena não é decorrente da presunção de que o agente é mais perverso, mas da presunção de que é mais insensível em relação à pena sofrida (CARRARA, 2002). O reincidente mostra rebeldia, insensibilidade e desprezo com a pena anterior; por isso, quando pratica outro crime, deve ser punido de forma mais severa e com maior rigor. O legislador prevê que, para determinado delito, é suficiente certa quantidade de mal. E para a maioria das pessoas o é. Porém, ao reincidir, o indivíduo dá um claro sinal de desprezar aquele mal; mostra que, para ele, aquela soma de sofrimento não é freio suficiente. Resta claro, então, que apenas a lei ordinária não é mais remédio apto para tranquilizá-lo (CARRARA, 2002). De acordo com Giuseppe Bettiol (1976), o aumento da pena deve-se à inclinação ao crime que existe no reincidente e na conduta mais censurável que este apresenta. Logo, o castigo deve ser maior para aquele com maior culpa. O indivíduo com maior empenho pessoal pode evitar reincidir no crime. Fazendo o contrário, assume, pela repetição de ações, determinado modo de ser que impõe uma retribuição pelo aumento de pena, pelo crime praticado posteriormente. Assim, pode-se dizer que quem furta pela primeira vez é punido porque furtou; no caso do agente reincidente, ele é punido porque é larápio. Outro fundamento apresentado para a defesa da reincidência é o do maior alarme social, que é capaz de provocar a conduta de quem já foi advertido com uma sentença condenatória. Para salvaguardar a sociedade, com o intuito de transmitir a ela maior tranquilidade, deve-se aumentar a pena para que, desse modo, a imagem geral do direito como meio provedor da segurança jurídica não seja atingida (YAROCHEWSKY, 2005).
Direito Penal e o ius puniendi A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e ofensiva para a humanidade do que a história dos delitos. Isso porque a violência produzida pelas penas é mais cruel e, talvez, mais numerosa do que a produzida pelos delitos, visto que, enquanto a violência produzida pelos delitos é ocasional e, às vezes, impulsiva e necessária, a gerada por intermédio da pena é sempre uma violência programada, consciente e organizada por muitos indivíduos contra apenas um (FERRAJOLI, 2010). Com o “discurso da defesa social”, não é ousado dizer que o conjunto de penas aplicadas na história tem produzido à humanidade um custo de sangue, de vidas e de sofrimento incomparavelmente superior ao produzido pela totalidade dos delitos (FERRAJOLI, 2010).
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O direito de punir é “aquele que se exercita de forma mais violenta e direta sobre as pessoas, e no qual se manifesta de forma mais conflitante o relacionamento entre o Estado e o cidadão, entre autoridade e liberdade, entre segurança social e direitos individuais” (FERRAJOLI, 2010, p. 15). Ao Direito Penal, ainda que rodeado por limites e garantias, é intrínseca certa brutalidade, que torna duvidosa e incerta sua legitimidade moral e política. A pena é programada e executada por uma coletividade organizada contra um único indivíduo; por isso, é, na verdade, uma segunda violência que se soma ao delito (FERRAJOLI, 2010). O Direito Penal é um mal, mas um mal necessário (QUEIROZ, 1998), pois tem dupla função preventiva: previne, por meio das proibições legais, que a violência do delito venha a existir; e, mediante a punição, a violência por intermédio da vingança e de outras possíveis reações informais. Desse modo, a lei penal deve existir enquanto lei do mais fraco, tutelando os seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte: do fraco ofendido ou ameaçado pelo delito, como do fraco ofendido ou ameaçado pela vingança (FERRAJOLI, 2010). A criação do direito foi validada, única e exclusivamente, para afiançar o bem-estar, desenvolvimento, igualdade, harmonia e justiça social, sempre respeitando as garantias de cada indivíduo. É para assegurar tais objetivos que o poder de aplicar sanções do Estado deve ser limitado, para que este não passe a atuar de forma arbitrária, tornando sua aplicação ilegítima, já que, assim, perder-se-ia a razão de ser do direito (MELO, 2003). O Estado é o único titular do ius puniendi e deve atuar em conformidade com o ordenamento jurídico geral: sempre dentro da legalidade. Em um Estado Democrático de Direito e Constitucional, nenhum poder existente pode ser absoluto e ilimitado, devendo ser sempre submetido a limites (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). Tais limites são extremamente necessários, pois não é aceitável que no moderno Estado Democrático de Direito tema-se o poder (ZEIDAN, 2002). De nada serviria uma teoria do Direito Penal cuidadosamente desenvolvida e um processo penal garantista se esse direito, fugindo a seu objetivo, pune um indivíduo por um comportamento que, a rigor, não deveria ser censurado penalmente (ROXIN, 2006). Em um Estado Democrático de Direito não há como negar que os princípios de um Direito Penal garantista estejam, de forma implícita ou explícita, assegurados na Constituição Federal, pois o Direito Penal moderno é comprometido com os valores fundamentais da pessoa humana, que tem o homem como fim em si mesmo (YAROCHEWSKY, 2005). O garantismo fundamenta-se em dez axiomas básicos que, ordenados e conectados sistematicamente, definem as regras do jogo fundamental do Direito Penal. Para
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se verificar o instituto da reincidência à luz do modelo garantista, é necessária a análise de cinco dos dez axiomas. São eles: a) princípio da legalidade, no sentindo lato e no sentido estrito; b) princípio da necessidade ou da economia do Direito Penal; c) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; d) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; e) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal (FERRAJOLI, 2010).
Princípios da Intervenção Mínima e da Necessidade Para que o Estado alcance o garantismo penal na sua forma mais perfeita, deve-se obedecer aos axiomas garantistas. Dentre esses axiomas, encontra-se o princípio da necessidade, que é um importante critério político-criminal de intervenção mínima na esfera do Direito Penal, sendo representado pela fórmula nulla lex poenalis sine necessitate. A avaliação da necessidade é apreciativa e direcionada à fixação dos custos de violência da pena, quando comparados às reações informais consequentes da inexistência do sistema penal (CARVALHO, 2004). Pelo princípio da intervenção mínima, que se encontra intimamente ligado ao princípio da necessidade, somente será legítimo ao Estado utilizar o próprio poder de punir quando, em virtude do princípio da fragmentariedade, não apenas entrem em jogo bens extremamente relevantes para a convivência humana, como também que tal ataque seja intolerável e, ainda, que não haja outra forma de tutela mais adequada, em razão do princípio da subsidiariedade (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). Desse modo, o Direito Penal não se ocupa de ações de coisas ou animais, mas somente das ações humanas e, dentre estas, apenas das que não sejam cominatórias. Também não pode o Direito Penal punir um homem pelo que ele é, pois, deste modo, não estaria regulando condutas (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009). A justiça criminal representa somente um dos possíveis mecanismos de controle social. O Direito Penal é apenas um dos sistemas normativos existentes; a infração penal, por sua vez, é uma pequena parcela de todas as condutas desviadas imagináveis; e a pena nada mais é que a escolha por uma das sanções existentes. Assim, em um sistema global de controle social, o sistema penal constitui apenas mais um controle social (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). Justamente por existirem outros meios de controle social, o Direito Penal deve se restringir àquelas condutas particularmente nocivas, cuja contenção não se possa efetivamente confiar aos sistemas de controle menos onerosos e, por isso, mais adequados (QUEIROZ, 1998).
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Princípios da Ofensividade, da Secularização, da Regulatividade e da Materialização A proposta central que se extrai do princípio da ofensividade é a de que não haverá proibição penal sem um conteúdo ofensivo a bens jurídicos (nulla necessitas sine injuria). Assim, para que um bem jurídico seja protegido pelo Direito Penal é indispensável que possa ser afetado, ou seja, lesionado. Impede-se, assim, que o legislador escolha como bem jurídico algo que é indeterminável ou não suscetível de lesão (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). O princípio da lesividade é absoluto, não comportando transigência. Quando o Estado, por intermédio do Direito Penal, ignora esse princípio, passa a atuar de forma disfuncional, pois ultrapassa os próprios limites e passa a operar de forma prejudicial aos fins que persegue (QUEIROZ, 1998). O princípio da lesividade corresponde ao princípio de tolerância tendencial da desviação, adequado para diminuir ao mínimo necessário a intervenção penal e, com isso, aumentar a própria legitimidade e credibilidade (FERRAJOLI, 2010). Portanto, o legislador está impedido de configurar como delito a mera desobediência ou a simples infração da norma imperativa ou até mesmo o simples desvalor da ação, sem levar em consideração qualquer ofensa ao bem jurídico protegido de terceiro (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). O Estado deve garantir um âmbito de liberdade moral. Não pode, dessa forma, estabelecer uma moral a ser necessariamente seguida, pois, assim, acaba por se tornar um Estado imoral. O mérito moral é fruto de uma livre escolha diante da possibilidade de optar por outra coisa. Desse modo, o cidadão deve ter a possibilidade da alternativa imoral. O direito é moral, precisamente, porque ele é a possibilidade da imoralidade, que está diretamente vinculada à diferença existente entre consciência jurídica e consciência moral. Logo, a pena não pode recair sobre condutas que são justamente o exercício da autonomia ética de escolher entre o moral e o imoral que o Estado deve garantir (ZAFFARONI; BATISTA, 2003). O direito não tem legitimidade, tampouco é a ferramenta adequada para se educar moralmente o cidadão. A função dele é assegurar a ordem pacífica externa da sociedade. Por isso, não se deve castigar um comportamento pelo simples fato de ser ele pecaminoso ou imoral, mas apenas quando esse comportamento lesionar direitos de outras pessoas (ROXIN, 1981). Falta à conduta puramente interna – seja ela pecaminosa ou imoral – a ofensividade que legitima a intervenção penal estatal na esfera de liberdade do indivíduo (BATISTA, 2011). O processo de secularização – separação entre o direito e a moral – operou, de imediato, uma minimização na intervenção do Direito Penal. Antes, existia a possibilidade de criminalizar e penalizar a esfera da consciência (o ser do sujeito); com a
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secularização, tal ingerência se tornou ilegítima. Assim, percebe-se que a laicização do direito implica balizar uma política criminal de intervenção mínima, imunizando, deste modo, o “ser” (CARVALHO, 2004). O princípio da secularização constitui-se, assim, segundo Ferrajoli (2010), no pressuposto necessário de qualquer teoria garantista e, ao mesmo tempo, de qualquer sistema de Direito Penal mínimo. O princípio axiológico da "separação entre direito e moral” impede a proibição de condutas por estas serem meramente imorais ou de estados de ânimo considerados hostis, pervertidos ou perigosos. Tal princípio impõe, ainda, para maior tutela da liberdade pessoal de consciência e da autonomia e relatividade moral, a tolerância jurídica de toda atitude ou conduta que não lesione um terceiro. Assim, com o Princípio da Secularização, o Direito Penal abdicou de punir atitudes que representam meros estados de ânimo pervertido, condições pessoais ou comportamentos imorais, perigosos ou hostis. Somente as ações externas podem produzir danos a terceiros. Dessa forma, só elas podem ser punidas, pois a relação de causalidade entre a ação e o resultado é requisito essencial na configuração do delito (CARVALHO, 2004). Ao incluir a reincidência no Direito Penal brasileiro, acabou-se punindo a pessoa pelo que ela é (quia peccatum) e não pelo que fez (quia prohibitum), abandonando as necessárias amarras impostas pelo princípio da secularização, substituindo-o por valorações protestativas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de autor rotulado como intrinsecamente perverso (CARVALHO, 2004). A pena, quando aplicada, sem que haja ofensa a um bem jurídico de alguém, é uma aberração absoluta que não deve ser aceita, pois implica tentativa de moralização subjetivada e arbitrária do exercício do poder do sistema penal (ZAFFARONI, 1996). Todo Estado que instrumentaliza, pelo Direito Penal, essa perseguição, confere a este caráter constitutivo e não meramente regulativo: em vez de proibir condutas e prever efeitos jurídicos, passa a produzir, legal ou judicialmente, determinados status jurídico-sociais, como é o caso do reincidente, construindo uma verdadeira antropologia da desigualdade (DITTICIO, 2007 apud BERLA, 2010). Ferrajoli (2010), no livro Direito e razão, formulou o princípio da regulatividade. Para ele, as normas podem ser classificadas em regulativas e constitutivas. As regulativas são aquelas que regulam um comportamento, classificando-o como permitido ou proibido e condicionando sua ação ou omissão à produção de efeitos na esfera penal. Para que essa norma alcance o indivíduo, este tem de violá-la, praticar a ação ou omissão por ela tipificada. As constitutivas são aquelas que punem imediatamente a pessoa, sem a ação ou omissão por parte do agente; elas não dão a opção de escolher entre seguir a norma ou violá-la. Elas trazem o estigma de determinado réu, penalizando-o por sua forma de ser e não por sua forma de atuar.
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O princípio da regulatividade proíbe a utilização de normas constitutivas. Ele é considerado um postulado essencial do liberalismo, no sentindo de que a proibição ou regulação de ações determinadas e que garantam a possibilidade alética de transgressão ou de observância é a única técnica de controle social compatível com a tutela dos direitos fundamentais. A disciplina diretamente das pessoas, antes que a de seus comportamentos, do seu ser, antes que de seu atuar, constitui traço característico dos regimes totalitários, já que lesiona tanto a igualdade quanto a liberdade (FERRAJOLI, 2010). O tratamento dado à reincidência, ou melhor, ao reincidente, adapta-se perfeitamente ao modelo constitutivo que, ao contrário do modelo garantista de Direito Penal, não proíbe o atuar, senão o ser (FERRAJOLI, 2010). Um Direito Penal que assegure e considere a autonomia moral da pessoa não pode, jamais, punir o ser, mas apenas o fazer, já que o direito serve para regular condutas e não pessoas (ZAFFARONI, 1986). Logo, o Direito Penal deve sempre ser o Direito Penal da ação e nunca um Direito Penal do autor (BATISTA, 2011). Ao princípio da ofensividade relaciona-se o princípio da materialização do fato. Nenhuma lesão, por mais grave, pode ser tida como penalmente relevante sem que haja a exteriorização de uma conduta (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). Para esse princípio, o Estado só pode criminalizar condutas humanas que sejam voluntárias e que se exteriorizem por meio de ações ou omissões concretas, isto é, de fatos (ROSAL apud BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). Desse modo, é necessário que exista vinculação da punição ao fato cometido pelo agente, pois é esse fato que dará ao Estado os concretos e definitivos limites para sua atuação. Portanto, uma pena que supere o extremamente necessário a reparar o dano causado pelo autor é uma pena injusta, sem amparo legal (TOLEDO, 1994). O critério para fixar a pena deve ser a exata medida do crime, que é o prejuízo efetivamente causado à sociedade (BECCARIA, 2007). O princípio garantista da materialização, consubstanciado no axioma nulla injuria sine actione, revela que nenhum dano, por mais grave que seja, pode ser penalmente relevante, senão como efeito de uma ação. Logo, os delitos não podem consistir em atitudes ou estados de ânimo interiores, mas, tão somente, em ações humanas – materiais, físicas ou externas –, ou seja, passíveis de serem empiricamente comprováveis (FERRAJOLI, 2010). Tal conclusão é óbvia, já que apenas ações externas, e não atos internos, são capazes de causar danos a terceiro. Os atos internos, como o pensamento e as intenções, do mesmo modo que os "vícios" e a "maldade de ânimo", não prejudicam ninguém; logo, não há interesse em puni-los (PUFENDORF; THOMASIUS apud FERRAJOLI, 2010).
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Punir alguém pelo seu modo de viver ou de pensar é filiar-se ao denominado Direito Penal do autor, no qual se baseou o regime nazista para castigar as pessoas pelo que eram ou pensavam e não pelas ações delas (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). O Direito Penal do autor pressupõe que o cometimento do crime revela o sintoma de um estado do autor, que é inferior ao das demais pessoas consideradas normais. O delito indica ao Estado a necessidade de que seu sistema penal investigue e censure toda a vida pecaminosa do autor. Assim, a pena deve adequar-se ao grau de perversão pecaminosa que a condução de vida do agente tenha alcançado (ZAFFARONI; BATISTA, 2003). Diferentemente, o Direito Penal do ato compreende o delito como um conflito que gera lesão jurídica a partir de um ato humano, fruto de uma decisão autônoma de uma pessoa responsável que pode, por isso, ser censurada e, por consequência, a quem pode ser retribuído o mal na medida de sua culpabilidade. A culpabilidade pelo ato, nesse caso, constitui o limite da pena (ZAFFARONI; BATISTA, 2003). Claro é que, para essa teoria, o que deve ser censurado é o ato livremente praticado pelo agente e não algum sintoma de sua personalidade. Desse modo, enquanto para alguns autores o delito é uma infração ou lesão jurídica, para outros ele compõe o sintoma de uma inferioridade moral, biológica ou psicológica. Assim, para uns, seu desvalor termina no próprio ato, ao passo que, para outros, o ato é apenas uma lente que permite ver uma das características do autor, em que se encontra o verdadeiro desvalor (ZAFFARONI; BATISTA, 2003). A pena, dessa forma, não pode ser proporcional apenas à gravidade jurídica e objetiva do crime, mas deve considerar, também, e, acima de tudo, a personalidade, mais ou menos perigosa, do criminoso (FERRI, 2003). Logo, todas as tentativas de se explicar a reincidência dentro dos limites de um Direito Penal do ato são insatisfatórias, só podendo ser explicadas, assim, nas abordagens jurídico-penais em que se abandona o Direito Penal do ato, embora, às vezes, nem mesmo assim a explicação se mostre coerente (ZAFFARONI, 1993). O Direito Penal do fato e a culpabilidade do fato alinham-se, imponentemente, em uma perfeita sequência e implicação lógica, como base de um sistema ligado ao Direito Penal de caráter democrático (TOLEDO, 1994). Um ordenamento jurídico que se baseie em princípios próprios de um Estado de direito liberal, como o princípio da culpabilidade, se inclinará sempre em direção a um Direito Penal do fato (ROXIN, 1997). Assim, o primeiro mandamento que se extrai da consagração do princípio de culpabilidade é que o legislador constituinte optou pelo Direito Penal do fato, não sendo possível, por isso, tipificar ou sancionar o caráter ou modo de ser, já que no âmbito do Direito Penal não se deve julgar a pessoa, mas apenas os atos dela (BRUNONI, 2007).
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Princípio da Culpabilidade O princípio da culpabilidade tem estreitas relações com o Direito Penal garantista e possui a função de delimitar o poder punitivo do Estado. Para esse princípio, não pode ser cominada uma pena sem que o agente tenha agido cupavelmente (BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009). No Direito Penal da culpabilidade, para que se possa admitir a possibilidade de censura a um sujeito, é necessário pressupor que este tem a liberdade de escolher, ou seja, de autodeterminar-se. Desse modo, o homem é capaz de optar entre o bem e o mal, isto é, ele é um ser com autonomia. Por ter a liberdade de escolha, esse mesmo homem pode ser censurado, podendo a ele ser atribuída uma culpabilidade. O limite da pena deve ser, por isso, o grau da culpabilidade (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009). O conceito de culpabilidade pode ser alterado e, inclusive, ser convertido em um engendro perigosíssimo para as garantias individuais. Uma das alterações mais comuns é a de se esquecer que a culpabilidade é uma reprovação do ato e não da personalidade do sujeito, reprovação do que o homem fez e não do que o homem é; tentação na qual, com frequência, se cai (ZAFFARONI apud CARVALHO, 2004). Existe um âmbito da vida pessoal intocável pelo poder estatal e resguardado do controle público e da vigilância policial: não apenas as intenções e projetos, mas, também, e com maior razão, os erros do pensamento e a opinião (FERRAJOLI, 2010). Por isso, é necessário que exista um elo entre o fato e o agente, pois a culpabilidade é um juízo valorativo feito ao agente em relação ao fato típico e ilícito. Na reincidência, não existe esse elo. Sendo assim, o agravamento se dá por razões de caráter subjetivo do sentenciado (YAROCHEWSKY, 2005). Fica claro que a criação de proibições penais não está totalmente à disposição do legislador. Logo, o poder legislativo não pode criminalizar um comportamento apenas por ser ele indesejado. Para que isso não ocorra, é necessário que existam limites à faculdade estatal de punir (ROXIN, 2006). É justamente o que faz a teoria do garantismo penal, que, primeiramente, propõe-se a instituir critérios para uma intervenção penal racional, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que priorize a defesa social em detrimento dos direitos e garantias individuais. O modelo garantista permite, com isso, a criação de um instrumento de proteção dos direitos frente à irracionalidade dos poderes públicos e privados (CARVALHO, 2004).
Garantismo Penal O garantismo designa o modelo normativo de direito da estrita legalidade, própria de um Estado de Direito, que sob o plano epistemológico se define como um
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sistema de poder mínimo; sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela para diminuir a violência e aumentar a liberdade; e sob o plano jurídico para que sejam garantidos os direitos dos cidadãos como um sistema de vínculos impostos ao Estado em sua função punitiva (FERRAJOLI, 2010). É um modelo baseado no máximo grau de tutela dos direitos e na confiabilidade do juízo e da legislação, restringindo o poder punitivo e resguardando o cidadão contra qualquer tipo de violência arbitrária (CARVALHO, 2004). O Direito Penal mínimo, também conhecido como abolicionismo moderado, não defende o desaparecimento total de todos os meios formais de controle, mas sim uma intervenção mínima do sistema penal na solução dos conflitos. Assim, prioriza-se a solução dos conflitos mediante o emprego de outros ramos do direito, aplicando o Direito Penal como ultima ratio, ou seja, o Direito Penal deve ser aplicado em último caso, quando as outras soluções não forem suficientemente eficazes (MELO, 2003). O Direito Penal mínimo é condicionado e limitado ao máximo; corresponde não somente ao grau máximo de tutela da liberdade dos cidadãos em relação ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza. Por isso, todas as vezes em que sejam incertos ou indeterminados seus pressupostos, exclui-se a responsabilidade penal. Assim, existe um nexo profundo entre garantismo e racionalismo, excluindo ou reduzindo a intervenção penal quando não existirem argumentos cognitivos seguros para sua aplicação (FERRAJOLI, 2010). O garantismo penal é o traço mais característico da democracia, pois corresponde a uma técnica de disciplina e limitação dos poderes públicos: protegendo os direitos fundamentais do cidadão face aos poderes do Estado, os interesses dos mais fracos em relação aos mais fortes, assim como tutela das minorias marginalizadas frente às maiorias integradas (STRECK, 1998 apud CARVALHO, 2004). Os direitos fundamentais adquirem status de intangibilidade, tornando-se um núcleo sobre o qual nem sequer a totalidade pode decidir. É, então, uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado nem sob a justificativa da manutenção do bem comum. Assim, tais direitos possuem a função de estabelecer o objeto e os limites do Direito Penal nas sociedades democráticas, sendo, então, considerados limitadores a intervenção –entendidos como vínculos substanciais de caráter negativo –, impondo um dever de observância que, inclusive, a unanimidade não pode legitimamente violar (CARVALHO, 2004). Garantismo corresponde, justamente, à proteção dos valores e direitos fundamentais, cuja satisfação se exige mesmo contra os interesses da maioria, pois constitui o objetivo justificante do Direito Penal, ou seja, a tutela dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e punições, a defesa dos fracos por serem aplicadas regras iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e, consequentemente, a garantia da sua liberdade (FERRAJOLI, 2010).
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De todos os princípios, o que caracteriza de forma mais específica o sistema cognitivo do sistema garantista é o princípio da legalidade estrita que exige não apenas a existência de uma lei prévia, mas todas as demais garantias como condição necessária da legalidade penal, não podendo haver pena sem necessidade, sem lesividade, sem culpa, entre outros (FERRAJOLI, 2010). Há grandes diferenças entre o princípio da legalidade em sentido lato e em sentindo estrito. Enquanto em seu sentindo lato esse princípio é dirigido aos juízes, aos quais prescreve que considera delito qualquer fato livremente qualificado como tal na lei, o da estrita legalidade é dirigido ao legislador, a quem prescreve uma técnica específica de qualificação penal, pois exige a presença de todos os demais princípios garantistas para que seja legítima a intervenção estatal na esfera de liberdade do indivíduo (FERRAJOLI, 2010) O primeiro princípio – legalidade em sentido lato – se torna satisfeito por figuras de delito como "atos hostis", "atos obscenos" ou, até mesmo, "atos maldosos", ou de outro modo "reprováveis", pois basta apenas que exista uma lei que incrimine tais condutas. Ao contrário, isso não ocorre com o princípio da legalidade estrita, pois, para que este seja obedecido, é necessário que haja observância dos princípios garantistas ao criminalizar determinada conduta. O princípio da legalidade estrita é dirigido a excluir as convenções penais que não se referem a fatos, mas diretamente a pessoas, pois estas se tornam arbitrárias e discriminatórias, e adquirem o caráter constitutivo e não regulamentar do que deve ser punido (FERRAJOLI, 2010). Pode-se concluir que a reincidência atende ao princípio da legalidade em sentindo amplo, pois encontra-se tipificada no artigo 61 do Código Penal. Porém, como foi demonstrado ao longo deste artigo, viola diversos princípios garantistas, não atendendo ao princípio da legalidade estrita. Portanto, fica claro que, ao serem adotados institutos como o da reincidência, embora no plano legislativo o direito afirme um compromisso garantista, pode-se dizer que a ideia de culpabilidade pelo fato como fundamento e limite da pena foi, até então, estranha ao Direito Penal brasileiro. O agravamento da pena pela reincidência é uma das maiores máculas ao modelo penal de garantias (CARVALHO, 2004). Toda vez que se torna mais grave a consequência jurídica pela reincidência, acontece, na verdade, uma aplicação do Direito Penal autoritário, ato extremamente perigoso para todas as garantias penais (ZAFFARONI, 1993). Portanto, o instituto da reincidência deveria ser eliminado do campo jurídico, da mesma forma que o foram a tortura, no campo processual, e a analogia, no âmbito penal. Não se deve pensar que é exagero comparar a reincidência com tais institutos clássicos do Direito Penal autoritário, pois sob a justificativa da reincidência já se praticaram crimes terríveis contra a Humanidade, como o desterro. Assim, a história da reincidência não é menos sangrenta do que a da tortura (ZAFFARONI, 1993).
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Por isso, em um Direito Penal comprometido com o ser humano e com valores e princípios constitucionais garantistas próprios do Estado Democrático de Direito – como o Brasil –, a reincidência torna-se um instituto grotesco que deve ser repelido, justamente por ser incompatível com os referidos princípios garantistas (YAROCHEWSKY, 2005). O Direito Penal que mantém a reincidência é disciplinador e está mais preocupado com a submissão à ordem do que com o conteúdo do injusto da conduta delituosa (ZAFFARONI, 1993). Sabe-se que, na prática, o sistema penal e seu regime de filtros fazem com que o Direito Penal de ato não se concretize de forma plena em nenhum país. Porém, uma coisa é apurar esse dado de realidade e outra, muito diferente, é defender teorias que não só não tratem de reprimir ou fiscalizar a deformação do Direito Penal de ato pela prática do sistema penal como também constituam verdadeiras racionalizações que buscam justificar tais práticas (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009). A abolição definitiva da reincidência e dos conceitos que lhe são próximos daria um passo extremamente significativo na recuperação de um Direito Penal de garantias pleno e, consequentemente, de um Direito Penal do ato (ZAFFARONI, 1993).
Conclusão O Direito Penal é a intervenção mais violenta, drástica e invasiva que o cidadão pode sofrer por parte do Estado. Dessa forma, por possuir tais características, tal intervenção deve ser rigidamente controlada e limitada, levando-se em consideração os princípios que devem nortear o sistema penal para proteger o cidadão contra ingerências arbitrárias e desreguladas na sua esfera de liberdade. Deve-se sempre ter em mente que o Direito Penal não é a única saída quando um bem jurídico é violado. Para que o sistema penal seja chamado a atuar, não é necessário apenas uma gravíssima violação a um bem jurídico, mas também uma violação a um bem jurídico tão importante que não se possa confiar às outras esferas do direito uma resposta suficientemente eficaz. O garantismo não defende a abolição do sistema penal; na verdade, ele o vê como instrumento útil para o controle social, mas que deve ter sua intervenção limitada ao mínimo necessário, devido à intrínseca brutalidade que possui. Logo, o garantismo se encontra vinculado ao Direito Penal mínimo e ao grau máximo de tutela dos direitos do cidadão. O princípio da legalidade é a base do garantismo, fundando-se nele todos os demais princípios garantistas. Para que exista uma punição, o princípio da legalidade, em sentido estrito, além de exigir a edição de uma lei prévia, ainda necessita, para ser satisfeito, que tal previsão legal ocorra apenas quando autorizada por todos os princípios garantistas.
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Dessa forma, a reincidência atende ao princípio da legalidade em sentido amplo, pois encontra-se tipificada no artigo 61 do Código Penal; porém, como demonstrado ao longo de todo o artigo, ela viola diversos princípios garantistas; logo, não atende ao princípio da legalidade em sentido estrito. Conclui-se que um sistema penal que tenha a pretensão de ser considerado garantista deve refutar, de forma absoluta, a adoção do agravamento da pena pela reincidência.
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REDUÇÃO DA ID A DE DE I M PU TABILIDADE PENA L: A OM IS S Ã O DO E S TADO EM FACE D OS D IREIT OS E GARA NTIAS F UNDAMENT A IS C OM O F ATO IMPED IT IV O
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RESUMO Diante do manifesto clamor da sociedade, em favor de igual tratamento penal das crianças e dos adolescentes aos dos adultos, sob a exigência de se reduzir a idade de imputabilidade penal, urge a necessidade de que os profissionais do Direito venham a tecer estudos científicos com o escopo de investigar se essa é a política criminal mais adequada para afastar o estímulo à conduta criminosa, bem como identificar a legitimidade ou ilegitimidade desta reação social. Neste presente estudo, foi utilizada uma abordagem multidisciplinar com fundamento na Sociologia do Conhecimento e na Ciência Jurídica, englobando a proteção dos Direitos Fundamentais e as teorias criminológicas da Criminologia Crítica, demonstrando as perspectivas gerais sobre a relação entre Direito da criança e do adolescente e a sociedade, contextualizando a produção e transformação das normas jurídicas penais ao longo da História. Palavras-chaves: Idade de Imputabilidade Penal; Sociologia do Conhecimento; Estado Democrático de Direito; Criminologia Crítica; Controle Social; Direito Penal do Inimigo. 102
Aluna graduada em Direito na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do UniCEUB.
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Introdução As premissas que circundam o tema da redução da idade para imputabilidade penal são muito mais complexas do que a solução apontada pelas Propostas de Emenda Constitucional – a de trancafiar cada vez mais cedo a população brasileira em prisões do Estado. Assim, é necessária uma reflexão crítica sobre determinados aspectos jurídicos que envolvem as crianças e os adolescentes. Para tanto, a análise histórica da vida humana em sociedade é um importante instrumento de pesquisa para a compreensão dos inúmeros acontecimentos que corroboraram para as transformações sociais operadas. Consequentemente, para assimilarmos o significado atual de algum objeto jurídico tutelado, torna-se imperioso perceber como eles foram construídos, porquanto "os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas".103 No que concerne ao Brasil, depreende-se do texto do artigo 227 da Constituição Federal que dentre as instituições família, sociedade e Estado, este último ocupa o lugar central no sistema de responsabilização e proteção da Criança e do Adolescente, pois, na condição de garantidor da dignidade humana, tem a incumbência de efetivar as Garantias e Direitos Fundamentais que viabilizam as condições socioestruturais necessárias para desenvolver de maneira digna o jovem membro da sociedade. Nesse sentido, considera-se que o Estado tem o múnus de efetivar com eficácia os Direitos e Garantias Fundamentais, conferindo exclusiva ênfase nos Direitos Sociais, para que possam ser aproveitados no momento oportuno como sustentáculo para o desenvolvimento pessoal das crianças e dos adolescentes, no sentido de que qualquer prestação insuficiente que prejudique o desenvolvimento socioindividual deste novo cidadão constitui violação da ordem jurídica vigente. Com efeito, não obstante a expectativa de atuação do Estado Providência (Welfare state), o Poder Político não tem atuado consonante com as premissas da Constituição Federal Brasileira. Esta omissão do Estado pode ser vislumbrada pelo incremento dos níveis de exclusão socioeconômica, da agrura constitucional e do pessimismo da società. Esta situação tem impacto direto no constitucionalismo brasileiro, já que "a Constituição, enquanto conquista, programa e garantidora substancial dos direitos individuais e sociais, depende fundamentalmente de mecanismos que assegurem as condições de possibilidade para implementação do seu texto".104
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BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5.
STRECK, Lenio Luiz. A Inefetividade dos direitos sociais e a necessidade da construção de uma teoria da constituição dirigente adequada a países de modernidade tardia. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Porto Alegre, nº 2, p. 25-64, 2002. 104
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Consequência direta deste prognóstico é a situação pontual em que a ineficácia e omissão prestacional do Estado culminam em um processo de deslegitimação e crise do próprio Estado Democrático de Direito.105 Nesta esteira, o Estado utiliza-se do Direito Penal e da Doutrina da Defesa Social para reavivamento de sua legitimidade perante a sociedade, por meio da superexploração da sensação de insegurança pública e consequentes Políticas Criminais de Lei e Ordem.
Historicidade: A Construção Social da Infância e Adolescência Quando se trata de questões que envolvem os direitos da criança e do adolescente, uma retrospectiva crítica da história passada e recente interessa para tornar visíveis as relações de práticas de poder e a produção de conhecimento e de verdade às quais esses novos indivíduos são submetidos para formar as suas funções dentro da organização social. O percurso histórico-normativo ocorrido em relação à infância e à adolescência foi construído ao longo do tempo de acordo com as diferentes tendências culturais, políticas e sociais vivenciadas pela história mundial acerca do tema. De certa maneira, demorou para que as Ciências Sociais e Humanas tivessem interesse em desvencilhar o universo social da criança e da adolescência e "[...] durante muito tempo, poucos têm sido os historiadores dedicados à infância. Ainda na década de 1950, seu território podia ser considerado ‘um campo quase virgem”";106 contudo, esses desbravadores, ao colocarem pela primeira vez as crianças e os jovens como objetos centrais de suas pesquisas, perceberam-nos como sujeito social, reconhecendo que a infância é uma construção social.107 Assim, partindo da premissa de que as concepções de infância e adolescência são mutáveis e decorrentes de um longo processo histórico de transformação social, resta quase que obrigatoriamente a observação da tese central, em todas as análises, sob o ângulo da sociologia, pois a objetivação prima é a de correlacionar os resultados históricos colhidos com a construção social da realidade e com as sistemáticas estruturais de poder.
105 Nas palavras de Luigi Ferrajoli, seria uma "Crise de Inadequação Estrutural das formas de Estado de Direito às funções do Welfare State". FERRAJOLI, Luigi apud LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 90. 106 HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 13. 107 HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 13.
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Consequentemente, diante da necessidade de entendermos como as concepções a respeito deste objeto foram formadas pela sociedade, a sociologia do conhecimento108 fornece ferramentas para determinar os "processos pelos quais qualquer corpo de ‘conhecimento’ chega a ser socialmente estabelecido como ‘realidade’ [...] relações entre o pensamento humano e o contexto social dentro do qual surge".109 De fato, esta forma de abordagem científica logrando a Sociologia, especificamente a Sociologia do Conhecimento, é primorosamente pertinente conquanto evidencia a importância do papel do "conhecimento" produzido pela sociedade através de seu diálogo com a História. No que tange à temática da Sociologia do Conhecimento, a intenção se pauta apenas em oferecer uma visão geral das premissas mais importantes desta disciplina, inserida em seu tratado teórico sistemático. Posto isso, é correto afirmar que a Sociologia do Conhecimento trabalha de forma antagônica ao racionalismo moderno de Descartes, representado por um pensamento antropocêntrico, o qual fundamenta que o homem, unicamente através de sua capacidade racional, poderia decodificar o mundo circundante através de um pensamento autossuficiente e assim chegar ao conhecimento, ou seja, chegar à verdade sem que as condições exteriores pudessem influir nesta verdade inata. "Exprime de modo geral a convicção idealista de que o conhecimento de nós mesmos é mais originário do que qualquer outro [...]",110 podendo o homem, por meio da sua capacidade racional autônoma, atingir a verdade sem que as condições exteriores influam no pensamento, pois a verdade real é apenas a racional. A Sociologia do Conhecimento, ao contrário, propõe que existem "modos de pensamento incapazes de serem adequadamente compreendidos enquanto permanecerem obscuras as suas origens sociais",111 isto porque "não se deve concluir que todas as ideias e sentimentos que motivam a conduta de um indivíduo tenham exclusivamente nele suas origens e possam ser adequadamente explicadas apenas à luz da sua própria experiência".112 Por conseguinte, o núcleo do fundamento lógico da Sociologia do Conhecimento é a proposição de que "a realidade é construída socialmente e que a sociologia do conhecimento deve analisar o processo em que este fato ocorre",113 de forma a investigar"as relações entre o conhecimento e existência; como pesquisa histórico-sociológica"114 e consequente impacto no desenvolvimento intelectual da sociedade. 108
O termo ‘sociologia do conhecimento’ foi formulado por Max Scheler em 1925.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 30ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 14. 109
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CRESPI, Franco; FORMANI, Fabrizio. Introdução à sociologia do conhecimento. Bauru, SP: 2000. p. 39.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia: introdução à sociologia do conhecimento. 3ª ed. Rio de Janeiro: Globo Ed., 1954. p. 2. 111
112 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia: introdução à sociologia do conhecimento. 3ª ed. Rio de Janeiro: Globo Ed., 1954. p. 2. 113 BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 30ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 11. 114 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia: introdução à sociologia do conhecimento. 3ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1954. p. 245.
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Para tanto, Karl Marx,115 Michel Foucault116 e Karl Mannheim,117 autores renomados com inúmeras produções nesta área do conhecimento, foram utilizados para fundamentar um diagnóstico mais crítico sobre o tema da redução da idade para imputabilidade penal. Não há o ímpeto de exaurir o conteúdo – ao contrário, diante da densidade sociofilosófica da Sociologia do Conhecimento, foram utilizadas apenas breves considerações enquanto sustentáculo teórico. As proposições lançadas pelos autores escolhidos foram na acepção de que, para se definir verdadeiros certos tipos de conhecimento, há o dever de se adentrar as origens sociais do problema, primeiramente, porquanto a realidade é produzida socialmente, ou seja, a consciência do ser humano é fomentada por seu ser social. Esse foi o ponto-chave utilizado na investigação da história da infância e juventude; uma reavaliação dos conceitos sociais sobre a infanto-juventude, apartados das ideias tradicionalmente construídas, aquelas baseadas nos documentos e posicionamentos oficiais.118 Dessa maneira, ficou evidente que os conceitos de criança e de adolescente caminharam de acordo com cada período da história ocidental e tais conotações se adequaram à dinâmica socioeconômica da comunidade. A Idade Média contempla o início dessa investigação histórica. É considerada uma espécie de "limbo" entre a Antiguidade e a Idade Moderna no que concerne à consciência società da particularidade infantojuvenil que pudesse distingui-los dos adultos. Há argumentos fortemente divergentes entre os vários autores especializados em infância e juventude quanto à existência ou não desse "espírito" protetor dos adultos para com as crianças e os jovens antes do século XVII.119 115 Karl Marx, com sua concepção ideológica do conhecimento, entendia que era imperioso o"‘desmascaramento’ sociológico de uma ideologia", pois estas coberturas ideológicas eram utilizadas "pelo sistema para mascarar os interesses das classes". (MANNHEIM et al. Sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. p. 21; CRESPI, Franco; FORMANI, Fabrizio. Introdução à sociologia do conhecimento. Bauru, SP: EDUSC, 2000). 116 Michel Foucault; detentor da abordagem das relações entre saber, poder e controle social. "Concebe o conjunto de contextos discursivos presentes em uma determinada sociedade não apenas como a matriz das formas coletivas de representação da realidade, mas também como a fonte de produção dos objetos e dos sujeitos sociais [...] Se, a partir de Marx, a ideologia se apresentava com um revestimento ou máscara da dominação, agora é justamente tal dominação que é considerada a fonte da linguagem e do conhecimento. A essa altura, não há mais possibilidade de descriminar o que é ideológico daquilo que não é. Em certo sentido, tudo se tornou ‘ideologia’: as próprias ciências sociais respondem a práticas de poder, visando a previsão e o controle de eventos, ações e atores, limitando a complexidade de agir." (CRESPI, Franco; FORMANI, Fabrizio. Introdução à sociologia do conhecimento. Bauru, SP: EDUSC, 2000. p. 158-163). 117 Karl Mannheim; um embate entre a ideologia e a utopia. Para chegar à exegese do problema da realidade, afirma que somente com o conceito geral de ideologia "alcança-se o nível da sociologia do conhecimento, a compreensão de que não há pensamento humano que seja imune às influências ideologizantes de seu contexto social." (BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 30ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 22). 118 A exemplo tem-se a obra 'A história social da infância e da família', do autor Philippe Ariès, que, destarte ser considerado um trabalho profícuo, faz um tendencioso recorte, já que todo o estudo é baseado em obras de arte (expressões artísticas burguesas que retratavam a família juntamente com a criança), hábitos de identidade civil e outros documentos oficiais atrelados à transmissão de bens. 119 LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. História dos jovens: da Antiguidade à era moderna. São Paulo: Editora Schwarcz, 1996. v. 1, p. 21-25.
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A corrente que demonstrou ser a mais sensata foi a seguida por Colin Heywood,120 o qual defende que havia sim uma preocupação com os infantes e que, apesar de a sociedade medieval transparecer certa falta de zelo para com os jovens, isso era atribuído ao contexto em que a sociedade estava inserida; os cuidados direcionados às crianças e aos adolescentes eram limitados e oprimidos pela vasta miséria, pandemias e invasões estrangeiras, frutos da conjectura do severo período.121 Ou seja, não é pelo fato de a infância e a juventude ganharem destaque somente a partir do século XVII que isto quer dizer que não havia anteriormente uma preocupação ou que simplesmente não existia valorativamente para a sociedade adulta.122 Nesse sentido, a dramática afirmação que o sentiment de l’enfance123 somente teve início na Idade Moderna, pontualmente no período correspondente entre o século XVII e XVIII, sem dúvida está relacionada ao contexto da Revolução Industrial que ocorria na mesma época. Assim, devemos interpretar a afirmação do "sentimento da infância" no século XVIII – quer dizer, o nosso sentimento da infância " "como sintoma de uma profunda convulsão das crenças e das estruturas de pensamento, como indício de uma mutação sem precedentes da atitude ocidental com relação à vida e ao corpo".124 Isto porque a explosão demográfica, gerada pelo desenvolvimento econômico, e a mecanização dos sistemas de produção, à qual estava atrelada, causaram significativas mudanças consubstanciadas em políticas estatais desenvolvimentistas de controle social, que intervinham no estado físico e moral das crianças e adolescentes por meio das novas instituições sociais com seus discursos sobre o valor educativo institucionalizado.125 O Estado incorporou um novo papel, onde passou a interferir de forma 120 HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004. 121 "Esse interesse limitado na infância em si pode ser mais bem compreendido no contexto das condições sociais de uma sociedade pré-industrial. Ariès certamente estava correto ao apresentar as crianças medievais inseridas gradualmente no mundo dos adultos a partir de uma idade precoce, ajudando os pais, e trabalhando na condição de servas ou desenvolvendo o aprendizado de um ofício. Isto não significa dizer que as pessoas nesse tipo de sociedade ‘primitiva’ não estivessem cientes das diferentes etapas de desenvolvimento entre os mais novos. Havia um óbvio nivelamento de responsabilidades que as de menos idades podiam assumir: desde trabalhos menores na casa até o pastoreio e eventualmente um aprendizado de ofício ou um trabalho formal no campo." (HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 30). 122 "Toda esta discussão, já que ela própria funciona como um mecanismo de poder-saber acerca da infantilização. Um modo que não se importa se a infância não existiu da Antiguidade até a Idade Média, como sentimento, concepção, valor, prática, se começou no século XIV ou no XVIII, se nasceu ou se morreu, mas, que se importa com o que toda essa abundância discursiva da história da infância produz em termos de mecanismo de poder, vontade de saber e formas de subjetivação, que inflexionam, fortalecem e azeitam a maquinaria da infantilidade." (CORAZZA, Sandra Mara. Infância e educação: era uma vez...: quer que eu conte outra vez? Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 80). 123 HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 23. 124 KUHLMANN JÚNIOR. Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 23. 125 Segundo Ariès, foi no século XIV que começou a se difundir uma ideia de "fases da vida" e fixaram alguns traços essenciais inerentes a cada uma dessas fases. Contudo, saber identificar cada diferente fase da vida é completamente diferente de atribuir valor a ela; a iniciativa de utilização de dados quantitativos e não qualitativos revela que o método
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incisiva no espaço social e com isso aumentou-se a responsabilidade e interesse para com a criança. A ideia central desta nova estrutura de poder era a de que com saúde e cuidados mínimos a massa miserável se transformaria em massa trabalhadora. Assim, o ponto de partida de tais políticas eram os membros mais jovens da sociedade.126 Tendo o Brasil como foco, é necessária uma breve revisão histórica das políticas nacionais de institucionalização de crianças adolescentes no Brasil, com o intuito de compreender a exegese das práticas de atendimento à infância por meio das Instituições oficiais de controle social, já que a história da criança e do adolescente no Brasil, incluindo os conceitos criados sobre estes, se entrelaça intimamente com a intervenção do Estado desde a época Colonial. Em breves palavras, há a não tão surpreendente constatação de que a mobilização Estatal "protecionista" da criança e do adolescente sempre esteve ligada à contenção das massas desvalidas por meio de políticas marginalizantes e estigmatizantes denominadas programas de atendimento. O início se deu com a colonização do Brasil; as crianças indígenas eram consideradas humanos primitivos, pagãos, e por isso carecedoras de intervenção disciplinar, em que o sucesso da escravização dos pais dependia da "domesticação" dos filhos127 e posteriormente o mesmo tratamento se deu em relação aos filhos de escravos africanos. O advento do Brasil República demonstrou ser o ápice da produção de infâncias desiguais, baseado em movimentos higienistas direcionados à infanto-juventude pobre que, neste momento, passou a ser denominada “menor”,128 etiqueta estigmatizante aplicada pelos próprios juristas da época. Essa atitude dos juristas não causou estranhamento algum, já que foi constatado que a Ciência Criminológica da época, mais precisamente no Estado Novo de 1937, era dirigida por um Laboratório de Antropologia Criminal formulado para definir as idades da vida foi somente através da observação da biologia humana, o que demonstra uma visão limitada e positivista, onde os dados quantitativos serviam como mecanismos de manutenção da ordem e de um controle do enriquecimento. "Os traços biológicos de uma população se tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica e é necessário organizar em volta deles um dispositivo que assegure não apenas sua sujeição, mas o aumento constante de sua utilidade." (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012. p. 304-305). 126 "Qual o suporte desta transformação? Grosso modo, pode-se dizer que se trata da preservação, manutenção e conservação da ‘força de trabalho’. Mas, sem dúvida, o problema é mais amplo: ele também diz respeito ao efeito econômico-político da acumulação dos homens. O grande crescimento demográfico do Ocidente europeu durante o século XVIII, a necessidade de coordená-lo e integrá-lo ao desenvolvimento do aparelho de produção, a urgência de controlá-lo por mecanismos de poder mais adequados e mais rigorosos fazem aparecer a ‘população’ − com suas variáveis de números, de repartição espacial ou cronológica, de longevidade e saúde − não somente como problema teórico, mas como objeto de vigilância, análise, intervenções, operações transformadoras, etc." (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012. p. 303). 127 AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 5. 128 "A infância foi nitidamente 'judicializada' neste período. Decorre daí a popularização da categoria jurídica 'menor', sem qualquer tipo de problematização nos debates da época. O termo 'menor' e suas várias classificações (abandonado, delinquente, desviado, vicioso etc.) foram naturalmente incorporados na linguagem, para além do círculo jurídico"; assim, como "percepção dos conceitos ‘criança’ e ‘menor’, podemos dizer que estas se alargaram, se distanciaram”. (NASCIMENTO, Maria Lívia do. Pivetes: A produção de infâncias desiguais. Rio de Janeiro: Editora Intertexto. 2002. p. 68).
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que baseava os estudos da criminalidade juvenil sob a ótica da criminologia positivista, médico-antropológica, das causas da criminalidade infantojuvenil.129 Em suma, a atitude estatal brasileira de privar as crianças carentes de sua liberdade, que na maioria das vezes não haviam cometido qualquer crime, surgiu de uma perversa ideologia apartada da realidade fática, de que toda infância desvalida era entendida como criança potencialmente delinquente e como provável ameaça à sociedade.130 Somente surgiram políticas públicas alternativas à internação com o processo de redemocratização do Brasil, em que as "Crianças e adolescentes ultrapassam a esfera de meros objetos de 'proteção' e passam à condição de sujeitos de direito, beneficiários e destinatários imediatos da doutrina da proteção integral”.131 Nesse momento, foi criado todo um aparato legal edificado na Dignidade da Pessoa Humana, inserido na Constituição de 1988 e na Lei no 8.069/1990. Os pilares dessa nova atitude emanaram do reconhecimento de que as crianças e os adolescentes são titulares de direitos subjetivos com a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e carecedores de proteção integral. Percebe-se que no plano formal houve uma significativa mudança e avanços com a implantação do sistema de Garantias e Direitos Fundamentais. No entanto, o encalço histórico não parou na ilusão de que a normatização resolveria todos os problemas sociais concernentes aos jovens; ao contrário, a positivação da proteção somente demonstrou ser o começo da mudança. O maior enfrentamento para haver o rompimento das amarras do sistema anterior é o de efetivar e dar eficácia aos Direitos e Garantias Fundamentais, e isto se mostra um grande problema.
Direitos e Garantias Fundamentais: Aspectos Lato e Adstrito à Proteção da Criança e do Adolescente Abordar o tema dos Direitos e Garantias Fundamentais outorgados pela Constituição Federal de 1988, com todo seu aparato protecionista implica, necessariamente, em entender os substratos constitucionais atrelados às especificidades do Estado brasileiro e de sua identidade nacional.132 É compreender, em toda a sua complexidade, a trajetória institucional do país atrelada a uma determinada estrutura de poder.133 129 Laboratório de Antropologia Criminal ganhador do prêmio Lombroso de 1933, que baseava os estudos especialmente com o fim de apurar as causas físicas e mentais da criminalidade infantil no Brasil. (FREITAS, Marcos César de. História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1999. p. 77). 130 MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de criança e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 48. 131 AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 3. 132 “Os direitos fundamentais, que constituem, ao lado da democracia, a espinha dorsal do constitucionalismo contemporâneo, não são entidades etéreas, metafísicas, que sobrepairam ao mundo real. Pelo contrário, são realidades históricas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana.” (SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Crise e desafios da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 375). 133
“As teorias dos direitos fundamentais foram formuladas de acordo com a organização do Estado em cada época
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O Estado de Direito, para ser considerado como uma dimensão da Democracia, e para cumprir os fins que constituem seu propósito, carece de enraizar seu sustentáculo nos Direitos Humanos e nos Direitos Fundamentais, sendo estes âmagos necessários e indissociáveis que conferem a validade substancial da Constituição Pátria,134 pois, com o advento da Idade Moderna, passou a ser condicionada não só por vínculos jurídicos formais, mas também substanciais.135 Essa dimensão substancial do constitucionalismo contemporâneo está atrelada à ideia de que, para além da existência de uma igualdade formal, não podemos prescindir da garantia da igualdade material, já que a maior parte da sociedade vem sofrendo os efeitos das desigualdades, cada vez mais acentuadas, relacionadas aos fatores econômicos, de um mundo de exploração impiedosa. Nessa esteira, há uma especial relevância outorgada no ordenamento jurídico brasileiro quanto à Dignidade da Pessoa Humana, tida, inclusive, como fundamento e objetivo da República Federativa do Brasil.136 A Dignidade da Pessoa Humana, manifestamente, pode ser considerada núcleo inexorável137 que viabiliza a plena proteção e respeito aos Diretos Fundamentais como norma jurídica fundamental da Constituição brasileira,138 já que "a configuração do seu conteúdo é fruto da reação do Constituinte, das forças sociais e políticas nele representadas”.139 O Princípio da Dignidade Humana não é apriorístico, pois advém historicamente de uma longa e complexa evolução dos esforços sociais em busca da conquista de sua dignidade contra a opressão promovida por grupos detentores do poder do Estado.140 histórica, em função da relação entre o Estado e os súditos, uma vez que nessa relação se estabelecem os direitos, as garantias e as liberdades dos cidadãos.” Cf. Sandoval Alves da Silva em sua obra Direitos sociais: leis orçamentárias como instrumento de implementação (p. 21-22). 134 “É necessário que se entenda a teoria da Constituição enquanto uma teoria que resguarde as especificidades históricofatuais de cada Estado nacional. Deste modo, a teoria da Constituição deve ter um núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias próprias do Estado Democrático (e social) de Direito, assentado no binômio democracia e direitos fundamentais.” (MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004. p. 122). 135 “Em um Estado de Direito caracterizado como democrático, o direito implica um instrumento de defesa e garantias fundamentais, externo a ele e por ele garantidos.” (LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 88). 136 “O Brasil, linearmente com o enaltecimento e reconstrução dos Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, instituiu em seu texto constitucional princípios abertos, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana, com o intuito de harmonizar a ética com o direito.” (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 85). 137 “Seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno a dignidade da pessoa humana é o princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo.” (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 87). 138 “A dignidade da pessoa humana continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, do que dá conta a sua já referida qualificação como valor fundamental da ordem jurídica, para expressivo número de ordens constitucionais, pelo menos para as que nutrem a pretensão de constituírem um Estado democrático de Direito.” SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 38 139
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 76.
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Resposta mundial às atrocidades cometidas por países nazistas que “legislaram e agiram contra a humanidade,
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No que tange à realidade sui generis dos Direitos e Garantias Fundamentais, percebe-se que o reconhecimento jurídico-social de certos valores em defesa do homem ocorreu lenta e gradativamente por meio de embates no campo das ideias no intuito de conter poderes arbitrários e opressivos; sendo assim, "o aparecimento de sucessivas dimensões de direitos fundamentais foi determinado justamente pela mutação histórica destes direitos".141 A transição histórica de cada uma dessas “dimensões” de direitos fundamentais não significa que uns substituem os outros, como ocorre em um processo de "evolução", mas sim que surgem novos direitos ou a construção social de novas perspectivas sobre direitos já existentes.142 Assim, temos cronologicamente: a consolidação dos direitos de primeira geração, chamados de “direitos liberais”, atrelada ao contexto do Estado Liberal, que tutela os direitos relacionados à liberdade, à manutenção da vida, à propriedade privada e à igualdade material tutelada; em seguida, os direitos de segunda geração, em defesa da igualdade fática,143 cuja premissa é a de assegurar aos seus titulares prestações positivas a fim de garantir-lhes qualidade de vida;144 por fim, a terceira fase é marcada pelo enaltecimento dos valores de fraternidade, ou seja, direitos de titularidade difusa ou coletiva. Quaisquer dimensões a que pertençam os direitos fundamentais, estes gozam de uma normatividade especial com reforçada proteção da ordem jurídica. "Esta especial proteção dos direitos fundamentais é, sem dúvida, qualidade que os distingue das demais normas constitucionais",145 sendo que o reconhecimento de um regime jurídico privilegiado é um condicionante para que um direito possa ser considerado verdadeipraticaram políticas racistas, xenofóbicas e imperialistas e levaram 60 milhões de seres humanos a morrerem durante a guerra que deflagraram”. (TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. São Paulo: Peirópolis, 2002. p. 183). 141 PEREZ LUÑO, A. E. apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 53. 142 “Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, [...] conduz ao entendimento equivocado de que os direitos fundamentais se substituem ao longo do tempo, não se encontrando em permanente processo de expansão, cumulação e fortalecimento.” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 54, grifo meu). 143 “O modo de atuar do Estado Liberal demonstrou o direcionamento da proteção somente na órbita formal atuando de forma alheia e indiferente à realidade fática da sociedade, tratando igualmente seres humanos com realidades sociais distintas, gerando tensões entre proletariado e burguesia.” (MANNHEIM, Karl. Liberdade, poder e planificação democrática. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972. p. 151). 144 “No segundo estágio, a aplicação dos princípios de justiça ocorre em uma convenção constituinte, e os princípios adotados na posição original devem ser concretizados em uma constituição, escrita ou não escrita [...] na qual devem ser estabelecidas políticas públicas sociais e econômicas que visem a maximizar as expectativas de longo prazo dos membros menos favorecidos da sociedade.” (MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 129, grifos meus). 145 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 401.
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ramente fundamental.146 De sorte que os Direitos Fundamentais Sociais constituem valores essenciais para a sustentação de um Estado Democrático de Direito147 e, sem a garantia e proteção da imutabilidade conferida pela "Cláusula Pétrea", havendo a abolição, acabaria por destruir a identidade constitucional do Estado brasileiro. Com relação ao arcabouço normativo-protecionista inerente à criança e ao adolescente, a Constituição Federal de 1988 resguarda uma exponencial proteção aos seus Direitos Fundamentais individuais e precipuamente os direitos sociais, pois conferem a estes o status ius singulare.148 A quebra de paradigma ocorrida e as mudanças estabelecidas no âmbito científico-jurídico de estudos do direito da criança e do adolescente advieram da emergência de se consolidar os valores democráticos, juntamente com a vertente protecionista dos Direitos Humanos, "em face das consequências nefastas da política de institucionalização generalizada de crianças e adolescentes oriundos dos segmentos menos favorecidos da sociedade".149 Uma ampla mobilização social brasileira articulou juntamente com os agentes jurídicos uma forte "pressão aglutinada em torno da defesa dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes [...] que desaguou numa frente Parlamentar suprapartidária em prol desses interesses, composta por membros de todas as agremiações políticas representadas na Assembleia Constituinte".150 Tal processo culminou no abandono da "Doutrina da Situação Irregular, de caráter filantrópico e assistencial, direcionada aos menores que integravam o binômio abandono-delinquência", tornando-os verdadeiros titulares de direitos subjetivos. Dessa forma, elevaram o reconhecimento jurídico dos direitos da criança e do adolescente a um novo patamar, adquirindo sem a menor dubiedade a positivação 146 “Com efeito, verificou-se que um dos esteios da fundamentalidade (formal e material), ao menos em nossa constituição, é justamente a circunstância de terem os direitos fundamentais sidos expressamente erigidos à condição de ‘cláusula pétrea’, integrando o rol do artigo 60, § 4º, inciso IV, da nossa Carta Magna, constituindo, portanto, limites materiais à reforma da Constituição.” (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais com “cláusulas pétreas”. Revista Interesse Público, Porto Alegre, ano 5, nº 17, p. 56-74, jan./fev. 2003). 147 “Não resta qualquer dúvida de que o princípio do Estado Social, bem como os direitos fundamentais sociais, integra os elementos essenciais, isto é, a identidade de nossa Constituição, razão pela qual já se sustentou que os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) poderiam ser considerados – mesmo não estando expressamente previstos no rol das “Cláusulas Pétreas” – autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional” . SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais com “cláusulas pétreas” . Revista Interesse Público, Porto Alegre, ano 5, nº 17, p. 56-74, jan./fev. 2003. (grifos meus.) 148 “Se a história constitucional brasileira pode vangloriar-se da presença permanente da Declaração de Direitos e Garantias Individuais do Cidadão, a constituição de 88, além de enumerá-los, exaustivamente, no art. 5º, introduz na Doutrina Constitucional a declaração especial dos Direitos Fundamentais da Infanto-Adolescência, proclamando a ‘Doutrina Jurídica da Proteção Integral’ e consagrando os direitos específicos que devem ser universalmente reconhecidos.” (PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 19, grifos meus). 149 MACHADO, Marta de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 26. 150 MACHADO, Marta de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 25.
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como direitos fundamentais legítimos,151 pois que "a Constituição de 1988 criou um sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, [...] inspirado na chamada doutrina da proteção Integral."152 Nela, considera-se que os infanto-adolescentes estão em posição de maior vulnerabilidade, ainda não desenvolveram por completo suas potencialidades humanas e personalidade em plenitude. Essa condição peculiar atribui ao Estado a prima responsabilidade de prover e efetivar toda e qualquer necessidade para a real concretização de um processo de formação digno, sobre todos os aspectos, da criança e do adolescente.153 Não obstante a proteção à infância em sentido lato, é precípua a defesa dos "direitos sociais, por terem em sua generalidade a obrigação positiva do Estado, na acepção prestacional da norma, amparado pelo artigo 6º da Constituição Federal".154 Sendo assim, cabe ao Estado a incipiente responsabilidade de tomar providências positiva, a fim de prover e efetivar com absoluta prioridade políticas públicas direcionadas a estes. Os Direitos Fundamentais Sociais estão intimamente atrelados ao conceito de Cidadania e Dignidade da Pessoa humana, ambos tidos como fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, elencados no artigo 1º da Constituição Federal.155 Entretanto, há um nítido problema envolvendo a eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais conquanto norma positivada, já que "a dogmática jurídica, como esse arcabouço teórico construído desde o passado, que tem a pretensão de alcançar soluções para todos os conflitos a partir de valores institucionalizados",156 depende substancialmente de concretização legislativa,157 pois foi deixada ao legislador a prerrogativa de prover, 151 “Esse sistema especial de proteção vem expressamente referido no parágrafo 3º do artigo 227 – embora não se reduza às garantias ali posicionadas. De fato, ele permeia todo o artigo 227 e o artigo 228, e manifesta-se, ainda que subsidiariamente, também no disposto nos artigos 226, caput e §§ 3º, 4º, 5º e 8º e 229, primeira parte, todos da Constituição Federal.” (MACHADO, Marta de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 105, grifo meu). 152 MACHADO, Marta de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 108. 153 “A tutela às pessoas em desenvolvimento desdobra-se em outras prescrições constitucionais específicas, notadamente, no art. 6º, que positiva a proteção da infância como um direito social, e o art. 227, que atribui à infância e à juventude um momento especial na vida do ser humano e, por isso, assegura a criança e adolescentes o status de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, além de lhes conferir a titularidade de direitos fundamentais, determinar que o Estado os promova por meio de políticas públicas.” (ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 73, grifos meus). 154 ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 73. 155 “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...] a cidadania; a dignidade da pessoa humana; [...]” Artigo 1º, incisos II e III. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2013. 156 MOREIRA, Nelson Camatta. A função simbólica dos direitos fundamentais. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, nº 2, p. 163-191, jan./dez. 2007. 157 “No sentido de garantirem a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais, [...] vinculada às tarefas de melhoria, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como a criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que deles necessitem.” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed.
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por meio de políticas públicas, um patamar mínimo inerente a uma vida digna à parcela da sociedade com maior vulnerabilidade. Não obstante, o Poder Político atua de forma omissa e inidônea, quando, de modo ardiloso, cria obstáculos por meio de manipulações financeiras,158 com o escopo de eximir-se da realização de seu dever Constitucional,159 já que a eficácia dos Direitos Fundamentais encontra-se na estrita dependência dos órgãos políticos quanto à definição das linhas gerais das políticas na esfera socioeconômica.160 Não há dúvida que um objetivo normativo, positivado na Constituição, sem que haja a intenção de fazê-lo, não passa de uma ideologia promulgada.161 Assim sendo, a omissão do Poder Político ocasiona o surgimento do "Constitucionalismo Simbólico",162 consubstanciado no descompasso normativo entre os discursos conotativo e denotativo. Essa atuação em desacordo com a Constituição,163 em verdade, somente Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 284-186). 158 “Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais [...] depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado [...]. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.” (ADPF 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello, informativo/STF nº 345/2004). (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 278 Alagoas. Brasília, 17 de março de 2010. p. 180-181. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610255>. Acesso em: 9 abr. 2013. grifos do autor.) 159 “Costuma ser encarada como autêntico problema de competência constitucional: ao legislador compete, dentro das reservas orçamentais, dos planos econômicos e financeiros, das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, econômicos e culturais.” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 289). 160
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 289.
“Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 278 Alagoas. Brasília, 17 de março de 2010. p. 192. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610255>. Acesso em: 9 abr. 2013. grifos do autor). 161
162 “A concretização desconstitucionalizante nos âmbitos das ‘Constituições nominalistas’ dos países periféricos, destacando-se o Brasil, atua no sentido da manutenção do status quo social. Serve à permanência das estruturas reais de poder, em desacordo como o modelo textual de Constituição, cuja efetividade relevante importaria profundas sócias. Em contraposição aos indícios de mudança expressos no texto constitucional, impõem-se relações reais de poder com pretensão de eternizarem-se, embora desestruturadas e desestruturantes do Estado como instituição. Indaga-se, então, qual o sentido da elaboração de textos constitucionais em tais circunstâncias.” (NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática: mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 33, nº 132, p. 321-330, out./dez. 1996, grifos meus). 163 “Embora a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tenha diretrizes advindas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a realidade brasileira parece estar distante e, por vezes, indiferente à efetividade dos Direitos Fundamentais contemplados. Tal premissa torna-se verdadeira quando se presencia diariamente o descaso dos governantes brasileiros com relação aos direitos sociais, citando como exemplo o descaso com a saúde pública, a educação, a segurança etc.” (COSTA, Marli M. M. da. A efetivação dos direitos fundamentais dos excluídos sociais como pressuposto de cidadania. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 12, nº 1, p. 107-118, jan./jun. de 2007).
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representa uma resposta "ideológica" que atua na manutenção do status quo164 social, ou seja, manutenção das relações de poder já preestabelecidas. Em vista disso, há o processo de crise de legitimidade e do próprio Estado Democrático de Direito,165 pois, destarte o Brasil possuir uma Constituição fundada na Dignidade da Pessoa Humana, não conseguiu se desvincular de um Poder Político apoiado na exclusão social, no privilégio de classes e na repressão criminal da pobreza, onde "por meio do controle social as classes dominantes estabelecem a sua hegemonia e garantem o consenso, buscando legitimar a ideologia dominante".166 A falta de atuação do Estado Providência, por meio de um sistema efetivo do Bem-estar social, acentua o caráter seletivo da política governista e revela o desvalor institucional, resultando o cenário perfeito para a violência estrutural.167 A omissão do Estado, no que concerne às necessidades reais das classes desfavorecidas do sistema social e econômico, desperta a atuação do chamado Estado Penal168 através do controle social institucionalizado como tentativa de reafirmar sua Legitimidade pela atuação policial e penitenciária. Veladamente, o Estado substituiu as ações positivas por uma verdadeira política punitiva da pobreza, utilizando do domínio restrito da ordem pública como instrumento de repressão.
