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INTRODUÇÃO AO IMAGINAL em Ibn ‘Arabî

INTRODUÇÃO AO IMAGINAL em Ibn ‘Arabî

IMAGINAL em Ibn ‘Arabî

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O QUE É O MUNDO IMAGINAL? NA FILOSOFIA ISLÂMICA, O “MUNDO IMAGINAL” (“MUNDUS IMAGINALIS”, EXPRESSÃO CUNHADA PELO ORIENTALISTA H. CORBIN) É CONSIDERADO O MUNDO INTERMEDIÁRIO ENTRE O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL;INTERMUNDO CUJA EXISTÊNCIA É ONTOLOGICAMENTE OBJETIVA E AUTÔNOMA, E SÓ PODE SER CAPTADA PELA FACULDADE OU ÓRGÃO DA IMAGINAÇÃO ATIVA.

Por Daniel R. Placido

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NA FILOSOFIA GREGA ANTIGA, SOBRETUDO NOS FILÓSOFOS DE ORIENTAÇÃO PLATÔNICA, JÁ EXISTIA UMA CONCEPÇÃO SOBRE O MUNDO INTERMEDIÁRIO: A ALMA DO MUNDO, SITUADA ENTRE O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL. SABIDAMENTE, ESSA FILOSOFIA INFLUENCIOU MAIS TARDE A FILOSOFIA ISLÂMICA DE FORMA PROFUNDA. CONTUDO, NÃO SE TRATA DE UM PROCESSO DE MERA RECEPÇÃO OU REPRODUÇÃO, MAS DE RECRIAÇÃO. E, POR ISSO MESMO, A NOÇÃO DA FILOSÓFICA DE ALMA DO MUNDO SERÁ TRANSFIGURADA NO CONTEXTO DA FILOSOFIA ISLÂMICA, TORNANDO-SE O MUNDO IMAGINAL (ALAM AL-MITHAL) DOS FILÓSOFOS DE INCLINAÇÃO MÍSTICA OU TEOSÓFICA. EM TERMOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS, A CONCEPÇÃO DE MUNDO IMAGINAL FOI DESENVOLVIDA DE FORMA PIONEIRA POR DOIS GRANDES FILÓSOFOS-MÍSTICOS DO ISLÃ, OS QUAIS ERAM PRATICAMENTE CONTEMPORÂNEOS: O FILÓSOFO PERSA SHIHÂBODDÎN YAHÎA SOHRAVARDÎ (1155–1191) E O FILÓSOFO ANDALUZ IBN ‘ARABÎ (1165-1240). NESTE ARTIGO, FALAREMOS DO CONCEITO DE IMAGINAL, DE FORMA INTRODUTÓRIA, NA VISÃO DE IBN ‘ARABÎ.

O imaginal em Ibn ‘Arabî

A realidade para Ibn ‘Arabî é concebida em diversos níveis, graus ou presenças (presença=hadra), desde o aspecto imanifesto de Deus até o mundo material. Segundo Fernando Mora, porém, Ibn ‘Arabî não os classifica nem determina de maneira exaustiva. Alguns de seus discípulos falam, entre outras classificações, nestes planos de existência: 1) divina, 2) espiritual, 3) anímica ou imaginal, 4) mundo sensorial exterior, e 5) presença do ser humano perfeito que engloba as realidades anteriores.

Às esferas invisível e visível da realidade, Ibn ‘Arabî chama de mundo da ausência (que é uma luminosidade e sem manifestação, mas possibilidade da percepção da existência) e mundo do testemunho, aos quais acresce a realidade intermediária do barzakh. Esses três podem ser chamados de reino do intelecto, imaginação e sensação, ou, ainda, mundo da luz (anjos), mundo do fogo (gênios) e mundo do pó ou poeira (corpos materiais). Ou ainda, tal como faz Sohravardî, mundo da soberania (malakût), mundo da dominação (Jabarût ou mundo imaginal) e reino (mulk, mundo visível). Mas, diferente do filósofo persa, Ibn ‘Arabî chama o mundo espiritual de Malakût, e o mundo intermediário ou imaginal de Jabarût, por razões que não conseguimos determinar claramente.

Sobre o imaginal em Ibn ‘Arabî, é preciso retomar a noção de barzakh, ou seja, barreira, istmo, intermundo, que, por sua vez, já aparece no Corão (23: 100, 25: 53, 55: 19-20). O barzakh diz respeito a duas realidades que nunca se mesclam, mas reúnem qualidades das duas sem ser nenhuma delas. Essa noção tem aspectos distintos que devem ser considerados. Para Ibn ‘Arabî, diante da face interior e não-manifesta de Deus, tudo no universo é um barzakh, ou seja, está suspenso entre o ser e o não-ser.

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A imaginação, sempre mediadora, pode ser encarada sob um tríplice aspecto em Ibn‘Arabî (MORA, 2011: 213):

1- Imaginação ilimitada - É o barzakh supremo, o Alento ou Sopro do Todo Misericordioso, ponte entre o ser o nada, urdidura ou estofo sutil da existência. Ela engloba todos os outros domínios (espiritual, imaginal e sensível), pois tudo que não é Deus é, de algum modo, imagem ou aparição. O cosmos é real e irreal, Deus e não- Deus; produto da divina imaginação, é imaginação sobre imaginação, e está construído com a matéria dos sonhos por assim dizer, feito com o Sopro do Todo- Poderoso (MORA, 2011: 214).

