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DP RECIFE, SEGUNDA-FEIRA 29/02/2016
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ZIKA VÍRUS VÍR
UMA AMEAÇA MUNDIAL O pai que não quer acreditar que seu bebê tem microcefalia, a mãe que gritou “leva essa menina daqui!”, a grávida que teme o futuro – esta reportagem conta as dramáticas histórias de pessoas que, de uma hora para outra, viram um problema que ameaça a saúde pública da humanidade tornar-se realidade dentro de casa. Reportagem: Silvia Bessa e Alice de Souza EXPEDIENTE
diretora de redação: Vera Ogando edição: Silvia Bessa edição de fotografia: Rafael Martins design e edição de arte: Jaíne Cintra infografia: Greg e Silvino diagramação: Kaio Leon e Zianne Torres edição de vídeo: Roberta Cardoso reportagem: Silvia Bessa e Alice de Souza fotos: Paulo Paiva, Rafael Martins e Vinícius Danadai revisão de textos: Paula Losada
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Parelhas RIO GRANDE DO NORTE Natal
245 Km Par arelhas elhas
“O médico olhou para mim e disse: seu filho não vai andar nem falar. Vai ficar vegetando numa cama”
KAMILA SILVA 26 anos
Mãe de um bebê de UTI
Reportagem viajou 5,2 mil km, do Nordeste ao Sudeste do Brasil, para dar voz às famílias
Kamila tev teve zika zika aos aos três mese mesess de gestação; ge stação; hoje sonha com com o dia em que Daniel, Daniel, seu tercceir ter eiro o filho, filho, irá de sapatoss para sapato para casa casa
A HISTÓRIA DAS VÍTIMAS M
ães, insones, soluçam de tristeza e medo do futuro por seus filhos. Pais duvidam quando um centímetro a menos da cabeça faz diferença para um ser humano. Bebês nascem diante de olhares questionadores. Avós, tios e amigos desejam a cura impossível da microcefalia. Sobre o Brasil paira um lamento coletivo pelo mal causado em crianças ainda no ventre. De agosto de 2015 até agora, o Brasil notificou 5.640 bebês com suspeita dessa má-formação; em 2014, foram 147. Os primeiros estudos indicam o ardiloso zika vírus como o responsável pela tragédia. Pode não ser o único. O temor ao zika vírus se espalhou por outros países. A Organização Mundial da Saúde declarou no
início de fevereiro o zika como caso de emergência sanitária de interesse internacional. A OMS prevê contaminação de 4 milhões de pessoas por zika nas Américas. Esta reportagem é resultado de 5.200 quilômetros de viagem. Traz uma amostra dos efeitos da microcefalia na vida das pessoas pelo viés social, econômico, doméstico, familiar, religioso e da saúde pública. Partimos dos epicentros do problema: o zika e o território de Pernambuco, estado com 29% dos casos de distúrbios neurológicos em bebês. Fomos ao Sertão e capitais do Nordeste, a região mais atingida; e ao litoral e periferia do Sudeste. Estivemos em São Paulo, o maior contingente populacional do país. Entrevistamos autoridades e alguns dos melhores especialistas médi-
cos em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Ouvimos as famílias. “Seu filho não vai andar, nem falar. Vai ficar vegetando”, disse o médico a Kamila da Silva, mãe de Daniel Henrique, cinco meses de vida dentro de uma UTI neonatal. São de Parelhas, Rio Grande do Norte. A microcefalia afeta o desenvolvimento intelectual, visual, motor e auditivo, provoca crises epilépticas e de comportamento, a depender do caso. Os bebês nascem com perímetro cefálico menor que 32 centímetros, enquanto o peso e tamanho são normais para a idade gestacional. Com uma atrofia severa, Daniel luta para sair da UTI. Um par de sapatos o espera. O zika tem rápida proliferação e é capaz de furar a bar-
reira da placenta que protege a criança - é o que se diz hoje. O ministro da Saúde, Marcelo Castro, afirmou que o Brasil terá uma “geração de sequelados”. A orientação é que mulheres evitem filhos. Há dúvidas se o vírus é transmitido pela saliva e relações sexuais. “É um desafio sem par para nós neste século”, sentenciou Valcler Rangel, vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz (RJ). “Não temos vacina, um diagnóstico confiável e dispomos de poucos meios para combater o problema”, alertou a diretora-geral da Organização Mundial da Saúde, Margareth Chan, em visita a Pernambuco. A pior das notícias: não se vê horizonte para barrar o crescimento das estatísticas e a vitimização de inocentes.
Microcefalia no Brasil 153
2011 2013
139 175 167
2014
147
2012
Indicadores sociais tornam as taxas de zika e microcefalia no Nordeste mais preocupantes
PÁGINAS 2 E 3 Gravidez na adolescência e apoio da família são pano de fundo do quadro atual
PÁGINAS 4 E 5 Vulnerabilidade social das famílias dificulta acesso e percepção do diagnóstico
PÁGINA 6 Temor de grávidas ultrapassa barreiras do Brasil e preocupa países de todo o mundo
PÁGINA 7 Tríplice epidemia lota emergências, confunde pacientes e causa mortes
PÁGINAS 8E9
Casos notificado adoss até 20 ado 20 de fe fever ereir eiro o de 201 2016 6 2010
Índice
Desafio do Brasil é barrar novo e grande surto de zika e microcefalia em outras regiões 5.640
2015 e 2016*
3.586% de aumento entre 2010 e 2016*
Fonte: Ministério da Saúde
*Soma de notificações de 2015 até o dia 20 de fevereiro de 2016. Dos 5.640, 583 foram confirmados, 4.107 são investigados e 950 foram descartados
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Tabira PERNAMBUCO
A falta de estrutura nos grotões e a ausência de vacina, de repelentes e larvicidas tendem a fortalecer o zika vírus
Tabir abira a R ecif ecife e
401 Km
“Estou nervosa demais. Sempre fico pensando: não é certeza que minha filha tem o problema, não é certeza”
S
LOURDES SOUZA 23 anos PAULO PAIVA/DP
e preciso for anunciou Lourdinha - “passo por uma seca inteira para o povo fazer exames e dizer se realmente minha filha tem microcefalia”. Sertaneja de 23 anos, Maria de Lourdes Souza Ferreira sabe que uma seca pode ser longa e desgastante. “Estou procurando ficar em pé”, confidencia, enquanto aperta Nayara, 22 dias de vida, por entre os seios. O significado da palavra microcefalia aprendeu dia 5 de dezembro, quando a terceira filha nasceu e a levaram para exames. Desde então, nunca mais dormiu do mesmo jeito. “Oxe, a pessoa pensa de tudo quando está sozinha. É um aperto no coração horrível”. Como se perdida no tempo, olhava para a imensidão do céu azul do sítio Cachoeira Grande, comunidade rural pedregosa e seca de Tabira, interior de Pernambuco. É lá que mora com o marido e outros três filhos: Glaison de 6 anos, Naiara, de 3 anos, e Laiane, de 8, por adoção. “Difícil demais ter uma criança dentro de casa e não saber como fazer para cuidar do problema.” Lourdinha iniciou o prénatal em 2015, quando tinha 16 semanas de gestação. Antes, não fez uso de ácido fólico, suplemento de vitamina B9 recomendável para proteger o bebê de anomalias congênitas no primeiro trimestre de gestação. “Mas evitava tomando remédio”, conta. Nem sempre tomava como prescrevia a bula, corrigem os profissionais de saúde. O marido trabalha na roça de milho e feijão e leva para casa R$ 28 por dia quando tem serviço disponível. Em tempos de estiagem, não há gado nem lavoura produtiva que atenda à fome de todos. Lourdinha é uma mãe dedicada: faz questão de acordar às 4h para manter o chão de cimento batido lustroso, as roupas das crianças alvas e cheirosas e o mosquiteiro bem firme para proteger a pequena. Os vizinhos e Inês dos Santos, a agente de saúde, atestam. No final de novembro, quase um mês após a chegada tumultuada de Nayara, que esperou o périplo da mãe por maternidade, estava tensa com a primeira viagem da vida que faria à capital, Recife, 401 quilômetros de distância. Para não esquecer de itens necessários, expôs com antecedência a malinha de mão de Nayara no centro da sala, tiaras para adornar a cabeça da filha e algumas fraldas em preparação à primeira visita da menina a um centro de