164 “Em formações sociais marcadas pela desigualdade e por um processo permanente de exclusão social, o controle dos grupos subalternos, especialmente os contingentes populacionais marginalizados do mercado e do consumo, é fundamental para a manutenção do status quo.” (KROHLING, Aloísio; BOLDT, Raphael. Libertando-se da opressão punitiva: contribuições da filosofia da libertação para a concretização de uma cultura dos direitos humanos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória. nº 7, p. 217-233, jan./jun. 2010). 165 “As situações configuradoras de omissão inconstitucional – ainda que se cuide de omissão parcial derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política – refletem o comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se como uma das causas geradoras dos processos informais de mudança da Constituição.” (RTJ 185/794-796, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno apud BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 278 Alagoas. Brasília, 17 de março de 2010. p. 192. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610255>. Acesso em: 9 abr. 2013. grifos do autor.) 166 KROHLING, Aloísio; BOLDT, Raphael. Libertando-se da opressão punitiva: contribuições da filosofia da libertação para a concretização de uma cultura dos direitos humanos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, nº 7, p. 217-233, jan./jun. 2010. 167 “A violência estrutural são condições de precariedade em que a família vive hoje: condições insalubres, moradias precárias, desemprego e falta de aplicação de direitos sociais fundamentais, problema enfrentado pela população brasileira nos dias de hoje. A violência estrutural precisa ser compreendida no âmbito do contexto social e cultural para que se possam elucidar os mecanismos pelos quais o Estado, em seus diferentes níveis e poderes, restringe o acesso da grande maioria da população aos direitos básicos que lhe proporcionariam uma vida digna.” (COSTA, Marli M. M. da; PORTO, Rosane T. C. Exclusão social, violência estrutural e delinquência juvenil: uma análise a partir de Michel Foucault. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, nº 4, p. 83-103, jul./dez. 2008. p. 90). 168 “Dúvida não resta que o Direito Penal está sendo instrumentalizado como fim único de efetividade de repressão de necessidades reais, compreendida como as potencialidades de existência e a qualidade de vida das pessoas, dos grupos e dos povos que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento da capacidade de produção material e cultural.” (TORRES, Aimbere Francisco. Sistema penal e exclusão social: questões de classe socioeconômica. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 41, nº 48. p. 195-206, jul./dez. 2006. p. 201).
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Omissão do Estado. Delinquência Juvenil. Deslocamento de Responsabilidade. Proposta de Redução da Idade de Imputabilidade Penal O Estado brasileiro difunde, por meio de seu discurso ideológico, a Doutrina da Defesa Social contemporânea. A ideia é que, antes de tudo, o Estado está a cargo da tarefa de proteger a sociedade contra a delinquência, por meio de políticas sociais de proteção e prevenção da criminalidade por meio de uma política criminal antidogmática-legislativo racional, a qual teria o poder de antecipar, restringir, controlar e eliminar as causas e efeitos de uma ameaça singular. A ideologia da defesa social169 tenta disseminar a ideia de que a pretensão do Estado Penal é a de "prevenir do que se contentar em punir, e proteger em vez de vingar, ela instaura uma atitude que traduz uma determinação de subtrair à justiça um elemento contra quem não se quer vingança".170 O que ocorre é o contrário: segundo essa ideologia, o intuito maior seria a ressocialização por meio de políticas humanitárias. Essa é uma ideologia extremamente sedutora enquanto é capaz de dissimular para a sociedade que o sistema repressivo atuante é válido e necessário no exato formato em que se apresenta. Traz uma "aceitação acrítica, o seu uso é acompanhado de uma irrefletida sensação de militar do lado justo, contra mitos e concepções mistificastes e superados, a favor de uma ciência e de uma práxis penal racional"171 Não obstante o Discurso da Doutrina da Defesa Social possuir exegese no conceito de Direitos Humanos e prevenção do Crime, na maior parte dos países ocidentais houve sim uma exasperação do poder punitivo do Estado com base na segregação.172 Pode-se assim dizer que houve um "retorno pseudocientífico das velhas teorias utili-
169 “A defesa social supõe inicialmente uma concepção geral do sistema anticriminal que não visa unicamente à expiação de uma falta por meio do castigo, mas busca proteger a sociedade contra as ações criminais, conduz assim, à promoção de uma Política Criminal que atribui uma importância particular à prevenção individual e que se esforça para tornar operante um sistema de ‘prevenção do crime e tratamento dos delinquentes’; essa política criminal racional tende consequentemente a uma ação sistemática de ressocialização.” (ANCEL, Marc. A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 17-18). 170 ANCEL, Marc. A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 6. 171 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavan, 2002. p. 40. 172 “A partir do final do século XX, Günther Jakobs construiu um discurso legitimador das tendências de ‘endurecimento’ do Direito Penal e Processual que estavam verificando em diversos países, em áreas específicas. Esse discurso, com o passar do tempo, se robusteceu e conquistou adeptos, reintroduzindo nas discussões jurídico-penais o conceito de periculosidade, a questão da defesa social e a dos seus limites. Assim, Jakobs reavivou o debate sobre a doutrina da defesa social, propondo bases de um controvertido ‘Direito Penal do Inimigo’, as quais seriam muito diferentes das do ‘Direito Penal do Cidadão’.” (RIBEIRO, Bruno de Morais. Defesa social e direito penal do inimigo: visão crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 55-56).
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tárias",173 onde tais medidas têm por característica principal a reutilização de meios arcaicos e singularmente violentos.174 Em verdade, o fulcro de sustentação da ideologia da defesa social contemporânea seria uma reedição do movimento positivista apoiado na prevenção especial negativa,175 a qual preconiza "que o sujeito que não se adapta à sociedade deve ser eliminado, [afirmação] fundada na pré-definição dos indivíduos e grupos perigosos (eleição do inimigo)".176 Este posicionamento estrito de proteção da Sociedade e consequentemente do próprio Estado justificaria condenações mais severas e massivas, a estigmatização penal e a multiplicação de propostas legislativas para a criação de tipos penais incriminadores. Outrossim, conforme o presente estudo, a ideologia da Defesa Social justificaria inclusive o endurecimento da legislação relacionada às crianças e adolescentes, visando ao encarceramento precoce e aplicação da legislação criminal adulta a estes. Ou seja, a Doutrina da Defesa Social, como se apresenta na versão contemporânea/humanista, nunca foi aplicada – em verdade demonstra ser um prolongamento do movimento positivista. Talvez no plano formal as normas arraigadas aos princípios protetores promulgados na Constituição Federal de 1988 poderiam tornar o direito penal efetivamente mais humanizado e condigno a um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Contudo, ao que parece, no plano prático, há fortes indícios de que nem saímos do Paradigma Etiológico, baseado no positivismo Criminológico,177 sistematizado em uma criminalidade pré-definida pelo Poder Político, por meio da observação do indivíduo, da pessoa do "criminoso", o qual é pré-selecionado pelo sistema a partir das normas positivadas e por estatísticas oficiais e não oficiais. 173 ANCEL, Marc. A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 4. 174 Sistema punitivo baseado no suplício dos corpos, o qual era praticado em épocas anteriores. Em verdade, suas bases permaneceram as mesmas – só se revestem de uma nova roupagem. 175 Tem como premissa básica que “do mesmo modo que a natureza elimina a espécie que não se adapta ao meio, também o Estado deve eliminar o delinquente que não se adapta à sociedade e às exigências da convivência”. (GAROFALO, Raffaele apud GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Criminologia. São Paulo: RT, 2000. p. 187). 176 ZACKSESKI, Cristina; MAIA, Plínio. Novos e velhos inimigos no Direito Penal da globalização. Portal Criminologia Crítica. p. 1. Disponível em: <http://www.criminologiacritica.com.br/arquivos/1312230828.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2013. 177 “Não se trata de ‘explicar’ causalmente a criminalidade, mas de instrumentalizar e justificar, legitimando-a, a seleção da criminalidade e a estigmatização dos criminosos operadas pelo sistema penal. E não se trata igualmente de ‘combatê-la’, porque a função do sistema é, precisamente, a de construí-la ou gerí-la seletivamente. Com seu proceder, a Criminologia positivista contribui para mistificar os mecanismos de seleção e estigmatização, ao mesmo tempo que lhes confere uma justificação ontológica de base científica (uma base de marginalização científica aos estratos inferiores). Ao definir-se, pois, como ciência causal-explicativa, a Criminologia positivista oculta o que na verdade sempre foi: uma ‘ciência do controle social’ que nasce como um ramo específico da ciência positivista para instrumentalizá-lo e legitimá-lo.” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista Sequência; Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catariana, v. 16, nº 30, p. 24-36. 1995. Disponível em: <https:// periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15819>. Acesso em: 30 jul. 2013).
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Espelho dessa seleção institucional178 é a hipocrisia que ocorre entre a criação das propostas de emenda constitucional para redução da idade de imputabilidade penal e a realidade criminosa dos parlamentares autores dos mesmos projetos.179,180 Essa situação reflete o poder do Estado em influir sobre os processos de criação e aprovação de normas criminalizadoras, já que existem muitas pessoas "que fizeram o mesmo que o escolhido e não foram selecionadas; outras que não o fizeram e foram escolhidas pela agência; o poder seletivo e punitivo continuará a ser exercido para justificar a necessidade de arbitrariedade".181 Por conseguinte, mais que uma trajetória de ineficácia, o descumprimento da Constituição causa profundas desigualdades sociais e revela as reais funções latentes do Direito Penal;"[...] uma demanda relegitimadora de sua intervenção proveniente da ascensão do chamado ‘Movimento de Lei e Ordem’, que responde ao problema da criminalidade [...] com a demanda pela radicalização repressiva".182 Dentro do contexto social Brasileiro, de tempos em tempos as instituições governamentais e as instâncias de controle elegem determinada minoria para servir de inimigo, a fim de demonstrar aos seus coordenados que todos os problemas de segurança existentes são os que envolvem a criminalidade daquele determinado grupo escolhido. Assim, espalha a ideologia de "que apertando o cerco" todos os problemas estariam resolvidos. Esse processo de definição de "quem é o inimigo público" é posto de modo arbitrário e atinge profundamente o senso comum, já que este interage e apreende as ideologias a que está submetido. Sendo assim, a reação social contra certo tipo de "criminoso" se revela consequência de uma pré-valoração.183
178 “ ‘O’ delito não existe. A parte especial de qualquer código penal elenca uma quantidade de ações conflitivas totalmente heterogêneas quanto ao seu significado social. Se observarmos como opera o sistema penal nessas hipóteses conflitivas, veremos que na imensa maioria dos casos este não intervém (furtos, subornos, estupros etc., que somente em número ridiculamente ínfimo chegam à agência judicial), em outros intervém somente em alguns casos e contra determinadas pessoas (homicídios, ou seja, nos casos em que historicamente o maior número foi cometido pelo próprio Estado e que quase nunca chegam ao conhecimento das agências judiciais), em outros tantos casos nunca intervém, apesar da grande frequência com que ocorre [...], onticamente, falando só existem conflitos arbitrariamente selecionados.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavam, 2001. p. 246). 179 Estudo realizado indicou que todos os propositores, ou seja, 100% dos parlamentares autores das PECs estão ou já estiveram envolvidos em crimes graves, executados por meio de práticas delitivas reiteradas e contínuas. 180 Pode-se perceber que quase não existe intervenção institucional nos crimes praticados por pessoas ocupantes de posições sociais de prestígio e poder. São chamados originalmente de White-collar crime, ou ‘crimes do colarinho branco’. Isto ocorre porque o sistema penal escolhe arbitrariamente quem será selecionado pelo Poder Punitivo. (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavan, 2002. p. 65). 181 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavam, 2001. p. 251. 182 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 295. 183 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavan, 2002. p. 108.
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No intuito de retornar à questão da maioridade penal brasileira e às Propostas de Emenda Constitucional que pretendem reduzi-la, há a nítida eleição da infanto-adolescência como o novo inimigo, transparecido no processo de demonização deste grupo e consequente justificativa por parte do Estado para as radicais medidas de tolerância zero.184 Por derradeiro, não podem ser consideradas legítimas as Propostas de Emenda Constitucional, as quais buscam aumentar a penalização dos jovens, diminuindo-se a idade para imputabilidade penal, bem como aumentando os suplícios das penas, tornando-as mais longas, pois o grupo que se pretende atingir – o das crianças e dos adolescentes – não passa de eleição feita pelo Estado do novo inimigo, que caiu na malha seletiva do poder punitivo por ser um dos grupos mais vulneráveis de nossa sociedade.
Considerações Finais Mediante todos os fatos expostos, torna-se evidente que a omissão prestacional do Estado frente às Garantias e Direitos Fundamentais, ocasionada pela inércia dos Poderes Políticos, utilizando-se de uma Constituição Simbólica que ignora a tutela dos bens jurídicos universais, tem por nefasta finalidade a manutenção da elite capitalista no poder. Isto porque, com/o já foi anteriormente suscitado, "em formações sociais marcadas pela desigualdade e por um processo permanente de exclusão social, o controle dos grupos subalternos, especialmente os contingentes populacionais marginalizados do mercado e do consumo, é fundamental para a manutenção do status quo".185 De igual sorte, não restam dúvidas de que o Direito Penal está sendo instrumentalizado como fim único de repressão às pessoas carentes de necessidades materiais existenciais. Dessa forma, as reformas propostas pela elite para a legislação penal e processual penal, como a redução da idade de imputabilidade penal, são, na realidade, "um estratagema que terá como resultado a condenação do negro, pobre, do sem-terra, do sem-teto, de homossexuais, enfim, dos seres humanos excluídos sob a égide do devido processo legal".186
184 VICENTE, Laila Maria Domith. A redução da maioridade penal no Brasil entre outras histórias. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, Faculdade de Direito de Vitória, nº 11, p. 325-358, jan./jun. 2012. 185 KROHLING, Aloísio; BOLDT, Raphael. Libertando-se da opressão punitiva: contribuições da filosofia da libertação para a concretização de uma cultura dos direitos humanos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória. nº 7, p. 217-233, jan./jun. 2010. p. 220. 186 TORRES, Aimbere Francisco. Sistema Penal e exclusão social: questões de classe socioeconômica. Revista do Instituto de Pesquisa e Estudo, Bauru, v. 41, nº 48, p. 195-206, jul./dez. 2006.
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O E NCAR CER AMENTO DA LOUC URA : A M EDIDA DE SEG UR A NÇ A C OM O ISO L AMENTO DOS INDES EJ Á V EIS
TH AYNÁ R EG INA NAVA R ROS COSME
RESUMO O presente trabalho tem como principal objetivo a análise do instituto da medida de segurança, tendo em vista que essa sanção penal vem atuando como forma de isolamento dos indesejáveis pela sociedade e, assim, se afastando cada vez mais de seu pressuposto, qual seja, sua função terapêutica. Sendo assim, por meio de uma abordagem realizada no tocante ao funcionamento e às condições dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (estabelecimentos onde há o cumprimento da medida de segurança detentiva) por meio de pesquisas e referências doutrinárias sobre o tema. Pode-se, concluir que, em suma, a medida de segurança só alcança um fim no sistema jurídico atual, sendo este, o da exclusão social. Ao final, foram expostas possíveis soluções frente à realidade apresentada. Palavras-chaves: Medida de Segurança; Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico; Desinternação Progressiva. 113
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Introdução Na sociedade atual, muitos são os temas debatidos pela mídia que causam impacto e alvoroço. Por outro lado, existem assuntos tão relevantes quanto, que não possuem a mesma importância e visibilidade, e que são deixados em segundo plano pelo Estado e pelo corpo social. É em função dessa falta de visibilidade que foi escolhido este tema. A seguir, destrincharemos a medida de segurança e sua principal consequência: o isolamento dos "indesejáveis". O ordenamento jurídico brasileiro possui lacunas, isto é, a lei é omissa no que concerne à medida de segurança, não dando a ela a atenção devida e, consequentemente, não pontuando seus elementos mais importantes. Desse modo, é necessária a notoriedade para com os portadores de doença mental, para que assim possa haver mudanças no tocante à medida de segurança, necessárias para a eficácia desse instituto. O grande pilar da medida de segurança é (ou deveria ser) o tratamento diferenciado que os pacientes recebem, ou seja, um tratamento visando à ressocialização. Todavia, a realidade é outra, completamente distinta, uma vez que o tratamento recebido por essas pessoas nos Hospitais de Custódia e Tratamento é realizado, muitas vezes, em nível carcerário. O presente trabalho pretende, portanto, demonstrar a ineficácia dessa sanção penal, assim como os danos por ela causados aos portadores de transtornos mentais que cometem um ilícito penal, e, ao final, discutir possíveis alternativas para a reinserção social do portador de transtorno mental que comete um ilícito penal, como a desinternação progressiva, que visa ao convívio gradativo do internado com a sociedade, para que não haja a perda dos vínculos sociais e familiares.
Desenvolvimento A sanção penal é aplicada toda vez que a norma penal é transgredida com a prática delituosa, legitimando, assim, o Estado, detentor genuíno do jus puniendi, a imposição de pena ou medida de segurança contra o violador da lei.187 Após a reforma penal de 1984, o sistema do duplo binário foi afastado, sendo substituído pelo sistema vicariante, o qual só admite a imposição de uma espécie de sanção penal ao agente, isto é, pena ou medida de segurança.188
187
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume III. Campinas: Millenium, 2000, p. 131.
188
ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral [V.1]. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 423.
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O sistema vicariante, também conhecido como unitário, atua da seguinte forma: aos imputáveis, pena; aos inimputáveis, medida de segurança – vedando, então, a cumulação de sanções derivada do sistema do duplo binário.189 Caso uma pessoa semi-imputável, nos termos do artigo 26, parágrafo único do Código Penal, cometa um fato típico e antijurídico, reina também o sistema vicariante, isto é, deverá ser aplicada pena reduzida ou medida de segurança, conforme artigo 98 do supracitado Código.190 Sendo assim, ao magistrado é permitida uma providência única, devendo, assim, apreciar as circunstâncias concretas de cada caso, bem como a personalidade do condenado, para que então decida entre as duas espécies de sanções penais, pena ou medida de segurança.191 A finalidade da sanção penal é embasada na retribuição e na prevenção.192 A retribuição reside no fato de que o Estado elege bens essenciais que, se violados, justificam e legitimam a punição, como ocorre, por exemplo, com a pena, uma sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor da infração, como retribuição de seu ato ilícito.193 Por oportuno, vale salientar que a medida de segurança não possui a finalidade retributiva, pautando-se exclusivamente na prevenção, em especial na prevenção especial positiva, isto é, possui o intuito de ressocialização e correção daqueles que infringiram a lei penal, no sentido de evitar que o autor da infração, que demonstrou periculosidade, volte a delinquir e, assim, habilite-se para a vida em sociedade.194 O artigo 96, incisos I e II do Código Penal Brasileiro, dispõe sobre as duas espécies existentes de medida de segurança, quais sejam: internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado e a sujeição a tratamento ambulatorial.195 Em ambos os casos, é necessário que o agente tenha praticado um injusto penal, vale dizer, um fato típico e antijurídico para que possam ser imputadas.196 E o juiz que 189
CAPEZ, Fernando. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Damásio de Jesus, 10ª ed., 2003, p. 291.
190
JESUS, Damásio de. Direito Penal – parte geral. São Paulo: Saraiva. 32ª ed., 2012, p. 548.
191
RIBEIRO, Bruno de morais. Medidas de segurança. São Paulo: Livraria do advogado, 2000, p. 26.
FERRARI, Eduardo Reale. Medida de Segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 47. 192
193 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 49. 194 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 74-75. 195 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro [V.1] Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 7ª ed., 2007, p. 732. 196 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral e parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 501.
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absolver o agente, aplicando-lhe medida de segurança, deverá na sua decisão optar pelo tratamento mais adequado ao caso – internação ou tratamento ambulatorial.197 Essas espécies de medida de segurança, internação em hospital de custódia e tratamento e sujeição a tratamento ambulatorial, também são conhecidas como detentiva e restritiva.198 A medida de segurança restritiva, para o doutrinador Júlio Fabbrini Mirabete, foi a maior inovação trazida pelo capítulo das medidas de segurança no Código Penal Brasileiro,199 uma vez que busca a prevenção de novas práticas delitivas sem radicalizar-se na internação. Desse modo, pode-se inferir que a medida restritiva é mais branda e por isso utilizada nos casos de menor gravidade, em que o agente revela uma periculosidade atenuada.200 Uma vez que essa espécie de medida de segurança é destinada aos delinquentes com menor periculosidade e que praticaram ilícitos não tão graves, pode-se dizer que há um paralelismo com a medida restritiva de direitos.201 Nesse sentido, Eduardo Reale Ferrari afirma que: [...] a medida restritiva de segurança aplica-se quando presente um menor grau de periculosidade criminal, visando [a] subtrair do delinquente perigoso a influência de circunstâncias e ocasiões que fomentem o crime, sem radicalizar-se no internamento. Opta-se pela liberdade do indivíduo, empregando regras e limitações não detentivas, com fito de alcançar a cura e a reintegração social.202
A Exposição de Motivos do Código estabelece que a pessoa submetida a tratamento ambulatorial deverá comparecer ao hospital nos dias que lhe forem determinados pelo médico, para que seja aplicada a modalidade terapêutica prescrita.203
197
GRECO, Rogério. Curso de direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 14ª ed., 2012, p. 666.
198
CAPEZ, Fernando. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Damásio de Jesus, 10ª ed., 2003, p. 293.
199
ANDRADE, Haroldo da Costa. Das medidas de segurança. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 18.
200
ANDRADE, Haroldo da Costa. Das medidas de segurança. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 18.
FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e o direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 86. 201
202 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e o direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 85. 203 PRADO. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2000, p, 605.
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A medida de segurança detentiva, como mencionado anteriormente, consiste na internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico.204 Trata-se de um hospital-presídio, destinado a tratamento e, paralelamente, à custódia do internado.205 Conforme entendimento do doutrinador Guilherme de Souza Nucci, "A internação equivale ao regime fechado da pena privativa de liberdade, inserindo-se o sentenciado no hospital de Custódia e Tratamento, ou estabelecimento adequado.206 Para que a medida de segurança detentiva não ultrapasse o período de privação de liberdade imposta aos presos-imputáveis, faz-se necessário que seus meios de execução legitimem os fins para sua aplicação, para que não se transforme em absurdos depósitos de delinquentes-doentes.207 A internação no estabelecimento supracitado é obrigatória a todos os inimputáveis absolvidos com base no artigo 26 do Código Penal, desde que tenham praticado conduta criminosa apenada com reclusão.208 De acordo com entendimento do Superior Tribunal de Justiça, há exceção quanto à obrigatoriedade de internação para réu apenado com reclusão, qual seja: caso não haja vagas em estabelecimento adequado, o réu deverá se beneficiar do tratamento ambulatorial, estando vedado seu encaminhamento a uma penitenciária, sob pena de constrangimento ilegal.209 Todavia, a internação é facultativa para os inimputáveis apenados com detenção, ou para os semi-imputáveis, que foram tratados com maior benignidade pelo Código reformado, conforme demonstra o Código Penal em seus artigos 97, caput, segunda parte, e 98.210 Essa espécie de medida de segurança possui caráter mais rigoroso, já que priva o interno de sua liberdade, devendo o sujeito ser submetido a tratamento, conforme preceitua o artigo 99 do Código Penal Brasileiro.211 Vale salientar que a medida de segurança detentiva constitui um instrumento fragmentário e residual por parte do Estado, aplicável apenas quando não eficaz outra modalidade de tratamento. Consiste em uma última providência a ser aplicada, internando-se
204 PRADO. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2000, p, 606. 205
CAPEZ, Fernando. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Damásio de Jesus, 10ª ed., 2003, p. 293.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral e parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 501. 206
207 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e o direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 83. 208
ANDRADE, Haroldo da Costa. Das medidas de segurança. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 22.
209
ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral [V.1]. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 423.
210
ANDRADE, Haroldo da Costa. Das medidas de segurança. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 22.
211
ANDRADE, Haroldo da Costa. Das medidas de segurança. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 18.
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o portador de doença mental somente quando necessário. Deve-se, então, anteriormente, buscar o tratamento pelo trabalho e pela reeducação.212 Entretanto, os maiores problemas no tocante à medida de segurança ocorrem na execução da sua modalidade detentiva – em outras palavras, o tratamento que os inimputáveis recebem (ou deixam de receber) quando internados nos Hospitais de Custódia e Tratamento. A similaridade dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e das penitenciárias não se encerra na restrição de liberdade, vez que a construção das casas de custódia é realizada com características prisionais, contrariando, assim, o disposto no Código Penal vigente, mais especificamente em seu artigo 99, que preceitua: "O internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento." Os cenários da Ala de Tratamento Psiquiátrico no Distrito Federal e em Minas Gerais, expostos subsequentemente, corroboram com a afirmação acima exposta. Senão vejamos: As grades, trancas e portas de aço denunciam o padrão de cadeia daquilo que deveria ser um hospital para tratamento de doentes mentais infratores. Um policial com uma arma na cintura completa a cena. São 63 pacientes tratados como presos. As poucas janelas, que têm por fora grossas colunas de concreto, não arejam o ambiente. O cheiro é de sujeira. [...] Não há refeitório ou mesa onde os internos possam comer. Por isso, fazem suas refeições onde estiverem. [...] Algumas horas dentro da Casa são suficientes para perceber que tudo ali está errado. A responsável pelo serviço médico, Sheila Belém, admite que não há sequer tratamento. ‘Não temos nem gente aqui’, afirma. Quem dá os remédios aos internos é um detento da penitenciária. [...] Essa situação caótica não é exclusiva da Colmeia. Em todas as casas de custódia e tratamento do País o descaso se repete.213 Tormento além do que permite a lei. Dinheiro Público jogado fora. Dois portões enormes. A velha lógica de cadeia: só se abre um portão após você já estar fechado pelo outro. O muro alto que cerca tudo e todos. O espaço do confinamento. Sobre o muro alto, guaritas fazem Bentham acomodar-se, orgulhoso, no túmulo. Antes da chegada, a placa enferrujada – parecendo haver sido dobrada propositalmente para dificultar a leitura – indicando o HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO (que é o apelido dado, pela Lei nº 7.209/84, ao velho manicômio judiciário). A lógica é segregacional/manicomial, mas o nome 212 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e o direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 82. 213
Disponível em: <http://www.inverso.org.br/index.php/content/view/9697.html>. Acesso em: 9 nov. 2012.
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é hospital. [...] As várias salas vazias possuem um pedaço de papel manuscrito, colado à porta, onde se pode ler: ‘cardiologia’, ‘ortopedia’. Salas vazias, como é o cuidado dispensado aos pacientes/presos. Sempre gente pobre e sem laços que viabilizem uma denúncia.214
Infelizmente, os cenários acima apresentados não são exceção ou minoria. Renomados psiquiatras da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) visitaram 8 (oito) Hospitais de Custódia em todo o Brasil e, subsequentemente, realizaram uma avaliação. Constatou-se a ineficácia de todas as instituições visitadas, pois não atendiam às necessidades básicas dos pacientes em cumprimento de medida de segurança, apresentando um funcionamento defeituoso, como um número excessivo de pacientes para equipe técnica disponível, ocasionado devido ao descaso, tanto em relação às condições técnicas quanto materiais, em conjunto com a falta de preparo dos responsáveis pela gestão desses estabelecimentos cada vez mais precários.215 Em 2011, foi realizado o primeiro mapeamento dos doentes mentais. Os dados são reveladores e classificados pela professora Débora Diniz, coordenadora do projeto, como "estrutura inercial" do modelo psiquiátrico-penal do Brasil, uma vez que 41% dos exames de cessação de periculosidade estão em atraso e o tempo médio de permanência à espera de um laudo psiquiátrico é de dez meses, sendo que o artigo 150, parágrafo 1º do Código Penal determina 45 dias.216 Consequentemente, ainda que um paciente esteja em condições de ter sua periculosidade cessada e de retornar ao convívio social, terá de esperar anos para a realização do exame.217 Vale ainda ressaltar que 7% dos indivíduos já possuem sentença de desinternação, mas ainda estão em regime de internação.218 Ou seja, se contra os presos-pacientes não há mais uma medida de segurança, uma vez que houve a cessação da periculosidade, a retenção desses indivíduos nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é ilegal.219
214 MATTOS, Virgílio de. Crime e psiquiatria: Uma saída: Preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 113. 215 Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_ FORENSE-18_10_Joao_2.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2013. 216 DINIZ. Débora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. Brasília: Letras Livres e Editora UNB, 2012, p. 17. 217 Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_ FORENSE-18_10_Joao_2.pdf/MANUAL_FORENSE-18_10_Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013. 218 DINIZ, Débora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. Brasília: Letras Livres e Editora UNB, 2012, p. 17. 219 MATTOS, Virgílio de. Crime e psiquiatria: Uma saída: Preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 114.
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Tais situações, além de ocasionarem uma superlotação da instituição, fazem com que o tratamento dos pacientes prossiga em nível "carcerário", uma vez que já teriam condições de continuar o atendimento em regime ambulatorial.220 A medida de segurança, nas palavras de Haroldo Andrade Costa, acarreta “[...] a restrição de liberdade, entregando os enfermos, de mãos atadas, à escravidão psiquiátrica. O princípio em que se baseava a aplicação da medida de segurança consistia na hipotética defesa social, mas, na prática, resultou em afastar o indivíduo do ambiente social”.221 Além disso, a reinserção social é dificultada pela falta de integração entre os estabelecimentos de saúde e os Hospitais de Custódia, sendo imperioso lembrar que essa população está excluída de um direito garantido pela Constituição: o acesso ao Sistema Único de Saúde. Não há acompanhamento, nem continuidade do tratamento iniciado nas instituições, o que aumenta as chances de recaída e retorno às casas de custódia.222 Com este norte, menciona-se o documentário brasileiro A casa dos mortos, realizado em 2009, cuja direção, roteiro e pesquisa etnográfica couberam à antropóloga, documentarista e professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) Débora Diniz.223 Com aproximadamente 24 minutos, a obra mostra uma interminável luta de sobrevivência de três presos-pacientes do Hospital de Custódia e Tratamento em Salvador, Jaime, Antônio e Almerindo, acompanhada pela poesia de Bubu (um poeta com doze internações em manicômios judiciário), que desafia o sentido dos hospitais-presídios.224 Como mencionado anteriormente, uma das histórias contadas pelo curta-metragem é de Almerindo. Em 22 de setembro de 1981, por volta das nove horas da manhã, Almerindo supostamente atirou uma pedra contra um menino de 14 anos que andava de bicicleta, fazendo-o cair ao chão sangrando. Em seguida, teria apanhado a bicicleta e a lançado sobre o garoto, correndo para longe em seguida.225 Segundo a defensora pública, dra. Auxiliadora, pelo fato narrado acima, fora imputado a Almerindo, na sentença absolutória imprópria, o crime de lesões corporais de natureza leve (art. 129, caput, do CP).226 Em 2 de novembro de 1981, Almerindo foi internado, sendo que o laudo atestando sua insanidade mental só fora realizado em 12 de maio de 1982. Por fim, a 220 Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_FORENSE-18_10_ Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013. 221
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Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_FORENSE-18_10_ Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013. 222
223
Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>. Acesso em: 2 abr. 2013.
224
Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>. Acesso em: 2 abr. 2013.
225
Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>. Acesso em: 2 abr. 2013.
226
Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>. Acesso em: 2 abr. 2013.
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sentença, proferida apenas em 1984, imputou a Almerindo medida de segurança com o internamento mínimo de dois anos, sendo que ele já havia cumprido esse prazo há muito tempo.227 Conforme preceitua o Código Penal, o crime de lesões corporais de natureza leve é apenado com detenção. Consequentemente, no caso de Almerindo, a internação lhe fora imposta sem as tentativas de recursos extra-hospitalares, uma vez que a medida de segurança restritiva, isto é, tratamento ambulatorial, poderia ter sido a ele imposto, o que não foi feito, contrariando, assim, o disposto no artigo 4º da Lei Antimanicomial.228 Ademais, ainda que se justificasse a internação, esta deveria ter ocorrido nos moldes da Lei Antimanicomial nº 10.216/2001, isto é, com a finalidade permanente de reinserção social.229 Todavia, como expõe o documentário de 2009, Almerindo, há 28 anos enclausurado, já havia perdido todos os vínculos, tanto familiares como sociais. Nota-se, então, que, ao longo de quase três décadas internado no Hospital de Custódia e Tratamento, Almerindo ainda não estava apto a se reinserir socialmente, apontando assim o quão inócua é a medida de segurança detentiva, uma vez que o afastou por longos anos e, ainda, assim, não alcançou sua suposta finalidade. Com efeito, torna-se ainda mais necessária a ressureição da lógica terapêutica, finalidade principal da medida de segurança, e a exclusão do funcionamento segregador e carcerário que permeia esses estabelecimentos penais.230 Ante o exposto, conclui-se que estamos diante de um grupo de indivíduos cuja precariedade da vida é acentuada pela loucura e pela pobreza em conjunto com a desatenção das políticas públicas às necessidades individuais e aos direitos humanos.231 Visando a seguir em direção oposta ao relatado anteriormente e no intuito de perceber melhor a aplicabilidade desse instituto, elencam-se possíveis soluções frente à realidade vivida pelos inimputáveis nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, com o objetivo de recuperar o caráter terapêutico dessa sanção penal e, ainda, desvinculá-la de sua imagem segregadora, que são, Interseção do Sistema Único de Saúde e a Lei de Execução Penal; Reinserção Social e o apoio familiar; Desinternação Progressiva. Os Hospitais de Custódia e Tratamento são considerados estabelecimentos hospitalares, conforme artigo 99 do Código Penal. Ainda assim, não integram o Sistema Único de Saúde, e sim o Sistema Penitenciário. Por consequência, não são regidos 227
Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>. Acesso em: 2 abr. 2013.
228
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10216.htm>. Acesso em: 3 abr. 2013.
229
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10216.htm>. Acesso em: 3 abr. 2013.
Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_FORENSE-18_10_ Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013. 230
231 DINIZ, Débora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. Brasília: Letras Livres e Editora UNB, 2012, p. 17.
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pelos princípios do Sistema Único de Saúde, como era esperado, mas sim pelos princípios da Lei de Execução Penal.232 Desse modo, os manicômios judiciários devem se adequar às normas estabelecidas pelo SUS, isto é, às mesmas normas que existem para os hospitais psiquiátricos públicos ou credenciados ao SUS, para que assim possa haver um direcionamento no sentido da humanização e desospitalização.233 A administração de um hospital público e a de uma instituição penitenciária são opostas; nota-se isso somente na observância dos princípios absurdamente diversos e incongruentes pelos quais são regidos. Assim sendo, não há como defender a natureza sanitária da medida de segurança (e não punitiva) sem evidenciar a contradição de um hospital submetido ao Sistema Penitenciário e não ao Sistema Único de Saúde.234 Consequentemente, uma integração entre os sistemas de saúde e o judiciário é imprescindível, vez que essa população encontra-se em um terreno de interseção dessas duas esferas,235 tendo em vista que necessitam do sistema judiciário, pois cometeram um ato ilícito, bem como do sistema de saúde, uma vez que sofrem de uma afecção mental. Com efeito, a medida de segurança deve ser orientada e conduzida por tratamento psiquiátrico – que inclui internação e acesso a todos os recursos psiquiátricos disponíveis –, para que assim os presos pacientes possuam o amparo do Sistema Único de Saúde durante o tratamento dos indivíduos que têm medida de segurança decretada.236 Por fim, é válido salientar que o tratamento não deve – e nem pode – ser realizado somente no período em que o interno cumpre a medida de segurança. É necessária uma integração entre os estabelecimentos de saúde e os Hospitais de Custódia e Tratamento, para que a saída do louco-infrator das casas de custódia não signifique o fim do tratamento, uma vez que sem a continuidade do tratamento poderá ocorrer a reiteração da prática delituosa.237 Ao longo dos anos, a loucura passou a ser associada à exclusão social, ou seja, os indivíduos que possuem condutas indesejáveis pela comunidade em que vivem devem
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JACOBINA, Paulo Vasconselos. Direito Penal da Loucura. Brasília: ESMPU, 2008, p. 100.
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JACOBINA, Paulo Vasconselos. Direito Penal da Loucura. Brasília: ESMPU, 2008, p. 101.
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JACOBINA, Paulo Vasconselos. Direito Penal da Loucura. Brasília: ESMPU, 2008, p. 100.
BRASIL. Associação Brasileira de Psiquiatria. Hospitais de Custódia no Brasil: avaliação e propostas. Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_FORENSE-18_10_Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013. 235
236 Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_ FORENSE-18_10_Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013. 237 Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_ FORENSE-18_10_Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013.
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ser isolados. Por isso, é imprescindível uma política de reinserção social do doente mental em seu meio.238 Todavia, para que haja a possibilidade de o portador de doença mental se reinserir na sociedade, são necessários a diminuição de leitos hospitalares e mais foco em serviços substitutivos que possibilitem a participação dos familiares para inclusão desses indivíduos, uma vez que a família é um parceiro singular e fundamental no cuidado do doente mental e, ainda, base para sua reinserção social.239 Por outro lado, ainda que haja o apoio familiar, é necessário que o Estado realize seu papel, ou seja, disponibilize todos os arcabouços necessários aos parentes dos portadores de insanidade mental, como serviços extra-hospitalares na comunidade, continuidade dos programas iniciados durante a internação do paciente e, ainda, suporte nas dúvidas que a família venha a ter durante o tratamento do seu familiar.240 Atualmente, a exclusão social ocorre de modo tão gritante no Brasil que existem pacientes que mesmo após liberados pelo exame de verificação de cessação de periculosidade continuam nos hospitais de custódia e tratamento, por total falta de opção social. Eles acabam permanecendo abrigados, superlotando a instituição, devido à falta de infraestrutura estatal para sua reinserção na sociedade.241 A permanência desses pacientes contraria toda a previsão da Lei Antimanicomial, tendo em vista que essa lei prevê a internação como ultima ratio, devendo somente ser utilizada nos casos em que os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, conforme especifica seu artigo 4º. Consequentemente, a internação aquém do necessário, vez que cessada a periculosidade, acarreta em uma situação de ilegalidade, podendo caracterizar cárcere privado.242 Desse modo, conclui-se que estamos diante de uma nova lógica a orientar a atenção ao doente mental, qual seja, a lógica da inclusão, e, para que esse fim seja alcançado, é necessária uma aliança entre a família do portador de doença mental e o Estado – uma vez que, sem possibilidade de apoio externo e sem laços, o convívio que lhes resta é o convívio da instituição fechada, em regime fechado.
238 COLVERO, Luciana de Almeida. Família e doença mental: a difícil convivência com a diferença. Rev. Esc. Enferm., São Paulo, USP, 2004, p. 199. 239 COLVERO, Luciana de Almeida. Família e doença mental: a difícil convivência com a diferença. Rev. Esc. Enferm., São Paulo, USP, 2004, p. 199. 240 COLVERO, Luciana de Almeida. Família e doença mental: a difícil convivência com a diferença. Rev. Esc. Enferm., São Paulo, USP, 2004, p. 199. 241 Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_ FORENSE-18_10_Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013. 242 Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/comunicado/arquivo/comunicado-104/MANUAL_ FORENSE-18_10_Joao_2.pdf/>. Acesso em: 5 mar. 2013.
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Dentre as possíveis soluções elencadas anteriormente, a mais importante delas é a Desinternação Progressiva, visto que é uma forma diferente de aplicação da medida de segurança detentiva ou de internação, como também é conhecida. Sua finalidade em questão é a reintegração social do interno e sua estratégia principal é embasada no aumento progressivo de contato e vivência com o mundo externo, ou seja, com seu meio social, e, em contraposto, a diminuição da dependência do interno para com o manicômio judiciário.243 Para preparar o interno na convivência comunitária, são realizadas atividades relacionadas à educação, ao trabalho e ao lazer. Por oportuno, é bom lembrar que a desinternação progressiva preza pela saída planejada, paulatina, para que assim haja segurança tanto para o interno como para a sociedade.244 Permitida essa progressão em relação aos inimputáveis e semi-imputáveis, as transferências de regimes de tratamento mais rigoroso a um menos rigoroso serão possíveis, auxiliando, assim, na efetiva e futura convivência familiar e social. É possível, então, concluir que a desinternação progressiva consiste em um método revolucionário terapêutico, uma vez que se opõe ao regime fechado, agilizando e aprimorando a compreensão, o manejo e a efetivação do tratamento do paciente.245 Nota-se, então, que o intuito desse método é romper os hábitos adquiridos pelo paciente durante a internação, pois, uma vez internado, a patologia se agrava, cronificando a doença e criando ainda uma dependência ao ambiente hospitalar.246 Consequentemente, esse método visa à integração do paciente no meio sociofamiliar, oferecendo-lhe formas terapêuticas para que isso se concretize, como visitas aos familiares, passeios pela região e compras na cidade, sempre com o devido acompanhamento de um funcionário da instituição hospitalar.247 Nas palavras de Corocine, o programa de desinternação progressiva “[...] visa à reinserção psicossocial dos pacientes com ações terapêuticas para fora dos muros da instituição e envolvendo o meio familiar, a comunidade: a retornada do contexto sócio-histórico do paciente que foi perdido na sua institucionalização”.248 243 CIA. Michele. Medidas de segurança no direito penal brasileiro: A desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 127. 244 CIA. Michele. Medidas de segurança no direito penal brasileiro: A desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 127. 245 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 168. 246 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 168. 247 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 168. 248 APUD CIA. Michele. Medidas de segurança no direito penal brasileiro: A desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 128.
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É importante frisar que a iniciativa da criação da desinternação progressiva não ocorreu no meio jurídico, mas sim no meio médico, como se comprova a partir de sua primeira denominação, qual seja, alta progressiva e programada. Essa questão é relevante do ponto de vista histórico e, ainda, atesta o fundamento médico e terapêutico do método da desinternação progressiva.249 Por sua vez, as leis brasileiras são silenciosas no tocante à desinternação progressiva, não havendo qualquer menção a ela no Código Penal, Processual Penal e nem na Lei de Execução Penal, que, muito embora detalhe o cumprimento das sanções penais, não as instituiu. Sendo assim, conclui-se que não há no ordenamento jurídico brasileiro a previsão da desinternação progressiva.250 No entanto, sua legitimidade deve ser reconhecida, uma vez que ela se alinha aos ditames constitucionais, focando-se a princípios como dignidade da pessoa humana, intervenção mínima, proporcionalidade, entre outros. Sendo assim, a desinternação progressiva é harmônica com o nosso Estado Democrático de Direito.251 Ocorre que, mesmo legítima, a desinternação progressiva não é uma obrigação estatal exigível, devido à falta de legislação a respeito. Percebe-se então a necessidade de uma reforma legislativo-penal, enunciando dispositivos para a desinternação progressiva, uma vez que o Código Penal e a Lei de Execução Penal não podem ficar inertes diante da tendência de desinstitucionalização do tratamento, figurando imprescindível uma imediata adequação legal à nova e curativa modalidade terapêutica.252 Havendo a reforma, a desinternação progressiva passaria a ser uma alternativa de existência obrigatória dentro do instituto da medida de segurança.253 No Brasil, já existem casos em que é aceita a desinternação progressiva. No entanto, a polêmica ainda sobrevoa esse método devido a casos falhos, como o dos meninos de Cantareira. As falhas acontecem porque a estrutura é defeituosa durante o tratamento e inexistente depois da saída do paciente, uma vez que não há continuidade de tratamento ou fiscalização do paciente após a desinternação, como era pressuposto. A polícia 249 CIA. Michele. Medidas de segurança no direito penal brasileiro: A desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 118. 250 CIA. Michele. Medidas de segurança no direito penal Brasileiro: A desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 118. 251 CIA. Michele. Medidas de segurança no direito penal brasileiro: A desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 120. 252 FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 173. 253 CIA. Michele. Medidas de segurança no direito penal brasileiro: A desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 125.
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militar é quem tenta exercer essa função atualmente, ainda que esteja dentro de suas atribuições, isso mostra a falha do sistema, tendo em vista que a fiscalização prevista na lei, na prática não existe, como acompanhamento psiquiátrico, assistência social e psicológica.254 Sociedade, Estado, Magistratura, Ministério Público e agentes públicos são responsáveis por fiscalizar e supervisionar o cumprimento de medidas, tanto para os imputáveis como para os inimputáveis. E os erros desses grupos não devem ser imputados aos doentes mentais, tendo em vista a imprescindibilidade da desinternação progressiva para sua inclusão social.255 Nesse sentido, segundo Eduardo Reale Ferrari: Doente mental não pode perder o contato com o mundo. Por isso a importância da desinternação progressiva. Para que funcione, a desinternação precisa do apoio do Estado. Cabe ao Estado garantir que o doente condenado criminalmente tenha apoio de psicólogos, médicos e assistentes sociais. Juiz e Ministério Público também têm suas obrigações. O que não pode é tirar um direito do preso porque o Estado não faz a sua parte.256
Conclui-se, portanto, que as falhas da desinternação progressiva não justificam sua extinção, uma vez que tais defeitos ocorrem devido à ausência de estrutura que deveria ser oferecida pelo Estado ao paciente. Consequentemente, é imprescindível o aprimoramento estatal para que assim a desinternação progressiva alcance seu fim, ou seja, a reinserção social. E, por fim, resgate a dignidade perdida pelo paciente ao longo do seu isolamento nos Hospitais de Custódia e Tratamento.
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254 Conjur: O doente mental não pode pagar pelas falhas do Estado. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2007out-07/doente_mental_preso_nao_pagar_falhas_estado>. Acesso em: 23 abr. 2013. 255 Conjur: O doente mental não pode pagar pelas falhas do Estado. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2007out-07/doente_mental_preso_nao_pagar_falhas_estado>. Acesso em: 23 abr. 2013. 256 Conjur: O doente mental não pode pagar pelas falhas do Estado. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2007out-07/doente_mental_preso_nao_pagar_falhas_estado>. Acesso em: 23 abr. 2013.
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C R ISTIA NA O LIV EIR A D E CARVALHO M A R C U S V INIC IU S R EI S BASTOS
RESUMO O presente trabalho tem por objeto a remição de pena pelo estudo, tema que sempre foi controverso na doutrina e jurisprudência pátrias. Adentramos nas modificações implementadas à Lei de Execução Penal (LEP) pela lei nova, analisando cada um dos artigos alterados, indicando os prós e contras de cada uma das alterações e os avanços que ainda podem alcançar. Ao final, concluímos que, para além da remição da pena, a lei nova veio definitivamente elevar a educação a um dos mais eficazes meios de crescimento e melhoramento do homem encarcerado e que a remição da pena pelo estudo permite ao apenado, além de ter sua pena abreviada, sair da vida intramuros com melhores condições de se (re)adaptar à vida livre. Palavras-chaves: Remição; Pena; Remição penal; Estudo; Lei de Execução Penal.
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Introdução O art. 6º da Constituição Cidadã de 1988 prevê o direito à educação como dever do Estado; a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, Lei de Execução Penal (LEP), em seu art. 17, estabelece de forma clara que a assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado; as Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas (ONU) determinam que devem ser adotadas medidas no sentido de melhorar a educação de todos os reclusos, bem como a promoção da educação de analfabetos e jovens reclusos; e, ainda, o art. 21 da LEP preconiza que, em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos. Cediço é que a realidade no cárcere, no que diz respeito ao direito constitucional à educação, não é nada animadora, muito pelo contrário, daí a grande importância de se fomentar a prática do estudo nos estabelecimentos prisionais que, para além da remição penal, é uma forma, senão a melhor, de abreviar o tempo do apenado no cárcere, minimizando inclusive o problema, que parece ser insolúvel, da superlotação carcerária. A possibilidade de o apenado remir parte de sua pena pela prática de atividades escolares há muito está na pauta de discussão da melhor doutrina nacional e internacional, já sendo, inclusive, realidade em alguns países, tais como Venezuela e Colômbia. Desde a edição da LEP, em 1984, doutrinadores e operadores do direito ressentiam-se da omissão do legislador ao conceder a remição apenas àqueles apenados que trabalhavam, negando àqueles que estudavam. Um dos principais argumentos utilizados para justificar esse “ressentimento” era o de que o estudo é uma forma de trabalho muitas vezes mais eficiente, do ponto de vista da reinserção do preso na sociedade, do que o próprio trabalho. Como veremos mais adiante, a caminhada para se chegar até a edição da Lei nº 12.433, de 29 de junho de 2011, que erigiu a direito do preso a remição de parte de sua pena pelo estudo, foi longa e rica em discussões e debates no meio jurídico e legislativo. Além da remição pelo estudo, outros importantes temas referentes à concessão da remição, tais como o cômputo e a perda dos dias remidos, foram exaustivamente discutidos e, por fim, contemplados na lei nova, já que também eram objetos de calorosos embates, tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátrias, desde a edição da LEP. Porém, nos parece que a mais importante inovação trazida pela nova lei à execução penal foi mesmo a possibilidade de remição de pena pelo estudo, já que é senso comum que o estudo é uma das mais importantes formas de crescimento pessoal e intelectual do homem – e, além de “ocupar a cabeça”, ao estudar, o encarcerado estará abreviando o seu retorno à liberdade com melhores condições de disputar uma vaga no mercado de trabalho, que tanto carece de profissionais qualificados.
A REFORMA DA LEP E A REMIÇÃO DA PENA PELO ESTUDO: ALGUMAS REFLEXÕES
Infelizmente, sabemos que na maioria dos presídios do país a realidade carcerária não permite que esse ideal seja vislumbrado, porém, a positivação da remição pelo estudo é mais um avanço, pois estimula o preso a estudar, seja para se ver livre o mais breve possível do cárcere, seja para “ocupar” sua mente ou crescer intelectualmente.
A Remição da Lei Nº 12.433/2011 Recentemente, os artigos 126, 127, 128 e 129 da LEP, que dizem respeito à remição da pena privativa de liberdade, foram alterados pela Lei nº 12.433, de 29 de junho de 2011. A mais importante, no nosso entender, das modificações inseridas na LEP, foi a possibilidade de remição da pena privativa de liberdade por meio do estudo, tema que é objeto deste artigo, já que a matéria era motivo de discussão há muitos anos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátria. Apesar da ausência de previsão legal, a possibilidade de o apenado remir pelo estudo parte de sua pena já era um anseio dos doutrinadores e operadores do direito, pois é pacífico o entendimento de que o estudo, tanto quanto o trabalho, é um dos mais eficazes instrumentos de ressocialização do preso, pois lhe proporciona, no futuro, melhores e mais adequadas condições de disputa no mercado de trabalho, após o cumprimento de sua pena, dentre outros tantos benefícios. A trajetória legislativa para se chegar à edição da Lei nº 12.433/11, que alterou os artigos 126, 127, 128 e 129 da LEP, foi árdua e longa. A “batalha” teve início por meio do Projeto de Lei – PL nº 4.230/2004,257 de autoria do deputado federal Pompeo de Mattos, que teve por mérito ser o pioneiro em trazer a matéria à discussão legislativa. A proposta incluía um parágrafo único ao art. 126 da LEP, permitindo a remição da pena dos condenados que estivessem estudando, nas mesmas condições estabelecidas para a remição pelo trabalho. Como justificativa ao seu projeto de lei, o Deputado apontou que diversos juízes, em seus julgados, faziam uso do princípio integrativo para interpretar in bonam partem o art. 126 da LEP, permitindo, assim, a remição da pena extensivamente com base na frequência em curso escolar. Assim sendo, sua proposição apenas supriria a lacuna legal.
257 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 6.254/2005. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=307622>. Acesso em: 17 fev. 2013.
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À referida proposição foram apensados os PLs nº 6.254/2005,258 269/2007259 e 1.936/2007.260 O primeiro, de autoria do deputado João Campos, acrescentava, elogiosamente, a forma da contagem dos dias a serem remidos pelo estudo na proporção de um dia de pena a cada três dias de frequência efetiva. Além disso, previa a continuidade do benefício aos presos impossibilitados de comparecer às atividades escolares, a necessidade de avaliação positiva de desempenho do detento, bem como a remessa do controle de frequência ao Juízo de Execução. Já o PL nº 269/2007, de autoria do deputado Jilmar Tatto, previa a remição da pena pelo estudo na proporção de um dia de pena para cada oito horas de efetiva presença na atividade de alfabetização, fundamental, médio, universitário ou de formação e requalificação profissional, desenvolvida de forma presencial ou por meio de metodologia de ensino a distância. Finalmente, o PL nº 1.936/2007, de autoria do Poder Executivo, previa a remição de um dia de pena a cada dezoito horas-aulas assistidas, divididas no mínimo em três dias (média de seis horas-aulas diárias); previa ainda que a remição pelo estudo fosse condicionada à certificação pelas autoridades competentes; o direito do preso à remição quando, por acidente, ficasse impedido de frequentar as aulas; o acréscimo de 1/3 no tempo remido quando da conclusão de ensino fundamental, médio ou superior, durante o cumprimento da pena; a possibilidade de acumulação na hipótese de remição por trabalho ou estudo; a determinação de que a remição seria declarada pelo Juiz da Execução, podendo, em caso de falta grave, ser revogado até 1/3 do tempo remido; e, por fim, a determinação de que o tempo remido pelo estudo seria computado como pena cumprida. Na Exposição de Motivos nº 105 do Ministério da Justiça,261 o então ministro da justiça sustentava que a proposta de alteração da LEP consolidaria no ordenamento jurídico pátrio o entendimento jurisprudencial de que o tempo de estudo deveria ser computado para fins de remição da pena, justificando-a sob o argumento de que o estudo evita o ócio, aumenta a autoestima e facilita a ressocialização do apenado. Além disso, afirmava ter sido essa proposta objeto de diálogo entre o Ministério da Justiça, Ministério da Educação e Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência 258 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 4.230/2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=266055>. Acesso em: 17 fev. 2013. 259 Idem. Projeto de Lei PL 269/2007. Disponível em: fichadetramitacao?idProposicao=343218>. Acesso em: 17 fev. 2013.
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
260 Idem. Projeto de Lei PL 1.936/2007. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=365741>. Acesso em: 17 fev. 2013. 261 BRASIL. Ministério da Justiça. Exposição de Motivos EM 105/2007. Projeto de Lei que pretende a modificação da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP), introduzindo no ordenamento brasileiro a remição por estudos, ou seja, a redução de pena a cumprir pelo condenado desde que este efetivamente estude, assistindo a aulas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/projetos/EXPMOTIV/MJ/2007/105.htm>. Acesso em: 17 fev. 2013.
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e Cultura (Unesco), pois preconizava um sistema de educação que busca promover, estimular e reconhecer os avanços dos educandos – no caso, os apenados. Com o intuito de avançar mais ainda na ampliação dos direitos dos encarcerados, foram apresentadas duas emendas ao PL nº 1.936/2007 que alteravam o art. 127 da LEP que trata da perda do tempo remido do preso que comete falta grave. Uma delas acrescentava um parágrafo único para assegurar ao preso o direito de defesa ou justificação na aplicação da punição, garantindo, assim, o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa por meio da juntada da petição aos autos. A outra reduzia para doze horas-aula, por dia de estudo, a contagem do tempo a ser remido e acrescentava mais dois parágrafos afastando do benefício os condenados por crimes hediondos ou equiparados e impedindo a cumulação de cursos para efeito de remição. Diante das várias propostas de emendas e com o intuito de reunir em um único texto as medidas consideradas mais adequadas, foi apresentado um substitutivo ao PL nº 4.230/2007, cuja justificativa apresentada por sua relatora, deputada Iriny Lopes, era a de que, sob a ótica da segurança pública, as medidas sugeridas diminuiriam a criminalidade e a reincidência. Em 2009, foi apresentado o PL nº 6.427,262 sugerindo a alteração do art. 127 da LEP com a seguinte redação: “Art. 127. O condenado que for punido por falta grave perderá até cento e oitenta dias remidos.” O autor do referido PL, deputado Ricardo Barros, justificou sua proposta sustentando que, no direito, tudo tem prazo prescricional, portanto, para que a lei não seja injusta, seria necessário estabelecer que a perda da remição alcançasse apenas o trabalho desempenhado até uma quantia de anos atrás. Como vimos, nas diversas justificativas de propostas, são antigos a discussão e o anseio no meio jurídico para que se desse uma solução, por meio de lei, aos antagonismos referentes ao direito concedido ao apenado de remir, se assim o quisesse, também por meio do estudo, parte de sua pena. Apesar de ter sido matéria sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ (Súmula 341), a falta de sua positivação gerava a insegurança jurídica, tanto para o condenado quanto para os operadores do direito, pois os posicionamentos na jurisprudência eram incertos e, muitas vezes, para fazer valer o seu direito, o apenado tinha que recorrer às instâncias superiores – e é sabido que, sobretudo para quem está intramuros, a celeridade não é um das qualidades do nosso sistema jurídico. Ressaltamos que, sem a devida assistência jurídica necessária, a maioria dos detentos, intramuros, padece do mal do abandono. Muitos não têm acesso a advogados ou defensores públicos e, por isso, uma grande parcela permanece encarcerada, mesmo já tendo cumprido o seu tempo de pena, pelo simples fato de não terem seus pleitos atendidos a contento. 262 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 6.427/2009. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=460146>. Acesso em: 17 fev. 2013.
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Ao fim, o legislador, mesclando os anseios contidos nas emendas apresentadas ao PL nº 4.230/2004, depois de quase sete anos de embates legislativos e embasado nos posicionamentos e teses dos mais importantes representantes da “cultura” jurídica nacional e internacional, em julho de 2011 editou a Lei nº 12.433, finalmente reconhecendo ao condenado, tanto no regime fechado quanto no semiaberto e aberto, o direito à remição de parte de sua pena pelo estudo. Além disso, disciplinou a perda dos dias remidos, que também era uma importante questão controversa no meio jurídico, dentre outras alterações. Sem dúvida alguma, a Lei nº 12.433/2011 trouxe alterações e acréscimos importantes à LEP, mas Marcelo Rodrigues da Silva alerta que em muitos pontos a lei foi tímida e aquém do esperado, com muitos pontos que irão futuramente gerar dúvidas quanto à operacionalização das normas, pois ainda há muitos outros pontos a serem melhorados. “A Lei nº 12.433/2011 espelhou nada mais nada menos do que aquela velha máxima: ‘Onde há sociedade há o direito (ubis societas ibius). Se a sociedade evolui, o direito evolui.’”263 Agora passaremos à análise, embasada na doutrina e na jurisprudência e sob a ótica do nosso tímido entendimento, de cada uma das inovações apresentadas na lei nova. Não pretendemos esgotar o assunto, apenas esperamos apresentar de forma sucinta suas omissões, seus prós e contras e os presentes avanços, para que cada vez mais possa ser dado ao apenado, que, ressalte-se, perdeu pela sua condição apenas o seu direito à liberdade (e os dele inerentes), mas continua sujeito, e não mero objeto, do direito ao cumprimento de sua pena no menor tempo possível e com a dignidade que lhe é garantida constitucionalmente. A primeira, e mais importante, das inovações apresentadas pela Lei nº 12.433/2011 é a remição pelo estudo. A matéria sempre foi objeto de discussão na doutrina e na jurisprudência, mesmo não tendo sido contemplada quando da edição da LEP e muitos doutrinadores se posicionavam a favor da extensão do benefício da remição para aqueles apenados que apresentavam interesse pela atividade escolar nos mesmos moldes daqueles que exerciam atividade laborativa. Na jurisprudência, da mesma forma, muitos julgadores se posicionavam, mesmo sem um dispositivo legal que os respaldassem, no sentido de conceder àqueles apenados que estudassem no cárcere o direito à remição de sua pena. Não podemos deixar de transcrever magnífica explanação no voto vencido do relator Carlos Biasotti, no julgamento do Ag. 481.171-3/0 – TJSP, que demonstra brilhantemente a importância de conceder analogamente a remição pelo estudo:
263 SILVA, Marcelo Rodrigues da. Modificações implementadas à lei de execução penal ao instituto da remição pela Lei nº 12.433/2011. 2011. Disponível em: <http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp? codigo_sophia=92000>. Acesso em: 10 abr. 2013.
A REFORMA DA LEP E A REMIÇÃO DA PENA PELO ESTUDO: ALGUMAS REFLEXÕES
À luz da lógica e por princípio de justiça, a escorreita exegese do art. 126 da LEP deve compreender também, no conceito de trabalho, a atividade escolar do preso, por sua transcendental importância como fator de promoção humana e poderoso instrumento de reforma de vida e costumes. Destarte, comprovando que frequentou aulas em curso patrocinado pelo sistema penitenciário, tem jus o condenado à remição de penas, na proporção de um dia para cada 12 horas de efetiva atividade escolar. O argumento expendido no agravo (e que tira ao fim de prestigiar, no âmbito carcerário, só o trabalho físico, em detrimento da atividade intelectual) encerra crasso equívoco, pois justamente abate o que deveria exaltar: o labor intelectual, notabilíssimo instrumento de promoção humana. Se o ‘estudo é a luz da vida’, como pelo comum entendem e proclamam os pedagogos, como pretender, sem injúria da razão, que o trabalho intelectual represente um minus em respeito do trabalho físico?! Falou avisadamente quem disse: ‘Abrir escolas é fechar prisões’; daqui se mostra bem a suma importância que o convívio escolar tem na formação do caráter do indivíduo.264
Um dos principais argumentos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, para justificar a extensão da remição para aqueles apenados que estudavam, era a de que o estudo era uma forma de “trabalho intelectual” e, portanto, deveria ser equiparado ao trabalho para fins de remição penal. Além de “trabalho intelectual”, muitos doutrinadores e julgadores entendiam ser o estudo, do ponto de vista da ressocialização ou da reintegração do preso, muito mais eficaz e útil do que o próprio trabalho, que muitas vezes era meramente braçal e não acrescentava nenhuma qualidade à personalidade do apenado, já que é comum nos estabelecimentos carcerários os detentos exercerem atividades que não proporcionam nenhum tipo de acréscimo às suas vidas, tão somente para remir o tempo de suas penas. Célio César Paduani foi um dos acalorados defensores da remição pelo estudo e asseverava que: [...] a frequência às aulas, em qualquer estabelecimento de ensino, constitui, indiscutivelmente, uma modalidade de atividade laboral, pois quem efetivamente estuda, adentrado no aprendizado escolar com seriedade, despende energia, esforço, exercício cerebral e intelectual em prol de seu aperfeiçoamento cultural, moral e, consequentemente, social.265
264 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo nº 481.171-3/0. Quinta Turma Criminal. Relator: Carlos Biasotti. São Paulo, 20 de outubro de 2005. 265
PADUANI, Célio César. Da remição na Lei de Execução Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 54.
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Corroborando com esse entendimento, Nilton Carlos de Almeida Coutinho argumentava que “se o objetivo da execução penal é o de propiciar a reintegração social do preso, nada mais eficaz do que a utilização da educação para atingir esse fim”.266 E, ainda, Evânio Moura: “Ora, se a prisão deve buscar a reforma e a readaptação do condenado, não existe melhor caminho para se atingir tal objetivo do que investindo maciçamente em educação [...]”267 Na jurisprudência, da mesma forma, inúmeros julgados concediam a remição da pena pelo estudo. Ao julgar o HC 98700/SP,268 o relator ministro Felix Fischer defendia que a norma do art. 126 da LEP, ao possibilitar a abreviação da pena, teria por objetivo a ressocialização do condenado, sendo perfeitamente possível o uso da analogia in bonam partem para a concessão da remição, em razão de atividades que não estavam expressas no texto legal, como, v.g., a realização de atividade estudantil. No HC 94841/SP,269 a relatora ministra Jane Silva, da 6ª Turma, sustentou que a interpretação extensiva ou analógica do vocábulo ‘trabalho’ para englobar o tempo de estudo não afrontava o art. 126 da Lei de Execução Penal, em razão da necessidade de se ampliar o alcance da lei, uma vez que a atividade estudantil adequava-se perfeitamente à finalidade do instituto da remição, qual seja a ressocialização do apenado. Colocando fim à discussão sobre a validade ou não do estudo como forma de abater o tempo de cumprimento de pena, sabiamente o legislador editou a Lei nº 12.433/2011, que alterou o art. 126 da LEP, modificando, em seu § 1º, a contagem do tempo a ser remido pelo estudo na proporção de um dia de pena a cada doze horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional –, divididas, no mínimo, em três dias. Como nada é perfeito e acabado, as discussões e avanços continuam. Atendendo à solicitação dos ministérios da Justiça e da Educação, que visa a ampliar o rol de atividades consideradas de cunho educativo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) discute a edição de uma recomendação de orientação a todos os magistrados do país, para que considerem atividades extracurriculares – como jogos esportivos, encenação de peças teatrais, música e leitura de livros – válidas na concessão da diminuição do tempo de reclusão daqueles que estão cumprindo pena em regime aberto e semiaberto. 266 COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Considerações sobre a remição pelo estudo, sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jurídica UNIFOZ, Foz de Iguaçu, v. 3, nº 1, p. 96, jul./dez. 2008. 267 MOURA, Evânio. Remição da pena pelo estudo – rápida abordagem crítica. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, nº 24, p. 23, fev./mar. 2004. 268 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus. Ementa: [...]. HC nº 98.700/SP. Quinta Turma. Relator(a): Min. Felix Fischer. Brasília, 28 de maio de 2008. Disponível em: <http://www.jus brasil.com.br/jurisprudencia/8680324/ habeas-corpus-hc-98700-sp-2008-0009036-0-stj>. Acesso em: 3 maio 2013. 269 BRASIL. Habeas Corpus. Ementa: [...]. HC nº 94.841/SP. Sexta Turma. Relator(a): Min. Jane Silva. Brasília, 17 de abril de 2008. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro =200702729620&dt_ publicacao=05/05/2008>. Acesso em: 3 maio 2013.
A REFORMA DA LEP E A REMIÇÃO DA PENA PELO ESTUDO: ALGUMAS REFLEXÕES
Em nota técnica encaminhada ao CNJ, as duas pastas alegam que, na maioria das vezes, apenas as atividades formais de ensino são consideradas pelos tribunais para concessão do benefício, ficando sem receber a remição aqueles detentos que leem com frequência, estudam por conta própria e participam de atividades educacionais complementares, incluindo as culturais e esportivas.270 Ressalte-se que, segundo a recomendação do CNJ, até mesmo os apenados que se dedicam aos livros sozinhos poderão ser beneficiados com a diminuição do tempo de sua pena. Apesar de polêmica, a prática da remição por meio de atividades alternativas à educação formal é realidade em pelo menos cinco estados da federação, inclusive no Distrito Federal.271 Além disso, no Distrito Federal, as promotorias de Justiça de Execuções Penais expediram recomendação aos diretores do sistema penitenciário do Distrito Federal para que as normas da LEP sejam observadas. Entre os pedidos, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) solicita espaço físico adequado para que os detentos possam realizar avaliações e defesa de trabalhos de conclusão de curso, como é previsto na Resolução 1/2009 do Conselho de Educação do Distrito Federal.272 Quanto à contagem do tempo a ser remido, o legislador deixou claro que, para ter direito à remição, o preso terá que comprovar ter estudado ou participado de atividade educativa por no mínimo doze horas a cada três dias, mesmo que desigualmente a cada dia, para ter direito ao abatimento de um dia de pena. Portanto, não adianta o preso alegar ter estudado doze horas em um único dia e pretender remir um dia de pena. Para tanto, as doze horas de estudo ou atividade escolar deverão estar diluídas em no mínimo três dias. Anteriormente, como a lei só previa a remição pelo trabalho, o § 1º do art. 126 da LEP tinha a seguinte redação: “A contagem do tempo para o fim deste artigo será feita à razão de um dia de pena por três de trabalho.” Com a edição da nova lei, o legislador determinou uma contagem de tempo diferenciada para os apenados que exercem atividade escolar. A contagem do tempo para o fim de trabalho era controversa, pois se discutia, dentre outras coisas, o tipo de trabalho que merecia ser considerado para que o preso tivesse direito à remição. Quando da edição da LEP, Mirabete já informava que “não basta à remição, também, o trabalho esporádico ou ocasional do condenado, devendo 270 VASCONCELOS, Jorge. Detento que lê e participa de atividades esportivas pode ter a pena reduzida. 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/23669-detento-que-le-e-participa-de-atividades-pode-ter-penareduzida>. Acesso em: 3 abr. 2013. 271 MARIZ, Renata. Atividades culturais e esportivas poderão abater pena de presos. 2013. Disponível em: <http:// www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2013/02/21/interna_brasil,350659/atividades-culturais-eesportivas-poderao-abater-pena-de-presos.shtml>. Acesso em: 15 maio 2013. 272 BRASIL. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. MPDFT: recomenda adequações da remição de pena pelo estudo. 2013. Disponível em: <http://www.mpdft.gov.br/portal/index.php/comunicacao-menu/noticias/noticias2013/6007-mpdft-recomenda-adequacoes-da-remicao-de-pena-pelo-estudo>. Acesso em: 14 maio 2013.
