Amor em Pedaços - Poliamor

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Poliamor


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Editorial O Reportagem Aline Franceschini Diego Robehamson Eutalita Bezerra Rachel Queiroz Yuri Assis

Edicão ~

Aline Franceschini Diego Robehamson Eutalita Bezerra Rachel Queiroz Yuri Assis

Revisão Final Yuri Assis

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Diagramacão e Ilustracão Lucas Campelo

Orientacão ~

E x p e d i e n t e

Universidade Federal de Pernambuco Departamento de Comunicação Social Jornalismo

Wilma Morais

termo liberdade ganhou corpo a partir da Revolução Francesa, marco que deu início aos tempos atuais. Estendeu-se também para o amor, fazendo referência a uma forma de relação na qual é possível se relacionar com mais de uma pessoa de forma simultânea. Mas em matéria de século XXI, quais as reais circunstâncias deste tipo de afeto? Yuri Assis tenta desvendar como foi se desenvolvendo ao longo do tempo essa expressão afetiva, que hoje virou um movimento, o Poliamor. As bases do movimento, os ideais defendidos e os tipos de relação poliamorosa são objeto da matéria de Aline Franceschini. Eutalita Bezerra vem reforçar o argumento apontando causas biológicas que explicariam por que o ser humano foi feito para o relacionamento aberto – e não para a monogamia, como a sociedade se acostumou a pensar. O artigo de Diego Robehamson faz uma rápida análise, com deixas para a literatura, sobre as dificuldades que o Poliamor encontra para se legitimar. Mas quem vai mesmo olhar para a arte é Rachel Queiroz, que em suas resenhas busca entender as representações estéticas da relação aberta. Claro que não se pode deixar de mencionar a crônica de Lucas Campelo, sobre a questão da posse. Como diz o próprio, fazemos dos outros parte da gente, como se as pessoas fossem pequenos suvenires que vamos adquirindo, acumulando e guardando a sete chaves.

Yuri Assis

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Poliamor


Reportagem

Poliamor é conceito, l ia c so a c ti á r p e to n e im v o m Aline Franceschini

ainda são praticamente restritas à internet. Um dos responsáveis por introduzir o tema Poliamor nas universidades de Portugal, o professor e pesquisador Daniel Cardoso concluiu no ano passado sua tese de mestrado, “Amando Vári@s: Individualização, Redes, Ética e Poliamor”, defendida na Universidade Nova de Lisboa. “Identifico-me como poliamoroso e queria trazer alguma legitimidade científica e acadêmica para o tema no meu país, além de dar-lhe mais visibilidade e aumentar o meu conhecimento sobre o assunto”, afirma ele. Há dois anos, Daniel vive com duas mulheres uma relação em V – ou seja, elas se relacionam com ele, mas não uma com a outra.

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suposição de que é possível, válido e valioso manter relações íntimas, sexuais e amorosas com mais de uma pessoa. Esta é a definição que o sociólogo finlandês Jin Haritaworn dá ao termo Poliamor, que faz referência a qualquer tipo de relacionamento no qual a monogamia é desprezada, a partir do consentimento de todos os envolvidos. Apesar de ter se tornado tema de estudos na Europa e movimento social nos Estados Unidos, o conceito de Poliamor ainda é pouco conhecido no Brasil, onde as discussões a respeito do assunto

Nos Estados Unidos, o Poliamor ganhou contornos de movimento social em 2004, com a realização de uma passeata na cidade de São Francisco, na Califórnia. Também já foram

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criados símbolos para representar o conceito de Poliamor, sendo o mais comum deles um coração vermelho combinado a um sinal azul de infinito. Nesse símbolo, a cor vermelha faz referência ao amor e à paixão, enquanto o azul está relacionado à sinceridade e à honestidade entre os parceiros. De acordo com Daniel Cardoso, “a luta organizada em torno desse tema é uma forma de luta política, para que nós todos consigamos viver sem sermos alvo de discriminações arbitrárias advindas do funcionamento de uma estrutura sexista, normativa, hetero-mono-compulsória”.