No Brasil mais seco Moradora numa casa simples da zona rural, Lourdes Souza Ferreira sobrevive com o marido e três filhos e resiste a acreditar que a bebê Nayara tenha má-formação cerebral
UMA MÃE E SUA DOR
Mapa de uma tragédia
RR
Casos de microcefalia em investigação * Números absolutos PE 1.188
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neurologia. A rotina tendia a mudar dali em diante. O médico Pedro Gonzales, profissional com 37 anos de experiência, obstetra e clínico no posto de saúde da Ilha do Rato, bem próximo do sítio onde ela mora, dava-lhe força. “Não deixe de ir. Essa criança precisa de acompanhamento o mais breve possível”. Foi ele que, por acaso, a atendeu na emergência hos-
PI
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TO BA
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TOTAL
PB PE AL SE
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4.107
hoje média de 33 casos por dia
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RJ
Fonte: Minis Ministério tério da Saúde Saúde
* Dados até o dia 20 de fevereiro de 2016
pitalar. Com três pós-graduações, há 15 anos ele fez opção por atender a população mais carente no interior. Gonzales está preocupado com a subnotificação, sobretudo do zika. “Pode ter muito mais gente atingida do que sabemos.” A falta de informações, exames, vacinas para evitar a contaminação do zika, repelentes eficazes e produtos químicos que ajudem no combate à
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transmissão do vírus pelo Aedes aegypti são problemas comuns dos municípios de pequeno porte e das capitais brasileiras. O Aedes é tido como um dos vetores do zika; pesquisadores querem saber se é o único. Outros fatores tornam a condição dos grotões mais grave. No interior, o acesso aos instrumentos de saúde pública é mais escasso, conforme atestou a reportagem. A se tirar
por Lourdinha: para Recife, ela levaria consigo Nayara, roupas de uso pessoal da filha e duas ultrassonografias feitas durante o pré-natal. “Foi briga para fazer. A segunda tirei um dia antes de ganhar minha filha. Não cheguei nem a mostrar para a médica.” Lourdes soube da má-formação quando Nayara nasceu. “Aqui é tudo mais complicado. A gente sofre.”
“
As coisas vão piorar antes de melhorar. Estamos lidando com um vírus traiçoeiro, cheio de incertezas, então devemos estar preparados para surpresas.” Margaret Chan, diretora-geral da OMS
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Nova Cruz RIO GRANDE DO NORTE Natal
100 Km Novv a Cruz No
"Meu marido me deixou, mas ter um filho é ter uma companhia. Ela estará comigo sempre"
JOSEANE CESÁRIO 29 anos
RAFAEL MARTINS/ ESP. DP
E o mundo deu duas voltas
SEM O MARIDO, COM NATÁLIA Mães com seus bebês são abandonadas por homens; e especialistas dizem que redes de apoio precisam se estender para além do núcleo familiar central
“
Sexo é para amador; gravidez é para profissional (...) Qualquer que seja a hipótese, o cenário é gravíssimo". Marcelo Castro, ministro da saúde, em novembro de 2015
zika vírus Vinte e cinco especialistas do Brasil, envolvidos com a investigação do zika e microcefalia, foram entrevistados nesta reportagem
A
vida da agricultor cult oraa JoseaJosea ne Cesário virou ao avesso quando ganhou a filha Natália. O momento de felicidade foi substituído pela solidão. O tempo passou; o olhar triste da mãe parece ter petrificado. Joseane acabou abandonada pelo marido menos de um mês após o parto de Natália. Na tormenta, evita detalhes de como o companheiro resolveu de repente deixar de ninar a criança enquanto ela cuidava da lida na casa onde viviam, em Nova Cruz, Rio Grande do Norte. “As pessoas perguntam se foi por causa da menina. Só sei é que ele já tinha outra mulher”, justifica Joseane, ao mesmo tempo em que tenta não alongar a conversa sobre a hipótese de a condição da filha ter contribuído para o marido ter se apressado. Vendo a dúvida, a cunhada Poliana Costa busca o necessário apoio profissional. “Aqui tem psicólogo?”, pergunta com voz baixa à coordenadora da unidade de saúde. Oito em cada 10 casais brasileiros com filhos especiais se separam, aponta levantamento do Instituto Baresi. Natália era até então a única criança diagnosticada com microcefalia de Nova Cruz, cidade com 37 mil habitantes. À espera da primeira consulta a um neurologista, com um mês e meio, diagnosticada com microcefalia ao nascer, dorme aconchegada sobre um coração a bater ofegante e intranquilo. São pouco mais de 13h na sala de espera do Centro de Especialidades do município, a 100 km da capital, Natal. Joseane ansiava por respostas que abrandassem a angústia.
A pediatra Marlene Abrantes mede o perímetro perímetro cefálicefáli co. Três centímetros maior que os 31 centímetros conferidos no dia do parto. “Para o problemazinho, está ótima. Tem bons reflex ef lexos, suga bem, fica em pé.” As palavras médicas, em diminutivo cuidadoso, atenuam a ansiedade. Faltava concluir a peregrinação por um infectologista. A fila grande impedia a marcação. A visita ao infectologista é fundamental para analisar se a microcefalia de Natália foi provocada pelo zika vírus. A mãe garante, só teve diarreias e tosse; mas a menina é caso analisado pelo Ministério da Saúde. O Brasil teve em 2015 quatro vezes mais bebês suspeitos de microcefalia do que a soma dos cinco anos anteriores; hoje, a cada hora mais de uma criança é notificada com a doença no país. O que se passou com Joseane é um novo capítulo de uma história secular permeada por preconceito contra deficientes. Remete ao Brasil colônia, época na qual existia no país a roda dos enjeitados, onde crianças com deficiência costumavam ser abandonadas. “Eram muitas vezes associadas a castigos divinos. Depois, com o lógica capitalista, passaram a ser vistas como incapazes para o trabalho”, explica a historiadora do Grupo de Estudos Surdos e da Deficiência (GESD) do Núcleo de Antropologia Urbana da USP Andréa Cavalheiro, em entrevista de Goiás. Poliana, a cunhada da agricultora, está certa em buscar ajuda. “Quanto maior o descompasso e as desigualdades sociais”, lembra Andréa Cavalheiro, “mais difíceis serão os arranjos das relações e possibilidade de criar filhos”. Cerca de 30% das mães de bebês
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Lucicleide (acima) viv vive a angústia e a dúvida dessde a gra de gravide videz; z; já for oram am vários vários diagnóstico diagnóstic os para para o estado estado de saúde da filha Ev Evelyn
RAFAEL RAF AEL MARTINS/ MARTINS/ ESP E SP.. DP
A agricultora Joseane ainda está em choque com o diagnóstico da filha com má-formação desenvolvem transtornos mentais. Sem apoio de parentes, o percentual pode chegar a 40%. A rede de apoio precisa se estender além da família. Sobretudo com informação. O acompanhamento deve acontecer mesmo antes do parto e precisa ser estendido a avós, pais, tios e irmãos, defende o professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famesp) e membro da Socie-
dade Brasileira de Psicologia Nelson Iguimar Valério. A dona de casa Lucicleide Mendonça, 33 anos, passou a chorar desde que saiu da sala de ultrassonografia aos cinco meses de gestação. A criança nasceria com microcefalia. Na família, a alegria deu lugar a múltiplos sentimentos. Teve quem correu para a internet para se informar, aqueles apegados aos boatos e outros cujo assunto
preferiram nem mencionar. Evelyn integrou a lista de investigados de Caaporã, cidade de 20 mil habitantes a 62 quilômetros de João Pessoa. Nasceu sem microcefalia. Alívio imediato seguido de outro baque: ela teria hidrocefalia. Especialistas que garantem: o vírus provoca outros tipos de má-formação. O zika é um mistério, assim como o dano invisível causado nos atingidos por ele.