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haver certeza de efetivo trabalho, bem como conhecimento dos dias trabalhados, em atividade ordenada e empresarial”.273 Como não poderia deixar de ser, a contagem do tempo a ser remido pelo estudo também anda gerando controvérsias na doutrina e na jurisprudência, sobretudo no que diz respeito ao tipo de atividade que pode ser considerada escolar. Como dito anteriormente, até o CNJ se manifestou sobre o assunto, colocando-o em discussão. Antes mesmo da edição da lei nova, Guilherme de Souza Nucci já fazia os seguintes questionamentos: “Computar-se-ia somente aula ou também as atividades extraclasse, como feitura de lições e exercícios? O estudo individual teria validade? Seria necessário atingir um mínimo de nota ou aprovação?”274 Parece-me que na doutrina o problema é aceito com mais largueza e tolerância. A maioria dos autores consultados entende que se deve abarcar o maior número de atividades “intelectuais” praticadas pelos apenados como sendo de cunho escolar. Para estes, até mesmo atividades como as artes marciais e similares, v.g., a prática de capoeira, teriam o condão de ensejar a remição pelo estudo. Na jurisprudência, contrariamente à concessão da remição nesses casos, trazemos à baila o RHC 113.769/RJ, em que o impetrante pleiteia a frequência em curso de capoeira para fins de remição penal. A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, negou o provimento ao recurso sob o seguinte argumento: [...] embora a prática da capoeira sirva para a reintegração do condenado ao convívio social, trata-se de arte marcial e não de atividade estudantil ou laborativa a possibilitar a remissão [sic] da pena, nos termos do art. 126, caput, da Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), na redação da Lei nº 12.433/2011.275
O § 2º do art. 126 da lei nova determina que o estudo será feito de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverá ser certificado pelas autoridades competentes dos cursos frequentados. Quanto a esse dispositivo, nos posicionamos analogamente a Lucas Corrêa Abrantes Pinheiro, que em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) entende ser de suma importância a concreta implantação dos métodos de ensino a distância nos estabelecimentos prisionais, para que sejam efetivos os fins da Lei nº 12.433/2011. Segundo o autor, seria uma revolução no sistema
273
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. São Paulo: Atlas, 1997. p. 294.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 570. 274
275 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso de Habeas Corpus. Ementa: [...]. RHC nº 113769/RJ. Segunda Turma. Relator(a): Min. Carmem Lúcia. Brasília, 11 de setembro de 2012. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/ urn:lex:br:supremo.tribunal.federal;turma.2:acordao;rhc:2012-09-11;113769-4250434>. Acesso em: 3 maio 2013.
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carcerário a instalação de cursos a distância via satélite, ainda mais levando-se em conta a facilidade e o relativo baixo custo da instalação desses cursos.276 A ideia apresentada vai ao encontro do que dispõe a Lei nº 12.245, de 24 de maio de 2010, que acrescentou o § 4º ao art. 83 da LEP, dispondo que, nos estabelecimentos penais, conforme a sua natureza, serão instaladas salas de aulas destinadas a cursos de ensino básico e profissionalizante. É bem verdade que a efetiva implantação do que dispõe a LEP não é realidade na maioria dos estabelecimentos prisionais do país, mas, ainda assim, é um avanço e uma esperança que não devemos perder de vista, para o bem da população carcerária. O § 3º dispõe que, se o preso trabalhar e estudar concomitantemente, a acumulação das horas será definida de forma a se compatibilizar. Não é por acaso que o legislador determinou o máximo de quatro horas diárias de estudo. Entendemos não ser problema a acumulação das horas diárias de trabalho e de estudo, já que, extramuros, a maioria das pessoas compatibiliza, até por necessidade, o labor com o estudo. Em artigo publicado no Boletim do IBCCRIM, Jamil Chaim Alves e outros alertam: [...] o cárcere deve reproduzir, tanto quanto possível, as condições existentes no mundo exterior, estimulando comportamentos que se esperam do detento quando em liberdade. Da mesma forma que as pessoas, na vida em sociedade, trabalham e estudam, é salutar que o preso seja incentivado a fazer o mesmo, reduzindo-se o período de ócio com vistas a sua ressocialização.277
No § 4º, assim como era previsto anteriormente com relação à remição pelo trabalho, o preso que por motivo de acidente se vir na impossibilidade de prosseguir no estudo continuará se beneficiando do instituto da remição. Se não por uma questão de justiça, por uma questão de direito. Uma inovação importante e que deverá servir de estímulo ao encarcerado para que prossiga nos estudos é o que vem disposto no § 5º do art. 126. Segundo o novo dispositivo, o tempo a ser remido será acrescido de 1/3 no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento de sua pena. Ressalte-se que o benefício só será concedido se a conclusão do curso for devidamente certificada pelo órgão competente do sistema de educação. Entendemos que com esse dispositivo visa o legislador a premiar aqueles encarcerados que se dedicam ao estudo como forma não só de remir sua pena, mas, para além disso, crescer intelectualmente. Isso não só melhora sua autoestima como aumenta
276 PINHEIRO, Lucas Corrêa Abrantes. A nova remição de penas. Comentários à Lei 12.433/2011. 2011. Disponível em: <http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=92055>. Acesso em: 10 abr. 2013. 277 ALVES, Jamil Chaim. Novas considerações sobre a remição pelo estudo. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, v. 15, nº 185, p. 17, 2008.
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sobremaneira suas chances de se ver, o mais breve possível, inserido no mundo extramuros com amplas possibilidades de autossustentação e independência. Outra inovação que afetará sobremaneira a execução da pena é a possibilidade de remição de pena por meio do estudo pelos encarcerados que cumprem pena em regime aberto e os que usufruem liberdade condicional. Quanto a este ponto, nos alongaremos no tema um pouco mais, devido à calorosa discussão existente na doutrina e na jurisprudência sobre a possibilidade, com base na analogia in bonam partem, de se estender o benefício aos apenados que laboram. Muitos operadores do direito estão temerosos quanto aos rumos que esse dispositivo inovador dará à execução penal. A questão premente é a possiblidade de surgirem precedentes para a inclusão do trabalho no referido dispositivo. Segundo Marcelo Rodrigues da Silva, essa inovação só fará com que se retome novamente a velha discussão que pairava sobre o antigo texto do caput do art. 126 da LEP, que só previa o trabalho como hipótese de remição. A “velha discussão” versava sobre a possibilidade, com base na analogia in bonam partem, de o preso que estudasse no cárcere poder remir parte de sua pena assim como os presos que trabalhavam. No nosso entendimento, o legislador poderia nos ter privado de mais uma controvérsia, que já criou uma demanda grande e que com certeza vai abarrotar mais ainda nossos tribunais, suprimindo o § 6º do art. 126 ou estendendo o benefício da remição aos condenados que trabalham e cumprem pena no regime aberto, bem como dos que usufruem liberdade condicional. Por fim, a remição pelo estudo aplicar-se-á às hipóteses de prisão cautelar e será declarada pelo juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa. No texto anterior do § 8º do art. 126, que versa sobre a declaração da remição, não havia a determinação da oitiva da defesa sobre a declaração dos dias remidos. Essa inovação permitirá uma adequada fiscalização da decisão que declara os dias remidos e elevou o defensor, em especial a defensoria pública, a verdadeiro órgão da execução penal.
Conclusão Ao final do presente trabalho, podemos concluir sem sombra de dúvidas que a inclusão da prática de atividade escolar como forma de remição de pena, na forma da Lei nº 12.433/2011, foi um marco na execução da pena privativa de liberdade, desde a edição da LEP em 1984. Como visto, esse era o anseio da maioria dos operadores do direito e, principalmente, dos milhares de apenados que cumprem pena nos diversos estabelecimentos prisionais do país e que, apesar das adversidades enfrentadas no cárcere, não abriram mão de seu direito à educação. Para esses apenados, a remição da pena pelo estudo representa não somente a possibilidade de terem suas penas abreviadas, o que já seria um grande estímulo, mas
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sobretudo uma possibilidade concreta de (re)ingressar à sociedade com melhores e maiores chances de inserção no mercado de trabalho. Feliz a decisão do legislador ao editar a Lei nº 12.433/2011, já que entendemos que a remição de pena pelo estudo ataca em duas frentes: o respeito ao direito do apenado à educação e a abreviação de seu tempo de cumprimento de pena. Como consequência, temos a melhora na qualidade de vida do apenado, que será estimulado a progredir no estudo, e o desafogamento dos estabelecimentos prisionais, já que com a remição, e dependendo de seu esforço, o preso alcançará num menor lapso de tempo a tão desejada liberdade. Pensamos que, daqui em diante, muitos apenados procurarão se engajar em atividades de cunho educativo, pois além de ser um instrumento para o seu crescimento pessoal e intelectual ainda será uma alavanca para abreviar o seu retorno à liberdade.
Referências ALVES, Jamil Chaim. Novas considerações sobre a remição pelo estudo. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, v. 15, nº 185, p. 17, 2008. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 269/2007. Disponível em: <http://www. camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=343218>. Acesso em: 17 fev. 2013. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 1.936/2007. Disponível em: <http:// www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=365741>.
Acesso
em: 17 fev. 2013. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 4.230/2004. Disponível em: <http:// www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=266055>.
Acesso
em: 17 fev. 2013. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 6.254/2005. Disponível em: <http:// www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=307622>.
Acesso
em: 17 fev. 2013. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 6.427/2009. Disponível em: <http:// www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=460146>.
Acesso
em: 17 fev. 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Atualizada até a Emenda Constitucional 72. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/ Constituicao.htm>. Acesso em: 17 fev. 2013.
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BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal - Exposição de Motivos, item 133. Brasília, 1984. BRASIL. Lei nº 12.245, de 24 de maio de 2010. Altera o art. 83 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal, para autorizar a instalação de salas de aulas nos presídios. Disponível
em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12245.
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O TRÁFICO DE MULHER ES PA RA FINS DE E XPLOR AÇÃO E COM ÉRC IO S EX UA L: A I NCOER ÊNCIA DA LEGIS LA Ç Ã O P E NAL BR ASILEIR A FRENT E A O PROTO COLO ADICIONAL À C ONV ENÇ Ã O D E PAL ER MO (DECR ETO Nº 5. 017/ 2004)
NATH Á LIA G O M ES O . D E CARVALHO
RESUMO O tráfico de pessoas é um crime multifacetado que vem tomando grandes dimensões não só no cenário nacional como também internacional. A desigualdade social e econômica, o desemprego, a pobreza e a falta de expectativa de melhoria de vida levam muitas mulheres a saírem do seu país em busca de uma melhor condição de vida, porém muitas delas não imaginam que serão aliciadas, exploradas, agredidas e, em casos mais graves, mortas. Quando chegam ao destino esperado se deparam com a falsa promessa dos aliciadores que agem em troca de vantagens e dinheiro decorrente do crime organizado. Diante desse contexto, o presente trabalho tem como objetivo apresentar o perfil do ilícito na legislação penal brasileira; uma análise comparativa entre o Código Penal Brasileiro e o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo; e a incoerência de tratamento dado ao delito no contexto pátrio em relação a este docu145
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mento internacional ratificado pelo Brasil, expondo algumas dificuldades enfrentadas pelo Estado no combate e prevenção ao delito e as fragilidades sofridas pela própria máquina estatal no que diz respeito ao controle e visualização do fenômeno por meio dos órgãos e estruturas responsáveis pela fiscalização e repressão. Palavras-chaves: Tráfico de mulheres; Exploração sexual; Comércio sexual; Direitos Humanos; Dignidade humana; Código Penal; Protocolo Adicional à Convenção de Palermo.
Breves Apontamentos O tráfico de mulheres para fins de exploração e comércio sexual reflete profundas contradições e distorções históricas acerca da relação de homens e mulheres com a natureza e a moral. [...] A prostituição florescia a olhos vistos no centro e na periferia do capitalismo. As mulheres, agenciadas por traficantes mundiais, seguiam o caminho dos recursos monetários para alimentar o desejo recém-liberado dos homens da belle époque. Com tempero moralista e higiênico, o combate ao lenocínio e à prostituição começou e ainda não terminou.278
Essa atividade ilícita está diretamente associada à prática da prostituição e pode ser considerada uma das formas mais explícitas de escravidão moderna que, embora tenha surgido há séculos, ainda é um problema e, por ser um fenômeno multifacetado, vem tomando enorme dimensão e repercussão nos dias atuais. Nas sociedades pré-históricas a sexualidade era vista como algo proveniente da divindade, concebida como coisa sagrada. A prostituição manteve o caráter religioso, sendo a Grécia o berço da prática da prostituição religiosa, em culto à fecundidade. A exploração de mulheres tem reflexos culturais e históricos. De acordo com Pierangeli, o lenocínio279 e a prostituição nasceram com a própria sociedade.280 O tráfico de mulheres, assim denominado anteriormente pela legislação brasileira, ganhou maior expressividade e atenção no final do século XIX e início do século XX. A partir desse período, as grandes cidades da América do Sul buscavam se apro278 LEAL, Maria Lúcia Pinto; LEAL, Maria de Fátima Pinto. O tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial: Um fenômeno transnacional. Disponível em: <http://www.smm.org.br/documentos/ TR%C3%81FICO%20DE%20MULHERES%20%20Um%20Fen%C3%B4meno%20Transnacional.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2010, p. 1. 279 Lenocínio é “toda ação que visa a facilitar ou promover a prática de atos de libidinagem ou a prostituição de outras pessoas, ou dela tirar proveito”. (FRAGOSO, Heleno C. Lições de Direito Penal, v. 3, 1965, p. 631). 280 PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte especial – arts. 121 a 361. 2ª ed. rev., atual., ampl. e compl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 503.
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ximar dos modelos europeus, sendo este um dos fatos que desencadearam a migração do Norte para o Sul do mundo. Historicamente, o tráfico internacional acontecia a partir do Hemisfério Norte em direção ao Sul, de países mais ricos para os menos desenvolvidos. Atualmente, no entanto, acontece em todas as direções: do Sul para o Norte, do Norte para o Sul, do Leste para o Oeste e do Oeste para o Leste. Com o processo cada vez mais acelerado de globalização, um mesmo país pode ser o ponto de partida, de chegada ou servir de ligação entre outras nações no tráfico de pessoas.281 Ao final do século XX, os movimentos migratórios se intensificaram e o Brasil passou a fazer parte da rota, tornando-se o terceiro polo de atração de migrantes, perdendo apenas para os Estados Unidos e a Argentina.282 A prostituição era considerada um mal social, bem como o tráfico de mulheres a ela ligado. Havia um especial interesse das famílias de higienizar as cidades com o consequente combate à prostituição e ao tráfico de brancas dela advindo, considerados fontes de doenças contagiosas, morais e físicas, e como violadores dos rígidos costumes que objetivavam preservar a moral sexual da mulher e da família.283 Nesse contexto, os valores defendidos nessa época eram os bons costumes, a moral, a honra sexual da mulher e da família, pois a moralidade sexual da mulher era vista com maior preocupação, já que viviam em situação de total submissão aos homens, eram desprovidas de direitos individuais e tinham que conter seus próprios desejos sexuais. A mulher desempenhava um papel estreitamente ligado à manutenção da honra e moral da sociedade familiar. Ao longo dos anos, com a mudança da sociedade e dos valores nela inseridos, certos conceitos foram tomando outra dimensão e importância e o próprio conceito de sexualidade foi se desenvolvendo. O mundo, no último século, viveu duas grandes guerras mundiais e assistiu à banalização da vida humana pelo genocídio perpetrado contra diversas minorias étnicas e grupos considerados inferiores na Europa, o que promoveu, principalmente após esse episódio, a valorização da vida de homens e de mulheres por meio da defesa do princípio da dignidade da pessoa humana.284
281 BRASIL. Ministério do Trabalho. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual – Brasil. Brasília: OIT, 2005. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/info/downloadfile.php?fileId=253>. Acesso em: 25 fev. 2011, p. 12. 282 MARREY, Antônio Guimarães; RIBEIRO, Anália Belisa. O Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. Disponível em: <http://www.iede.org.br/reid/arquivos/000152-04-antoniog.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2010, p. 48-49 283 SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Qual bem jurídico proteger: os bons costumes ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011, p. 99-100. 284
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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Não obstante significativas evoluções, a mulher encontra-se, ainda, em situação de vulnerabilidade em relação a diversos aspectos, dentre eles o sexual, conforme relatório sobre a "Situação da População Mundial em 2010", elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o qual indica que as mulheres são metade da população migrante em todo o mundo e cerca de 70 mil brasileiras trabalham como profissionais do sexo em outros países.285
Disciplina Legal do Delito no Contexto Pátrio Traficar significa negociar, comerciar, fazer negócios fraudulentos. O tráfico é considerado, portanto, uma modalidade de crime organizado transnacional,286 pois excede as barreiras de um único Estado,287 existindo na modalidade internacional e interna. O tráfico de seres humanos é uma atividade extremamente lucrativa que envolve baixos riscos,288 sendo, portanto, um fenômeno complexo e multifacetado. Isso dificulta a caracterização de suas ações e, consequentemente, sua repressão, uma vez que as vítimas se sentem amedrontadas em denunciar os aliciadores, pois temem sofrer algum tipo de represália. Aproximadamente em 2004, após a ratificação do Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940)289 sofreu modificações promovidas pela Lei nº 11.106/2005, a saber, o sujeito passivo do delito passou a ser qualquer pessoa e o tráfico interno de pessoas passou a ter previsão legal no art. 231-A.290 Atualmente, com a edição da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, o tráfico de pessoas, inserido no Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual –, encontra disposição expressa nos artigos 231 e 231-A do Código Penal e trata no seu primeiro artigo do tráfico internacional de pessoas e no segundo do tráfico interno de pessoas. 285 CAMARGO, Beatriz. Mulheres são mais vulneráveis à exploração sexual e ao trabalho forçado. Disponível em: <www.reporterbrasil.org.br/exige.php?id=725>. Acesso em: 4 abr. 2011. 286 DIAS, Claudia Sérvulo da Cunha (Coord.). Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Brasília: OIT, 2006, p. 10. 287 CASTILHO, Ela Wiecko V. A legislação penal brasileira sobre tráfico de pessoas e imigração ilegal/irregular frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-econteudos-de-apoio/publicacoes/trafico-de-pessoas/seminario_cascais.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2010. 288 LEAL, Maria Lúcia Pinto; LEAL, Maria de Fátima Pinto. O tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial: Um fenômeno transnacional. Disponível em: <http://www.smm.org.br/documentos/ TR%C3%81FICO%20DE%20MULHERES%20%20Um%20Fen%C3%B4meno%20Transnacional.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2010, p. 1. 289 BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Brasília. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 17 set. 2010. 290 PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte especial – arts. 121 a 361. 2ª ed. rev., atual., ampl. e compl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 522.
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Observa-se que a ação de "intermediar" foi retirada do núcleo da conduta prevista no caput, restando apenas “promover” e “facilitar”. Não obstante as significativas mudanças e o convencionado nos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, a finalidade do tráfico de pessoas continua sendo a exploração sexual de alguém e a proteção da moral pública e dignidade sexual, contexto que limita a extensão do dispositivo legal, uma vez que se detém a regular apenas a exploração sexual e não qualquer tipo de exploração humana.291 A conduta referente ao tráfico de mulheres é complexa e abrange vários núcleos. Para defini-los, utilizam-se como referência a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional Organizado e o seu Protocolo. Para configurar o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil, a PESTRAF teve como referência a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional Organizado (2000) e seu Protocolo para a Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Seres Humanos, especialmente Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo), para o qual [...] o tráfico de pessoas é o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o recolhimento de pessoas, pela ameaça de recursos, à força ou a outras formas de coação, por rapto, por fraude, e engano, abuso de autoridade ou de uma situação de vulnerabilidade, ou através da oferta ou aceitação de pagamentos, ou de vantagens para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração (art. 2º bis, alínea a).292
Inicialmente passa-se à análise do núcleo do tipo que tem como condutas "promover" e "facilitar", definidas no caput dos arts. 231 e 231-A. De acordo com Nucci, "promover significa ser a causa geradora de algo e facilitar, tornar acessível, sem grande esforço".293 Os artigos 231 e 231-A, em seus parágrafos primeiros, determinam que incorre nas mesmas penas quem “agencia”, “alicia” ou “compra” a pessoa traficada, bem como “transporta”, “transfere” ou “aloja”. Nucci define: 291 SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Qual bem jurídico proteger: os bons costumes ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011, p. 97. 292 LEAL, Maria Lúcia Pinto; LEAL, Maria de Fátima Pinto. O tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial: Um fenômeno transnacional. Disponível em: <http://www.smm.org.br/documentos/ TR%C3%81FICO%20DE%20MULHERES%20%20Um%20Fen%C3%B4meno%20Transnacional.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2010, p. 4. 293
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 957.
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Agenciar significa tratar de algo com representante de outrem; aliciar quer dizer seduzir ou atrair alguém para algo; comprar significa adquirir mediante entrega de um valor; transportar quer dizer conduzir alguém; transferir significa levar de um lugar a outro; alojar quer dizer dar abrigo.294
Observa-se, no entanto, que a redação do tipo definido no art. 231 do Código Penal não abarcou a conduta de "vender" a pessoa traficada, o que é previsto no art. 231-A, §1º.295 Outro ponto é o caráter subjetivo do delito, constituído pelo dolo ou vontade consciente de praticar a ação tipificada pelo ordenamento jurídico como tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Sobre esse aspecto, entende Damásio de Jesus que “O delito de tráfico de mulheres somente pode ser praticado de forma dolosa. O dolo pode ser direito (o agente quis o resultado "art. 18, I, primeira parte, do Código Penal) ou indireto (o agente assume o risco de produzir o resultado "art. 18, I, última parte, do Código Penal)".296 Não se exige, para configuração do delito, que o agente aja com o intuito de a mulher vir a prostituir-se, bastando que tenha conhecimento de que o deslocamento está sendo realizado com essa intenção. Com isso se alarga a possibilidade de incidência do tipo penal. Sendo o propósito de prostituição totalmente desconhecido do agente, haverá erro de tipo.297 Parece ser pacífico o entendimento de que o crime de tráfico de pessoas só é admitido na modalidade dolosa, uma vez que as condutas ou núcleos que compõem esse tipo penal necessitam da vontade do agente, seja de forma direta ou indireta. Impende ressaltar que as condutas "transportar", "transferir" e "alojar" demandam dolo direito do agente, sendo imprescindível o conhecimento da condição de pessoa traficada por parte do agente, sendo afastado, todavia, o dolo eventual.298 A ciência ou não da vítima no que diz respeito ao trabalho que será realizado no exterior ou no território de origem é aspecto de forte divergência doutrinária O doutrinador Cezar Roberto Bitencourt299 afirma que a vontade tem que ser consciente, isto é, a vítima deve estar ciente de que vai se entregar à prostituição no país ou estado destinado. Já para Pierangeli,300 o tipo subjetivo demanda um elemento 294
Ibidem, p. 959.
295
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 959.
296
JESUS, Damásio E. de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 99.
297
Ibidem.
298
NUCCI, op. cit., p. 959.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 3ª ed. rev., atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 76. 299
300
PIRANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte especial – arts. 121 a 361. 2ª ed. rev., atual.,
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especial, consistente no objetivo e propósito de que a pessoa desenvolverá sua atividade no país ou no exterior. Mediante análise das opiniões dos autores acima relacionados, pode-se inferir que a posição mais acertada é a do segundo doutrinador, pois as condutas descritas no Código Penal, em seus artigos 231 e 231-A, são promover e facilitar a entrada ou a saída de pessoa do território nacional com o objetivo de submetê-la à prostituição, com o intuito de aferir lucro ou vantagem no tráfico. Nessa baila entende Damásio de Jesus, com fundamento em José Carlos Gobbis Pagliuca e Celso Delmanto: Não há duvida, na doutrina, de que ‘não exige o conhecimento da mulher que a finalidade de sua entrada ou saída seja para prostituir-se’, bem como é indiferente o seu consentimento para a configuração do delito. Assim, se o deslocamento deu-se mediante fraude, ou mesmo com violência ou ameaça grave, desprovido, portanto, da anuência da vítima, o delito estaria configurado.301 [...] para a configuração do delito de tráfico de mulheres não há necessidade de que a vítima venha realmente a se prostituir. A lei se contenta com a ocorrência de seu deslocamento para tal finalidade. Isso faz com que se torne mais acentuada a diferença entre esse crime e as outras figuras típicas.302
Destarte, infere-se não ser necessária a ciência ou certeza de que a vítima vai entregar-se à prostituição – bastam o propósito e a verdadeira intenção do aliciador ou traficante de explorar sexualmente a vítima. O consentimento da vítima é, também, um aspecto de grande discussão e discrepâncias entre as normas que regulam esse assunto. A legislação brasileira, ao contrário do Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, considera irrelevante o consentimento dado pela vítima do tráfico, isto é, o crime de tráfico de pessoas se consuma independentemente da presença de coação, fraude, ameaça ou engano. A atual redação do caput dos artigos 231 e 231-A não faz menção a qualquer tipo de coação ou outro meio fraudulento com o escopo de induzir alguém a ingressar no tráfico de pessoas, diferentemente do disposto nos documentos internacionais, os quais determinam que, para a caracterização do delito, faz-se necessária a presença de fraude, ameaça ou violência.303 ampl., compl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 2, p. 524. 301
JESUS, Damásio E. de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 99.
302
Ibidem.
303
JESUS, Damásio E. de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 82
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Partindo da premissa que os bens jurídicos tutelados são tanto de natureza coletiva quanto individual, e a moral sexual juntamente com a liberdade individual e a dignidade humana são direitos indisponíveis e inalienáveis, mostra-se imperioso considerar irrelevante o consentimento e aceitação dados pela vítima, pois, como já anteriormente falado, a situação imposta por essa prática delituosa é de fraude. Desse modo, mesmo que tenhamos a anuência da vítima, a real noção das condições a que esta será submetida não é sabida. Além do mais, a vítima do tráfico se encontra em posição de vulnerabilidade e desvantagem em relação às condições de trabalho impostas pelos aliciadores.304 De acordo com o ordenamento jurídico pátrio, a existência de um desses meios é causa de aumento da reprimenda (artigo 231, §2º, IV) e não elemento do tipo. Ademais, o texto do art. 231-A, que trata do tráfico interno de pessoas, pode ser considerado uma extensão do tipo "favorecimento à prostituição", previsto no art. 228, que antes era utilizado para tipificar os casos de deslocamentos de prostitutas no interior do país.305 O § 2º dos artigos 231 e 231-A estabelece também a causa especial de aumento de pena, nos casos em que a vítima seja menor de 18 anos; seja enferma ou deficiência mental; não tenha o necessário discernimento para a prática do ato; caso o agente exerça influência moral sobre a pessoa traficada, como ascendente, madrasta, padrasto, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumir obrigação de cuidado, proteção ou vigilância sobre a vítima. Mediante detida análise das causas de aumento atinentes ao crime de tráfico de pessoas em comparação com o delito de rufianismo (art. 230, § 2º do CP), observa-se, como bem assinala Nucci, que Houve, ainda, falha na inserção da causa de aumento do inciso IV, por não se ter feito a expressa previsão de que, havendo violência, os crimes daí advindos seriam punidos separadamente, como realizado no rufianismo (art. 230, § 2º, CP).306 Portanto, em caso de violência, gerando lesões corporais, pune-se somente o tráfico de pessoas com a causa de aumento (há absorção das lesões pela figura do art. 231, § 2º, IV).307
304
JESUS, Damásio E. de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 82.
SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Qual bem jurídico proteger: os bons costumes ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011, p. 97. 305
306
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 959.
307
Ibidem.
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No que tange ao momento de consumação do crime de tráfico de pessoas, entende-se não ser necessário o efetivo exercício da prostituição para a consumação do delito de tráfico de pessoas, pois o que se analisa é o intuito do deslocamento.308 O crime, portanto, exige tão somente que o deslocamento da mulher tenha por propósito a prostituição. Havendo o seu efetivo exercício, exaurido estaria o crime, podendo o magistrado, por ocasião da aplicação da pena, levar esse fato em consideração, a fim de aumentar a reprimenda, com base no art. 59 do Código Penal.309 Segundo Damásio de Jesus, com fundamento no pensamento de Magalhães Noronha, “Trata-se de crime que admite fracionamento, podendo ser interrompido antes do momento consumativo e, assim, ser tentado”.310 O tráfico de mulheres admite duas modalidades de conduta: 1) promover a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro; 2) facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro.311 Segundo entendemos, promover significa “causar, diligenciar para que se realize”, enquanto facilitar tem por sentido "tornar mais fácil", auxiliando, ajudando ou desembaraçando.312 Diverge desse entendimento Heleno Cláudio Fragoso. Configuraria, em seu entendimento, o delito de favorecimento à prostituição (art. 228 do Código Penal).313 A finalidade do tráfico de pessoas, no âmbito da legislação nacional, é a prostituição ou exploração sexual de outrem com o intuito de obter lucro. Segundo afirma Ela Wiecko, "O exercício da prostituição não configura crime. Crime é explorar a prostituição alheia".314 Essa visão se mostra em total desacordo com o novo conceito de tráfico de pessoas incorporado nos documentos internacionais que visam à proteção da pessoa humana independentemente da forma ou modo de exploração sofrido.315 308
JESUS, Damásio E. de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 99.
309
JESUS, Damásio E. de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 101.
310
Idem, p. 102.
311
JESUS, Damásio de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 89.
312
JESUS, Damásio de. Direito penal: parte especial, 15ª ed., 2002, v. 3, p. 170.
313
Ibidem.
CASTILHO, Ela Wiecko V. A legislação penal brasileira sobre tráfico de pessoas e imigração ilegal/irregular frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-econteudos-de-apoio/publicacoes/trafico-de pessoas/seminario_cascais.pdf>. Acesso em: 17 maio 2011, p. 2. 314
315
Ibidem, p. 7.
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Como bem afirmam Sales e Alencar: A lei penal brasileira, em contrapartida, continua sendo moralista e em desacordo inclusive com a realidade do tráfico tanto interno quanto internacional.316 Assim, verifica-se que a norma penal pátria na atualidade não atinge o objetivo de punir de forma plena e dura os delitos de tráfico de seres humanos, tanto interno como internacional, da forma como é considerado pelo Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil.317
O delito previsto no artigo 231 do diploma penal pátrio tem por objeto a entrada e/ ou saída de pessoa do território nacional com intuito de exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, enquanto o crime descrito no artigo 231-A tem por finalidade o deslocamento de alguém, dentro do território nacional.318 Nota-se que o bem jurídico tutelado pelo direito penal pátrio é o pudor público e a dignidade sexual. Sendo assim, qualquer outra forma de exploração do ser humano que não seja sexual não se enquadra no crime de tráfico de pessoas, mesmo que a conduta abarque todos os núcleos definidos nos artigos 231 e 231-A.
Análise comparativa entre o Código Penal Brasileiro e o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo O primeiro ponto que merece análise é o núcleo da conduta definida como tráfico de acordo com o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo e o disposto no ordenamento pátrio. Nota-se que o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo define o delito de tráfico de pessoas em núcleos distintos que abarcam diversas condutas, sendo, portanto, um processo que ocorre em várias etapas, a saber, o recrutamento, o transporte, a
316 SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Qual bem jurídico proteger: os bons costumes ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011. p. 98. 317 SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Qual bem jurídico proteger: os bons costumes ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011. p. 98. 318
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 961.
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transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, utilizando-se qualquer dos elementos coercitivos.319 Em contrapartida, o Código Penal define o tráfico resumidamente em dois núcleos diversos: "promover" e "facilitar", estendendo o rol no parágrafo § 1º dos artigos 231 e 231-A do Código Penal. Impede inferir que, enquanto o documento internacional procurou abranger o máximo de condutas possíveis de forma a abarcar diversas ações e tornar a repressão mais eficaz, a legislação penal se vincula a condutas específicas, contribuindo, assim, para a impunidade de pessoas e grupos que exploram e se utilizam do serviço prestado em condições precárias e indignas.320 O consentimento da vítima do tráfico é diversamente abordado e entendido nessas duas normas jurídicas. O Protocolo Adicional à Convenção de Palermo considera relevante o consentimento dado pela vítima do tráfico nas hipóteses em que não houver a utilização de meios coercitivos e irrelevante se tiver sido usado qualquer um desses meios referidos no art. 3, alínea a do referido documento, qual seja: [...] ameaça, uso da força, outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.321
Em oposição, de forma mais acertada, a legislação penal brasileira vê o consentimento da vítima como um fator irrelevante para a configuração do delito, uma vez que tais meios de coerção são utilizados como causas de aumento de pena e não elementos do tipo. Destarte, a existência de fraude, coação e engano não é necessária para a configuração do delito, basta somente à promoção ou facilitação da entrada da mulher na prostituição. Sendo assim, aquele que promove ou facilita a entrada de mulher no território nacional ou estrangeiro, porém não utiliza de meios fraudulentos para conseguir o consentimento da vítima será enquadrado no delito de tráfico de pessoas.322 319 SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Tráfico de seres humanos: algumas manifestações. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/176570/1/000860617.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2011, p. 181. 320 SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Qual bem jurídico proteger: os bons costumes ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011, p. 91. 321 BRASIL. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Decreto-Lei nº 5.017, de 12 de março de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/ d5017.htm>. Acesso em: 18 maio 2011. 322
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O delito de tráfico de mulheres, para o ordenamento brasileiro, tem como finalidade precípua a defesa e preservação da dignidade sexual e o pudor público. Trata-se, portanto, de um crime contra a dignidade sexual, tendo a moralidade pública sexual e dignidade sexual como bens jurídicos tutelados. Enquanto a legislação penal brasileira continuar vinculando o tráfico de pessoas à prostituição, sem ampliá-lo, como fez o Protocolo de Palermo, para tipificá-lo como a exploração de alguém, realizando trabalhos em condições desumanas ou degradantes, deixará de proteger um bem jurídico que, se pesado com a moralidade pública sexual e os bons costumes, é bem mais valioso na nova ordem constitucional brasileira: a dignidade humana.323 O conceito de exploração contemplado em nossa legislação penal é distinto, dir-se-ia até restrito, quando comparada ao entendido pelo Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, uma vez que para o Protocolo Adicional a exploração incluirá, pelo menos, a exploração da prostituição/exploração sexual de outrem, isto é, outras formas de exploração são também abarcadas por esse documento internacional, como trabalhos forçados, práticas similares à escravidão, remoção de órgãos e servidão etc.324 No entanto, a legislação penal pátria restringe apenas à exploração sexual, excluindo completamente a proteção a outros tipos de exploração, o que traduz uma enorme incoerência com a evolução do conceito e regulamentação concernente de pessoas. Cabe observar ainda que os documentos internacionais, em especial o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, referem-se a condutas transnacionais, praticadas por grupos ou organizações criminosas, sendo o tráfico de pessoas um crime transnacional. Considerado atualmente uma das maiores ameaças à segurança humana, o crime organizado transnacional é um negativo e multifacetado que impede o desenvolvimento político, econômico, social e cultural da sociedade. Observa-se ainda que o ordenamento jurídico dos países democráticos também é afetado. Os criminosos aproveitam todas as brechas das normas jurídicas para burlar o aparato legal. Ainda mais: procuram internacionalizar suas ações em países nos quais as punições sejam leves e de preferência que não haja extradição. Dessa maneira, o fato de cada país ter a sua própria lei sobre o crime organizado dificulta o combate a essa ameaça mundial.325 ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011, p. 101. 323
Ibidem.
SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Tráfico de seres humanos: algumas manifestações. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/176570/1/000860617.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2011, p. 181. 324
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SANDRONI, Gabriela Araújo. A Convenção de Palermo e o crime organizado transnacional. Disponível em: <http://
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Nesse contexto, é evidente a necessidade de se estabelecer um acordo global para obstruir as atividades criminosas e aprimorar a cooperação internacional na investigação, detenção e indiciamento de suspeitos. Observa-se, então, que o Brasil e mais outros 123 países assinaram a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional em 2000 na Itália, mais conhecida como Convenção de Palermo.326 No âmbito nacional, o Código Penal Brasileiro prevê de maneira independente as figuras de quadrilha ou bando (art. 288 do CP) organizadas com o objetivo de cometer delitos, não existindo qualquer punição, face à inexistência de previsão legal, para os crimes de natureza transnacional.327 Afinal, existem diversas respostas e entendimentos para o que seria crime transnacional, porém, pode-se entender como sendo condutas antijurídicas tipificadas pelo Direito e realizadas por grupos específicos, organizados e hierarquicamente estruturados que ultrapassam as fronteiras e os limites de um Estado.328 Diante de todas as discordâncias entre a lei penal brasileira e as normas internacionais relativas ao assunto, verifica-se não existir um sistema de penas coerente. O tráfico de pessoas, em especial mulheres, constitui crime contra pessoa e afeta diretamente a dignidade humana, devendo ser punido de maneira mais eficaz e severa. Não há no nosso arcabouço jurídico penal um sistema de penas coerentes e proporcionais ao tipo de bem jurídico violado. Observa-se que o nosso ordenamento tem a tendência de punir, de maneira mais severa, os crimes contra o patrimônio, consistindo a maior parte dos crimes definidos em lei. As penas cominadas a esses tipos de delito são muitas vezes maiores do que as definidas nos crimes contra a dignidade sexual e até mesmo contra a vida, o que não deveria ocorrer em virtude da importância do bem jurídico que se pretende tutelar, visto que a vida, liberdade e dignidade são os principais valores inerentes à pessoa humana. É visivelmente compreendida tal ideia quando da análise do crime de tráfico interno de pessoas, que possui pena branda, de 2 (dois) a 6 (seis) anos de reclusão, e tráfico internacional de pessoas, cuja pena é de 3 (três) a 8 (oito) anos de reclusão, reprimenda insignificante frente a tamanha violação à pessoa.
ceeri.org.ar/trabajosestudiantes/Sandroni_CrimenOrganizadoInternacional.pdf>. Acesso em: 20 maio 2011, p. 3. 326
Ibidem.
CASTILHO, Ela Wiecko V. A legislação penal brasileira sobre tráfico de pessoas e imigração ilegal/irregular frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-econteudos-de-apoio/publicacoes/trafico-de-pessoas/seminario_cascais.pdf>. Acesso em: 17 maio 2011, p. 5. 327
328 SANDRONI, Gabriela Araújo. A Convenção de Palermo e o crime organizado transnacional. Disponível em: <http://ceeri.org.ar/trabajosestudiantes/Sandroni_CrimenOrganizadoInternacional.pdf>. Acesso em: 20 maio 2011, p. 8.
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Alguns aspectos de incoerência da legislação penal brasileira O direito penal, como bem define Nilo Batista, "é o conjunto de normas jurídicas que preveem os crimes e lhes cominam sanções, bem como disciplina a incidência e validade de tais normas, a estrutura geral do crime, e a aplicação e execução das sanções cominadas".329 O crime de tráfico de pessoas, previsto nos artigos 231 e 231-A do Código Penal Brasileiro, tem como escopo punir as condutas daqueles que incorrem nas ações descritas no tipo penal, de forma a enquadrar perfeitamente a conduta do agente à norma positivada e, consequentemente, aplicar sanções. A análise da norma em concreto tem de levar em conta os princípios constitucionais e gerais do ordenamento jurídico de modo a alcançar a verdadeira justiça. De acordo com Nilo Batista, "O direito penal existe para cumprir finalidades, para que algo se realize, não para a simples celebração de valores eternos ou glorificação de paradigmas morais".330 Nota-se que, não obstante todas as teorias e teses fundamentadoras do direito penal, na prática o que se observa é um sistema seletivo e incoerente que atende de forma desigual os sujeitos da relação jurídica. Segundo Nilo Batista, com fundamento no pensamento de Zaffaroni, “o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas”.331 Atendo-se ao crime de tráfico de pessoas e sua relação com os demais documentos internacionais que versam sobre o assunto, são nítidas as discrepâncias entre as normas, de forma a gerar óbices a atuação da pretensão punitiva do Estado. O constituinte originário estabeleceu preceitos e garantias constitucionais norteadores de todo o ordenamento jurídico, de modo que, para as normas infraconstitucionais terem validade, se faz necessária a observância desses conceitos. Mediante análise dos dispositivos legais do Código Penal, nota-se certa incoerência com preceitos e garantias constitucionais, uma vez que alguns princípios definidos pela Constituição não foram observados pelo legislador ordinário, na pretensão equivocada de se analisar a Constituição com base na norma infraconstitucional.
329
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 25.
330
Idem, p. 21.
331
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 26.
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Analisando sob o prisma internacional e levando em consideração o status de supralegalidade dos tratados e documentos internacionais que versam sobre direitos humanos, como atualmente decidiu a Suprema Corte332 ao serem ratificados pelo Brasil, são incorporados à legislação pátria e, com isso, devem ser cumpridos, de modo que haja adequação quanto à caracterização e posterior punição daqueles que incorrem nas condutas descritas no art. 231 e 231-A. A disposição dos artigos 231 e 231-A do Código Penal traduzem essa realidade controvertida, uma vez que estão inseridos no Título VI, que trata dos crimes contra a dignidade sexual, e não no Título I, que versa sobre crimes contra a pessoa, uma vez que tem como bem jurídico violado a dignidade da pessoa humana. Outro ponto que merece destaque é a regulação do tráfico apenas para fins de prostituição ou exploração sexual, em total desacordo com o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, que abrange quaisquer outras formas de exploração, a saber, trabalho forçado, remoção de órgãos, serviços forçados, escravatura ou práticas similares.333 Observa-se que, para haver sintonia com o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo e os demais documentos internacionais que versam sobre o tema, o Brasil precisa rever e repensar sua legislação penal de forma a melhor definir e punir o delito de tráfico de pessoas.334
Conclusão Ao longo do presente artigo, pôde-se verificar a trajetória do tráfico de pessoas e facilmente caracterizá-lo como um fenômeno multifacetado, fruto de distorções e desigualdades sociais e econômicas profundas. Esse fenômeno, no âmbito nacional, em especial, reflete a imensa fragilidade vivida pelo sistema estatal juntamente com a sociedade em reprimir tal prática. No decorrer dos séculos, percebeu-se que tal fenômeno ainda persiste e se amplia por diversas partes do mundo, valendo-se da facilidade em se manipular as vítimas e dos baixos gastos despendidos para tal prática, uma vez que a deficiência na fiscalização e a corrupção dos agentes responsáveis pela repressão ao tráfico facilitam a ação dos aliciadores. 332 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 466.343/SP. Tribunal Pleno. Recorrente: Banco Bradesco S/A. Recorrido: Luciano Cardoso Santos. Relator: Min. Cezar Peluso. Brasília, 3 de dezembro de 2008. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em: 25 maio 2011. 333 SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre. Qual bem jurídico proteger: os bons costumes ou a dignidade humana? Críticas à legislação sobre o tráfico de seres humanos no Brasil. Disponível em: <http://www. cnj.jus.br/dpj/cji/bitstream/26501/1924/1/Qual%20bem%20juridico%20a%20proteger_LiliaSales.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2011, p. 103. 334 CASTILHO, Ela Wiecko V. A legislação penal brasileira sobre tráfico de pessoas e imigração ilegal/irregular frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-econteudos-de-apoio/publicacoes/trafico-de pessoas/seminario_cascais.pdf>. Acesso em: 17 maio 2011, p. 10.
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A ideia atualmente difundida, ligada aos direitos humanos, de que toda pessoa é sujeito de direitos fundamentais, estes imprescritíveis, inalienáveis e indivisíveis, independentemente de sexo, cor, raça, religião, etnia e cultura, choca-se com a realidade de imensas desigualdades sociais e econômicas existente no cenário global, o que, de certa maneira, propicia o desenvolvimento de toda e qualquer forma de exploração de seres humanos. A visão da mulher como titular e detentora de direitos humanos está se fortalecendo e cada vez mais se propagando, fazendo oposição à realidade muito dura vivida por milhões de mulheres espalhadas pelo mundo que sofrem com a violência de seus companheiros, familiares, desprestígio do seu trabalho e situações de discriminação frente às relações de poder entre os homens. A dignidade humana surge como princípio renovador das esperanças de uma mudança do pensamento mundial e paradigma social vivido em todo o mundo, pois a discriminação do gênero torna-se propício ao desenvolvimento do tráfico de pessoas e da coisificação do ser humano, já que nas situações de exploração sexual as mulheres são vistas como meros objetos de prazer e submissão. Durante o presente estudo, pôde-se observar a evolução da legislação mundial frente ao problema do tráfico, bem como as alterações ocorridas na legislação nacional visando abarcar um número maior de condutas inerentes à exploração, de forma a melhor se aproximar da construção mundial a respeito do problema. Impende ressaltar a ratificação, pelo Brasil, do importante documento para o combate ao tráfico de seres humanos, a saber, Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, que melhor definiu o crime e serviu de base para a evolução de outras legislações mundo afora. Com isso, o Código Penal sofreu uma série de alterações importantes em seus dispositivos referentes à repressão ao tráfico, em face da necessidade de adequação aos documentos internacionais pelo Brasil ratificado. Contudo, mostra-se ainda incoerente em vários aspectos, não se adaptando à realidade social e cultural brasileira, o que ocasiona a deficiência no combate e punição ao tráfico de pessoas, em especial mulheres. Destarte, a sociedade e o Estado possuem papel fundamental na repressão ao tráfico, pois a ação desentrosada não gerará efetivos resultados no combate ao fenômeno complexo e multidimensional que perdura, durante séculos, em todo o mundo.
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O CR IME DE G ESTÃO T EM ERÁ RIA E O PR INCÍPIO DA L EGA LIDA DE: TEMER ÁR IA VAGUEZ A ?
JO SÉ C A R LO S V ELO SO FI LHO
RESUMO O crime de gestão temerária foi introduzido no ordenamento jurídico por meio do artigo 4º da Lei nº 7.492/86 e, desde a sua origem, suscita dúvidas quanto à sua aplicabilidade (em concreto), pois supostamente viola o princípio da legalidade (em abstrato) enquanto garantia individual, tendo em vista a possível vagueza das elementares que constituem o referido tipo penal. O problema central é apontar se os termos que constituem as elementares do crime são vagas ou não, atribuindo-se máxima eficácia às funções do princípio da legalidade. Com efeito, o objetivo geral do presente artigo é apresentar o constructo teórico sobre o princípio da legalidade. Por sua vez, os objetivos específicos se moldam a partir da análise sobre o crime de gestão temerária observar, ou não, a quarta função do referido princípio, consistente na proibição de normas penais incriminadoras vagas, imprecisas ou indeterminadas, tanto no momento de criação (Poder Legislativo) e aplicação (Poder Judiciário) da norma como no momento da punição do indivíduo (Poder Executivo/Sistema Penitenciário). Em síntese, a análise conclui se a possível (in)constitucionalidade do crime de gestão temerária causa temerária gestão nos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Palavras-chaves: Crime de Gestão Temerária; (In)Constitucionalidade; Tipo Penal Vago, Impreciso ou Indeterminado. 163
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JO S É C ARLO S VELO S O FI LHO
Introdução O crime de gestão fraudulenta foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio do artigo 4º da Lei nº 7.492/86. O tipo penal enuncia que gerir fraudulentamente instituição financeira sujeita o(s) autor(es) a uma pena de reclusão de três a doze anos e multa. Por sua vez, o crime de gestão temerária está previsto no parágrafo único do mesmo artigo. Em abstrato, estabelece uma pena de dois a oito anos e multa para a hipótese de a gestão ser temerária. A diferença fundamental entre os dois tipos penais é bastante sutil e, a priori, merece uma análise mais detida, justamente para que não se confundam ambas as condutas e não se crie uma ideia de que a possível (in)constitucionalidade do crime de gestão temerária se estende ao crime de gestão fraudulenta, seja em razão do sensacionalismo que se cria em torno da impunidade para os crimes de colarinho branco, seja pelo limite técnico-jurídico desta provável (in)constitucionalidade. A polêmica em torno do crime de gestão temerária surgiu com a publicação da Lei nº 7.492/86 e, desde então, a doutrina se dividiu quanto à questão de ser ou não constitucional o parágrafo único do artigo 4º do referido diploma normativo. Não obstante a divergência doutrinária, oportuno ressaltar que toda norma goza de presunção de constitucionalidade, enquanto o Supremo Tribunal Federal não a declarar inconstitucional por meio do controle concentrado ou, quando por meio do controle difuso, o magistrado apontar sua inconstitucionalidade para o caso concreto, são plenamente constitucionais as normas em vigor. Nesse sentido, o objetivo geral é apontar a possível (in)constitucionalidade do crime de gestão temerária – a despeito de a norma gozar de presunção de constitucionalidade – diante do princípio da legalidade. Em outras palavras, a partir das funções do princípio da legalidade, em especial a quarta, consistente na proibição de criação de normas penais incriminadoras vagas, imprecisas ou indeterminadas, apontar se o tipo penal observa o referido princípio. O princípio da legalidade consubstancia o substrato teórico para análise da (in) constitucionalidade da conduta típica nominada gestão temerária. Isso porque o Estado Democrático de Direito só pode ser exercido em sua plenitude quando os atores dos Três Poderes observam detalhadamente os princípios constitucionais, em especial o legislador, pois é o legítimo detentor do poder de elaborar normas penais incriminadoras. Em síntese, esse é o objetivo do presente artigo – pontuar tecnicamente se o crime de gestão temerária vai ou não ao encontro do princípio da legalidade (taxatividade), seja no momento de criação da norma penal incriminadora (Poder Legislativo), seja quando da aplicação do tipo penal em concreto (Poder Judiciário), seja no momento de executar a pena imposta (Poder Judiciário/Executivo – Sistema Penitenciário).
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O Princípio da Legalidade enquanto Garantia Individual: proibição de criação de normas penais incriminadoras vagas, imprecisas ou indeterminadas O princípio da legalidade é decorrência do processo histórico eclodido pela Revolução Burguesa e representa o principal fato para a configuração do fenômeno da positivação e publicização do Direito Penal. Não só o rompimento com as agruras do absolutismo monárquico, como o estabelecimento de uma nova ordem que se dirigiu para a afirmação das democracias ocidentais. Ao mesmo tempo, o princípio da legalidade é uma garantia do indivíduo perante o Estado, bem como delimita o espaço de atuação da coerção penal, pois aponta as fronteiras do poder punitivo estatal e desenha o espaço de liberdade do cidadão, apresentando especificamente as condutas proibidas ao detalhar as elementares dos tipos penais que, por via reflexa, indicam quais são os comportamentos individuais desejáveis. Em outras palavras, indica os comportamentos que são proibidos, sob o ponto de vista da função ético-social do Direito Penal, justamente para assegurar o campo de abrangência de liberdade do indivíduo. Portanto, o que não lhe for proibido por meio de lei (reserva legal), lhe é permitido realizar, seja enquanto ação ou omissão. Esse é o substrato teórico que sustenta e perpetua o sistema penal constitucional, afastando-se das várias arbitrariedades absolutistas que não proporcionavam segurança jurídica para os cidadãos e, a priori, disseminavam o temor social, pois não se sabia quais eram os limites da esfera de liberdade do indivíduo, arbitrariedades que se concretizavam por meio da vontade absoluta do monarca, sem qualquer amarra normativa. Nesse sentido é que Claus Roxin335 aponta o princípio da legalidade como o fator que confere previsibilidade à atuação do jus puniendi estatal e, por sua vez, Eugenio Raúl Zaffaroni336 agrega o aspecto subjetivo de proliferação do sentimento coletivo de segurança jurídica, pois, a partir do momento que os comportamentos são disciplinados por lei, de forma cônscia, o indivíduo pode (ou não) decidir realizar uma conduta, particularmente, sabendo quais serão as consequências nos estritos termos legais, ou seja, nem mais nem menos do que foi estabelecido reservadamente pela lei. Além de possibilitar o prévio conhecimento das condutas proibidas penalmente, crimes e suas respectivas sanções, Nilo Batista337 ressalta que o princípio da legalidade assegura ao indivíduo que, em concreto, não será submetido a procedimentos e penas 335 ROXIN, Claus. Iniciación ao Derecho Penal de Hoy. Tradução de Francisco Muñoz Conde e Luzon Peña. Sevilha: Universidade de Sevilha, 1981, p. 98. 336
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 5ª ed., 1986, p. 49.
337
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 9ª ed., 2004, p. 67.
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distintos dos que foram estabelecidos pela lei, especificamente porque a norma penal incriminadora é legítimo produto da atividade do Poder Legislativo. É nessa acepção que Cezar Roberto Bittencourt338 explana que o princípio da legalidade tem a função de orientar o legislador para impor limites à intervenção estatal nas liberdades individuais, pois o sistema de controle penal deve ser voltado para a consagração efetiva dos direitos humanos, a partir de um Direito Penal mínimo e garantista, bem como pautado na culpabilidade do indivíduo. A fórmula nullum crimen, nulla poena sine lege339 consagrou o princípio da legalidade nas democracias ocidentais, impondo-se como um vetor de imprescindível observância no momento de criação da norma jurídico-penal, não admitindo disparates ilegais na construção (Poder Legislativo), aplicação (Poder Judiciário) e punição (Poder Judiciário/Executivo – Sistema Penitenciário) das condutas proibidas. Na esfera penal, de maneira muito peculiar, o princípio da legalidade se traduz por meio de quatro funções básicas: proibir a retroatividade da lei penal; proibir a criação de crimes e penas pelo costume; proibir o emprego de analogia para criar crimes; e proibir incriminações vagas e indeterminadas.340 A última função é relevante para se detalhar a compreensão das elementares do crime de gestão temerária, pois está adstrita à análise da possível imprecisão dos termos que definem tal conduta proibida. Assim, oportuno enfatizar que a doutrina (mais qualificada)341 aponta o princípio da legalidade como uma garantia individual, pois impõe limites ao poder punitivo estatal, assegurando o respeito às liberdades individuais. De se notar, portanto, que as democracias ocidentais só atingem realmente o Estado Democrático de Direito quando conseguem implementar materialmente o princípio da legalidade, ou seja, observando suas decorrentes funções, em especial a de criar normas penais incriminadoras que sejam certas, precisas, determinadas, pois só assim é possível efetivar a função ético-social do Direito Penal. 338
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 15ª ed., 2010, p. 40.
Não há crime, nem pena, sem prévia lei. No ordenamento jurídico brasileiro, tal essência normativa está consagrada no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Nada obstante a doutrina “em peso” afirmar que Feuerbach criou a fórmula genérica, nullum crimen, nulla poena sine lege; válida é a crítica informativa de Nilo Batista ao apontar que Paulo João Anselmo Feuerbach articulou os seguintes enunciados: “nulla poena sine lege”, “nullum crimen sine poena legali” e “nulla poena (legalis) sine crimine”, pois adotava uma compreensão preventivo-geral da pena, traduzida como coação psicológica, justamente para reforçar seu caráter intimidatório. (BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 9ª ed., 2004, p. 66). 339
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BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 9ª ed., 2004, p. 68/83.
Nesse sentido: Luis Jiménez de Asúa; Manuel Atienza Rodriguez; Giuseppe Bettiol; Norberto Bobbio; Basileu Garcia; Aníbal Bruno; Francesco Carrara; Roberto Lyra Filho; Heleno Cláudio Fragoso; Celso Delmanto; José Frederico Marques; Luigi Ferrajoli; Eugenio Raúl Zaffaroni; Francisco Muñoz Conde; Luiz Luisi; Francisco de Assis Toledo; Juarez Cirino dos Santos; Franz von Liszt; E. Magalhães Noronha; João Mestieri; Edmund Mezger; Claus Roxin; Juarez Tavares; Tobias Barreto; e Cezar Roberto Bittencourt. 341
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Normas penais vagas são fatores perigosos para a efetivação das democracias ocidentais, pois a exigência de que o tipo penal seja certo, preciso e determinado é a predisposição para consagrar o princípio da legalidade como garantia individual, expurgando a possível regressão aos indesejáveis regimes absolutistas. Não é forçoso afirmar que a prática deliberada de criação de tipos penais vagos é comum aos regimes totalitários, pois "legitima" o Poder Judiciário a realizar perseguições políticas aos que se opõem ao regime. A história, inclusive a brasileira, está repleta de episódios dessa natureza. Natureza totalitária afastada no Brasil, ao menos formalmente, pela transição democrática. Promulgada a Constituição da República Federativa Brasileira, em 1988, conferiu-se ao princípio da legalidade contornos de garantia individual, pois se criou um direito subjetivo público no âmbito do Direito Penal. Consistente na acepção mais comezinha das democracias modernas, o Estado deve estabelecer, de maneira certa, precisa e determinada, as elementares de qualquer conduta proibida, dando-lhe a devida publicidade, exatamente para que possamos transitar no campo da liberdade realizando escolhas. O cidadão, enquanto detentor legítimo de garantias fundamentais, não pode estar à mercê do exercício do poder punitivo estatal, pois uma norma penal incriminadora imprecisa, vaga ou indeterminada ocasiona arbitrariedade em todas as esferas de poder, afrontando o princípio da divisão dos poderes, uma vez que possibilita ao magistrado o exercício aleatório de interpretações que não foram ou não são objeto da conduta que o legislador quis proibir ou, em última instância, possibilitando que o magistrado da execução penal individualize a pena de uma conduta, a priori, vaga, imprecisa ou indeterminada e, portanto, de encontro com o princípio da legalidade. Não se afirma com isso que o legislador não possa utilizar cláusulas gerais com carga valorativa, porém, é certo que deve evitá-las, em especial quando a indeterminação gera insegurança jurídica para os momentos de aplicação da norma (Poder Judiciário) e punição do indivíduo (Poder Judiciário/Executivo – Sistema Penitenciário). Cláusulas gerais valorativas compõem-se de elementos que não descrevem a conduta proibida de forma precisa. Portanto, ao indivíduo não é dada a oportunidade de escolha, justamente porque não sabe o que deve ou não deve realizar. Uma breve análise pode denotar a simplicidade dos argumentos expostos. No entanto, com o olhar mais acurado, os argumentos constituem um constructo histórico e, também, um teórico, ambos aptos a limitar o poder punitivo estatal e conferir legitimidade ao exercício do Direito Penal – aqui, portanto, o grau de complexidade e importância, uma vez que possibilita ao indivíduo ponderar sobre suas escolhas, cônscio da conduta proibida e de sua respectiva pena, bem como delimitar a ação dos Três Poderes. É nesse sentido que Luiz Luisi aponta o princípio da taxatividade, corolário do princípio da legalidade, como o postulado imprescindível a exigir e expressar "que as
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leis penais, especialmente as de natureza incriminadora, sejam claras e o mais possível certas e precisas".342 Necessidade que se impõe ao legislador, enquanto criador dos tipos penais. Por tal razão, "o princípio da determinação taxativa preside, portanto, a formulação da lei penal, a exigir qualificação e competência do legislador, e o uso por este de técnica correta e de uma linguagem rigorosa e uniforme”.343
O Crime de Gestão Temerária e o Princípio da Legalidade: tipicidade temerária? O detalhamento de todas as características que envolvem os tipos penais em foco não será objeto do presente tópico, pois o problema que se apresenta é pontual quanto à análise da tipicidade frente ao conteúdo do princípio da legalidade, tornando desnecessário discriminar os elementos que não se relacionam diretamente com a questão da tipicidade vaga, imprecisa e indeterminada, problema central que exige estudo das elementares dos crimes de gestão fraudulenta e de gestão temerária. Os crimes previstos no artigo 4º, caput, bem como no parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986, tutelam a proteção do patrimônio das instituições financeiras. Procuram disciplinar o comportamento dos gestores para que, em suma, realizem uma gestão hígida em prol dos investidores e das próprias instituições. Nesse sentido, a conduta típica prevista no artigo 4º da Lei nº 7.492/1986 apresenta as seguintes elementares: "Gerir fraudulentamente instituição financeira." O núcleo verbal gerir significa administrar, comandar, controlar, organizar, dirigir,344 ou seja, atos típicos de quem exerce a gestão dos negócios das instituições financeiras. A análise dos atos típicos realizados pelos gestores se realiza por meio dos mais diversos documentos (livros, registros, balanços, operações, serviços e quaisquer outras formas de comprová-los), tanto para o tipo penal previsto no caput do artigo 4º (gestão fraudulenta) como para o parágrafo único (gestão temerária) – aquele de uma maneira mais objetiva e este, por sua vez, muito mais impregnado de subjetividade. É necessário, ainda, que a gestão seja fraudulenta, conforme se infere do artigo 4º da Lei nº 7.492/1986, tratando-se do elemento normativo do tipo, pois exige um juízo de valor quanto à possibilidade de fraude que, de fato, caracteriza-se por meio de artifício, ardil ou malícia para obter qualquer vantagem indevida.345 342
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 18.
343
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 18.
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2009, p. 160. 344
345 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2009, p. 162.
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Por sua vez, o parágrafo único, ao prever a hipótese normativa de a gestão ser temerária, pretendeu significar o termo temerária no sentido de alcançar os atos caracterizados por condutas abusivas que ultrapassem os limites da prudência, ou seja, praticando atos que extrapolem o permitido no campo dos negócios (lucrativos), inclusive para indivíduos que sejam mais arrojados no trato de carteiras de investimentos. Traduz-se pelo comportamento arriscado, atrevido,346 sem preocupações com as oscilações e possíveis prejuízos decorrentes do livre mercado. A distinção entre gestão fraudulenta e temerária, de acordo com a construção doutrinária sobre a matéria, consiste no fato de que naquela praticam-se atos fraudulentos, ardilosos, "mascarados", justamente objetivando a ocultação de negócio ilegal, enquanto nesta os gestores submetem o patrimônio dos investidores e da própria instituição financeira a situações de risco excessivo, sem utilizar meios fraudulentos.347 Em outras palavras, na gestão fraudulenta o autor utiliza ardil, artifício, ou seja, ludibria utilizando meios que possibilitem encobrir a fraude. Na gestão temerária, em contrapartida, não há fraude, mas atos perdulários que colocam em risco os investimentos da instituição financeira. O sujeito atua de maneira deliberada executando operações de alto risco para o patrimônio alheio (da instituição e seus investidores).348 A distinção essencial entre uma conduta e outra reside, especificamente, na presença de ardil para cometer fraude na hipótese do crime de gestão fraudulenta que, a priori, não afronta o princípio da legalidade, pois o elemento normativo do tipo (fraudulentamente) é técnica consagrada e amplamente utilizada para a delimitação da tipicidade de inúmeros delitos na legislação brasileira. Porém, o mesmo não ocorre com a elementar temerária, pois o campo de abrangência da norma é totalmente vago, impreciso e indeterminado, dificultando, inclusive, as tarefas das agências policial, ministerial e judiciária. Postas as diferenças primaciais entre as condutas proibidas, retorna-se ao registro da quarta função do Direito Penal, enquanto proibição de criar normas penais incriminadoras. A despeito de a gestão temerária gozar de presunção de constitucionalidade, é oportuno explicitar que o crime não observa o princípio da legalidade (taxatividade), posto que a proposta de tipicidade revela alto grau de subjetividade, decorrente de termos vagos, imprecisos e indeterminados. Como discernir a temeridade da gestão de uma instituição financeira quando, em escala global, o efeito dominó da economia decorre de situações totalmente aleatórias e independentes da vontade e consciência dos gestores? Como comprovar o dolo (von346 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional – Comentários à Lei nº 7492. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 52. 347 TÓRTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional: uma contribuição ao estudo da Lei nº 7492/1986. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 3ª ed., 2011, p. 32/33. 348 Nesse sentido: Cezar Roberto Bitencourt; Luiz Regis Prado; José Carlos Tórtima; Manoel Pedro Pimentel; e Miguel Reale Júnior.
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tade e consciência) em atividades que essencialmente são produtoras e destinatárias de risco? Como delimitar a conduta de uma gestão que por ser arrojada tanto pode levar ao crescimento vultoso do patrimônio quanto pode gerar prejuízo? A natureza das atividades financeiras envolve risco e, por isso mesmo, não são aptas a configurar um crime de per si, pois o Direito Penal não pode desconsiderar o risco inerente ao exercício da gestão de instituições financeiras. Assim é que o legislador, ao incluir o parágrafo único ao artigo 4º, explicitou ausência de domínio da técnica jurídico-penal de produção legislativa, priorizando taxativamente tipos penais com termos precisos ou determinados e, consequentemente, inseriu um tipo penal vago que dissemina insegurança jurídica. O tipo penal nem sequer exige a necessidade de prejuízo. Assim, basta que o sujeito atue de forma temerária, seja lá o que isso signifique, para que estejam presentes as elementares aptas à subsunção de tal hipótese normativa. É bem peculiar, pois se o ato, a decisão ou a deliberação conjunta "temerária" (leia-se arrojada, aberta, que colocou em risco o patrimônio da instituição) triplicar o patrimônio da instituição financeira o gestor será considerado um herói, ao passo que se o mesmo ato, decisão ou deliberação conjunta ocasionar qualquer espécie de prejuízo o gestor se torna vilão. A proibição de criação de normas penais incriminadoras vagas, imprecisas ou indeterminadas destina-se a evitar que sejam criadas "temerárias" condutas proibidas, como a do crime de gestão temerária. O disparate legislativo é extremamente tacanho quanto ao domínio da técnica jurídico-penal, pois essa conduta, levada ao limite, consagra responsabilidade penal objetiva. O pressuposto é de que os gestores atuem de maneira a deliberadamente proporcionar lucro, aumento de patrimônio. No entanto, como na pós-modernidade a economia se realiza em escala global, inclusive com situações que colocam em risco os planos econômicos dos Estados, somente um gestor com capacidade de prever o futuro poderia delimitar todas as hipóteses que poderiam ocasionar prejuízo à instituição financeira. Nesse particular, reside o fundamento crítico sobre as elementares que constituem o crime de gestão temerária, pois o princípio da legalidade está a enunciar que os tipos penais devem ser certos, precisos ou determinados. Gerir de "maneira temerária" apenas reforça a insegurança jurídica decorrente do "temerário" tipo penal, pois a dificuldade em delimitar o significado do que é ou não "temerário" nos casos concretos ocorre diuturnamente no cotidiano do Poder Judiciário. O registro da proibição de criação de tipos penais vagos, imprecisos ou indeterminados se dirige ao Poder Legislativo. No entanto, nada impede que essa quarta função do princípio da legalidade se estenda aos momentos de aplicação da norma, bem como punição do autor.