2- Imaginação limitada - O mundo imaginal propriamente dito, ou imaginação descontígua, pois independe e subsiste sem o observador. É um domínio macrocósmico ou plano de existência autônomo, mundo sutil ao qual os místicos ascendem em espírito e no qual as inteligências imateriais descem para tomar formas concretas (MORA, 2011: 215).

3- Imaginação contígua - Derivada do mundo imaginal, vincula corpo e espírito, e serefere à faculdade imaginativa enquanto tal. Está conectada com a percepção doobservador (microcósmica): por exemplo, se ele não presta atenção suficiente a umaimagem mental qualquer, ela desvanece. É feita da substância da vida interior,anímica, que mescla a sutilidade e luminosidade do espirito com a densidade outreva do corpo.

Ibn ‘Arabî considera o mundo imaginal como a vasta terra de Deus ou Morada dos símbolos. Ele diz que essa Terra é imperecedoura e imutável.

Deus há feito dela morada de seus servidores e lugar de Sua adoração. É uma terra espiritual, inteligível e não-sensível (MORA, 2011: 215).

De acordo com F. Mora, na tradição islâmica (Corão, sunna), a Terra de Deus procede da argila que sobrou da criação de Adão. Com esse excedente também se criou a palmeira (árvore santa no islamismo) sob cuja sombra Maria deu à luz Jesus. Depois da criação dessa palmeira (MORA, 2011: 216), diz Ibn ‘Arabî, ficou oculto dessa argila uma parte do tamanho de um grão de gergelim. A partir dele, Allah desdobrou uma terra imensamente vasta. Ela contém realidades estranhas e desconcertantes. A cada respiração, Alla cria nesses mundos, nessa Terra. Nela se manifesta a incomensurabilidade e a onipotência Dele. Aí muito do que parece logicamente inverossímil no mundo sensível é possível, e aparece aos sábios de Deus como um domínio a ser explorado. Entre todos o mundo que compõe, tem um que é afim com a nossa forma. Ora, quando o conhecedor contempla os seres que o compõe, observa ali sua própria alma (MORA, 2011: 216). Afirma Ibn ‘Arabî:

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EN ESA TIERRA EXISTEN JARDINES, PARAÍSOS, SERES ANIMADOS Y MINERALES DE LOS QUE SÓLO ALLAH CONOCE SU VALOR. TODO LO QUE SE ENCUENTRA EN ELLA ESTÁ DOTADO DE VIDA Y SE EXPRESA CON UNA VIDA SIMILAR A LA DE TODO SER VIVO DOTADO DE LENGUAJE ARTICULADO. TODAS LAS COSAS QUE EXISTEN ALLÍ SON ANÁLOGAS A LAS COSAS QUE EXISTEN EN ESTE BAJO MUNDO, AUNQUE ESTA TIERRA (DE LA REALIDAD ESENCIAL) SEA PERMANENTE, SIN QUE PUEDA DESAPARECER NI SUFRIR MODIFICACIÓN, PUES SU ESFERA DE EXISTENCIA ES IMPERECEDERA.

NO ES SUSCEPTIBLE DE RECIBIR NINGÚN CUERPO HUMANO HECHO DE ARCILLA. EN VIRTUD DE SUS CARACTERÍSTICAS PROPIAS, ESTE DOMINIO ES, PARA NOSOTROS, COMO EL MUNDO DE LOS ESPÍRITUS. ÉSA ES LA RAZÓN DE QUE LOS CONOCEDORES QUE SE ADENTRAN EN ELLA LO HAGAN CON SU ESPÍRITU Y NO CON SU ENTIDAD CORPORAL. POR TANTO, ABANDONAN SU HABITÁCULO CORPORAL EN ESTE BAJO MUNDO PARA ASUMIR UN ASPECTO INMATERIAL. (APUD MORA, 2011: 2016-217).

Os corpos de que revestem anjos, jinns e as aparências que os seres humanos contemplam em sonhos, são corpos sutis desse âmbito ontológico. Ele congrega o tempo e a eternidade, possibilidade e impossibilidade, cosmos e Deus, forma e não-forma. Povoado de símbolos que falam ao coração (qalb), aí a imaginação vê o conhecimento em forma de leite, mel ou vinho e pérolas, enquanto o Islã aparece em forma de cúpula e pilares, a religião de laço e Deus na forma humana e de luz. Só a imaginação pode explorar o que está entre o espiritual e o sensível, o lugar em que ascendem os sentidos e descendem os significados e, por isso, é epistemologicamente central entre os instrumentos do conhecimento humano (MORA, 2011: 2017).

Bibliografia ADDAS, Claude. Quest for the Red Sulphur: the life of Ibn Arabi. Cambridge: The Islamic Texts Society, 1993. CAMPANINI, Massimo. Introdução à Filosofia Islâmica. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. MORA, Fernando. Ibn 'Arabi: Vida y Enseñanzas Del Gran Místico Andalusí. Madrid: Kairós, 2011.

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