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Recife PERNAMBUCO
R ecif ecife e
"A gente ficou em choque. Nunca tinha ouvido falar de microcefalia. Achava até que era uma coisa simples"
A bisavó Odete Bezerra é o porto-seguro de Michele, jovem mãe adolescente de Ryan, que nasceu na Paraíba
PAULIANA SOUZA 16 anos RAFAEL AEL MARTINS/ MARTINS/ ESP E SP.. DP
Mães e avós são essenciais no apoio às adolescentes com filhos nascidos com má-formação
P
auliana Souza não conseguia nem segurar ar a ffiilha nos braços quando gritou em desespero no leito do Hospital Barão de Lucena, unidade pública das mais movimentadas do Recife. “Leva essa menina daqui! Leva, leva!”. O primeiro aleitamento veio acompanhado da rejeição, evidente no semblante infantil de senho franzido e rosto lavado em lágrimas. A quase menina de 16 anos havia via dado à luz um be be-bê com microcefalia. Era setembro de 2015, antes do boom de casos. O diagnóstico abriu as portas da vida dela para as mazelas do sistema público de saúde. Pauliana está aprendendo a ser mãe; o SUS, a ser eficaz, universal e humano, o que inclui políticas públicas específicas que estanquem o crescimento de casos de gravidez na adolescência. Uma conversa “naqueles códigos de médico que a gente não entende nada” foi o alarme da família de que algo poderia estar diferente na gestação de Agatha Beatriz, hoje com cinco meses. A confirmação do quadro veio um dia antes do parto. Aos quatro meses de gestação, Pauliana teve uma coceira na pele por três dias. Moradora da
“LEVA ESSA MENINA DAQUI” comunidade do Detran, Recife, acreditava ser consequência da água da torneira. Não saberá jamais se era zika. As amostras devem ser coletadas durante a infecção, explica o integrante do Comitê de Arboviroses do Ministério da Saúde Carlos Brito, pernambucano e um dos primeiros médicos brasileiros a levantar a possibilidade de o vírus estar no Brasil. “Ele tem característica de circular menos tempo no sangue e desaparecer rapidamente. Em um paciente com dengue, se consegue isolar o DNA em até 60% dos casos. No zika em menos de 30%.” Foram 18 dias de internação pós-nascimento à espera de um neurologista. “A médica disse mesmo assim: ‘não posso fazer mais nada, o cérebro dela não volta ao normal’”, recorda a avó da criança, a doméstica Ana Paula Silva, 38. Coube à matriarca tomar para si as responsabilidades. Por dois meses, ela abriu mão do trabalho, única fonte de renda fixa da residência, para cuidar da neta. Resistiu às ligações da patroa. Suplantou a vergonha ao procurar a irmã e pedir um cartão de crédito para dividir em três vezes um exame de R$ 120. O procedimento estava
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Na hora do desespero Pauliana contou com a ajuda da mãe, Ana Paula, que chegou a largar gar emprego emprego de doméstica para cuidar da neta Agatha suspenso pelo SUS. Carregou a criança no colo por falta da cadeira de bebê conforto na ambulância. Sem dinheiro, voltou a trabalhar. Agatha sofre convulsões diárias, uma das complicações da anomalia congênita. Só iniciou a fisioterapia após o surto tomar proporção nacional - hoje é internacional. “Meus conhecidos dizem que vai viver até 10 anos. Mas a cada dia que amanhece, vejo ela viva e fico feliz”, garante a avó. A microcefalia é o maior problema de saúde pública no Brasil, não o único. Antes mesmo do diagnóstico, as famílias en-
Médicos no interior do Nordeste* *Taxa por 1 mil habitante - exceto capitais MA - 0,36
RN - 0,49
AL - 0,10
PI - 0,01
PB - 0,52
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PE - 0,63
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Fonte: Demografia Médica no Brasil/ Usp 2015
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frentam a ausência de profissionais e medicamentos. A razão de médicos no país é de 2,11 para cada 1 mil habitantes, aponta o levantamento Demografia Médica no Brasil 2015, divulgado pela Universidade de São Paulo (USP). Se comparado a países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil só está acima da Coreia do Sul, Turquia, Chile, China, África do Sul, Índia e Indonésia. A ausência é maior nas regiões Norte (1,09/1mil) e Nordeste (1,3/1mil). No Nordeste, existem 72 mil médicos. No Sudes-
te, são três vezes mais. Morar na capital é um fôlego de sorte para Agatha. O documento da USP atesta: quando se trata de saúde, há dois Brasis. No interior, a taxa de médicos é quatro vezes menor que nas grandes capitais. Realidade vivenciada por Michele Bezerra, 18 anos, moradora do município do Conde, na Paraíba. Em dezembro, o estado era o primeiro em taxa de notificação de microcefalia: 975 a cada 100 mil nascidos vivos. Michele viajou pelo menos três vezes para João Pessoa. Dava de cara com salas vazias, portas fe-
chadas. A confirmação da microcefalia de Ryan Felipe foi assim: “A enfermeira disse que ele poderia morrer. Nem esperou minha mãe. Praticamente me matou.” Pauliana e Michele são personagens de outra cicatriz social. No país, a taxa de natalidade entre meninas de 0 a 14 anos aumentou 14% nos últimos cinco anos. Entre as meninas de 15 a 19 anos, o aumento foi de 5%. As mães e avós são âncoras. Pauliana se recompõe com Ana Paula. Michele conta com o apoio da bisavó, dona Odetee Be Be-zerra - avó de 50 netos e bisnetos, sem um rim e diabética.
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Afogados da Ingazeira PERNAMBUCO A f og ogado adoss da Ingaz Ing azeir eira a
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378 Km
Dedic edicação ação do pai José José Pedr edro o facilitou facilitou a aceitação ac eitação de Érica Érica quanto à microc microcef efalia alia da filha
“Sei que quem nasce com esse problema tem a cabeça grande, né?! Acho que essa menina não vai ter é nada”
POLIANA NICÁCIO 21 anos
PAULO PAIVA/DP
O BEBÊ CHORA E O PAI ESCUTA
Baixos níveis econômico e educacional dificultam compreensão de anomalia
N
aquele dia, Poliana e Geneci Pereira estavam em conf conflit lito conjugal. No centro dele, Mayara, menina de pouco choro, com dias de nascida, e que consta nos relatórios do Ministério da Saúde sobre a microcefalia. A filha do casal é uma das 13 crianças do município de Afogados da Ingazeira, Sertão do Pajeú em Pernambuco, notificadas como supostas vítimas de microcefalia e do zika vírus. Geneci se recusava a autorizar a mulher de apenas 21 anos a acompanhar a filha mais nova em exames neurológicos no Recife: “Não quero porque essa menina não tem nada. Ela tem cabeça pequena porque é toda pequena. Nunca vi confusão tão grande por causa de um ou dois centímetros. Nada a ver”. Mãe de outras duas crianças com menos de três anos, Poliana estava propensa a concordar com o argumento do companheiro. A jovem de sombra magra lutava na Justiça para ter o direito de criar os quatro irmãos com menos de quatro anos que estão em um abrigo, prestes a serem adotados. Mayara, a bebê que acabara de chegar na família e cujo sangue está sob análise do Estado, será criada dentro desse contexto. Ape-
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sar do discurso de que o Aedes aegypti “é democrático”, a pobreza, a falta de saneamento básico e de instrução ou de acesso à informação oferecem terreno fértil para a proliferação do mosquito e dos vírus que transmite. Os contextos social, econômico e educacional devem, assim, ser considerados nesse quadro de saúde pública. “Corto mato, ajudo como pedreiro, ganho até R$ 200 por semana e corro para não deixar faltar o leite da menina”, diz Geneci, o pai. Dona de casa, Poliana lava, passa roupa, cozinha e cuida das três crianças. “Só posso entregar a Deus”, resigna-se a jovem, moradora do bairro Baixo São Francisco. Quanto maior a vulnerabilidade social, mais difícil é a compreensão do desafio a ser enfrentado pelo filho. Para especialistas, a conclusão é quase unânime. “Vemos muitos casos de mães sem base familiar, com nível de carência financeira grande, falta de instrução. Essas certamente não têm noção do quanto a microcefalia mudará a vida delas”, corrobora Rosilene Salvador, assistente social do Hospital Regional Emília Câmara, profissional responsável pelas pacientes dessa unidade de saúde que atende 12 municípios.