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Se a elementar "temerária" implica vagueza (imprecisão ou indeterminação) ao tipo penal previsto no parágrafo único do artigo 4º da Lei nº 7.492/1986, em abstrato, não é forçoso afirmar que todos os atos decorrentes da aplicação de um tipo penal que não observa o mais comezinho princípio do sistema penal constitucional – legalidade – são todos eivados de flagrante atuação antidemocrática, configurando atos ilegítimos, apesar de formalmente legais. Assim é que o uso excessivo de termos que exigem complementação axiológica, nada obstante o seu uso moderado não constituir ofensa ao princípio da legalidade – o que não é o caso da "temerária" gestão temerária –, pode ser fator desencadeador de processos criminais de cunho totalitário, pois ao indivíduo não é dada a possibilidade de exercer plenamente sua defesa, uma vez que o tipo penal traz elementos vagos e imprecisos, os quais impossibilitam o exercício – substancial – da ampla defesa, pois não há como justificar as oscilações da economia em escala global, tema que se apresenta difícil até para os próprios economistas. A taxatividade enuncia, enquanto corolário do princípio da legalidade, que é defeso utilizar elementares imprecisas justamente para que o cidadão saiba o que pode ou não realizar. No crime de gestão "temerária", o espaço de liberdade não está delimitado – aliás, o tipo penal cria uma zona cinzenta que, a depender da sorte do gestor (leia-se: a depender da situação momentânea do mercado), tanto pode levá-lo ao céu quanto ao inferno, pois se o gestor triplicar o patrimônio da instituição financeira, voilà: temos um herói divino; porém, se ocasionar qualquer espécie de prejuízo, tem início a frenética caça às bruxas. É nesse sentido que a atuação do Poder Judiciário se torna "temerária", pois cabe ao magistrado verificar a zona cinzenta e, a partir de elementos probatórios, apontar se as ações do gestor colocaram ou não a instituição financeira em situação de risco. Cabe-lhe delimitar a fronteira sobre a previsibilidade do mercado realizando uma complementação com carga valorativa, isto é, ao interpretar o juiz tem que apontar até onde vai o risco natural permitido e, por sua vez, desvendar349 onde se inicia o risco intolerável, inadmissível.350 Essa é a dificuldade do Poder Judiciário que, a partir de um tipo penal vago, depara-se com situações que não permitem afirmar que o gestor está a praticar crime, pois a fronteira do tolerável e do inadmissível está à mercê das regras do jogo da economia global e, por esta razão mesma, envolve atividade de risco. 349 Nesse sentido, Luiz Régis Prado afirma que a melhor expressão para delimitar a fronteira do risco natural e do inadmissível não seria interpretar, mas sim “desvendar”. (PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2009, p. 163). 350 TÓRTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional: uma contribuição ao estudo da Lei nº 7.492/1986. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 3ª ed., 2011, p. 35/36.
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Klaus Tiedemann considera que o emprego de tipos penais vagos relacionados aos crimes contra o sistema financeiro restringe a liberdade de ação empresarial, pois a "proibição de executar certas ações corresponde à ideia de que o Direito não pode impedir que se produza um resultado danoso, senão somente que se levem a cabo ações perigosas".351 Atividade de risco envolve a possibilidade de resultados positivos ou negativos; portanto, o Direito Penal não tem como evitar a ocorrência do dano e, assim, ao incrementar a “caça” aos supostos praticantes do crime de gestão temerária, torna-se aleatório instrumento de punibilidade, daí porque a execução penal nessa hipótese é ilegítima, pois originada de um "temerário" elemento indeterminado. A quarta função do princípio da legalidade – proibição de normas penais incriminadoras vagas, imprecisas ou indeterminadas – gera uma reação em cadeia, pois a elaboração de um "temerário" tipo penal vago nas casas legislativas contamina o momento de aplicação da norma pelos magistrados, bem como a punição dos autores no curso da execução penal, os quais passam de heróis a vilões, pois sujeitos aos ventos da economia global.
Conclusão O objetivo do presente artigo foi analisar se o crime de gestão temerária, introduzido na legislação brasileira por meio do artigo 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, vai ao encontro – ou de encontro – com a quarta função do princípio da legalidade, pois desde a sua tipificação suscitou dúvidas quanto à sua aplicabilidade (em concreto), supostamente por violar o princípio da legalidade (em abstrato), garantia individual que está sempre a exigir a efetivação do Estado Democrático de Direito. Assim, distinções quanto às elementares do crime de gestão temerária e gestão fraudulenta foram apontadas, pois evitar confusões teóricas sobre a tipicidade de ambos os crimes se mostrou necessário, seja para evitar a falsa ideia de que a vagueza existente na gestão temerária não está presente no crime de gestão fraudulenta, seja para afastar qualquer possibilidade de aquiescência leviana em favor de atos fraudulentos contra o patrimônio de investidores e instituições financeiras. A gestão fraudulenta se configura por meio de fraude, isto é, artifício, ardil, engodo, quaisquer atos fraudulentos que constituam meios para obter vantagem indevida em desfavor de instituições financeiras. Já a gestão temerária não traz a exigência de fraude: basta apenas que os atos sejam temerários, intoleráveis, inadmissíveis.
351 TIEDEMANN, Klaus. Poder Económico y Delito: introducción al derecho penal económico y de la empresa. Barcelona: Ariel, 1985, p. 33/34.
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A intenção do legislador foi deliberada quanto à exigência de fraude no caput do artigo 4º da Lei nº 7.492/1986 (gestão fraudulenta). No entanto, no parágrafo único do mesmo artigo, teve a intenção de reforçar a interpretação do julgador que, de forma complementar, deve apontar quais são os atos temerários praticados pelo gestor. Em outras palavras, indicar quais são os atos que extrapolam o risco permitido, tolerável, desejável, os atos que colocaram o patrimônio dos investidores e da instituição financeira em situação de risco. Como estabelecer a abrangência de tal norma se a elementar "temerária" robustece a vagueza, a imprecisão temerária do termo que está a exigir alto grau de subjetividade do julgador? Aliás, como tipificar uma conduta que, por essência, envolve atividade de risco? Sem dúvida, a quarta função do princípio da legalidade não é observada, pois insere crime eivado de vagueza conceitual, função que está a exigir sua observância, inclusive, para a consagração material do Estado Democrático de Direito, como se ousa reforçar. Juízo de valor no âmbito da técnica do Direito Penal esbarra em amarras normativas estabelecidas pelo próprio campo jurídico. Assim é que o registro da quarta função impede que se aceite de maneira acrítica o crime de gestão temerária, não só como constitucional, mas como legítimo. A proibição de criação de normas penais incriminadoras está a exigir um comportamento pontual do legislador; portanto, ao lançar mão de um termo temerário tão indeterminado quanto o significado de "temerário" para coibir condutas dos gestores das instituições financeiras, no limite, está a inviabilizar a própria atuação empresarial dos que se dedicam às atividades financeiras, em especial para o crescimento destas instituições. O risco é inerente ao exercício de atividades de gestão. Assim, apontar o que vem a ser um ato pautado em temeridade apto a colocar a instituição financeira em situação possivelmente prejudicial também traduz ofensa ao registro da quarta função do princípio da legalidade, pois a tipificação da conduta passa a estabelecer aos julgadores que decidam com fundamento na mais temerária arbitrariedade. Isso porque o gestor pode praticar deliberadamente um ato visando ao lucro e, portanto, crescimento do patrimônio e, sujeito às oscilações da economia global, tanto realmente gerar um lucro vultoso para a instituição financeira, quanto ocasionar um prejuízo sem precedentes. Arrisca-se, portanto, a vestir o uniforme do despojado herói financeiro ou, em contrapartida, a máscara do mesquinho vilão imprudente. Com efeito, se o intuito do legislador foi coibir a prática da criminalidade moderna contra o sistema financeiro, a máxima eficácia da quarta função do princípio da legalidade só será alcançada com a adequação de termos que não deixem ao alvedrio do julgador desvendar se o ato de gestão praticado foi ou não temerário, sobretudo considerando-se a economia global premissa do êxito ou não do ato de gestão.
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Em síntese, a quarta função, princípio da legalidade, operando no registro da proibição de normas penais incriminadoras vagas, imprecisas ou indeterminadas, apenas proporciona insegurança jurídica ao tipificar a conduta "gestão temerária", pois nos momentos de criação (Poder Legislativo) e aplicabilidade (Poder Judiciário) da norma e, até mesmo, no momento da punição do indivíduo (Poder Executivo/Sistema Penitenciário), a flagrante inconstitucionalidade do delito de gestão temerária causa temerária gestão nos Três Poderes da República.
Referências BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 9ª ed., 2004. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 15ª ed., 2010. LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991. PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional – Comentários à Lei nº 7492. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2009. ROXIN, Claus. Iniciación ao Derecho Penal de Hoy. Tradução de Francisco Muñoz Conde e Luzon Peña. Sevilha: Universidade de Sevilha, 1981. TIEDEMANN, Klaus. Poder Económico y Delito: introducción al derecho penal económico y de la empresa. Barcelona: Ariel, 1985. TÓRTIMA, José Carlos. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional: uma contribuição ao estudo da Lei nº 7492/1986. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 3ª ed., 2011. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 5ª ed., 1986.
DU RAÇÃO R AZOÁVEL D O PROC ES S O: ANÁL I SE DE SEUS PR E S S UPOS T OS E CO N T RIBUIÇÃO PAR A DEFINIÇ Ã O D E PAR ÂMETR OS OB J ET IV OS
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RESUMO O presente artigo tem por finalidade avaliar o mais recente direito e garantia individual reconhecido pela Constituição de 1988, qual seja, a garantia da duração razoável do processo, especificamente, sob o ângulo do processo penal. Diante da incerteza quanto à definição do tempo razoável, o artigo pretende contribuir para a definição de um parâmetro razoavelmente objetivo, especificamente para a prisão preventiva. Palavras-chaves: Processo Penal; Prisão; Duração razoável.
352 Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Mestrando em Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Professor de Direito Penal e Processo Penal do Centro Universitário de Brasília. Autor de Princípios Constitucionais do Processo Penal Brasileiro.
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Introdução O direito a julgamento de prazo razoável é tema bastante importante e também carente de uma definição precisa. Muito embora esse direito, atualmente, alcance todos os processos, o presente artigo buscará analisar o referido direito especialmente nos processos de natureza criminal. No âmbito do processo penal, esse tema já vem sendo trabalhado por diversos autores, mas em especial pelos professores Aury Lopes Júnior e Gustavo Badaró,353 que dedicaram importante artigo a respeito desse tema. Assim, o presente artigo buscará expor brevemente as suas ideias, analisar a viabilidade de sua admissão pelos Tribunais Superiores, bem como oferecer uma contribuição para o debate do tema.
Fundamentos Os fundamentos para o julgamento em prazo razoável remontam à Declaração Universal dos Direitos do Homem e Cidadão (1948). Ainda no âmbito internacional, há a previsão na Convenção Europeia para Proteção de Direitos Humanos e das Liberdades,354 bem como o próprio Pacto de San Jose da Costa Rica.355 No mesmo sentido, as disposições constantes no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, preveem: “No ordenamento jurídico pátrio, o artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Brasileira trazido pela EC 45/2004 estabeleceu a garantia individual do julgamento prazo razoável: [...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”356 353 LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. 354 “Art. 6º, § 1º: Toda pessoa tem o direito a que sua causa seja ouvida com justiça, publicamente, e dentro de um prazo razoável por um Tribunal independente e imparcial estabelecido pela lei, que decidirá sobre os litígios, sobre seus direitos e obrigações de caráter civil ou sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.” “Art. 5º, § 3º: Toda pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1º, c, do presente artigo, deve ser trazida prontamente perante um juiz ou um outro magistrado autorizado pela lei a exercer a função judiciária, e tem o direito de ser julgado em um prazo razoável ou de ser posto em liberdade durante a instrução. O desencarceramento pode ser subordinado a uma garantia que assegure o comparecimento da pessoa à audiência.” 355 “Art. 7, parágrafo 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.” “Artigo 8, parágrafo 1: Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.” 356 “Art. 9º, nº 1: Qualquer pessoa, presa ou encarcerada em virtude de infração penal, deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou outra autoridade habilitada por lei a exercer as funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá
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Algumas Observações Preliminares Deve-se, desde já, registrar que o direito à duração razoável do processo tem o inconveniente de lidar com dois conceitos indeterminados, quais sejam, a própria definição ou convenção do termo tempo e duração razoável. Não se pode deixar de destacar alguns pontos, como a necessidade de equilíbrio entre a morosidade do processo tipo tartaruga e a aceleração indevida do processo lebre, segundo palavras do próprio Aury Lopes Júnior, pois se a demora do processo pode ser considerada uma punição autônoma e ilegítima a aceleração antigarantista é o atropelo de direitos fundamentais.357 Além disso, também não pode deixar de mencionar que há por parte da acusação o direito legítimo de acusar aqueles que preenchem os requisitos legais para a denúncia. Ademais, discussão a respeito da duração razoável do processo penal ainda tem uma repercussão ainda maior quando se trata de réu que está submetido à prisão preventiva ou outra medida cautelar agora trazida pela Lei nº 12.403/2011, que estabeleceu para o Direito Penal uma série de medidas cautelares diversas da prisão preventiva. Definir um parâmetro objetivo para duração da prisão e do próprio processo é um grande desafio e é o que se pretende sugerir ao final.
O Tempo e o Processo De plano, devem-se tecer algumas considerações em relação ao primeiro dos termos imprecisos para a interpretação do direito à razoável duração do processo, qual seja, o tempo. Recorrendo-se ao Dicionário de Filosofia, foram encontradas três acepções fundamentais para o conceito de tempo: 1) Tempo como ordem mensurável do movimento; 2) Tempo como movimento intuído; e 3) Tempo como estrutura de possibilidades.358 A primeira acepção, sem dúvida alguma, é a mais difundida, pois pressupõe uma ordem e uma uniformidade, sem relação com nada externo, ou seja, é o tempo do calendário. Einstein e sua Teoria da Relatividade, por sua vez, não inovaram no conceito tradicional de ordem de sucessão, mas negaram que a ordem de sucessão fosse única e absoluta, uma vez que dois eventos simultâneos para determinado sistema de referência poderiam não ser simultâneos para outro sistema de referência.359 constituir regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, à execução da sentença.” 357 LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 40. 358
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. Martins Fontes.
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Idem. p. 1117.
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Já a acepção de tempo como intuição do movimento ou de dever intuído atribuída a Hegel reduz o tempo à consciência. Diferencia-se da primeira acepção, uma vez que o tempo da ciência é espacionalizado, representado por uma linha imóvel. Todavia, o tempo, para essa acepção, seria móvel, num processo contínuo de criação.360 Por fim, a terceira acepção, desenvolvida por Heidegger na obra Ser e tempo, transforma o tempo em uma estrutura de possibilidades, estabelecendo entre os eventos do passado, presente e futuro não uma relação de necessidade, mas de possibilidade, o que auxiliaria na explicação da teoria da relatividade de Einstein. O tempo seria considerado um círculo, "em que aquilo de que se tem perspectiva no futuro é aquilo que já foi; por sua vez, o que já foi é aquilo de que se tem perspectiva para o futuro".361 É claro que, diante dos limites do presente artigo e principalmente pelos limites do Autor, não se pretende instaurar um debate filosófico a respeito do conceito de tempo. Busca-se apenas indicar que uma acepção linear e absoluta de tempo não é o único critério existente. Além disso, como se verá abaixo, muito da discussão a respeito da razoabilidade ou não do tempo do processo ou de prisão de um acusado apenas concretizam o debate filosófico a respeito do conceito de tempo. Aury Lopes Júnior e Gustavo Badaró, da mesma forma, iniciam sua reflexão no texto mencionado expondo brevemente a acepção filosófica do tempo.362 No texto, eles informam, com maior propriedade, a dicotomia existente entre a acepção linear e relativa de tempo.363 O conceito linear de tempo, baseado nas ideias de Isaac Newton – é o tempo contado a partir do calendário, contado em dias, meses e anos, critério este adotado pelo Direito Penal para a definição das penas mínima e máxima. Em Newton, o tempo é linear, absoluto e universal. Ao lado desse conceito, tem-se aquele baseado na Teoria da Relatividade de Einstein, no qual o tempo se relativiza, ou seja, tempo seria a medição do movimento, mas também dependeria da posição do observador ou do sistema de referência eleito.364 Transferindo essa apreensão para o direito, pode-se concluir, sem muita dificuldade, que o tempo fora da prisão ou sem estar submetido a um processo penal correria de maneira mais rápida que o tempo na prisão. Com isso, os autores propõem que a execução da pena e o próprio processo deveriam trabalhar com o conceito de tempo baseado na Teoria da Relatividade de Einstein.
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ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. Martins Fontes. p. 1116.
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ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. Martins Fontes. p. 1116
LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, 362
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Idem.
LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, 364
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Não que isso tenha sido uma intenção deliberada do legislador, mas a concepção relativa de tempo já parece influenciar a execução da pena, tendo em vista o sistema progressivo de cumprimento de pena. Afinal, o sistema eleito pelo Código Penal admite a progressão de regime com o cumprimento parcial da reprimenda. Fosse o tempo considerado linear e absoluto, talvez o sistema progressivo não fosse admitido. Por outro lado, os críticos do sistema progressivo – especialmente o senso comum – podem ser enquadrados entre aqueles que defendem um conceito absoluto de tempo, ou seja, consideram os 10 anos de pena a que foram condenados o réu, da mesma forma que os 10 anos fora da prisão. Ademais, aliado à natureza absoluta de tempo, tem-se que muitos dos que defendem o cumprimento de determinada pena em regime exclusivamente fechado – como era a redação inicial da lei dos crimes hediondos – podem ainda ser enquadrados na terceira acepção de tempo, aquela que o define como uma estrutura de possibilidades, em que "o que já foi é aquilo de que se tem perspectiva para o futuro". Ou seja, como no passado o réu cometera um crime hediondo, por exemplo, o que se pode esperar do futuro é que ele possa reincidir. Assim, quanto mais tempo ficar preso tanto melhor para a sociedade. Ultrapassada minimamente a discussão filosófica a respeito do conceito de tempo e posicionando a sua discussão em relação ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade, pode-se agora enfrentar a interpretação da duração razoável do processo.
Do Processo Penal como Forma de Constrangimento Legal ou Ilegal Submeter um réu a um processo, sem dúvida, pode ser considerado uma forma de constrangimento, constrangimento este que se dá de maneira legítima caso haja indícios concretos para a acusação. Ocorre que esse constrangimento, inicialmente, legal, pode se tornar ilegal, caso o processo ou a prisão processual ultrapasse o tempo considerado razoável. Dentre os constrangimentos que um processo em curso pode gerar para o acusado pode-se destacar: óbice ou algum tipo de constrangimento à participação em concurso público,365 especialmente naqueles que preveem prova oral366 ou a contra-
365 Muito embora a questão esteja relativamente pacificada no STF (REs 424.855 e 559.135), quando a impossibilidade de se impedir a participação em concurso público daquele que tenha contra si processo penal em curso, não é incomum que a exigência de “nada consta” criminal seja feita em editais de determinados concurso públicos. 366 No caso da prova oral, como ela normalmente é a última fase do concurso, notadamente após a sindicância da vida pregressa, muito embora o processo penal em curso não seja óbice à aprovação, não há como negar a possibilidade dessa circunstância gerar uma indisposição nos examinadores.
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tação na esfera privada;367 restrição à disponibilidade de bens em caso de decretação de cautelar com esse escopo; estigmatização pela eventual exposição na mídia, com repercussões negativas para a família;368 risco concreto do processo em curso ser considerado mau antecedente369 ou mau comportamento social;370 óbice à aplicação do princípio da insignificância, como ocorre no caso do crime de descaminho.371 Não indicando propriamente todas essas repercussões, os autores já citados entendem que a duração desarrazoada do processo ocasiona ofensa aos princípios da jurisdicionalidade,372 pois impõe pena sem sentença. Além disso, seria uma ofensa também à própria presunção de não culpabilidade, à ampla defesa e ao contraditório. Indicam também, aqui sem a nossa concordância, que a duração desarrazoada do processo levaria à perda de prestígio da tese da defesa.373 Diante disso, os autores propõem alguns critérios para a definição do prazo para julgamento em prazo razoável.
Critérios Atuais para Definição de Prazo Razoável Predomina na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a doutrina do não prazo fixo para duração da prisão processual,374 não havendo manifestação específica em relação ao curso do processo em si. 367
Na esfera privada, os óbices a quem tem um processo penal em curso dificultam o acesso a determinadas funções.
Já há muito o tema processo penal e mídia vem instigando os doutrinadores da área penal. A ausência de uma política de divulgação por parte da polícia, Ministério Público e Judiciário pode levar à condenação antecipada dos acusados, especialmente quando o julgamento se dá pelo tribunal do júri. 368
369 Os processos penais em curso como configuradores ou não de maus antecedentes tiveram a repercussão geral reconhecida no Recurso Extraordinário nº 591.563. O min. Ricardo Lewandowski, exemplificadamente, entende que os processos em curso podem, sim, ser considerados maus antecedentes. 370 Este último, muito embora rechaçado nos tribunais, ainda se vê aplicado no âmbito da Justiça de primeira instância. 371 A Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do delito de descaminho (CP, art. 334), no qual se pretendia o trancamento de ação penal, por atipicidade da conduta, com base na aplicação do princípio da insignificância, pois o tributo devido seria inferior a R$ 10.000,00. Considerou-se que, embora o tributo elidido totalizasse R$ 8.965,29, haveria a informação de que o paciente responderia a outro processo “como incurso no mesmo tipo penal”, cujo valor não pago à Fazenda Pública, considerados ambos os delitos, seria de R$ 12.864,35. Destacou-se estar-se diante de reiteração de conduta delitiva, pois o agente faria do descaminho seu meio de vida, daí a inaplicabilidade do referido postulado. O min. Marco Aurélio, relator, enfatizou seu convencimento no sentido de que, sendo o montante superior a R$ 100,00, caberia concluir-se pela tipicidade. HC 97257/RS, rel. Min. Marco Aurélio, 5.10.2010 (HC-97.257). 372 LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 40. 373 A discordância na hipótese fundamenta-se no fato de que o tempo pode levar ao próprio esquecimento do fato, um dos fundamentos da prescrição penal. 374 [...] 1. O Supremo Tribunal Federal entende que a aferição de eventual excesso de prazo é de se dar em cada caso concreto, atento o julgador às peculiaridades do processo em que estiver oficiando. 2. No caso, a custódia instrumental dos pacientes já ultrapassa 7 (sete) anos, tempo superior até mesmo a algumas das penas do Código Penal. Prazo alongado esse que não é de ser debitado decisivamente à defesa. 3. A gravidade da imputação não obsta o direito subjetivo à razoável duração do processo (inciso LXXVIII do art. 5º da CF). 4. Ordem concedida.
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Com base nessa posição, há algumas propostas para definição de parâmetros para definição do quem viria a ser prazo razoável. Ao tempo da vigência do revogado procedimento comum ordinário, a doutrina defendia que o prazo razoável de duração do processo, estando o réu preso, seria de 81 dias para julgamento do processo. Esse parâmetro decorria da contagem dos prazos estabelecidos no Código de Processo Penal para quando o réu estava preso. Além disso, foi previsto expressamente no artigo 8º da Lei nº 9.034/95 – Lei das organizações criminosas.375 Àquela época, contudo, essa visão não era pacífica e a jurisprudência estabelecia uma série de mitigações à obrigatoriedade desse prazo, com a edição das Súmulas 21, 52 e 64 do Superior Tribunal de Justiça.376 Com a mudança do procedimento comum ordinário, que alterou os prazos do procedimento comum ordinário, bem como a partir da mudança constitucional acima mencionada, o pouco prestígio conferido ao mencionado prazo de 81 dias deixou de existir de vez, até porque a contagem dos prazos se modificou com as novas fases do procedimento comum ordinário. O que se encontra na jurisprudência são parâmetros para o julgamento em prazo razoável, especialmente quando o acusado está submetido à prisão preventiva, levando, em caso de irrazoabilidade, a liberdade do acusado. Os parâmetros para definição da razoabilidade do processo, estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foram sintetizados pelos autores.377 Existe o parâmetro estabelecido em sete critérios e também em três. Este último seria o mais aplicável, ou seja, a razoabilidade do prazo do processo seria definida com base nos seguintes critérios: 1) complexidade do caso; 2) atividade processual do imputado; 3) a conduta das autoridades judiciárias, mais o princípio da proporcionalidade. Com isso, sendo a causa complexa ou o imputado contribua para a demora do processo ou mesmo em caso de excesso de processos sob a responsabilidade do juiz, essas circunstâncias poderiam levar a uma demora do processo.
(HC 102.668, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 05/10/2010, DJe-020 DIVULG 31-012011 PUBLIC 01-02-2011 EMENT VOL-02454-03, PP-00632). 375 Art. 8º O prazo para encerramento da instrução criminal, nos processos por crime de que trata esta Lei, será de 81 (oitenta e um) dias, quando o réu estiver preso, e de 120 (cento e vinte) dias, quando solto. 376 Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo. (Súmula 52, terceira seção, julgado em 17/09/1992, dj 24/09/1992 p. 16.070). Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução. (Súmula 21, terceira seção, julgado em 06/12/1990, dj 11/12/1990 p. 14.873). Não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela defesa. (Súmula 64, terceira seção, julgado em 03/12/1992, DJ 09/12/1992 p. 23.482). 377 LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 40.
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Da Análise dos Critérios Atuais Ao analisar os critérios propostos, tem-se a indeterminação do conceito de complexidade, pois se os próprios substantivos já admitem uma ampla subjetividade do intérprete, imaginem os adjetivos. Ou seja, o que seria um processo complexo? Na jurisprudência, encontra-se como sinônimo de complexidade o processo com muitos réus, ou ampla necessidade de produção de provas. Como se pode ver, não há a mínima objetividade nesse parâmetro. As dificuldades prosseguem no segundo critério, pois, segundo consta, a atividade probatória do réu poderia justificar a extensão do prazo de duração do processo, ou mesmo da prisão preventiva ou submissão a outras cautelares. Daí fica a questão: como o réu pode ser punido pelo exercício de um direito constitucionalmente assegurado, no caso, a ampla defesa? Parece que a resposta a essa questão estaria no abuso do direito de defesa por parte do réu, mas que deveria estar comprovado nos autos. Por fim, em relação ao excesso de demanda do poder judiciário, este seria um problema do Estado que, em tese, não poderia repercutir de maneira negativa para o réu, ainda mais como justificativa para a demora da prisão do réu. Enfim, muito embora seja digno de elogio o esforço para o estabelecimento de critérios para a definição do prazo razoável, nota-se que estes ainda são excessivamente subjetivos para concretização da garantia constitucional da duração razoável do processo. Feito esse registro a respeito dos critérios, deve-se agora avaliar quais seriam as repercussões da irrazoabilidade do prazo processual.
Repercussões da Prisão ou Processo que não Dura por Prazo Razoável Atualmente, não há no Direito Brasileiro qualquer mecanismo que determine a agilização de processo em curso – e isto já há muito tempo. Aliás, não há definição nem mesmo de ordem de julgamento das demandas, ficando a cargo de cada magistrado estabelecer seus critérios para definir a ordem de julgamento. Digna de elogio foi a medida adotada pelo Conselho Nacional de Justiça, que na denominada Meta 2 sempre orienta os tribunais a efetuar o julgamento de todos os processos distribuídos até determinado ano. No ano de 2009, a orientação era o julgamento dos processos distribuídos até 31.12.2005. Essa meta foi definida também para o ano de 2010 em relação aos processos distribuídos até 31.12.2006.378 Todavia, 378 Quase 50% da meta 2 de 2010 foi cumprida pelo Poder Judiciário. Isso significa que, até o final de fevereiro, foram julgados 546,7 mil processos ajuizados até 2006. Estabelecida em 2010, a meta 2 determina o julgamento de todos os processos de conhecimento distribuídos em 1º grau, 2º grau e tribunais superiores, até 31 de dezembro
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há que se registrar que eventual descumprimento da referida meta somente levaria a uma improvável punição na esfera administrativa. Ou seja, não há um mecanismo conferido à parte para que leve o processo a ser julgado. Um dos únicos efeitos da duração desarrazoada do processo estaria na extinção da punibilidade em razão da prescrição. Todavia, hoje em dia, nota-se uma movimentação em relação à diminuição da aplicação das regras de prescrição, como: 1) a não admissão da prescrição retroativa antecipada;379 2) a vedação à prescrição retroativa tendo como termo inicial momento anterior à denúncia;380 3) a ampliação do prazo prescricional quando o crime tem pena máxima inferior a um ano;381 e 4) a nova contagem de prazo prescricional quando a vítima era menor.382 Dentre as inovações relacionadas à prescrição, uma delas em especial confirma a prevalência do processo como aflição autônoma, como a vedação à prescrição pela pena virtual. Isso porque manter a persecução penal apenas pela possibilidade de alteração do prazo prescricional, tendo em vista a eventualidade de aparecimento de nova prova que altere a tipificação da conduta, é submeter o réu a processo que terá natureza de uma aflição autônoma. Afinal, sabe-se, de antemão, que aquela pretensão será alcançada pela prescrição. Além da prescrição, deve-se registrar que a prisão processual que excede o prazo considerado razoável é considerada ilegal e, com isso, pode levar a liberdade provisória do réu.383 Por outro lado, o réu absolvido, por sentença ou por revisão criminal, pode ajuizar ação de reparação de dano por erro judiciário, de difícil comprovação. Deve-se registrar, por oportuno, que a comissão de juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Código de Processo Penal sugeriu prazos máximos para a de 2006 e, quanto aos processos trabalhistas, eleitorais, militares e da competência do tribunal do júri, até 31 de dezembro de 2007. Para cumprir a meta, é preciso julgar mais 1,2 milhão de processos. Já a meta 2 de 2009 está em estágio bem mais avançado de cumprimento pelos tribunais brasileiros. A meta 2 de 2009, que determina o julgamento de todos os processos de conhecimento ajuizados até dezembro de 2005, foi atingida em 71,5%, o que significa que 3,2 milhões de processos nesta condição foram julgados. 379 É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal. (Súmula 438, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/04/2010, DJe 13/05/2010). 380 Art. 110. § 1o A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa. (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010). 381 Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010). VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010). 382 Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: [...] V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal. 383
Art. 5º. [...] LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.
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prisão preventiva e que a definição de tais prazos foi aprovada pelo Senado Federal nos termos abaixo:384 Art. 558. Quanto ao período máximo de duração da prisão preventiva, observar-se-ão, obrigatoriamente, os seguintes prazos: I – 180 (cento e oitenta) dias, se decretada no curso da investigação ou antes da sentença condenatória recorrível, observado o disposto nos arts. 14, VIII e parágrafo único, e 31, §§ 3º e 4º; II – 360 (trezentos e sessenta) dias, se decretada ou prorrogada por ocasião da sentença condenatória recorrível, não se computando, no caso de prorrogação, o período anterior cumprido na forma do inciso I do caput deste artigo. § 1º Não sendo decretada a prisão preventiva no momento da sentença condenatória recorrível de primeira instância, o tribunal poderá fazê-lo no exercício de sua competência recursal, hipótese em que deverá ser observado o prazo previsto no inciso II do caput deste artigo. § 2º Acrescentam-se 180 (cento e oitenta) dias ao prazo previsto no inciso II do caput deste artigo, incluindo a hipótese do § 1º, se houver interposição, pela defesa, dos recursos especial e/ou extraordinário. § 3º Acrescentam-se, ainda, 60 (sessenta) dias aos prazos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo, bem como nos §§ 1º e 2º, no caso de investigação ou processo de crimes cujo limite máximo da pena privativa de liberdade cominada seja igual ou superior a 12 (doze) anos. § 4º Nos processos de competência do Tribunal do Júri, o prazo a que se refere o inciso I do caput deste artigo terá como termo final a decisão de pronúncia, contando-se, a partir daí, mais 180 (cento e oitenta) dias até a sentença condenatória recorrível proferida pelo juiz.
Já no tocante à definição do prazo processual, a proposta aprovada foi o denominado incidente de aceleração do processo: Art. 274. Estando presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, o juiz receberá a acusação e, não sendo o caso de absolvição sumária ou de extinção da punibilidade, designará dia e hora para a instrução ou seu início em audiência, a ser realizada no prazo máximo de 90 (noventa dias), determinando a intimação do órgão do Ministério Público, do defensor ou procurador e das testemunhas que deverão ser ouvidas.
384 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=85509&tp=1>. Acesso em: 08.06.2012.
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§ 1º O acusado preso será requisitado para comparecer à audiência e demais atos processuais, devendo o poder público providenciar sua apresentação, ressalvado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 76. § 2º Não cumprido o prazo previsto no caput deste artigo, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, instaurar incidente de aceleração processual, determinando, se necessário, a prática de atos processuais em domingos, feriados, férias, recessos ou fora do horário de expediente forense, bem como nomear servidores ad hoc para a realização de atos específicos de comunicação processual e de expediente em geral. § 3º A instauração do incidente será comunicada à presidência do tribunal competente, para as medidas administrativas cabíveis, inclusive a designação de magistrados em auxílio. § 4º As medidas previstas no § 3º deste artigo também serão comunicadas ao juízo deprecado e à presidência do respectivo tribunal, se for o caso.
Assim, tendo exposto o quadro normativo brasileiro, bem como as propostas em curso, nota-se que, bem perto do Brasil, a solução foi um pouco mais ousada. Aury Lopes Júnior e Gustavo Badaró indicam o exemplo do Código de Processo Penal Paraguaio de 1998 que assim estabelece:385,386 Artículo 136. DURACION MAXIMA. Toda a persona tendrá derecho a uma resolución judicial definitiva em um plazo razonable. Por lo tanto, todo procedimiento tendrá una duración máxima de três años, contados desde el primer acto del procedimiento. Este plazo sólo podrá se extender por seis meses más cuando exista una sentencia condenatória, a fin de permitirla tramitación de los recursos. La fuga ou rebeldia del inputado interrupirá el plazo de duración del procedimiento.
385 É verdade que essa modificação ainda não foi capaz de resolver todos os problemas daquele país no tocante às prisões preventivas. Colhe-se, exemplificadamentte, do relatório disponibilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos: “A Comissão continua preocupada com a excessiva dilação da prisão preventiva daqueles que se encontram com processos anteriores a 1º de março de 2000, baseados no Código de 1890. A Lei nº 1.444/99, que regula o período de transição entre ambos os sistemas, estabelece expressamente que as disposições do novo código a respeito da duração e garantias de revisão da prisão preventiva não são aplicáveis a estes casos, o que pode constituir uma violação do princípio de retroatividade da lei penal mais favorável ao réu, existindo vários casos de réus que já excederam os três anos de reclusão preventiva.” Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/ annualrep/2001port/capitulo5a.htm>. Acesso em: 8 jun. 2012. 386 LOPES Jr., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006.
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Cuando comparezca o sea capturado, se reiniciará el plazo.6 (grifo nosso) Artículo 137. EFECTOS. Vencido el plazo previsto en el artículo anterior el juez o tribunal, de oficioo a petición de parte, declarará extinguida la acción penal, conforme a lo previsto por este código. Cuando se declare la extinción de la acción penal por morosidad judicial, la víctima deberá ser indeminizada por los funcionarios responsables y por el Estado. Se presumirá la negligencia de los funcionários actuantes, salvo prueba em contrario. En caso de insolvência del funcionário, responderá directamente el Estado, sin perjuicio de su direcho a repetir.
A par da discussão a respeito das mudanças legislativa, alguns juízes vêm construindo outras repercussões para o processo que dura além do prazo razoável. Os autores já indicados informam certa movimentação dos tribunais, com vistas a garantir efetividade ao direito a julgamento em prazo razoável.387 Ganha destaque a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que atenuou a pena abaixo do mínimo legal, contrariando a Súmula 231 do STJ, no caso de réu que foi processado por mais de 8 anos sem justificativa plausível e que não voltara a reincidir. Na decisão ficou registrado que o processo penal tem caráter punitivo autônomo, sendo que, se uma das finalidades da pena é justamente evitar a reiteração criminosa, esse objetivo já foi alcançado com a simples submissão do réu ao processo, ou seja, o processo já teria atendido às finalidades atribuídas à pena (art. 59, do CP). Por outro lado, e no mesmo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, também se encontra precedente que simplesmente absolveu o acusado diante do excesso do prazo de julgamento.388 Aury Lopes Júnior e Gustavo Badaró, naquele texto originário, por sua vez, apontam algumas sugestões: 1. Deve ter mais atenção e incentivo à aplicação do perdão judicial (restrito aos art. 121, § 5º e 129, § 8º, do CP), vez que se o processo tem caráter punitivo, a própria aflição imposta pelo processo pode dispensar a pena, mas que tal aplicação vem sendo restringida a crimes de trânsito. 2. Deve-se viabilizar a indenização civil pela demora do processo e aplicação da atenuação da pena (aplicando-se a atenuante genérica do artigo 66, do CP). 3. Outra possibilidade aventada também seria o arquivamento do processo por desrespeito ao prazo processual adequado. 387 LOPES Jr., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 40. 388
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 6ª C. – AP 70019476498 j. 14.06.2007. Rel. Nereu José Giacomolli.
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4. Já no tocante a punição do servidor envolvido pela prática de demora injustificada do processo, considerou-se muito tímida apenas a impossibilidade de promoção do juiz envolvido em demora injustificada do processo conforme estabelecido pela Constituição após a EC 45/2004.
Da Análise das Propostas Quanto à ampliação das hipóteses de perdão judicial, deve-se recordar a dificuldade legal no tocante à aplicação da analogia para ampliar as hipóteses de cabimento do perdão judicial. Ao que tudo indica, não se pode estender as hipóteses legais sem subverter o princípio constitucional da separação de poderes. Da mesma forma, as hipóteses de arquivamento do inquérito, bem como a extinção da punibilidade pelo excesso de prazo, carecem de fundamento legal, sem a definição legal minimamente precisa de um tempo máximo de duração do processo. Impedir a promoção dependerá de critérios para julgamento em prazo razoável e dificilmente se comprovará o nexo de causalidade específico. Já no tocante à aplicação da atenuante genérica, entende-se que a sugestão pode ser perfeitamente aplicada a réus, mesmo condenados, que foram objeto de prazo desarrazoado de julgamento. Afinal, o artigo 66 do Código Penal389 confere ampla discricionariedade ao juiz, sendo o ideal que o descumprimento de prazo razoável do processo se torne causa de atenuação da pena.
A Título de Contribuição A título de contribuição, nota-se uma grande dificuldade, ainda não superada pela doutrina ou mesmo pelo projeto de reforma do Código de Processo Pena, na definição de prazos peremptórios para a duração do processo, pois o incidente de agilização do processo previsto no projeto aprovado é muito tímido, estando ainda sujeito a uma série de condicionantes. É verdade, contudo, que no tocante à prisão preventiva a proposta aprovada estabelece um marco peremptório para o prazo.390 Todavia, não estabelece qualquer diferenciação entre o tipo de crime praticado e define o prazo máximo de prisão preventiva em 4 anos, o que é um exagero.391 389 Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei. 390 Art. 560. Ao decretar ou prorrogar a prisão preventiva, o juiz indicará o prazo de duração da medida, findo o qual o preso será imediatamente posto em liberdade, observado o disposto nos §§ 1º a 4º deste artigo. 391 Art. 559. [...] § 2º Não obstante o disposto no § 1º deste artigo, em nenhuma hipótese a prisão preventiva ultrapassará o limite de 4 (quatro) anos, ainda que a contagem seja feita de forma descontínua.
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Com base nessa constatação, ousa-se sugerir o seguinte: a. Que sejam definidos parâmetros para o julgamento de quaisquer processos pelos juízes. Que a regra seja o julgamento de acordo com a ordem cronológica, mesmo que ressalvando a possibilidade de julgar medidas urgentes, como pedidos de liberdade provisória. Ou seja, julgar fora da ordem cronológica deveria ser a exceção, que também deveria ser devidamente justificada. b. Além disso, sugere-se definir um prazo máximo para um processo. A proposta que se faz no presente artigo é definir o prazo máximo do processo, limitando-o ao tempo máximo da pena do crime pelo qual está sendo processado, lapso este normalmente menor que o da prescrição. c. Descumprido o prazo máximo do processo, o réu seria beneficiado pela extinção da punibilidade, especialmente se este solicitou o procedimento de agilização do processo abaixo explicitado. d. Definido o prazo máximo do processo, caberia conferir às partes a possibilidade de solicitar a agilização do julgamento, uma espécie de preferência. Essa preferência seria baseada no prazo máximo previsto em lei para o procedimento, ou seja, após esse prazo as partes poderiam solicitar a agilização do julgamento, da mesma forma em que estabelecida no projeto aprovado do Código de Processo Penal, com a diferença de que há o prazo máximo para condução do processo, todavia. e. Em cada uma das varas e tribunais deveria haver a indicação de um fiscal que seria responsável pelo levantamento dos processos que estão fora do prazo e notificação do juiz/desembargador/ministro responsável pela condução do caso. f. O prazo máximo definido deve levar em conta todas as instâncias, sendo que demora injustificada em quaisquer das instâncias deveria levar à possibilidade de responsabilização pessoal do servidor encarregado da fiscalização, caso não a faça de maneira correta, ou do juiz que não atendeu à notificação do fiscal. No caso de réu preso preventivamente, a proposta é a seguinte: a. Como se sabe, o tempo que o réu fica preso pode ser objeto de detração caso seja ele definitivamente julgado. b. Por outro lado, não se tem na jurisprudência um prazo máximo para a manutenção da prisão preventiva e a proposta do Código de Processo Penal aprovada não faz diferença entre os crimes. c. Sabe-se também que a prisão preventiva pode ser entendida como cumprimento provisório da pena, nos termos do entendimento sumulado do STF.
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d. Ora, quais são os critérios para prender preventivamente? Inviabilidade de submissão a outro tipo de cautelar e o preenchimento dos requisitos fumus comissi delict e periculum libertatis, ou seja, prende-se para garantia do processo ou da coletividade em face da possibilidade de reiteração criminosa e. Estando preso e se assim estivesse definitivamente, sabe-se que o réu teria direito à progressão de regime. E quais são os critérios para progressão de regime? Deve-se cumprir uma parte da pena e também demonstrar bom comportamento, ou seja, não se discute mais o que o réu fez para ser condenado e sim como está cumprindo a pena. f. Dessa forma, um preso provisório não deve ter tratamento pior do que o preso em definitivo, ou seja, o preso provisório não poderá ficar preso provisoriamente, o que na prática equivale ao regime fechado por tempo superior àquele que ficaria se estivesse preso definitivamente. g. Assim, a sugestão é: em caso de réu preso, este somente poderá ficar preso preventivamente durante o prazo que seria admitida a progressão de regime, baseada na pena mínima do crime ou na pena eventualmente já imposta. Ou seja, para a concessão da liberdade, não deveriam mais ser analisados os motivos da prisão preventiva e sim os pressupostos para a progressão de regime. h. E porque a pena mínima? Ora, se a duração razoável do processo é uma obrigação do Estado, e se este descumpre sua atribuição, tal descumprimento deve favorecer o acusado. i. E quem teria a atribuição de solicitar a agilização do processo? Como esse direito é imposto ao direito, tanto defesa quanto acusação, o MP poderia suscitar a preferência de julgamento da mesma forma que o réu. Veja que a proposta aqui delineada tem por base a definição de parâmetros baseados na pena do crime pelo qual o acusado está respondendo. Esse parâmetro foi construído tendo em vista o princípio da proporcionalidade, pois para cada crime haverá um tempo de processo, sendo que para os processos mais graves com penas mais altas o prazo considerado razoável será também maior.
Considerações Finais Em síntese, pode-se concluir que: a. O sistema jurídico brasileiro recepcionou o direito de ser julgado num prazo razoável com o advento da EC nº 45/04 (que incorporou artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos). b. Deve-se buscar o equilíbrio entre a aceleração antigarantista (processo-lebre) e a demora indevida (processo-tartaruga), pois ambos negam a jurisdição e
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esta exige qualidade, que só é alcançada com o equilíbrio do direito de ser julgado num prazo razoável. c. É preciso fixar um prazo máximo de duração de um processo, bem como de mecanismo que confira às partes a possibilidade de agilizar o processo, além de definir prazo máximo para a prisão do réu, o que, certamente, conferirá maior estabilidade e segurança aos atores do processo. d. De toda forma, a definição de um prazo máximo para o processo e da possibilidade de solicitar a sua agilização dependeria de alteração legislativa. Todavia, no tocante à definição do prazo máximo para o réu estar preso, essa necessidade não existiria, pois bastaria considerar o réu preso provisoriamente como se preso em definitivo estivesse, pois, convenha-se, quanto à restrição da liberdade, não há diferença entre prisão provisória e definitiva.
Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. Martins Fontes. LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 6ª C. – AP 70019476498 j. 14.06.2007. Rel. Nereu José Giacomolli.
A ( IN)APLICABILI DA DE DA S GARANTIAS DA AMP LA D EFES A E DO CONTR ADITÓR IO NO INQUÉRIT O POLICIAL
FELIP E SILVA M A RT I N O
RESUMO O inquérito policial e suas finalidades, abordando suas características e principalmente a sua natureza de caráter inquisitiva, voltado a discutir a (in)aplicabilidade das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório no âmbito do inquérito policial, o qual tem cunho de procedimento administrativo e como principal objetivo a colheita e o fornecimento de provas, laudos e indícios que vão servir de fundamento e base para a acusação e o início da ação penal. Posteriormente, dispõe-se sobre os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, discorrendo principalmente sobre a diferença entre direitos e garantias constitucionais e seus conceitos com a finalidade de dar uma base e um entendimento sobre o assunto para uma discussão da aplicabilidade destas garantias durante o âmbito das investigações, onde esse tema se baseia na existência de doutrinadores tanto a favor da aplicabilidade como também em pontos que divergem do assunto e são contrários a esta aplicabilidade. 191
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Introdução O Inquérito Policial é um procedimento administrativo pelo qual a autoridade policial realiza diligências as quais têm função persecutória que visam a investigar determinada infração penal a fim de levantar indícios de materialidade e autoria suficientes para uma futura propositura da Ação Penal. Em razão desse breve conceito, pergunta-se: durante essa fase de investigação, estão presentes as garantias da ampla defesa e do contraditório? Ora, tem-se então um questionamento que é objeto de discussão entre doutrinadores, dentre os quais alguns se posicionam a favor da aplicação dessas garantias no âmbito do inquérito, enquanto outros defendem a inaplicabilidade das mesmas durante as investigações, pois consideram o inquérito um procedimento de caráter inquisitivo. Mas ao se falar em procedimento de caráter inquisitivo abordar-se-á a natureza do inquérito. Nota-se, assim, sua finalidade e o porquê, então, de ser inquisitivo, servindo como base para o posicionamento e fundamentação da doutrina sobre o assunto. Porém, antes desse posicionamento doutrinário, cumpre discorrer sobre as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, diferenciando as garantias de direitos constitucionais, conceituando e caracterizando as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que são direitos fundamentais regulamentados em nossa Constituição Federal de 1988, sendo obrigatória sua aplicação a qualquer processo judicial ou administrativo, assim com a finalidade de adequar ambas a essa discussão e também, logicamente, embasar, ao final, os fundamentos dos autores sobre a aplicabilidade da ampla defesa e do contraditório já durante o Inquérito Policial. Essa aplicabilidade é discutida em razão do uso do direito de defesa do acusado. Mas será que nessa fase de investigação existe um indiciado, um investigado ou até mesmo um acusado? Surge então alguma imputação ao sujeito passivo da investigação, que deve reagir e fazer uso de suas garantias constitucionais já durante o curso do inquérito? Esses questionamentos são essenciais e também pontos de divergência entre os autores que defendem a aplicabilidade de tais garantias que devem estar presentes na fase de inquérito policial e não somente após o inicio do processo penal propriamente dito, já que consideram encontrar uma possibilidade de um contraditório mínimo e de um exercício do direito de defesa mesmo que mais restrito nesse âmbito. Já outra linha doutrinária defende a inaplicabilidade dessas garantias, argumentando que a fase de investigação tem natureza inquisitiva, não restando a necessidade de aplicá-las, pois não há nenhuma acusação. Nesse sentido, há conclusões por parte da doutrina sobre momentos e formas sobre as quais devem ser exercidas as garantias constitucionais durante as investigações policiais. Conclui-se, então, que se existe esse direito de defesa e se ela é limitada e exógena durante o âmbito da investigação policial fica demonstrado perante os entendimentos
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da doutrina o porquê da dúvida a cerca do direito de defesa existir ou não no procedimento inquisitivo.
O Inquérito Policial: caráter inquisitivo? O inquérito policial é um procedimento administrativo do qual o Estado se vale para ingressar em juízo, diferenciando-se de um processo por não existir nele uma lide. Nele há uma instrução provisória que não tem caráter jurisdicional, cuja função é de informar e preparar, com os elementos probatórios colhidos durante a investigação, a posterior formação da ação penal. É importante destacar pontos característicos da investigação policial que são essenciais para entender o porquê deste ser um procedimento administrativo e não um processo administrativo e que tem como características a oficialidade, onde o inquérito é presidido por um órgão oficial; a dispensabilidade, em que o inquérito se faz dispensável caso o Ministério Público ou o particular já tenha ou ofereça o embasamento necessário para a propositura da ação penal; a incomunicabilidade do preso, principalmente junto ao seu advogado; o sigilo do inquérito já começa a demonstrar que por ser um procedimento administrativo este deve fornecer informações somente aos órgãos posteriormente responsáveis para realização do processo. Nessa característica, cumpre ressaltar que o advogado do preso tem acesso aos autos de inquérito, mas somente ao que já fora produzido e não ao que ainda vai ser produzido, a fim de que se preserve a investigação policial que ainda será realizada.392 E, por fim, temos caracterizada a natureza inquisitiva do inquérito policial, que se faz por existir uma inquirição e não uma acusação, já que nessa fase preparatória da ação penal não existe o termo acusado e sim suspeito e indiciado, onde este é apenas um objeto do procedimento e não um sujeito de direitos, além de que a polícia atua como um órgão com funções estritamente administrativas auxiliando o titular da ação penal e o juiz.393 O que vem a ser muito mais eficiente e ágil em obter resultados e apontar a autoria dos fatos criminosos investigados em comparação à existência de um processo de instrução que tornaria tudo mais lento. Destaca-se, então, a inquisição como uma característica do inquérito policial que é necessária para o perfeito funcionamento de um procedimento que ajuda no fornecimento de informações acerca dos fatos e autorias do ato criminoso.394
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CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
393
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Volume 1. 2ª ed. Campinas: Millennium, 2000.
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CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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Claro, ressaltando que o caráter inquisitivo do inquérito policial se faz limitado perante os termos da lei, que operando dentro da legalidade, não poderá agir arbitrariamente, e sim, somente discricionariamente, como permitem os limites fixados pela lei, onde, por exemplo, a autoridade policial pode deferir ou indeferir o pedido do suspeito para produzir determinadas provas, agindo assim com discricionariedade para aumentar e efetividade da atuação da investigação com o cunho de fornecer mais base para o Estado.395 Caso a autoridade policial ultrapasse os limites fixados pela lei, violando a liberdade individual do investigado, restará, então, o controle jurisdicional exercido por meio do habeas corpus para sanar essa violação aos limites da lei.
A Ampla Defesa e o Contraditório: garantias constitucionais? Ao contrário do que se imagina ou erroneamente pode ser considerado, direitos e garantias constitucionais não refletem um o mesmo significado do outro, não são sinonímias e é onde elas se distinguem, mas não se separam. A garantia constitucional chega ao sentido de existência de um instituto que busca a efetiva aplicação dos direitos constitucionais, por qualquer meio ou forma que leve os direitos a uma maneira eficaz de seu cumprimento.396 Assim, as garantias seriam as normas positivadas, que asseguram a proteção, a existência e, claro, a efetividade dos direitos. Logo o direito é legal e existe, a garantia assegura, dá segurança e legalidade ao direito, defendendo contra atos atentatórios a esse direito para que haja efetividade do mesmo. Não seria errado então considerar que o direito é o principal e a garantia é o acessório, o direito é o bem e a garantia assegura a fruição desse bem, sendo assim diferenciadas uma da outra, mas não separadas, já que ambas, cada uma com seu significado, visam à fixação da existência do direito e proporcionam a eficácia do uso deste para a segurança jurídica do nosso ordenamento.397 Por essa razão, falar de ampla defesa e contraditório é falar em garantias constitucionais que visam à efetividade de direitos individuais e principalmente direitos de liberdade que são assegurados pela Constituição Federal de 1988.
395
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Volume 1. 2ª ed. Campinas: Millennium, 2000.
396
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
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Contraditório Entre os princípios processuais fundamentais, o princípio do contraditório possui como principal objetivo assegurar o direito que a parte tem de ser informada sobre os atos processuais e de se manifestar contrariamente à acusação.398 Assim surge como um direito de defesa que é assegurado ao acusado e litigante em processo judicial e administrativo a fim de que se dê uma forma bilateral aos atos e termos do processo, não podendo haver uma condenação sem este direito. O contraditório se efetiva assegurando-se os seguintes elementos: a) o conhecimento da demanda por meio de ato formal de citação; b) a oportunidade, em prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial; c) a oportunidade de produzir prova e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário; d) a oportunidade de estar presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que desejar; e) a oportunidade de recorrer da decisão desfavorável.399 Ainda existem como elementos essenciais a informação e a possibilidade de reação, permitindo a forma de um contraditório pleno e efetivo. Necessário também se faz que essa comunicação seja feita a tempo de possibilitar a contrariedade: "[...] nisso está o prazo para conhecimento exato dos fundamentos probatórios e legais da imputação e para a oposição da contrariedade e seus fundamentos de fato (provas) e de direito".400 No contraditório pleno há a observância da garantia durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. No efetivo, pelo motivo de que não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, assim devem-se proporcionar os meios e formas para que se tenham condições de contrariá-los.401 Assim, o contraditório se aproxima do princípio da paridade das armas, garantindo a mesma intensidade e extensão de participação das partes com os mesmos níveis de provas e argumentos.402 Para Rogério Lauria Tucci, "A contrariedade deve ser efetiva e real, em todo o desenrolar da persecução penal, a fim de que, perquirida a exaustão, a verdade material. Reste devidamente assegurada a liberdade jurídica do indivíduo enredado na persecutio criminis."403 398 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev.. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 57. 399
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 249.
ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Fundamentais do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 25. 400
401 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 402
FERNANDES, Humberto. Princípios constitucionais do processo penal brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.
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TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos
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Assim, em razão da garantia do contraditório no processo penal, não se admite que uma parte fique sem ciência dos atos da parte contrária e sem oportunidade de contrariá-los, depreendendo que o contraditório não se resume somente ao acusado, mas a ambas as partes. Júlio Fabbrini Mirabete aduz que a garantia do contraditório decorre à igualdade de direitos entre as partes acusadora e acusada, que se encontram num mesmo plano, reforçando a ideia abordada no parágrafo anterior sobre a contrariedade de ambas as partes e não somente ao acusado.404 Mas não se confunde o contraditório com o princípio da igualdade; estes apenas se relacionam quando o contraditório garante a ambos o tratamento igualitário.405 O princípio do contraditório pode ser entendido como a exteriorização do princípio da ampla defesa, já que com a redação dada pela Constituição Federal de 1988 ocorreu uma separação da ampla defesa e do contraditório, onde cada um é exercido em instantes diferentes e cabíveis ao seu momento de aplicação, e, assim, impõe uma forma de igualdade de defesa entre as partes em todos os atos produzidos no processo.406 O que se busca é que a defesa possua os mesmos direitos que a acusação, opondo as teses acusatórias, podendo assim apresentar uma versão mais contundente dos fatos e provas contrárias às demonstradas pela acusação.407 Observando o contraditório e o exercício da defesa, há de se considerar que são distintos, apesar de ambos serem interligados, já que é partindo do contraditório que surge o exercício do direito de defesa e, sendo que este é o garantidor do contraditório, há o entendimento então que um se manifesta por meio do outro, mas não fazem parte do mesmo direito assegurado ao acusado.408 No caso da distinção entre o contraditório e a ampla defesa, o seu principal ponto é considerar que se um dos direitos for violado não necessariamente violará o outro, não refletindo assim em nulidade do processo, onde um exemplo mais comum é o de ocorrer o cerceamento do direito de defesa pela limitação dos instrumentos processuais sem que ocorra a violação do contraditório, não existindo assim a nulidade neste caso.409 Tribunais, 2004. p. 211 404
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.