No Brasil, uma das tentativas mais ousadas de levar as discussões sobre Poliamor para fora da Internet foi a organização do Poliencontro, no Rio de Janeiro, que já teve dez edições. Rafael Machado, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos organizadores do evento. Segundo ele, “o objetivo do encontro é formar um espaço regular no Rio de Janeiro onde os poliamorosos do nosso estado possam encontrar outros. Acho que um dos grandes problemas da comunidade poli, especialmente no Brasil, é o isolamento. Já vi muita gente abandonar o Poliamor por causa disso”.

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Poliamor


De acordo com Rafael, “o Poliamor é um fenômeno social e a expressão de uma tendência de transformação mais profunda na sociedade. É um fenômeno objetivo, no sentido de que acontece independente da ação ideológica dos que o defendem. É uma prática social”. Por causa dessa independência, o Poliamor muitas vezes ocorre de forma espontânea,

sem que o indivíduo sequer conheça o movimento e perceba que faz parte de um grupo. A falta de informação a respeito do assunto e o preconceito da sociedade são os maiores problemas dos poliamorosos hoje.

Entrevista

Daniel Cardoso Professor e pesquisador da Universidade Lusófona, em Lisboa, e vivendo uma relação poliamorosa há dois anos, Daniel Cardoso é autor da tese “Amando Vári@s: Individualização, Redes, Ética e Poliamor”, concluída em 2010. O que você entende como Poliamor?

nho numa terra estranha”, de Robert Heinlein, mas só descobri que existia uma coisa chamada polyamory - Poliamor - alguns anos depois. Desde o momento que descobri, me interessei pelo tema e procurei entender o que era. Também tentei entender como outras pessoas lidavam com as situações pelas quais eu já tinha também passado. A descoberta do termo em si deu-se por volta de 2005 e 2006.

Tem uma citação que sempre uso quando me perguntam isto. O sociólogo finlandês Jin Haritaworn define Poliamor como “a suposição de que é possível, válido e valioso manter relações íntimas, sexuais e/ou amorosas com mais do que uma pessoa”. Quando você começou a se interessar por esse tema?

Então você vive ou já viveu uma relação de Poliamor?

Comecei a interessar-me pela não monogamia desde que li “Um estra-

Sim, estou numa relação de longo

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prazo em V, com duas mulheres. Também tenho outras relações que envolvem amizade e sexo, e conheço várias outras famílias poliamorosas portuguesas diretamente, bem como outros contatos online.

de mãos dadas com duas pessoas, por exemplo, dá azo a comentários, olhares desconfortáveis, comportamentos estranhos de quem está à nossa volta. Os familiares tentam, frequentemente, interferir nas relações e convencer as pessoas de que uma relação poliamorosa é necessariamente menos séria e menos real, entre outras formas.

Foi isso que levou você a escrever sua tese de mestrado sobre Poliamor?

O Poliamor já é vivido como um movimento nos Estados Unidos. Por que você acha que há essa necessidade de formar um movimento organizado a respeito do assunto?

Identifico-me como poliamoroso e queria trazer alguma legitimidade científica e acadêmica para o tema em Portugal, além de dar-lhe mais visibilidade e aumentar o meu conhecimento sobre isso.

Bem, uma das coisas que o feminismo nos ensinou é que “o pessoal é político”. A luta organizada em torno de um tema pessoal é também uma forma de luta política, de combate contra a discriminação e a favor da possibilidade da pluralidade, para que nós todos consigamos viver, eticamente, sem sermos alvo de discriminações arbitrárias advindas do funcionamento de uma estrutura sexista, normativa, hetero-mono-compulsória.

Qual foi o foco da sua tese? O foco principal da minha tese é tentar perceber como os sujeitos lidam com os constrangimentos contemporâneos de uma sociedade individualizada, sexualizada e psicologizada de forma a produzirem-se como sujeitos poliamorosos. Como é feita essa produção no contexto de uma comunidade online, como é que ela funciona enquanto tal, e como é que se afirma enquanto comunidade.

Você continua trabalhando o tema Poliamor no seu doutorado?

Você acha que as pessoas que praticam o Poliamor ainda são muito discriminadas?