Poliana terá que dividir agora atenção e recursos entre os três filhos; a mais nova pode ser especial Talvez a vulnerabilidade, seja ela qual for, explique a decisão extrema de uma família que, em outubro passado, abandonou um bebê portador de microcefalia no abrigo Lar Rejane Marques, no Recife. A criança chegou lá com cerca de um mês. Entrará no Cadastro Nacional de Adoção. Já surgiram outros casos. “A situação é caótica. O país está muito pouco preparado. O surto de microcefalia é um transtorno enorme. Vai requerer profissionais especializa-
dos, o que não temos”, analisa Rubens Wajnsztejn, presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia Pediátrica e médico há 36 anos. “A gente vai tentar lidar com o que dispomos nas mãos”, diz. Na casa de Poliana e Geneci, a intervenção fez diferença. Mayara está sendo acompanhada no Recife, distante 378 quilômetros. Por enquanto, permanece como um caso suspeito. Quando um pai acolhe um filho especial e dá o suporte
esperado para a mãe, o peso da responsabilidade e as angústias diárias - dizem elas ficam mais leves. Érica Lívia dos Santos, 21 anos, se ampara em José Pedro para cuidarem juntos de Maria Evelyn, que agora tem pouco mais de dois meses. Nasceu com 2.290 quilos, 29,5 centímetros de perímetro cefálico. “Só meu marido me consola.” José Pedro da Silva fica pouco em casa durante o dia. Dedica-se ao corte de cana para garantir o sustento da famí-
lia, mas faz questão de acolher a menina às noites e de acompanhá-la ao Recife nos exames neurológicos preliminares. Maria Evelyn costuma ir para a capital toda faceira, de vestido de algodão rendado e sapatos de cores combinando. “É o pai que faz isso. Vai para o comércio para comprar, todo besta.” Está encantado, como muitos, e já encontrou a frase certa para confortar a mulher, mãe da menininha: “Vamos cuidar dela juntos”.
Microcefalia em Pernambuco Casos notificados por região em Pernambuco
1ª Região
680
4ª Região
194
7ª Região
22
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2ª
9ª 7ª
2ª Região
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3ª Região
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8ª Região
22
9ª Região
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11ªª Re 11 Região
52
12ª Re Região
74
12ª
10ª
10ª Re Região 11ª
1ª
4ª 6ª
3ª
8ª 5ª
Fonte: Secr ecretaria etaria de Saúde Saúde de Pernambuc Pernambuco o
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À
Caaporã PARAÍBA
espera de Luís Antônio, o segundo filho, Jacinete Firmino de Oliveira, 24 anos, confessava: “Só sossego quando meu menino nascer”. Pelo volume de notificações de má-formação em bebês nesta região nos últimos seis meses, a frase dita por ela passou a ser ouvida com frequência nos rincões e capitais nordestinas do país. As estatísticas crescem progressivamente ou porque as crianças nascidas com microcefalia começam a ser incorporadas à paisagem local, sendo inseridas na rotina diária das mães quando vão ao supermercado ou à padaria da esquina. É maior a angústia das mulheres brasileiras em idade fértil e gestantes sobre a saúde de filhos que possam vir a ter. Mas o medo daqui se globalizou com as descobertas de zika pelo mundo. Uma linha do tempo imaginária revela a preocupação internacionalizada com o futuro de uma próxima geração. O temor chegou aos centros de ciências médicas dos Estados Unidos, país que em janeiro deste ano baixou recomendação para que grávidas não viagem a países onde ocorre transmissão do vírus zika. Bateu à porta do Vaticano. O papa Francisco se sensibilizou ao
João Pe Pe s s o a
66 Km Caaporã
"Fiquei muito doente no começo da gravidez. Estou preocupada. Ninguém está livre de nada" DIOLLANI NASCIMENTO 21 anos
O clima por trás da caatinga
Daqui a alguns anos teremos um marco entre o antes e o depois do surto
Nas propriedade propriedadess rurais rur ais ou capitais capitais,, o temor toma conta conta da maioria das grávidas, grávidas, como Jacinete
PAUL ULO UL O PAIV PAIVA A /DP
quebrar um tabu da Igreja Católica: em decisão inédita, o pontífice admitiu semana passada o uso de contraceptivos para evitar a gravidez durante o surto. A Organização das Nações Unidas pediu direito ao aborto legal. O papa posicionou-se contra. A Organização Mundial da Saúde considera a abstinência sexual necessária, levando em conta estudos apontando para a transmissão do zika pelo sêmen e saliva. “Não engravidem agora. Esse é o conselho mais sóbrio que pode ser dado”, afirmou o diretor do departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, Cláudio Maierovitch, em novembro passado. O país viverá uma queda na natalidade. Na última sexta-feira, três meses depois, não havia respostas para tranquilizar o brasileiro. O zika continua a desa-
AS INCERTEZAS DOS FILHOS DO MUNDO fiar cientistas: “É impossível dizer quando a população pode ficar tranquila. Não conhecemos ainda a dinâmica da doença no nosso país”, afirmou, por telefone de Brasília. Imagina-se quantas mães e pais têm perdido o sono em função do caos da saúde pública. A jovem Diollani confessa que lida com “um desespero no coração” ao assistir ao noticiário de TV sobre o zika vírus, dengue e chikungunya. Dos três porque os pacientes
nunca sabem distingui-las pelo que veem ou quando sentem sintomas de febre, dores e moleza no corpo. Uma prima teve diagnóstico de bebê com microcefalia. Os sintomas do vírus zika, a fraqueza e manchas vermelhas no corpo (chamadas de rash cutâneo), o prurido (espécie de coceira), Diollani Nascimento sentiu no início de 2015. Com 21 anos, está com nove meses de gestação de um bebê cujo sexo ainda desconhece. “Tive
febre, ânsia de vômito. Os últimos exames do meu filho não consegui fazer. Então, ninguém sabe, ninguém está livre de nada. Estou entregando a Deus.” Passou a gravidez dividindo uma agonia com a mãe, Gerusa Ferreira. As duas estavam grávidas ao mesmo tempo. Resta à filha mais velha ter uma boa notícia. Elas moram em Caaporã, município com perfil praieiro do estado da Paraíba. Desde o início do surto, é o segundo estado em
números de casos absolutos. A microcefalia no país, por enquanto atribuída ao surto de zika, abrirá debates periféricos. “Como a questão da urbanização das cidades, do serviço de atenção básica e do planejamento familiar eficiente - aliás, um problema antigo para o Brasil”, diz a pediatra Jucile Menezes. Referência em Pernambuco em neonatologia, Jucile acompanhou mais de uma centena de casos de crianças microcefálicas nos úl-
amostras de saliva e urina
timos meses e conhece a realidade de perto. “Muda tudo. Afeta, inclusive, a autonomia da mulher ao decidir quando tem de engravidar e também repercute sobre o ciclo natural da reprodução humana.” Assim, o fenômeno brasileiro vai expor no território nacional e no exterior essas questões, por vezes relativizadas. Daqui a anos o momento atual será marco entre o antes e o depois do surto de zika e do boom de microcefalia.