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MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 406
407 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 408 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 409 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
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O contraditório constitui um princípio de grande importância dentro de todo o ordenamento jurídico. Possui uma ligação direta com os direitos subjetivos do acusado e o seu direito de ação, podendo observar que na Constituição Federal de 1988 garante-se em sua redação a aplicação do contraditório e da ampla defesa.410
Ampla Defesa Sobre o princípio da ampla defesa, Vicente Greco Filho afirma que esta é constituída a partir dos seguintes fundamentos: “a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável.”411 Nesse caso, a ampla defesa é exercida desde a realização da intimação do acusado para a realização dos atos processuais, nos processos judiciais e administrativos, onde o seu defensor constituído também deve receber essas intimações, principalmente partindo da observância do artigo 392 do CPP, que dispõe sobre a intimação do réu e de seu defensor. Assim, as intimações fazem parte do começo do exercício da ampla defesa, sendo de fundamental importância principalmente para que ocorresse o trânsito em julgado da sentença condenatória e não cometimento de nulidades processuais.412 O exercício da ampla defesa durante a instrução do processo deve ser sempre observado. Se não for oportunizado, resultaria em prejuízo aos atos processuais, gerando a nulidade do processo e dos seus atos. Sendo que a nulidade deve ser sempre observada durante o curso do processo para que não haja prejuízos ao exercício do direito de defesa.413 O princípio da ampla defesa compreende, em linhas gerais, o direito à defesa técnica durante todo o processo e também o direito ao exercício da autodefesa. A defesa técnica apresenta-se como uma defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva.414
410 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 411
GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 412
413 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 414 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
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A autodefesa é renunciável, é aquela exercida pelo próprio acusado, sem interferência do defensor, a partir da atuação pessoal junto ao juízo por meio do interrogatório ou para os principais atos processuais.415
Defesa Técnica A defesa técnica é relacionada com a assistência prestada ao acusado por um especialista técnico, um defensor que tem conhecimentos jurídicos e condições de colocar o acusado em igualdade perante a figura do acusador e também do Estado, não deixando que ele venha a ser inferior a estas autoridades.416 Então, ao caracterizar a defesa técnica como garantia da própria justiça, buscando que todos os acusados venham gozar de sua plena defesa, ela é indeclinável, não podendo o acusado renunciá-la.417 Considerando que a defesa é plena, aduz que ela deve permear durante todo o curso processual, não somente em determinada fase, mas sim durante todos os seus atos. Assim, considerando a obrigatoriedade de determinados atos, pode-se observar então a existência da amplitude de defesa a cada ato disposto no Código de Processo Penal. Sobre a efetividade da defesa, a simples atuação desta no processo não é o suficiente. Ela deve surtir efeitos, as atividades da defesa devem ser efetivas quanto à assistência prestada ao acusado, não podem simplesmente parecer defesa e sim ser percebido o exercício da defesa.418 Nesse sentido, cabe dizer que é imprescindível a existência da ampla defesa sem a defesa técnica. Assim, a figura do defensor no inquérito policial e também na fase processual tem como finalidade ser um instrumento de controle da atuação do Estado, afim de que se fiscalize a atuação dos órgãos responsáveis e se garanta a igualdade entre as partes no litígio, no caso, a igualdade entre o acusador e o acusado.419
415 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 416 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 417 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 418 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 419 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
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Autodefesa Diz-se que esta é a defesa exercida pelo próprio acusado, defesa esta existente em determinados momentos do processo. A autodefesa se manifesta de várias formas: pelo direito de presença, de audiência e de postular, mais precisamente durante o interrogatório, onde o acusado se manifesta diretamente ao juiz exercendo sua defesa e demonstrando sua versão sobre os fatos.420 O interrogatório é o momento principal no qual o acusado exerce sua autodefesa; é onde ele vai se defender, vai negar os fatos informados a ele ou até mesmo confessar os atos com a finalidade de diminuir a incidência da pena aplicada posteriormente.421 Ainda durante o interrogatório, o acusado tem o direito de permanecer em silêncio, prerrogativa assegurada por se tratar de um direito à intimidade, razão pela qual o acusado tem essa outra maneira como um exercício da sua autodefesa.422 No caso, a autodefesa existe para provar a inocência, gerar dúvidas e apresentar atenuantes em relação ao fato imputado ao acusado. O direito ao silêncio da total segurança ao acusado de, inclusive, não se autoincriminar pelas declarações prestadas às autoridades no momento da colheita do seu interrogatório. No próprio interrogatório, o acusado tem o direito de não declarar a verdade, não tem inclusive o dever de fornecer qualquer elemento que possa incriminá-lo, ainda também tem o direito de não participar de qualquer atividade que possa gerar provas contra ele, como reconstituição, fornecimento de material para perícia e reconhecimentos, como uma maneira de não incriminá-lo ou prejudicar sua defesa.423 O acusado exerce assim a sua autodefesa durante o principal momento que ela pode ser suscitada: o interrogatório. Considerando alguma ofensa ao direito de autodefesa, esta constituirá nulidade processual, demonstrando que qualquer ofensa à garantia constitucional da ampla defesa irá constituir a nulidade do processo, tendo em vista o prejuízo em desfavor do acusado, do procedimento e inclusive a violência contra os princípios fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. 420 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 421
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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As Garantias da Ampla Defesa e do Contraditório: exercício de uma defesa limitada e exógena? Ao discutir o tema da (in)aplicabilidade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa durante o curso do inquérito policial, devemos dispor sobre determinados autores, os quais são imprescindíveis para a análise dessa aplicação. Aury Lopes Jr diz que o direito de defesa existe como reação a uma imputação sofrida pelo sujeito passivo, onde já no curso da investigação, o ato de indiciamento gera uma imputação ao indiciado.424 Nesse ponto, o doutrinador ainda faz uma crítica aos demais autores que defendem o argumento que de que não existem acusados na fase inquisitiva. O autor diz que ao imputar determinados fatos e indícios a um sujeito, este tem seu estado natural evadido e sofre a agressão que o torna parte na investigação, gerando o poder de reação que ocasiona a aplicação da ampla defesa.425 Considera-se que o termo “acusados em geral”,426 referido no texto constitucional, é abrangente e que o indiciado faz parte desses acusados, sendo titular do direito de defesa. Nesse pensamento, ainda faz uma ressalva no que diz respeito à aplicação desse direito, o qual, se exercido sem qualquer limite, pode vir a prejudicar a fase de investigação preliminar, lembrando também que se ocorrer uma supressão desse direito nessa fase há uma violação de tal garantia.427 Afirma ainda que o indiciado está em submissão a todos os atos realizados na investigação, criando um status de subordinação do sujeito passivo, onde consequentemente gera cargas processuais e também o direito de defesa.428 Nessa mesma linha de pensamento, a autora Marta Saad também conceitua a favor da existência do direito de defesa já nessa fase, onde inclusive cita Aury Lopes Jr. em sua obra, afirmando então que o indiciado não é somente um objeto de investigação, um sujeito ao procedimento, mas sim um sujeito do procedimento, onde, nesse caso, é um titular de direito, visto que as garantias constitucionais devem ser sempre obedecidas.429 424 LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 425 LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 426 BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm>. Acesso em: 20 mar. 2013. 427 LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 428 LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 429
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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Nota-se a importância de demonstrar o valor do termo indiciado como um acusado em geral que sofre imputações em sentido amplo, pois o definindo assim é um sujeito passivo dotado de direitos de defesa, pontos os quais são imprescindíveis para defender a aplicabilidade de tais garantias no inquérito.430 A partir desse momento de indiciamento, Aury Lopes Jr. considera que o contraditório só é aplicado em relação ao seu primeiro instante, onde o indiciado recebe a informação da imputação dos fatos e indícios, não restando após essa informação qualquer outra forma de contraditório antes da fase processual, já que antes disso não existe uma relação jurídico-processual.431 Nesse caso, defende a aplicação de um contraditório mínimo na fase inquisitiva, onde o sujeito teria direito de ser informado e de participar de determinados atos da investigação, como também solicitar diligências e participar da produção probatória, e considera ainda a ideia de um juízo de admissibilidade da acusação, mas ressalvando ainda que isso seria o mínimo, já que o contraditório amplo iria contra a própria finalidade do inquérito e atrapalharia as investigações.432 Portanto, se da informação configura o contraditório e que consequentemente resulta na imputação e na reação do sujeito passivo, surge então o direito de defesa que será exercido pelo próprio indiciado ou, de melhor maneira, pela defesa técnica, no caso o advogado do indiciado, sendo que este tem direito a ter acesso aos autos do inquérito policial fundamentando tal direito na própria Constituição Federal em seu art. 133: “[...] o advogado é indispensável para a administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”433 Inclusive no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu art. 7º, inciso XIV,434 e também por meio da súmula vinculante nº 14 do STF, resguardando ao advogado o acesso aos autos processuais e autos de inquérito já produzidos, nesse caso restando a existência do direito de defesa na fase investigatória e que não pode ser negada, pois resultaria em prejuízo para o indiciado e ainda demonstraria uma agressão à eficácia dos direitos fundamentais.435
430 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 431 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005 432 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 433 BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm>. Acesso em: 27 mar. 2013. 434 BRASIL. Lei 8.906 de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 27 mar. 2013. 435 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
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Aduzindo sobre essa discussão, no curso do inquérito policial a defesa exercida ainda é limitada e Aury Lopes Jr. conceitua a defesa como exógena, porque é exercida fora do inquérito. Veja, por exemplo, o uso do Habeas Corpus e do Mandado de Segurança, seja para assegurar o direito de ir e vir ou para o trancamento do inquérito, e, conforme já fora abordado antes, a defesa dentro dessa fase inquisitiva consiste basicamente em requerer diligências à autoridade policial, sendo que esta tem a discricionariedade de deferir ou indeferir esses requerimentos, logicamente dentro dos limites da lei, reforçando mais uma vez o exercício limitado do direito de defesa.436 Marta Saad considera os mesmos aspectos já abordados até aqui demonstrando a existência de um contraditório somente a partir do momento da informação da imputação e não existindo mais tal garantia em outros momentos do inquérito, alegando que ainda não há acusados, mas em se tratando de direito de defesa introduz fielmente a ideia de que essa garantia deve existir em todos os momentos em que se imputa qualquer fato ou ato a alguém.437 Deve então existir a garantia do direito de defesa ao indiciado, onde este tem o direito de resistir, opor forças e de requerer provas que possam demonstrar seus argumentos de inocência. Nesse caso, nota-se que o que é exercido no âmbito da investigação é somente a defesa, em seu sentido amplo, já que é direito em todos os momentos, ao contrário do princípio do contraditório, que só é exercido no instante do recebimento da informação do fato ou ato, mas que não existe em nenhum outro momento após, pois não há uma acusação formal, não há um litígio, razão pela qual não há o direito a contrapor nenhum fato imputado.438 Antonio Scarance Fernandes tem uma abordagem aproximada nesse mesmo sentido sobre o tema, dizendo, entretanto, que não existe o contraditório no âmbito inquisitorial, sem discorrer mais profundamente sobre o momento de informação da imputação dos indícios como possível aplicação da garantia, demonstrando ainda que a fase de investigação não pode ser tratada como processo, fase que aduz do texto constitucional ter aplicada a garantia do contraditório, e muito menos como um procedimento, já que o inquérito não é constituído por uma ordem determinada para a prática dos seus atos, os quais não configurariam nem sequer um procedimento administrativo, desta forma não admitindo a aplicabilidade de tal garantia.439 Ressalvando, no entanto, que existe o direito de defesa já nessa fase pré-processual, trata-se, porém, de uma defesa limitada e não de uma defesa ampla. Na qual o 436 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 437
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 439
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exercício desse direito de defesa limitada diz respeito, por exemplo, ao requerimento de diligências, pedidos de liberdade provisória e também a impetração de habeas corpus a fim de garantir ao indiciado a opção de solicitar a produção de determinadas provas, as quais fundamentariam seus fatos e argumentos.440 Exemplificando mais uma vez a existência de uma defesa exógena realizada fora do inquérito, mas durante o curso deste. Outro exemplo do direito de defesa incurso no inquérito é o acesso do advogado do indiciado aos autos de inquérito dos atos já realizados e inclusive a quebra por outra garantia constitucional da incomunicabilidade do indiciado com seu advogado e seus familiares.441 Fernando Capez e Paulo Rangel compartilham do mesmo pensamento quando afirmam que o contraditório só existe no sistema acusatório e não no sistema inquisitivo,442 onde não existe um acusado e sim um investigado como objeto do procedimento administrativo e não de um processo administrativo, onde o procedimento é o meio pelo qual os atos são produzidos e este último é um gênero com suas espécies processuais, diferenciando do inquérito que é um mero expediente administrativo que visa a apurar determinados indícios de materialidade e autoria de um ato ilícito – nesse caso, o caráter inquisitivo do inquérito policial tem por motivo afastar a aplicabilidade do contraditório.443 Fauzi Hassan Choukr faz uma análise do tema desde o advento da CF em 1988, onde o entendimento desenvolve-se em torno dos termos acusado, processo e procedimento. Aury Lopes Júnior expôs esses mesmos argumentos, considerando já a existência de um acusado na fase inquisitorial por haver um litígio entre as partes, Estado e acusado, sendo este último titular de direitos e garantias constitucionais.444 Nessa situação, fala-se também em procedimento e processo, o que volta a ser o questionamento da doutrina. Como já exposto neste capítulo, para alguns doutrinadores o inquérito é processo administrativo e para outros é apenas procedimento, discussão novamente abordada sobre o termo utilizado pelo legislador no texto constitucional. Porém, Fauzi Hassan Choukr versa sobre o mesmo entendimento de Fernando Scarance Fernandes, o qual diz que o inquérito nem sequer é procedimento, visto que procedimento é uma ordem, uma sequência de atos, os quais não são observados na investigação.445 440 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 441 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 442
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 15ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 444
445 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
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A partir dessa questão abordada pela maioria dos autores, Fauzi Hassan Choukr dispõe sobre a dificuldade de encontrar uma ligação entre o inquérito e a aplicabilidade da garantia do contraditório, ponto este em que há dúvidas sobre o exato momento da existência de um litígio, o determinado momento do surgimento da aplicação do contraditório nessa fase inquisitiva, já que essa garantia é determinada pela informação e participação da parte acusada nos atos procedimentais.446 Se o contraditório é determinado pela informação e participação, entende-se que o ato de indiciamento seria o momento que surge tal garantia, porém questiona-se em que momento existiria um indiciamento, como então seria possível a participação do acusado nessa fase pré-processual? Nota-se, nesse sentido que o próprio CPP, em seu art. 14 diz que "O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade."447 Nessa discussão, já existe inclusive essa possibilidade de participação do indiciado, mas ainda é fora de contexto se comparado com o termo utilizado no texto constitucional. Isso sem falar que a aplicação do contraditório não faz parte da finalidade da investigação, que é uma fase inquisitiva e não acusatória. Cumpre ainda nessa explicação ressaltar que o indiciado de hoje não necessariamente será o réu de amanhã.448 Logo, o termo acusado acaba se tornando a principal causa dessa discussão onde há a maioria das divergências doutrinárias. Fauzi Hassan Choukr chega a comparar o termo acusação com o conceito de lide, onde é necessário um conflito de interesses que não é encontrado no curso da investigação e se restringe à relação jurídica criada com o oferecimento da ação penal e o conhecimento e aceitação do Poder Judiciário, e não com o indiciamento do sujeito passivo.449 Lembra-se ainda que por existir a possibilidade de requerimentos de diligências por parte do indiciado esse sujeito passivo não vem a ser um objeto da investigação e sim sujeito dela. No inquérito, o exercício do contraditório não parece ser existente e não tem a possibilidade de influenciar quem tem o poder de decisão, visto que nessa fase buscam-se fatos e indícios suficientes sobre a verdade dos atos para que sirvam como base de uma ação penal e que se dê início então a uma relação processual, esta sim sujeita às garantias constitucionais.450 A razão pela discussão dessa aplicabilidade do contraditório na fase inquisitiva é, infelizmente, o embasamento de decisões processuais por parte dos julgadores da ação penal em fatos e provas colhidas ainda em fase de inquérito policial, onde a defesa se volta contra o sistema inquisitorial requisitando o exercício da garantia do 446
CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689. htm>. Acesso em: 1 abr. 2013. 447
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CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
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CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
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contraditório para que o julgador não possa se fundamentar somente nesses atos de investigação.451 No mesmo sentido da não aplicabilidade das garantias constitucionais, Guilherme de Souza Nucci diz que o inquérito, conforme já analisado no parágrafo anterior, é um procedimento de natureza inquisitiva o qual não permite a oportunidade de defesa. Se permitisse tais garantias, teríamos duas instruções judiciais iguais. Mostra, ainda, que realmente não há a necessidade de aplicabilidade do contraditório e da ampla defesa no sentido que a investigação serve apenas como instrumento de colheita e fornecimento de indícios e autoria para a base e fundamentação da acusação, restando então que se falar de tais garantias somente em fase de processo, após já realizada a acusação em juízo.452
Conclusão Chega-se ao entendimento, então, de que o inquérito policial se trata de peça meramente informativa, de natureza inquisitiva, o que significa dizer que tem a finalidade de inquirir, buscar indícios de autoria e materialidade do fato, buscar a verdade real dos fatos, desvendar e solucionar infrações penais, realizando diligências as quais servem para levantar provas suficientes que levem ao indiciamento de determinado investigado, imputando a ele a possível realização do crime. Depois de concluída a investigação, esta servirá de base para o titular da ação penal oferecer denúncia à autoridade judicial, ensejando na acusação do indiciado e iniciando o processo judicial. Em segunda abordagem, temos a diferença entre garantias constitucionais e direitos constitucionais, onde uma assegura a efetividade da outra. Abordamos as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, na qual o contraditório diz respeito à informação da imputação e o poder de contrapor os argumentos da parte acusadora requerendo provas que contrariem a imputação inicial. Além de prazos determinados para que seja realizado esse contraditório que vai ensejar na sua oportunidade do exercício de defesa. Essa defesa realizada pelo contraditório se insere na da ampla defesa, que consiste em todas as formas de defesa possíveis, as quais têm sempre a finalidade de não permitir que a primeira imputação seja a predominante. Esse exercício da ampla defesa consiste principalmente em duas formas: a autodefesa, que nada mais é do que o próprio acusado exercê-la de determinadas maneiras em sua defesa, como manter-se em silêncio em um interrogatório e não produzir provas que possam in451
CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 170. 452
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criminá-lo. Outra forma do exercício da ampla defesa é a defesa técnica, realizada por um defensor técnico, especialista e detentor de conhecimento jurídico, que tem a finalidade de exercer a defesa de forma efetiva e de maneira eficaz, e que tenha resultado a favor do acusado, este não podendo abrir mão dessa defesa sob o risco de ser prejudicado no processo judicial. Quanto à (in)aplicabilidade das garantias da ampla defesa e do contraditório no inquérito policial, discutida pela doutrina de forma divergente em alguns aspectos, autores como Aury Lopes Júnior, um dos maiores defensores da aplicabilidade das garantias no inquérito, e Marta Saad, que cita diversas vezes o próprio Aury Lopes Júnior, consideram que na investigação policial a figura do sujeito passivo, mais precisamente o indiciado, sofre uma imputação que deve ser resistida de alguma forma. Logo, o direito de defesa se faz presente para contrapor e se defender dessa imputação. Os autores afirmam, então, que o indiciado é um acusado, pois sofre uma acusação já no curso do inquérito. Nesse caso, o acusado, como aduz do texto constitucional, tem direito ao exercício da ampla defesa e do contraditório desde essa fase de investigação. Afirmam também sobre o termo usado na Constituição para assegurar o contraditório e a ampla defesa aos acusados em processo administrativo, pois consideram o inquérito como tal e não como um procedimento o que verdadeiramente é. Mas sem dúvida a grande divergência gera em torno do termo acusado, pois para os autores existe uma figura de um acusado a partir do momento de indiciamento no inquérito policial o que ensejaria em argumento para a aplicabilidade das garantias constitucionais. Entretanto, Aury Lopes Júnior ainda afirma que nessa fase há um contraditório mínimo que surge somente como forma de informação da imputação e de um exercício de defesa limitada de maneira a não prejudicar a investigação policial. Em contrapartida, a maioria da doutrina formada por autores como Antonio Scarance Fernandes, Fauzi Hassan Choukr, Guilherme de Souza Nucci, entre outros, considera que não há aplicabilidade de tais garantias no curso do inquérito policial, onde nessa fase, que se trata de um procedimento administrativo, e como afirma Antonio Scarance Fernandes, sequer pode-se falar em procedimento já que não há uma sequência determinada de atos, afirmando então que não se trata de processo administrativo, logo não há um litígio entre as partes, não existindo a figura de um acusado e também inexistindo uma decisão que condene ou absolva o indiciado, o que existe é uma fase que busca pela verdade real, pela colheita de provas e informações que sirvam de base para a ação penal e que por ser o inquérito de natureza inquisitiva não há que se falar em contraditório e ampla defesa. Assim, entende-se que a aplicabilidade das garantias da ampla defesa e do contraditório no inquérito policial são implícitas e limitadas a determinados atos, os quais não exteriorizam as garantias. Dessa forma pode-se considerar que há o exercício de uma defesa limitada e exógena por parte do próprio indiciado que se
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mantém em silêncio, ou não possibilita a produção de determinada prova que iria incriminá-lo e do seu defensor que requer diligências as quais podem ou não ser realizadas pela autoridade policial em razão da sua discricionariedade e também por meio de Habeas Corpus ou Mandados de Segurança para manter o interesse do indiciado, nesse caso, sendo um exemplo do exercício da defesa exógena. Observa-se ainda que não há uma forma de contradizer ou contrapor nada nessa fase e que realmente não se pode falar em acusado ou em processo, pois nessa fase não há nenhum litígio, só a busca de indícios os quais vão servir posteriormente de base para uma ação penal e consequente processamento e julgamento.
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A IM P OSSIBILIDADE DE A PLIC A Ç Ã O D O PRI NCÍPIO DA INSIG NIFIC Â NC IA PELO DELEGADO DE POLÍC IA
G U STAV O A LB ERTON I
RESUMO O presente capítulo tem o intuito de analisar o princípio da insignificância e suas características, buscando responder se o delegado de polícia pode deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante por força do princípio da insignificância. Para tanto, busca-se explicar o princípio da insignificância, trazendo sua conceituação, surgimento, características e sua aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro. Posteriormente, será traçada algumas análise acerca do instituto do inquérito policial e suas características peculiares, assim como a atuação da autoridade policial e os princípios a que este está submetido. Por fim, a pesquisa se baseia em traçar uma discussão acerca da atuação garantista do delegado de polícia, indagando-se se este pode liberar o cidadão que cometeu fato descrito na lei penal, ou se está adstrito ao princípio da obrigatoriedade, o qual permeia o procedimento do inquérito policial.
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Introdução Pode o delegado de polícia deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante por força da aplicação do princípio da insignificância? Quais são as hipóteses favoráveis e quais as desfavoráveis à referida aplicação? Sendo o princípio aplicado, estaria ferindo o princípio do sistema acusatório? São algumas dessas indagações que surgem quando da aplicação do princípio da insignificância já no primeiro momento da persecução penal. Frente a esses problemas é que o presente artigo busca um estudo pormenorizado sobre o tema para se chegar a uma melhor conclusão acerca das referidas indagações. A aplicação de princípios em situações jurídicas concretas sempre foi muito costumeira. Afinal, são os princípios norteadores os responsáveis pela criação das normas. Primeiramente, por referir-se a princípios é que o estudo apresenta a conceituação da denominação princípio, trazendo suas principais funções interpretativas das normas a serem aplicadas aos casos concretos da realidade atual. Tem-se, como espécie dos princípios, o princípio da insignificância ou da bagatela, ainda não positivado pelo legislador pátrio, utilizado para tornar atípico um fato típico, recaindo sobre a tipicidade material do crime. Serão ainda objetos de estudo o surgimento e a evolução, a conceituação, os critérios fixados pelo Supremo Tribunal Federal como norteadores de aplicação e outros aspectos relevantes acerca do tema. Em um segundo momento, será oportunizado o estudo do instituto do inquérito policial, o qual é presidido pela autoridade policial, com natureza de procedimento administrativo, sem garantia de contraditório e ampla defesa por força de sua característica inquisitiva, trazendo também suas diversas características, quais sejam, oficiosidade, oficialidade, caráter inquisitivo, além da característica da indisponibilidade a que se refere ao não poder da autoridade policial em arquivar o inquérito, e da característica da discricionariedade, a qual a própria lei penal vigente por vezes confere à autoridade policial nas suas diligências investigativas. Assim, por questões didáticas, depois de se discutir os dois institutos apresentados é que se pode chegar a uma melhor conclusão se a autoridade policial poderá ou não aplicar o princípio da insignificância e deixar de lavrar o respectivo auto de prisão em flagrante. Se por um lado a letra da lei processual penal traz em seu artigo 304 que o delegado de polícia não teria tal competência, por outro lado a repercussão usual do princípio da insignificância levaria a tal possibilidade. Assim, faz-se necessário analisar a possibilidade da aplicação de tal princípio aplicado ao inquérito policial. Logo, a pesquisa tem por finalidade demonstrar o princípio da insignificância e correlacioná-lo com a atuação da autoridade policial, para que haja um fiel entendimento da aplicação do referido princípio em sede de primeira fase da persecução penal.
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Conceito da Denominação “Princípio” Antes de estudar o princípio da insignificância, convém estabelecer alguns comentários acerca da nomenclatura princípio, palavra esta que tantos proferem sem saber seu real significado. Segundo Maurício Antonio Ribeiro Lopes, "violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma".453 No mesmo sentido, José Henrique Guaracy Rebêlo afirma que Princípio é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, seu verdadeiro alicerce, sua causa primária, seu germe. Por isso mesmo, violar um princípio é muito mais gravoso do que agredir uma norma ou comando determinado, porquanto implica repúdio a todo um sistema.454
O Direito Penal, assim como outras áreas do direito, é regido por variados princípios que auxiliam na correta interpretação das normas. Dessa forma, entende Miguel Reale que os princípios "são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas".455 Esse ramo do direito (Direito Penal), por possuir medidas punitivas e que privam o ser humano de sua liberdade, deve ser aplicado de forma racional e sem margem de erros, para que então a sociedade esteja segura de uma correta aplicação da lei e, consequentemente, o indivíduo tenha segurança de estar protegido pelo mesmo direito que protege a sociedade em que se encontra inserido.456 Como se pode perceber, os princípios criam as regras, que são nada mais nada menos a concretização dos princípios. Logo, os princípios são essenciais para que se possa existir um seguimento lógico dentro de um ordenamento jurídico, pois sem aqueles a sociedade viveria a disposição de normas e regras erroneamente interpretadas por não encontrarem uma base de apoio, que hoje são nada mais nada menos que os variados princípios presentes dentro do ramo do direito.
453
LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da insignificância no Direito Penal. São Paulo: RT, 1997, p. 29.
REBÊLO, José Henrique Guaracy. Princípio da insignificância: Interpretação Jurisprudencial. Belo Horizonte: DEL REY, 2000, p. 11. 454
455
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 306.
Neste sentido, Fernando Capez afirma que: “A missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., que denominamos bens jurídicos. Essa proteção é exercida não apenas pela intimidação coletiva, mais conhecida como preservação geral e exercida mediante a difusão do temor aos possíveis infratores do risco da sanção penal, mas, sobretudo, pela celebração de compromissos éticos entre o Estado e os indivíduos, pelos quais se consiga o respeito às normas, menos por receio de punição e mais pela convicção da sua necessidade e justiça.” (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1). 456
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Como todos devem saber, os princípios considerados constitucionais são aqueles que regem todo o ordenamento jurídico, vinculando as diversas interpretações ao seu status supremo. Corrobora a afirmativa em tela trecho do livro de Paulo Bonavides, que traz a ideia de que "a caminhada teórica dos princípios gerais, até a sua conversão em princípios constitucionais, constitui a matéria das inquirições subsequentes. Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo sistema normativo".457 Em resumo, conclui-se que os princípios são de aplicação necessária no ordenamento jurídico brasileiro nos dias atuais, onde a existência de situações complexas são as mais variáveis possíveis, não sendo mais exceção como antigamente, mas sim a regra. Conclui-se, ainda, que os princípios gerais do direito, depois de constitucionalizados, tornam-se a essência de todo ordenamento jurídico,458 sem que seja possível, ate mesmo, que qualquer norma seja criada em sentindo contrário, sob pena de futura declaração de inconstitucionalidade. Como decorrência de alguns desses princípios, encontra-se o princípio da insignificância, ainda não positivado pelo legislador, mas que ganhou força na jurisprudência pátria e vem sendo aplicado cada vez mais. Veremos a seguir o princípio da insignificância propriamente dito.
Princípio da Insignificância O surgimento do princípio da insignificância, segundo Fernando Capez, originou-se do Direito Romano com cunho civilista, sendo introduzido no sistema penal como método de política criminal por Claus Roxin, objetivando resolver os problemas sociais modernos. 459 Fernando Capez conceitua o princípio da insignificância da seguinte forma: "Segundo tal princípio, o Direito Penal não deve preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas incapazes de lesar o bem jurídico."460 Por essa razão, a aplicação do princípio da insignificância traz muitas discussões à tona, e uma delas recai sobre a punibilidade do agente que cometeu o crime bagatelar. Ainda segundo o mesmo autor, "a tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido, pois é inconcebível que o legislador tenha imaginado inserir em um tipo penal condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido".461 457
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores LTDA. 2011, p. 258.
458
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores LTDA. 2011, p. 258.
459
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.
460
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.
461
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.
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A grande indagação com a qual todos se deparam consiste no seguinte fato: afinal, o agente que cometeu crime considerado insignificante ficará impune? A resposta que se dá é simples. Na verdade, para o Direito Penal, o agente ficará impune no sentido literal da palavra, o que não ocorre em outras áreas do direito, onde, na área cível, o agente terá obrigação de reparar o dano, por exemplo.462 Acontece que o Direito Penal possui a função de regular as ações de todos aqueles que compõem uma população, aplicando, se for o caso, pena àqueles que decidirem ir contra a lei imposta. Por essa razão, importante lembrar que o Direito Penal é utilizado como ultima ratio, ou seja, deve ser aplicado em último caso, em situações consideradas relevantes.463 Sendo o Direito Penal aplicado em último caso, como poderia ser aceito que alguém fosse preso juntamente com aqueles que cometeram crimes piores em uma mesma prisão? Seria razoável entender que o Código Penal, quando previu o crime de furto, entendeu ser a norma aplicada tanto para o que furtou um veículo quanto para o que furtou uma fruta? Não parece algo razoável de se pensar. Então, para não haver o fomento e o incentivo, como muitos criticam, da criminalidade de bagatela, são deixados para as outras áreas do direito a aplicação de multas, ressarcimentos, entre outras medidas necessárias para a resolução do fato ocorrido.464 Logo, não há que se falar em aplicação do Direito Penal para crimes bagatelares. Estes devem ser tratados apenas como ilícitos por ir contra a lei, mas jamais como ilícito penal, por não estar caracterizada a tipicidade material.465 Alguns casos podem ser punidos e outros não, dependendo da apreciação do caso concreto, pois, como bem preceitua Fernando Capez, "o furto, abstratamente, não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser".466 Portanto, "nem toda conduta subsumível ao art. 155 do Código Penal é alcançada por este princípio, algumas sim, outras não. É um princípio aplicável no plano concreto, portanto".467 Tendo em vista a discussão e polêmica que surgem quando se fala na aplicação do princípio da insignificância, estudaremos a seguir os casos de sua aplicação atualmente.
Consequências da aplicação do princípio da insignificância Segundo o princípio da insignificância, em um sentido genérico, defende-se que todas as ações praticadas, ínfimas, mínimas, insignificantes ou até mesmo leves, não 462
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 31.
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 98.
463 464
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 31
465
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 31.
466
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 12.
467
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 12.
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configurarão crime e não merecerão a tutela do Estado, pois este não deve se preocupar em movimentar sua máquina judiciária para dirimir conflitos irrisórios.468 Deve-se ter em vista, logicamente, que cada caso deve ser analisado individualmente, visto que, muitas vezes, um objeto de valor ínfimo para alguns pode ter altíssimo valor sentimental para a pessoa vitimada que, por consequência, analisando o caso concreto, merecerá a tutela Estatal.469 A principal consequência decorrente da aplicação do princípio em comento reside na exclusão da tipicidade material, ou seja, mesmo o fato estando descrito em lei como crime, o princípio da insignificância quando aplicado irá excluir a tipicidade material que recai sobre a conduta do agente.470 Tipicidade Tipicidade formal + Tipicidade material = fato atípico Sendo a lesão insignificante, estará extinta a tipicidade da conduta do agente, ou seja, praticado determinado crime por uma pessoa, se a conduta se restar irrisória ao ponto de não gerar um alto grau de reprovabilidade e o agente atender outros requisitos determinados como impreteríveis pela doutrina e jurisprudência, terá ele extinta a sua tipicidade material, excluindo-se, por fim, o crime.471 Isso ocorre porque, segundo determinação do Supremo Tribunal Federal, para que haja tipicidade penal se faz necessária a presença tanto da tipicidade formal, intimamente ligada com o princípio da legalidade, quanto da tipicidade material, que se comunica com o princípio da lesividade e ao próprio princípio da insignificância.472 Aplicando-se o princípio da insignificância ao caso concreto, o fato será atípico, pois a tipicidade material inexiste e o fato passa a não constituir crime por força da não existência de um dos elementos do fato típico.473
Princípio da Insignificância e Princípio da Irrelevância Penal Em seu livro, Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade, Luiz Flávio Gomes trata do princípio da insignificância denominando-as infrações bagatelares, e subdividindo-as em infração bagatelar própria e infração bagatelar imprópria.474
468
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.
469
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 12.
470
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.
471
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 17.
472
RODRIGUES, Cristiano. Direito Penal, Parte Geral. Niterói- RJ: Impetus, 2012, p. 75
473
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 17.
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 102-105. 474
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Trata-se a infração bagatelar imprópria aquela em que o ato cometido pelo agente consiste em um fato típico que nasce tendo uma importância para o Direito Penal. Nessa modalidade de infração, o Direito Penal é aplicado e a persecução penal ocorre normalmente a fim de sanar o delito e aplicar uma sanção ao autor do fato cometido.475 Existem vários critérios para que se verifique que a infração é considerada de bagatela, como antecedentes criminais, conduta social, passagens pela polícia, entre outros, que o juiz deve analisar antes de proferir sua decisão. Por isso, afirma-se que a infração bagatelar imprópria é dotada de uma subjetividade para sua aplicação, ou seja, o fato nasce importante para o Direito Penal, o juiz analisa o caso concreto e, dependendo das circunstâncias, o juiz poderá aplicar o princípio da irrelevância penal do fato com base no artigo 59 do Código Penal pela simples razão de ter sido observado, depois da persecução penal, que aquela pena a ser aplicada é desnecessária.476 Por esse motivo, importante faz-se transcrever trecho do livro de Luiz Flávio Gomes: Também é desacertado querer aplicar o princípio da insignificância onde é o caso da irrelevância penal do fato (infração bagatelar imprópria). Cada espécie de infração bagatelar tem seu princípio adequado e apropriado (infração bagatelar própria: princípio da insignificância; infração bagatelar imprópria: principio da irrelevância penal do fato).477
Já a infração bagatelar própria é aquela que está ligada diretamente ao princípio objeto deste estudo, qual seja, o princípio da insignificância. Diferentemente da infração bagatelar imprópria, que exige uma subjetividade na análise do fato delituoso, na infração bagatelar própria é vista uma aplicação objetiva do princípio da insignificância, pois desde já é caracterizada a insignificância do crime cometido e a desnecessidade de mover a máquina estatal para a persecução penal.478 Nesse sentido, no entendimento de Luiz Flávio Gomes, não pode haver dúvida quanto à aplicação ou não do princípio da insignificância, pois este tem aplicação objetiva, não devendo ser analisado qualquer tipo de antecedentes ou vida pregressa do agente.479 Segundo o mesmo autor, o STF já se posicionou a respeito da aplicação do princípio da insignificância trazendo quatro critérios objetivos a serem aplicados e, 475 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 102-105. 476
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 105.
477
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 22.
478
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 105.
479
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 115.
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de acordo com tais critérios, enquadrando-se o fato dentro de um desses, não há que se falar em deflagração da ação penal. Importante neste momento é trazer para a análise do presente trabalho os critérios fixados pelo Supremo Tribunal Federal, os quais vinculam as decisões proferidas pelos juízes a uma análise subjetiva quando presente o caso concreto.
Critérios Fixados pelo Supremo Tribunal Federal Atualmente, por não existir um conceito positivado sobre o princípio da insignificância, muitos juízes ainda sentem temor na sua aplicação. Mas durante os últimos anos vêm se reiterando determinados posicionamentos doutrinários e também decisões jurisprudenciais que auxiliam a aplicação do princípio da insignificância. Contribuição jurisprudencial do STF, depois de várias decisões no mesmo sentido, trouxe alguns vetores norteadores a serem seguidos, quais sejam: (a) ausência de periculosidade social da ação, (b) a mínima ofensividade da conduta do agente, (c) a inexpressividade da lesão jurídica causada e (d) a falta de reprovabilidade da conduta.480 Com a decisão do Habeas Corpus de número 84.412 de São Paulo, pelo ministro Celso de Mello, houve então a fixação dos vetores para a aplicação do princípio da insignificância. Tendo em vista que o presente trabalho visa a analisar o princípio da insignificância em detalhes, necessário faz-se transcrever a ementa do referido julgado: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQUENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO – CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE – ‘RES FURTIVA’ NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF – PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, exami480 BRASIL. STF. Habeas Corpus: HC 84412 SP. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/767015/ habeas-corpus-hc-84412-sp-stf>. Acesso em: 10 de abril de 2013.
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nada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR.’ O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.481
Como se pode perceber, o julgado do Supremo Tribunal Federal traz à tona os requisitos exigidos para uma aplicação do princípio da insignificância de forma adequada, preocupando-se na não movimentação e intervenção do Estado em situações insignificantes que afetam o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Discussão se dá no momento de se entender se todos os vetores devem ser aplicados cumulativamente ou se existe a possibilidade de serem aplicados independentemente um do outro. Segundo entendimento de Luiz Flávio Gomes, os critérios definidos pelo Supremo Tribunal Federal devem ser entendidos separadamente, ou seja, cada caso é um caso. Isso ocorre pelo fato de três deles versarem sobre o desvalor da conduta e um versar sobre o desvalor do resultado jurídico.482 Exemplos citados pelo doutrinador Luiz Flávio Gomes: a) o agente que colabora derramando um copo de água em uma inundação causada por outrem (conduta irrelevante para o Direito Penal); b) o agente que subtrai uma cebola (insignificância 481 BRASIL. STF. Habeas Corpus: HC 84412 SP. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/767015/ habeas-corpus-hc-84412-sp-stf>. Acesso em: 10 de abril de 2013. 482
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 20.
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quanto ao resultado); c) em um acidente de trânsito em que o agente age com culpa gerando lesão corporal levíssima (insignificância quanto à conduta e quanto ao resultado). Resumindo, pode-se aplicar o princípio da insignificância quanto ao resultado, quanto à conduta ou quanto ao resultado e à conduta juntamente. Dependendo do caso concreto é que se poderá definir qual critério deverá ser aplicado.483 Sendo assim, Há situações em que falta o desvalor da conduta; em outras falta o desvalor do resultado; e ainda há um terceiro grupo em que faltam ambos os desvalores. Nos três não se pode afastar, de plano, a incidência do princípio da insignificância. Os critérios vetores desse princípio, admitidos pelo STF, como se vê, devem ser bem compreendidos.484
Entendo que a melhor forma de compreender o princípio da insignificância e a sua consequente aplicação é seguir o entendimento de que cada caso é um caso, ou seja, cada caso concreto deve ser analisado de forma isolada, observando sempre a subjetividade do caso concreto. Tanto é melhor que o princípio da insignificância passa a ser analisado de forma cuidadosa antes de aplicado a um caso concreto. Seguindo essa linha de raciocínio, analisando o caso concreto e visualizando uma situação em que o fato ocorrido se enquadra em não só um dos requisitos exigidos, mas em todos eles, temos então a aplicação do princípio da insignificância, sendo o fato atípico para o direito penal. Apesar de o Supremo Tribunal Federal, ao fixar os vetores norteadores para fins de aplicação do princípio da insignificância, não ter delimitado o assunto quanto à objetividade ou subjetividade de sua aplicação, me parece, no próprio teor do julgamento da Suprema Corte supracitado, que a análise está atrelada aos fatos que circundam o acontecimento do fato criminoso, observando-se o valor do bem, valor sentimental, valor social, conduta, comportamento, entre outros fatores que devem ser considerados no momento da aplicação da lei penal. Na verdade, fortalecendo ainda mais minha opinião, me parece lógico que analisar todos os fatores que podem influenciar no cometimento de um crime já é por si só uma afirmação de que a aplicação do princípio da insignificância deve se dar de maneira subjetiva e não objetiva como afirma Luiz Flávio Gomes. Quanto à alternatividade da aplicação de um ou todos os critérios fixados pelo Supremo Tribunal Federal, respeito a posição do autor Luiz Flávio Gomes, mas, em que pese a análise se basear tão somente no estudo de três deles versarem sobre o desvalor da conduta e um versar sobre o desvalor do resultado jurídico, me parece um 483
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 20–21.
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GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013, p. 20.
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tanto quanto temeroso, onde por consequência, não serão analisadas as outras ações reprováveis do autor do delito. Concluindo, ocorre que os juízes não podem cogitar a ideia de aplicar o princípio da insignificância dessa maneira, pois, a meu ver, desencadeariam uma desordem institucional, fomentando ainda mais a criminalidade de pequenos valores, confundindo-se futuramente o crime insignificante com aquele considerado de pequeno valor, que tem previsão expressa no parágrafo 2º, do artigo 155, do Código Penal, que assim dispõe: "[...] se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um terço a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa."485
Introdução ao Instituto do Inquérito Policial Segundo Guilherme de Souza Nucci, "a denominação inquérito policial, no Brasil, surgiu com a edição da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto-lei 4.824, de 28 de novembro de 1871".486 Constava na mesma lei a definição de que "o inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito".487 Consiste o inquérito policial em um procedimento administrativo que visa à elucidação de algum crime, por meio de diversas diligências ordenadas pelo delegado de polícia, Ministério Público ou pelo juiz, para que então sejam entregues ao Ministério Público elementos necessários para que este ofereça a denúncia, nos casos de crime de ação penal pública, e queixa-crime, nos casos de ação penal privada.488 Resumindo, pode-se entender, conforme aponta Adilson Mehmeri, que "consoante entendimento do próprio legislador, o inquérito policial é simples instrução provisória, antecedendo à propositura da ação penal, por isso que se lhe dá a rubrica de processo preliminar ou preparatório".489 Portanto, para juntar elementos suficientes é preciso que seja cumprida uma série de diligências previstas em lei. Essas diligências consistem em uma investigação policial realizada pelos agentes policias e presidida pelo delegado de polícia, que se formaliza por meio do inquérito policial.490
485
CURY, Rogério. Vade Mecum Penal. São Paulo: Rideel, 2012, p. 173.
486
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: RT, 2011, p. 148.
487
Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/103837/decreto-4824-71>. Acesso em: 10 abril de 2013.
488
ROCHA, Luiz Carlos. Investigação Policial, Teoria e Prática. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 05.
489
MEHMERI, Adilson. Inquérito policial (dinâmica). São Paulo: Saraiva, 1992, p. 11.
490
ROCHA, Luiz Carlos. Investigação Policial, Teoria e Prática. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 03 a 06.
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De acordo com as conceituações extraídas dos referidos doutrinadores, percebe-se que todos eles são uníssonos em reconhecer o caráter de procedimento administrativo, inquisitorial, informativo, com independência formal em relação ao processo penal e com valor probante relativo. O inquérito policial possui caráter administrativo, pois é instaurado pela autoridade policial, sendo que este integra o Poder Executivo e não o Poder Judiciário, e, por isso, o procedimento inquisitorial não se submete aos princípios do contraditório e ampla defesa, previstos no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, devendo o referido procedimento respeitar as regras atinentes no que se refere aos atos administrativos.491 Consiste em um procedimento inquisitorial, pois seu objetivo se limita ao recolhimento do maior número de elementos probantes para elucidação do crime. Já o seu caráter de valor probante relativo justifica-se pelo fato de o inquérito policial não prever direito ao contraditório e à ampla defesa.492 Isso ocorre, pois, apesar de o inquérito policial reunir elementos suficientes que ajudam na persecução penal, estes não são absolutos, ou seja, devem ser refeitos no curso do processo ganhando valor de provas judiciais.493 Tal conclusão ganha força quando analisado o artigo 155, caput, 1ª parte, do Código de Processo Penal, que descreve que "o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação".494 Importante notar que existem provas colhidas na fase investigativa que possuem valor probante, a exemplo dos exames periciais, como o corpo de delito.495 Entende-se, consoante o artigo 155 do Código de Processo Penal, que o juiz não pode basear-se exclusivamente nas provas produzidas em sede de inquérito policial, pois estas não passaram pelo crivo do contraditório e ampla defesa, ambos pertencentes ao artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, ressalvados os casos em que existam provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, o que resume seu valor probante e utilidade para o processo penal.496 Outro fator importante consiste no fato de o inquérito policial não ser imprescindível ao ajuizamento da ação penal. Isso ocorre quando o Ministério Público, no oferecimento da denúncia, ou o ofendido, no oferecimento da queixa-crime, detiver elementos suficientes que tragam indícios de autoria e prova da materialidade.497 Ocor491
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2011, p. 159.
492
SILVA, José Geraldo da. O inquérito Policial e a Polícia Judiciária. Campinas: Bookseller, 2000, p. 99.
493
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2011, p. 160.
494
CURY, Rogério. Vade Mecum Penal. São Paulo: Rideel, 2012, p. 230.
495
GARCIA, Ismar Estulano. Inquérito, Procedimento Policial. Goiânia: AB-Editora, 1999, p. 11.
496
CURY, Rogério. Vade Mecum Penal. São Paulo: Rideel, 2012, p. 230.
497
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: RT, p. 176 e 177.
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rendo essa hipótese, o inquérito policial será dispensado sem qualquer irregularidade, segundo o que consta nos artigos 39, § 5º, e 46, § 1º do Código de Processo Penal. Por último, cabe destacar o caráter de independência formal do inquérito em relação ao processo criminal. Isso se dá pelo fato de o inquérito policial não impedir a propositura da ação penal por eventual vício em seu curso ou pela realização de alguma diligência errônea.498 Por força de sua independência formal, o inquérito policial não será declarado nulo. Cabe lembrar, também, que não será ele declarado nulo por força de seu caráter informativo, ou seja, qualquer ato vicioso que existir no seu decurso não será capaz de anular o procedimento por inteiro e sim apenas aquele ato que não seguiu as conformidades legais, sem prejudicar o inquérito policial.499 O inquérito policial, portanto, visa a reunir o maior número de elementos possíveis para uma melhor elucidação do crime – elementos tais que terão valor probante relativo, posto que as provas angariadas no inquérito policial servem preliminarmente para colher provas acerca da materialidade do fato e indícios de autoria, auxiliando o detentor da ação penal e, em segundo lugar, trazendo para dentro do processo elementos com valor probante que auxiliem o juiz a fundamentar seu livre convencimento.500 Como observado, nosso ordenamento jurídico é norteado de características assim como o direito processual penal também o é, não podendo ser ele feito de forma livre e sem limitações principiológicas. Logo, o inquérito policial, além de possuir algumas principais características, possui também alguns princípios, quais sejam: procedimento escrito, indisponibilidade, oficiosidade, oficialidade, discricionariedade e inquisitivo.501 Portanto, por questões didáticas, faz-se necessário restringir o estudo a apenas duas características essenciais para discussão do tema em comento: a característica da indisponibilidade e a da discricionariedade.
Indisponibilidade Uma das características listadas consiste na indisponibilidade, característica que cinge-se no fato de o delegado de polícia não ter competência para arquivar o inquérito policial, mesmo tendo ele tomado conhecimento de alguma irregularidade no seu curso.502 498
GARCIA, Ismar Estulano. Inquérito, Procedimento Policial. Goiânia: AB-Editora, 1999, p. 12.
499
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2011, p. 161 e 162.
500
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2011, p. 161 e 162.
501
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método. 2011, p. 164.
502
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método. 2011, p. 167.
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Sobre a característica da indisponibilidade que recai sobre o inquérito policial, elucida o artigo 17 do Código de Processo Penal que "[...] a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito".503 Tal característica, para os autores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, demonstra-se da seguinte maneira: A persecução penal é de ordem pública e uma vez iniciado o inquérito não pode o delegado de polícia dele dispor. Se diante de uma circunstância fática o delegado percebe que não houve crime, nem em tese, não deve iniciar o inquérito policial. Contudo, uma vez iniciado o procedimento investigativo, deve levá-lo até o final, não podendo arquivá-lo, em virtude de expressa vedação contida no art. 17 do CPP.504
Nada impede, porém, que o delegado ao final do inquérito, opine pelo seu arquivamento, o que será analisado pelo representante do Ministério Público que levará em consideração ou não a opinião formulada pela Autoridade Policial em seu relatório final.505 Outro fator importante reside no fato de o delegado de polícia poder, depois de arquivado o inquérito policial, realizar novas diligências investigativas.506 É o que dispõe o teor do artigo 18 do Código de Processo Penal: "[...] depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia."507 Logo, apesar de a característica da indisponibilidade obrigar a não atuação da autoridade policial quanto ao arquivamento do inquérito, tem este a discricionariedade de realizar novas pesquisas, de acordo com o que preceitua o artigo 18 do Código de Processo Penal supracitado.
Discricionariedade Consiste o caráter discricionário do inquérito a possibilidade de a autoridade policial decidir sobre quais diligências deseja realizar para uma melhor busca de elementos probantes para a elucidação do crime. Sendo assim, o delegado pode a 503
CURY, Rogério. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2012, p. 220.
504
ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. Ed. JusPodivm. 2010, p. 94.
505
GARCIA, Ismar Estulano. Inquérito, Procedimento Policial. Goiânia: AB-Editora, 1999, p. 18.
506
GARCIA, Ismar Estulano. Inquérito, Procedimento Policial. Goiânia: AB-Editora, 1999, p. 18.
507
CURY, Rogério. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2012, p. 220.
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qualquer hora decidir qual ato será o mais adequado e em que momento ele deverá agir daquela maneira.508 Importante salientar que a discricionariedade do inquérito policial não se confunde com arbitrariedade da autoridade policial que preside o feito. A discricionariedade, como já falado, consiste na escolha das melhores diligências a serem realizadas para uma melhor elucidação do fato criminoso, enquanto a arbitrariedade reside na ação do delegado de polícia fora das normas que regem tanto o processo penal quanto o próprio inquérito policial.509 Sendo o delegado de polícia, aquele que preside o inquérito policial poderá escolher algumas entre tantas diligências cabíveis ao caso concreto. A discricionariedade em tela se resume ao fato de o delegado de polícia possuir autonomia em utilizar seus conhecimentos e experiência nas ações de investigação presidida por ele. 510 Conclui-se, portanto, que a discricionariedade está atrelada ao fato de o delegado de polícia decidir quais diligências são mais importantes a serem realizadas em um determinado fato, excetuando-se apenas a realização do corpo de delito que, por mandamento legal, é obrigatória.511
Prisão em flagrante Flagrante significa algo que é manifesto, ou seja, aquilo que está acontecendo ou que tenha acabado de acontecer e é facilmente detectado.512 Com isso, Guilherme de Souza Nucci conceitua a prisão em flagrante como "[...] a modalidade de prisão cautelar, de natureza administrativa, realizada no instante em que se desenvolve ou termina de se concluir a infração penal (crime ou contravenção penal)".513 O princípio da legalidade é aquele que rege a prisão em flagrante,514 tanto que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXI, dispõe que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei".515
508
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método. 2011, p. 166.
509
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método. 2011, p. 166.
510
ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. Ed. JusPodivm. 2010, p. 90.
TRINDADE, Daniel Messias da. O garantismo penal e a atividade de polícia judiciária. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012, p. 29. 511
512
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT, 2008, p. 594.
513
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT, 2008, p. 594.
514
FRANCO, Paulo Alves. Prisão em flagrante, preventiva e temporária. São Paulo: Editora de direito, 1999, p. 38.
515
CURY, Rogério. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2012, p. 9.
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A prisão em flagrante pode ser realizada por qualquer pessoa do povo quando na presença de fato criminoso ou pela autoridade competente por força de mandamento legal. A diferença entre um e outro se encontra no fato de que a pessoa do povo, se deixar de prender em flagrante, não estará prevaricando, mas tratando-se da autoridade competente fala-se em crime de prevaricação previsto no artigo 319 do Código Penal.516 A autoridade competente é obrigada a realizar a prisão em flagrante, conforme prescreve o artigo 301 do Código de Processo Penal: "[...] qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito."517 No momento da prisão em flagrante, têm-se três fases diferentes, sendo uma fase caracterizada pela captura, onde a pessoa se encontra em um dos casos de flagrância definidas em lei; a outra fase caracterizada pela lavratura do auto de prisão em flagrante, quando cabíveis os elementos legais; e, por último, a fase de custódia, quando então o autor do fato é conduzido ao cárcere.518 Como visto, a prisão em flagrante é ato apto para a instauração do inquérito policial. Isso se dá devido ao fato de o artigo 8º do Código de Processo Penal prever que "havendo prisão em flagrante, será observado o disposto no Capítulo II do Título IX deste livro",519 ou seja, dispõe que havendo qualquer modalidade de flagrante previsto nos artigos 301 e seguintes, segundo o artigo 304 do Código de Processo Penal, a autoridade policial deverá lavrar o auto de prisão.520 Por essa razão, Adilson Mehmeri afirma que "todos esses atos formais se resumem num processado só, com o nome de auto de prisão em flagrante, que dará início ao inquérito, naturalmente nos crimes de ação pública incondicionada".521 Já quanto aos crimes de ação penal pública condicionada à representação e as de ação penal privada, realizado o flagrante, deve a autoridade abrir oportunidade para que o ofendido ofereça a representação ou queixa-crime, respectivamente; caso contrário, deverá o preso ser libertado imediatamente.522 Estudado as principais características do princípio da insignificância, do inquérito policial e da atuação da autoridade policial, listo agora algumas hipóteses favoráveis e outras desfavoráveis acerca da aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia.
516
FRANCO, Paulo Alves. Prisão em flagrante, preventiva e temporária. São Paulo: Editora de direito, 1999, p. 35.
517
CURY, Rogério. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2012, p. 243.
518
BONFIM, Edilson Mougenot. Código de Processo Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 461.
519
CURY, Rogério. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2012, p. 220.
520
MEHMERI, Adilson. Inquérito Policial (Dinâmica). São Paulo: Saraiva, 1992, p. 53.
521
MEHMERI, Adilson. Inquérito Policial (Dinâmica). São Paulo: Saraiva, 1992, p. 53.
522
MEHMERI, Adilson. Inquérito Policial (Dinâmica). São Paulo: Saraiva, 1992, p. 53 e 54.
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Argumentos Favoráveis para que o Delegado Deixe de Lavrar o Auto de Prisão em Flagrante por Força do Princípio da Insignificância O delegado, como primeira figura de atuação, depara-se com situações que poderiam ser "filtradas" para o desatolamento do sistema judiciário. Não raramente alguém é condenado a anos de reclusão pelo simples furto de quantidades ínfimas de alimentos, criando obstáculos no sistema judiciário e comprometendo assim tempo e espaço para a resolução de outros casos mais complicados e mais reprováveis pela sociedade. Conforme visto no capítulo I da presente pesquisa monográfica, tem-se que o princípio da insignificância não deve se preocupar com condutas inofensivas e irrelevantes, as quais não possuem capacidade de lesar o bem jurídico tutelado.523 Portanto, havendo oportunidade de aplicação do princípio da insignificância, sob a égide dos requisitos fixados pelo Supremo Tribunal Federal, a tipicidade material restará excluída e, consequentemente, o fato se torna atípico. Sendo assim, o delegado de polícia, dentro da sua liberdade de atuação, não poderá deixar de lado suas obrigações advindas da lei sob pena de ferir o princípio da legalidade. No entanto, também não poderá ignorar o princípio da insignificância, pois este não deixa de ser norma, pois consiste em um princípio e princípios possuem força de norma no ordenamento jurídico. O delegado de polícia possui bacharelado no curso de direito, assim como os juízes e promotores, o que não o afasta do direito de poder adentrar ao juízo de valor acerca do fato ocorrido e, caso a autoridade policial viesse a intervir logo no primeiro momento da persecução penal, liberando aquele que tenha cometido ato insignificante, o Poder Judiciário poderia preocupar-se com situações de maior relevância que acabam por ferir de forma grave o bem jurídico tutelado. O STF, em decisão do HC 84.412, São Paulo, determinou os vetores norteadores para que o princípio da insignificância fosse aplicado aos casos concretos, entendendo que o princípio em tela recai sobre a tipicidade material do crime. Logo, não existe norma que diga que o delegado, observando todos esses requisitos, não possa desde já aplicar o referido princípio. Apesar de consistir em uma análise subjetiva, o delegado não poderia ser impedido de realizar um juízo de valor anteriormente à lavratura do auto de prisão em flagrante, percebendo que não se passa de fato que irá ocupar a máquina estatal de forma desnecessária. 523
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.
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Segundo Daniel Messias da Trindade, [...] o inquérito policial deve ser entendido como um filtro garantista, evitando que pessoas inocentes ou que não mereçam a reprovação do Direito Penal (ainda que em outros âmbitos jurídicos possam ser acionadas judicialmente para reparar o ilícito) sejam submetidas a um processo penal, cujo fim precípuo é a aplicação da sanção penal.524
Trata-se de uma visão garantista acerca do tema, dando mais liberdade à autoridade policial para que esta possa poupar, por assim dizer, o agente que cometeu ato insignificante para o Direito Penal. Afinal, como discutido anteriormente, será razoável que uma pessoa seja rotulada por uma investigação policial no seu currículo por furtar uma caixa de fósforos ou qualquer bem de valor reduzido e insignificante? Por isso, entende-se que é preciso uma visão garantista, visando à proteção do ser humano e os princípios a ele atinentes. No mesmo sentido, preceitua Daniel Messias da Trindade que: [...] em suma, com a ótica garantista, de aplicação imprescindível ao inquérito policial, tem-se a aplicação quantitativa das funções de Delegado de Polícia. Assim, como já referido anteriormente, a investigação policial, nesse viés, tem o nítido caráter de evitar a instauração de uma ação penal infundada/equivocada por parte do titular da ação. Logo, o garantismo penal deve ser observado desde o seu primeiro momento, mais precisamente na fase que antecede o processo penal.525
Desse modo, a autoridade policial, segundo o mesmo autor, "[...] assume a importante função preliminar de analisar a priori todos os elementos do conceito analítico de crime, no sentido de que se evite a invasão do Estado na liberdade individual das pessoas submetidas ao inquérito policial [...]"526 Importante faz-se transcrever trecho do livro de Guilherme de Souza Nucci que assim dispõe:
524 TRINDADE, Daniel Messias da. O garantismo Penal e a Atividade de Polícia Judiciária. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012, p. 64. 525 TRINDADE, Daniel Messias da. O garantismo Penal e a Atividade de Polícia Judiciária. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012, p. 65. 526 TRINDADE, Daniel Messias da. O garantismo Penal e a Atividade de Polícia Judiciária. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012, p. 65.
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[...] o simples ajuizamento da ação penal contra alguém provoca um fardo à pessoa de bem, não podendo, pois, ser ato leviano, desprovido de provas e sem um exame pré-constituído de legalidade. Esse mecanismo auxilia a Justiça Criminal a preservar inocentes de acusações injustas e temerárias, garantindo em juízo inaugural de deliberação, inclusive para verificar se se trata de fato definido como crime [...]527
Por esses motivos, criam-se hipóteses favoráveis para que o delegado de polícia aplique o princípio da insignificância e deixe de lavrar o auto de prisão em flagrante, pois, caso contrário, lavrado o respectivo auto e consequentemente instaurado o inquérito policial, dificilmente este cidadão, que nada de relevante cometeu contra o bem jurídico tutelado, será rotulado eternamente por uma ação infundada do Estado.
Argumentos Desfavoráveis que Impedem a Discricionariedade do Delegado de Polícia Deixar de Lavrar o Auto de Prisão em Flagrante por Força do Princípio da Insignificância De acordo com o tópico de prisão em flagrante apresentado neste trabalho, tem-se que a prisão em flagrante, em síntese, é facultativa a qualquer um do povo e obrigatória em se tratando de autoridade competente para tanto. O delegado de polícia deve cumprir os mandamentos legais previstos nos artigos 301 e seguintes acerca da prisão em flagrante, sob pena de estar indo contra o princípio da legalidade e algumas das características principais do inquérito policial. O delegado de polícia, quando em situação de crime cometido por qualquer pessoa, deverá lavrar o auto de prisão em flagrante e consequentemente iniciar o inquérito policial, por força do artigo 304 do Código de Processo Penal. Posto isto, o inquérito policial tem a finalidade de juntar o maior número de elementos probantes para que então o Ministério Público possa oferecer a denúncia ou não.528, 529 Tendo em vista o fato de o inquérito policial possuir característica administrativa e não judiciária, não há que se falar na discricionariedade da autoridade policial deixar ou não de instaurá-lo, pois restaria a vítima do ato criminoso com sensação de injustiça e dever não cumprido por parte do Estado.
527
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT, 2008, p. 70.
BARBOSA, Manoel Messias. Inquérito Policial, Doutrina, Prática e Jurisprudência. Ed. Método. São Paulo. 2004, p. 25. 528
529
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 470-473.
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É claro e evidente que não pode o delegado de polícia atuar contrariamente às regras processuais que o obrigam a aplicar discricionariamente o princípio da insignificância, posto que, caso o fizesse, estaria fomentando a prática de crimes irrelevantes, mas que em conjunto resultam em uma desordem jurídica. A autoridade policial, mesmo dotada da característica da discricionariedade presente na persecução investigativa, não possui o condão de deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante, porquanto essa característica só lhe permite realizar diligências dentro dos parâmetros razoáveis e proporcionais da lei – e quando se fala em deixar de realizar ato de ofício me parece incabível que o delegado possa fazê-lo. Permitir que o delegado de polícia fizesse juízo de valor já na primeira fase da persecução penal seria cometer injustiças para com aqueles que foram lesados em seus direitos e procuram um meio de justiça. Por fim, entendo que a autoridade policial não poderia adentrar o mérito da análise do princípio da insignificância, pois este implica em juízo de valor típico da atividade jurisdicional, que está acobertada pela independência. Autorizar que os delegados de polícia apliquem o princípio da insignificância consiste em antecipação de um juízo de mérito típico da atividade jurisdicional. Afinal, na origem, o princípio da insignificância foi desenvolvido pelo argumento maior de que certas condutas não deveriam ser punidas. Aliás, como o inquérito tem justamente o fim precípuo de colher provas – não necessariamente para a acusação –, o juiz é que teria melhores condições de aplicar o referido princípio, rejeitando eventual denúncia.
Referências ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. Ed. JusPodivm. 2010. AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2011. BARBOSA, Manoel Messias. Inquérito Policial, Doutrina, Prática e Jurisprudência. Ed. Método. São Paulo. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores LTDA. 2011. BONFIM, Edilson Mougenot. Código de Processo Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 2007. BRASIL. STF. Habeas Corpus: HC 84412 SP. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/767015/habeas-corpus-hc-84412-sp-stf>. Acesso em: 10 de abril de 2013. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2007. CURY, Rogério. Vade Mecum Penal. São Paulo: Rideel, 2012.
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Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/103837/decreto-4824-71>. Acesso em: 10 abril de 2013. FRANCO, Paulo Alves. Prisão em flagrante, preventiva e temporária. São Paulo: Editora de direito, 1999. GARCIA, Ismar Estulano. Inquérito, Procedimento Policial. Goiânia: AB-Editora, 1999. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2013. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da insignificância no Direito Penal. São Paulo: RT, 1997. MEHMERI, Adilson. Inquérito policial (dinâmica). São Paulo: Saraiva, 1992. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT, 2008. ______. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: RT, 2011. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1998. REBÊLO, José Henrique Guaracy. Princípio da insignificância: Interpretação Jurisprudencial. Belo Horizonte: DEL REY, 2000. ROCHA, Luiz Carlos. Investigação Policial, Teoria e Prática. São Paulo: Saraiva, 1998. RODRIGUES, Cristiano. Direito Penal, Parte Geral. Niterói- RJ: Impetus, 2012. SILVA, José Geraldo da. O inquérito Policial e a Polícia Judiciária. Campinas: Bookseller, 2000. TRINDADE, Daniel Messias da. O garantismo penal e a atividade de polícia judiciária. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012.
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O M ITO DA IMPAR CI A LID A DE DO T RIBUNAL DO JÚR I: OS M EIOS DE COMUNICAÇÃO C OM O FA T OR E XTRAPR OCESSUAL D E INFLUÊNC IA NA IM PAR CIALIDADE DA S DEC IS Õ ES DO TR IBUNAL D O J ÚRI.
C A R O LINE MA R IA V IEIR A LACERDA
RESUMO O objetivo do presente trabalho é questionar a estrutura do Tribunal do Júri diante da realidade jurídica atual. A autora busca traçar seus fundamentos tendo por base a influência de fatores extraprocessuais no Processo Penal, com maior ênfase na intervenção dos meios de comunicação. Em um primeiro momento, analisa-se a origem do Tribunal do Júri e os motivos de sua criação, demonstrando que os motivos pelos quais o instituto foi criado não subsistem na atualidade. Com o advento dos princípios assegurados pela Constituição Federal de 1988, houve uma ampliação das garantias dadas ao acusado no curso do procedimento criminal, as quais não existiam no momento de criação do referido instituto. Também houve considerável alargamento no sentido do princípio da liberdade de expressão, o qual engloba liberdade de pensamento, liber231
232
C ARO LI NE MARI A VI EI RA LACER D A
dade de manifestação e liberdade da imprensa. Diante disso, há colisão dos princípios que asseguram o devido processo legal com os que afiançam a liberdade de expressão. Os ideais difundidos pelos meios de comunicação são frequentemente incompatíveis com os princípios que regem o Processo Penal. A influência midiática desmedida pode acarretar injustiças no julgamento penal. Tal conflito deve ser solucionado por meio da ponderação, que se fundamenta na necessidade de proporcionalidade na aplicação das garantias constitucionais. Por isso, deve haver restrição dos princípios para que seja assegurado o aproveitamento de ambos. Mudanças devem ser feitas tanto em relação à liberdade dos meios de comunicação quanto ao processo criminal, principalmente no que se refere aos crimes dolosos contra a vida. A partir desse entendimento são feitas análises de possíveis adaptações do exercício da liberdade de expressão, para sua maior moderação, e do Tribunal do Júri, para adequação de seu procedimento. Palavras-chaves: Tribunal do Júri; Liberdade de expressão; Devido processo legal; Influência da mídia; Adequação do procedimento do Júri.
Introdução A instituição do Júri é fundamentada no mito de um julgamento feito por pares, de forma imparcial. Contudo, se voltarmos no tempo e analisarmos os verdadeiros motivos do surgimento do instituto, poderemos perceber que sua criação foi mascarada por ideais nunca alcançados. A proximidade utópica do acusado com seus julgadores, a análise do caso pela sociedade diretamente envolvida, a íntima convicção dos jurados, a imparcialidade e todos os demais norteadores do Tribunal do Júri são conceitos vazios na realidade atual, principalmente após a Constituição de 1988, quando houve a ampliação do rol dos direitos fundamentais, os quais abrangem os princípios basilares do Processo Penal. Os fatores extraprocessuais de influência no Tribunal do Júri têm sido amplamente discutidos desde a criação da Constituição Federal de 1988. Isso porque, em muitos casos, a influência de meios externos ao Processo Penal pode gerar injustiças irreparáveis. Um exemplo de fator extraprocessual de grande influência nas decisões do Conselho de Sentença é a mídia. Com o desenvolvimento tecnológico do país e do mundo, houve um crescimento descontrolado dos meios de comunicação. A notícia percorre o mundo todo em uma fração de segundos. Isso aumenta a responsabilidade daqueles que a transmitem. Os crimes dolosos contra a vida são os melhores alvos para os meios de comunicação sensacionalistas, que não se preocupam com o devido processo legal e com a presunção de inocência. São disseminados valores que vão de encontro com os estabelecidos pelo Processo Penal. Para a mídia, justiça ainda se confunde com punição.
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Diante disso, surge a colisão entre o princípio constitucional do devido processo legal com o princípio da liberdade de expressão, garantias essenciais para a existência do Estado Democrático de Direito. Por isso, é necessária a mitigação de ambos os princípios para que se chegue à solução ideal. É imperioso moderar os efeitos da liberdade e adequar o procedimento do Júri para a realidade atual, de forma que se assegure o devido processo legal.
O Tribunal do Júri Surgimento do Tribunal do Júri As origens do Tribunal do Júri são indefinidas e vagas, uma vez que não há relatos históricos conclusivos sobre a sua criação. Isso porque o Direito está ligado às raízes humanas mais remotas, sendo praticamente impossível separar o seu surgimento da existência do homem. Há muita insegurança dos autores no tocante à determinação da origem do Júri. No início deste século, Arthur Pinto da Rocha530 elaborou o ensaio de maior relevância sobre a origem do Tribunal do Júri, apontando os diversos momentos históricos nos quais as características do instituto foram se mostrando. Para esse ilustre autor, as leis de Moysés foram as primeiras que interessaram os cidadãos no julgamento dos tribunais. Ruy Barbosa531 também vislumbrou a prefiguração do instituto do Júri além da cultura romana. Segundo seu entendimento, os antecedentes são a Helieia ou o Areópago grego. A Helieia era um tribunal popular cuja composição envolvia centenas ou milhares de julgadores leigos – os heliastas – numa assembleia deliberativa direta, que se pronunciava de acordo com o que julgasse mais apropriado. O Areópago destinava-se ao julgamento de crimes sanguinários. Era composto por homens considerados sábios, que se tornavam juízes vitalícios e decidiam de acordo com os ideais de justiça e prudência. Ambos os institutos foram responsáveis pela pacificação social em Atenas e palcos dos julgamentos de maior importância na história, como a condenação do filósofo Sócrates.532
530 ROCHA, Arthur Pinto da. Primeiro jury antigo, em Dissertações (Direito Público), organizadas por Manoel Álvaro de Souza Sá Vianna no Congresso Jurídico Americano, comemorativo do 4º centenário do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904, v. II, p. 527 e ss. 531 BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal brasileira, coligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva, 1934, v. VI, p. 119-120. 532 ALMEIDA, Ricardo Vital de. Tribunal do Júri. Aspectos constitucionais. Soberania e democracia social – “Equívocos propositais e verdades contestáveis”. São Paulo: CL Edijur, 2005, p. 34.
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Para Rogério Lauria Tucci,533 a conclusão sobre a origem do Tribunal do Júri deve ser outra. Seu entendimento caminha no sentido de que em Roma está o verdadeiro embrião do julgamento popular, no segundo período evolutivo do sistema acusatório, fundado nas quaestiones perpertuae. O autor afirma que é necessária certa estruturação, ainda que rudimentar, para que um julgamento feito por pares possa ser considerado Júri Popular. E essa referida estruturação apenas surgiu em Roma, com seu órgão colegiado instituído por cidadãos, presidido pelo pretor e cujas atribuições eram definidas em leis previamente editadas. Autores mais contemporâneos preferem vislumbrar seu surgimento na Inglaterra. Ricardo Vidal de Almeida534 assevera que o modelo de Júri, nos padrões atuais, remonta às características do exemplo britânico do século XI, introduzido pelos conquistadores normandos. Para ele, o Tribunal do Júri, a partir do modelo inglês, passou por um processo evolutivo lento, tanto no aspecto axiológico quanto no aspecto empírico, evoluindo por quatro séculos até se consolidar em ciência jurídica para emigrar para outras nações. O júri inglês era formado pelos coniuratoers – os acusadores –, pessoas que tinham conhecimento do fato, por terem visto ou por haver apurado em julgamento. Eles não exerciam a função julgadora e limitavam-se apenas ao fato, dando seu veredito. Esses acusadores do Estado acabaram ficando conhecidos como júri de acusação e deram origem a uma nova maneira de julgar, criando, assim, o chamado “júri de julgamento”. Rogério Lauria Tucci, em sua firme posição de que Roma originou o instituto do Tribunal do Júri, afirma que a atuação judicial dos normandos, os conquistadores da Inglaterra, foi extraída dos romanos. Com a tomada das ilhas britânicas, o Júri foi implantado nas terras conquistadas, amoldando-se aos costumes ingleses. Dessa forma, surgiu um órgão julgador diferenciado. Os Estados Unidos deram força democrática ao Poder Judiciário. O Júri inglês estabeleceu-se na América do Norte, como consequência lógica da colonização, tornando-se o “baluarte de sua liberdade”.535 Os ideais iluministas, aspiradores da Revolução Francesa, também afetaram de forma definitiva a evolução do Júri. A França conferiu caráter político ao instituto. Foram adotadas as discussões públicas como procedimento de julgamento de crimes. Além disso, foi criada a proclamação individual do voto.536 533 TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri. Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 15. 534 ALMEIDA, Ricardo Vital de. Tribunal do Júri. Aspectos constitucionais. Soberania e democracia social – “Equívocos propositais e verdades contestáveis”. São Paulo: CL Edijur, 2005, p. 31. 535 TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri. Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 29. 536
TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri. Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo:
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Diante disso, podemos perceber as intensas modificações ocorridas no julgamento feito pelo Tribunal do Júri a fim de adaptá-lo às circunstâncias do local em que era exercido. Já no Brasil, a origem do Tribunal do Júri data do império. Foi criado pela lei de 18 de julho de 1822, recepcionada pelo príncipe regente, d. Pedro de Alcântara, direcionado especificamente ao julgamento dos crimes de imprensa.537 Tratava-se de um Tribunal de privilegiados, sem nenhuma força soberana, no qual os processos tramitavam com muita morosidade. Isso porque apenas podiam ser eleitos para seu quadro aqueles que possuíssem renda e patrimônio mínimo.
Objetivos da Criação do Tribunal do Júri Independentemente de qual vertente sobre o surgimento do Tribunal do Júri seja a correta, é possível perceber que, de uma forma ou de outra, o Conselho de Sentença e o julgamento feito por pares foi criado numa tentativa de assegurar um julgamento proveniente de uma vontade maior, imutável e indiscutível. José Frederico Marques chega a afirmar que o motivo de existência de tal instituto tem explicação nas superstições.538 Seja qual for a corrente doutrinária adotada para determinar a origem desse instituto, o que se percebe é que todas elas têm em comum a natureza política. Os juízes eram colocados em tal posição em virtude de escolhas, arbitrárias, de autoridades da época. Marcelo Mezzomo afirma que a competência para julgar delitos em que as penas eram mais graves, sem a utilização do poder judiciário do Estado, foi um dos motivos para a sua permanência e consolidação nas sociedades. Ocorre que a ideia foi disseminada por todo o mundo e sobrevive até hoje em alguns países, mascarada por um conceito de imparcialidade que não existe. Já ensinava CARRARA que não existe julgamento pelo tribunal do júri em que os jurados não sejam chamados a emitir pronunciamentos jurídicos. E dizia o mestre da Escola Clássica: ‘acabemos de uma vez por todas com a hipocrisia de que os jurados são exclusivamente juízes do fato, hipocrisia que provoca o riso. No entanto, apesar de risível e grotesca a afirmativa, vemo-la, ainda hoje, repetida e reiterada em acórdãos, sentenças e pareceres doutrinários.539
Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 29-30. 537 CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: a influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, nº 94 – Jan/Fev 2012. 538
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2ª edição. Campinas: Millennium, 2001, p. 233.
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MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2ª edição. Campinas: Millennium, 2001.
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Segundo o entendimento de José Frederico Marques, o Júri foi criado para ser uma instituição democrática destinada a substituir os magistrados profissionais, que se curvavam às ordens dos dinastas e, por serem subordinados, se tornavam parciais.540 Os motivos de sua criação não existem mais. Atualmente, o Judiciário é um poder autônomo, imune a interferências dos outros poderes, sendo inteiramente responsável por suas decisões. Portanto, é inacreditável que haja um instituto que o faça se curvar submisso: Levado ao continente europeu como reação à magistratura das monarquias absolutistas, perdeu seu aspecto político depois que o judiciário adquiriu independência em face do Executivo; e despido daquela auréola quase mística de paladium da liberdade, para ser apreciado objetivamente como um dos órgãos da justiça penal, a sua inferioridade se tornou patente. Entre o julgamento inspirado na lei e na razão, no direito e no conhecimento técnico, e aquele ditado pelo arbítrio e pela intuição cega, não há hesitação possível.541
Por isso, com o passar do tempo, o Júri vem perdendo a importância que teve em outras épocas.542 O Brasil é um dos poucos países a adotar o julgamento por tribunal popular. No continente europeu, o Júri foi superado pelos tribunais mistos. Trata-se de outra forma de participação do povo na administração da justiça, diferentemente da forma clássica do Júri.543
A Influência dos Meios de Comunicação no Júri Colisão entre Direitos Fundamentais Há uma crescente popularização, feita pela mídia, de notícias com tendências criminológicas, o que leva os grandes públicos – que não conhecem o Processo Penal – a realizar um julgamento moral exclusivamente baseado no que é exposto pelos meios de comunicação. Diante disso, há uma tensão entre o princípio constitucional da liberdade de expressão, de um lado, e do devido processo legal, de outro, com todas as suas nuances referentes ao juiz natural, ao julgamento justo e à presunção de inocência. Essa situação é ainda mais evidente quando se trata do procedimento dos crimes dolosos contra a vida, qual seja, o Tribunal do Júri. 540
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de janeiro: Forense, 1961.