Não, mas continuo ligado ao tema, continuo a refletir sobre ele e tenho algumas colaborações pensadas no sentido de continuar a investigar a temática.

Sim, pelo menos na minha experiência, a discriminação ainda existe. E existe de várias formas. Passear na rua

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Poliamor


Reportagem

Poliamor através dos tempos

Da Pré-história à Idade Contemporânea, as relações humanas nem sempre foram monogâmicas, apesar do Poliamor ser recente

Yuri Assis

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Etnographic Atlas Codebook, espécie de mapa-múndi das condições de existência de mais de 1230 sociedades, revela que apenas 186 delas são estritamente monogâmicas. O status padrão que a monogamia alcançou nas principais civilizações do planeta decorre de um processo cujas origens remontam à Pré-história. Pesquisas na área de genética apontam que os machos mais fortes saíam na frente na disputa pelas mulheres, muitas vezes chegando a reunir uma grande quantidade delas ao seu redor.

As relações conjugais passaram a se orientar segundo o ideal monogâmico principalmente após a consolidação do Cristianismo e da Igreja Católica, que erigiram o conceito de pecado e tornaram-se responsáveis por legitimar os matrimônios. Além disso, a predominância da propriedade privada trouxe à tona a questão da passagem dos bens, concedendo um fim prático à monogamia. Estabelecidos estes valores, relacionar-se com mais de uma pessoa assumiu o caráter criminoso de adultério, implicando em penas morais, sobretudo para as mulheres. Na Bíblia, por exemplo, é narrada a história da adúltera Maria Madalena, que sofreria apedrejamento em praça pública, não fosse a intervenção de Jesus Cristo. A colonização portuguesa fez aportar em terras tupiniquins o legado católico-apostólico romano. A historiadora Mary del Priore, em seu livro “Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil” vai indicar, entretanto,

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que o país era considerado como um ambiente de vícios, contando inclusive com a aversão dos europeus pela “corte amorosa à brasileira”. Apesar de a poligamia permanecer proibida, muitos homens – dentre eles o caso bastante peculiar do imperador Dom Pedro II – tinham relações extraconjugais mais ou menos fixas. Às concubinas, dava-se a pecha de “teúdas e manteúdas”.

manteúda’ de um homem importante implicava galgar degraus, ganhar status econômico que de outra maneira não existiria. É certo que se exigia dela ser conhecedora ‘do seu lugar’, com comportamentos adequados e comedidos, mas, ainda assim, ela gozava de respeito”. Percebe-se, portanto, a existência do consentimento social para um homem que mantivesse relações extraconjugais.

“As mulheres jovens sem bens e que não haviam conseguido casamento numa terra de estreito mercado matrimonial encontravam no homem mais velho, mesmo casado, o amparo financeiro ou social de que precisavam. Mesmo sendo ‘a segunda ou terceira esposa do senhor juiz’, por exemplo, o poder e o prestígio dele ajudavam-na a sobreviver”, explica Priore. A historiadora ainda afirma que “ser ‘teúda e

Todavia, o mesmo não ocorria para as mulheres. Mary del Priore evidencia que as prostitutas, libertinas e concubinas não podiam fruir dos mesmos direitos das “senhoras de respeito”. “Prazer e instituição não podem ser encontrados nesse universo de convenções e repressões que se chama a ‘boa sociedade’. A beleza vista na prostituta era a das mulheres dos salões. Ela reforça o preconceito

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e o cinismo dos jovens aristocratas e burgueses: com moças pobres canalizavam desejos, divertiam-se e davam escapadelas rápidas. Com sinhás de salão, postavam-se de joelhos, recitavam versos de amor cortês e respeito até que se consolidasse um bom casamento”, sublinha a historiadora. O sexo feminino, contudo, vai encontrar seus meios de também “pular a cerca”, recebendo apoio das alcoviteiras, pessoas incumbidas de propiciar o encontro com o amásio sem maiores alardes. POLIAMOR - O século XX presenciou a liberação sexual e a reivindicação de direitos iguais para as mulheres. A disseminação da pílula anticoncepcional desvinculou o sexo da função de procriar, trazendo consequências significativas para as diversas maneiras de relacionamento, particularmente no que tocava a repensar o papel dos gêneros na sociedade. O termo amor livre, embora tenha sua origem atrelada ao começo do feminismo nos idos do século XIX, tornou-se popular com o movimento hippie nas décadas de 60 e 70. Foram lançadas, portanto, as bases para um tipo de relação consensual de cunho poligâmico. O chamado Poliamor será citado em suas primeiras referências com “conotação necessariamente irônica e negativa”, segundo coloca Daniel Cardoso, mestre em Ciências da Comunicação pela