Microcefalia e a linha do tempo internacional 22 de outubro Secretaria de Saúde de PE comunica ao Ministério da Saúde o aumento nos casos de microcefalia. No dia 23 de outubro a OMS é informada. O número de bebês nascidos com microcefalia em 2014 foi de 147 casos em todo o Brasil
12 de novembro Ministério da Saúde declara Emergência em Saúde de Importância Nacional (Espin)
Saúde (OMS) e Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) emitem alerta mundial sobre o zika vírus
1º de fevereiro OMS declara emergência de saúde pública de interesse internacional
28 de novembro Ministério da Saúde confirma relação entre o zika vírus e o surto de microcefalia
15 de janeiro No dia 16 de janeiro, EUA confirmam o primeiro caso de microcefalia no hospital de Oahu, no Havaí, por associação com o zika vírus
2 de fevereiro EUA confirma transmissão sexual do zika
1º de dezembro Organização Mundial de
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5 de fevereiro ONU pede direito a aborto e contracepção. É encontrado o zika vírus em estado ativo em
18 de fevereiro Papa Francisco admite o uso de contraceptivos para evitar casos de microcefalia. A revista "Lancet Infectious Diseases" publica estudo brasileiro que aponta relação entre o zika e a microcefalia 24 de fevereiro
Diretora-geral da OMS, Margaret Chan, visita Pernambuco, onde se detectou o crescimento de casos de microcefalia e onde há mais notificações no Brasil. Disse que o “zika é um mistério”. O Brasil notificou 5.640 casos suspeitos desde outubro de 2015. Um total de 4.107 ainda são investigados.
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São Paulo SÃO PAULO
São Paulo P aulo
“Estou com muito medo. Minha mãe liga para mim o dia inteiro para eu não esquecer do repelente” PRISCILA GUANDALINE 21 anos
VINÍCIUS DANADAI/DIVULGAÇÃO
DO IBURA À BRASILÂNDIA T Mosquito Aedes aegypti aproveita a urbanização precária das periferias Ranking do saneamento no Nordeste Piauí Coleta de esgoto 6% Maranhão Coleta de esgoto 10% Sergipe Coleta de esgoto 15%
iciane Maniere, moradora da Brasilândia, periferia de São Paulo, arrumou as malas nos primeiros dias do ano e viajou com a família de férias para o Espírito Santo. “Para onde eu vou, em Linhares, tem um caso investigado de microcefalia.” Externou preocupação quanto à viagem e esqueceu que o vetor do zika vírus é o mesmo da dengue. Mãe de Mateus, de oito anos, e então grávida de um bebê de dois meses, na mala ela levava repelente para se proteger de um eventual mosquito e do surto noticiado pela televisão. Quando está em São Paulo, adota comportamento distinto. “Aqui em casa não uso muito. Não acho que é preciso porque cuido direito da minha casa.” Sobre o zika, vírus que traz graves sequelas neurológicas para bebês intra-útero, Ticiane diz: “Me preocupa, mas não tira meu sono”.
Brasilândia é o bairro onde a dengue mais cresceu em todo o município de São Paulo. No ano passado, foram mais de 9.7 mil casos, onde se viu a maior incidência por 100 mil habitantes (relação de 3,6 mil por 100 mil). Na cidade de São Paulo, foram 100 mil casos em 2015; em 2010, não chegou a 6 mil. Nas comunidades carentes dentro da Brasilândia, a dengue é assunto das escadarias improvisadas, calçadas, bares. Jacivânia Rosa da Cruz, 33 anos, grávida de nove meses, usava repelente spray na casa quando ia dormir e vivia tensa quanto à falta de cuidado da vizinhança com as lajes. “Um absurdo.” Teve medo da microcefalia e do zika até ver o menino saudável na sala do parto. “Mas pode acontecer com qualquer uma. O que mais tem aqui na comunidade é grávida mas ninguém tem interesse ou preocupação com o zika”.
No Recife, os bairros do Ibura, Cohab e Jordão são os melhores representantes da periferia pernambucana. Somam um universo de 145 mil pessoas na oitava microrregião sanitária do Recife e têm demografia que cresceu 5% nos últimos cinco anos. Katiane Silva, 18 anos, mora em uma das últimas casas
QUANTO MAIS DETERIORADA A ESTRUTURA, MAIS RISCOS CORRE A POPULAÇÃO de um terreno composto por 17 residências de famílias diferentes, no Ibura de Baixo. Grávida de sete meses, a jovem mudou os hábitos. A cada quatro horas, o alarme do celular toca: é hora de renovar o repelente. O caminho da casa de Katiane até a rua é um imenso corredor estreitado por caixas d’água aber-
Na maior cidade do país Jacivânia, grávida da periferia de São Paulo, passou a gestação tensa porque nem sempre a vizinhança protege as lajes do Aedes aegypti
tas de uma vizinhança que nem se fala. Do lado de fora, esgoto a céu aberto, lixo e a sensação de que o desafio está só começando. A cobertura de esgotamento sanitário na cidade, revela a própria Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), não passa de 38%. No Brasil, 61% do esgoto gerado pela população não é tratado. O distrito sanitário 8 do Recife é uma vitrine dos porquês de o Aedes aegytpi continuar “dando na gente mais do que a Alemanha na Copa do Mundo”, nas palavras do professor da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Universidade de Harvard Paulo Saldiva, um dos principais patologistas do Brasil. A proliferação do vetor tem a ver com a dinâmica de crescimento urbano. “Quanto mais deteriorada a estrutura social, mais lixo, mais calor, casas mais permeáveis ao RAFAEL MARTINS/ ESP. DP
Alagoas Coleta de esgoto 19%
Katiane, gestante do subúrbio do Recife, usa o alarme do celular para lembrar da aplicação de repelente
Pernambuco Coleta de esgoto 20%
mosquito”, ressalta Saldiva. Segundo a bióloga entomologista do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CpqAM/Fiocruz) Maria Alice Varjal, “as condições de temperatura e diversidade de criadouros fazem do país um resort dos mosquitos, sobretudo o Aedes que consegue se adaptar a criadouros imperceptíveis.” A mãe de Katiane, dona Kátia Silva, 42, revela a tensão: “O coração está bem pequenininho, esperando o ultrassom”. Os primeiros casos autóctones, transmitidos dentro de Pernambuco e isolados em laboratório, foram de quatro pessoas de uma mesma família do Ibura em 1987. Recife é uma das cinco cidades brasileiras com maior incidência de dengue, e o bairro líder em casos de microcefalia é o Ibura. O bairro de Katiane permaneceu o ano de 2015 entre os líderes de infestação. É o que acontece com Brasilândia, de Ticiane e Jacivânia.