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MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de janeiro: Forense, 1961.
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 757.
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MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2ª edição. Campinas: Millennium, 2001, p. 237.
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A Constituição da República assegura tanto a liberdade de imprensa quanto o julgamento justo. Assevera, ainda, que somente ela pode restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.544 A liberdade de informação jornalística e a publicidade dos atos processuais são princípios essenciais que objetivam a defesa e o controle frente ao poder. São valores primordiais aos regimes democráticos. Na Constituição Federal de 1988, encontra-se disposta nos artigos 5º, inciso IX e 220, parágrafo 1º.545 Liberdade significa o poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas. A liberdade de expressão e a liberdade de informação são princípios determinantes em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro e, por isso, a tarefa de limitar tais condutas e fazer a ponderação de interesses não é fácil. Não se pode menosprezar o valor da publicidade dos atos processuais.546 Cada norma ocupa seu lugar na hierarquia do sistema, precisando buscar em uma norma superior seu fundamento de validade. Segundo esse critério axiológico, princípios são normas que têm importância valorativa. Havendo conflitos entre eles, o intérprete deve levar em consideração o peso relativo de cada um, no caso concreto, decidindo qual deve prevalecer. Isso não ocorre no que diz respeito às normas, pois são aplicadas na “dimensão do tudo ou nada”. Partindo daí, o conflito entre um julgamento justo e a liberdade de imprensa deve ser resolvido a favor do princípio.547 Assim, havendo colisão entre esses direitos, cabe ao operador do Direito analisar caso a caso, valendo-se da ponderação para resolver o conflito. “Somente assim é possível maximizar a proteção e concretização dos direitos fundamentais.”548 Apesar de ser difícil aferir o risco que a liberdade de imprensa pode causar ao julgamento justo, é possível entender que haverá esse risco quando o exercício da liberdade transbordar os limites de sua finalidade, transformando o foro de informação em foro de julgamento.549
544 VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros. Mídia e Júri: Possibilidade de restrição da publicidade no processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Revista dos Tribunais, 2003, ano 11, janeiro-março, p. 115. 545
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
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VIEIRA, Ana Lúcia M., Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Cap. 6.
CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: a influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, nº 94 – Jan/Fev 2012. 547
548 CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: a influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, nº 94 – Jan/Fev 2012. 549 VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros. Mídia e Júri: Possibilidade de restrição da publicidade no processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Revista dos Tribunais, 2003, ano 11, janeiro-março, p. 120.
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Influência da Mídia Nos últimos vinte anos, o homem criou a telefonia móvel, a Internet, aprimorou a comunicação via satélite, a transmissão de dados por fibra ótica e transformou a televisão em objeto de primeira utilidade. Ou seja, o homem revolucionou seus meios de comunicação, incrementando a velocidade e a globalização.550 Dessa forma, impõe-se fazer a seguinte indagação: a mídia representa algum perigo para a democracia? Convém notar que só o fato de formularmos essa pergunta já é razão suficiente para que se pense seriamente na interação entre os meios de comunicação e o Processo Penal e as consequências danosas que isso pode causar.551 Os ideais difundidos pelos meios de comunicação são frequentemente incompatíveis com os princípios que formam nosso Estado Democrático de Direito – a não discriminação, a privacidade e a dignidade da pessoa humana, para citar alguns exemplos. Esses ideais midiáticos normalmente pragmatizam que a pena privativa de liberdade é o meio mais eficaz para resolver problemas sociais.552 Fundados nessa crença, o público condena e absolve, contrariamente ao estabelecido pelo artigo 5º, LIII, da Constituição Federal, que determina ser da autoridade competente o encargo de fazer o julgamento.553 Em todos os casos midiáticos é praticamente impossível a inexistência de juízos paralelos, ora em favor do réu, ora em favor da vítima. O resultado do julgamento tende a coincidir com a opinião pública, que foi difundida pelos meios de comunicação.554 Se por um lado a mídia decodifica a linguagem utilizada pela Justiça, por outro ela transforma os fatos tidos como criminosos em grandes espetáculos públicos, deixando-os mais atrativos e sensacionalistas. Esse é um dos riscos que a publicidade dos atos processuais comporta. A propaganda midiática passa a ideia de que o sistema penal é falho e permissivo e de que a lei penal facilita o cometimento do crime, beneficiando o criminoso. Essa propaganda influencia a sociedade e, consequentemente, as sentenças do Conselho do Tribunal do Júri, prejudicando o julgamento imparcial do caso concreto. Enquanto nos julgamentos monocráticos a publicidade se reduz a um aspecto teórico, porque raríssimas vezes o público tem interesse no desenvolvimento da550 AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, nº 62, jun-jul 2010, p. 107. 551 AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, nº 62, jun-jul 2010, p. 133. 552 CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: a influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, nº 94 – Jan/Fev 2012. 553
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
GOMES, Luis Flávio. Os jurados e o poder da mídia. Revista Jurídica Consulex, ano XIII, nº 296, 15 de maio de 2009, p. 25. 554
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queles atos, no Tribunal do Júri a publicidade se potencializa não somente com a participação ativa do cidadão comum, que julga, mas também pelo grande interesse social que causa um crime contra a vida.555 Quando se fala em crime doloso contra a vida, sempre estará presente a comoção social – aquilo que foge do encadeamento racional e lógico de pensamentos.556 No entanto, teórica ou constitucionalmente, a atividade judicial está programada para ser independente e objetiva. Mesmo quando se trata de julgamento popular.557 Numa sociedade de grandes consumidores de televisão como o Brasil, as pessoas, quando passam da posição de plateia para a posição de atores, adotam estereótipos, trocando a realidade pela ficção, procurando se amoldar ao que é correto na visão da maioria. Alguns, envolvidos pelo ambiente do espetáculo, tornam-se verdadeiros atores, abusando da encenação, com o objetivo de ser admirados. Outros podem alterar a veracidade dos depoimentos em virtude da perda de espontaneidade.558 O poder de influência da mídia é exercido, normalmente, de forma imperceptível, dissimulando interesses maiores, principalmente quando alcançam casos de repercussão pública. Há uma competição da imprensa por uma informação privilegiada, o que gera uma superexposição das partes do Processo Penal. O resultado, como é sabido, geralmente consiste na multiplicação de casos de erro judiciário. É o que afirma Marcio Thomaz Bastos, citado por Marcus Vinícius Amorim de Oliveira:559 Algumas informações midiáticas admitidas nos processos são carregadas de sensacionalismo. O problema não se restringe à influência que a imprensa exerce sobre os jurados. Há outros meios utilizados para tornar negativa a imagem do suspeito, como, a captação de imagem no local do crime, entrevistas feitas com vizinhos da vítima ou do acusado, que dão opinião sobre o caráter dos sujeitos etc. Frise-se que os jurados são pessoas leigas, que decidem sem motivar. Dada essa peculiaridade, os valores mostrados pela mídia são aqueles reproduzidos pelos jurados na audiência.560 A publicidade prévia do fato criminoso ou dos atos do desenvolvimento processual pelos meios de comunicação, perante os casos de competência do Tribunal do Júri, é particularmente preocupante, pois, uma vez que o julgamento é feito 555
VIEIRA, Ana Lúcia M. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Cap. 6.
COSTA, Fernando José da. Conselho de sentença: Livre convicção ou comoção social? Revista Jurídica Consulex, ano XIII, nº 296, 15 de maio de 2009, p. 25. 556
557 GOMES, Luis Flávio. Os jurados e o poder da mídia. Revista Jurídica Consulex, ano XIII, nº 296, 15 de maio de 2009, p. 25. 558
VIEIRA, Ana Lúcia M. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Cap. 6.
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OLIVEIRA, Marcos Vinícius Amorim de. Revista Jurídica Consulex, ano IV, nº 37, 31 de janeiro de 2000, p. 41.
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por juízes leigos, a impressão que a mídia transmite do crime e do criminoso produz maior efeito neles do que as provas trazidas pelas partes na instrução e julgamento no plenário.561
Os jurados podem se sentir pressionados pela opinião pública e pela campanha criada pela imprensa em torno do julgamento. Por isso, podem se afastar do dever de imparcialidade e acabar julgando de acordo com o que foi difundido pela mídia. A imprescindibilidade de motivação e fundamentação das decisões, segundo o artigo 381 do Código de Processo Penal, é imposta apenas aos juízes togados. Aos leigos julgadores do Tribunal do Júri não é dada a obrigação de fundamentar, podendo decidir por íntima convicção. Logo, os jurados não se obrigam às provas do processo, agindo com total liberdade de consciência. No entanto, a liberdade de atuação que é conferida aos jurados não os isenta de decidirem com imparcialidade. Além disso, em decorrência da soberania dos vereditos – princípio assegurado pela Constituição Federal –, suas decisões não podem ser modificadas. Essa garantia constitucional não pode ser prejudicada pelos excessos da mídia, sob pena de o Tribunal do Júri representar apenas um perigoso instrumento de opinião pública, manipulável por segmentos mais fortes da sociedade.562 Por esse motivo, cabe à própria imprensa fazer um controle prévio com o fim de proteger a imagem das pessoas submetidas à investigação, o julgamento em juízo e, principalmente, os valores intrínsecos do processo criminal. É necessário que haja o entendimento por parte da imprensa de que a atividade jurisdicional se realiza com sustentação em determinados princípios, tais como a presunção de inocência e o devido processo legal. É importante que somente os casos atinentes à causa sejam trazidos à apreciação dos jurados, e nunca as versões de determinados segmentos da imprensa.563 A única forma inescusável de julgar é expor os dois lados da questão e obedecer à consciência. O Júri é a transcendência da consciência individual para a pública e social. É o vínculo entre a liberdade e o direito a julgamento no regime democrático de direito. Eis a sua magnitude única e vital.564 A intenção não é a de proteger criminosos, mas sim a de resguardar inocentes.565 Enquanto a televisão opera com a emoção, com a finalidade de atingir níveis de audiência, o Processo Penal se subordina ao devido processo legal. Os meios de comu-
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VIEIRA, Ana Lúcia M. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Cap. 6.
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VIEIRA, Ana Lúcia M. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Cap. 6.
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OLIVEIRA, Marcos Vinícius Amorim de. Revista Jurídica Consulex, ano IV, nº 37, 31 de janeiro de 2000, p. 42.
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LIVINO, Raul. Revista Jurídica Consulex, ano IX, nº 214, 15 de dezembro de 2005, p. 33.
AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, nº 62, jun-jul 2010, p. 112. 565
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nicação precisam de vilões e heróis, mas o processo não pode ser palco para câmeras, devendo garantir a racionalidade.566
Possibilidade de Limitação da Liberdade de Expressão Pode a lei, num contexto democrático como o que hoje se apresenta no Brasil, impor limites à liberdade de imprensa? A resposta é sim. Não existe qualquer direito no ordenamento jurídico nacional absoluto. Mesmo os direitos garantidos na Constituição encontram seus limites uns nos outros.567
Diante do que foi exposto, conclui-se que a liberdade de expressão no Processo Penal necessita ser repensada. Não se pode mais admitir no Processo Penal a interpretação e aplicação dos princípios de liberdade e publicidade de forma descomprometida com a ponderação de valores que se encontrem em jogo. “Um Processo Penal que não respeita o problema trazido ao seu conhecimento é um Processo Penal falido.”568 Não há no ordenamento jurídico brasileiro direito absoluto que se sobreponha aos demais. Por isso, os critérios de valoração devem ser flexíveis e cuidadosos, capazes de avaliar o caso concreto. Quando um bem individual puder sofrer prejuízos que justifiquem a restrição de liberdade da imprensa, esta deve ser feita. O operador do Direito deve fazer uma apreciação caso a caso, levando em consideração qual valor deve prevalecer. Uma vez que as regras constitucionais de vedação à censura ou responsabilização do indivíduo se mostrem insuficientes, deverá o magistrado obstar o exercício da liberdade de expressão ou informação, como forma de preservar o bem jurídico de maior valor.569 “[...] a cautela impõe que o judiciário, em qualquer grau de jurisdição, jamais opte pela realização de um ato público se a restrição à publicidade pode se justificar.”570 Convém esclarecer que não se faz aqui o equívoco de confundir liberdade de imprensa com princípio da publicidade. O que se pretende é buscar uma reação dialética entre eles, de forma a obter como resultado uma nova concepção acerca da restrição da liberdade. 566 AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, nº 62, jun-jul 2010, p. 112. 567 CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: a influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, nº 94 – Jan/Fev 2012. 568 AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, nº 62, jun-jul 2010, p. 147. 569 CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: a influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, nº 94 – Jan/Fev 2012. 570 VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros. Mídia e Júri: Possibilidade de restrição da publicidade no processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Revista dos Tribunais, 2003, ano 11, janeiro-março, p. 122.
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A partir do momento que a manifestação do pensamento, fundamentada na liberdade de imprensa, passa a impor opiniões, manipular psiquicamente aqueles que vão julgar um fato delituoso e ditar concepções ideológicas, fere-se o Processo Penal com todas as suas garantias.571 Enquanto os mecanismos de controle inexistem, o Poder Judiciário deveria intervir na influência que a mídia pode causar, dentro dos limites legais, sem que isso represente qualquer forma de censura, uma vez que nenhum valor é absoluto e nenhuma liberdade é ilimitada dentro de um Estado Democrático de Direito.
Adequação do Tribunal do Júri Assim como os meios de comunicação devem se adequar para assegurar a harmonia entre o devido processo legal e a liberdade de expressão, o Tribunal do Júri deve ter sua parcela de adequação social, visto que o motivo de sua criação não se adéqua mais à realidade brasileira. Dentro do panorama do Direito comparado existem algumas considerações úteis para a construção de um “novo” Tribunal do Júri. Inclusive há projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional visando à modificação do instituto.572 Na Alemanha funciona o sistema do Júri clássico ou “corte-mista”, onde o sistema não é acusatório puro e se compõe de um juiz profissional e dois leigos, ou, dependendo da gravidade da infração, de dois juízes profissionais e três leigos.573 A Cort D’Assise, na França, é composta por três juízes profissionais e nove leigos, sendo, por isso, heterogênea.574 O modelo italiano, embora também seja misto, com seis juízes leigos e dois togados, adota o duplo grau de jurisdição com participação popular. Em grau de apelo, a devolução do conhecimento da matéria se faz para outro Conselho de Sentença, também misto, que julga de maneira mais sensata e livre em comparação com os nossos Tribunais de Segunda instância, onde impera a burocracia e o tecnicismo. Nos Estados Unidos há uma criteriosa seleção de jurados, com profundo conhecimento do perfil de cada um deles. A Dinamarca prevê o julgamento por Tribunal do Júri para os crimes apenados com mais de quatro anos de reclusão. Nesse país os jurados decidem, também, o quan571 SOUZA, Artur César de. Caso Suzane Louise Von Richthofen e Irmãos Cravinhos – A Influência da Mídia na (Im) parcialidade do Tribunal do Júri. Revista da Ajuris, ano XXXIV, nº 105, março de 2007, p. 88. 572 GOMES, Luis Flávio. Os jurados e o poder da mídia. Revista Jurídica Consulex, ano XIII, nº 296, 15 de maio de 2009, p. 24. 573 GOMES, Luis Flávio. Os jurados e o poder da mídia. Revista Jurídica Consulex, ano XIII, nº 296, 15 de maio de 2009, p. 24. 574 GOMES, Luis Flávio. Os jurados e o poder da mídia. Revista Jurídica Consulex, ano XIII, nº 296, 15 de maio de 2009, p. 24.
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tum da pena. Essa medida foi adotada pelo fato de que alguns jurados absolviam o acusado por receio da severidade da pena a ser aplicada pelo juiz togado.575 No entanto, diante da grande diferença entre o sistema penal brasileiro e dos países acima mencionados, e tendo em vista a discrepância cultural, social e a própria estrutura carcerária, não é moderado dar maior participação ao jurado brasileiro no julgamento, ainda mais diante dos excessos frequentes causados pelos meios de comunicação. O conceito de justiça no Brasil ainda se confunde com punição, tendo embasamento em discursos sensacionalistas midiáticos. Nossa reforma no instituto do Tribunal do Júri deve, pelo contrário, moderar os efeitos da participação de pessoas que tem o único intuito de julgar como a maioria. O Tribunal do Júri deve ser mantido como garantia constitucional contemplada no artigo 5º da Constituição Federal. Não se discute sua existência, mas o seu procedimento. O instituto, no Brasil, merece muitos ajustes. Não se pode dizer que existe democracia tendo em vista apenas a participação popular no judiciário. As leis positivadas e os princípios constitucionais devem dar o embasamento e a segurança jurídica necessária para condenação ou absolvição de um sujeito. Além disso, a Constituição assegura proteção no sentido de não haver penas desumanas ou absurdas. Não é, portanto, o Tribunal do Júri que tutela a democracia ou a liberdade. É necessário se fazer uma ponderação entre a participação popular e o conhecimento técnico dos juízes togados para que sejam evitadas decisões sem qualquer embasamento jurídico, movidas pela emoção e pela influência da mídia. Para isso, o modelo que se mostra mais adequado é o misto, adaptado para a realidade brasileira. Consistiria na manutenção do Conselho de Sentença composto por jurados leigos, com a diferença de haver a participação, também, de juízes togados – de forma ativa e votante. A significativa modificação estaria no fato de o Conselho de Sentença ter como participantes pessoas leigas e juízes togados. Todos os modelos mistos adotados por outros países têm como característica a intervenção de mais de um juiz togado, motivo pelo qual tal ajuste no modelo brasileiro não parece tão desarrazoado. Além disso, a referida intervenção de outro juiz no procedimento do Tribunal do Júri não tiraria o poder popular nos julgamentos, mas daria um cunho mais técnico para as decisões. Os operadores do Direito não podem ser desprestigiados em julgamentos tão importantes como os de crimes dolosos contra a vida. É de suma importância que haja a participação de profissionais da justiça para que se assegure uma menor influência de fatores extraprocessuais no sistema penal e a correta aplicação do princípio do devido 575 GOMES, Luis Flávio. Os jurados e o poder da mídia. Revista Jurídica Consulex, ano XIII, nº 296, 15 de maio de 2009, p. 25.
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processo legal. Profissionais com maior habilidade de aplicação dos princípios constitucionais dariam a ponderação necessária ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Conclusão Diante do que foi apresentado, podemos perceber que já não existem os motivos para os quais foi criado o Tribunal do Júri. Com o surgimento da Constituição Federal de 1988, tornou-se ainda mais notória a necessidade de adaptação do procedimento de tal instituto, pois houve uma maior necessidade de se assegurar as garantias fundamentais no Processo Penal. Especificamente em relação à influência extraprocessual exercida pela mídia, houve o enfraquecimento da imparcialidade imprescindível em qualquer fase do Processo Penal, principalmente no que se refere aos crimes dolosos contra a vida. Note-se que, quando analisamos os motivos de criação do Tribunal do Júri, tal imparcialidade nunca existiu, e sua inexistência fica ainda mais evidente com a influência irresponsável dos meios de comunicação. A mídia prega valores antagônicos aos assegurados pela Constituição Federal quando assemelha justiça com punição. Existe o interesse em demonstrar que o sistema punitivo brasileiro é falho e suas penas são brandas, para que assim haja um maior fervor social e um maior interesse na compra da notícia. Não existe uma responsabilidade por parte dos operadores da imprensa sobre o conteúdo que é difundido. Diante disso, princípios como o da presunção de inocência e do devido processo legal ficam estremecidos pela influência dos meios de comunicação. O que se percebe é que tais direitos apenas existem na teoria do Tribunal do Júri, pois na prática são preteridos frente a outros interesses. Dentro dos limites estabelecidos neste trabalho, pretende-se sugerir uma ponderação entre os principais princípios analisados, quais sejam: a liberdade de expressão e o devido processo legal. Entende-se ser necessária uma maior influência do judiciário nos meios de comunicação, no sentido de restringir informações sensacionalistas e influenciadoras, principalmente em processos ainda não transitados em julgado. Isso não significa admitir a censura, mas moderar um princípio para que outro ganhe espaço. Tal interferência do Poder Judiciário deve ser feita em cada caso concreto, pelo juiz responsável pelo processo, de forma que sejam estabelecidas diretrizes para a terminologia, para o sigilo e para a influência da mídia. Quanto à garantia ao princípio do devido processo legal, principalmente com relação ao Tribunal do Júri, o entendimento é da necessidade de adequação do seu
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procedimento, para que juízes leigos, e muitas vezes parciais, não tenham um poder irrestrito em mãos, o qual permita injustiças e influências externas. É necessário que haja uma reestruturação do procedimento de forma a equiparar com a maioria dos outros países, que utilizam o modelo de "cortes-mistas". Isso significa modular a metodologia do Tribunal do Júri, para que exista uma participação ativa de juízes togados nas votações do Conselho de Sentença. Dessa forma, teríamos estudiosos do Direito interferindo nas decisões do Tribunal do Júri, dividindo a responsabilidade de uma sentença condenatória ou absolutória. Obviamente, a influência dos fatores extraprocessuais não acabaria, mas, diante das possibilidades que a cláusula pétrea do Tribunal do Júri impõe, modificar seu procedimento é a alternativa mais próxima do ideal que se pode chegar. O julgamento seria mais justo e menos irresponsável, tendo em vista que os operadores têm mais contato com os princípios basilares do ordenamento jurídico nacional e conseguiriam se desprender de forma mais eficaz da influência da mídia.
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A CONSTITUCIONALID A DE DA NOV A CI T AÇÃO POR HOR A C ERT A NO PROCESSO PENAL B RA S ILEIRO
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RESUMO A Lei nº 11.719/08 inovou o ordenamento jurídico brasileiro ao implementar no processo penal a chamada citação por hora certa. Assim, possibilitou mais uma forma de citação ficta em sede de processo criminal. Nesse prisma, necessário se faz um melhor estudo sobre o novo instituto frente aos princípios orientadores do direito brasileiro, bem como das prerrogativas constantes dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Para tanto, este trabalho308; Citação por hora certa; Citação ficta; Processo penal; Princípios processuais penais constitucionais; Convenção Americana de Direitos Humanos; Pacto de Direitos Civis e Políticos; Hierarquia de normas.
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Introdução A citação é o ato de comunicação que integra o réu à relação processual, dando-lhe, assim, conhecimento de que foi proposta uma denúncia ou queixa que lhe é desfavorável.576 Nesse prisma, percebe-se que o instrumento da citação é de suma importância, pois possibilita ao acusado formular sua defesa. A Lei nº 11.719/08 implementou o instituto da citação por hora certa no processo penal brasileiro baseando-se nos artigos do Código de Processo Civil. Dessa forma, se o oficial de justiça, após procurar o acusado por três vezes, suspeitar que este se oculta para frustrar a citação, procederá à citação por hora certa nos moldes do Código de Processo Civil. Caso o imputado não compareça será nomeado defensor dativo para realizar sua defesa. Nesse diapasão, é necessário um estudo mais aprofundado desse instituto frente os princípios constitucionais atinentes ao processo penal, com o escopo de analisar se a nova lei está em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, tendo em vista que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto de Direitos Civis e Políticos, instrumentos que versam sobre garantias processuais do acusado, faz-se necessário um estudo da referida lei frente aos dispositivos dos tratados.
Ds Citação e a Inovação da Lei Nº 11.719/08 Da citação De acordo com o artigo 213 do Código de Processo Civil, "citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender" O aludido diploma legal versa ainda em seu artigo 214 que a citação inicial do réu é ato indispensável para a validade do processo. Em sede de processo penal, a citação deve, em regra, ser efetuada de forma pessoal, ou seja, feita diretamente à pessoa do acusado por meio de mandado.577 A citação real confere a certeza de que o acusado tem ciência da existência de uma ação penal que lhe é desfavorável. Assim: 576 Neste sentido: NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. Da Citação por Edital do Acusado. 1ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. 577 “O instrumento da citação é o mandado. Não se admite citação por despacho. Mandado é ordem emanada do juiz exteriorizada sob forma típica. Deve conter o nome do juiz, o nome do réu, sua residência, o fim para o qual se faz a citação, a indicação do juízo e lugar, dia e hora do comparecimento para interrogatório e a subscrição pelo escrivão ou titular de função similar da secretaria ou cartório.” (AQUINO, José Carlos G. Xavier de; NALINI, José Renato. Manual de Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2009. p. 318). Note-se que a citação também pode ser feita através de carta rogatória, precatória e de ordem.
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É sabido que no processo a participação se dá por meio das comunicações dos atos processuais, o que é realizado pela citação, intimação e notificação. Porém, deve ser destacado que referidas comunicações devem se revestir de idoneidade, proporcionando real conhecimento às partes, uma vez que decorre do contraditório o inquestionável direito de ser informado não só dos atos e pronunciamento das partes, mas também dos atos do juiz e daqueles realizados pelos serventuários, o que deve ser feito durante todo o processo.578
Dessa forma, nota-se que a citação, além de ser o instrumento apto a trazer o réu à relação processual, é meio que possibilita ao acusado o exercício de direitos constitucionais tais como o contraditório e a ampla defesa. Por essa razão, deve-se dar prevalência à citação real em detrimento da citação ficta. No entanto, o Código de Processo Penal também prevê, como medidas subsidiárias e excepcionais, formas fictas de citações: a citação por edital e a citação por hora certa.
Da revelia Por ser instrumento que integra o acusado na relação processual, um dos efeitos que a citação pode produzir, caso o réu não compareça em juízo, é a revelia. Dessa forma, revelia, de um modo geral, é o status conferido à parte que se mantém inerte no processo. Seu conceito, segundo sua origem etimológica, tem conotação pejorativa, remetendo à ideia de desobediência e rebeldia, apesar de, atualmente, o conceito de contumácia ser uma denominação técnica que representa a inatividade da parte. De acordo com o artigo 367 do Código de Processo Penal, o processo continuará seu curso normal contra o acusado que, citado ou intimado pessoalmente, deixa de comparecer e não apresenta motivo justificado ou que muda de residência e não comunica ao juízo. Fernando Capez discorre sobre o assunto: Se regularmente citado ou validamente intimado a comparecer em juízo o réu deixa de fazê-lo sem motivo, o processo seguirá à sua revelia, tornando-se desnecessário proceder a sua posterior intimação para qualquer ato do processo, salvo da sentença. O mesmo efeito verificar-se-á na hipótese de o réu, depois de citado, mudar de residência ou dela ausentar-se por mais de oito dias, sem comunicar à autoridade processante o lugar onde possa ser encontrado. O subsequente comparecimento do acusado enseja a revogação da revelia. Tendo em vista os princípios acima aduzidos (direito ao silêncio, devido processo legal) 578 AQUINO, José Carlos G. Xavier de; NALINI, José Renato. Manual de Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2009. p. 133.
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conjugados com o da presunção de inocência, fácil é notar que a revelia no processo penal não possui os mesmos efeitos do processo civil, porquanto não importa confissão ficta.579
Como acima elucidado, diferentemente do processo civil, em processo penal não há que se falar em confissão ficta do acusado frente aos princípios da verdade real, direito ao silêncio, devido processo legal e presunção de inocência.
Lei nº 11.719/2008: aplicação da citação por hora certa no processo penal brasileiro De acordo com a Lei nº 11.719/08, caso comprove o oficial de justiça que o acusado se esquiva da citação, em uma tentativa de frustrar o desenrolar do processo penal, poderá promover a citação por hora certa de acordo com as regras do Código de Processo Civil. Se o acusado não comparecer, o processo terá seu andamento normal, sendo-lhe nomeado defensor dativo. A aludida lei utiliza, de modo complementar, as normas dos artigos 227 a 229 do Código de Processo Civil. Dessa forma, após cumprir tais exigências, o oficial de justiça poderá decretar a revelia do réu em sede de processo penal. Assim, percebe-se que essa nova forma de citação pode significar desvantagem para o réu, por permitir que o processo desenvolva-se sem sua presença. Se por um lado, com a adoção dessa medida, o Estado busca a entrega da prestação jurisdicional mais célere e eficaz, deve-se questionar a supressão e transgressão de direitos constitucionalmente assegurados, tais como a ampla defesa e o contraditório. Ressalta-se que a realização da citação por hora certa dependerá de um juízo de valor feito pelo oficial de justiça ao constatar que o réu se furta de ser citado. Se, em um primeiro momento, parece uma medida proporcional, pois é necessário que se dê uma resposta negativa ao réu que se furta, é imperioso observar que tal juízo é temerário e se não compactuar com a verdade importará em prejuízo ao réu que não toma conhecimento da citação e, por consequência, não terá oportunidade de se defender.
Dos Princípios Constitucionais que Giram em Torno do Tema Como é sabido, a liberdade consiste em um dos bens mais importantes de que o indivíduo é titular. O processo penal, por ser extremamente gravoso ao acusado, podendo culminar na restrição desse bem, deve submeter-se aos princípios e garantias previstos no ordenamento jurídico brasileiro. 579
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 179.
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É certo que os princípios de proteção do indivíduo são inerentes ao ordenamento jurídico pátrio; estes servem para promover garantias com vistas a proteger o acusado contra o exercício arbitrário do poder penal do Estado. O Estado de Direito deve assentar-se no modelo do garantismo,580 que busca sempre em sua atuação a proteção dos direitos fundamentais dos homens. A estrutura de um Estado se define pela ampliação do rol das liberdades e o oferecimento de meios eficazes para atingi-las. Nesse rol (de liberdades) ganha destaque a categoria de garantias de proteção dos indivíduos contra o exercício abusivo ou arbitrário do dever-poder de repressão do Estado. É com esse escopo que a Constituição Federativa do Brasil elenca inúmeras garantias àquele que responde ao processo penal, buscando sempre conferir-lhe a possibilidade de um julgamento justo e a efetivação de seus direitos. Cumpre esclarecer que essas garantias somam-se umas às outras, mas não só, articulam-se entre si de modo que “[...] umas conferem efetividade às outras e são também por estas reforçadas. Surge, assim, um sistema circular apto a assegurar, em níveis cada vez mais elevados, a proteção do indivíduo por intermédio do processo”.581 Importante salientar que os princípios não são absolutos, até mesmo o exercício do direito de defesa não é irrestrito, pois está sujeito a regras de lealdade, ética e conformidade, devendo ser evitado o abuso processual.582 Nem mesmo o direito de defender-se amplamente, conferido ao réu pela Constituição, é incondicional. O exercício dessa garantia encontra óbice em outros princípios também com elevada relevância, como, por exemplo, a razoável duração do processo, caso contrário a defesa estaria autorizada por lei a procrastinar infinitamente o pleito.
580 De acordo com a obra de Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, Ferrajoli resume o sistema garantista em dez princípios: “Nulla poena sine crimine. Nullum crimen sine lege. Nulla lex poenalis sine necessitate. Nulla necessitas sine iniuria. Nulla iniuria sine actione. Nulla actio sine culpa. Nulla culpa sine iudicio. Nullum iudicium sine accusatione. Nulla accusatio sine probatione. Nulla probatio sine defensione.
“Estes princípios definem o modelo garantista de direito. “Os princípios garantistas estão acima das legislações internas dos Estados, pelo menos daqueles que se dizem “Estados Democráticos de Direito. “As disposições expressas em nosso texto constitucional deixam em evidência a escolha do legislador originário em aderir ao movimento centrado no reconhecimento da inderrogabilidade dos direitos fundamentais. O constituinte, ainda, eleva à norma constitucional as normas de proteção e garantia de direitos fundamentais assimiladas pelos tratados ratificados pelo país. Deste modo, as normas constitucionais e os tratados internacionais em que o Brasil seja parte integram-se na formação do sistema jurídico brasileiro.” (STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000). 581 SOUZA, Alexander Araújo de. O Abuso do Direito no Processo Penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 114. 582 Neste sentido: SOUZA, Alexander Araújo de. O Abuso do Direito no Processo Penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 115.
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Princípios autorizadores da nova forma de citação em processo penal A Emenda Constitucional nº 45 de 2004 acrescentou o inciso LXVIII ao artigo 5º da Constituição que estabelece: "[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação." Trata-se, portanto, da consagração expressa do princípio da celeridade processual, o qual passa a fazer parte do rol dos direitos e garantias fundamentais. Tal princípio visa a garantir à sociedade (que é titular do direito de punir) a melhor prestação jurisdicional possível através de um processo célere, sem delongas desnecessárias. Nesse prisma, o instituto aqui estudado, ou seja, a citação por hora certa, proporciona uma entrega mais rápida da prestação jurisdicional à sociedade porque autoriza o desenrolar do processo sem a presença do réu que se oculta, evitando, desta forma, a demora consoante na tentativa de localizá-lo para que seja efetuada sua citação pessoal. Por sua vez, o princípio da eficiência está impresso no texto constitucional em seu artigo 37, caput. Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público. (grifos no original).583
Dessa forma, o poder público deve atuar de modo a apresentar resultados positivos para o corpo social, atendendo suas necessidades. Ademais, o princípio da economia processual visa a garantir o máximo de resultado advindo do processo, utilizando-se do mínimo de atos processuais possíveis. Busca evitar que atividades desnecessárias sejam desenvolvidas ao longo da demanda com o fim de impedir a demora desnecessária, bem como o gasto excessivo de recursos públicos. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Há que se ter sempre presente a idéia de que o processo é instrumento para aplicação da lei, de modo que as exigências a ele pertinentes devem ser adequadas e proporcionais ao fim que se pretende atingir. Por isso mesmo, devem ser evitados os formalismos excessivos, não essenciais à legalidade do procedimento [ ] (Grifo no original).584
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2006. p. 98.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2006. p. 610.
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Nesse sentido, a citação por hora certa implantada no sistema processual penal brasileiro se apresenta como instrumento facilitador para a entrega da prestação jurisdicional almejada, ou seja, a persecução penal, com posterior condenação ou absolvição do acusado, estando em sintonia com os princípios acima expostos. Percebe-se que esse instituto colabora com o melhor e mais econômico funcionamento da máquina judiciária, evitando inúmeras tentativas infrutíferas de realizar a citação pessoal do acusado, que dela se furta, como também evita a delonga desnecessária da entrega da prestação jurisdicional e possibilita a melhora da qualidade desta.
Princípios constitucionais que inibem a adoção da citação por hora certa Inicialmente, impende observar que a Constituição Brasileira institui expressamente, em seu artigo 5º, LIV, como corolário do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente na questão processual, o devido processo legal. Tal princípio consiste no direito de que a pessoa só será privada de sua liberdade e de seus bens após ter assegurada a garantia de um processo moldado nas formas estabelecidas pela lei. Para Alexandre de Moraes: O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).585
Dessa forma, o devido processo legal é princípio garantístico, aplicado ao processo, regedor dos demais princípios atinentes ao processo e ao procedimento. Decorrência do já referido princípio, o contraditório, previsto na Constituição em seu artigo 5ª, LV, refere-se à necessidade de dar conhecimento às partes de todos os atos do processo e proporcionar-lhes a possibilidade de defesa – obrigatoriedade da informação e possibilidade de reação. Esse princípio garante a igualdade de forças entre as partes, bem como confere-lhes as mesmas oportunidades de manifestação nos autos. Para Scarance Fernandes:
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2006. p. 93.
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São elementos essenciais do contraditório a necessidade de informação e a possibilidade de reação. Entre nós, tem-se, em regra, adotado noção clássica de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, que abrange esses dois elementos e define o contraditório como a ‘ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los’.586
Impende salientar que, no âmbito do processo civil, não se vislumbra a necessidade da ocorrência de um real contraditório, bastando o fato de ser facultado às partes a sua realização. Dá-se a oportunidade de defesa e o réu a usa se quiser. Quando se tratar de direito disponível, caso o demandado não queira utilizar-se do direito de contradizer, as alegações da parte autora serão tidas como verdadeiras.587 Por outro lado, no processo penal a oportunidade de o réu ser ouvido, de contrariar as alegações do autor, deve ser real, e não pautada em um contraditório meramente formal. Para Scarance Fernandes: No processo penal é necessário que a informação e a possibilidade de reação permitam um contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente que se dê às partes a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível que lhe sejam proporcionados os meios para que tenha condições reais de contrariá-los. Liga-se, aqui, o contraditório ao princípio da paridade de armas, sendo mister, para um contraditório efetivo, que as duas partes estejam munidas de forças similares.588
Cumpre ressaltar que a citação do réu é indispensável para a efetivação do contraditório, pois configura-se na "porta de entrada" para o processo. Constitui em dar ciência ao acusado das imputações que lhe são intentadas, a fim de que possa exercer sua defesa. Dessa forma, é ato imprescindível para o início do processo e para a real aplicação do princípio do contraditório. Maria Elizabeth Queijo, comentando as lições de Ada Pellegrini Grinover, afirma existirem "três parâmetros para os poderes instrutórios do juiz: a observância do contra-
586 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 61. 587 Exceto as ressalvas previstas no artigo 320 do Código de Processo Civil Brasileiro: havendo pluralidade de réus e algum deles não contestar, tratar-se o litígio de direito indisponível ou não estar a petição inicial acompanhada de documento público o qual a lei considera indispensável à prova do ato. 588 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 52/53.
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ditório, a obrigatoriedade da motivação e a exclusão das provas ilícitas e ilegítimas".589 A referida autora aponta o contraditório como sendo a forma mais eficiente de assegurar a imparcialidade do juiz, devendo, portanto, submeter-se ao contraditório todas as provas produzidas no processo, seja de iniciativa das partes, seja de iniciativa do juiz. Dessa forma, a citação "integra o acusado na relação processual, pois sem ela não se inicia o processo, não sendo possível o contraditório".590 Nesse âmbito, a citação por hora certa, adotada em sede de processo penal, não garante o exercício do contraditório de maneira efetiva, pois não há como fazer um juízo de certeza no sentido de que o acusado tenha concretamente tomado ciência sobre sua acusação. Tome-se, por exemplo, o acusado que mudou de endereço e, mesmo assim, fora citado por hora certa, não tomando conhecimento desse fato. Agora, imagine-se que, ao fim do processo, este mesmo réu tome conhecimento do ocorrido e comprove que não morava mais naquele local. Todos os atos realizados, então, teriam que ser anulados em virtude da citação inválida. Ou seja, a Lei nº 11.719/08, ao instituir a citação por hora certa no processo penal brasileiro, correu o risco de suprimir direitos do réu, mas mesmo assim o fez. Ressalta-se que não é suficiente a mera tentativa de citação pessoal para configurar que o contraditório fora facultado ao acusado; é preciso a certeza de que este tomou ciência da acusação e dispõe dos meios suficientes para defender-se. Para Roberto Delmanto Júnior: [ ] a citação por edital e a citação por hora certa, como modalidades de citação ficta, não deveriam, em nossa modesta opinião, ser admitidas como formas de chamamento do acusado ao processo penal [ ] A citação com hora certa, por acabar ressuscitando a possibilidade de haver processo sem o conhecimento da acusação, nomeando-se defensor dativo, com base em critérios subjetivos do oficial de justiça de que ele tem ciência da acusação. Isto porque, se o contraditório, no processo penal, há que ser real e efetivo, a única citação consentânea com esta exigência constitucional é aquela que se dê em termos igualmente reais e efetivos, ou seja, a citação pessoal. Se o acusado tiver concretamente fugido, que se lhe decrete, excepcionalmente, a prisão pre-
589 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 40. 590 NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. Da Citação por Edital do Acusado. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004. p. 81.
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ventiva, suspendendo-se o curso do processo até ser capturado, preso e finalmente citado.591
O referido autor discorre sobre como deveria proceder o judiciário em caso de fuga do acusado com o escopo de furtar-se da citação: Em suma, acreditamos que, tratando-se de persecução penal em que está em jogo o ius libertatis, se o juízo conhece o endereço em que o acusado reside ou trabalha, há que se insistir exaustivamente na citação pessoal, até que seja lograda, a não ser que, efetivamente, concretize-se real situação de fuga, autorizadora do decreto de prisão preventiva, sendo citado quando eventualmente preso, voltando, a partir de então, o processo a ter andamento. (grifos no original).592
Assim, o juízo deve esgotar todas as possibilidades de citar pessoalmente o acusado. Caso se configure situação de fuga, deve-se expedir mandado de prisão, citando-o depois de preso. Tal opção confere maior segurança, pois a fuga do acusado é um dos requisitos autorizadores da prisão preventiva.593 Nessa hipótese, além de conferir a certeza de que o réu fora citado, a adoção desse procedimento também visa a garantir a aplicação da lei penal com o fim do processo.594 Ora, se o Estado tem dificuldade em encontrar o acusado para citá-lo, terá dificuldades maiores ainda para localizá-lo após a condenação. Importante salientar que para configurar uma situação de fuga deve-se ter a certeza que o acusado se furta da citação, pois, na visão de Delmanto Júnior: Imagine-se o exemplo de um acusado que, em razão de seu trabalho, esteja viajando na época em que o oficial de justiça o procure. Até que ponto, indagamos, a dificuldade em encontrá-lo não será reputada como má-fé pelo oficial de justiça? Em outros termos, a opção pela citação com hora certa fundamenta-se em critério extremamente subjetivo, sendo tênue e frágil o limite entre o mal-entendido e a torpeza, o que poderia ser mitigado na remota hipótese de o juiz não 591 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 155. 592 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 155. 593 Assim discorre o art. 312 do Código de Processo Penal: A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. 594 Mesmo que, em um primeiro momento, a prisão pareça medida mais danosa para o réu, o que se busca aqui é a observância das garantias constitucionais, conferindo ao acusado um julgamento justo. A prisão preventiva é medida legal e deve ser decretada sempre que necessária, observando-se o enquadramento do caso concreto aos requisitos previstos em lei.
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concordar com a certidão do oficial de justiça, determinando que se insista na citação pessoal.595
Também deve ser observado, dentre outros, o princípio da ampla defesa, que, mais que princípio, é uma garantia de que o acusado terá um julgamento justo. Essa garantia constitucional está prevista no artigo 5º, inciso LV da Carta Magna Brasileira e confere ao acusado o direito de se defender utilizando-se de todos os meios lícitos596 possíveis. Tal princípio compreende tanto a defesa técnica quanto a autodefesa, ambas na devida amplitude conferida pela lei. Ressalta-se que, enquanto a defesa técnica é obrigatória, a autodefesa é renunciável pelo réu. Nesse prisma, a autodefesa abrange também o direito de não produzir provas contra si mesmo e de recusar-se a participar da produção de provas que importem em autoincriminação. Caso o réu escolha por não exercer o direiro à autodefesa, não lhe será imposta penalidade alguma, visto que o não exercício de um direito não pode acarretar ônus algum ao seu renunciante. Porém, apesar de renunciável, deve ser facultado ao acusado todos os meios de defesa, sob pena de nulidade do processo baseado na infringência dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Nesse diapasão, a incidência da citação com hora certa no processo penal, por admitir que o processo siga sem a presença do réu, impossibilita a ocorrência da autodefesa, que poderia até ser renunciada pelo réu, mas que deveria ter-lhe sido facultada. Importante salientar que, por ser a citação por hora certa uma forma ficta de citação, não há que se falar em renúncia tácita do direito de autodefesa, justamente pela temeridade e insegurança que tal forma de chamamento confere. Não há a certeza de que o acusado efetivamente tomou conhecimento da existência do processo penal que corre ao seu desfavor. Portanto, não se pode presumir que o réu renuncia tacitamente ao seu direito de defender-se. Importante, também, destacar a desproporcionalidade da nova lei, visto que privilegia aqueles que foram presos em flagrante e fugiram aos que não foram encontradas pelo oficial de justiça. Aqueles, no caso de desconhecimento de seu domicílio, serão citados por edital e terão seus processos suspensos, enquanto estes terão um defensor dativo nomeado e o processo seguirá sem a sua presença. Roberto Delmanto Júnior levanta esta questão:
595 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 154. 596 No entanto, ressalta-se que a jurisprudência admite a utilização de provas ilícitas quando configurarem a única forma de defesa do réu. Também é admitida a repetição da chamada prova ilegítima, aquela que é obtida com infringência de norma processual penal.
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[...] diante da constatação de que, em caso muito mais grave, de prisão em flagrante sucedida de fuga e de decretação de prisão preventiva, a citação, por estar o acusado foragido, será sempre por edital, suspendendo-se o processo e a prescrição pelo prazo do art. 109 do CP, no caso de ele não ser preso e apresentado e, tampouco, constituir defensor. Desta feita, segundo o projeto, o tratamento dado ao acusado com endereço certo e que, segundo juízo valorativo do oficial de justiça, tenha se furtado à citação, optando-se pela hora certa, com a possibilidade de o processo ter andamento sem o seu comparecimento, nomeando-se-lhe defensor dativo, afigura-se, salvo melhor juízo, muito mais severo do que o conferido ao acusado que fugiu do cárcere em momento anterior à citação. E aqui, ainda que se acolha a mencionada distinção entre as condutas do acusado, diante da dificuldade do oficial de justiça em citá-lo pessoalmente, tanto a fuga do cárcere durante o inquérito quanto a manobra daquele que possui endereço certo e evita ser surpreendido pelo oficial de justiça inserem-se na mesma categoria. (grifos no original).597
Desse modo, o princípio da igualdade também resta mitigado pela implantação da citação com hora certa no processo penal, tendo em vista que privilegia o acusado que foi preso em flagrante e fugiu em detrimento daqueles que se furtam da citação, dando a estes últimos tratamento muito mais severo. Tanto em uma quanto na outra hipótese, deveria ser decretada a prisão preventiva do acusado, suspendendo-se o processo e a prescrição, para só após a efetivação da mesma dar continuidade ao processo.
Dos dispositivos constantes nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) traz em seus 25 artigos, consagradores de direitos, disposições que protegem as pessoas envolvidas com o sistema de repressão penal. A proteção dos indivíduos ante o poder coercitivo do Estado em matéria penal e processual penal é, assim, a parte mais destacada da Convenção. Pode-se afirmar, portanto, que a CADH adota o modelo garantista de direito e processo penal.
597 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 154/155.
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Dentro das garantias arroladas, pode-se inferir do artigo 8º da CADH que o réu tem o direito de ser ouvido, pessoalmente, sempre que for objeto de qualquer acusação penal formal formulada contra ele. Assim, o acusado tem o direito de exercer sua defesa pessoalmente (autodefesa) e de ser assistido por um defensor à sua escolha. Tal direito também pode ser extraído do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992). Ademais, a referida Convenção determina em seu art. 8º, 2, b, ser uma garantia judicial "a comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada".598 Pode-se, portanto, claramente perceber a exigência, contida nesta carta, de que seja feita a citação pessoal do acusado. Por sua vez, como ocorre com a CADH, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos elenca em seu texto direitos e garantias que devem ser assegurados pelos Estados-partes a todos aqueles que estejam sob sua jurisdição. Seu artigo 14 traz dispositivos relacionados ao processo penal, dentre os quais estão o direito do acusado ser ouvido por um tribunal competente, independente e imparcial, de ser informado da acusação e dispor dos meios necessários à sua defesa e, finalmente, de estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por meio de seu advogado.
A Constitucionalidade da Nova Citação por Hora Certa no Processo Penal Brasileiro Da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro e a inconstitucionalidade da Lei nº 11.719/2008. Salienta-se que a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 4º, determina que o Brasil, nas suas relações internacionais, rege-se, dentre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Tal princípio é inovação da atual Carta Constitucional brasileira e significa que o país se compromete a gerir suas relações priorizando os direitos humanos. Dessa forma, além do compromisso de amoldar-se às normas internacionais de direitos humanos, o Brasil deve buscar uma sincronização eficaz destas regras com seu ordenamento jurídico interno. Sob esse prisma, percebe-se que os direitos humanos 598 BRASIL. Decreto nº 678. 6 novembro 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União. Brasília, 6 novembro 1992. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/legislacao/vol1_4.htm>. Acesso em: 06 jun. 2009.
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surgem como tópico de elevada importância internacional que incide diretamente sobre o sistema brasileiro. Além disso, o art. 1º, III da Carta Constitucional brasileira preceitua a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, da qual decorrem todos os direitos básicos e nucleares de que é dotada a sociedade. Dessa forma, é de imensa importância para a coletividade que os tratados que versem sobre direitos humanos sejam devidamente observados e tenham sua eficácia garantida dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, a Convenção de Viena,599 consistente em um conjunto de normas que regulam a feitura e o cumprimento dos tratados celebrados entre Estados, traz à colação os princípios do livre consentimento e da boa-fé, bem como a regra pacta sunt servanda. Tais princípios estão previstos em seu preâmbulo, bem como regulamentados em seus artigos. Primeiramente, cumpre salientar que o princípio do livre consentimento garante que os tratados não criam obrigações aos Estados que não os anuíram, ou seja, são apenas aplicados aos Estados-partes. A regra do pacta sunt servanda, por sua vez, está prevista no artigo 26 da referida convenção, que afirma: “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé.” A boa fé implica no dever que o Estado-parte tem de observar plenamente o tratado do qual é signatário. É regida pelos artigos 27 e 46 da Convenção de Viena. De acordo com esse princípio, não pode um Estado invocar seu direito interno como justificativa para a não obediência de dispositivos constantes em tratados dos quais é signatário.600 Portanto, apenas com esse argumento, já se pode afastar a validade da citação por hora certa em processo penal, pois é manifestamente contrária ao disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto de Direitos Civis e Políticos. Em continuação à análise dos dispositivos constitucionais, ressalta-se que no ano de 2004 foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45 que adicionou o § 3º ao artigo 5º da Carta, o qual estabelece que tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, ao serem ratificados pelo Brasil, terão status constitucional, desde que sejam aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, passando, assim, a ter valor de emenda constitucional. Com o advento da Emenda Constitucional número 45, é preciso estar atento para o fato de que, ao estabelecer que os tratados sobre direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais, desde que submetidos ao rito de aprovação previsto para elas, o Poder Constituinte Derivado afirma que os tratados que não passarem por tal procedimento não terão vigor constitucional. 599
Assinada pelo Brasil em 23 de maio de 1969, porém ainda não ratificada.
Impende salientar que a submissão de um Estado ao disposto em um tratado internacional não fere sua soberania, pois esta foi exercida no momento em que o país aderiu, voluntariamente, ao tratado. 600
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Contudo, cumpre ressaltar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, após a Emenda Constitucional 45, exposto em sede de Recurso Extraordinário. Defende Celso de Mello a posição de que os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos celebrados anteriormente à Constituição de 1988 revestem-se de caráter constitucional, pois foram formalmente recebidos por esta em seu art. 5º, § 2º.601 Em relação aos tratados celebrados entre a promulgação da Carta de 1988 e a Emenda Constitucional nº 45, defende o relator que possuem caráter materialmente constitucional em razão de sua inclusão no chamado bloco de constitucionalidade, consoante o art. 5º, § 2º, da Constituição. Os tratados celebrados posteriormente à Emenda Constitucional nº 45, por sua vez, só serão elevados ao nível da Carta Máxima após passarem pelo rito de aprovação de Emenda Constitucional no Congresso Nacional (aprovação por 3/5 dos membros em dois turnos em cada casa legislativa). Ressalta-se que os tratados posteriores à referida emenda que não passarem peloreferido rito possuem hierarquia superior às leis ordinárias, porém inferior à Constituição, estando em um patamar intermediário entres estas e a Lei Máxima.602 Em decisões mais recentes, o Pleno do STF declarou a supremacia de todos os tratados internacionais de direitos humanos frente às leis ordinárias. Nesses julgamentos, venceu a corrente no sentido de que os tratados que não passaram pelo rito de aprovação de Emenda Constitucional teriam valor supralegal, porém, infraconstitucional. Apenas aqueles tratados que passarem pelo rito de aprovação de Emenda Constitucional serão elevados ao nível da Carta Máxima (CF, art. 5º, § 3º, com redação dada pela EC 45/2004). Nesse diapasão, os tratados de direitos humanos celebrados pelo Brasil retiram a eficácia de toda lei infraconstitucional cujo conteúdo deles divirja. Ressalta-se que as leis continuam vigentes, porém têm sua eficácia mitigada.603 Nesse sentido: PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁR601 EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. BRASIL. STF. Tribunal Pleno, Recurso Extraordinário 466.343-1/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 29.11.2006. 602
BRASIL. STF. Tribunal Pleno, Recurso Extraordinário 466.343-1/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 29.11.2006.
Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Controle de convencionalidade: STF revolucionou nossa pirâmide jurídica. OAB Editora, Brasília. Disponível em: <http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1242742038174218181901.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2009. 603
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QUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão.604 Impende salientar que o Código de Processo Penal é um decreto-lei datado de 1941, portanto, de acordo com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, subordina-se ao disposto nos tratados de direitos humanos por possuírem, estes, caráter supralegal. Importante, também, ressaltar que a alteração trazida pela Lei nº 11.719 de 2008, que institui a citação por hora certa em processo penal, apesar de mais recente, não tem força para derrogar o consoante nos tratados internacionais de direitos humanos, dada a sua hierarquia inferior. Contudo, em que pesem os argumentos acima comentados, a discussão doutrinária e jurisprudencial travada nos tribunais mencionados não oferece a melhor solução ao caso. Isso porque há uma forte corrente doutrinária que entende de modo que, baseando-se apenas no § 2º do art. 5º da Constituição de 1988, pode-se extrair o conteúdo constitucional de todos os tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil. Assim, para essa corrente, mesmo antes do advento da Emenda Constitucional nº 45, já se podia afirmar o caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Nesse prisma, torna-se totalmente dispensável discutir o momento em que o Brasil aderiu ao tratado para chegar à conclusão de sua posição na hierarquia legislativa brasileira. Nas palavras de Flávia Piovesan: “[…] a contrario sensu, a Carta de 1998 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos.”605 604
BRASIL. STF. Tribunal Pleno, Recurso Extraordinário 349.703/RS, Rel. Min. Carlos Britto. DJe de 05.06.2009.
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PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 52.
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Logo, por força do art. 5º, §§ 1º e 2º, a Carta de 1988 atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais a hierarquia de norma constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata. A hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos decorre da previsão constitucional do art. 5º, § 2º, à luz de uma interpretação sistemática e teleológica da Carta, particularmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Essa opção do constituinte de 1988 se justifica em face do caráter especial dos tratados de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina, da superioridade desses tratados no plano internacional, tendo em vista que integrariam o chamado jus cogens (direito cogente e inderrogável).606 Portanto, com base apenas nesse dispositivo, já se pode observar que a Constituição concede às garantias constantes nos tratados de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, a mesma proteção que dá aos direitos e garantias nela expressos. Nesse diapasão, os direitos fundamentais têm natureza materialmente constitucional, ainda que não estejam expressamente codificados no texto da Carta, pois basta que se apresentem em forma de tratado internacional. Assim, qualquer tratado internacional de direitos humanos ingressa no ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional. Importante salientar que às normas constitucionais não se pode dar interpretação restritiva; estas normas devem ser operadas em sua plena eficácia. Desse modo, afastar o caráter constitucional dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário significa mitigar sua importância, mas não só – importa também em uma interpretação limitativa do disposto no art. 5º, § 2º da Constituição de 1988. Assim, para aqueles que acreditam que tais normas já haviam ingressado no sistema jurídico brasileiro com força constitucional, a emenda em tela seria abolitiva de direitos e garantias fundamentais, já que exige um procedimento específico para a inserção dessas normas na Carta Máxima, sendo que todos os documentos normativos internacionais de direitos humanos anteriores a ela – a EC 45 – não teriam status constitucional, e somente passarão a tê-la após passarem pelo procedimento exigido.607 Todos os tratados de direitos humanos celebrados pelo Brasil são materialmente constitucionais, não importando, neste prisma, a época de sua celebração (se antes da Constituição de 1988, se na vigência da ordem constitucional atual, se após o advento da Emenda nº 45), tampouco baseia-se na retroatividade do § 3º, do art. 5º, da Constituição, mas sim no disposto no § 2º, do art. 5º, da CF. Assim, o consoante no art. 5, 606 PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF. Defensoria Pública, São Paulo. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/ Artigos/00000034-001_FlaviaPioveasn.pdf>. Acesso em: 16 maio 2009. 607 Neste sentido: PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF. Defensoria Pública, São Paulo. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/ Documentos/Artigos/00000034001_FlaviaPioveasn.pdf>. Acesso em: 16 maio 2009.
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§ 3º, da Carta trouxe a possibilidade de conferir aos tratados um status formalmente constitucional, porém o caráter constitucional já lhes é inerente por força de sua matéria, não importando se tenham passado pelo rito de aprovação exigido ou não. Portanto, pode-se concluir que toda e qualquer norma infraconstitucional que vá de encontro à matéria constante dos referidos tratados deve sucumbir face à sua inconstitucionalidade. Essa é a opinião adotada neste trabalho. Dessa forma, a lei que instituiu a citação por hora certa contém dispositivos que vão de encontro ao exposto nos tratados internacionais de direitos humanos aqui citados. Nesse prisma, a inconstitucionalidade da Lei que instituiu a citação por hora certa em processo penal tem duas abordagens: formal e material. Ela é formalmente inconstitucional em razão de seu caráter ordinário, não podendo, assim, contrariar o disposto nos tratados internacionais de direitos humanos, que são materialmente constitucionais, retirando, portanto, a eficácia de leis que são contrárias a eles. Ademais, como visto, essa forma de citação é materialmente inconstitucional, pois vai de encontro a princípios relativos ao processo penal previstos na Carta Magna. Portanto, a conclusão a que se chega não pode ser outra além daquela que reconhece a inconstitucionalidade da citação ficta por hora certa.
Conclusão Frente aos argumentos apresentados no presente trabalho, chega-se às seguintes conclusões: Primeiramente, a citação é o ato de comunicação que integra o réu na relação processual e, desta forma, a completa. Sendo assim, é ato indispensável ao processo. Em regra, no processo penal, deve ser feita de forma pessoal, pois, além de consistir um ato de comunicação, a citação também possibilita o exercício de defesa do acusado. Portanto, a forma pessoal de comunicação confere maior grau de certeza sobre a efetividade da medida. As forma fictas de citação são medidas subsidiárias e devem ser usadas apenas em casos excepcionais, autorizados em lei. Com o advento da Lei nº 11.719/08, a figura da revelia, que era peça praticamente morta no processo penal brasileiro, volta a produzir efeitos, importando em grande retrocesso em sede de proteção aos direitos e garantias do acusado. Afinal, o Estado brasileiro, fundado no modelo de garantismo, deve buscar a proteção dos direitos fundamentais do homem. Desse modo, a proteção do indivíduo frente ao exercício arbitrário do poder-dever de repressão do Estado é medida que se impõe. Nesse prisma, a Constituição Brasileira elenca garantias aos que respondem a processo penal. Dentre esses princípios, pode-se citar o devido processo legal, o con-
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traditório, a ampla defesa e a igualdade. É facilmente observável que a nova forma de citação apresenta um claro afrontamento a esses princípios por não possibilitar que o réu, que não tomou conhecimento da ação, participe ativamente do processo, patrocinando sua defesa. Ademais, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto de Direitos Civis e Políticos, tratados dos quais o Brasil é signatário, demandam a comunicação prévia ao acusado da acusação que lhe é imputada, bem como exigem ser conferido ao réu a possibilidade de defender-se pessoalmente em juízo. Como exposto, todos os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário têm status de Emenda à Constituição, pois seu conteúdo versa sobre direitos fundamentais, sendo, assim, materialmente constitucionais. Esse entendimento tem sua fundamentação no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988. Portanto, a nova forma de citação vai de encontro aos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro, bem como às normas expressas dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, sendo, portanto, inconstitucional.
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MARC ELA DE ALENC AR ARARI P E COUTIN HO
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A I NTE RCEPTAÇÃO TEL EFÔ NIC A C OM O M E I O DE PR OVA – LEI Nº 9. 296/ 96
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RESUMO A inviolabilidade das comunicações prevista no art. 5º, inciso XII da Constituição Federal poderá ser quebrada por ordem judicial, para fins de investigação ou instrução criminal, nos termos descritos na Lei nº 9.296/96. A norma regulamentadora estabelece critérios que norteiam a autorização: indícios de autoria ou participação em infração penal; casos em que a prova não puder ser feita por outros meios; e caso o crime seja apenado no máximo com reclusão. Tais critérios são objeto de críticas por parte dos operadores do direito, com o argumento de que a lei alargou as possibilidades para além das possibilidades constitucionalmente assentadas, tramitando, inclusive, no Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade, em face do art. 5º, inciso XII da Constituição, também relativa à possibilidade de decretação da medida de ofício pelo juiz (ADI 3450). Palavras-chaves: Interceptação Telefônica; Escuta Telefônica; Lei nº 9.296; Direitos Fundamentais; Prorrogação; Autorização Judicial; Fundamentação. Anulação.
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Introdução A Lei nº 9.296/96, que regulamenta o artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal da República, dispõe sobre as situações nas quais a interceptação telefônica pode ser adotada, bem como sobre seu alcance e os fins para os quais se destina. Determina, ainda, que tal procedimento só será autorizado judicialmente, devidamente justificado, na investigação de crimes que tenham como pena em abstrato a reclusão. Conveniente lembrar que a interpretação da abrangência da expressão "no último caso", prevista na Constituição, não é pacífica na doutrina nem na jurisprudência. Indaga-se em relação ao entendimento quanto à aplicação: corresponde apenas às comunicações telefônicas ou também estão inclusas as comunicações de dados? Pelas análises promovidas no âmbito da jurisprudência sobre o assunto, verifica-se que os tribunais vêm interpretando a norma regulamentadora de forma diversa, sem formação de entendimento majoritário. A doutrina mostra-se mais coesa e defende a inviolabilidade absoluta, no tocante ao sigilo das correspondências, das comunicações telegráficas e, ainda, com relação aos dados, sendo admissível apenas a quebra das comunicações telefônicas, a partir do marco normativo fixado na Lei nº 9.296/96. Julgados recentes mostram que o prazo considerado excessivo, a ausência de fundamentação e a admissão da interceptação antes de qualquer outro procedimento investigatório têm sido as principais causas de anulação de provas obtidas por este meio, combinadas com a afronta aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. A doutrina entende que a referida norma carece de adequações imediatas, principalmente em relação ao prazo de concessão da restrição, bem como na modificação do critério autorizativo (crimes punidos com reclusão). Medidas nesse sentido estão sendo tomadas por intermédio de Projeto de Lei nº 3.272/08, aprovado pelo Senado, à espera de análise na Câmara Federal. Críticas são formuladas, ainda, em relação ao caráter ampliativo trazido pela norma regulamentadora em relação à previsão constitucional, pelo uso de expressões abertas e indeterminadas e até mesmo incluindo previsões não trazidas pela norma máxima. Antes da Constituição de 1988, a inviolabilidade das correspondências, comunicações telegráficas e telefônicas era quase absoluta, sendo permitida a violabilidade somente em estado de defesa.
Da prova O direito à prova está assegurado constitucionalmente no artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal, por via indireta de interpretação, como forma do exercício do contraditório e da ampla defesa.
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O artigo 155 do Código de Processo Penal ressalta a importância da prova na convicção do magistrado, alertando para a observância do contraditório e da ampla defesa por ocasião da produção destas, definindo ainda as exceções nas quais estes princípios poderão ser mitigados. Guilherme Souza Nucci 608 define o termo "prova" como originário do latim probatio, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, decorrendo assim o verbo "provar", do latim probar, e, mais adiante, conclui que [...] a prova produzida no âmbito da instrução processual, independente da parte que a produziu, pertence ao processo, podendo ser utilizada por todos, cujo objetivo é a apuração da verdade real dos fatos. Admite-se o compartilhamento de provas, a denominada prova emprestada, produzida num processo e aproveitada em outro pendente de decisão.
Segundo Miguel Fenech609, [...] provar é produzir um estado de certeza, na consciência e mente do juiz, para sua convicção, a respeito da existência ou inexistência de um fato, ou da verdade ou falsidade de uma afirmação sobre uma situação de fato, que se considera de interesse para uma decisão judicial ou a solução de um processo.
São aceitas todas as espécies de provas no processo penal que não afrontem o ordenamento jurídico. Este leque é ainda mais alargado quando se trata de procedimentos de competência do júri, no qual a ampla defesa é substituída pela plenitude de defesa, em razão do bem jurídico tutelado: a liberdade do indivíduo. Conclui-se, portanto, que a obtenção de um conjunto probatório que comprove ou não os indícios de materialidade e autoria contidos na denúncia deve ser feito com respeito à estrita legalidade. Na eventualidade da permissão de restrições, estas devem ser executadas sob este viés, sem jamais permitir que métodos ou estratégias maculem os elementos de convencimento que serão levados aos autos.
Prova ilícita e prova ilegítima O artigo 5º, inciso LVI da Constituição Federal proíbe as provas ilícitas no ordenamento jurídico. Tal proibição deve ainda ser mantida por ocasião de compartilha608 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 10ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 356. 609 FENECH, Miguel apud ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 4.
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mento de provas, devendo o magistrado analisar se, no momento da produção, foram observados os ditames constitucionais e legais. Guilherme Nucci610 ensina que o termo ilícito advém do latim e configura dois sentidos: (1) sob o significado restrito, quer dizer proibido por lei; (2) sob o amplo sentido, significa ser contrário à moral, aos bons costumes e aos princípios gerais do direito. A diferença entre provas ilegítimas e ilícitas consiste no fato de que aquelas são obtidas com afronta ao direito processual, enquanto estas são as provas obtidas com infringência ao direito material – sendo pacífico, entretanto, o entendimento de que ambas são inadmissíveis no sistema processual brasileiro. Pondera Tourinho Filho611: “[...] já se esboça na doutrina um movimento no sentido de não emprestar a esse princípio constitucional que inadmite as provas obtidas ilicitamente uma importância maior que supere o direito de liberdade.” Comunga do mesmo entendimento Ada Pellegrini612, para quem "se uma prova for obtida por mecanismo ilícito, destinando-se a absolver o acusado, é de ser admitida, tendo em vista que o erro judiciário precisa ser, a todo custo, evitado", em homenagem ao princípio da proporcionalidade.
A Lei nº 9.296/96 Demonstrada a necessidade de restrição ao direito de inviolabilidade das comunicações, artigo 5º, inciso XII da Constituição Federal, esta deverá ser implementada conforme os requisitos constantes da Lei nº 9.296/96. Desde o ingresso dessa lei no ordenamento jurídico, surgiram críticas emanadas dos operadores do direito, em especial da doutrina, em relação à abrangência, aos requisitos exigidos e tipo de linguagem utilizada, com o argumento de que a norma trouxe previsões para além dos ditames constitucionais. Entendem os autores Ada Pellegrini Grinover, Vicente Greco, Luiz Flávio Gomes, dentre outros613, que a lei cujo objetivo é disciplinar a exceção viola direitos e garantias constitucionais, bem como não oferece a segurança jurídica exigida, e até mesmo – entendem outros – trouxe em seu bojo previsões que vão além daquelas contidas na Constituição. Por essa razão, exige urgente modificação ou a retirada do ordenamento jurídico de partes da mesma por considerá-los inconstitucionais.
610
NUCCI, op. cit., p. 359.
611
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 562.