Universidade de Lisboa, em seu ensaio “Poliamor, ou Da Dificuldade de Parir um Meme Substantivo”. Na passagem da década de 70 e 80 é que vai se notar uma gradação no contexto em que o termo poliamoroso se inserirá. O termo “Poliamor” em sí nasce na década de 90, com a publicação do artigo A Bouquet of Lovers na newsletter Green Egg, de autoria de Morning Glory Zell-Ravenheart, representante da Igreja de Todos os Mundos. “Nesse artigo, constava uma nova palavra: poly-amorous, um adjetivo que se referia a pessoas que tivessem relações amorosas e sexuais com mais de uma pessoa simultaneamente, ou que o quisessem fazer, e que reconhecessem o direito de outros o fazerem”, relata Daniel Cardoso em seu texto. O movimento, entretanto, teve sua formação na década anterior, ainda que sua primeira conferência internacional date de 2005, realizada na cidade de Hamburgo, Alemanha. Porém, em 2004, a famosa San Francisco Pride, parada do Orgulho Gay que ocorre em junho na cidade de São Francisco, na Califórnia, Estados Unidos, recebeu a participação de adeptos do movimento. O Poliamor, ainda assim, segue desconhecido das massas, mas tem sólidas representações e grupos de discussão principalmente na internet, sendo tema de estudos em universidades.

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Reportagem

A fisiologia das questões amorosas

Mito do homem como ser naturalmente monogâmico é desconstruído por cientistas

Eutalita Bezerra

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ara Nelson Rodrigues, ela deveria ser facultativa. Para Millôr Fernandes, seu preço é a eterna vigilância. Oscar Wilde, por sua vez, chegou a cunhá-la como o “amor da propriedade”. O próprio duque de Rochefoucould, dentro de suas máximas, a viu como uma invenção do amor-próprio. Estamos falando da fidelidade, difícil de definir pelas ciências humanas e tão estudada pelas ciências biológicas.

Monogamy: Fidelity and Infidelity in Animals and People” (“O Mito da Monogamia: Fidelidade e Infidelidade em Animais e Pessoas”, tradução livre). O livro traz uma gama de comportamentos sexuais do mundo animal que nos fazem refletir sobre o nosso próprio instinto. Deslocando-se da máxima já conhecida de que a tendência poligínica está condicionada ao homem (é ele quem deve repassar seus genes ao maior número de fêmeas possível), Barash e Lipton trazem uma série de vantagens evolutivas contidas na adoção deste comportamento pelas fêmeas, não deixando de recordar que há nos humanos fatores mais complexos definindo estas questões. Segundo os autores, a monogamia entre humanos difere-se do mundo animal pelas questões sociais, econômicas e religiosas, aliadas a um senso de comodismo. Para eles, a nossa sociedade cria meios de tolher o nosso pensamento mais irracional.

Pesquisa divulgada no início deste ano mostra que o número de divórcios aumentou no país. Em São Paulo, o número cresceu 109% em comparação com o ano anterior. Este crescente número corrobora a tese levantada por uma corrente de sociólogos e antropólogos que consideram frágeis os alicerces das relações amorosas atuais. A ideia de fidelidade conjugal, por exemplo, parece ser um comportamento social que não condiz com nossa situação natural.