Impacto do saneamento na saúde R$ 1
Cada investido em sane aneament amento o ger geraa economia economia de R$ 4 na saúde saúde
Rio Grande do Norte Coleta de esgoto 21%
100% 100 %
Se da população tiveesse ace tiv acesso à coleta coleta de esgot oto o, ha havveria uma redução redução,, em termo termoss abs absolut oluto os, de 74,6 mil int internaçõe ernaçõess
Paraíba Coleta de esgoto 24% Ceará Coleta de es esgot oto o 25%
56% 56 %
dessa redução des redução ocorr ocorreria eria no Norde Nordesste
Bahia Coleta de es esgot oto o 31 31% % Fonte: Ins Institut tituto o Trata Brasil Brasil
Fonte: Ins Institut tituto o Trata Brasil Brasil
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Arcoverde PERNAMBUCO
Uma semana após se internar supostamente supo stamente por ser picado picado por um mos mosquito quito,, seu Edgar Edgar foi enterrado enterrado pela família família
R ecif ecife e Arcc o v er Ar erde de
255 Km
“Meu marido tinha boa saúde. Só no início do ano que esteve doente de dengue; teve de novo agora e morreu” RITA FREIRE PAULO PAIVA/DP
EDGAR E MAIS 863: TODOS MORTOS
Estatística de mortes por chikungunya, zika e dengue pode ser bem maior que a conhecida
N
a quinta-feira, tinha cantado na igreja, como de costume. Homem de fé, seu Edgar era querido pelas redondezas. Preferia vender suas sacolas de plásticos para comerciantes de Arcoverde, Sertão do Moxotó de Pernambuco, a se locomover usando um au-
tomóvel. As dores nas articulações o incomodaram e buscou um médico na emergência, que lhe receitou um coquetel de remédios. Na sextafeira, dia 27 de novembro, a pressão arterial baixou e os sintomas ficaram insuportáveis. Bicicleta encostada, pernas fracas até para de andar, ficou internado no Hospital
Memorial. Dois dias depois, foi transferido para a Unidade de Terapia Intensiva. Na quinta-feira, uma semana após o último louvor da Igreja, morreu aos 66 anos, deixando três filhos, um neto pequeno e outro, Josué, prestes a nascer. “Claro que foi do mosquito. Quando meu marido chegou fez tomografia, raio X do pul-
Entenda a dengue, a zika e a chikungunya Manchas na pele
Febre
mão e tudo estava bem. Só as plaquetas estavam baixas”, relatou, com pesar, dona Rita Freire, mulher de seu Edgar há 31 anos. Falava do Aedes aegypti. Consequência da dengue, chikungunya, zika ou outro fator externo, não se sabe. No Brasil foram registradas 863 mortes por dengue em 2015, o que represen-
tou um aumento de 82,5% em comparação com 2014. “No início do ano passado, meu marido teve dengue. De resto, era um homem saudável”, disse dona Rita, que trabalha na área administrativa junto com a filha no Hospital Regional de Arcoverde. A morte de seu Edgar era assunto nos corredores do Hos-
pital Regional. Andar por lá é ver o terrível rastro deixado pelo mosquito. Há problemas de ausência de médicos, sobretudo de pediatria para cobrir faltas as ou plantões de ffim im de semana. Afora a superlotação. Nos últimos dois meses de 2015, a principal unidade da cidade de seu Edgar passou de 120 para 500 pacientes por dia.
Fonte: Comitê Técnico de Arboviroses do Ministério da Saúde
Dor articular
Inchaço nas articulações
Outros sintomas
DENGUE Acima de 38,5° 4 a 7 dias de duração
DENGUE Acontece em 30% até 50% dos casos Surge a partir do 4º dia
DENGUE Intensidade leve
DENGUE É raro
CONJUNTIVITE É mais frequente no zika do que no chikungunya e raro na dengue
ZIKA Sem febre ou febre baixa 1 a 2 dias de duração
ZIKA Acontece em todos os casos Surge no 1° ou 2° dia
ZIKA Intensidade leve a moderada
ZIKA Frequente, mas de leve intensidade
SANGRAMENTO Não ocorre na zika e é mais frequente na dengue
CHIKUNGUNYA Febre alta 2 a 3 dias de duração
CHIKUNGUNYA Acontece em 50% dos casos Surge entre o 2º e o 5º dia
CHIKUNGUNYA Intensidade moderada a forte
CHIKUNGUNYA Frequente e de intensidade moderada a forte
DOR NOS MÚSCULOS É mais frequente na dengue
Anderson, o maqueiro, sobreviveu Os corredores do Hospital da Restauração, R no Recife, são a segunda casa de AnAn derson Nunes, N 35 anos. A rotina de carregar car a dor dos outros em macas nunca foi, outr como para par muitos poderia ser, assombrosa. Ao fechar ser os olhos, lembra. lembr Sempre saía da sala vermelha, v onde estão os casos mais graves g da emergência, para a Unidade emer de Terapia T Intensiva. As intercorrências eram superadas, cor com descontração, descontr até o dia 26 de maio de 2015. 20 Anderson trocou tr o posto de ma-
queiro pelo de paciente para ser levado, às pressas, pelos colegas a um leito de UTI. O diagnóstico foi Síndrome de Guillain-Barré (SGB), doença inf inflamatória lamatória nos nervos e raízes nervosas cujo aumento de 19% no Brasil, entre 2014 e 2015, está sendo associado à epidemia de zika vírus. “A boca ficou troncha, a voz emboloada e as pernas paralisadas.” Ficou bom mas meses depois perdeu o emprego. A OMS reporta crescimento da síndrome em cinco paí-
ses latinoamericanos. A SGB é apenas uma das complicações neurológicas em estudo associadas ao zika vírus. Existem outras, como a miosite. “O mosquito quando pica induz na circulação a presença do vírus, que pode se alojar em gânglios e células nervosas, desencadeando reações eações inf inflamató lamatórias”, explica a chefe do setor de neurologia do HR e uma das primeiras a fazer a correlação entre o zika e a SGB, Lúcia Brito.
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“Não estamos preparados. A expectativa é de aumento de casos. O tratamento de um paciente desse custa R$ 40 mil. Hoje, no país, tem hospital faltando medicamento básico”, ressalta o professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da Academia Brasileira de Neurologia Osvaldo Nascimento. “Precisamos de uma política muito mais bem definida para a prevenção. Não adianta chorar o leite derramado.”