612
GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 23ª ed. São Paulo. Malheiros Editores, 2007. p. 383.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Interceptações e gravações: as nulidades no processo penal. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 267. 613
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Gravação, escuta e interceptação Gravações telefônicas consistem na captação de uma comunicação telefônica feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro, que não se confundem com as interceptações telefônicas (que só ocorrem quando há a intervenção de um terceiro na comunicação), ou seja, estão fora da disciplina jurídica da Lei nº 9.296/96. Com relação ao procedimento, não existe regulamentação, configurando abominável omissão legislativa, embora se trate de assunto de alta relevância e aplicabilidade que deva ser disciplinado legalmente. Foi consolidado o entendimento de que a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores pode ser utilizada como prova, mesmo que tenha sido feita sem qualquer autorização ou sem o conhecimento de quem estava na outra ponta da linha. O entendimento consta de decisão proferida pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (ministro Cezar Peluso, por ocasião da análise do Recurso Extraordinário nº 402.717-8/PR). Escuta telefônica consiste em procedimento realizado por terceiro com o conhecimento de um dos interlocutores da conversa, não estando, desta forma, sujeito ao regramento contido na Lei nº 9.296/96. Em se tratando de assuntos de cunho sigiloso, a prova não pode ser aceita como lícita em razão da violação ao direito de intimidade e segredos ali revelados, como entende Guilherme de Souza Nucci614. Em todas as situações acima descritas, as proibições serão afastadas, dando lugar à aceitação da prova, quando estes procedimentos visarem ao exercício de defesa, levando em consideração a valoração do bem jurídico tutelado, como vida, liberdade, dentre outros. Na definição de Aurélio Buarque de Holanda615, o termo “interceptar”, do qual deriva “interceptação”, significa interromper o seu curso, tomar conhecimento, fazer parar; apoderar-se de surpresa do que é enviado a alguém. Não nos parece o significado mais apropriado para o procedimento, tendo em vista que na configuração ora aplicada o apoderamento não pressupõe interrupção, mas tão somente acesso ao conteúdo vinculado na comunicação, o qual posteriormente será transcrito e levado aos autos.
614
NUCCI, op.cit., p. 359.
HOLANDA, Aurélio Buarque. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Editora Nova Fronteira, versão eletrônica, 1996. Disponível em: <www.dicio.com.br>. Acesso em: 1 jun. 2013. 615
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Ada Pellegrini, Gomes Filho e Antonio Scarance616 conceituam a interceptação como o canal por meio do qual se apreendem os "elementos fonéticos"; a transcrição desses "elementos fonéticos" levados aos autos constituem os meios de prova.
A Lei nº 9.296/96: aspectos relevantes Assim prevê o artigo 5º, inciso XII da Constituição Federal: “XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” O artigo 1º da Lei nº 9.296/96, ao regulamentar a restrição prevista constitucionalmente, estabelece: “Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.” A inviolabilidade do sigilo nas comunicações, por estar inserta no Título II da Constituição Federal, constitui-se, além de garantias e direitos fundamentais, também em cláusula pétrea. Para Lenio Luiz Streck617, a divisão do sistema de comunicações consiste em quatro situações distintas: (a) a correspondência, (b) as comunicações telegráficas, (c) as comunicações de dados e (d) as comunicações telefônicas. A referida lei, na visão de autores como Ada Pellegrini, Vicente Greco Filho, dentre outros618, subverteu a abordagem prevista na Constituição Federal quanto à permissividade da quebra do sigilo nas comunicações ali garantido, dando-lhe interpretação ampliada, em comparação ao caráter restritivo atribuído ao tema – posto que o sigilo é regra, enquanto a interceptação constitui-se exceção. O 1º artigo da Lei nº 9.296/96, ao vislumbrar a ampliação das possibilidades, utilizando a expressão "de qualquer natureza”, atua de forma contrária ao preceito constitucional restritivo, contido no inciso XII do artigo 5º, da Constituição Federal, que utiliza o termo "salvo, no último caso” com viés claramente de excepcionalidade, em razão de tratar-se de restrição de direito fundamental. Flávio Gomes619 alerta que a questão central, segundo o constitucionalismo moderno, não é se o legislador pode ou não restringir direitos, senão se sua intervenção 616
GRINOVER, op.cit., p. 267.
STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. constituição, cidadania, violência: a Lei 9.296/96 e seus reflexos penais e processuais. 2ª ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 45. 617
618
GRINOVER, op. cit., p. 267.
GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Interceptação telefônica: lei 9.296, de 24.07.96. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 165/167. 619
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se dá dentro de limites excepcionais e proporcionais. Algumas normas constitucionais preveem expressamente a possibilidade de limites a direitos fundamentais (caso típico é o inciso XII em pauta). Outras normas não contam com a previsão de restrição. Nem por isso foi restabelecida a doutrina dos direitos absolutos. Não existem direitos absolutos. Nem sequer o direito à vida, que é o mais relevante, é totalmente intangível. Gilmar Mendes620 entende que Devem ser levados em conta, em eventual juízo de ponderação entre os direitos do cidadão e os direitos da sociedade de punir delitos, os valores que constituem inequívoca expressão desses princípios (inviolabilidade de pessoa humana, respeito à sua integridade física e moral, inviolabilidade do direito de imagem e intimidade).
O princípio da proporcionalidade deve igualmente ser aplicado, sempre que a decisão envolver a restrição de um direito fundamental em detrimento a outro, igualmente garantido, visto que configura expressão do Estado de Direito ou, dito de outra forma, trata-se de um postulado jurídico com raiz no direito suprapositivo e sua aplicação decorre da compreensão geral e ampla da ordem jurídica, como conclui o ministro Gilmar Mendes (2013, p. 218).
Finalidade da interceptação telefônica A previsão contida no inciso XII do artigo 5º da Constituição relativa às possibilidades de violação nas comunicações cinge-se às hipóteses de que as interceptações só podem ser "autorizadas judicialmente para fins de investigação criminal ou instrução processual penal", sendo tal requisito mantido no artigo 1º da Lei nº 9.296/96, que regulamenta a previsão constitucional. Todavia, o Supremo Tribunal Federal vem pacificando o entendimento quanto ao uso da interceptação telefônica como prova emprestada em processos administrativos disciplinares (PAD). Assim decidiu o pleno, pela relatoria do ministro Cezar Peluso, na Questão de Ordem em Inquérito nº 2.424-4/RJ: Dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, bem como documentos colhidos na mesma investigação, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às 620 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 95.
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quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessas provas. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, decidiu que é possível a intercepção telefônica no âmbito civil, em situação de extrema excepcionalidade, ante a inexistência de outra medida que resguarde direitos ameaçados e o caso envolver indícios de conduta considerada criminosa, conforme decisão proferida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar Habeas Corpus nº 203.403/MS (relator ministro Sidnei Beneti). Ainda que fundado em argumentos legítimos, tal entendimento é uma nítida afronta à determinação constitucional e legal, pois a interceptação telefônica é expressamente apresentada pela Constituição como uma exceção cabível somente em estreitas situações – investigação criminal ou instrução penal processual.
Interceptação em sistema de informática e telemática O parágrafo único, do artigo 1º da referida norma, assim estabelece: "O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática". A previsão constitucional não contempla as modalidades de comunicação em "sistemas de informática e telemática". A doutrina busca entender a real referência atribuída pelo legislador ao termo “salvo, no último caso” constante do inciso XII, do artigo 5º da Constituição Federal, visto que a interpretação da referida expressão é crucial na abrangência da exceção regulamentada pela Lei nº 9.296/96. Damásio de Jesus621 leciona que "informática é a ciência relativa à informação por intermédio de equipamentos e métodos do sistema de processamento de dados". E que "telemática é a ciência que versa sobre a informação por meio conjunto de computador e telecomunicação". A melhor interpretação da expressão constitucional “salvo, no último caso”, no entendimento de Vicente Greco Filho622, refere-se tão somente a “de dados e das comunicações telefônicas”. Assim sendo, vislumbra-se a inconstitucionalidade do parágrafo único, do art. 1º, Lei nº 9.296/96, visto que a restrição constitucional é patente no que se refere à extensão da interceptação, não se vislumbrando o alcance previsto no mencionado parágrafo: “[...] fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática.” Complementa, ainda, ao afirmar que se restringem tecnicamente à “trans621 JESUS, Damásio Evangelista de. Interceptação de Comunicações Telefônicas: Notas à Lei nº 9.296, de 24.07.96. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1997, p. 735. 622 GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica: considerações gerais sobre a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 9.
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missão de voz” por meio do “aparelho telefônico”, devendo ser claramente distinguidas de “comunicações por via telefônica”. Lima Neto623 destaca a inviolabilidade dos “dados” de informática, com o argumento de que [...] as ‘comunicações telefônicas’, entendidas em ‘strito sensu’, não se confundem com as ‘comunicações em sistemas de informática ou telemática’. São expressões distintas, com fins autônomos. Como a Constituição dispõe somente a respeito da violabilidade das primeiras, não pode o legislador ordinário pretender disciplinar hipóteses de violação das segundas. Ainda que se sustente que as ‘comunicações em sistemas de informática e telemática’ são abrangidas pelo termo ‘comunicações telefônicas’, persiste a inconstitucionalidade, visto que as comunicações de telemática se perfazem através da transferência de dados e estes são invioláveis por determinação expressa da Constituição.
A expressão "salvo, último caso", na opinião de Lenio Luiz Streck624, restringe-se tão somente às comunicações telefônicas. Justifica a tese ao argumento de que na hipótese de a interpretação constitucional considerar o sistema em duas espécies apenas, a expressão analisada não seria esta e sim "no segundo caso", concluindo também pela inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.296/96. Outro entendimento possui Damásio de Jesus625: Inclinamo-nos pela constitucionalidade do referido parágrafo único. A Carta Magna, quando excepciona o princípio do sigilo na hipótese de 'comunicações telefônicas', não cometeria o descuido de permitir a interceptação somente no caso de conversação verbal por esse meio, isto é, quando usados dois aparelhos telefônicos, proibindo-a , quando pretendida com finalidade de investigação criminal e prova em processo penal, nas hipóteses mais modernas. A exceção, quando menciona'comunicações telefônicas', estende-se a qualquer forma de comunicação que empregue a via telefônica como meio, ainda que haja transferência de 'dados'. É o caso do uso do 'modem'. Se assim não fosse, bastaria, para burlar a permissão constitucional, 'digitar' e não 'falar'.
623 LIMA NETO, José Henrique Barbosa Moreira. Da Inviolabilidade de Dados: Inconstitucionalidade da Lei nº 9296/96 (Lei de Interceptação de Comunicações Telefônicas. São Paulo, Boletim IBCCRIM, 1997, nº 56, 3/4, jul. 1997. 624
STRECK, Ibidem, p. 45.
625
JESUS, Ibidem, p. 464–465.
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Ressaltam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes626 que “parte da doutrina entende que o preceito constitucional cuida de dois grupos distintos de sigilo: (1) um com inviolabilidade absoluta (correspondência) e (2) outro grupo com possibilidade de quebra da inviolabilidade (comunicação telegráfica, de dados e comunicações telefônicas)”. Partindo dessa análise sistêmica, a expressão “salvo, no último caso” refere-se ao segundo grupo, abrangendo, portanto, a comunicação telegráfica, de dados e comunicações telefônicas. Luiz Flávio Gomes627 entende que as ‘comunicações telemáticas’ por telefone (uma comunicação ‘modem by modem’, por exemplo, ou via internet) correspondem a uma espécie de comunicação via telefone com a incidência da lei. Ou seja, por esse entendimento na expressão do caput do artigo 1º (“comunicações telefônicas de qualquer natureza”) estaria contida qualquer comunicação que utilize o telefone, seja para conversação verbal, transmissão de textos digitados, dados, imagens etc. Prossegue afirmando que “não admitir que a ‘comunicação telemática’ por telefone esteja sujeita à interceptação significa não só exprimir uma interpretação com um enorme atraso tecnológico cultural […] senão, sobretudo, retirar dos órgãos da persecução penal um instrumento valioso”, principalmente no que tange à repressão ao crime organizado, que se utiliza largamente da informática628. Sobre a questão, tramita no Supremo Tribunal Federal Ação de Direta de Inconstitucionalidade relativa ao referido parágrafo único, artigo 1º da Lei nº 9.296/90, cujo objeto é o questionamento de violação ao inciso XII, do art. 5º da Constituição Federal, em razão do alargamento dos limites à exceção para além da previsão na Carta Magna.
Cabimento da interceptação telefônica A redação negativa dispensada ao artigo 2º da Lei nº 9.296/96, no entendimento de Vicente Greco Filho629, compromete a real intenção do legislador quanto ao objeto da norma, promovendo danosa inversão de que a interceptação é a regra, enquanto a inviolabilidade é a exceção. Alerta para a insegurança na utilização de conceitos abertos e indeterminados, bem como para o fato de que a inferência de que a prova possa ser colhida por outros meios infere a possibilidade de escolha dos meios operacionalmente mais fáceis na investigação.
626
GRINOVER, Ibidem, p. 170-171.
627
GOMES, Ibidem, p. 165–167.
628
Ibidem, p. 165–167.
629
GRECO FILHO, Ibidem, p. 10.
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No entendimento de Ada Pellegrini e outros630, a formulação negativa do artigo 2º da referida lei é contrária à previsão constitucional, cuja expressão é “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer”. Entretanto, o legislador ordinário optou por catalogar as previsões nas quais não serão admitidas, em verdadeira “postura equivocada”, levando à conclusão de que, excluídas as situações previstas no referido artigo 2º, nas demais situações é cabível a invasão. A interpretação dos incisos constantes no artigo 2º da norma ora analisada deve ser realizada de maneira “disjuntiva”, por força da expressão “qualquer” contida no caput. Intuitivo concluir, portanto, que ante a presença de qualquer uma das previsões ali contidas, em homenagem ao caráter de exceção que se configura a medida, o indeferimento é medida que se impõe.
A interceptação telefônica como único meio de colheita da prova Dispõe o inciso II, do artigo 2º da Lei nº 9.296/96 que, para ser deferida autorização judicial para execução da interceptação telefônica, o magistrado deverá atentar para a impossibilidade da produção de provas por outros meios. Tal informação constará da fundamentação do pedido formulado pela polícia judiciária ou pelo Ministério Público. Na opinião de parte majoritária da doutrina, a exemplo de Ada Pellegrini Grinover, Luiz Flávio Gomes, Lenio Streck e alguns magistrados, que vêm se manifestando por meio de artigos e entrevistas divulgados pela imprensa, e ainda externada por ocasião das decisões prolatadas, a polícia e o Ministério Público têm abusado do uso de interceptações telefônicas, por vezes com base em informações anônimas, sem que diligências preliminares tenham sido efetuadas. Ponderam, ainda, que a opção pela quebra do sigilo telefônico é feita, em alguns casos, em atendimento à comodidade dos órgãos de investigação, por constituir-se meio mais fácil de ser executado e, ainda, constituir a possibilidade por parte dos executores da medida acesso e visibilidade na mídia, principalmente quando os indivíduos, alvos do procedimento, são pessoas que gozam de posição de destaque na sociedade e/ou na política. Em decisão no Habeas Corpus nº 0049876-36.2012.4.01.0000/GO proferida pelo Tribunal Regional Federal, 1ª Região, Terceira Turma, pelo desembargador relator Tourinho Neto, foram declaradas ilícitas as provas obtidas em decorrência da escuta telefônica, assim como aquelas delas decorrentes, tendo em vista a inexistência de investigações preliminares, observando que a investigação já se iniciou por meio da interceptação. 630
GRINOVER, Ibidem, p. 174.
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Sobre o tema posicionou-se a magistrada do TRF 3ª Região, Maria Cecília Pereira de Mello, por ocasião de entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, em 12 de março de 2012: Em caso recente que julguei, a investigação começou com base em uma denúncia anônima que fornecia nomes, endereços, horários, todo o necessário para se fazer uma diligência, mas nenhuma foi feita. Preferiram quebrar o sigilo telefônico... A denúncia anônima dizia que o fulano saía tal hora, todos os dias, em determinado horário, e ia para o endereço tal, encontrava-se com beltrano e voltava. Era uma diligência tranquila de ser feita. Seria até possível ter-se chegado a uma quebra de sigilo, mas já havia elementos para se fazer uma investigação preliminar. De um modo geral, isso dá a impressão de que existe comodismo. É mais fácil quebrar o sigilo, mas essa quebra apenas se justifica quando não [houver alternativa] e a partir de uma investigação já iniciada e com indícios a determinar a quebra. Do contrário, direitos constitucionais deixam de ser respeitados631.
A execução da interceptação como primeira medida deverá ser combatida, em homenagem à previsão contida no inciso II, do artigo 2º da Lei nº 9.296/96, mas, principalmente, atentando para o fato de que a utilização de tal invasão pressupõe que os meios de persecução criminal antes aplicados foram inócuos e que a decisão pela exceção deve atender aos princípios da adequação e da necessidade aos seus fins, como meio de aferição de constitucionalidade da norma. Parece ser o espírito do legislador e lógico o raciocínio de que somente após exaustivas investigações, sem êxito, chegar-se-á à conclusão de que só resta a medida de exceção da interceptação telefônica.
Pena de reclusão como critério Autores como Ada Pellegrini, Luiz Flávio, Vicente Greco Filho632, dentre outros, questionam a admissibilidade da interceptação utilizando como parâmetro o regime de pena de reclusão, excluindo, pela taxatividade da lei, a possibilidade de aplicação da medida em crimes cuja previsão seja de detenção, sem levar em consideração a gravidade ou reprovabilidade social da conduta ou até mesmo a impossibilidade de obtenção das provas por outros meios. Da mesma forma, quanto ao critério autorizativo (reclusão), há discrepâncias promovidas pelo legislador ordinário na edição da norma regulamentadora, vez que fur631 CRISTO, Alessandro. É mais fácil quebrar o sigilo do que fazer diligências. Revista Consultor Jurídico, nº 4, mar. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-mar-04/entrevista-cecilia-mello-desembargadora-trf>. Acesso em: 27 jul. 2013. 632
GRINOVER, Ibidem, p. 174.
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tou-se à aplicação das balizas utilizadas em outros países que reservam a possibilidade de autorização a outros delitos, independentemente da pena prevista em abstrato633. Concluem Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes634, em relação ao defeito de redação da norma, que: [...] não se deu conta da excepcionalidade da interceptação telefônica como meio lícito de quebrar o sigilo das comunicações, estendendo sua permissão a crimes que podem não ser de grande potencial ofensivo e, em contrapartida, excluindo-a de infrações penais de menor relevância social, mas que, por sua índole, só poderiam ser devidamente apuradas por intermédio da referida interceptação.
Entende parte majoritária da doutrina que a aplicação da norma da maneira como se apresenta, levando em conta o critério de “reclusão” para sua autorização, fere o princípio da proporcionalidade, visto que se encontra desarrazoada a aplicação de medida tão drástica em crimes apenados, em abstrato, com penas passíveis de transação ou até mesmo com suspensão do processo, apenas para citar. Na visão de Nelson Nery Jr.635, o legislador foi além quando previu que a interceptação seria autorizada somente nos crimes apenados com reclusão e foi aquém quando não incluiu no rol crimes contra a honra ou as contravenções penais fortemente recriminadas socialmente, como o jogo do bicho, por exemplo. Sugere Nery Jr. que, como forma de temperar as lacunas observadas, que seja autorizada a interceptação telefônica para obtenção de provas dos mencionados delitos, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, embora reconheça que a norma em análise careça de urgente reforma. O posicionamento acima esposado não tem a complacência de Lenio Luiz Streck636, ao entender que a lei regulamentadora traz em numerus clausus as possibilidades em que a interceptação telefônica pode ser autorizada judicialmente, não podendo outorgar ao poder discricionário do juiz a extensão da norma, visto que seria a violação ao princípio da legalidade. Urge, na opinião do autor, a alteração da lei para contemplar outras possibilidades e, ainda, para melhor compatibilizar com as situações concretas nas transações e substituições penais.
633
Ibidem, p. 174.
634
Ibidem, p. 174.
NERY JR, Apud STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. Constituição, cidadania, violência: a Lei nº 9.296/96 e seus reflexos penais e processuais. 2ª ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 55. 635
636
STRECK, Ibidem, p. 55.
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Da fundamentação e do prazo de concessão A doutrina promove severas críticas, principalmente em relação às sucessivas prorrogações, ante a ausência de prazo razoável, tornando a escuta telefônica verdadeira prospecção de provas e ainda sobre a essência da fundamentação, em relação à real necessidade do procedimento por ocasião do requerimento formulado pela polícia ou Ministério Público e principalmente na hipótese de deferimento da medida, tendo em vista tratar-se se decisão inaudita altera parte. O magistrado deve fundamentar a decisão não como mera formalidade, mas exteriorizando racionalmente os motivos que o levaram a decidir pelo deferimento. Deve, ainda, enfrentar a questão de forma exaustiva e coerente, tendo em vista que a defesa só terá conhecimento da medida e de suas razões em momento bem posterior, quando as transcrições forem juntadas aos autos. Em relação ao tema, decidiu a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça pela ilegalidade da interceptação, no Habeas Corpus nº 137.349/SP, relatado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, relativo à satisfação ao artigo 93, inciso IX da Constituição Federal, alertando que esta não se satisfaz com o “tangenciamento dos fatos, de maneira que a incongruência da motivação de quebra de sigilo telefônico acaba por solapar o direito individual do investigado”. Luiz Lenio Streck637 alerta que os artigos 4º e 5º da lei em comento devem ser lidos e interpretados em conjunto, visto que são complementares, exigindo a necessidade de fundamentação por ocasião da solicitação, pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, devendo ser mais bem elaborada pelo magistrado por ocasião da decisão. Ou seja, para se chegar à conclusão/decisão autorizando a interceptação telefônica, motivadamente, é necessário fazer a subsunção do fato concreto à norma, esclarecendo quais as circunstâncias fáticas que se amoldam à descrição legal e que autorizam a quebra da garantia constitucional da inviolabilidade das comunicações telefônicas, sob pena de flagrante nulidade. Da mesma forma deve ser o procedimento na eventualidade de prorrogações, isto porque as prorrogações das interceptações telefônicas devem, necessariamente, ter por base a descoberta de algum fato que justifique a manutenção da medida.
Renovação do prazo de concessão e o princípio da razoabilidade A segunda parte do artigo 5º da Lei nº 9.296/96 prevê que a interceptação não poderá exceder o prazo de 15 dias, com possibilidade de renovação por igual período, des637
STRECK, Ibidem, p. 29-31.
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de que comprovada a indispensabilidade do meio de prova. A Constituição é silente em relação ao prazo de concessão bem como relativo aos números de prorrogações. Entende Luiz Flávio Gomes638 que toda ingerência na vida privada do cidadão deve ter limites pré-fixados, o que tornaria um absurdo que este prazo se prolatasse indefinidamente no tempo. Prossegue afirmando: “[...] renovação, pela lei, só pode ocorrer uma vez. Fora disso, somente quando houver justificação exaustiva do excesso e quando a medida for absolutamente indispensável, demonstrando-se, em cada renovação, essa indispensabilidade.” Na mesma direção trilha Vicente Greco Filho639 em relação ao prazo de concessão, ao afirmar a necessidade de ser observado o critério de razoabilidade na análise do caso concreto, tendo em vista a omissão da lei quanto à limitação, sempre atentando para a imprescindibilidade da prova. Em relação ao tema, percebe-se que a doutrina não mantém posicionamento convergente. Parte não admite renovação além da previsão legal; outra entende ser possível tantas renovações quantas forem necessárias, desde que exaustivamente fundamentadas. Os tribunais vêm decidindo nos dois sentidos: convalidando interceptações além do trintídio legal e, por outro lado, anulando procedimentos que vão além do período previsto na norma. No entendimento pela prorrogação além do período previsto na lei, decidiu o ministro Joaquim Barbosa, por ocasião da análise do Habeas Corpus nº 85.575-SP: “Persistindo os pressupostos que conduziram à decretação da interceptação telefônica, não há obstáculos para sucessivas prorrogações, desde que devidamente fundamentadas, nem ficam maculadas como ilícitas as provas derivadas da interceptação.” As interceptações telefônicas podem ser prorrogadas sucessivas vezes pelo tempo necessário para a produção da prova; desta forma decidiu a Quinta Turma do STJ, no julgamento do HC 143.805-SP, relatado para acórdão pelo ministro Gilson Dipp. No sentido contrário, o mesmo Superior Tribunal de Justiça, pela relatoria do ministro Nilson Naves, no HC 76.686-PR, decidiu pela anulação das provas obtidas via interceptação telefônica, que perdurou por período superior àquele fixado na lei, no entendimento de que as condições autorizativas previstas na norma não se encontravam presentes. Em sintonia com o decisium acima elencado, sugere Luiz Flávio Gomes640 [33] como referencial que, “se o prazo único possível não for o de trinta dias (embora seja isso o que está previsto na lei), que sejam os sessenta dias do estado de defesa, de acor638 GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefônica: prazo de duração, renovação e excesso. Disponível em: <http://www. lfg.com.br>. Acesso em: 15 abr. 2012. 639
GRECO FILHO, Ibidem, p. 33.
GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefônica: prazo de duração, renovação e excesso. Disponível em: <http://www. lfg.com.br>. Acesso em: 15 abr. 2012. 640
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do com previsão do art. 136, § 2º da Constituição Federal. Em situações extremas nas quais esse prazo necessite ir além de sessenta dias, seja razoável, desde que haja decisão exaustivamente fundamentada. Conclui-se pelos posicionamentos acima esposados que a interceptação telefônica é medida excepcional e tem por fundamento a necessidade de obtenção de uma prova cujo logro não se concretiza por meios outros, não podendo, entretanto, se protrair indefinidamente no tempo. O caráter provisório da medida não pode ser afastado; ressalvadas as hipóteses fundamentadas de prorrogação, tal medida não poderá perdurar por tempo que cause excessivo prejuízo aos direitos individuais.
Posição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Com o objetivo de disciplinar o assunto, em face das inúmeras operações policiais efetuadas, com base em indícios obtidos por intermédio de interceptação telefônica, cujos conteúdos vazaram para a imprensa, via de regra, envolvendo pessoas de relevante destaque nacional, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou em 09/09/2008 a Resolução nº 59/08, que regulamenta o procedimento destinado às autorizações judiciais para as interceptações das comunicações. Pela Resolução, os juízes de todo o país deverão informar mensalmente às corregedorias estaduais a quantidade de escutas autorizadas. A regulamentação prevê ainda a redução dos intermediários e a identificação das pessoas que tiveram acesso às escutas autorizadas, com a finalidade de preservar o sigilo das informações obtidas e evitar possíveis vazamentos.
Conclusão Pelas reflexões havidas sobre a Lei nº 9.296/96, norma regulamentadora do procedimento de violação das comunicações, conforme previa a Constituição, conclui-se que: a. A Lei nº 9.296/96 trouxe uma visão alargada da violação das comunicações em relação à Constituição, em razão da inclusão da expressão "de qualquer natureza", em confronto à previsão de excepcionalidade da expressão constitucional "salvo, no último caso"; b. Também alargou as hipóteses de violação previstas na Constituição ao incluir no rol de possibilidades de violação das comunicações via informática e telemática, não mencionadas no texto constitucional; c. A escolha pela redação negativa trouxe a ideia equivocada de que, com exceção das situações ali elencadas, todas as demais serão passíveis da violação;
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d. A ausência de rol taxativo, usando como parâmetro apenas o critério da reclusão, pode submeter ao procedimento crimes de baixo potencial ofensivo, sujeitos à transação penal e suspensão do processo e excluindo outros que por sua natureza só poderiam ser apurados por meio da violação de correspondência e/ou comunicação; e. A falta de previsão do tempo máximo a que será submetido o indivíduo e o número de renovações permitidas configuram defeito grave, não raro possibilitando que o procedimento se protraia no tempo submetendo o indivíduo a longos períodos de invasão; f. A submissão de outros indivíduos não mencionados na autorização judicial para o procedimento invasivo (terceiros não envolvidos), sobre os quais não paira nenhum indício, viola todo e qualquer direito fundamental. De todo o exposto, a lei analisada necessita de urgentes adequações. Foi composta comissão com vistas à sua reforma, cuja conclusão foi transformada em anteprojeto de lei em 2003, porém a concretização das reformas não foi implementada. Tramita atualmente na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3.272/2008 visando à reforma da norma e à adequação aos anseios doutrinários e jurisprudenciais, demonstrando preocupação do legislativo na adequação desta em relação ao direito interno e também ao direito comparado.
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BRASIL. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Habeas Corpus nº 004887636.2012.4.01.0000/GO. Terceira Turma. Relator Ministro Tourinho Neto. Diário da Justiça Federal da primeira região. Brasília, ano IV, nº 184, publicado em 21 set.2012. p. 780/781. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 137.349/SP. Sexta Turma. Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Julgado em 05/04/2011. Diário da Justiça, Brasília, 30 maio 2011. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 85.575-SP. Segunda Turma. Relator Ministro Joaquim Barbosa, julgado em 28/03/2006. Diário da Justiça em 16 mar. 2008. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 143.805/SP. Quinta Turma. Relator Ministro Gilson Dipp, julgado em 14/02/2012. Diário da Justiça em 9 maio 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 76.686-PR. Sexta Turma. Relator Ministro Nilson Naves, julgado em 09/09/2008. Diário da Justiça em 10 nov. 2008. BRASIL. Resolução nº 59, de 09 de setembro de 2008. Disciplina e uniformiza as rotinas visando ao aperfeiçoamento do procedimento de interceptação de comunicações telefônicas e de sistemas de informática e telemática nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário, a que se refere a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Diário Justiça-e, Brasília, nº 48, 12 set. 2008. p. 20-23. Acesso em: 1 jun. 2012. CRISTO, Alessandro. É mais fácil quebrar o sigilo do que fazer diligências. Revista Consultor Jurídico, nº 4, mar. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-mar-04/ entrevista-cecilia-mello-desembargadora-trf>. Acesso em: 27 jul. 2013. FENECH, Miguel apud ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. São Paulo: Saraiva, 1994. GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefônica: prazo de duração, renovação e excesso. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 15 abr. 2012. GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica: considerações gerais sobre a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. São Paulo: Saraiva, 1996. GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 2ª ed. São Paulo. Malheiros Editores, 2007. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Interceptações e gravações: as nulidades no processo penal. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Interceptação telefônica: lei 9.296, de 24.07.96. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. JESUS, Damásio Evangelista de. Interceptação de Comunicações Telefônicas: Notas à lei 9.296, de 24.07.96. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1997, p. 735.
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I NTER CEPTAÇÃO TELEFÔ NIC A E VI S ÃO DA SEXTA TUR MA D O S UPERIOR TR IBUNAL DE J US T IÇ A
INDA LÉC IO WA ND ER LEY BALDEZ SI LVA
RESUMO A proposta do presente trabalho é mostrar se a aplicação da lei nº 9.296/96 - que regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da CF - vem sendo feita no discurso do Superior Tribunal de Justiça, à luz da Constituição Federal. Tem-se como foco também, verificar, por meio de julgamentos realizados entre 2010 e 2012, pela 6ª Turma do STJ, se as decisões sobre quebra de sigilo telefônico foram consideradas ilegais ou não e, além disso, mostrar em quais tipos de crimes estão envolvidos os investigados que têm seu sigilo quebrado. Com efeito, o objetivo geral é pesquisar se, de fato, os limites e possibilidades da quebra do sigilo telefônico vêm sendo respeitados no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Já como objetivo específico a ideia é verificar, por meio dos recursos julgados na 6ª Turma sobre quebra do sigilo telefônico, se os ministros respeitam, em sua maioria, os preceitos constitucionais. Para finalizar, aliada à análise jurisprudencial sobre a temática ora em tela, o trabalho vai buscar se as referências estudadas têm um posicionamento mais restritivo ou expansivo com relação às garantias constitucionais que tratam do tema quebra de sigilo telefônico. Palavras-chave: Sigilo. Constituição Federal. Ilegais. Jurisprudência. Garantias. 289
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Introdução Interceptação telefônica ou quebra do sigilo telefônico? O tema que vai ser abordado neste trabalho vem sendo tratado pela doutrina e jurisprudência, mas, infelizmente, o que se pode constatar é que ainda não há um entendimento pacificado no que diz respeito aos limites e possibilidades de sua autorização. Tal assertiva será demonstrada ao longo da monografia. Muitos julgados têm sido favoráveis à quebra do sigilo telefônico - o que tem ensejado uma série de recursos nos tribunais superiores -, sendo que em alguns processos os acórdãos são favoráveis aos supostos réus e em outros desfavoráveis. O que se coloca em questão é: por que assunto tão delicado e que envolve a seara da privacidade do ser humano ainda hoje transita pelo Poder Judiciário sem o devido esclarecimento técnico e jurídico que possa de uma vez por todas dirimir, sem mais delongas, todos os processos que versam sobre o mesmo problema? Por isso, a proposta é ir buscar dentro do Superior Tribunal de Justiça, mais especificamente na 6ª Turma da 3ª Seção, responsável pelo julgamento de processos na área do Direito Penal, o que levou um ministro, em acórdão de 2008 (Nilson Naves), a considerar ilícitas as provas obtidas por meio de interceptação telefônica, determinada pelo tribunal a quo (TRF – 4ª Região), que decretou a quebra do sigilo telefônico de um investigado, e de outro ministro, Og Fernandes, da mesma turma que, em 2011, considerou legal uma interceptação que durou 8 meses. No capítulo um desta monografia – Aspectos Jurídicos da Interceptação telefônica -, é apresentada a exposição de motivo da Lei nº 9.296/96 que regulamentou o inciso XII do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Busca-se, assim, demonstrar a necessidade premente à época da promulgação da referida lei. Outrossim, ainda no mesmo capítulo, é feita uma análise minuciosa – com as críticas doutrinárias desde as mais clássicas até as mais contemporâneas -, começando pelo fundamento constitucional da lei que regulamentou o inciso supracitado, passando por tópicos como escuta e gravação clandestina, captação direta, competência do juiz, prorrogação fundamentada e prevenção. No capítulo 2 adentra-se ao que se pode chamar de cerne da presente monografia. Por quê? Porque é neste momento que serão expostos e porque não dizer também desmitificados, os verdadeiros entendimentos dos ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça quando o que está em jogo é validar ou não interceptações telefônicas no âmbito de investigações criminais. Sim, porque para a maioria da população e até mesmo para operadores do direito que não se debruçam sobre assunto deveras polêmico, a impressão que se tem é a de que a justiça brasileira, em respeito à Carta Magna, invalida essas interceptações, máxime, em respeito ao Estado Democrático de Direito. Mas não é bem assim.
INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E VISÃO DA SEXTA TURMA DO SUPERIOR TRIBUNAL ...
Foram selecionados e analisados 87 acórdãos e, destes, apenas 16 foram contra a interceptação telefônica. E isso apenas na Sexta Turma, num período de três anos, que é a proposta da monografia. Como será abordado no decorrer do trabalho, existem casos midiáticos que mostram decisões judiciais invalidando meses de investigações feitas sob a égide da interceptação telefônica. Ora, fica parecendo que essa indevida invasão de privacidade não é tolerada pelo Poder Judiciário, porém, a pesquisa feita por amostragem nos acórdãos da Sexta Turma revela o contrário. Foram analisados os acórdãos relatados pelos oito ministros que compuseram a Sexta Turma entre janeiro de 2010 e outubro de 2012, tempo suficiente para demonstrar uma tendência em relação ao posicionamento dos referidos magistrados, qual seja, a de se mostrarem “flexíveis” quando julgam processos que se avolumaram graças à interceptação telefônica. Em tempo, é bom lembrar, à guisa de orientar a linha de raciocínio deste trabalho, que o nosso ordenamento jurídico só admite a interceptação pós-delitual, isto é, a última finalidade dessa medida cautelar tem que ser uma investigação criminal (ou instrução penal). Sendo assim a interceptação tem como fulcro provar um delito que já está sendo investigado, não comprovar se o agente está ou não praticando delitos. Essa parte introdutória do trabalho procura demonstrar os principais aspectos jurídicos envolvidos no tema ora abordado, máxime, quando o que está em questão é a privacidade, a individualidade e a dignidade do ser humano. Mesmo assim, a monografia mostra posicionamentos contrários, até mesmo para que o leitor possa a partir das manifestações aqui expostas tirar suas próprias conclusões. Outrossim, parte-se do pressuposto de que a proporcionalidade deve ser o norte a seguir no Direito e, indubitavelmente, assim também quando se trata do tema que vai ser apresentado na monografia. É cediço que uma interceptação telefônica, com todo o aparato e recursos humanos que devem estar disponíveis para a realização desse tipo de trabalho, requer tempo e, claro, dinheiro, muito dinheiro. Ora, não é razoável que depois de tanto dispêndio corra-se o risco de desse esforço não ser reconhecido, com a invalidação das provas na justiça. E como será demonstrado neste trabalho, é isso o que acontece muitas vezes. Sem contar, ademais, com o tempo que se perde e que poderia estar sendo investido em outras investigações que também necessitam de muitas diligências para que tenham resultados eficazes. Cabe ressaltar, ainda, neste momento introdutório, que, não raras vezes, há divergências entre as duas turmas do Superior Tribunal de Justiça que formam a 3ª Seção. Com relação às interpretações sobre a interceptação telefônica não é diferente.
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Os magistrados ainda não chegaram a uma pacificação que possa, enfim, tranquilizar aqueles que buscam a tutela jurisdicional na proteção dos seus direitos fundamentais. Não se trata aqui de “simples” invasão de privacidade. Será demonstrado no decorrer da monografia que existem casos de interceptações autorizadas que duram mais de dois anos, num flagrante abuso inconcebível num Estado Democrático de Direito. É sempre bom ter em mente que todos nós podemos um dia ser vítimas desse tipo de abuso e arbitrariedade e só então nos lembraremos de invocar a Constituição. O ideal, no entanto, é agir com prudência seja enquanto simples emissores de uma opinião, mas principalmente, enquanto responsáveis por julgar no caso concreto, processos baseados em interceptações telefônicas.
Aspectos Jurídicos da Interceptação Telefônica Do fundamento constitucional Estabelece o art. 5º, XII, da Constituição Federal, que: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”641. Cumpre destacar a extensão de invasão de intimidade autorizada pelo ordenamento jurídico à luz do disposto no referido art. 5º, XII, em confronto com a legislação ordinária. O autor defende que não há direito ou garantia fundamental de caráter absoluto. É por isso e também pelo fato de não poder existir norma constitucional a proteger o delinquente, que Guilherme de Souza Nucci não vê razão para interpretar, restritivamente, o conteúdo do mencionado inciso XII. Segundo ele e, desde que autorizada por ordem judicial, estaria autorizada para fins de investigação e processo criminal, toda e qualquer interceptação, desde que prevista em lei. Rogério Lauria Tucci diz que: Esses proclamados direitos de membro integrante da comunidade põem-se como autênticas barreiras contra a atuação dos agentes estatais da persecução penal e dos órgãos do Poder Judiciário, limitando-a no interesse da privacidade, cuja asseguração constitui exigência inarredável do Estado de Direito.642 Explicam-no bem Canotilho e Vital Moreira, ao asseverarem que os “interesses do processo criminal encontram limites na dignidade humana” e “nos princípios 641 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 793. 642 Apud TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 335-336.
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fundamentais do Estado de direito democrático”, de sorte a não poderem “valer-se de actos que ofendam direitos fundamentais básicos, como o direito à integridade pessoal, à reserva da intimidade privada, à inviolabilidade do domicílio e da correspondência”. E complementam, verbis: “A interdição é absoluta no caso do direito à integridade pessoal, e relativa nos restantes casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial, [...] quando desnecessária ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos”.
É por isso que Tucci destaca a indispensabilidade da sobrelevação da interceptação telefônica em nível constitucional, tal como na esteira das precedentes Cartas Magnas da República Federativa, efetivada pela Lei Maior de 1988. Nucci, porém, insiste em sua tese e destaca, como exemplo, que a correspondência dirigida a acusado de crime, quando apreendida regularmente (art. 240, § 1º, f, do CPP) pode ser aberta pelo juiz e exposta como meio de prova. Do mesmo modo, com base na Lei 9.296/96, as comunicações telefônicas (mais relevantes) e as demais (comunicações telegráficas e de dados) podem ser interceptadas por ordem judicial, para fins criminais.643 Ao interpretar a norma restritivamente, as correspondências dos presos não poderiam sequer serem abertas e lidas pelos agentes penitenciários, a fim de garantir a segurança do presídio em que se encontram. Outra questão importante, também com relação aos presos, é o seguinte: fosse sagrado o direito à livre correspondência, pois o art. 5º, XII, da CF, assim teria garantido, não haveria necessidade da invasão de “telefones celulares” nos presídios, pois qualquer plano de fuga ou rebelião poderia ser tratado por correspondência, afinal, esta seria indevassável de modo absoluto.644 Portanto, mais uma vez mister dizer que nenhum direito é absoluto, motivo pelo qual sustentamos a viabilidade da interceptação de correspondência, seguindo-se o disposto no Código de Processo Penal, bem como a interceptação telefônica e de dados em geral, abrangendo os sistemas de informática e telemática (art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.296/96).645 Vicente Greco Filho tem outro entendimento: “a conclusão é a de que a Constituição autoriza, nos casos nela previstos, somente a interceptação de comunicações telefônicas e não a de dados e muito menos as telegráficas (aliás, seria absurdo pensar na interceptação destas, considerando-se serem os interlocutores, entidades públicas e análogas à correspondên643 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 794. 644
Ibidem, p. 793-794.
645
Ibidem, p. 794.
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cia). Daí decorre que, em nosso entendimento, é inconstitucional o parágrafo único do art. 1º da lei comentada, porque não poderia estender a possibilidade de interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática”.646
Rogério Lauria Tucci segue posicionamento semelhante. Para o autor, desde a proteção do sigilo da correspondência, que remonta aos trabalhos da Assembleia Constituinte francesa de 1791, até os mais modernos meios de comunicação, como os telegráficos e telefônicos e, já agora, o de dados pessoais, lá se vão dois séculos.647 Em que pesem, no decorrer desse tempo, as abusivas violações, que se multiplicaram, sobretudo no declarado interesse de investigações criminais, a verdade é que a tutela constitucional tem evoluído e se aperfeiçoado, ajustando-se, como é não poderia deixar de ser, ao progresso das instituições e dos meios de comunicação.648 Como explica Pontes de Miranda, está-se, em todos eles, “diante de liberdade de não emitir o pensamento. A ela correspondem os diferentes deveres, a que aludimos, e a imunidade dos portadores a qualquer imposição de revelação dos segredos, sem que se possa distinguir do assunto que é merecedor de sigilo o assunto não merecedor de sigilo.”649 Daí, segundo Tucci, a proclamada necessidade de asseguração do sigilo de todos os meios de comunicação, que não sejam públicos, “mas a pessoa, ou pessoas, certas e determinadas”650, e de dados pessoais. Consequentemente, para o autor, é inadmissível qualquer violação que se lhes intente efetivar, seja com o rompimento do invólucro da correspondência, ou do telegrama, seja interceptando a ligação telefônica, ou “revelando aquilo que teve conhecimento em função de ofício relacionado com as comunicações”651; seja ainda com a captação e/ou divulgação não autorizada de dados pessoais.
Da interceptação Em sentido estrito, interceptar algo significaria interromper, cortar ou impedir. Logo, interceptação de comunicações telefônicas fornece a impressão equívoca de 646 FILHO, Vicente Greco. Apud NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 794. 647 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 342. 648
Ibidem, p. 342.
649
Ibidem, p. 342.
650
Ibidem, p. 342.
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 342. 651
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constituir a interrupção da conversa mantida entre duas ou mais pessoas. Na realidade, o que se quer dizer com o referido termo, em sentido amplo, é imiscuir-se ou intrometer-se em comunicação alheia. Portanto, interceptação tem o significado de interferência, com o fito de colheita de informes.652 Para Luiz Francisco Torquato Avolio a interceptação, ato ou efeito de interceptar (de inter e capio), tem, etimologicamente, entre outros, os sentidos de: “1. Interromper no seu curso; deter ou impedir na passagem; 2. Cortar, interromper: interceptar comunicações telefônicas”.653 Juridicamente, as interceptações, lato sensu, podem ser entendidas como ato de interferência nas comunicações telefônicas, quer para impedi-las - com consequências penais -, quer para delas apenas tomar conhecimento – nesse caso, também com reflexos no processo.654 Segundo Nucci, a interceptação pode dar-se das seguintes formas: a) interceptação telefônica: alguém invade, por aparelhos próprios, a conversação mantida, via telefone, entre duas ou mais pessoas, captando dados, que podem ser gravados ou simplesmente ouvidos; b) interceptação ambiental: alguém capta a conversa mantida entre duas ou mais pessoas, fora do telefone, em qualquer recinto, privado ou público.655 A primeira delas é regulada pela Lei nº 9.296/96 e pode configurar crime, se não for observada a forma legal para ser realizada. A segunda não encontra previsão legal, portanto, delito não é. Pode-se discutir se constitui ou não um meio de prova – caso seja gravada para fim de utilização em processo – lícito ou ilícito.656 Desde já, Nucci estabelece três cenários diferentes onde se insere a interceptação ambiental: a) captação de conversa alheia mantida em lugar público: não nos parece ser prova ilícita, pois, se os interlocutores desejassem privacidade e certeza de que não seriam importunados ou ouvidos, deveriam recolher-se a lugar privado; b) captação de conversa mantida em lugar privado (ex.: em um domicílio): constitui invasão de privacidade, pois não está autorizado, judicialmente, o ingresso em casa alheia, cuja inviolabilidade é constitucionalmente assegurada (art. 5º, XI, CF), motivo pelo qual colheita de dados resultante de conversação mantida dentro do domicílio alheio é prova ilícita. Ressalva: se o interceptador tiver um mandado de busca para realizar-se em determinado domicílio, pensamos poder captar e gravar (se quiser) a conversa alheia nesse lugar 652 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 794. 653 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas Ilícitas: Interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 95. 654
Ibidem, p. 95.
655
NUCCI, op. Cit., p. 794.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 794. 656
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mantida; c) captação de conversa mantida em lugar público, porém em caráter sigiloso, expressamente admitido pelos interlocutores: constitui invasão de privacidade, pois o interceptador não pode imiscuir-se em segredo de terceiros, sem permissão legal.657 Quanto a essa temática, qual seja, a ausência de regulamentação legal da gravação telefônica e das captações ambientais, Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel afirmam, na mesma linha do autor supracitado que não estão abrangidas pela lei em estudo (daí a doutrina utilizar a expressão gravações clandestinas). Eles lembram, porém, que também não estão regulamentadas por nenhuma outra lei, salvo a hipótese da Lei do Crime Organizado – Lei 9.034/1995 -, que admite a captação ambiental (art. 2º, IV) autorizada por juiz. Isso significa dizer que, no Brasil, não existe lei expressa admitindo-as ou as proibindo, cabendo à doutrina e à jurisprudência equacionar a questão.658 Os dois entendem que como a gravação telefônica e as captações ambientais envolvem, em regra, intimidade e privacidade, há necessidade de lei expressa regulamentando-as também. Sempre que haja lei expressa, está atendido o princípio da legalidade. Não havendo expressa previsão legal, pode-se falar em violação ao art. 5º, X, da CF/1988, que assegura o direito à privacidade e intimidade (esses direitos, claro, só podem ser restringidos por lei).659 Então é de se questionar: diante da ausência de lei, valem como prova as gravações clandestinas (telefônicas ou ambientais) e a interceptação e a escuta ambientais?660 A resposta deve ser em princípio, negativa. Configuram prova ilícita (na sua colheita, obtenção) diante da ausência de lei autorizando essa violação à intimidade.661 Para Gomes e Maciel são captações feitas sem lei, sem base legal e, portanto, ilícitas sob o prisma constitucional, por permitir violação ao direito de intimidade e privacidade, sem lei autorizadora, sendo certo que qualquer restrição a direito fundamental exige previsão legal [...]. Assim, as gravações clandestinas e as interceptações e escutas ambientais, como se vê, não podem valer como prova, não porque o comunicador não possa gravar sua comunicação, mas porque não existe lei disciplinando como deve dar-se a gravação, quando é cabível, quais crimes, quais pressupostos etc. [...].662 Aury Lopes Jr. trata do tema ao falar do princípio da contaminação, que tem sua origem no caso Silverthorne Lumber & Co. v. United States, em 1920, tendo a expressão 657
NUCCI, op. Cit., p. 794.
GOMES, Luiz Flávio e MACIEL, Silvio. Interceptação telefônica: comentários à Lei nº 9.296, de 24.07.1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 27-28. 658
659
GOMES, Luiz Flávio e MACIEL, Silvio. Interceptação telefônica: comentários à Lei nº 9.296, de 24.07.1996. São Paulo:
660
Ibidem, p. 27.
661
Ibidem, p. 28.
662
Ibidem, p. 28.
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fruits of the poisonous tree sido cunhada pelo Juiz Frankfurter, da Corte Suprema, no caso Nardone v. United States, em 1937. Na decisão, afirmou-se que “proibir o uso direto de certos métodos, mas não pôr limites a seu pleno uso indireto apenas provocaria o uso daqueles mesmos meios considerados incongruentes com padrões éticos e destrutivos da liberdade pessoal”. A lógica é muito clara, ainda que a aplicação seja extremamente complexa, de que se a árvore está envenenada, os frutos que ela gera estarão igualmente contaminados (por derivação).663 O autor cita, ainda, o típico exemplo da apreensão de objetos utilizados para a prática de um crime (armas, carros etc.) ou mesmo que constituam o corpo de delito, e que tenham sido obtidos a partir de escuta telefônica ilegal, ou através da violação de correspondência eletrônica. Mesmo que a busca e apreensão seja regular, com o mandado respectivo, é um ato derivado do anterior, ilícito. Portanto, contaminado está.664 A decisão citada, além de anular todos os atos decisórios, anteriores, fazendo com que os autos retornem à comarca de origem para seu desentranhamento e repetição, enfrentou um problema que desde anos vem sendo discutido e – infelizmente – decidido com muita timidez pelos tribunais brasileiros: os limites de duração da interceptação telefônica. Ficou assim reconhecido, pela primeira vez, o excesso de prazo da medida, que deverá nortear o tratamento da matéria.665 É, mas parece que não foi isso que aconteceu, pelo menos entre os doutrinadores, como Nucci, por exemplo. Ele diz que o art. 5º ao estabelecer o prazo máximo de 15 dias, prorrogável por igual tempo, constitui autêntica ilogicidade na colheita da prova, uma vez que nunca se sabe, ao certo, quanto tempo pode levar uma interceptação, até que produza os efeitos almejados, mas a jurisprudência praticamente sepultou essa limitação. Intercepta-se a comunicação telefônica enquanto for útil à colheita da prova [...]. No mesmo prisma, Luiz Francisco Torquato Avolio, Provas ilícitas – Interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas, p. 31.666 Vicente Greco Filho, buscando o mesmo objetivo, mas com interpretação diversa propõe: “A lei não limita o número de prorrogações possíveis, devendo entender-se, então, que serão tantas quantas necessárias à investigação, mesmo porque 30 dias pode ser prazo muito exíguo”.667 Na jurisprudência: STF: “É lícita a prorrogação do prazo legal de autorização para interceptação telefônica, ainda que de modo sucessivo, quando o fato seja complexo 663
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 599-600.
664
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 600.
665
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 600.
666
Avolio (2012, p. 31 apud NUCCI, 2010, p. 802).
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 803. 667
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e, como tal, exija investigação diferenciada e contínua” (Inq 2424 – RJ, T.P., rel. Cezar Peluzo, 26.11.2008). “É possível a prorrogação do prazo de autorização para a interceptação telefônica, mesmo que sucessivas, especialmente quano o fato é complexo a exigir investigação diferenciada e contínua”668. STJ: “[...] 3) Nenhuma ilegalidade há no deferimento de pedidos de prorrogação do monitoramento telefônico, que deve perdurar enquanto for necessários às investigações. 4) Não determinou, o legislador, que a prorrogação da autorização de monitoramento telefônico previsto na Lei 9.296/96 pode ser feita uma única vez”. 669 “A interceptação telefônica deve perdurar pelo tempo necessário à completa investigação dos fatos delituosos, devendo o seu prazo de duração ser avaliado motivadamente pelo Juízo sentenciante, considerando os relatórios apresentados pela polícia”.670 “O prazo previsto para a realização de interceptação telefônica é de 15 dias, nos termos do art. 5º da Lei 9.296/96, prorrogável por igual período, quantas vezes forem necessárias, até que se ultimem as investigações, desde que comprovada a necessidade, observada a razoabilidade e a proporcionalidade.671 “As interceptações e gravações telefônicas ocorreram por determinação judicial e perduram pelo tempo necessário à elucidação dos fatos delituosos, revestidos de complexidade e envolvendo organização criminosa, com o que não se violou a Lei 9.296/96”.672 É de se notar, infelizmente, que o posicionamento do professor Aury Lopes Jr. não tem sido seguido pelos doutrinadores, até porque, creio que permitir que a vida de qualquer cidadão seja devassada por tempo indeterminado é, no mínimo, não apenas uma ofensa à Constituição, como também uma ofensa á dignidade do ser humano.
Da prorrogação fundamentada Lembremos que a prorrogação será determinada pelo juiz competente e mediante decisão devidamente motivada. Do contrário, configura-se quebra das formalidades indispensáveis à validade da prova, gerando ilicitude. Conferir: STJ: “Reconhecida a ilicitude da prova pelo próprio Tribunal a quo, ante a falta de fundamentação das deci668 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 83.515-RS, Pleno, rel. Nelson Jobim, 16.09.2004, m.v., vencido Marco Aurélio, DJ 04.03.2005, p. 11. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe. asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. 669 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 133037 – GO, 6ª T., rel. Celso Limongi, 02.03.2010, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. 670
Precedentes do STJ e STF (HC 116374 – DF, 5ª T., rel. Arnaldo Esteves Lima, 15.12.2009, v.u.).
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Precedentes do STJ e do STF (HC 88241 – RJ, 5ª T., rel. Laurita Vaz, 29.09.2009, v.u.).
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HC 37.590-SP, 5ª T., rel. José Arnaldo da Fonseca, 19.10.2004, v.u., DJ 22.11.2004, p. 370). Idem: RHC 13.274-RS, 5ª T., rel. Gilson Dipp, 19.08.2003, v.u., DJ 29.09.2003, p. 276; RHC 15.121-GO, 6ª T., rel. Paulo Medina, 19.10.2004, v.u., DJ 17.12.2004, p. 595; HC 37.590-SP, 5ª T., rel. José Arnaldo da Fonseca, v.u., DJ 22.11.2004, p. 370; HC 34.008-SP, 5ª T., rel. José Arnaldo da Fonseca, v.u., DJ 24.05.2004, p. 320. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/ processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. 672
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sões de prorrogação da medida de interceptação telefônica do acusado, a única solução possível é a sua total desconsideração pelo Juízo processante e o desentrenhamento do processo das transcrições dessas interceptações consideradas ilegais, como consectário lógico e necessário de reconhecimento de ser ilícita a prova colhida ao abrigo de decisões judiciais não fundamentadas, como assentou o Egrégio TRF da 4ª Região”.673 Para Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel havendo dois ou mais juízes igualmente competentes, é certo que qualquer deles pode autorizar a interceptação. E aquele que autoriza fica, inclusive, prevento para a ação, ex vido disposto no art. 83 do CPP. Nesse sentido: “Quando o tráfico ilícito de entorpecentes se estende por mais de uma jurisdição, é competente, pelo princípio da prevenção, o juiz que primeiro toma conhecimento da infração e pratica qualquer ato processual. No caso, o ato que fixou a competência do juiz foi a autorização para proceder a escuta telefônica das conversas do paciente” (STF, HC 82.009/BA, 2ª T., j. 19.11.2002). (...).674
Da Análise da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Triênio 2010-2012 Como é de conhecimento dos operadores do direito que frequentam as sessões de julgamento das seis turmas que compõem o Superior Tribunal de Justiça, não são raras as vezes onde sobre o mesmo tema os ministros das duas turmas de uma mesma seção divergem na hora do voto. Sobre a temática interceptação telefônica não é diferente. Ao longo do ano de 2010 até setembro de 2012 foram realizados oitenta e cinco julgamentos pela 6ª Turma do STJ, que é o foco desta pesquisa. Os resultados mostram o que a maior parte da doutrina vem apontando, ou seja, a abrangência dos motivos alegados nos acórdãos para considerar legais as interceptações telefônicas tem superado e muito os fundamentos que consideram ilegais as provas obtidas por meio das interceptações. Oito ministros fizeram parte da 6ª Turma nesse período. A ministra Maria Thereza de Assis Moura julgou 25 recursos sobre interceptação telefônica; o ministro Og Fernandes 25; o ministro Sebastião Reis Júnior julgou 10; o desembargador convocado Haroldo Rodrigues também julgou 10 recursos, o desembargador convocado Celso Limongi outros 10 recursos; o ministro Vasco Della Giustina julgou 4; o mi673 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HC 143697 –PR, 5ª T., rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 22.09.2009, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. 674 GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. Interceptação telefônica: Comentários à Lei nº 9.296, de 24.07.1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 73.
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nistro Nilson Naves mais 2 e a desembargadora convocada Alderita Ramos julgou 1 recurso relacionado à interceptação telefônica. A análise de cada julgado demonstra o que a doutrina vem apontando, com algumas exceções, ou seja, quando o assunto é interceptação telefônica dificilmente o réu vai conseguir invalidar as provas obtidas por esse meio, pois as interpretações têm sido as mais extensivas possíveis no sentido de não anular um processo em virtude da quebra do sigilo telefônico. A tabela a seguir mostra o total de acórdãos proferidos pelas 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça nos anos de 2010 a 2012. A partir dela será feita uma análise sobre quantos acórdãos foram favoráveis e quantos foram contra a interceptação telefônica, no âmbito da 6ª Turma:
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA PALAVRAS-CHAVES: INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. GRAVAÇÃO CLANDESTINA. ESCUTA TELEFÔNICA TOTAL DE ACÓRDÃOS = 385* * Total de acórdãos da 5ª e 6ª Turmas relacionados à interceptação telefônica, escuta telefônica e gravação clandestina retirado do site do STJ.
5ª TURMA
6ª TURMA
220 ACÓRDÃOS
165 ACÓRDÃOS
ACÓRDÃOS COM PALAVRAS-CHAVES INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DA 6ª TURMA = 87* * Total de acórdãos apenas com a palavra-chave interceptação telefônica da 6ª Turma, retirado do site do STJ, no dia 29/10/2012.
Mª Theresa de Assis
Og Fernandes
Haroldo Rodrigues
Celso Limongi
Sebastião Reis Jr.
Vasco Della Giustina
Nilson Naves
Alderita Ramos MOURA
A FAVOR A FAVOR A FAVOR A FAVOR A FAVOR A FAVOR A FAVOR A FAVOR = 20 = 23 =8 =8 =7 =4 =0 =1
CONTRA = 5
CONTRA = 2
CONTRA = 2
CONTRA = 2
CONTRA = 3
CONTRA = 0
CONTRA = 2
CONTRA = 0
TOTAL = 25
TOTAL = 10
TOTAL = 10
TOTAL = 10
TOTAL = 10
TOTAL =4
TOTAL = 22
TOTAL = 21
A FAVOR = 71 CONTRA = 16
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Antes, porém, à guisa de justificar a escolha desses acórdãos da 6ª Turma, cuja palavra-chave é interceptação telefônica, cabe ressaltar que eles foram escolhidos por amostragem. O objetivo aqui é demonstrar que a grande maioria deles foi a favor da manutenção das interceptações telefônicas, não justificando, assim, a repetição de todos eles quando, com efeito, o que mudou foi apenas o motivo para referendar a interceptação telefônica nas respectivas investigações como legais. A ministra Maria Thereza de Assis Moura e o ministro Og Fernandes foram os que mais relataram acórdãos sobre o tema no triênio 2010-2012; 25 cada um. Como mostra a tabela acima, os outros seis ministros, conquanto não tenham relatado um número significativo de recursos (por motivos diversos mas, mormente, pelo tempo de atuação na 6ª Turma), seguiram a mesma linha de decisão, qual seja, considerar em sua grande maioria como legal a interceptação telefônica. Nesse diapasão, insta salientar que a jurisprudência, pelo menos no âmbito da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, caminha no sentido de cada vez mais considerar válida as interceptações telefônicas, apesar das severas críticas quato à utilização desse instrumento feitas por parte da doutrina pátria, algumas destacadas nessa monografia. Cito agora a ementa de um acórdão relatado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura. RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA EMENTA PROCESSUAL PENAL. CRIME PREVISTO NO ART. 10 DA LEI Nº 9.296/1996. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS DETERMINADAS POR JUIZ POR MEROS OFÍCIOS, SEM INVESTIGAÇÃO CRIMINAL OU PROCESSO PENAL INSTAURADO. AÇÃO PENAL. FALTA DEJUSTA CAUSA. ATIPICIDADE E AUSÊNCIA DE DOLO. TRANCAMENTO. REVOLVIMENTO FÁTICO. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ELEITA. 1. Intento, em tal caso, que demanda O habeas corpus não se apresenta como via adequada ao trancamento da ação penal, quando o pleito se baseia em falta justa causa (atipicidade e ausência de dolo), não relevada, primo oculi.revolvimento fático-probatório, não condizente com a via augusta do writ. 2. Ordem denegada.
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ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A Turma, por unanimidade, denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.” O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior e as Sras. Ministras Assusete Magalhães e Alderita Ramos de Oliveira (Desembargadora convocada do TJ/PE) votaram com a Sra.Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior. Brasília, 28 de agosto de 2012 (Data do Julgamento).675
Essa vai ser a tendência dos acórdãos da 6ª Turma do STJ demonstrados no decorrer da monografia, quando o assunto é validar ou não as investigações cujas provas foram obtidas com a interceptação telefônica. Até mesmo a extensão do prazo para além dos 30 dias admitidos pela Constituição, foi considerada legal.
Do conflito das decisões A quebra de sigilos telefônicos no âmbito de inquéritos e investigações criminais é tema deveras conflitante. “[...] E o conflito poderá surgir (e frequentemente surge) também entre dois ou mais titulares de direitos que, embora de natureza distinta, serão atingidos pelo simples exercício de um deles [...]”676 “[...] Essa realidade decorre do fato de vivermos em uma sociedade plural, isto é, em que vários são os interesses individuais e dos grupos que compõem a comunidade jurídica. Assim, a tutela de uma pluralidade de interesses somente pode ocorrer no plano abstrato, ou seja, no plano normativo. Quando a realidade demonstrar a possibilidade de eventuais conflitos entre valores igualmente protegidos na Constituição, somente um juízo de proporcionalidade na interpretação do Direito, orientado pela vedação do excesso e da máxima efetividade dos direitos fundamentais, é que poderá oferecer soluções plausíveis [...]”677
675 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS Nº 147.895 - RN (2009/0182864-4). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. 676
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 344.
677
Ibidem, p. 344.
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“[...] A característica da imperatividade do Direito como de todas as normas éticas, - embora tenha sido e continue sendo contestada, - parece-nos essencial a uma compreensão realística da experiência jurídica ou moral. Tudo está, porém, em não se conceber a imperatividade em termos antropomórficos, como se atrás de cada regra de direito houvesse sempre uma autoridade de arma em punho para impor seu adimplemento [...]”678.
Segundo Reale, o que há de fato é sim uma total imperatividade, pelo menos é o que se depreende das decisões tomadas pelas autoridades policiais ao desencadearem interceptações telefônicas. Depois, os advogados é que têm de se virar para conseguir o Habeas Corpus para seu cliente. Talvez à época da primeira publicação da obra supra, não fosse possível vislumbrar a que ponto chegariam as arbitrariedades cometidas pelos responsáveis pela condução de investigações de grande envergadura e com implicações políticas, econômicas e sociais. “[...] Apesar de não se poder negar que, no ato de aprovar uma lei, haja sempre certa margem de decisão livre, e, às vezes, até mesmo de arbítrio, narealidade a obrigatoriedadedo Direito vem banhada de exigências axiológicas, de um complexo de opções que se processa nomeio social, do qual não se desprende a autoridade decisória [...]”679 “ [...] O certo é que toda norma enuncia algo que deve ser, em virtude de ter sido reconhecido um valor como razão determinante de um comportamento declarado obrigatório. Há, pois, em toda regra um juízo de valor, cuja estrutura mister é esclarecer, mesmo porque ele está no cerne da atividade do juiz ou do advogado [...]”680
“ [...] A proporcionalidade, hoje utilizada como um indispensável critério her-
menêutico na aplicação do Direito, tem sua origem exatamente como meio de controle da constitucionalidade das leis, que, embora formalmente constitucionais, previam, por exemplo, sanções desproporcionais para determinadas espécies de descumprimento da lei. Há na literatura nacional e internacional inúmeros trabalhos de maior fôlego tratando do postulado ou princípio da proporcionalidade, seja na dimensão da proibição de excesso, seja na dimensão da proibição de proteção deficiente [...]”681
Um dos pontos já citados anteriormente, quando da elaboração dos problemas e hipóteses de solução, qual seja, o prazo das interceptações, creio mereça ser analisado com 678
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 33.
679
Ibidem, p. 33.
680
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 34.
681
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 344.
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mais vagar nessa monografia. Nesse sentido permite-se trazer à colação a ementa e o acórdão de um Habeas Corpus da relatoria do ministro do STJ, Og Fernandes, que considerou legal a quebra do sigilo telefônico, in casu ( HC 135771): HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO DA CUSTÓDIA NA ORIGEM. ESVAZIAMENTO DO WRIT NESSE PARTICULAR. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS. DESCABIMENTO. PRORROGAÇÃO POR MAIS DE TRINTA DIAS. POSSIBILIDADE. DEMONSTRAÇÃO DA EFETIVA NECESSIDADE DA MEDIDA EXTREMA. 1. Com a notícia da revogação da custódia cautelar pelo juízo de origem, fica prejudicado o writ no ponto em que pedia a colocação do paciente em liberdade. 2. Em relação às interceptações telefônicas, o prazo de 15 (quinze) dias, previsto na Lei nº 9.296/96, é contado a partir da efetivação da medida constritiva, ou seja, do dia em que se iniciou a escuta telefônica e não da data da decisão judicial. 3. No caso, não há falar em nulidade da primeira escuta realizada (28.12.2007), pois, embora o Magistrado tenha autorizado a quebra no dia 10.12.2007, a interceptação teve início no dia 20.12.2007. Em consequência, também se afasta a alegação de nulidade das interceptações subsequentes. 4. Consoante iterativa jurisprudência desta Corte e do STF, é possível a extrapolação do prazo constante no art. 5º, da Lei nº 9.296/96 (15 mais 15 dias), desde que haja a comprovação da necessidade da medida. 5. Na hipótese, as interceptações perduraram por aproximadamente 8 (oito) meses, período razoável se comparada a existência de grande quadrilha, especializada na disseminação de considerável quantidadede variados entorpecentes (ecstasy , LSD, maconha e haxixe). 6. Não há falar em nulidade das decisões que permitiram a quebra do sigilo das comunicações telefônicas quando elas vêm amparadas em suficiente fundamentação, tal qual ocorre na ação penal de que aqui se cuida. 7. Ordem parcialmente prejudicada e, quanto mais, denegada.