Quem pensa de forma parecida com os autores é o casal Anderson*, 45, e Milena*, 24. Casados há dois anos, eles resolveram se livrar de tudo o que

É o que defendem o psicólogo e zoólogo David Barash e a psiquiatra Judith Eve Lipton em sua obra “The Myth of

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havia de “destruidor” em seus relacionamentos passados. Começaram pela ideia da monogamia. “Meu casamento acabou depois que fui traído. Minha mulher se relacionou com nosso vizinho durante anos, até que eu descobrisse”, explicou Anderson. Para ele, saber que estava sendo traído trouxe à tona seus instintos mais primitivos. “Eu quis derrubar tudo, acabar qualquer sinal da existência dela em minha vida. Mas temos dois filhos”, contou ele, que se separou após a traição e começou a pensar a questão instintiva do episódio. Após o fim do relacionamento, Anderson passou algum tempo sem querer “voltar ao mercado”, como ele mesmo diz. “Era como se eu fosse obrigado a passar por toda aquela situação novamente”. Nesta época, ele conheceu um casal que vivia um relacionamen-

to aberto, e com eles Anderson deu seus primeiros passos no mundo do poliamor. O casal, adepto do swing, foi o modelo que faltava a Anderson para entender que não precisaria ser traído novamente. Pouco depois, Anderson conheceu Milena, que vinha de um namoro de dois anos, no qual o parceiro a proibia de quaisquer contatos com homens. “Era como se ele fosse o meu dono e eu, seu animal de estimação”. Milena viu na relação pluriafetiva a possibilidade de amar e ser livre. “Quando conheci o Anderson e seu pensamento, me encantei. Me senti parte disso”, confidenciou. Anderson e Milena tornaram-se poligâmicos por uma “peça” do destino. Não é o caso de Mariana*, 42, e Didier*, 46. Casados há 20 anos e pais de dois adolescentes, eles dizem já ter nascido assim. O casal começou a namorar muito cedo e os dois não

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tiveram outros parceiros antes do casamento. “Certo dia, nós conversamos sobre isso [o Poliamor]. E, não sei explicar como, mas entendemos que nos relacionar com outras pessoas não mudaria o que sentimos um pelo outro”, explicou Didier. Para eles, a atração sexual por outras pessoas é natural e factível. E eles exigem ser informados. “Esconder qualquer coisa é traição. É mentir de si para o outro. Isto não acontece conosco. Vivemos plenamente felizes com nossos filhos, nosso amor e nossa vida conjugal”, explicou Mariana. Em comum, os dois casais trazem as impressões de que a biologia funciona como fator determinante em seus relacionamentos. “Nós não precisamos fingir que não sentimos vontade. Somos homens e mulheres e, como animais que somos, temos desejos”, descreveu Mariana. Para Didier, a questão vai um pouco além. “Você conhece algum casal que não olha pra outras pessoas? Que não sente desejo por outras pessoas?”, provocou. Diante desse questionamento de Didier, a reflexão sobre o caráter anti-natural da monogamia chega a aturdir. E na mão das reflexões biológicas, não custa lembrar que quem gosta de maçã irá gostar de todas porque todas são iguais. *Os nomes foram substituídos para preservar a identidade dos entrevistados.

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Artigo

Uma quebra de convencões

Diego Robehamson

a sociedade contemporânea. Sempre que há alguma tentativa de definir ou explicar as regras da convivência na contemporaneidade, esbarra-se, invariavelmente, em conceitos que abarcam pluralidade, multiplicidade, mobilidade ou capacidade de reinvenção.

E

m uma busca rápida na internet encontra-se a seguinte afirmação acerca do Poliamor: “o Poliamor, como opção ou modo de vida, defende a possibilidade prática e sustentável de se estar envolvido de modo responsável em relações íntimas, profundas e eventualmente duradouras com vários parceiros simultaneamente”. Ora, palavras como “sustentável” e “simultaneamente” são altamente representativas quando se trata – ou se tenta – compreender

Como contraponto a essa característica do presente, parece sempre haver uma busca de maior profundidade nas relações pessoais de maneira a torná-las duradouras sem transformá-las em opressivas – uma vez que o respeito à individualidade também se mostra essencial nas relações interpessoais pós-modernas. Dessa maneira, parece lógico pensar que a prática do poliamor seria um reflexo natural de evolução nas relações amorosas no século XXI. Entretanto, nada é tão simples como parece ser.