PAULO PAIVA/DP
“A boca ficou troncha e as pernas paralisadas”
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Santos SÃO PAULO S anto antoss
81,7 Km São Paulo P aulo
“Tem gente que pergunta por que não foi nos dois. Eu respondo: e se fossem seus filhos?” JAQUELINE JÉSSICA 24 anos
T
oda mulher sonha em ter gêmeos. E deseja que um bebê seja menina; outro, menino - acredita Jaqueline Jéssica Silva, jovem de 24 anos, moradora de Santos, São Paulo. Ela teve gêmeos no dia 17 de novembro do ano passado: Lucas nasceu bem; Laura teve diagnóstico de microcefalia quase um mês antes de nascer, com 3,2 quilos e 26 centímetros de perímetro cefálico, sete a menos do que deveria para o tamanho e o tempo de gestação. Foi o suficiente para fazer com que a menina se tornasse diferente de Lucas, o irmão de barriga. “É dolorido saber que Laura pode não andar, não irá para a escolinha com a bolsa nas costas como o irmão”, desabafa, ainda digerindo a novidade, as informações que a cercam e causando surpresa em quem está ao lado: “E é, Jéssica, ela vai ficar na cadeira de rodas?”, pergunta a avó da garotinha, dona Maniara de Oliveira, 45 anos. Jaqueline muda de assunto sem afobamento. Tem aprendido a lidar com o diagnóstico com a ajuda da internet, em grupos de apoio a famílias de crianças com microcefalia. Vai repassando a conta-gotas o que descobre para o marido, José Maria, 31 anos. Todo final de noite, corre para o Facebook, rede de relacionamento, ou quando não está cuidando da lida dos bebês e dois filhos mais velhos - Paulo Guilherme, de 8 anos, e Gabriele, de 4 anos. “Não imaginei na minha vida que teria um filho especial, mas agora tenho de olhar para a frente.” Conformou-se quando José Maria, trabalhador da área de gesso, disse: “Não é só a nossa filha que tem”. Com o marido reconstrói
E QUANDO A ONDA CHEGAR EM SP VINÍCIUS DANADAI/DIVULGAÇÃO
VINÍCÍUS DANADAI/DIVULGAÇÃO
Mãe de Laura e Lucas Jaqueline teve de se consolar logo e se adaptar rápido ao diagóstico de microcefalia da filha
Comparação A média de casos
planos. Só falam no quarto cheios de borboletas coloridas. “A gente não sabe de onde tira forças, mas arruma e cria com o maior amor do mundo.” Jaqueline acredita que há muitos casos de crianças com microcefalia em função do zika em São Paulo. “Eles é que não querem dizer ou desconhecem. Só eu encontrei duas mulheres no hospital em novembro.” São Paulo é objeto de polêmica porque o estado é suspeito de praticar subnotificação. O governo fez suas próprias regras. Divulga os casos de microcefalia investigados nos quais a mãe informou ter ti-
O GOVERNO DE SP ESTUDA VINTE E QUATRO CASOS DE MICROCEFALIA PELO ZIKA VÍRUS do sintomas semelhantes aos de zika na gestação. A causa do diagnóstico de Laura é uma incógnita para Jaqueline. “Levaram os exames antigos e novos dela e nunca me ligaram.” Durante quase três meses foi assim. Há pouco, conta Jaqueline, o “Ministério da Saúde” fez contato. Laura, então, colheu sangue e foi descartada microcefalia por toxoplasmose e citomegalovírus. Hoje fará exames para investigar relação com o zika. A mãe relata dor de cabeça intensa e coceira
no corpo quando grávida. Culpava um casaco velho. Conforme balanço da Secretaria de Saúde no início do ano, 24 bebês nascidos com má-formação são analisados por suposta relacão com o zika. Entre especialistas, há a expectativa de que haja um “boom” de bebês microcefálicos nos próximos anos. “Estamos no início de uma onda epidêmica de zika. Esperamos que atinja o pico maior em um ou dois anos. Com a circulação em maior escala de centros mais populosos, terá uma verdadeira explosão de casos”, crê o médico infectologista Artur Timermam, um dos maiores especialistas do país, estudioso da Aids e autor de livros sobre a dengue. “O vírus zika deve ter se introduzido no Brasil no ano de 2014 ou dois anos atrás. Está atingindo a maturidade da epidemia agora, se fizermos uma analogia com a dengue.” Quanto poderá se espalhar, ele não prevê: “Estamos vendo a ponta do iceberg. O problema é de uma extensão tal que a gente não consegue aferir. É de uma gravidade tão grande que demanda medidas à altura. Precisamos de gente e de recursos, que estão longe de serem suficientes”. Enquanto isso, Laura, a filha de Jaqueline, começa sua peregrinação. Faz consultas para reabilitação na Casa da Esperança.
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por dengue no Sudeste em 2015 foi maior que a taxa brasileira e três vezes maior que no ano de 2014
assista
diariode.pe/bysv No vídeo, os dramas e a dor das mães dos bebês vitimados pela microcefalia ou
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Especialista espera que “boom” da microcefalia no Brasil se dê em um ou dois anos
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LOCAL Recife, segunda-feira, 07/03/2016
Caicó RIO GRANDE DO NORTE Natal Caicó
268 Km
“Tem que rezar muito pelos nossos pecados e pedir perdão a Deus para ver se chega água” EDINEIDE PAULINO
COMBATE DIARIO AO MOSQUITO Aedes aegypti - O mosquito DE ONDE VEIO Aedes vem do grego “odioso”, “desagradável”; aegypti é do Latim “Egipto”. O mosquito apareceu na África e a sua dispersão ocorreu da costa leste do continente para as Américas. Em seguida, foi da costa oeste para a Ásia. Foi descrito pela primeira vez em 1762, sendo denominado Culex aegypti. Em 1818 ganhou o gênero Aedes. No Brasil, há relatos em Curitiba (PR) no final do século 19 e em Niterói (RJ) no século 20
APARÊNCIA
VIDA
DESENVOLVIMENTO
Tem cor café ou preta e listras brancas no corpo e nas pernas
H
Nasce uma fêmea de Aedes aegypti para cada macho
Leva de 7 a 12 dias para que o mosquito passe de ovo para mosquito. O crescimento dele está dividido em quatro fases. São elas:
H
Voa até 1,5 metro de altura acima do chão, mas - oportunista - pode agarrar-se a alguém e chegar a apartamentos e se procriar, por exemplo H
Há uma diferença entre fêmea e macho: a fêmea, mais ofensiva para o ser humano, é maior e o macho exibe uma antena mais peluda H
São gerados até 1,5 mil mosquitos através de uma única fêmea H
É de 45 dias o tempo médio de vida de uma fêmea
Do ovo (aqui, ele mede em média 1mm)
Da larva (3mm)
Da pupa (visível a olho nu)
Da fase adulta de mosquito, chegando a 0,5 cm
H
44 anos
RAFAEL MARTINS/ ESP. DP
Nordeste é única região brasileira onde os focos estão 80% nos depósitos; nas outras, taxa é de 30% SILVIA BESSA E ALICE DE SOUZA silviabessa.pe@dabr.com.br alicesouza.pe@dabr.com.br
U
ma linha esmaecida, feita de tinta para dividir ao meio uma mesma rua, separa os municípios de Itambé e Pedras de Fogo, nos estados de Pernambuco e na Paraíba. Nesse recôncavo nordestino, vê-se o quanto o Aedes aegypti desafia autoridades e a população. O mosquito desconhece barreiras territoriais. Estudos mostram que ele é o principal - senão o único - transmissor da zika, além de ser o responsável pela transmissão dos vírus da chinkungunya e dengue. Aqui, o desabastecimento se soma à seca secular e ao calor acentuado. O ano passado foi o mais quente da história, conforme revelou relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado há pouco. Itambé teve no ano passado 795 notificações de dengue, 3.000% a mais que em 2014. Em alguns bairros, a água chega a cada quatro dias. Outros esperam a semana inteira. A solução é acumular o pouco em latas de tinta, garrafas, panelas e comprar, mesmo sem saber a procedência. O valor varia de R$ 0,75 a R$ 2, o balde de 15 litros. Sábado é dia de feira em Itambé e Pedras de Fogo e é quando se pode ver a disputa em litros. Entre sons dos altofalantes dos carros tocando no ritmo do brega, saltam aos ouvidos os anúncios das ofertas. São roupas, frutas e água. “Olha a água, olha a água.” É um nicho de mercado crescente na região. Por causa dele, há até trânsito de carros-pipa e pickups improvisadas com mangueiras e tonéis.
No Brasil mais seco Caicó, sertão sertão do Rio Rio Grande Grande do Norte, Norte, este estev ve no topo do ranking nacional como como a cidade com com maior índicee de infe índic infestação do Aede edess aegyp aegypti ti no Brasil Brasil
"ESSE MOSQUITO VEIO DO QUINTO DOS INFERNOS" Pedras de Fogo, na Paraíba, sempre foi o vizinho da grama mais verde. A torneira cheia motivava migração entre as cidades. Atraiu a professora Simone Silva, 35 anos, que adotou o lado paraibano como lar. Ela paga uma média de R$ 30 mensalmente pelo abastecimento coordenado pelo governo. Acabou se rendendo ao comércio da linha do meio. “Meu Deus, quem era Pedras de Fogo? Ninguém sofria, não”, lamenta. O acúmulo é um dos impulsores da proliferação do mosquito. Pedras de Fogo encerrou 2015
em alert alerta para para a infes infes esttação. Mais de 300 quilômetros distante, na cidade de Caicó, Sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, a intermitência de água deixou rastro. Multiplicou por duas a quantidade de larvicida utilizada pelos agentes na região e chamou a atenção da Secretaria de Saúde do estado (Sesap). Nos dois meses em que o Ministério da Saúde deixou de repassar o produto, o município chegou a ter o maior índice de infestação do aedes aegypti do Brasil (27,1%). Os números oficiais podem ter sido
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bem maiores, maiores, pontua a biólobiólo ga entomologista do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz) Cláudia Fontes, que atua em Pernambuco. “O LIRAa é um índice frágil. Às vezes, o agente não consegue ver a larva. É um número subestimado. No Brasil, temos ferramentas menos imprecisas”, aponta, falando sobre a principal fonte de dados fornecida pelo Ministério da Saúde. O Nordeste é a única região brasileira onde os focos estão 80% nos depósitos de armazenamento. Nas outras, não pas-
sa de 30%, mostr mostr traa o Lev Levant antaamento Rápido do Índice de Infestação por Aedes Aegypti (LIRAa), divulgado pelo Ministério da Saúde. É comum, em municípios menores e mais pobres em especial, agentes narrarem pessoas que tomam água com larva, sem observar. “Meu ffilho, ilho, não notei mesmo”, exclamou dona Maria de Souza, 75 anos, outro dia quando foi abordada em sua casa no bairro da Cohab por um fiscal de endemia em Iguaraci, município do sertão de Pernambuco. “Sei não, esse mosquito parece que veio do quinto dos
infer inf ernos. er nos. Nunca Nunca vi.” O aedes, garante o agente de endemias Manoel da Silva, está mais resistente e alçando alturas maiores que um 1,5 metro, como antes. O Nordeste teve três vezes mais casos prováveis de dengue no ano passado, quando comparado ao ano anterior. Foram 865 casos notificados por dia. Diante de prognósticos climáticos desfavoráveis, a maior prova dos sertanejos é conseguir ignorar limites territoriais para fazer um eficiente combate ao mosquito, guardando baldes d'água como potes de ouro.