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ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, julgar prejudicado em parte o habeas corpus, e no mais, denegar a ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior, Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS), Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE) e Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, 04 de agosto de 2011 (data do julgamento).682
Três observações devem ser feitas com relação ao teor do julgado ora em comento. Em primeiro lugar, creio ter havido um exagero no período destinado à interceptação. Com o avanço tecnológico e os equipamentos colocados à disposição da autoridade policial durante as investigações, restou claro o abuso na utilização desse recurso e porque não falar em desrespeito à dignidade da pessoa humana, princípio basilar do Direito. Em segundo lugar e para ser coerente com o que foi dito acima, acerca do abuso da interceptação, é discutível se cabe a nulidade das decisões calcadas na quebra do sigilo. É de se perguntar: não seria possível uma nulidade parcial? Tomando-se por base outro princípio bastante caro ao Direito Penal, qual seja, o da proporcioalidade e razoabilidade, poderia-se considerar, por exemplo, uma interceptação de até dois meses? Por último, e até mesmo para fazer um contraponto com o julgado anterior, traz-se à baila outro julgado, da mesma turma, também de um HC, que vai na direção totalmente oposta ao que decidiu o ministro Og Fernandes: Comunicações telefônicas. Sigilo. Relatividade. Inspirações ideológicas. Conflito. Lei ordinária. Interpretações. Razoabilidade. 1. É inviolável o sigilo das comunicações telefônicas; admite-se, porém, a interceptação “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer”. 2. Foi por meio da Lei nº 9.296, de 1996, que o legislador regulamentou o texto constitucional; é explícito o texto infraconstitucional – e bem explícito – em dois pontos: primeiro, quanto ao prazo de quinze dias; segundo, quanto à reno-
682 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Penal – Leis Extravagantes – Crimes de Tráfico e Uso de Entorpecentes – Associação. Habeas Corpus nº 135.771. Impetrante: João Vieira Neto e outro. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Relator: Ministro Og Fernandes. Brasília, DF, 11 de maio de 2009. STJ, Brasília, 2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200900874363&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012.
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Aliás, no julgamento dos embargos de declaração desse Habeas Corpus, o ministro Og Fernandes votou com o relator, ou seja, considerou ilegal a quebra do sigilo telefônico do investigado. É de se observar, três anos depois, como ele considerou a quebra do sigilo telefônico ilegal, em circunstâncias semelhantes ao do HC relatado por ele citado anteriormente. Porém, o mais importante que se extrai desses dois casos é que ainda há divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre tão relevante tema que afeta o dia a dia do cidadão, pois que diz respeito à liberdade e à privacidade.
Conclusão Esgotar o tema nessas páginas não foi o objetivo do trabalho. O objetivo – e isso ficou bem claro - foi mostrar justamente que o assunto está longe de uma definição. Mas tenho plena convicção e concordo plenamente com o ponto de vista da desembargadora há pouco relatado. Há que se caminhar para a valorização do preceito constitucional e não sua banalização. Aliás, creio ser plausível nessa fase da monografia relembrar o que deu ensejo a este trabalho, isto é, analisar sob a ótica da Lei nº 9.296/96 a jurisprudência da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça entre os anos de 2010 e 2012, nos julgados envolvendo a interceptação telefônica. Fala-se, mais especificamente, do art. 2º da referida lei, transcrita a seguir: Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção. Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.
Faz-se mister destacar as críticas que o preceito encontra na doutrina, entre elas a de Paulo Rangel. Segundo ele, o art. 2º da lei das interceptações telefônicas estabeleceu a regra em vez de dispor da exceção, pois é esta que deve estar prevista em lei. O legislador, ainda de acordo com Rangel, fez a opção de dizer quando não se admite em vez de dizer quando seria admissível, fazendo o intérprete olhar o dispositivo pelo asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>.Acesso em: 21 jul. 2012.
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avesso.684 Mas antes essa “falha” de redação do que a total falta de regulamentação do art. 5º, XII da Constituição Federal de 1988. Nesse mesmo rumo, Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel (que também criticam a redação do art. 2º, na obra Interceptação Telefônica – Comentários à Lei 9.296, de 24.07.1996 -, reafirmam que, além dos três requisitos constitucionais exigidos pelo art. 5º, XII, CF/1988, é necessário, ainda, para a licitude das interceptações, estarem presentes, cumulativamente, os pressupostos deste art. 2º. São pressupostos mínimos de garantia, ou seja, de que a interceptação telefônica não será empregada em qualquer caso e sem critérios seguros. Ademais, a interceptação telefônica é medida cautelar preparatória (quando concretizada na fase policial) ou medida cautelar incidental (se realizada em juízo, durante a instrução). E sendo providência “cautelar”, não existe a menor dúvida de que está sujeita aos pressupostos (requisitos) básicos de toda medida dessa natureza, quais sejam, o fumus boni iuris (aparência de um bom direito), que, no âmbito penal, se traduz por fumus comissi delict, e o periculum in mora (perigo ou risco que deriva da demora em se tomar uma providência para a salvaguarda de um direito ou interesse), que no processo penal se traduz para periculum in libertatis.685 A corroborar a linha de raciocínio seguida durante a monografia, é imprescindível, nesta conclusão, consubstanciar os ensinamentos de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes, que no livro As Nulidades do Processo Penal686, ao falarem do aproveitamento da prova, lecionam: O parágrafo único do art. 2º sugere que o resultado da interceptação só possa ser utilizado como prova de fatos objeto de investigação determinada. Com o mesmo espírito pode ser lido o art. 4º, que exige da autoridade requerente a demonstração da necessidade da interceptação “à apuração de infração penal”. Mas não se trata senão de ideia insinuada pela redação dos dispositivos. À falta de maiores esclarecimentos, certamente surgirá na prática a dúvida a respeito de a prova obtida mediante interceptação telefônica, autorizada para investigação ou processo relativo a determinada infração penal, poder, ou não, ser utilizada em investigação ou processo instaurado por fatos diversos. Trata-se do conhecimento fortuito de outros fatos, ocasionado pela interceptação lícita. A falta, na lei brasileira, de um rol taxativo de infrações em que se admite a interceptação dificulta a solução do problema [...]. 684 RANGEL, Paulo. Breves considerações sobre a Lei 9296/96 (interceptação telefônica). Jus Navigandi, Teresina, ano 5, nº 41, 1 maio 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/195>. Acesso em: 6 abr. 2013. 685 GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. Interceptação telefônica: Comentários à Lei nº 9.296, de 24.07.1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 90. 686 FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 176-177.
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[...] Mais uma vez, trata-se de interpretar a permissão constitucional de interceptação à luz do princípio da proporcionalidade [...]. Como ficou comprovado nas tabelas das páginas 26 e 27, a interceptação telefônica no Brasil ainda é vista como algo natural, mas não deveria ser assim. A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, encarregada pela uniformização da interpretação infraconstitucional, nesse assunto, ainda está aquém do poder que a Constituição lhe outorgou para cumprir essa missão. A polêmica em torno de assunto de tamanha relevância não pode mais prosperar no seio da sociedade e, muito menos, no do Poder Judiciário. Aury Lopes Júnior é enfático ao tratar da redução do alcance da prova contaminada e assim leciona687: “São comuns os acórdãos dos tribunais brasileiros que, reconhecendo que no processo existe uma prova ilícita (ou nulidade processual), não anulam a sentença por entenderem que não ficou demonstrado que a decisão se baseou na prova ilícita. Assim, se o Juiz não mencionou expressamente na fundamentação a prova, demonstrando a importância na formação de sua convicção, dificilmente a sentença será anulada”. “Mais interessante ainda são as decisões que, em que pese a prova ilícita existir e ter sido utilizada na sentença para condenação do réu, argumentam: subtraindo mentalmente aquela prova (ilícita), ainda subsistem elementos para justificar a condenação. E, assim, mantêm a sentença condenatória... avalizando as ilegalidades praticadas...” “Não concordamos com o entendimento de que, se no processo existir alguma prova ilícita, a sentença condenatória somente será anulada se ficar demonstrado que ela se baseou exclusivamente nessa prova. Tampouco podemos admitir a tal “exclusão mental”, fruto de uma visão positivista e cartesiana, como se o ato de julgar fosse algo compartimentalizado, mecânico, de que se pudesse excluir alguma peça sem comprometer o funcionamento do motor... quando, na verdade, é todo o oposto!”
Por derradeiro, urge ressaltar que a presente monografia não tem a pretensão de fazer com que os magistrados mudem suas convicções de uma hora para outra. Com efeito, decisões divergentes, conflitantes e afrontadoras da ordem constitucional vêm sendo prolatadas diariamente nos tribunais brasileiros e algo precisa ser feito.
687
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 606-607.
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Referências AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas Ilícitas. Interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 133037 – GO, 6ª T., rel. Celso Limongi, 02.03.2010, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=20 0700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HC 37.590-SP, 5ª T., rel. José Arnaldo da Fonseca, 19.10.2004, v.u., DJ 22.11.2004, p. 370). Idem: RHC 13.274-RS, 5ª T., rel. Gilson Dipp, 19.08.2003, v.u., DJ 29.09.2003, p. 276; RHC 15.121-GO, 6ª T., rel. Paulo Medina, 19.10.2004, v.u., DJ 17.12.2004, p. 595; HC 37.590-SP, 5ª T., rel. José Arnaldo da Fonseca, v.u., DJ 22.11.2004, p. 370; HC 34.008-SP, 5ª T., rel. José Arnaldo da Fonseca, v.u., DJ 24.05.2004, p.320. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg= 200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. SHC 949.089.3/6, 12ª C., rel., Breno Guimarães, 10.05.2006, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HC 143697 – PR, 5ª T., rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 22.09.2009, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe. asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS Nº 152.194 - BA (2009/0213670-0). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700 264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HABEAS CORPUS Nº 211.486 - PR (2011/0150760-9). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700 264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS Nº 147.895 - RN (2009/0182864- 4). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe. asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS Nº 113.557 - SP (2008/0180669-9). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700 264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS Nº 142.565 - RJ (2009/0141332-4). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700 264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 453562 – AgRg – SP, 2ª T., rel. Joaquim Barbosa, 23.09.2008, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal HC 85962 – DF, 2ª T., rel. Cezar Peluzo, 25.11.2008, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700 264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC 87198 – DF, 2ª T., rel. Cezar Peluso, 25.11.2008, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700 264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal HC 88214 – PE, 1ª T., rel. Marco Aurélio, 28.04.2009, v.u. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200700 264056&pv=000000000000>. Acesso em: 21 jul. 2012. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. COSTA, Milton Corrêa da. Decisão tocante de desembargador que manda soltar Cel Beltrami. Disponível em: <http://pradiscutirobrasil.blogspot.com.br/2011_12_21_archive. html> Acesso em: 18 maio 2012. (Anexo). CRISTO, Alessandro. É mais fácil quebrar o sigilo do que fazer diligências. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-mar-04/entrevista-cecilia-mello-desembargadora-trf. Acesso em: 18 mar. 2012. Diário do Senado Federal. Disponível em: www.senado.gov.br/diarios/BuscaDiario?codDiario=7170. Acesso em: 14 nov. 2012. FERNANDES, Antônio Scarance; FILHO, Antônio Magalhães Gomes; GRINOVER, Ada Pelegrini. As nulidades no processo penal. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. GOMES, Luiz Flávio e MACIEL, Silvio. Interceptação telefônica, comentários à Lei 9.296, de 24.07.1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Da vulgarização das garantias fundamentais à banalização da quebra do sigilo telefônico. Disponível em: < http://www.protocolojuridico.com.br/site/ artigos-a-articulistas/ari-ferreira-de-queiroz/2841-da-vulgarizacao-das-garantias-fundamentais-a-banalizacao-da-quebra-de-sigilo-telefonico> Acesso em: 18 maio 2012. (Anexo). RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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I NDALÉC I O WANDERLEY B ALDE Z SIL V A
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. (Footnotes) 1 Total de acórdãos da 5ª e 6ª Turmas relacionados à interceptação telefônica, escuta telefônica e gravação clandestina, retirado do site do STJ. 2 Total de acórdãos apenas com a palavra-chave interceptação telefônica da 6ª Turma, retirado do site do STJ, no dia 29/10/2012.
DIVU LG AÇÃO DE INT ERC EPT A Ç Ã O T E L E FÔNICA E A QUEBRA DE S EGRED O DE JU STIÇA, SOB A ÉG ID E DA LEI Nº 9. 296, DE 24 DE JUL H O DE 1996
A NA LU IZA D O VA L LI MA
RESUMO É notório o número de notícias envolvendo a divulgação de trechos de interceptações telefônicas, resguardadas sob sigilo, relativas a investigações criminais. Porém, a utilização da interceptação telefônica é uma exceção à proteção constitucional da intimidade e da vida privada, conforme incisos X e XII do art. 5º da Carta Magna. Nesse ponto, a interceptação só vale para fins de investigação criminal ou instrução processual penal e caso esse sigilo seja violado, a Lei nº 9.296/96, que regula autilização desta medida, estabelece como crime a quebra do segredo de justiça. Além da preocupação do legislador em restringir as hipóteses de utilização dessa medida devastadora da intimidade, os autos de interceptação correm sob segredo de justiça, haja vista que a regra é a inviolabilidade das comunicações telefônicas e quem revela trechos de interceptação telefônica resguardados pelo sigilo comete ato contrário à lei, pois quebra segredo de justiça. Logo, responsabilizar o jornalista que realiza a divulgação não seria tornar letra morta o direito ao sigilo da fonte e à liberdade de informação. Palavras-chaves: Interceptação telefônica; Quebra de segredo de justiça; Divulgação de interceptação telefônica. 315
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Introdução O que se vê hoje, em especial pela velocidade da informação, é que o instrumento da interceptação telefônica tem sido utilizado de maneira banalizada, adequando-se desde o âmbito das mais complexas investigações aos crimes mais rotineiros, sendo notória que a divulgação em meios de comunicação social de áudios e transcrições de conversas telefônicas interceptadas por decisão judicial e protegidas por segredo de justiça tem-se tornado fato comum. Nesse sentido, a vulgarização na divulgação de trechos de interceptação telefônica tem se tornado costume consentido pela sociedade. A quebra do sigilo das comunicações telefônicas é excepcionalmente admitida pela Constituição Federal, na parte final do inciso XII do art. 5º, exclusivamente para fins de investigação criminal e instrução processual, constituindo poderoso meio de obtenção de prova para o Estado, servindo como “instrumento insidioso de quebra da intimidade, não só do investigado, mas também de terceiros” (MOREIRA, p.52, 2010). A Lei nº 9.296/96, que regulamentou o inciso XII do art. 5º, faz restrições à utilização da interceptação telefônica que deverá ser realizada como prova em investigações criminais e em instrução processual penal, excepcionalmente nos casos previstos no art. 2º desta lei, quando existirem indícios razoáveis da autoria ou participação; quando a prova não puder ser realizada por outros meios disponíveis; quando o fato investigado não for infração penal punida com detenção; bem como estabelece os requisitos para o pedido dessa medida e o procedimento em autos apartados, entre outros. Demonstra, assim, a excepcionalidade da medida conforme preceito constitucional. Muito embora seja dada essa especial proteção ao sigilo das comunicações telefônicas, a garantia da liberdade de informação pelos meios de comunicação é de tal relevância que entendeu o legislador constituinte ser necessário protegê-la para sua efetivação. Uma das medidas adotadas foi a proteção, na Constituição de 1988, do sigilo da fonte de informação jornalística, como direito fundamental, o art. 5º, inciso XIV.
Excepcionalidade da interceptação Telefônica O artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal de 1988 protege o sigilo da correspondência e da comunicação. “O legislador é taxativo, enumerando os tipos de comunicação na redação do texto, para que não houvesse dúvida. Porém, é importante estabelecer a abrangência da última parte do inciso, no que diz ‘salvo, no último caso’” (MARZOCHI, p. 131, 2004). Para Nery Júnior e Nery (p. 19, 2001), pelo texto constitucional, “a inviolabilidade da correspondência e dos dados é absoluta”, nem “ordem judicial poderia ser quebrada, já que a parte final do inciso XII só autorizaria a quebra judicial do sigilo das comunicações telefônicas”.
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Greco Filho (2008) sustenta que a expressão “último caso” refere-se apenas às comunicações telefônicas. Isso porque entende que se a Constituição quisesse dar a entender que as situações são apenas duas, e quisesse que a interceptação fosse possível nas comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, a ressalva estaria redigida não como último caso, mas como no segundo caso. Portanto, a expressão “salvo, no último caso” refere-se às “comunicações telefônicas” apenas. E, mesmo com essa exceção, a Constituição previu regras estritas de garantias, mediante ordem judicial e nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, evitando, assim, abusos. Portanto, a tutela constitucional é dúplice, pois protege tanto a liberdade de manifestação do pensamento quanto o direito à intimidade (SILVA, 2003, p. 436).
Direito de informar, Sigilo da Fonte A garantia constitucional prevista no inciso XVI do art. 5º da Constituição Federal assegura o resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional da imprensa. Logo, assegura a proteção da origem das informações obtidas, podendo, neste caso, se constituir não só na pessoa, como materiais, documentos e tudo mais que possa se caracterizar como fonte de divulgação de um fato. Essa proteção constitucional é ampla, de modo que “constitui um direito coletivo” que tem por objetivo assegurar à sociedade o acesso à informação. A utilização dessa garantia proporciona que fatos de grande relevância sejam dados ao conhecimento do público em geral (VIEIRA, 2012, p. 11). Conforme o Dicionário de Comunicação (RABAÇA; BARBOSA, 1987, p. 275), fonte de informação é a “procedência da notícia, compreendendo todos os documentos e pessoas de onde o jornalista extraiu as informações para a elaboração da notícia ou da reportagem”. Logo, o sigilo da fonte foi trazido como um instrumento para assegurar direito fundamental do Estado Democrático de Direito, a liberdade de imprensa. Hoje, revogada a Lei de Imprensa, não há dispositivo legal que obrigue o comunicador a revelar a fonte da qual obteve a informação, ficando isento de sofrer sanções penais, administrativas e cíveis pelo fato de não revelar a fonte de uma informação recebida em razão do seu ofício, desde que necessite do sigilo da fonte. Logo, se um jornalista for chamado a depor diante de um juiz, em processo criminal ou cível, ele tem o direito constitucional de não revelar o nome da pessoa que lhe passou a informação jornalística. A prerrogativa é assegurada pela Constituição Federal, como visto no art. 5º, e a negativa não acarretará responsabilidade penal (VIEIRA, 2012).
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Da Proteção à Intimidade e da Vida Privada Ao tratar do direito à informação, bem como do caráter instrumental do direito ao sigilo da fonte, não podemos deixar de falar do direito à intimidade. A Constituição estabelece como invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, conforme art. 5º, inciso X. Logo, como traz Silva (2003, p. 205), o termo direito à privacidade, considerado num sentido genérico, abarca todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade. No que tange à intimidade, Mendes (2005, p. 1364) nos ensina que esse direito diz respeito à situação “daquilo que é intimo, isolado, só. Há um direito ou uma liberdade pública de estar só, de não ser importunado, devassado, visto por olhos estranhos”. Houve por bem o legislador ordinário resguardar a intimidade, em concepção ampla, tornando invioláveis “as relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, nome, imagem, local, pensamentos, segredos e vida doméstica” (SILVA, 2003, p. 205 apud OLIVEIRA, 1980). Acrescenta Moraes (2003, p. 80) que a intimidade diz respeito às relações familiares e de amizade, de trato íntimo da pessoa, suas relações subjetivas, enquanto a vida privada pode ser caracterizada por todos os demais “relacionamentos humanos”, tais como relações de trabalho, comerciais, de estudo etc.
O Segredo de Justiça aplicado às Interceptações Telefônicas O termo segredo, do latim secretum, arnum, significa coisa que deve conservar oculto aquele que a sabe. No processo penal, o segredo não tem por finalidade ficar oculto, mas, pelo contrário, trazer à luz aquilo que se desconhece. Para Nucci (2010, p. 797),“Em suma, a interceptação telefônica somente pode ser realizada com autorização judicial, em segredo de justiça, vale dizer, sem a divulgação concomitante a quem quer que seja”. Existem situações em que o sigilo interessa ao próprio cidadão para resguardar-lhe aspectos muito importantes, nos quais a publicidade poderia ferir sua intimidade. O segredo de Justiça é decretado justamente nessas situações em que o interesse de possibilitar informações a todos cede diante de um interesse público maior ou privado, em circunstâncias excepcionais.Quando a lei impõe o segredo de justiça para atos de investigação ou mesmo processuais, “por consequência, o acesso a essas fontes, pelos jornalistas, fica excluído e, também, deixa de existir por parte das entidades oficiais o dever de informar” (COSTA, 2005, p. 209).
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É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses previstas no artigo 8º, caput da Lei nº 9.296/96, que determina a necessidade de preservar o sigilo das diligências, gravações e transcrições de interceptações telefônicas.Essa restrição imposta tanto constitucionalmente como na legislação infraconstitucional não tem status censurador, pois garantir o segredo de justiça não é censura, mas respeito à lei e garantia à tutela da intimidade, à honra, à privacidade e à imagem, previstas na Carta Magna.
Divulgação de interceptações Telefônicas Guardadas Sob Sigilo Como comentado acima, por se tratar de exceção à garantia constitucional da intimidade, prevista nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, a interceptação telefônica só vale para fins de investigação criminal ou instrução processual penal e ocorrerá em autos apartados, sendo preservado o sigilo das diligências, conforme art. 8º da Lei nº 9.296/96: Art. 8º A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Parágrafo único. A apensação somente poderá ser realizada imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito policial (Código de Processo Penal, art.10, § 1º) ou na conclusão do processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto nos arts. 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal.
Segundo Siqueira Filho (1997), o sigilo se justifica para proteger a intimidade das pessoas envolvidas na interceptação telefônica, sendo assegurada constitucionalmente e, por outro, para que o vazamento das informações não venha a prejudicar a instrução criminal, a apuração dos fatos.Caso esse sigilo seja violado, a própria lei estabelece como crime a quebra do segredo de justiça: Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
A palavra “segredo”, do latim secretum(segredo, guardado em segredo), significa o que se tem em conhecimento particular, sob reserva ou ocultamente. Segundo Ferreira (2004, p. 1820), exprime “aquilo que não pode ser revelado”.
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Comentando o verbete “segredo de justiça”, De Plácido e Silva (2001, p. 1413) esclarece: Assim se ente nais como em processos civis. Nos processos civis, o segredo de justiça é autorizado em atenção ao decoro ou interesse social. E, nos processos criminais, é ele o resultante das condições especiais do processo, o que se decide pelo arbítrio do juiz, que a eles preside, quando a lei assim não o determinar. Nos processos que correm em segredo de justiça, nenhuma certidão será fornecida sem prévia autorização do juiz. O contrário seria permitir devassa em processo sujeito à inviolabilidade.
Assim, o verbo quebrar está sendo utilizado na acepção de “infringir, violar, transgredir, quebrantar” (FERREIRA, 2004, p. 1671).Pratica o crime, portanto, quem infringe, viola ou transgride segredo de justiça. Quebra segredo de justiça quem revela fatos anteriormente resguardados sob sigilo pela justiça a fim de garantir o direito à intimidade ou a eficácia das investigações. Ademais, devido à imprecisão do artigo, não há entendimento uníssono quanto à classificação do delito em crime comum ou crime próprio. Entendo a necessidade de que o sujeito ativo do delito tenha “acesso legítimo à interceptação ou ao seu resultado” para que possa realizar o verbo do tipo penal, logo, apenas quem em razão do cargo, função ou profissão venha a ter contato com as interceptações resguardadas sob sigilo (GOMES; CUNHA, 2010, p. 629). Nesse sentido, Gomes e Cunha (2010, p. 629): Trata-se de crime próprio, isto é, sujeito ativo só pode ser quem por seu cargo (juiz, promotor, autoridade policial), função (perito, por exemplo) ou profissão (empregado das concessionárias telefônicas, advogado) venha a ter conhecimento da instauração do incidente de interceptação ou das diligências, gravações e transcrições. Não é um crime funcional, é dizer, não é preciso ser funcionário público para cometê-lo. Mas também não é qualquer pessoa que pode praticá-lo: somente aquelas que tenham tido acesso legítimo à interceptação ou ao seu resultado. Alcança, como se vê, os auxiliares do juiz (escrivão, escrevente), do promotor, da autoridade policial (investigador, escrivão) etc. [...] A obrigação de guardar segredo, destarte, deriva do cargo, da função, ou da profissão: é em razão dele ou dela que o sujeito toma ciência ou participa da interceptação telefônica. E a partir de seu contato com qualquer momento da interceptação ou com seu resultado, surge, ex vi legis, o dever de segredo, imposto pelos art. 1º e 8º da Lei 9.296/96.
Portanto, a divulgação indevida de interceptação telefônica sob segredo de justiça realizada por jornalista não perfaz, a princípio, o delito de quebra de segredo de justiça, a não ser que este seja coautor ou partícipe do delito previsto no art. 10 da Lei nº
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9.296/96.Isso porque o fato punível pode ser “obra de uma ou de várias pessoas” (BITENCOURT, 2009, p. 96). Essa reunião de sujeitos no cometimento de uma infração penal é denominada concurso de pessoas, prevista no art. 29 do Código Penal: Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). § 1º Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). § 2º Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
Nesse sentido, o Código Penal adotou, como regra, a teoria monista ou unitária para tratar do concurso de pessoas. Segundo essa teoria, que não faz distinção entre autor e partícipe, “Todo aquele que concorre para o crime causa-o em sua totalidade e por ele responde integralmente. Logo, se o crime é praticado por diversas pessoas, permanece único e indivisível, sendo resultado da conduta dos agentes, indistintamente” (BITENCOURT, 2009, p. 97). Esclarece, ainda, Bitencourt (2009, p. 378) que o código adotou como regra a teoria monista e: [...] como exceção, a concepção dualista, mitigada, distinguindo a atuação de autores e partícipes, permitindo uma efetiva dosagem de pena de acordo com a efetiva participação e eficácia causal da conduta de cada partícipe, na mediada da culpabilidade perfeitamente individualizada. Na verdade, continua o mestre, os parágrafos do art. 29 aproximaram a teoria monista da teoria dualística ao determinar a punibilidade diferenciada da participação.
A respeito do conceito de autoria e coautoria, tem-se como mais ajustado o conceito de autor que considere também aquele que detém o domínio funcional do fato, ou seja, autor não é apenas quem realiza a ação típica, mas também aquele que detém o domínio funcional do fato e, neste sentido, será coautor aquele que realiza parcialmente a conduta típica ou, ainda, que detenha o domínio funcional do fato (PRADO, 2009).
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De toda forma, mesmo que não fosse o caso de coautoria ou participação, ao divulgar trechos de interceptação sob sigilo, forçoso é reconhecer a incidência do art. 151, § 1º, inciso II, do Código Penal:688 Violação de correspondência Art. 151. Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Sonegação ou destruição de correspondência § 1º - Na mesma pena incorre: I - quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói; Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica; II - quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas; [...]
Dessa forma, fica caracterizada a possibilidade de responsabilização criminal do jornalista que divulga trechos de interceptação telefônica protegida pelo segredo de justiça, seja na forma de coautoria ou participação no delito previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/96, seja na incidência do art. 151, § 1º, inciso II, do Código Penal.
Responsabilização Criminal do Jornalista e o Sigilo da Fonte Importante atentar que a responsabilização criminal do jornalista não torna letra morta a garantia constitucional do sigilo da fonte, muito menos a liberdade de expressão, que abrange a informação jornalística.
688 Nesse sentido, Gomes e Cunha (2008, p. 109) entendem que a quebra de segredo de justiça, prevista no art. 10 da Lei nº 9.296/96 tipifica a conduta daquele que, autorizado judicialmente a interceptar a comunicação entre terceiros (ex: delegados, peritos), quebra segredo inerente ao procedimento, divulgando o conteúdo da diligência à pessoa alheia ao ato, ou seja, praticado por agente que tenha algum tipo de participação no procedimento judicial, enquanto o art. 151, § 1º, inciso I do Código Penal regula outra espécie de divulgação, que pode ser praticada por qualquer pessoa.
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A chamada liberdade de imprensa não é ilimitada, haja vista que a própria Carta Magna trouxe restrições (inciso X do art. 5º) que devem ser respeitadas, não devendo a liberdade de imprensa ser utilizada para afrontar ilicitamente a esfera de proteção dessas garantias constitucionais. Nesse passo, o direito de informar e o sigilo da fonte, como garantias fundamentais, não podem ser utilizados de maneira abusiva como escudos para o cometimento de práticas ilícitas, devendo prevalecer, no caso da divulgação de interceptações telefônicas, outros direitos fundamentais, como o direito à privacidade, sem que haja violação aos preceitos constitucionais. Nesse sentido, segundo Cassettari e Oliveira (2005, p.1, grifos nossos): Não abarca o conteúdo da liberdade de expressão, garantia constitucional das mais relevantes, divulgar conteúdo de informações declaradas sigilosas por autoridade judicial e protegidas pelo ordenamento jurídico assim como não a abarca qualquer forma de uso abusivo da expressão (mesmo falsamente intitulada de liberdade de expressão) em desconformidade com outros direitos constitucionais ou garantidos em lei. Nesta hipótese estamos diante de uso abusivo deste direito. Igualmente, o direito ao sigilo da fonte não pode ser invocado nesta hipótese. [...]Contudo, este direito ou garantia só é valido ou aplicável em hipóteses de revelações que não decorram de ilícitos penais, como é óbvio. A proteção é tão intensa aos dados ou documentos declarados legalmente ou judicialmente sigilosos, que a divulgação dessas informações constitui crime. [...] Não é direito constitucional do jornalista deixar de informar o meio de obtenção do dado ou documento sigiloso por estar na realidade pelo menos acobertando uma ação criminosa. Nesse contexto, é possível a realização de busca e apreensão em arquivos do jornalista que divulgou a interceptação sigilosa a fim de identificar sua origem. Tal medida só é viável em função da ilicitude da conduta, que possibilita a mitigação do direito ao sigilo da fonte, o qual, como já ressaltado, não pode ser invocado para o fim de obstruir a revelação de agente criminoso, sob pena de subverter todo o sistema constitucional.
A corroborar o exposto acima, eis o entendimento no Superior Tribunal de Justiça:
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À imprensa é reconhecida, constitucionalmente, a ampla liberdade de expressão, compreendendo informação, opinião e crítica jornalística, consubstanciada nos direitos de noticiar fatos verídicos e de criticá-los. Nas palavras de VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, entende-se por notícia ‘toda nota, ou anotação, sobre fato ou pessoa. Em suma, são aqueles fatos cujo acontecimento é necessário para que o indivíduo tenha concreta participação na vida coletiva de determinada sociedade’, enquanto crítica é ‘o juízo de valor que, impregnado à notícia ou recaindo separadamente sobre ela, formaliza um conceito, positivo ou negativo, acerca de um fato ou opinião’ (Direito e jornalismo. São Paulo: Verbatim, 2011. p. 54, 91). Por não ser absoluta, a liberdade de informação jornalística encontra na doutrina correntes que apontam, com variada intensidade, algumas limitações. O primeiro desses fatores de limitação reside no compromisso com a verdade. Entende-se assegurado ao jornalista emitir opinião e formular críticas, ainda que desfavoráveis e contundentes, contra qualquer pessoa ou autoridade, desde que fundadas na narração de fatos verídicos. Porém, quando os fatos noticiados não são verdadeiros, pode haver abuso do direito de informar por parte do jornalista. Nesse contexto, o primeiro limite com que se deparam os veículos de imprensa, no exercício da liberdade de informação, é o compromisso com a verdade, sem a qual poderá ficar configurado o abuso do direito de informar. Assim, se a matéria falsa veiculada na imprensa for publicada dolosamente ou com manifesta desconsideração negligente da verdade, poderá ficar caracterizado o dever de reparar eventual dano. [...] No mais, a liberdade de informação tem ainda outros fatores de limitação na preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade. Além desses, a veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandiveldiffamandi) também é repelida. (BRASIL, 2013, p. 11-13, grifos nossos).
De outro lado, uma vez violados os direitos protegidos pelo inciso X do art. 5º da Constituição, estes jamais serão reparados, pois a execração pública a que os sujeitos investigados são expostos é irremediável, visto que “para construir uma imagem, leva-se uma vida. Para mantê-la, uma eternidade. Para perdê-la, alguns segundos. Recuperá-la, nunca mais” (RODRIGUES, 2003, p. A-3).
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Ainda que o investigado seja futuramente absolvido com sentença transitada em julgado, a sua imagem já foi devastada (BRUTTI et al., 2007).Nesse ponto, corrobora Zuliani (2007, p. 46): A imprensa deve ser livre, para que tenha força; deve ser responsável, para que respeite os direitos alheios. Portanto, não se confunda ‘liberdade com licença’,enfatizou Freitas Nobre, de modo que para o patrulhamento da livre comunicação, nada obstante ser a sociedade destinatária do direito de saber e de se expressar de forma naturalmente irrestrita, existe também, até em favor do próprio cidadão, uma forma de controle da legalidade desse atributo.
É evidente que a publicação de trechos de interceptação telefônica, a depender do caso, caracteriza penalização antecipada do investigado, em face da força devastadora dos meios de comunicação. É questionável o interesse público nessas divulgações, uma vez que o interesse maior da sociedade deve ser pelo resultado do processo e não por um meio de prova. Bruttiet al. (2007, p. 11) ressaltam a inconveniência técnica e prejudicial da banalização na divulgação de trechos de interceptação telefônica ao trabalho policial tendo em vista a nãopreservação do segredo necessário das técnicas utilizadas “pelo Poder Público, a fim de garantir o sucesso de investigações criminais presentes e futuras”. Por fim, o sigilo da fonte deve ser ponderado quando for utilizado como escudo para o cometimento de ações ilícitas, como a divulgação de interceptações telefônicas resguardadas sob segredo de justiça, pois aqui deve ser respeitada a lei, não caracterizando censura.
Habeas Corpus Nº 0020456-63.2011.4.03.0000/SP A título de exemplo da discussão abordada neste artigo, o habeas corpus diz respeito à inquérito policial instaurado para apurar possível ocorrência do delito previsto no artigo 10 da Lei nº 9.296/96, tendo em vista que Allan de Abreu, repórter policial, teria divulgado, sem autorização judicial, informações de conversações telefônicas entre investigados na Operação Tamburutaca.
Acusação O procurador Álvaro Stipp, que pediu o indiciamento do jornalista, em nota à imprensa (STIPP, 2011), esclarece que o direito de sigilo da fonte jornalística é instrumento fundamental para o exercício da profissão e que a liberdade de imprensa é imprescindível ao fortalecimento da democracia.
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Entretanto, entende que o conceito de liberdade de imprensa não é absoluto nem está sozinho em nosso ordenamento jurídico. Sofre restrições, em especial a restrição exarada por mandamento do Poder Judiciário com base legal. Afirma que o respeito às instituições é fundamental em um Estado Democrático de Direito e somente a lei obriga e diz que é crime “quebrar o segredo de Justiça”. Não há ressalvas. Sustenta Álvaro Stipp (p. 1, 2011)que [...] se um ‘araponga’ realiza interceptação sem autorização judicial, incide nas penas do crime. Se um ‘araponga’ divulga segredo da Justiça, isto é, divulga informação que estava sob restrição decretada no bojo de autos judiciais, por autoridade judicial competente, incide no crime. Não se exige especial qualidade do ‘araponga’.
E mesmo que este não fosse o entendimento, diz o artigo 29 do Código Penal brasileiro que “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade” (STIPP, p. 1, 2011). A divulgação de fac-símile de documentos dos autos que estavam sob segredo de Justiça é quebra deste segredo. A publicação revelou o conteúdo de documentos e transcrições de escutas que estavam sob o manto do decreto judicial do segredo de Justiça. Não se tratava de jornalismo investigativo. Nenhuma nova informação foi colhida ou adicionada com o esforço de jogar luz nos fatos que estavam em apuração (STIPP, 2011). Conclui que a liberdade de imprensa não é o único valor jurídico que está em jogo. Há que se levar em conta o segredo judicial decretado no caso à luz dos princípios constitucionais e legais aos quais estamos todos cingidos. Ambos os valores estão ligados ao interesse público. Que, em última instância, é o valor que deve prevalecer (STIPP, 2011). Em suma, a liberdade de imprensa não é absoluta. Sofre restrições de ordem constitucional e legal, assim como todos nós também sofremos restrições de ordem constitucional e legal visando ao convívio pacífico e à garantia do exercício de nossas liberdades (STIPP, 2011).
Defesa Sustenta a defesa que a apuração decorre de suposta prática do
[...] crime previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/96, por si, não representa ilegalidade alguma. Bem ao contrário, trata-se de providência salutar. Afinal, se o
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material captado nas interceptações telefônicas foi divulgado, é porque de fato houve a quebra do sigilo. Trata-se de fato grave e que merece a devida apuração, porque o segredo de justiça, in casu, tem como fim, além do resguardo da eficácia das investigações, a própria preservação da intimidade do investigado. (TORON; CUNHA, p. 5-6, 2012).
Alega ainda que é preciso ter a seguinte distinção, já que “uma coisa é quebrar o sigilo; outra, bem diferente, é divulgar – ou, no caso, publicar – material que já foi objeto de quebra de segredo de justiça anteriormente” (TORON; CUNHA, 2012). Toron e Cunha (2012, p. 6) entendem que no caso presente [...] para que tenha havido a publicação das referidas matérias jornalísticas de autoria do paciente, é evidente – aliás, decorre de simples questão de lógica – que já havia ocorrido a prévia quebra do segredo de justiça. Assim, quando o material foi publicado, o crime do art. 10 da Lei nº 9.296/96 já havia se consumado.
Aduz a defesa que o fato praticado pelo jornalista e pelo editor chefe é irrelevante para o Direito Penal, atípico porque “o que a lei incrimina é a quebra do segredo de justiça e não a divulgação, ou publicação, de material revelado por crime já consumado” (TORON; CUNHA, p. 7, 2012). Ademais, afirma que o delito previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/96 é crime próprio.Portanto, o sujeito ativo só poderia ser pessoa que, em razão do cargo, função ou profissão, venha a ter contato com o procedimento de interceptação telefônica ou mesmo com o seu conteúdo. Afinal, sustenta-se que “somente aqueles que tiveram acesso legítimo à interceptação e seu resultado é que poderiam praticar o citado delito” (TORON; CUNHA, p. 8, 2012). A defesa ainda trata da possibilidade de coparticipação no delito, dizendo que [...] o uso da expressão copartícipe não poderia legitimar – pela incidência suposta da regra do concurso de pessoas (art. 29 do Código Penal) – o indiciamento do jornalista, ou mesmo a apuração, em relação a ele, da prática, em tese, do crime do art. 10 da Lei nº 9.296/96. Isso porque, segundo os termos do indiciamento e da investigação, a conduta praticada pelo jornalista é relativamente à ‘publicação das matérias’ que, como dito, só poderia ter ocorrido em momento posterior ao da quebra de segredo de Justiça por uma das pessoas que estavam obrigadas, por dever legal, a guardar sigilo. [...] se a conduta do paciente se deu
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após a conduta típica da quebra de sigilo, não se pode conceber a configuração da participação – no sentido técnico do art. 29 do Código Penal – na hipótese dos autos, porque esta pressupõe que o agente (partícipe), conquanto não pratique o comportamento típico ‘concorra (colabore), de qualquer modo, para o crime de outrem’ [...] (TORON; CUNHA, p. 9,2012).
Portanto, nem sequer poderíamos falar de participação do jornalista já que este não poderia colaborar com o crime de outrem se este já estivesse consumado. De outro lado, ressalta a defesa que a natureza da atividade profissional do jornalista – norteada pelo dever de informar – não se poderia exigir dele que guardasse sigilo sobre o conteúdo de interceptações telefônicas de que veio a tomar conhecimento (TORON; CUNHA, 2012). Caso pensássemos diferentemente disto, alega a defesa, seria empregar o Direito Penal – ultima ratio – como forma primeira de censurar a atividade jornalística, sobretudo porque a Constituição Federal garante que, segundo Toron e Cunha (2012), “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV” (art. 220, § 1º). Por fim, entende que não se pode concordar com a persecução penal contra um jornalista que – diante de um “furo” de reportagem – nada mais fez que dar publicidade a informações que, na altura em que foram parar nas suas mãos, já não ostentavam a condição de segredo de justiça: o sigilo (TORON; CUNHA, 2012).
Acórdão O Habeas Corpus impetrado teve a seguinte ementa: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL. REQUISIÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. COMPETÊNCIA DA CORTE REGIONAL FEDERAL. INDÍCIOS DE FATO DELITUOSO. NECESSIDADE DE INVESTIGAÇÃO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO VERIFICADA. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. MEDIDA EXCEPCIONAL. PRECEDENTES DO STF E STJ. ORDEM DENEGADA. 1. Competência da Corte Regional para conhecer e julgar o pedido de habeas corpus, na hipótese de a autoridade apontada como coatora ser representante do Ministério Público Federal. 2. A ação de habeas corpus tem pressuposto específico de admissibilidade, consistente na prévia demonstração da violência atual ou iminente, qualificada pela
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ilegalidade ou pelo abuso de poder, que repercutam, mediata ou imediatamente, no direito à livre locomoção, conforme previsão do art. 5º, inc. LXVIII, da CF e art. 647 do CPP. 3. A análise perfunctória e provisória da prova contida nestes autos não exclui, de plano, a existência de crime, de modo a justificar o trancamento do inquérito policial instaurado. 4. A divulgação de conteúdo que estava sob sigilo, determinado judicialmente, implica em se concluir que, em tese, houve a quebra do sigilo, de modo que a materialidade do ilícito já estaria demonstrada. 5. Imunidade profissional do jornalista não alcança extensão aduzida pelos impetrantes. Se, por um lado, é garantido o sigilo da fonte, nos termos do inc. XIV do art. 5º da Constituição Federal, por outro, a liberdade de informação não é irrestrita, não cabendo se falar, como é óbvio, de censura, mas o texto constitucional implica a interpretação da liberdade de informação em contraponto às demais garantias e liberdades previstas naquele mesmo texto. 6. Natureza célere da ação constitucional exige prova pré-constituída da irregularidade que cerceia o direito de liberdade. Precedentes do STF e STJ. 7. Necessidade de investigação dos fatos. Ausência de justa causa para a investigação não demonstrada. 8. Ordem denegada. (BRASIL, 2011, p. 67, grifo nosso).
Como se vê, a douta desembargadora, de maneira correta entendeu que o sigilo da fonte não é absoluto, devendo-se ter ponderação na sua utilização em contraponto às demais garantias e liberdades constitucionalmente protegidas. Isto reforça o entendimento de que a possível responsabilização criminal do jornalista que divulga conteúdo que estava sob sigilo não torna morta a letra da constituição que garante o sigilo da fonte, não podendo este ser utilizado como escudo para condutas ilícitas.
Conclusão O art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal de 1988, positiva a garantia de inviolabilidade das comunicações telefônicas:“[...] é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no
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último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” Como forma de dar aplicabilidade a essa garantia constitucional, foi promulgada, em 24 de julho de 1996, a Lei nº 9.296, que, ao regulamentar as hipóteses de interceptação das comunicações telefônicas, também estabeleceu procedimento para a produção desse meio de prova, com a determinação de que tais incidentes devam correr em segredo de justiça. Logo, a quebra do sigilo das comunicações telefônicas, excepcionalmente admitida pela Constituição Federal, na parte final do inciso XII do art. 5º, exclusivamente para fins de investigação criminal e instrução processual, constitui poderoso meio de obtenção de prova para o Estado e também não deixa de ser instrumento insidioso de quebra da intimidade – não só do investigado, mas também de terceiros. O art. 10, da Lei nº 9.296/96, estabelece que: “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas [...] ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão de dois a quatro anos e multa.” Ao analisar o citado artigo, vimos a divergência doutrinária no tocante à sua classificação, qual seja, se é um crime próprio e, portanto, somente aquele que tem o dever legal de proteção do segredo em razão do cargo, função ou profissão; ou se é crime comum, logo, qualquer pessoa poderia praticá-lo. Concluímos que o delito, de acordo com entendimento da doutrina majoritária, é crime próprio. Tal conclusão advém do fato de que, quando a lei determina o segredo de justiça para atos de investigação ou mesmo processuais, por consequência, o acesso a essas fontes, pelos jornalistas, fica excluído. É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses previstas no artigo 8º, caput, da Lei nº 9.296/96, que determina a necessidade de preservar o sigilo das diligências, gravações e transcrições de interceptações telefônicas, devendo ser mantido o segredo de justiça externo dos autos. Por conseguinte, se houver a determinação de segredo de justiça, não haverá – ou não deverá haver – a possibilidade de acesso às informações por terceiros não envolvidos no processo, dentre eles a figura do profissional de jornalismo. No entanto, a prática tem demonstrado que, não obstante haja determinação legal do sigilo das investigações, a mídia tem meios próprios – sem valoração de sua licitude ou não – de acesso às informações e é comum, sustentada pelo sigilo da fonte, a divulgação de conversas telefônicas sigilosas ao público. Nessas circunstâncias, não podemos deixar de abordar o tema relativo ao sigilo da fonte. Sabendo que a revelação de fonte sigilosa poderá implicar em responsabilidade penal ao agente que fornece as informações, como a quebra de segredo de justiça, o jornalista também não é obrigado a revelá-la (VIEIRA, 2012).
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Certo é que o jornalista tem como garantia o sigilo da fonte para exercer a liberdade de informar, mas não é resguardado por este direito e pela liberdade de informar que pode divulgar trechos de interceptação telefônica. Nesse, a divulgação indevida de interceptação telefônica sob segredo de justiça realizada por jornalista não perfaz, a princípio, o delito de quebra de segredo de justiça, a não ser que este seja coautor ou partícipe do delito previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/96, conforme entendimento de Greco Filho (2008, p. 68). Entretanto, não quer dizer que sua conduta não possa ser relevante ao direito penal, porquanto o art. 151, § 1º, inciso II, do Código Penal, trata da criminalização da divulgação de conversação telefônica. Na doutrina, Greco Filho (2008) distingue os dois delitos (do art. 10 da Lei nº 9.296/96 e o art. 151, § 1º, inciso II do Código Penal), tendo em vista que o primeiro (art. 10) tipifica a conduta daquele que, autorizado judicialmente a interceptar a comunicação de terceiros ou a participar do procedimento de interceptação telefônica, quebra o segredo inerente ao procedimento, revelando a terceiro ou divulgando (mero exaurimento) o conteúdo da diligência à pessoa alheia ao fato, enquanto o outro delito (art. 151) é praticado por qualquer outra pessoa, necessariamente ocorrendo a divulgação. Portanto, a divulgação indevida de interceptação telefônica sob segredo de justiça realizada por jornalista não perfaz, a princípio, o delito de quebra de segredo de justiça, a não ser que este seja coautor ou partícipe do delito previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/96 e, considerando que o jornalista não se vincula ao procedimento de interceptação, não tendo o dever legal de guardar o sigilo, ao divulgar informação sigilosa poderia responder pelo art. 151, § 1º, inciso II, do Código Penal.
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RE PRE SENTATIVIDADE DOS J URA DOS NO TR IBUNAL D O J ÚRI 689
MA R ILIA A R A Ú JO FO NTENELE DE CARVALHO 6 9 0
RESUMO O presente texto trata alguns pontos principais sobre a temática da representatividade dos jurados no Tribunal do Júri. Como forma de se visualizar o conteúdo e por se tratar de um tema complexo, fez-se a análise de algumas teorias levantadas por ilustres doutrinadores sobre a questão da representatividade dos jurados no Tribunal do Júri e a evidente massificação do corpo do Conselho de Sentença no formato atual do instituto. Palavras-chaves: Jurados; Tribunal do Júri; Representatividade.
689 Texto elaborado com base na monografia Representatividade dos jurados no tribunal do júri, apresentada para a banca examinadora da Faculdade de Ciências Jurídicas e Ciências Sociais do UniCEUB como requisito parcial para a obtenção de título de bacharel em Direito. 690
Bacharel em Direito pelo UniCEUB – Centro Universitário de Brasília.
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MARI LI A ARAÚ JO FO NT ENELE DE CAR V AL HO
Introdução O presente trabalho tem como objetivo analisar a representatividade dos jurados no âmbito do Tribunal do Júri. No tocante a esse tema, cabe ressaltar que nos crimes contra a vida o réu é julgado por um Tribunal Popular, em que o veredicto é formado pela íntima convicção dos indivíduos que formam a tribuna. Tais indivíduos são os jurados, pessoas que deveriam representar as mais diversas camadas da sociedade em que a paz foi turbada em razão de crime doloso contra a vida para decidir, com base nas provas, sobre a sentença a ser proferida em desfavor do réu. À luz da Constituição Federal, a intenção é de garantir ao réu que este seja julgado pelos seus pares. Entretanto, conforme o disposto no artigo 425, § 2º do Código de Processo Penal,691 o juiz deverá requisitar às autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartições públicas a indicação de cidadãos que reúnam as condições legais para exercer a função de jurado. Por fim, o magistrado irá formar uma lista geral com os nomes escolhidos e a partir desta realizar o sorteio daqueles que efetivamente vão formar o Conselho de Sentença do Júri. Assim, o simples fato de o diploma de Processo Penal brasileiro determinar que o juiz requisitará as pessoas e instituições acima referidas para formar uma lista dos possíveis jurados, por si só, já elimina parte significativa da sociedade, vez que vários segmentos da comunidade estarão automaticamente excluídos da convocação ao ser utilizado o critério do § 2º do artigo 425 do Código de Processo Penal. Dessa forma, mesmo que o ordenamento se empenhe em garantir a idoneidade e a aleatoriedade dos jurados, a participação de apenas uma determinada parcela ou de algumas poucas classes sociais na constituição da tribuna pode provocar julgamentos baseados em valores socioculturais tão somente destas camadas representadas que serão reproduzidos nas sentenças do Tribunal Popular enquanto não houver zelo no alistamento dos jurados.
691 Código de Processo Penal. Art. 425. Anualmente, serão alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes, de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) nas comarcas de mais de 100.000 (cem mil) habitantes e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população.
§ 1o Nas comarcas onde for necessário, poderá ser aumentado o número de jurados e, ainda, organizada lista de suplentes, depositadas as cédulas em urna especial, com as cautelas mencionadas na parte final do § 3o do art. 426 deste Código. § 2o O juiz presidente requisitará às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado.
R EPR ES ENT A T IV IDA DE DOS J URA DOS N O TR I B U N A L D O J Ú R I
Assim, impede-se que o réu possa ter um julgamento justo e proferido por seus pares, o que não representa necessariamente a vontade da sociedade afetada pelo crime doloso contra a vida e seus interesses.
A Ausência de Representatividade dos Jurados no Tribunal do Júri Sob a égide da Constituição Federal, a intenção do Tribunal do Júri é de garantir ao réu que este seja julgado pelos seus pares,692 ou seja, tenha um julgamento justo proferido por um colegiado heterogêneo, presentes todas as camadas sociais da comunidade em que a paz foi turbada em razão de crime doloso contra a vida.693 Contudo, o discurso tradicional de julgamento dos réus por seus pares é falacioso, pois não se menciona que esses “pares” fazem parte da sociedade organizada e inclusa no sistema de divisão de classes694 e que somente uma camada privilegiada do estrato social participa do corpo de jurados do Tribunal do Júri em razão de seu formato instituído no Código de Processo Penal brasileiro após a reforma de 2008. Isso porque, embora o Código de Processo Penal determine uma série de procedimentos que buscam trazer a aleatoriedade do corpo de jurados para garantir um julgamento justo, o próprio diploma traz à baila a contradição entre um julgamento feito por jurados sem nenhuma representação popular, proferido por indivíduos de setores específicos da sociedade em razão dos critérios adotados para o alistamento dos jurados,695 e um julgamento proferido ao réu por um colegiado heterogêneo, conforme previsto na Constituição Federal. A Constituição Federal de 1988, autenticada que fora por seu espírito democrático, reafirmou a identidade constitucional do Júri, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, alíneas a, b, c e d, assegurando ao instituto em comento a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Entretanto, embora sabiamente inserido pelo constituinte originário no título que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais em nossa Lex Major, o lastro constitucional do Tribunal Popular nada dispôs sobre o alistamento dos jurados no Tribunal do Júri, delegando assim ao legislador ordinário sua organi-
692 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 96. 693
NORONHA, Edgar Magalhães. Curso de direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 257.
RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: Visão linguística, histórica, social e dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 98. 694
695 RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: Visão linguística, histórica, social e dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 303.
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zação, hoje presente na seção IV, capítulo II, do título que trata dos procedimentos comuns e especiais, a partir do artigo 425.696 A disposição legal vigente antes da reforma instituída pela Lei nº 11.689/2008, prevista no artigo 439 do Código de Processo Penal, previa o alistamento dos jurados conforme o tamanho da comarca, preconizando que a seleção era de responsabilidade do juiz presidente do Tribunal do Júri e deveria ser feita com base em conhecimento pessoal do magistrado ou informação fidedigna.697 Ainda, o referido artigo previa que o juiz poderia requisitar às autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartições públicas a indicação de cidadãos que reunissem as condições legais para o exercício do júri. Com a reforma do Código de Processo Penal em 2008, a nova redação do artigo que concerne ao alistamento dos jurados prevê quantidade maior destes conforme o número de habitantes da comarca, incluindo ainda a possibilidade de aumento deste número caso haja necessidade.698 Entretanto, o novo texto não faculta ao juiz presidente, e sim determina que este requisite “às autoridades locais, associações de classe e bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, univer-
696 Código de Processo Penal. Artigo 425. Anualmente, serão alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população.
§ 1º Nas comarcas onde for necessário, poderá ser aumentado o número de jurados e, ainda, organizada lista de suplentes, depositadas as cédulas em urna especial, com as cautelas mencionadas na parte final do § 3º do art. 426 deste Código. § 2º O juiz presidente requisitará às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado. 697 Código de Processo Penal. Artigo 439. Anualmente, serão alistados pelo juiz-presidente do júri, sob sua responsabilidade e mediante escolha por conhecimento pessoal ou informação fidedigna, 300 (trezentos) a 500 (quinhentos) jurados no Distrito Federal e nas comarcas de mais de 100 mil habitantes, e 80 a 300 nas comarcas ou nos termos de menor população. O juiz poderá requisitar às autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartições públicas a indicação de cidadãos que reúnam as condições legais.
Parágrafo único. A lista geral, publicada em novembro de cada ano, poderá ser alterada de ofício, ou em virtude de reclamação de qualquer do povo, até a publicação definitiva, na segunda quinzena de dezembro, com recurso, dentro de 20 dias, para a superior instância, sem efeito suspensivo. 698 Código de Processo Penal. Artigo 425. Anualmente, serão alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população.
§ 1º Nas comarcas onde for necessário, poderá ser aumentado o número de jurados e, ainda, organizada uma lista de suplentes, depositadas as cédulas em urna especial, com as cautelas mencionadas na parte final do § 3º do art. 426 deste Código. § 2º O juiz–presidente requisitará às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado.
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sidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários pessoas que reúnam as condições de exercer jurado”.699 Assim, o fato de o Código de Processo Penal determinar que o juiz requisitará às pessoas e instituições acima referidas para formar uma lista dos possíveis jurados, por si só, já elimina boa parte representativa da sociedade, vez que vários segmentos estarão automaticamente excluídos da convocação por não terem acesso às instituições elencadas no rol do artigo 425 do diploma procedimental penal.700 Ou seja, a reestruturação no mecanismo de alistamento dos jurados mantém o processo de exclusão das camadas sociais mais atingidas pelo sistema penal, falecendo o corpo de jurados de legitimidade ética701 e materializando o conceito de “sociedade dividida” cunhado por Dahrendorf,702 que exprime o fato de que apenas as camadas superiores extraem do seu seio os juízes das causas e que estes têm, diante de si, predominantemente, indivíduos provenientes dos estratos inferiores, realizando-se uma justiça de classe, segundo a clássica definição de Karl Liebknecht.703 Aramis Nassif traz à tona que: Comumente, o jurado é arregimentado entre funcionários públicos, de escolas, autarquias, bancos, etc., formando uma massa representativa da classe média que, mesmo que em vias de proletarização haja vista estabelecida no círculo nuclear urbano, estáveis em seus empregos e profissões, sem uma aprofundada visão da sociedade periférica das cidades e do meio rural.704
O louvável Jader Marques observa que o juiz presidente deve valorizar o Tribunal do Júri ao agir com critério na escolha dos jurados, selecionando nos vários segmentos da sociedade aqueles que melhor a representem para promoção de um julgamento composto de um colegiado heterogêneo.705 O mesmo autor coloca que a desvalorização do Júri inicia-se pela forma com que os magistrados procedem à seleção dos jurados, uma vez que há grande insistência para alistar estudantes, funcionários públicos e aposentados, remetendo à ideia de que a função de jurado é para quem possui mais tempo disponível e não tenha algo mais importante para fazer.706 Aury Lopes Júnior 699
Código de Processo Penal. Artigo 425, § 2º.
RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: Visão linguística, histórica, social e dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 101. 700
701
MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Campinas: Bookseller, 1997, p. 88.
702
DAHRENDORF, Ralf. As classes e seus conflitos na sociedade industrial. Brasília: Editora da UnB, 1982, p. 114.
703 LIEBKNECHT, Karl. Acerca da Justiça de Classe. Organização de Textos e Tradução de Emil von München: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, São Paulo, 2002, p. 19. 704
NASSIF, Aramis. Júri: instrumento de soberania popular. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 42.
MARQUES, Jader. Tribunal do júri: considerações críticas à lei 11.689/08 de acordo com as leis 11.690/08 e 11.719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 88. 705
706 RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: Visão linguística, histórica, social e dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 89.
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também aponta a ausência de representatividade democrática dos jurados, posto que estes são membros de segmentos bem definidos da sociedade, como funcionários públicos, aposentados, donas de casa e estudantes,707 criando uma massa padronizada de um estrato social definido para realizar os julgamentos do Tribunal do Povo. Pelo exposto, conforme assinala Dussel, a forma de escolha dos jurados é excludente e carece de legitimidade ética, pois ao excluir as vítimas do sistema social quebra-se o dever ético-crítico da transformação pela desconstrução das microestruturas, instituições e sistemas de eticidade, que produzem a negatividade do acusado perante os demais cidadãos.708 No formato atual, o papel desempenhado pelos jurados é o de expurgar de uma vez por todas do sistema social os indesejáveis, as vítimas no viés dusseliano. O acordo alcançado na comunidade hegemônica real dos jurados, mesmo que implicitamente, é a exclusão dos afetados pelo controle social e sistema penal, por sua própria condição de não participante do corpo de jurados.709 Por essa linha, entende-se que a forma de escolha dos jurados no sistema jurídico pátrio hodierno é inconstitucional também por ferir o objetivo fundamental da República brasileira de promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer forma.710 Com a padronização dos jurados, pinçados de determinados segmentos sociais, mister se faz analisar também a reprodução dos valores de tais estratos sociais nas decisões do Tribunal do Júri. Embora o diploma processual penal tenha realizado a pertinente inclusão do dispositivo que impede a figura do jurado profissional,711 que traz vícios ao instituto do Júri em razão da reprodução de veredictos para as decisões do Tribunal Popular, o referido códex não impede a massificação do perfil dos jurados, todos pertencentes a uma mesma classe social, viciando suas decisões, impedindo que o réu possa ter um julgamento justo e proferido por seus pares, não representando necessariamente a vontade da sociedade e demonstrando sua ausência de representatividade.712 707 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.309. 708
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão social. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, p. 564.
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão social. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, p. 417. 709
710 Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Artigo 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 711 Código de Processo Penal. Artigo 426. A lista geral dos jurados, com indicação das respectivas profissões, será publicada pela imprensa até o dia 10 de outubro de cada ano e divulgada em editais afixados à porta do Tribunal do Júri.
§ 4º O jurado que tiver integrado o Conselho de Sentença nos 12 (doze) meses que antecederem à publicação da lista geral fica dela excluído. 712
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Como é sabido, os jurados têm como incumbência fazer a média ética coletiva da conduta do acusado de cometimento de crime doloso contra a vida, tendo tão somente como base sua íntima convicção.713 Contudo, cabe destacar que, apesar de não ser exclusivo ou característico de determinada classe social, a “assiduidade” dos réus provenientes de camadas inferiores da sociedade é maior, enquanto os jurados arregimentados pertencem às camadas superiores,714 trazendo à tona diferenças morais e sociais decorrentes da socialização diferente entre tais estratos. Em razão disso, podem recair sobre o réu do Tribunal do Júri desvalores dos jurados como traços faciais, cor, opção sexual, aparência física, religião e, principalmente, posição socioeconômica,715 influenciando a íntima convicção do jurado, que não precisa fundamentar sua decisão.716 Ainda, é fator psicológico que um indivíduo, ao julgar o outro, observa-o de um polo social mais elevado, razão pela qual o júri é uma “fábrica produtora de condenação e encarceramento de indivíduos exatamente pela composição de seu conselho”.717 Isso porque os jurados, ao julgarem o réu, decidem aquilo que é bom para a camada social a que pertencem, sem qualquer preocupação com o outro, excluído socialmente.718 Lenio Streck reflete bem essa ideia. Em suas palavras: Isso porque há – necessariamente – uma estreita relação entre os resultados dos julgamentos e a composição do corpo de jurados de cada cidade/comunidade. Pode não ser o fator determinante por si só, mas é elucidativo o fato que o elevado grau de participação das camadas médio-superiores no júri tem como consequência elevado número de condenações.719
Com a padronização dos jurados, há de se convir que nem sempre os juízes de fato compartilham de um mesmo universo social do réu, sendo detentores de sensos de justiça, valores e percepções heterogêneos.720 Sendo assim, não raro os jurados fazem um julgamento com base na pessoa réu e não analisando o delito em si, ocorrendo o tão combatido direito penal do autor. O ilustre Eugenio Raúl Zaffaroni preceitua que: Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005,. p. 142-152. 713
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17ª ed. São Paulo: Editora Saraiva 2010, p. 19.
714
NASSIF, Aramis. Júri: instrumento de soberania popular. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 43.
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 144. 715
716 JÚNIOR, Aury Lopes. Direito processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 311. 717 RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: Visão linguística, histórica, social e dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 98. 718
BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 257.
719
STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 130.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p. 73. 720
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“[...] o direito penal do autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma ‘forma de ser’ do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva.”721 Nesse sentido e de acordo com os teóricos do labeling approach, o réu já recebe do jurado a etiqueta de criminoso por estar em contato com o sistema penal,722 dificultando um julgamento imparcial por parte dos jurados, principalmente em razão da assimetria entre jurados e réu, fazendo cair por terra o princípio basilar do Direito Penal e Processual Penal, qual seja, o in dubio pro reo em conjunto com a presunção de inocência, que norteiam a axiologia probatória.723 Tal fato demonstra que a homogeneidade do sistema penal e a padronização dos jurados atuam como mantenedoras da estrutura vertical da sociedade.724 Sob o mesmo enfoque, nota-se que, se somente as classes mais abastadas estão representando a sociedade no júri, estas estarão mais tendentes às condenações, vez que a distância social entre jurados e réu desencoraja toda forma concreta de solidariedade.725 Ao condenar um réu com base no indivíduo, a classe dominante contém os desvios que não prejudiquem a funcionalidade do sistema.726 A padronização dos jurados traz um grave problema para a representatividade dos jurados no Tribunal do Júri, pois, embora as classes sociais díspares sejam, em tese, pares, na verdade, a diferença sociocultural termina por diferenciar àqueles que seriam iguais.727 Não há como imaginar que pessoas separadas por um abismo social congreguem os mesmos valores a ponto de proferir um julgamento como se pares fossem, reproduzindo no Tribunal Popular as decisões de um segmento privilegiado da sociedade. Assim, resta clara a ausência de representatividade social dos jurados no Tribunal do Júri em razão da forma de alistamento dos jurados prevista pelo legislador infraconstitucional, indo de encontro à garantia individual do cidadão de julgamento por seus próprios pares. Faz-se mister uma nova reforma processual, no sentido de ade-
721
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro. 7ª edição. Revista dos Tribunais, 2007. p. 115.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. p. 91. 722
723 LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 147. 724 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. p. 175. 725 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. p. 180. 726 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. p. 197. 727 CHOUKR, Fausi Hassan. Júri: reformas, continuísmos e perspectivas práticas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 67.
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quar o Júri à realidade constitucional atual a fim de que este seja, efetivamente, um instrumento de garantia do acusado e não um triturador das liberdades públicas.
Conclusão Faz-se desnecessário afirmar que o Tribunal do Júri é uma garantia individual do réu do Tribunal do Júri que visa a atender os anseios de justiça do povo promovendo o julgamento daqueles que cometeram crimes dolosos contra a vida, em sua forma tentada ou consumada, por seus pares. Contudo, cabe esclarecer que não é o povo, um colegiado heterogêneo da sociedade, que decide sobre a condenação ou absolvição no Tribunal do Júri. O povo é representado por um segmento específico da sociedade, que em sua maioria não partilha de valores ou códigos sociais com os réus, viciando as decisões do Tribunal Popular e indo de encontro ao seu principal objetivo: um julgamento justo. Esse fenômeno ocorre em razão da forma de alistamento dos jurados prevista pelo legislador ordinário no Código de Processo Penal em seu artigo 425, §2º, que determina um rol de instituições, com base no conceito subjetivo de idoneidade, que devem ser requisitadas para a formação da lista geral de jurados. Essa forma de escolha, mesmo que a priori pareça aleatória, é prejudicial para a legitimidade das decisões do Tribunal do Júri vez que exclui grande parte da sociedade em geral, arregimentando aqueles de maior poder aquisitivo que na grande maioria das vezes não fazem parte do estrato social que “frequenta” os bancos de réus, indo de encontro à garantia individual do cidadão de julgamento por seus pares. Com a padronização dos jurados, pertencentes às camadas mais altas da pirâmide social, há a perda da representatividade social no corpo de jurados, base de legitimidade do Júri Popular. A participação de apenas determinada parcela ou algumas poucas classes sociais na constituição do Júri pode provocar julgamentos baseados nos valores destes indivíduos, que reproduzem a forma de pensar desses grupos, dificultando que o réu possa ter um julgamento proferido por seus pares, como deseja a Constituição Federal.
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Referências BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. CHOUKR, Fausi Hassan. Júri: reformas, continuísmos e perspectivas práticas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. CÓDIGO de Processo Penal Brasileiro. CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil. DAHRENDORF, Ralf. As classes e seus conflitos na sociedade industrial. Brasília: Editora da UnB, 1982. DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão social. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. LIEBKNECHT, Karl. Acerca da Justiça de Classe. Organização de Textos e Tradução de Emil von München. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2002. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. ______. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. MARQUES, Jader. A instituição do júri. Campinas: Bookseller, 1997. NASSIF, Aramis. Júri: instrumento de soberania popular. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. NORONHA, Edgar Magalhães. Curso de direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1978. RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: visão linguística, histórica, social e dogmática. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro. 7ª edição. Revista dos Tribunais, 2007.