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A formação de uma sociedade é repleta de complexidades. Quando se tratam as relações amorosas, então, diversas variáveis devem ser consideradas. É muito difícil, por exemplo, superar a idealização do amor romântico nas relações interpessoais. Tão forte é a influência do imaginário romântico que a grande maioria das pessoas acredita firmemente ser a monogamia e os suspiros de amor as únicas maneiras de representação e expressão do amor de “verdade”. Um olhar mais apurado para a história humana, contudo, prova que tal impressão é, digamos, equivocada. O amor romântico, tal como o conhecemos, é um fato recente na história da humanidade. Tem cerca de duzentos

anos, apenas. A poligamia era praticada em diversas sociedades antigas – especialmente entre os homens. Era comum, por exemplo, na Grécia Antiga, onde os homens possuíam suas esposas e mantinham amantes (homens) na esfera pública. De volta ao século XXI, talvez estejamos em um curioso meio termo do que seriam os tempos de Homero e os de José de Alencar. É verdade que a maioria das pessoas ainda acredita que Iracema era uma virgem dos lábios de mel, mas há quem queira escrever sua própria odisseia amorosa – e viver tantas aventuras quanto Ulisses, “o herói de mil estratagemas”.

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s, o lc a p s o n e s te n a st e Nas e ic h n o g r e -v m se à e d o a m u

Resenha

Rachel Queiroz

L

er “A Casa dos Budas Ditosos” dá tesão. Não apenas tesão sexual, mas tesão de viver. Pode ser que quem o leia, pense à primeira vista que se trata de um livro “de sacanagem”, mas a narrativa vai além. É uma ode à sem-vergonhice em seu sentido literal: não ter vergonha dos desejos nem de realizá-los. A narrativa descreve as mais diversas maneiras de viver o sexo e outros desejos hedonísticos. Sem pudor, sem hipocrisia. Sem ser vulgar.

Segundo o autor, João Ubaldo Ribeiro, o livro é fruto de uma narrativa da vida de uma senhora de 68 anos, que teve uma vida interessante e estava prestes a morrer. Ela, então, resolveu contar a sua vida em gravações, que foram entregues ao autor para serem publicadas em forma de livro. A narradora conta ter tido relações amorosas com o marido, com professores, com marinheiros americanos “verdinhos”, que iam aportar na Bahia e não sabiam nada da vida até serem ensinados por ela. Sempre dedicada,

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ela tinha prazer em ensinar e aprender. Para ela, essa era a sua missão, dada por Deus, muito bem cumprida. O livro foi transformado em monólogo teatral, estrelado por Fernanda Torres e dirigido por Domingos de Oliveira. Sucesso de público e crítica, a peça teve uma temporada no Teatro Guaíra em São Paulo, entre 2004 e 2005, e uma curta temporada no Citybank Hall, em 2009. À atriz que dá vida à sua obra, Ribeiro enviou tais palavras, que ela postou em seu blog pessoal: “Não se trata de teatro marginal, mas teatro respeitá-

vel socialmente, com uma atriz respeitável, um autor acadêmico, um diretor respeitável e uma plateia respeitável, para a qual ex-presidentes levam suas esposas”. É respeitável discutir o sexo, a falta de hipocrisia, as vontades. O sucesso da “sem-vergonhice” nas estantes e nos palcos demonstra o quanto o público quer ver o indizível, o polêmico, o segredo. E o secreto tão bem aceito nos faz nos aceitar também. Cumprida a divina missão da narradora de “A Casa dos Budas Ditosos”.