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LOCAL Recife, segunda-feira, 07/03/2016
Pedras de fogo PARAÍBA
COMBATE DIARIO AO MOSQUITO Fonte: Fontes: Sesau, Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), biólogas entomologistas do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz) Cláudia Fontes e Maria Alice Varjal e Ministério da Saúde
PROLIFERAÇÃO A fêmea precisa de 48 horas para virar mosquito e começar a se acasalar. Basta um acasalamento para elas. Podem ser produzidos de 5 a 500 ovos na água depois de um ciclo completo de alimentação H
Os ovos duram em média 450 dias no ambiente (mais ou menos 1 ano e dois meses), mesmo que o local fique seco. Se receber água novamente, o ovo volta a ficar ativo
CONTAMINAÇÃO ovos da fêmea. Tanto a fêmea quanto o macho se alimentam de substâncias que contêm açúcar (néctar, seiva, entre outros). Após a fecundação, as fêmeas têm maior voracidade pela hematofagia, uma vez que o sangue ajuda no desenvolvimento dos ovos
O sangue é o alimento necessário a maturação dos H
Pedr edras as de Fog Fogo o
O mosquito é transmissor da dengue, zika e chikungunya. Morde de forma geral uma só pessoa para então produzir um lote de ovos. Há relatos de que um só mosquito mordeu cinco e infectou cinco pessoas de uma mesma família. Isso por que ele tem “discordância gonotrófica”, algo que o torna capaz de picar muitos seres humanos para cada lote de ovos
A quantidade de sangue colhida do ser humano é de 1,5 microlitro ou até 2 microlitros. Microlitro é a milionésima parte de um litro. Para se ter uma ideia: uma gota é formata por um volume que varia de 15 a 30 microlitros H
João Pe Pe s s o a
55,8 Km O Aedes aegypti não gosta de calor. Por este motivo, esconde-se nas horas mais quentes do dia e costuma atacar entre 7h30 e 10h e 15h30 e 19h
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Ao ingerir o sangue para realizar o desenvolvimento completo dos ovos e maturação dos ovários, após 3 dias a fêmea já está pronta para a postura dos ovos. Procura nesse momento local para a desova. E o ciclo de nascimento e contaminação se reinicia
“É ruim porque, quando a gente mais precisa no meio desse tempo quente, não tem água” SIMONE SILVA 44 anos
SECA AGRAVA EPIDEMIAS NO NE H
á pelo menos oito anos integrantes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas já previam algo semelhante ao que vive o Brasil hoje. “As mudanças climáticas não causam novas doenças, elas agravam as existentes”, dizia o médico epidemologista da Fiocruz e um dos exponentes do IPCC, Ulisses Confalonieri (UFMG), em especial publicado pelo Diario em 2007 sobre aquecimento global. A opinião dele era a de um coletivo. O IPCC, Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas, é o fórum mais especializado no tema em todo o mundo. Agora quem faz a relação com o clima é o médico sanitarista Valcler Rangel, vicepresidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, em entrevista por telefone do Rio de Janeiro.
Fator climático e ação do ser humano são favoráveis ao Aedes aegypti, que tem sido apontado por especialistas como principal vetor do zika vírus “O Aedes está presente em mais de 100 países. Não é um vetor simples de controle e a situação ecológica e ambiental não é favorável, assim como a ação antropogênica na organização dos espaços urbanos.” Por isso, defendeu: “Temos que pensar regionalmente como América Latina”. A relação ambiental da rápida expansão do zika no Brasil e em outros países ainda não tem sido pauta principal do governo, mas tende a ganhar visibilidade à medida que se formule modelos de assistência às vítimas do vírus e suas famílias. Pode vir a se tornar assunto prioritário do futuro. Os estudiosos que se preocupam com essa vertente de
estudo vêm aumentando. “Nós temos nos últimos anos situações de seca prolongada e que, associado à precariedade da gestão nos serviços de saneamento e a questão do racionamento d’água, se tornam elementos para o surgimento de doenças transmitidas pelo inseto vetor”, corrobora André Monteiro, engenheiro de saúde pública e pesquisador titular do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Vinte e seis países dos Estados Membros das Américas já confirmaram a circulação do zika vírus dentro do território nacional. Há duas semanas, o Centro de Controle de Doen-
ças dos EUA (CDC, sigla em Inglês) informou sobre a infecção de 22 viajantes norteamericanos que retornaram de países latinoamericanos. Na semana passada, a infecção por zika foi detectada em nove grávidas. Todas estiveram no exterior. Dos três bebês que nasceram até então, um apresentou má-formação cerebral. Aqui no Brasil, o pior dano gerado pelo zika é aquele que causa microcefalia em crianças ainda no ventre. Por todas essas razões, este verão de 2016 é atípico aqui no Brasil. Pela primeira vez circulam no país três vírus diferentes transmitidos pelo mosquito do aedes aegypti - o zika, a febre chikungunya e
a dengue. Eles têm sintomas semelhantes que vêm confundindo a população, provocam prejuízos distintos sobre o paciente e não há vacina que os impeça de causar maiores danos. Intrigante e de rápida expansão, o zika tem pesquisas mais embrionárias. Há pouco, o ministro da saúde, Marcelo Castro, chegou a dizer que “levará anos” para a imunização ficar pronta. A temperatura no verão é favorável à proliferação dos mosquitos, que gostam de se manter entre 30 e 32 graus. A ameaça do Aedes aegypti é ampla. Problemas e soluções se podem colher com uma lupa sobre a realidade dos municípios. São Paulo, por exemPAULO PAIVA/DP
plo, viveu a pior crise de abastecimento da história, afetando 17 milhões de pessoas. O Sertão enfrentou a maior seca dos últimos 50 anos, diz a Organização Meteorológica Mundial. Em São José do Egito, Pernambuco, idosos ficam sem água até para consumo porque não chega na torneira. A solução da prefeitura foi instalar caixas de fibra para armazenar água nas ruas. Idosos, crianças, grávidas e adultos disputam entre si a sobrevivência. No bairro do Planalto, Edleusa Maria da Silva, 49 anos, leva os cinco filhos para ajudá-la. São todos com menos de 16 anos. “Se não for assim, a gente morre.”
No Brasil mais seco No bairro do Planalto, em São José do Egito, idosos, grávidas, crianças e adultos disputavam água em reservatórios improvisados. O caos pode voltar a depender da seca
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