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Resenha

Verão na Espanha muda conceitos de duas americanas Rachel Queiroz

B

arcelona é o palco da liberdade e da beleza para duas americanas em “Vicky Cristina Barcelona”, de Woody Allen. O filme, de 2008, mostra o que a cidade, singular em suas formas e nas experiências que proporciona, mudou na vida de duas mulheres. Amigas de infância, Vicky (Rebeca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) vão a Barcelona passar o verão. Vicky está para se casar, convicta da felicidade de uma vida “sonho-americano”: marido amoroso, casa e filhos. Já Cristina não sabe o que quer. Sabe que não quer um clichê da felicidade amorosa, como é o caso de Vicky. Ambas conhecem Juan Antonio (Javier Bardem), pintor que tem um passado de paixão com uma ex-mulher desequilibrada e genial. Vicky o rejeita em todo o possível, por não concordar com seu modo de viver, sincero aos sentimentos. Cristina, fascinada, gostaria de conhecê-lo melhor. Porém, ela adoece e Vicky acaba entregando-se à singularidade de Juan, e, em uma noite, trai o seu futuro marido. A partir de então, a verdade é destruída para Vicky. Ela não sabe mais o que quer e tem medo de mudar a felicidade certa

na qual acreditava. Enquanto isso, Cristina aproxima-se e apaixona-se por Juan Antonio. A ex-mulher do pintor, Maria Elena (Penélope Cruz), reaparece, e depois de um conturbado começo, acaba por formar um triângulo amoroso com ele e Cristina. O triângulo envolve principalmente evolução. Maria Elena, gênia da arte, ajuda Cristina a se descobrir na fotografia. Cristina traz paz à vida conturbada do casal, que passa a se amar enquanto a turista está com eles. Ela é o ingrediente que faltava. Tudo isso é malvisto pelo noivo de Vicky, que acredita que a felicidade não pode residir em outras formas de amor. Vicky sabe que está caminhando para uma vida infeliz, mas não desiste dessa vida por ter medo. No fim do verão das americanas, triunfa o amor monogâmico, o equilíbrio aparente, para americano ver. Torcemos todos por um final feliz para as mocinhas, mas ele não existe. E aí, torcemos pela felicidade dos envolvidos, ainda que ela não seja para sempre, ainda que venha efêmera (mas sincera).

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^ Cronica

Coffee Break Lucas Campelo ou gelado. Lembro bem que a moça gritava incontrolavelmente, como se tivesse bebido 1400 mg de cafeína. Dizia saber que ele passeava com outra menina e que ela era mulata, dengosa e cheirosa. Lembro também de ele se desculpar dizendo que era só uma amiga, que o mais próximo que chegaram foi algo como um aperto de mão e meio abraço. E aí que aconteceu a monstruosidade. Em um surto que, decerto, foi desesperado, a moça pegou com vontade uma xícara que eu conhecia a muito tempo e jogou contra a parede, despedaçando uma antiga amizade minha.

E

ra um sábado meio morno e parcialmente amargo, com no máximo uma colher de chá de açúcar. A mesinha de esquina daquela cafeteria era a minha favorita, e de vez em quando, porventura, eu parava lá, mas não naquele dia. Havia um casal que discutia aos berros e que me fez pensar se é melhor ser servido quente

Olhando aquilo tudo de meu pires de porcelana, me coloquei a pensar como os humanos são mesquinhos. Eu mesma já tinha passado por muitas lavouras. Centenas de pessoas já tinham colocado em mim a boca e bebido com prazer o café que eu proporcionava. Isso nunca diminuiu o deleite em seus olhos e o suspiro que exalavam. Era por isso que eu me

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perguntava por que tantos clientes insistiam em ter um outro só pra eles. Mas, depois de tanto refletir entre uma bandeja e outra, eu consegui colher uma resposta.

vir aqui compartilhar.

Os humanos têm um buraco profundo. Um tão vasto vazio, que eles precisam encher com alguma coisa e, muitas vezes, essa coisa é alguém. De repente, eles começam a achar que precisam desse par para ser um só. E esquecem que eram um só antes disso. É um problema que ando chamando de “O outro sou eu”. É uma ideia tão maluca que tenho até vergonha de

Outro dia eu descobri que os próprios humanos sabiam do que eu estava falando. Eles usam palavras diferentes para falar sobre isso: ciúmes, traição e fidelidade. Sempre com um “meu” antes de tudo, falavam “meu namorado e amante”. Até hoje, acho graça disso. Continuo eu aqui, completando o meu vazio com café e servindo as bocas repletas de outras línguas. E os humanos continuam lá, enchendo o vazio com apenas um alguém, que vai embora depois.

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